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COLETÂNEA 01

JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE

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2013 Curitiba

COLETÂNEA 01

JUSTIÇA E CIDADANIA EM DEBATE

Coordenadores

ViViane Coelho de SélloS-Knoerr

eloete Camilli oliVeira

Organizadores

Sandro manSur Gibran

JoSé mario tafuri

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Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

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Allessandra Neves FerreiraAlexandre Walmott Borges Daniel Ferreira Elizabeth Accioly Everton Gonçalves Fernando Knoerr Francisco Cardozo de Oliveira Francisval Mendes Ilton Garcia da Costa Ivan Motta Ivo Dantas Jonathan Barros VitaJosé Edmilson Lima Juliana Cristina Busnardo de Araujo Lafayete PozzoliLeonardo Rabelo Lívia Gaigher Bósio Campello Lucimeiry Galvão

Luiz Eduardo GuntherLuisa Moura Mara Darcanchy Massako Shirai Mateus Eduardo Nunes Bertoncini Nilson Araújo de Souza Norma Padilha Paulo Ricardo Opuszka Roberto Genofre Salim Reis Valesca Raizer Borges Moschen Vanessa Caporlingua Viviane Coelho de Séllos-Knoerr Vladmir Silveira Wagner Ginotti Wagner Menezes Willians Franklin Lira dos Santos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

J96

Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora. Justiça e cidadania em debate : coletânea 1.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.

ISBN 978-85-99651-74-2

1. Direito.I. Título.

CDD 342

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

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Apresentação

“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”.Cora Coralina

O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e tra-dição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos, mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.

A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se orgulha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é: “Educar, para formar pessoas capacitadas e comprometidas com o desenvolvimento social”.

Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Univer-sitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as pesquisas desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o fomento da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.

Danilo Vianna

reitorCentro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

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Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando Direi-to” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.

Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.

Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas jurí-dicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos profissionais que forma.

A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publica-ção acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o desenvolvimento social, educacional e sustentável.

O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa, como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais especifi-camente em Terras Lusitanas.

A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que es-tes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As inquie-tudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos professores resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário acadêmico brasileiro.

Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade temá-tica e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação jurídica do Centro Universitário Curitiba.

Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.

ElizabEth acciolyDoutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba,

Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora do curso de Estudos Europeus da Faculdade de

Direito da Universidade de Lisboa, Professora visitante da Universidade Católica Portuguesa.

prefácio

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 05

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09

A CRIAÇÃO DE UMA PROMOTORIA ESPECIALIZADA EM DEFESA ANIMALAna Carolina Tarabella Ruiz e Regina Maria Bueno Bacellar ...... 11

O PAPEL DO SENADO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSOAna Elisa Detzel e Luiz Gustavo de Andrade ......................................... 27

ÉTICA DO MARKETING NA ADVOCACIACamila Franco Torres e José Mario Tafuri ............................................. 47

EFEITOS TEMPORAIS DA SENTENÇA REVISIONAL E EXONERATÓRIA DE ALIMENTOSCaroline Scholl e Camila Gil Marquez Bresolin Bressanelli ........ 66

LIBERDADE SINDICAL E O SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO DOS TRABA-LHADORESElisa Maria de Albuquerque Korndorfer e Miriam ........................... 86

A ARBITRABILIDADE SUBJETIVA NAS SOCIEDADES POR AÇÕESGermano Menon Forneck e Sandro Mansur GIbran ............................ 102

EDUCAÇÃO NO BRASIL: SISTEMA DE COTASGerson de França e Maria da Glória Colucci ....................................... 126

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A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHOLuiz Eduardo Kudla e Mauro Joselito Bordin ....................................... 150

AS INSTITUIÇÕES TOTAIS DE ERVING GOFFMAN E A CONDIÇÃO DO ENCARCERADO NO SISITEMA PRISIONAL: UMA ANÁLISE DA VISÃO DOS INTERLOCUTORES DOS PRESOS NO PARANÁMariana Pabis Balan e Ivan Furmann ........................................................ 170

PROCESSO PENAL: ENTRE O GARANTISMO E O DEVER DE PUNIRRafael Urba e Alexandre Knopfholz ........................................................ 198

A ILEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS SUBJETIVOS COMO CRITÉRIOS PARA A FIXAÇÃO DA PENATuany Rayra da Silva Nass e Guilherme Oliveira de Andrade ......... 222

ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI 9.034/95Vanessa Ferreira Santos e Alexandre Knopfholz ................................ 247

NEOCONSTITUCIONALISMO E O NEOPROCESSUALISMOWalquirya da Silva Valter e Ruy Alves Henriques Filho ................... 270

A GRAVAÇÃO CLANDESTINA DE CONVERSA TELEFÔNICA E A SUA UTILIZA-ÇÃO COMO MEIO DE PROVA JUDICIALCláudio de Fraga e Fernando Gustavo Knoerr ..................................... 294

NORMA PENAL EM BRANCO E PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL NA SOCIE-DADE DE RISCOPedro Augusto Amaral Dassan e Fábio André Guaragni .................. 309

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, CONTRADITÓRIO E DEFESA TÉCNICA:A PARIDADE DE ARMAS NOS EMBATES ENTRE FORNECEDORES E TOMADO-RES DE CRÉDITO Viviane C. de S. Knoerr e Mariana Mendes Cardoso Oikawai .......... 330

TÓPICOS CONCLUSIVOS ...................................................................................... 360

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INTRODUÇÃO

A presente obra aborda a temática da justiça e da cidadania como meios de se efetivar os princípios e direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro. Reúnem-se nesta coletânea professores e alunos, os quais em orientação come-çam a apresentar os resultados de suas investigações. O trabalho conjunto busca por meio dos parâmetros de justiça e cidadania estudar as temáticas propostas.

