COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro...

24
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH Especialização em História para Professores do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio MARIANA DINIZ DE CARVALHO COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO: EDUCANDO AS DONZELAS DE TAUBATÉ Campinas, 2011

Transcript of COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro...

Page 1: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

Universidade Estadual de Campinas - Unicamp

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - IFCH

Especialização em História para Professores do

Ensino Fundamental II e do Ensino Médio

MARIANA DINIZ DE CARVALHO

COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO:

EDUCANDO AS DONZELAS DE TAUBATÉ

Campinas, 2011

Page 2: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

ii

Resumo

A história de uma sociedade que enriquece rapidamente por pertencer a uma

grande expansão econômica do ciclo do café não se restringe apenas a seus

aspectos econômicos e sociais, pois entender esta sociedade requer entender

o funcionamento de suas partes, de seus múltiplos sujeitos, incluindo aqueles

que não estão expostos mais claramente e têm relegado seu papel social a

segundo plano. Aqui se fala daquela que é uma das mais importantes

instituições desta sociedade, a família, mas que, por se tratar do universo

daqueles relegados ao espaço sagrado da mulher e dos filhos, acaba por ser

esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta

sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em

desenvolvimento, mas ainda escravocrata e dicotômica, começa a aparecer a

urgente necessidade de educar o futuro: meninos para o exercício do poder e

meninas para o reinado do lar. É sobre este último grupo que se debruça este

estudo. Compreender como era pensada a educação das jovens de elite para

seu projeto maior de vida, o de se casar e gerar filhos.

Palavras-chave: educação feminina do século XIX, educação religiosa,

representações, sexualidade, gênero.

Page 3: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

1

Sumário

Introdução 02 Desenvolvimento

Debate na História e métodos

Elaborando os discursos

Conclusão

05

09

19 Bibliografia 21

Page 4: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

2

Colégio Nossa Senhora do Bom Conselho: educando as donzelas de Taubaté

Mariana Diniz de Carvalho

Introdução

A ocupação do Vale do Paraíba remonta aos séculos XVII e XVIII, em que

esta região serviu como um dos caminhos para adentrar pelo sertão, nas expedições

de busca de cativos, e, posteriormente, como uma das rotas de escoamento da

produção da região aurífera das Gerais. Mas foi no século XIX que, segundo

Roberto G. S. Lima (2003), a região conheceu seu apogeu, com o Ciclo do Café, o

“ouro negro”. O período trouxe grande riqueza aos produtores, realocou grande

parcela de cativos vindos de outras regiões, cujas economias se encontravam em

declínio, e serviu para o surgimento de uma nova elite agrária em consonância com

os ideais do Império. Há quem diga que tais ideais eram até dependentes, mas

serviam comodamente como contraponto à influência dos senhores do Nordeste e

do Sul do País, que nem sempre simpatizavam com as decisões da corte.

Este novo ciclo econômico1 é geralmente compreendido pelo Vale do Paraíba

do Sul fluminense, mineiro e paulista, tendo sido Taubaté um dos importantes polos

de decisão e expansão do café na região paulista. Deu-se em três fases, como

1 O conceito de ciclos econômicos foi amplamente utilizado por Celso Furtado, que analisou a

dinâmica própria da economia brasileira desde a Colônia, num sistema produtivo que

mesclava a cultura de subsistência e de muito baixa produtividade com uma economia

altamente dinâmica voltada à exportação. A relação entre as duas caracterizou os diferentes

ciclos do País, incluindo o citado ciclo cafeeiro. Furtado, Celso. Formação Econômica do

Brasil, In: HTTP://cei1011.files.wordpress.com/2010/05/feb_celsofurtado.pdf.

Page 5: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

3

usualmente se refere na região. Seu início, compreendido pelo começo do século

até aproximadamente 1840, é conhecido como a fase dos “pais ricos”, seu apogeu.

Daí até aproximadamente 1875, foi a fase dos “filhos nobres”,e seu declínio ocorreu

por volta de 1875 até aproximadamente 1900, ou na fase dos “netos pobres”(Lima,

2003). Mesmo com aqueda da importância e da produção do Vale, o café não

deixou de ser produzido na região.

Porém, o interesse aqui não é analisar como se deu essa expansão cafeeira

na região, ou compreender seu ciclo econômico e produtivo, mas sim estudar como

foi a transformação de uma sociedade que se elitizou, e seus desdobramentos, no

que se refere à preocupação com a sua evolução e com a busca por um maior

refinamento dos gestos, aproximando-os daquilo que era referência maior de

civilização e refinamento, a educação com ares europeus. Domesticar os corpos

para ocuparem melhor seus espaços sociais. Para isso, era preciso educar os

jovens para serem os donos do poder e, as moças, boas progenitoras. A escola,

como vemos em Guacira L. Louro (1997, p. 85), “não apenas transmite

conhecimentos (...), mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades

étnicas, de gênero, de classe...”.

Com base nestas premissas, em 1879, é fundado em Taubaté o Colégio

Nossa Senhora do Bom Conselho, sob o comando da Congregação das Irmãs de

São José de Chambéry, oriundas da França, e constituindo uma cópia ao modelo

implantado pela mesma ordem em Itu, com o Colégio Nossa Senhora do Patrocínio.