O primeiro artigo deste trabalho versa sobre a criação de uma promo-toria especializada na defesa dos animais. As autoras Ana Carolina Tarabella Ruiz e Regina Maria Bueno Bacellar, tratam de demonstrar que os animais são sujeitos jurídicos, sendo assim possuem direitos tanto no âmbito constitucional, quanto infraconstitucional.

Ao analisar o papel do Senado no controle da constitucionalidade a partir da abstrativização do controle difuso, os autores Ana Elisa Detzel e Luiz Gustavo de Andrade estudam o artigo 52, inciso X da Constituição da Repúbli-ca Federativa do Brasil para fundamentar sua pesquisa.

A graduanda Camila Franco Torres, conjuntamente com o seu orien-tador José Mario Tafuri trabalham o papel do advogado frente à ética do marke-ting, na busca de instruir o profissional do direito a se colocar no mercado de trabalho de forma eficaz, pautado pela ética.

Com fundamento no princípio da dignidade humana, as autoras Ca-roline Scholl e Camila Gil Marquez Bresolin Bressanelli estudam os efeitos re-troativos das sentenças em sentenças revisionais e exoneratórias de alimentos.

As autoras Elisa Maria Albiquerque Korndorfer e Mirian Cipriani Gomes versam sobre a liberdade sindical e o sistema de representação dos trabalhadores.

A partir do estudo das sociedades autônomas, a arbitrabilidade subje-tiva nas sociedades por ações é o tema tratado por Germano Menon Forneck e Sandro Mansur Gibran.

Correlacionado áreas como Direito, História e Pedagogia, Gerson de França e Maria da Glória Colucci analisam o sistema de cotas tomando em conta a educação no Brasil.

O artigo de Luiz Eduardo Kudla e Mauro Joselito Bordin objetiva analisar e compreender o critério utilizado para a determinação da inversão do ônus da prova no direito processual do trabalho brasileiro.

Mariana Pabis Balan e Ivan Furmann estudam as instituições totais de Erving Goffman e a condição do encarcerado no sistema prisional: uma análise da visão dos interlocutores dos presos no Paraná.

No artigo “Processo penal: entre o garantismo e o dever de punir”, os autores Rafael Urba e Alexandre Knopfholz demonstram que a persecução penal só será eficiente quando respeitar devidamente os direitos e garantias fundamentais.

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A ilegitimidade da utilização de elementos subjetivos como critérios para a fixação da pena é objeto de estudos dos autores Tuany Rayra da Silva Nass e Guilherme Oliveira de Andrade.

Vanessa Ferreira Santos e Alexandre Knopfholz realizam seu trabalho especificamente acerca da análise dos meios operacionais de investigação respaldados pela Lei 9.034/95, em âmbito processual penal.

Conjuntamente Walquirya da Silva Valter e Ruy Alves Henriques Filho, ao buscarem solidificar o conhecimento e o entendimento a cerca do neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo em seu artigo, demostraram a evolução história da aplicação do direito no ordenamento jurídico brasileiro.

O artigo escrito pelos autores Cláudio de Fraga e Fernando Gustavo Knoerr, analisam a gravação clandestina de conversa telefônica e a sua utilização como meio de prova judicial.

Buscando compreender a categoria dogmática da norma penal em branco e seus problemas frente ao Princípio da reserva legal no contexto da modernidade, Pedro Augusto Amaral Dassan e Fábio André Guaragni, abordam a sociedade de risco, delineando-se suas peculiaridades e influência no direito penal.

O último artigo desta coletânea, escrito por Viviane Coêlho de Séllos Knoerr e Mariana Mendes Cardoso Oikawa, versa sobre a dignidade da pessoa humana, contraditório e defesa técnica, demostrando a paridade de armas nos embates entre fornecedores e tomadores de crédito.

A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA, na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.

Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.

ViVianE coêlho DE SélloS-KnoErr

Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial

e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa “Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.

EloEtE camilli oliVEira

Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE - UNICURITIBA,

Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de CursoUNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.

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A CRIAÇÃO DE UMA PROMOTORIA ESPECIALIZADA DE DEFESA ANIMAL

ana carolina tarabElla ruiz

Aluna do 8º período do curso de Direito do Centro Universitário Curi-tiba – UNICURITIBA, estagiária no Juizado Especial do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba.

rEgina maria buEno bacEllar Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambien-tal. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direi-to de Energia/Regulatório.

SUMÁRIO: Resumo. Abstract. Introdução. 1. Evolução Histórica da Legislação de Prote-ção Animal. 2. A Tutela Jurídica dos Animais. 3. Origem e Evolução do Ministério Público. 4. O Ministério Público como Curador dos Animais. 5. Promotoria Especializada de Defesa Animal. 6. Conclusão.

RESUMO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que os animais são sujeitos jurídicos, possuindo direitos tanto no âmbito constitucional quanto no âmbito infraconstitucional. Pretende-se destacar o importante papel do Ministé-rio Público na garantia dos direitos desses animais, papel esse que pode ser mais efetivamente exercido por meio da criação de uma Promotoria Especializada de Defesa Animal, e também a importância de uma mudança de pensamento, que deve ser norteado pela legalidade e, principalmente, pela ética, deixando de lado a visão antropocêntrica da maioria dos aplicadores do Direito e passando--se a adotar uma visão biocêntrica, que coloca a vida, independentemente da sua forma, no centro do universo.

Palavras-chave: Direito dos Animais; Ministério Público; Promotoria Especia-lizada de Defesa Animal; Biocentrismo; Ética.

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ABSTRACT

This project has the purpose to prove that the animals are legal sub-jects, owning rights as on the scope infraconstitucional as on the scope constitu-cional. It’s intended to detach the important role of the public prosecutor, on the guarantee os the rigths of these animals, role that can be more effective when exercised by the creation of the Prosecutors specializing in defense of animals, and also the importance of changing our thougth, wich needs to be guided by the legitimacy and, mainly by the ethics, leaving to the side the anthropocentric view from the majority of the law enforcers and moving toward a biocentric view, which puts life, regardless of its form, in the center of the universe.

Keywords: Animal Rigths; Public Prosecutor; Prosecutors Specializing in De-fense of Animals; Biocentrism; Ethics.

INTRODUÇÃO

A problemática e as discussões que giram em torno do direito dos ani-mais vêm ganhando força nos últimos anos. Houve um aumento significativo no número de pessoas interessadas e sensibilizadas com a proteção dos animais, seres vivos estes que dependem do ser humano para ter seus direitos garantidos. Como prova dessa sensibilização, basta perceber o aumento de movimentos pacíficos que vêm sendo realizados em todo o mundo com o intuito de mostrar para a parcela da população menos esclarecida as atrocidades que são cometi-das com os animais, na esfera doméstica, em seus habitats naturais, dentro dos laboratórios científicos das grandes empresas e universidades, nos matadouros e nas ruas, onde milhões de animais padecem vítimas do abandono.

Infelizmente, o Direito não tem conseguido acompanhar efetivamente essas mudanças. Apesar de existirem algumas normas que protejam esses ani-mais, ainda falta fiscalização por parte do Estado no sentido de garantir a eficácia de tais normas e, ainda, conscientização de grande parte da população sobre o tratamento que deva ser dispensado a esses animais. Não é preciso fazer uma pesquisa muito aprofundada para descobrir os detalhes repulsivos das práticas de experimentação animal, dos métodos de abate para a produção de carne, dos extermínios em Centro de Controle de Zoonoses dos municípios, entre outros.

Sendo esses animais detentores de direitos, mas incapazes de pleitear sozinhos a garantia desses direitos, se faz mais do que necessário que os seres humanos tomem alguma atitude no sentido de colocar em prática ações que visem efetivar essas garantias estendidas aos animais, tais como o direito à vida, à saúde e à dignidade. É exatamente nesse ponto que se encaixa o papel do Direito.

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Diante de tantos casos de crueldade para com os animais, faz-se necessária a criação de uma Promotoria Especializada de Proteção Animal. Essa seria uma das maneiras de garantir sua proteção, olvidando esforços para garantir que aqueles que praticaram alguma conduta lesiva à integridade física e psicológica desses seres sejam punidos. Para isso será demonstrado o papel do Ministério Público na concretização dos direitos dos animais, tendo em vista serem seus representantes legais em juízo e possuírem diversos ins-trumentos, processuais ou não, capazes de efetivar esses direitos. Dentre essas ferramentas, pode-se citar a ação civil pública, o inquérito civil e o termo de ajustamento de conduta (TAC).

1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO DE PROTEÇÃO ANIMAL

É sabido que nossa estrutura sociocultural tem colocado os animais como meros objetos, destinados apenas a servir os interesses dos seres huma-nos. Para Levai, nós decretamos a miséria dos animais, inconscientemente ou não (LEVAI, 2007, p. 02). Isso ocorre de diversas maneiras: vestuário (finan-ciando a indústria de peles), alimentação (incentivando a criação e abate in-tensivo de animais), metodologia científica (vivissecção), diversões (circos, ri-nhas), e regras do nosso comportamento, de um modo geral. Para Levai (2007, p. 02), nossas escolhas “têm sempre um viés de dominação, como se as outras espécies – tidas, preconceituosamente, como criaturas inferiores -, estivessem no mundo apenas para nos servir”.

Também é sabido que os animais inseridos dentro de um contexto ambiental, como os animais em risco de extinção, por exemplo, possuem uma tutela jurídica mais efetiva, baseada no art. 29 da Lei 8.605/98 – Lei de Cri-mes Ambientais. Contudo, os animais abandonados nas ruas, os confinados em laboratórios, os que sofrem violências em abatedouros e em “espetáculos cul-turais”, como as vaquejadas e as farras-do-boi, que não possuem qualquer rele-vância ambiental, também devem ser protegidos da mesma forma e intensidade. Para Levai, a solução é adequar o fato concreto à tipificação jurídica constante nas leis ambientais, “a fim de que a autoridade competente possa agir de acordo com as suas atribuições legais” (LEVAI, 2007, p. 03).

O primeiro registro de uma norma de proteção aos animais no Brasil surgiu em São Paulo, no art. 220 do Código de Posturas de 1886, que proibia “cocheiros, condutor de carroça, pipas d’água de maltratar animais com castigos bárbaros e imoderados, prevendo multa aos infratores” (LEVAI, 2006, p. 25).

No Brasil, a primeira manifestação jurídica de proteção aos animais foi o Decreto 16.590, de 1924, “que proibiu as rinhas de galo e canário, as corridas de touros, novilhos e garraios, ao dispor sobre o funcionamento dos

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estabelecimentos de distração pública” (RODRIGUES, 2011, p. 66). Em 1934, durante a ditadura militar, foi instituído o Decreto 24.645,

que ao ser interpretado permite que os animais sejam considerados sujeitos de direito, passíveis de serem assistidos pelo Ministério Público em juízo, no pa-pel de substituto legal. Em 1941, foi editada a Lei de Contravenções Penais (Decreto-lei 3.688), ainda em vigor, que em seu art. 64 tipifica a conduta de maus tratos aos animais.