Seu objetivo era formar as moças das famílias da cidade e região, mas compreendia

também o trabalho com órfãos, meninas e meninos, para o aprendizado das

primeiras letras, sendo posteriormente construído o Externato São José, na mesma

cidade, para este fim. Mas, vale lembrar que, neste último grupo, a importância

maior recaía sobre as meninas, pois era imprescindível afastar as desfavorecidas

dos perigos dos vícios, assim como qualquer menina de família, como se vê em

Guacira Louro(2010).

A atenção do presente estudo recai nesta instituição de ensino, em como ela

representa a sociedade na qual está inserida, com as novas exigências de um

Page 6: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

4

mundo em transformação, ao mesmo tempo em que ajudou a forjar o ideal de moça

e de progenitora, em que a representação simbólica da mulher aparece como a

esposa-mãe-dona-de-casa dentro dos pressupostos de uma nova sociedade, que se

moderniza e evolui, zelando agora pela saúde e bem-estar de todos os membros da

família, de acordo com Margareth Rago (1985).

Page 7: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

5

Desenvolvimento

Debate na História e métodos

Entender o momento histórico da expansão cafeeira no Vale do Paraíba do

Sul, durante o século XIX, não se restringe apenas a focar seus aspectos

econômicos, políticos e sociais conforme a historiografia normalmente trata, mas

também adentrar em aspectos fora do espectro usual dos recortes do mundo

público, que também compreende os signos identitários desta sociedade, o mundo

do privado, mais propriamente utilizando as ferramentas da História das Mulheres.

Neste âmbito, encontram-se elementos explicativos da sociedade, mas que

eram esquecidos pela historiografia das grandes histórias e grandes personagens.

Quando outras abordagens da História começam a ampliar seu repertório de

questionamento, incluindo em suas análises elementos interdisciplinares e

dialogando com a Antropologia e Ciências Humanas, caso dos estudos dos Annales,

ocorre o rompimento com a exclusividade dos grandes personagens e fatos.Tais

abordagens chegam, então, na História das Mentalidades, e, por outro lado, na

História Social, levantando a importância da experiência vivida culturalmente para a

construção de consciência de classe e mudando o enfoque econômico da identidade

de classe para uma abordagem cultural desta. É neste ponto que o Marxismo

começa a olhar para os diversos sujeitos históricos, criando espaço para aqueles

silenciados pela historiografia. Já a História Cultural amplia as práticas da História

para campos diversos, como identidades, discursos, política, representações,

subjetividades e poderes, usando de ferramentas analíticas que possibilitam a

compreensão destes campos, conforme se pode verificar nas abordagens

historiográficas vistas no primeiro módulo deste curso, na disciplina de Historiografia,

desenvolvida por Eliane Moura da Silva (RedeFor, 2010), assim como no módulo de

Contemporânea I, desenvolvido por Cristina Meneguello(RedeFor, 2010/2011).

Page 8: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

6

Com todas estas transformações historiográficas em curso, somadas à

efervescência do Feminismo, emerge, em meados dos anos 60, estudos centrados

na mulher, que passa, segundo Rachel Soihet (2003), a constituir objeto e sujeito da

História. Mas muitos foram os desdobramentos e discussões trazidos por esta nova

forma de pensar a história, conforme o debate abordado por Michelle Perrot (1984),

citada por Rago (1998), acerca desta realidade, pois muitos julgaram: “Não estaria

este sujeito sendo privilegiado em detrimento de outros?”

Mas, se a mulher traz uma experiência histórica e cultural diferente em

relação à do homem, é válida a construção de uma epistemologia feminista, ou de

um projeto feminista de ciência, que propõe, por meio deste grupo (as mulheres),

sempre classificado à margem da história, a busca de uma nova linguagem, ou,

mesmo na construção de um contradiscurso, ainda em Rago (1998), que exponha

de maneira mais contundente as relações de poder engendradas no discurso oficial.

Já Guacira Lopes Louro (1997) vê estes estudos como uma categoria

analítica instável, em constante construção, mas que se assume como uma

epistemologia feminista, pois reconhece que os posicionamentos, crenças e

representações dos pesquisadores interferem nos resultados (p. 154). Porém, este

reconhecimento não deve desqualificar a análise. Ao contrário, pois escancara a

pretensa ideia contida em muitos estudos historiográficos de que é possível fazer

uma história com distanciamento do objeto de estudo, garantindo um caráter

científico a este discurso. Aliás, é assim, com esta pretensão científica, que se

criaram discursos que se naturalizaram, incluindo os que colocaram a mulher como

um ser inferior ao homem, com apenas duas possibilidades de representação do

feminino: Eva ou Maria, como afirma Tânia Navarro Swain (sem data).

Segundo Foucault (1988), o sistema capitalista normatizou ainda mais os

corpos, vinculando-os ainda mais às instituições do poder e garantindo a

manutenção deste poder sobre os corpos. Para tal finalidade, são inventadas o que

ele chamou de técnicas de poder, inseridas dentro de um corpo social para a

perpetuação das relações de poder. Dentro destas técnicas de poder, encontramos

Page 9: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

7

a escola, que opera repetindo e prolongando as relações de poder, as diferenças

sociais e hierárquicas dentro de uma sociedade.