Outras medidas legislativas voltadas aos animais também foram cria-das, como o Código de Pesca (Decreto-lei 221/67, alterado pela Lei 7.679/88); a Lei Federal 5.197/67 (Código de Caça), alterada pela Lei Federal 7.653/88, que conceituou fauna silvestre como propriedade do Estado e aboliu a concessão de fianças nos crimes cometidos contra os animais (RODRIGUES, 2011, p. 67); a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81); a Lei 7.347/85, que protege os interesses difusos ao instituir a Ação Civil Pública por danos causa-dos ao meio ambiente; e em 1987, a Lei 7.643, que proibiu a pesca de qualquer espécie de cetáceo (Lei de Proteção à Baleia).

De encontro às Constituições pretéritas veio a Constituição de 1988, que inovou ao inserir o art. 225, §1º, VII, vedando a crueldade para com os animais. Regulando esse dispositivo foi criada a Lei de Crimes Ambientais, que em seu Capítulo V, Seção I, tipifica os crimes cometidos contra a fauna. Assim, pode-se concluir que a partir de 1988 maltratar animais deixou de ser contravenção penal e passou a ser crime. Só que isso, na prática, não altera muita coisa. Isso porque a pena cominada àquele que maltratar um animal é de, no máximo, 1 ano de detenção, e multa. Ou seja, o infrator responderá ao crime nos Juizados Especiais Criminais, podendo ser beneficiado por uma transação penal se não ocorrer prescrição, caso o procedimento torne-se mo-roso (LEVAI, 2007, p. 06).

Para Levai,

Em termos legislativos, no Brasil, a postura conivente à subjugação animal prepondera ao longo dos séculos. Se porventura, no passa-do, alguma norma surgiu em defesa de animais - cavalos e burros utilizados em serviços de tração, por exemplo - isso se deu mais em função do valor servil e econômico dessas pobres criaturas do que propriamente pelo sentimento de compaixão que se deve nutrir por elas (LEVAI, 2007, p. 04).E mais. Apesar dos avanços legislativos, os animais continuam sen-

do abordados sob o princípio da insignificância, ou seja, as regras que foram criadas para protegê-los acabam “caindo na vala comum das condutas de me-nor potencial ofensivo” (LEVAI, 2007, p. 07). Assim, os animais devem ser

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protegidos pelo que são, ou seja, seres de uma vida, com capacidade de sofrer igual à do ser humano. Essa deve ser a essência de toda e qualquer lei protetora e também de uma Promotoria Especializada de Proteção Animal, que deverá atuar em defesa da vida, e não de interesses econômicos.

2. A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS

Apesar de ser bastante claro o fato de os animais serem capazes de sentir dor e, portanto, serem passíveis de sofrimento, ainda existem muitos dou-trinadores que não reconhecem os animais como seres vivos com direito à vida e ao não-sofrimento. Sob o ponto de vista desses doutrinadores, os animais de-vem ser tutelados apenas em função do seu suposto caráter “utilitário”, ou seja, devem ser tutelados como coisas, objetos, destinados a servir ao ser humano, demonstrando o quanto a visão antropocêntrica do universo ainda está presente nos discursos jurídicos.

Para embasar essa linha de raciocínio, muitos juristas utilizam o art. 1º do Código Civil, que dispõe que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Outro argumento bastante utilizado é o de que a ordem jurídica confere proteção aos animais apenas para proteger o próprio homem, por meio de políticas conservadoras e preservacionistas (LEVAI, 2006, p. 127). Ou seja, os animais só têm importância para o Direito se considerados como bens am-bientais, existindo apenas para manter o meio ambiente equilibrado para que o ser humano possa usufruí-lo. Levai, ainda, aponta outro argumento utilizado pelos antropocentristas:

Se, ainda, (o Direito) pune a crueldade “desnecessária”, a intenção do legislador não se teria direcionado à individualidade dos animais submetidos a atos de abuso ou maus tratos, mas ao próprio benefício espiritual humano, preservando-se os chamados bons costumes (LE-VAI, 2006, p. 127)

Combatendo essa teoria antropocentrista do Direito que, ou defende a proteção dos animais apenas para garantir o bem-estar dos seres humanos, ou afirma que os animais não são sujeitos de direitos pois não são pessoas, con-forme dispõe o Código Civil, existe o seguinte argumento: se existem leis que protegem os direitos da personalidade das pessoas, físicas ou jurídicas, e podem elas comparecer em juízo para pleiteá-los, os animais também tornam-se pos-suidores de direitos subjetivos, porque também existem leis que os protegem. Prova disso está na própria Constituição Federal, que em seu art. 225, §1º, VII, veda expressamente a crueldade para com os animais. Ora, se a própria Carta

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Magna veda esse tipo de comportamento, é porque reconhece os animais como seres sensíveis e capazes de sofrer (LEVAI, 2006, p. 127). Para Levai, o legislador constitucional, ao redigir o referido artigo, “desvinculou a fauna da perspectiva ecológica para considerá-la sob um enfoque predominantemente ético” (LEVAI, 2006, p. 128). Dessa forma, o animal tem direito a uma vida sem sofrimento.

Corroborando ainda mais a ideia de que os animais são seres com di-reitos subjetivos, tem-se a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) que, apesar de estar longe da perfeição no que diz respeito à tutela dos animais, possui uma seção específica para tratar dos crimes contra a fauna (arts. 29 ao 37).

Nesse ínterim, merece destaque o art. 32 da referida lei, que dispõe que quem praticar ato de abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais domés-ticos ou domesticados, nativos ou exóticos, comete crime com pena que varia de três meses a um ano de detenção, e multa. É possível perceber, nesse artigo, que o legislador quis proteger os animais pelo que são, ou seja, seres de uma vida, sem considerá-los como bens ambientais que, segundo a mais clara visão antropocentrista, deveriam ser protegidos apenas para usufruto do ser humano.

Para Levai (2006, p. 38), o tipo penal previsto no art. 32 da Lei de Cri-mes Ambientais é o que se chama de tipo penal de conteúdo misto ou variado, porque sua ocorrência se perfaz em inúmeras condutas. Como “abuso”, pode-se entender o uso incorreto, despropositado, indevido. Para o promotor de justiça de São José dos Campos (LEVAI, 2006, p. 38), pode ser considerado abuso a “hipótese do cavalo submetido ao pesado fardo das carroças”, bem como a uti-lização de animais em circos e a utilização de bois para puxar arados debaixo de sol e sob açoites.

Já o vocábulo “maus tratos” relaciona-se ao ultraje, à violência psi-cológica ou física que causa ao animal uma situação de sofrimento. Assim, podem ser considerados atos de maus tratos a manutenção desses seres em luga-res insalubres e o aprisionamento de modo contínuo, prática muito comum em biotérios de universidades e indústrias farmacêuticas, químicas e cosméticas, que mantém diversos animais engaiolados à disposição do vivissector, para que cometa as mais variadas atrocidades.

Como o próprio verbo indica, “ferir” significa machucar, causar lesão, ofender a integridade física do animal. Para a caracterização desse crime, nem sempre se faz necessária a existência de exame pericial no animal, pois essas condições adversas nem sempre deixam vestígios (um cão confinado em um cubículo, por exemplo). Assim, para comprovar a ocorrência do crime previsto no art. 32, a juntada de fotografias, o relato de testemunhas, e o próprio senso comum são capazes de demonstrar a situação de sofrimento do animal.

Já “mutilar” é a “ação que extirpa determinado órgão ou membro do animal em procedimentos justificados por razões econômicas das mais torpes

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possíveis” (LEVAI, 2006, p. 40). Todas essas situações, contudo, podem ser resumidas na palavra “crueldade”, que abrange todas as ações ofensivas e vio-lentas cometidas pelo homem em detrimento dos animais.

3. ORIGEM E EVOLUÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

Contrariando o entendimento de alguns autores, que entendem que o Ministério Público surgiu na Antiguidade romana, Mendes, Coelho e Branco entendem que o Ministério Público nasceu no período do Estado Moderno, com a criação do princípio da separação dos poderes:

A Instituição, em seus contornos mais precisos, tem suas origens di-retas na França dos fins do século XVIII e início do XIX, nas pessoas dos comissários do rei, que são as primeiras figuras do Ministério Pú-blico encontradas nos textos constitucionais. (MENDES; COELHO; BRANCO, 2008, p. 941)

Para esses autores, o Ministério Público é o fiscal da lei e também fiscal da sua aplicação. Assim, se essa fiscalização se exerce inclusive no campo constitucional, o Ministério Público “assume a condição de órgão es-sencial do Estado, porque as tarefas a seu cargo são daquelas essenciais à própria conceituação do Estado enquanto nação politicamente organizada” (RIBEIRO, 2010, p. 03).

Da mesma maneira que ocorre em outros países, o Ministério Público exerce, desde o seu surgimento até os dias atuais, o papel de fiscal da lei e de acusador criminal. Entretanto, suas atribuições foram crescendo no decorrer do tempo. Um dos papéis que lhe foram outorgados foi a legitimidade para propor ações coletivas na defesa do patrimônio público e social e “de outros interesses difusos e coletivos, além de importante papel de órgão de controle de legali-dade, com amplos poderes investigatórios, ainda que sem poder repressivo” (RIBEIRO, 2010, p. 04).

No Brasil, a criação do Ministério Público teve inspiração no di-reito português, que aqui foi aplicado desde o período colonial até o início da República. As Ordenações Manuelinas de 1521 e as Ordenações Filipi-nas de 1603 mencionavam o Promotor de Justiça como fiscal da lei e autor das ações criminais.

Em 1609 foi criado o Tribunal da Relação da Bahia

prevendo a figura do Promotor de Justiça e do Procurador dos Feitos da Coroa e da Fazenda, integrando o Tribunal composto por dez de-

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sembargadores. Ao mesmo tempo em que atuava como Procurador do Fisco, também atuava como Promotor de Justiça, ainda nas funções de fiscal da lei e de acusador criminal. Em 1751, foi criado o Tribunal da Relação do Rio de Janeiro que, em 1808, se transformou na Casa da Suplicação do Brasil. Nesse Tribunal, separaram-se as funções do Promotor de Justiça e de Procurador dos Feitos da Coroa e Fazenda, que defendia o Estado e o Fisco (hoje desempenhada pela Advocacia Pública) (RIBEIRO, 2010, p. 04).

O Código de Processo Penal do Império, de 1832, previu a figura do Promotor de Justiça como órgão da sociedade, titular da ação penal. Já a Lei do Ventre Livre (Lei 2.040/1871) deu ao Promotor de Justiça o papel de zelar para que os filhos livres das mulheres escravas fossem efetivamente registrados. O Decreto 848/1890, que criou e regulamentou a Justiça Federal, dispôs sobre a estrutura do Ministério Público, sendo que suas atribuições, em instância superior, eram exer-cidas por membros do Poder Judiciário. A Constituição de 1891 não fez referência ao Ministério Público, mas apenas ao Procurador-Geral da República. Já o Código Civil de 1916 deu ao Ministério Público a função de fiscal da lei em várias matérias: curador de fundações, legitimidade para propor ação de nulidade de casamento, le-gitimidade para propor ação de interdição, legitimidade para promover a nomeação de curador de ausente e competência para a defesa dos interesses dos menores.