Estes discursos estavam introjetados na sociedade taubateana do final do

século XIX, assim como o contexto da época, com sua busca por corpos

disciplinados que construíssem o futuro da Nação, a ponto de se fundar uma

instituição de ensino que corroborasse e difundisse estes conceitos. Uma sociedade

paradoxal, pois aliava a um só tempo toda a riqueza advinda de uma economia

agrária e escravocrata – com conceitos caros no meio urbano e industrializado,

como o contexto higienista, de progresso da nação –, com uma visão evolucionista

da história do País e a consequente “colonização” e normatização dos corpos, como

vemos em Rago (1985).

Sem esquecer isso, e compreendendo que a educação feminina é reflexo da

sociedade em que ela está inserida, servindo inclusive aos propósitos de

manutenção de suas relações de poder, é necessário se valer de instrumentos

metodológicos que permitam perceber como se construíram os discursos sobre a

importância da educação feminina neste contexto, como estes corroboram para a

difusão das desigualdades entre gêneros, analisando-os, assim como seus símbolos

e representações. As análises pós-estruturalistas de Michel Foucault (1988),

constituem uma fonte de compreensão de como o discurso sobre a sexualidade se

constrói e se naturaliza em uma sociedade, levando à construção de um discurso

biológico binário que necessita de normatização, que é justamente o que se

pretende mostrar aqui. Ao discutir a construção de identidades, Teresa de Lauretis

(1994) aponta para uma crítica necessária a esta oposição binária. Para isso,

compreender como a educação para meninas foi pensada e formatada ajuda a

perceber os mecanismos de poder que nela se opera.

Para pautar tais abordagens, buscou-se a análise de fontes documentais,

pesquisadas na Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, do

período que vai de 1876, ano da decisão da fundação do Colégio, pois este

efetivamente foi fundado em 1879, até aqueles datados do final dos anos de 1920,

Page 10: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

8

pois, entendeu-se que, a partir de então, a educação passou a ser compreendida de

maneira diferente daquela que se pretende analisar.

Foi estabelecido o uso de diversos periódicos da época, pois entendeu-se que

estes eram, apesar de diferentes posicionamentos políticos e ideológicos, feitos por

e para homens. Neles, foi possível vislumbrar vários aspectos desta sociedade, seus

usos e costumes, e principalmente as ideias que tinham sobre a mulher e o espaço

que esta ocupava, tanto na sociedade, como mesmo no jornal, pois uma parte deste

era destinada a elas, geralmente com histórias românticas e açucaradas, pensadas

para ocupar as lindas cabecinhas com assuntos que elas fossem capazes de

entender, pois política não era um deles.

Outro documento de grande valia para as análises aqui feitas foi um livro

comemorativo dos 70 anos da chegada e atuação da Superiora da Congregação das

Irmãs de São José de Chambéry, Madre Maria TheodoraVoiron, datado de 1919.

Entre salvas, bênçãos e panegíricos das autoridades eclesiásticas e laicas, o

documento deixa entrever as bases morais e normativas pensadas para a educação

das jovens meninas dentro da mais conservadora doutrina cristã.

Page 11: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

9

Elaboraçãodos discursos

A seleção dos jornais foi realizada de duas formas: primeiro, temporalmente,

conforme já explicitado acima; em seguida, foi feito o recorte por temas. Nesta

etapa, foi selecionado tudo aquilo que se referia à mulher ou temas afins, e também

àqueles voltados diretamente ao Colégio Bom Conselho ou genericamente sobre

educação, incluindo aí menções sobre a educação de jovens meninos, para efeito

de comparação à das meninas.

Entre os primeiros jornais pesquisados, o de maior periodização encontrado

foi a publicação semanal Gazeta de Taubaté. Quando analisado em sua totalidade,

foi possível perceber que é um jornal voltado para um público específico, o

cafeicultor. Isso porque foi um dos que mais abordaram em suas páginas assuntos

relativos à cotação de sacas de café, constituindo inclusive parte constante das

seções, além de sempre tratar dos assuntos relativos às discussões sobre este

tema, que apareciam tanto na corte, quanto na capital provincial. Não por acaso,

também foi no jornal que mais apareceram assuntos relativos ao colégio em análise,

assim como sobre educação no geral. Isto, provavelmente, porque o Colégio foi

projetado para esta parcela da população.

Outros periódicos foram abordados, tais como um jornal autoproclamado

democrata, chamado “A Semana”, mas que mudou de nome várias vezes; e dois

periódicos operários, já que não podemos esquecer que o fim do século vê surgir em

Taubaté algumas indústrias. Um deles é O Operário, publicação dos operários da

Companhya Taubaté Industrial,e o outro jornal analisado foi o Organ Mensal da

Juventude Operária Cathólica, intitulado JOC.

Na Gazeta de Taubaté, de 28 de agosto de 1879, de imediato, apareceu um

texto muito esclarecedor sobre a mulher, intitulado “A Mulher”, falando sobre a

emancipação feminina. Suas considerações evidenciam o discurso sexista vigente,

por creditar à emancipação feminina o fim da família, pois, de acordo com o

texto,“emancipar a mulher é atacar de frente a base da família e alimentar as mais

desordenadas e tumultuadas paixões no lar doméstico”. Mais à frente, o artigo

Page 12: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

10

dizque emancipar a mulher “oblitera” uma das bases da instituição familiar, ferindo

com “synismo, do systema social, a sua séde, representada pela mulher – mãi.” Aqui

a mãe é representada como a base fortificada de todo o sistema social; sem ela,

todo o sistema ruiria. Mas não para por aí:

“Por meio da intelligência a mulher pódeellevar-se ao homem sem prejuízo de sua ascendência primitiva. Ascendência primitiva!...se encararmos a mulher em suas prerrogativas pelo lado physico de sua instituição, si assim nos é permitido exprimir, com franqueza, a mulher será sempre a guarda avançada da dispensa e a sentinellaactiva da porta da cosinha.” grifos meus.(Gazeta de Taubaté, 28/08/1879)

Os termos empregados já dizem muito. Mesmo assim, uma análise mais

aprofundada se faz necessária. Antes de introduzir a ideia de que uma mulher,

apesar de sua inteligência primitiva, conseguiria alcançar o homem, o artigo

mencionava quais as qualidades da mulher – bondade, inteligência –, mas, aqui,

apenas aquilo referente aos assuntos morais, posto que apenas isso elas seriam

capazes de absorver e seria necessário à boa educação da família e às boas

práticas. Neste último item, o autor não explica o que seria, mas podemos divisar

que sejam as boas maneiras daquelas “que ainda conserva(m) illesa(s) as suas

prerrogativas”.

Além daquilo que já está explícito no texto, o discurso da inferioridade

intelectual e física da mulher, percebe-se claramente o objetivo de desqualificar a

discussão sobre emancipação feminina, colocando a mulher em seu devido locus: a

despensa e a cozinha. Isso tudo para impedir que estas inteligências primitivas

deixassem de ser aquilo para o que foram “projetadas”: ser esposa e mãe! (Gazeta

de Taubaté, 28/08/1879)

No mesmo exemplar deste jornal, vemos aparecer uma notícia sobre o

Colégio Bom Conselho, assinada pelo Monsenhor Barros, um dos idealizadores da

vinda desta instituição de ensino ao País, assim como da escolha das irmãs da

Ordem de S. José para isso, em que algumas prerrogativas da iniciativa são

apresentadas. Primeiramente, o Colégio foi pensado para o grande número de

meninas órfãs que se encontravam na cidade, e estas deveriam ser amparadas pela

Page 13: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

11

caridade a fim de evitar sua perdição. Para elas foi projetada uma escola onde o

luxo foi substituído pelo asseio, e, ali, “as filhas de ricos fazendeiros daqellemunicipio

e circunvizinhos, que pagam pensão, e pobres orphans que viviam ao desamparo

acham-se todas em pé de egualdade, sob a mesma disciplina, como se fossem

irmãs.” Ali, o temor a Deus, o amor pelo estudo e pelo trabalho eram as

prerrogativas do ensino. Vale notar que o termo disciplina aparece para reforçar a

igualdade entre todas. Mas podemos fazer ilações de que também se trata de uma

disciplina do corpo e da mente, já que o que se preza é o amor ao estudo e ao

trabalho, mas sem perder os ideais religiosos católicos.

Outro exemplo de como este mesmo jornal se preocupava com esta disciplina

do corpo feminino aparece em um artigo sobre a educação das crianças, trazendo o

que tinha de mais moderno no campo da psicologia, no ano de 3 de abril de 1881,

em uma seção intitulada Educação, com o artigo, atribuído a um Jornal do Agricultor,

“As crianças”. O artigo se divide em tópicos sobre: os castigos, sobre como os pais

que incorriam em severos castigos físicos a seus filhos estavam em desacordo com

os ensinamentos de Deus; em seguida aparece o tópico sobre os brinquedos e

como eles são úteis à atenção dos filhos; e, por último e o mais prolongado, o tópico

sobre exercício e sono, constando inclusive uma tabela com dados científicos sobre

a quantidade de sono e exercício que cada fase da infância requeria.

Mas, para que todos estes modernos ensinamentos sobre a infância fossem

bem desenvolvidos e resultassem em crianças sadias e felizes, era necessária, por

trás de tudo, a vigilância zelosa da mãe. Esta não poderia esmorecer, pois isso

representava uma volta aos princípios bárbaros de uma educação ultrapassada,

projeto este que não cabia mais em uma sociedade rica e modernizante. Mesmo que

paradoxalmente escravocrata!

Para que esta mãe pudesse gozar da plenitude da maternidade e da vida

doméstica, ela agora precisava de uma educação que a preparasse para estes

novos desafios. Esta preocupação aparece em vários artigos, inclusivedaqueles

sobre o Colégio Bom Conselho, enfatizando seu programa educacional voltado para

um ensino refinado de língua materna e francesa, noções de cálculo e álgebra,

Page 14: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

12

assim como as indefectíveis prendas, principalmente no manejo de agulhas e

costura. Sem nunca esquecer o mais sólido ensinamento cristão, que perpassa todo

o currículo.

Esta necessidade criou um paradoxo interessante, pois a mulher, para melhor

conduzir sua vocação de mãe e de dona do lar, agora precisava sair do seu espaço

de confinamento, para aí retornar com estes novos conhecimentos. Como processar

este paradoxo e manter esta menina, que agora passa a ocupar outros espaços

sociais, a voltar para o confinamento?

A própria instituição escolar vai colaborar para reforçar a representação do

feminino como a mãe zelosa, que carrega os sinais da discrição e sabe se calar

diante da superioridade e sabedoria dos homens. Em seu programa educacional, a

menina era formada“segundo os moldes dos princípios sãos da moral do evangelho,

que foi pouco a pouco preparando uma grande parte da futura mãe de familiachristã,

que é o sólido fundamento da sociedade e da família paulista”.