Na Constituição de 1934, o Ministério Público foi inserido no capí-tulo sobre “os órgãos de cooperação nas atividades governamentais”, e não foi integrado em nenhum dos Poderes do Estado (RIBEIRO, 2010, p. 05).

Na Constituição de 1937 o Ministério Público não mais foi previsto como instituição, o que caracterizou um retrocesso do referido diploma legal. O Código de Processo Civil de 1939, promulgado na vigência da Constituição de 1937, deu ao Ministério Público a atribuição de fiscal da lei, devendo emitir pareceres após a manifestação das partes e antes da conclusão dos autos para prolação da sentença. Assim,

nesta fase, o Promotor de Justiça passa a atuar como fiscal da lei (cus-tos legis), apresentando seu parecer após a manifestação das partes. A sua intervenção visava proteger basicamente os valores e interesses sociais então considerados indisponíveis ou mais importantes como as relações jurídicas do direito de família, casamento, registro e filia-ção, defesa dos incapazes, defesa da propriedade privada (daí a inter-venção em feitos de usucapião, testamentos e disposições de última vontade etc.) (RIBEIRO, 2010, p. 05).

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No Código de Processo Penal, além do papel de titular da ação penal foi previsto o poder de requisição de instauração de inquérito policial.

Em 1946, a Constituição volta a tratar a instituição em capítulo à par-te, sem manter qualquer vínculo com os três Poderes, com previsão do Ministé-rio Público na esfera estadual e federal (RIBEIRO, 2010, p. 05).

A Constituição de 1967 inseriu o Ministério Público no capítulo do “Poder Judiciário”, dando a seus membros alguns privilégios próprios dos membros da Magistratura. No entanto, a Emenda 01/69 incluiu a instituição no capítulo do “Poder Executivo”, retirando de seus membros as mesmas garantias previstas aos membros da Magistratura.

Durante muito tempo, o papel do Ministério Público estava limitado ao de autor da ação penal e de fiscal da lei. Contudo, a Lei Complementar nº 40 de 1981 outorgou novas atribuições à instituição, definindo-a como “instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, e responsável, peran-te o Judiciário, pela defesa da ordem jurídica e dos interesses indisponíveis da sociedade, pela fiel observância da Constituição e das leis”. Essa redação foi re-petida de forma quase idêntica no art. 127 da Constituição de 1988, que incluiu o Ministério Público entre as funções essenciais à Justiça (RIBEIRO, 2010, p. 06).

Mais tarde, foi atribuída à instituição legitimidade para propor ação civil e criminal em caso de danos causados ao meio ambiente (Lei 6.939/81) e para propor ação civil pública para a defesa de interesses difusos e coletivos (Lei 7.347/85). Assim,

a partir de tal lei foi criado um canal para o tratamento judicial das grandes questões de direitos de massas, dos novos conflitos sociais coletivos de caráter notadamente urbanos. Tal lei conferiu ao Ministé-rio Público o poder de instaurar e presidir inquéritos civis sempre que houvesse a informação sobre a ocorrência de dano a interesse ambien-tal, paisagístico, do consumidor, etc. Nesta nova fase, o Promotor de Justiça passou a atuar como verdadeiro advogado (como órgão agente que propõe a ação, requer diligências, produz prova, etc.) dos interes-ses sociais coletivos ou difusos (RIBEIRO, 2010, p. 06).Com o advento da Constituição de 1988, o Ministério Público se

consolidou na posição de órgão que atua na defesa de interesses coletivos e difusos. Sua autonomia ficou garantida, pois ficou desvinculado de qualquer dos três Poderes do Estado.

4. O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO CURADOR DOS ANIMAIS

Muito embora os animais não tenham capacidade de comparecer em juízo para reivindicar seus direitos, o exercício do Direito não é condição essen-cial para a sua existência (LEVAI, 2006, p. 127).

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Da mesma maneira que ocorre com as pessoas incapazes ou relativa-mente incapazes, que possuem seus direitos plenamente reconhecidos mesmo que não tenham capacidade de pleiteá-los por si mesmos, os animais também possuem direitos, que devem ser pleiteados por representatividade. E é aí que surge o Ministério Público.

A Constituição da República de 1988 passou a considerar a atividade do Ministério Público como essencial à realização da Justiça, conforme expres-so em seu art. 127: O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. E Levai complementa:

O legislador magno estabeleceu como funções institucionais do Mi-nistério Público a legitimidade não apenas para oferecer denúncias criminais, mas requisitar investigações, expedir notificações, instaurar inquérito civil e, também, propor ação civil pública (art. 129 da Consti-tuição Federal). Na área ambiental, em particular, uma efetiva atuação ministerial assume grande importância, porque capaz de alterar realida-des injustas. Tornou-se o promotor de justiça, assim por dizer, um agen-te político de transformação social, cabendo-lhe atuar em benefício da própria comunidade que representa (LEVAI, 2006, p. 106).