Conforme atesta o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, no Livro

Homenagem à Madre Maria TheodoraVoiron, Priora Provincial das Irmãs de S. José

de Chambéry, 1859-1919, publicado em 1919, ali também podemos encontrar a

divisa do colégio: “Cultivar a Ciência e a Virtude pela Glória de Deus e do Brazil”,

cujo principal objetivo era“formar e, de modo especial, na esfera do devotamento, da

abnegação e do sacrifício, em prol da felicidade da Família e do engrandecimento da

Pátria e da extensão da nossa religião”. Ou seja, o conhecimento não era para a

mulher, mas sim em prol da unidade familiar e integridade religiosa. Até aí, a mulher

tinha de se doar ao outro, sabendo abdicar de seus desejos e vontades. Aliás,

desejo não era, definitivamente, coisa de menina donzela, ou de moça casadoura!

Neste ponto, as publicações também contribuíam muito,tanto para difundir a

representação de abnegação de uma boa moça, como para revelar as

características daquelas pouco sérias. Um exemplo disso é encontrado no exemplar

de 18 de maio de 1881, do já citado jornal Gazeta de Taubaté, o qual faz uma

definição jocosa de mulher, com base no vestido que ela usa: “Se usa vestidos

Page 15: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

13

justos, são avaras; se largos, fanfarronas; se comprido e asseadíssimo, elegância e

riqueza; se curto, amor aos bailes”.E por aí vai... Mas, talvez, o mais revelador é

sobre o vestido decotado, que é usado por quem tem “pouco pudor (não servem

para ninguém)”. Ou seja, mulher despudorada não serve para nada... Talvez aí se

insira um dado não colocado: aquela que não serve para ninguém é aquela que

serve para todos. Novamente incutem-se discursos de como a mulher deve conduzir

sua sexualidade através da premissa masculina. Ela não deve ter sexualidade, e, se

tiver, deixará de ter serventia neste mundo.

Contudo, logo após este jocoso comentário, encontrava-se logo abaixo, em

letras miúdas, é fato, uma curiosa notícia de uma cidadã taubateana que acabava de

se graduar médica em uma universidade americana. A notícia é retratada de

maneira direta, simples, bem longe do que era bastante comum encontrar em tal

publicação, quando os moços da cidade conseguiam ser admitidos nos cursos da

capital da província, apesar de se tratar de um fato muito mais extraordinário do que

aqueles.

Novamente, com base em Foucault (1988), o discurso implícito dizia: mulher,

não se meta onde não é chamada! Mantenha-se na hierarquização do sexo, seu

sistema binário, seu silêncio discursivo, e preencha apenas o seu espaço social. Não

queira mais do que lhe é entregue, não deseje. A você é dado o direito de se educar,

mas não de se instruir. Precisa ter formação moral de seu caráter, como pode ser

visto em Louro, (2010).

Outro fator que não se pode esquecer é o papel de boa esposa. Dentro do

cristianismo católico, exaltava-se muito a figura da mãe, mas antes de ser mãe, a

jovem deveria ser educada para ser uma boa companhia a seu esposo. Novamente,

ela aprende o valor de silenciar para poder cumprir o papel que se esperava dela.

Falar o que pensa não era característica de uma boa moça, mas sim daquelas que

não “serviam” para ninguém. Podem ser consideradas como exemplo as palavras da

página 44, dedicada à homenagem proferida pelo padre José M.Natuzzi, no já citado

Livro Homenagem: “Nada poderá preservar de cahir no despreso e no

aniquilamento, quando, abusando da sua palavra, (a mulher) falsea e destroe o seu

Page 16: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

14

único instrumento de persuasão: não se pode ouvir uma mulher, em que não se

acredita” (grifos meus). A donzela correta deveria se pautar por sua consciência, sua

retidão, mas nunca por suas ideias próprias.

Outro ponto que confirma esta visão de silenciamento da mulher pode ser

observado em um artigo sobre as novas pedagogias criadas por estudiosas

americanas, sem, contudo, nominá-las, intitulado O belo sexo, que faz parte de uma

seção chamada “secção amena”. O artigo descreve muitas virtudes de uma boa

moça e como deve ser pautada sua educação. Primeiro, é exposto que uma jovem

deve saber confiar em si mesma, para, a seguir, completar que também deve saber

pregar botões, coser, fazer camisas, não usar cabelo postiço, não se pintar e fazer

uso do pó de arroz, calcular que uma libra são 10 “mirreis”, arrumar meias, dizer sim

ou não, como Cristo ensinou, com o coração, assim como com os lábios.

É possível reparar que é negado à mulher tudo aquilo que pode salientar

aspectos de sua feminilidade, mas que lhe é garantido todo o tipo de ensinamento

que serve ao outro. Tudo o que ela aprende é para servir ao outro, e nunca a si

mesma, que deve sublimar de sua vida qualquer traço de vaidade e desejo. É como

uma freira, mas do lar e da família. O que nos deixa a seguinte questão: “O que

significaria saber dizer não para uma mulher preparada para as vontades e

necessidades do outro?” Seria a total sublimação de seus desejos e sexualidade, já

que sexo para esta mulher deveria ser restrito à procriação. Portanto, teria de

aprender a negar sua sexualidade quando não fosse para esse fim, operando uma

lógica da censura, conforme explica Foucault (1988).