O revogado Decreto-lei nº 24.645/34 já previa, em seu art. 2º, §3º, que os animais seriam assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público. Somado a esse antigo sistema, está o fato de que a proteção do meio ambiente foi constitucionalmente atribuída ao Ministério Público, tanto no âm-bito federal quanto no âmbito estadual. Se se levar em conta que o amplo con-ceito de meio ambiente inclui a fauna toda, isso significa “que os promotores de justiça tornaram-se curadores dos animais, tendo à sua disposição inúmeros instrumentos administrativos, criminais ou cíveis para o fiel desempenho dessa função” (LEVAI, 2006, p. 107).

Essa atribuição, a de tutelar a fauna, inspira-se em alguns princípios filosóficos que norteiam a atuação do Ministério Público, entre os quais está o combate à ilegalidade e à opressão, o respeito à vida e à integridade física e moral, a não-violência, a justiça social, a compreensão da natureza e a busca por uma sociedade mais pacífica e menos injusta (LEVAI, 2006, p. 107). Dentre as suas prioridades ambientais, deve-se incluir a tutela jurídica dos animais como seres sensíveis e únicos, e não como bens ambientais.

Sendo os atentados contra a fauna de natureza pública incondiciona-da, “a iniciativa processual da promotoria independe de qualquer manifestação

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de vontade” (LEVAI, 2006, p. 107) e, portanto transforma-se em dever de ofí-cio, pois a instituição detém uma parcela de poder do próprio Estado. Dentre os instrumentos disponíveis ao Ministério Público para garantir a proteção dos animais está a ação civil pública, nos termos da Lei 7.347/85. Levai ressalta que apesar de sua legitimidade processual não ser exclusiva, o Ministério Público é a instituição que mais a utiliza (LEVAI, 2006, p. 110). Outros instrumentos extrajudiciais que podem ser utilizados pelo Ministério Público são o inquérito civil (art. 129, III, 1ª parte, da Constituição), e o termo de compromisso de ajustamento de conduta, o TAC (art. 5º, §6º, da Lei nº 7.347/85). O inquérito civil tem natureza administrativa e, normalmente, serve para reunir elemen-tos de convicção, que servem de base para a ação civil pública. Caso queira arquivá-lo, o representante do Ministério Público deve submeter sua decisão, necessariamente, ao Conselho Superior do Ministério Público que poderá, ou não, homologá-la (LEVAI, 2006, p. 113).

Já o TAC, que pode ter caráter preventivo ou reparatório, “caracte-riza-se por um acordo celebrado entre a Promotoria e o suposto degradador, com o objetivo de reparar o dano, mitigá-lo ou, às vezes, impedi-lo” (LEVAI, 2006, p. 114). Como o TAC torna-se um título executivo extrajudicial depois de subscrito e homologado, implicando em obrigação de fazer ou não fazer à parte compromissada, sob pena de multa diária, ele só pode ser alterado por decisão judicial, contrariamente ao que ocorre com uma lei, que pode ser revogada. Para Levai, sua validade é tão ampla, que é capaz de vincular a pessoa jurídica, como a Prefeitura, por exemplo, independentemente de mudanças no poder po-lítico municipal (LEVAI, 2006, p.114).

Diante de um crime contra a fauna, Levai explica quais atitudes po-dem/devem ser tomadas pelo promotor de justiça:

[...] pode o promotor requisitar abertura de termo circunstanciado ou a instauração de inquérito policial (art. 5º, inciso II do Código de Pro-cesso Penal), apurar o fato em procedimento investigatório próprio (art. 129, inciso VI, da Constituição Federal), solicitar a designação de audiência preliminar nas hipóteses que comportarem transação pe-nal (art. 61 e 76 da Lei 9.099/95) ou ainda, havendo indícios suficien-tes acerca da autoria e da materialidade do fato criminoso, oferecer denúncia contra o infrator (artigo 41 do Código de Processo Penal) (LEVAI, 2006, p. 107).

Conforme resta demonstrado, o Ministério Público possui plenas con-dições de assumir a tutela jurídica dos animais, pois nenhum outro órgão estatal possui tantos instrumentos disponíveis para impedir situações de maus tratos.

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Se uma maior quantidade de membros do Ministério Público fizesse uso de todos esses instrumentos, mais animais teriam seus direitos garantidos, promo-vendo um mundo “sem cabrestos, sem correntes, sem chibatas, sem degolas, sem incisões, sem extermínios, sem jaulas, sem arpões e sem gaiolas, em que se garantisse o respeito pela vida, a integridade física e a liberdade” (LEVAI, 2006, p. 117). É por tudo isso que se mostra tão importante a criação de uma Promotoria Especializada de Defesa Animal, e só sobre isso que se tratará no próximo capítulo.

5. PROMOTORIA ESPECIALIZADA DE DEFESA ANIMAL

Conforme ficou demonstrado, a criação de uma Promotoria Especia-lizada de Defesa Animal tem como base o art. 225, §1º, VII, da Constituição da República, a Lei 9.605/98 – Lei de Crimes Ambientais, que em seu art. 32 criminaliza a conduta de maltratar animais, e o Decreto-Lei 24.645/34, que de-termina que os animais poderão ser representados pelos membros do Ministério Público em juízo.