Aliás, o sexo é sempre negado a esta mulher, existindo apenas dentro de um

sistema binário de relações, no qual sua função era a de mera reprodutora, nunca

de uma amante. Isso nunca caiu bem para uma mulher de classe e sob os auspícios

da sociedade católica do fim do século XIX, que, ainda por cima, centrava-se num

estado de higienização e adestramento dos corpos desta mesma sociedade, como

em Rago (1985). A negação da sexualidade era mais sentida nas classes mais

abastadas, que representavam um ideal social a que se aspirava, além de também

Page 17: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

15

servirem de modelo explicativo de esposa e mãe de toda a sociedade, pois nas

mãos delas é que estavam os futuros donos do poder.

É possível ver este modelo sendo celebrado inclusive nos periódicos feitos e

dirigidos à classe operária. No jornal mensal JOC, supracitado, logo em sua capa da

edição da segunda década do século XX, sem, contudo,possibilitar a visualização da

data, pode-se ler que uma das lutas do operariado católico deve ser garantir que o

rendimento masculino seja suficiente para toda a família, pois o lugar da mulher é

em casa, cuidando do marido e dos filhos, nunca dela mesma. Imaginem o perigo

que poderia representar uma mulher com seus próprios vencimentos e capacidade

de se autogerir...

Sobre este perigo, há um interessante colóquio sobre o divórcio, na folha

democrata A Semana, de 28 de agosto de 1898, alertando que, no estrangeiro (sem

especificar local), estava em discussão o perigo contra “a dissolução do sagrado

vínculo do matrimônio” e que atentava contra os costumes deste povo civilizado e

católico. Criticava o Sr. Erico Coelho por importar tais discussões para o País, pois

aqui as mulheres não querem saber de desonras, e cujos redatores eram totalmente

contra a visão desse senhor sobre o divórcio e esta nossa mania de sermos

imitadores de absurdos vindos de fora! Dentre estes absurdos, não caberia o maior

deles, a emancipação das mulheres em relação aos homens a todo um sistema que

as aprisiona dentro das prerrogativas de boa esposa e mãe. Como destaca Joelma

Rodrigues (2006) sobre a representação do feminino: elas precisam ser

encarceradas dentro de seus lares, pois não são seres capazes de se autogerir,

mas, se pensarem assim, os discursos são construídos para que aquelas que não

alcançarem tais prerrogativas sintam-se fracassadas como mulher.

E isso também significava castrar-se de seus desejos, pois uma mulher digna

não os exporia. O jornal O Operário, de 22 de março de 1919, faz um alerta sério

aos pais que estão deixando suas filhas expostas,andando em companhia

masculina, em lugares ermos e até pouco iluminados. Este fato era considerado

sério, pois esta atitude inapropriada por parte da menina lhe impossibilitaria um

futuro casamento. O Jornal lembra ainda que um rapaz que se presta a tais

Page 18: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

16

“cavações” não édo tipo interessado em casamento, mas sim daqueles que se

gabam da sua masculinidade perante os outros.

Vale ressaltar aqui alguns fatos. Primeiro, que estamos falando das filhas dos

operários e não das filhas da elite, mas, conforme analisado pouco acima, estas

servem de paradigmas sociais; portanto, o que se espera delas também é o modelo

que se espera para outras esferas sociais.

O segundo dado interessante a se pensar é que o alerta é conduzido aos

pais, pois eles são capazes de saber o que é importante. E, aqui, disciplinar o corpo

de uma jovem, que estaria cedendo aos encantos de rapazes mal-intencionados, ou

seja, estaria cedendo à sua sexualidade e desejos, o que não era permitido, era um

fato que não deveria ser dito, e, de preferência, deveria ter sua existência negada,

como assinala Foucault (1988). Por isso,o pai é o responsável por cuidar desta

menina, já que ela deveria desconhecer aquilo que não lhe é dito, mas que aos

rapazes não é negado saber.

O terceiro ponto importante para análise é que os meninos são forjados para

exercerem sua sexualidade, e isso também se manifesta na necessidade de regozijo

com a exposição desta sexualidade. Se forem mal-intencionados, podem tentar

desvirtuar as boas moças, que servirão como troféus de sua masculinidade. Outro

recurso, mais geral e difundido, é exercerem sua sexualidade nas casas de

tolerância, com aquelas que não servem a ninguém, e, portanto, podem servir a

todos. Outro paradoxo de uma sociedade que usa a sexualidade para o exercício do

poder.

Se era preciso disciplinar os corpos, então a Educação Física entra nos

programas educacionais para garantir este controle. Claro que dentro de modelos

diferenciados para meninos e meninas, pois a condição física entre eles nunca

poderia ser comparável. Desde a reforma do ensino proposta por Rui Barbosa, em

1883, é dedicada especial atenção a esta disciplina, concebida com a finalidade

precípua de educar os corpos. Mas que ginástica o corpo feminino era capaz de

suportar? Rui Barbosa, citado por Rosa Fátima de Souza (2000), era a favor da

Page 19: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

17

calistenia, desenvolvida por Adolfo Spiess, com o intuito de produzir um

desenvolvimento muscular simétrico, “sem prejuízo da doçura das maneiras, da

graça e elegância do talhe, da bela harmonia das formas femininas” (p. 91). Já, aos

meninos, o mais apropriado era complementar sua educação do corpo com

exercícios militares.

As irmãs da Ordem de São José eram incansáveis doutrinadoras destas

concepções de mundo e do ordenamento necessário para a manutenção dele, mas

também representavam, por maior estranhamento que isso possa gerar, outro

paradoxo a tais doutrinas. Elas tinham um caráter abnegado do mundo em que

estavam inseridas, eram austeras e assexuadas, conforme mandam os ditames da

função, mas, por outro lado, exerciam funções de outro universo, do mundo

masculino. É sabido que elas nunca exerceram papéis de governo, como assinala

Nunes (2010), ou mesmo no desenvolvimento de estudo ou regras doutrinárias no

seio da Igreja Católica, mas dentro de suas escolas e instituições de caridade eram

quem de fato administrava.

Para poder exercer melhor seus trabalhos de caridade, as irmãs tiveram de

sair dos claustros para entrar em contato direto com os desvalidos que necessitavam

de seus serviços. Depois, para cumprir seu papel educacional, tiveram de gerir suas

instituições, administrá-las e organizá-las. Papel de homens. Por isso, talvez, a

estranheza mostrada por Pedro de Alcântara ao se referir às irmãs da Ordem de S.

José, em que profere: “Qual o enigma mysterioso, essa força latente e poderosa,

que faz transformar tímidas donzellas nessas heroínas?” (p. 85). Até no livro

Homenagem, feito para as irmãs, pode-se entrever os discursos que apregoam a

inferioridade da mulher. Pois só mesmo a fé, conclui o autor, faz das mulheres seres

capazes de desempenhar bem a função do homem. Afinal, sua inteligência possui

uma “ascendência primitiva”.

Outra característica perturbadora para muitos homens, clérigos ou não, que

se dedicaram aos panegíricos comemorativos de Madre Maria Theodora, são seus

elementos constitutivos que a afastam do universo feminino. Primeiro, sua

capacidade de administrar um gigante complexo educacional e assistencialista, do

Page 20: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

18

qual ela era responsável e que englobava várias cidades de diferentes

províncias/estados do País. Segundo, sua inteligência, reverenciada em muitos dos

discursos e bênçãos a ela destinados. Uma inteligência não só moral, ou seja, como

se imagina ser a mulher capaz, mas também de compreensão do mundo e de suas

necessidades. Inteligência identificada dentro do mundo dos homens. Por fim, sua

força e longevidade, que a mantiveram ativa por tão longos anos à frente dos

trabalhos beneméritos da Congregação que ela liderava. Muitos lembravam que sua

constituição física aliava as formas delicadas de mulher, devido à sua baixa estatura,

com uma força que remete à sua fé, por ser tão forte e duradoura.

Mas também pode-se perceber que, apesar dela e das irmãs por ela lideradas

serem as porta-vozes dos discursos de hierarquização dos gêneros, estas irmãs são

exemplo daquilo do que a mulher é capaz, preparando, inconscientemente ou não,

outras mulheres para contestar um novo papel social, como pode ser visto em

Nunes (2010).

Muito irá contribuir a transformação destas instituições, pensadas para o

desenvolvimento de boas esposas e mães, com as escolas normais, nas quais se

preparavam as moças, agora, para o exercício de uma função profissional. Elas

saíam mesmo do universo doméstico. Mas o mundo doméstico não foi abstraído

delas. Pelo contrário, adentrou em sua nova profissão, processo que se deu com a

feminização do Magistério. Nesta perspectiva, a mulher é vista com heranças deste

mundo religioso e feminino: ela é abnegação e sacerdócio. De novo, a mulher é

formatada para servir ao próximo e não a si mesma.

Page 21: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

19

Conclusão

Pensar uma sociedade que se elitiza por meio da dominação e subjugação

dos corpos femininos pode parecer, para muitos, um contrassenso, ou até um

exagero. Mais simples seria imaginar que esta sociedade viu, com a abundância da

riqueza do café, a possibilidade de ampliar seu repertório cultural, se aproximando

dos ideais de civilidade do modelo europeu, mais precisamente o francês. Com isso,

procurou-se a etiqueta e os bons costumes, para engendrar o refinamento

necessário a esta sociedade em seu apogeu.

Isto, porém, representou maior controle social à mulher, desde sua infância

até sua maturidade. Tudo passou a ser limitado dentro de um espectro normativo em

que se enquadrou este corpo social dentro do papel de boa filha, boa esposa, e,

depois, de boa mãe, engessando-a dentro destes modelos. Garantindo a

perpetuação dos bons costumes às outras gerações, alicerçados em sólidos valores

morais e religiosos. Quando alguns destes papéis lhe faltavam, o desapego da vida

religiosa era a única saída respeitosa a esta mulher. Sempre cumprindo seu papel

de cuidar do bem-estar do outro.

Para esta sociedade, a Congregação de Irmãs de São José de Chambéry

representou tudo aquilo que se desejava criar neste seu novo modelo de

refinamento. Proporcionou a uma elite, ciosa por se polir socialmente, os

instrumentos necessários para forjar a mãe ideal para a propagação deste novo

modelo, pois ela ficaria versada em língua pátria e francês, teria noções científicas

que melhor a equipassem para o exercício da maternidade, além de desenvolver-se

nas prendas domésticas, como costura, bordado, sem esquecer-se da música. Isso

tudo para a grata satisfação de seu esposo. Desempenhar bem estas funções era

um sinal inequívoco de status para seu marido, pois comprovava a alta qualidade de

seu matrimônio. Mas as relações de domínio muitas vezes são contraditórias, pois

esta mulher silenciada e controlada era justamente a mesma que perpetuava este

modelo educando seus filhos dentro destes mesmos paradigmas sociais.

Page 22: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

20

Porém, este mesmo modelo perpetuado foi sendo ao poucos transformado,

pois cada vez mais a mulher foi rompendo barreiras e limites, e o fato é que elas não

ficaram mais presas dentro do circuito lar-igreja que a elas era permitido. O mundo,

de certa forma e aos poucos, foi se abrindo para elas, que não quiseram mais voltar

totalmente ao lar. E a porta que abriu o mundoà mulher foi a educação. Por mais

quetenha seguido modelos das relações de poder vigentes, a escolarização de

meninas criou pequenas frestas dentro do aparato repressivo do mundo masculino.

Muitas continuaram refratárias aos movimentos feministas, que já existiam e

cresciam em todo o mundo ocidental, incluindo o Brasil, com experiências como a de

Nísia Floresta, neste mesmo século XIX, que propôs e levou adiante um projeto

diferenciado de educação feminina, como se vê em Louro (2010).

Mas não só de dentro dos modelos revolucionários saíram mulheres capazes

de conduzir um processo de luta por uma identidade de gênero que ultrapasse o

binarismoesposa-mãe. Esta revolução começou quando, paradoxalmente,

resolveram educar as jovens para um melhor exercício da maternidade, mas que

acabou descortinando um mundo novo de perspectivas, sem esquecer, de lutas.

Page 23: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

21

Bibliografia

• DIVISÃO DE MUSEUS, PATRIMÔNIO E ARQUIVO HISTÓRICO. Divisão de

Museuse Arquivo Histórico Municipal deTaubaté.

• FOUCALT, Michel. A História da Sexualidade I: a vontade do saber. Rio de

Janeiro, Edições Graal, 1988.

• __________. Microfísica do Poder, www.sabotagem.cjb.net.

• FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. In:

http://cei1011.files.wordpress.com/2010/05/feb_celsofurtado.pdf

• Lauretis, Teresa de. “A tecnologia do gênero”. In: HOLLANDA, Heloisa

Buarque de,Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio

de Janeiro, Rocco, 1994, p.206-242.

• LIMA,Roberto Guião de Souza. O ciclo do café vale-paraibano -Revista do

Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro, IHGRJ, ano 12, nº 12,

2003, páginas 237 a 262.

• LIVRO HOMENAGEM À IRMÃ MARIA THEODORA VOIRON. Vários

autores, 1919.

• LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva

pós-estruturalista. Petrópolis, RJ, 9ª ed. Vozes, 1997.

• __________. Mulheres na sala de aula. in: PRIORE, Mary del, PINSKY, Carla

B. História das Mulheres no Brasil, 9ª ed. São Paulo, Contexto, 2010, p.443-

481, p.482-509.

• NUNES, Maria José Rosado. Freiras no Brasil, in: PRIORE, Mary del.

PINSKY, Carla B.História das Mulheres no Brasil, 9ª ed. São Paulo, Contexto,

2010.

• RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: A Utopia da Cidade Disciplinar – Brasil

1890-1930. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985, 3ª edição, Coleção Estudos

Brasileiros.

• __________. Epistemologia feminista, gênero e História. In:________ -

MASCULINO, FEMININO, PLURAL, Florianópolis, Editora Mulheres, 1998.

Page 24: COLÉGIO NOSSA SENHORA DO BOM CONSELHO · esquecida das grandes narrativas históricas sobre o ouro negro. Nesta sociedade da segunda metade do século XIX, enriquecida e em desenvolvimento,

22

• __________. O corpo exótico, espetáculo da diferença. Labrys,

étudesféministes / estudos feministas, janvier/juin 2008 – janeiro / junho 2008.

• RODRIGUES, Joelma. A respeito de uma prisão que não tinha trancas. 2006.

• ROIZ, Diogo da S. A nova História Cultural: questões e debates. Pensamento

Plural, Pelotas, 2008.

• SOUZA, Rosa Fátima. Inovação educacional no século XIX: A construção do

currículo da escola primária no Brasil. Cadernos Cedes, nº 51, novembro /

2000.

• SOIHET, Rachel. História das mulheres e relações de gênero: debatendo

algumas questões. Mulheres na Ciência, 2003.

• SWAIN, Tania Navarro. História: construção e limites da memória social.

• __________. A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo

identitário.

http://www.tanianavarroswain.com.br/chapiters/bresil/espelho,espelho.htm

• Toledo,Francisco Sodero. O Ciclo do Café: Origens e Desenvolvimento

http://www.valedoparaiba.com/terragente/estudos/ciclo_03.htm.

• UNICAMP/REDEFOR. 2010. IN:https://autoria.ggte.unicamp.br/unicamp-

redefor/pages/public/main.jsf?hash=henvZPaCtR0kAcjZuuPsBA==

• PERIÓDICOS: Gazeta de Taubaté, 16/01/1879; 28/06/1879; 28/08/1880; 1º/01/1881; 20/02/1881; 13/03/1881; 03/04/1881; 12/05/1881; 12/06/1881; 29/09/1881; 02/10/1881. A Semana – folha democrata; 28/08/1898. O Operário; 22/03/1919. JOC – organ mensal da Juventude Operária Cathólica, sem data.