Outros argumentos também servem como base para a criação dessa promotoria. Entre eles pode-se citar os mencionados pelo deputado estadual Lula Morais, da Assembleia Legislativa do Ceará, que solicitou o desarqui-vamento de um Projeto de Indicação apresentado em maio de 2010, a pedido da presidente da UIPA (União Internacional Protetora dos Animais) Geuza Leitão, em que se sugeria a criação de uma promotoria especializada para atender os animais:

O projeto justifica-se em virtude dos altos índices de crueldade e da-nos cometidos contra os animais. A impunidade dos infratores, o de-sinteresse das autoridades encarregadas da apuração desses crimes, bem como a descrença nas decisões judiciais em razão das penas irri-sórias e os reiterados atos de abuso noticiados pela mídia são algumas das razões que justificam a mobilização pela criação dessa Promotoria em defesa dos animais (FEITOSA, 201

A situação não é diferente no Estado do Paraná. Ademais, a Promoto-ria Especializada do Meio Ambiente, que deveria atuar na defesa dos animais, sejam eles domésticos, domesticados, silvestres ou exóticos, acaba não sendo capaz de prestar um atendimento efetivo em todos os casos, pois acaba priori-zando casos de tutela da flora, das águas e do patrimônio cultural, por exemplo. Isso não quer dizer que essas situações não tenham importância. Muito pelo contrário. Elas merecem muita atenção do Ministério Público e da sociedade de

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um modo geral, mas os animais submetidos às mais perversas situações também devem ser protegidos da mesma forma e intensidade. Conforme leciona Levai, o vocábulo animais não faz parte do repertório da Promotoria Especializada do Meio Ambiente, mas sim a palavra fauna, “cuja terminologia parece mais se aproximar do meio ambiente equilibrado do que propriamente dos animais em si e per si” (LEVAI, 2007, p.13).

Além disso, continua Levai, se surgir uma notitia versando sobre o extermínio de gatos ou sobre maus-tratos a um cão doméstico, haverá dúvida sobre o destino do caso: deverá permanecer na promotoria cível ou deverá ser encaminhada a uma promotoria criminal? (LEVAI, 2007, p. 14). Enquanto se resolve essa situação, os animais-vítimas continuarão sofrendo. É por isso que a Promotoria Especializada em Defesa Animal, se e quando for criada, deverá ter atribuições em todas as esferas (cível, criminal e administrativa), para que seja possível combater o problema de maneira rápida e eficaz.

Os mais diversos casos de crueldade poderão ser combatidos por uma promotoria especializada bem estruturada: matança institucionalizada nos Centros de Controle de Zoonoses, animais abandonados pelos seus donos nas ruas, vivissecção dentro dos laboratórios e universidades, feiras informais que comercializam clandestinamente animais silvestres e exóticos, promoção de rinhas, exploração de animais em espetáculos públicos, indústrias de peles, matadouros clandestinos, entre outros. Ressalte-se que, em todos esses casos, o promotor criminal terá uma atuação limitada, seja por possuir uma atuação mais voltada à aspectos penais ou transacionais, seja por falta de interesse ou de tempo, em razão da grande quantidade de outros crimes, ditos “mais importan-tes”, que são cometidos.

E mais: e se o crime for cometido contra algum animal desprovido de relevância ecológica ou contra alguma espécie não ameaçada de extinção, quem deverá atuar? O promotor criminal ou o promotor do meio ambiente? No caso de um conflito negativo de atribuições, a demora na resolução do problema pode causar a morte do animal, podendo essa situação ser evitada com a criação de uma promotoria específica para atuar nesses casos.

Além da criação de uma promotoria especializada, outras ideias po-dem ser colocadas em prática para melhorar a condição dos animais, de um modo geral. Uma delas é a criação de uma parceria entre municipalidade, uni-versidades e clínicas veterinárias, objetivando ampliar o número de castrações e atendimento veterinário gratuitos. É sabido que muitas pessoas, por falta de dinheiro (e também por falta de compaixão), acabam abandonando animais doentes nas ruas, à própria sorte. Isso, além de ser um crime, é moralmente reprovável, e poderia ser evitado, ou pelo menos diminuído, com a criação de hospitais públicos veterinários ou por meio de parcerias público-privadas, com

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capacidade para realizar atendimentos emergenciais, cirurgias, vacinação e exa-mes de forma gratuita.

Outra ideia, talvez com menor custo e mais eficiência, está relaciona-da à medidas didático-pedagógicas. Campanhas de adoção, de esterilização e, principalmente, de guarda responsável e respeito para com os animais devem ser intensificadas, com o objetivo de diminuir os casos de crueldade. Para Levai (2007, p. 19)

Os pais e os professores podem influenciar decisivamente na forma-ção do caráter de uma criança, ensinando-lhe os valores supremos da vida, em que se inclui o respeito pelos animais. Para mudar nossa ca-ótica realidade social somente um processo de aprendizado de valores e princípios verdadeiramente compassivos. E pensar que no Brasil está em vigor a Lei n. 9.975/99, que trata justamente da Política Na-cional de Educação Ambiental...

Levai sugere que a Promotoria Especializada de Defesa Animal seja estruturada da seguinte maneira: um promotor de justiça; um oficial de promo-toria (responsável pelo assessoramento do promotor, pela movimentação carto-rária, pelo controle de prazos, etc.); um oficial de diligências (encarregado de visitas de constatação, fotografias e notificações); dois estagiários (para funções de secretariado, orientação comunitária e relações públicas); e um assistente técnico com formação médico-veterinária, para elaboração de pareceres e lau-dos especializados (LEVAI, 2007, p. 20).

São muitas as hipóteses capazes de inspirar a atuação da Promotoria Especializada de Defesa Animal:

processar, na esfera cível e penal, aqueles que praticam crueldade para com animais; opor-se aos espetáculos que utilizam animais para fins de diversão pública, notadamente rodeios, circos e vaquejadas; exigir a utilização de métodos substitutivos à experimentação animal, evitando que a ciência perfaça impunemente a vivissecção. E mais: combater a criação de animais pelo método de produção intensiva, em que a avidez pelo lucro humano se sobrepõe ao martírio dos bichos confinados; lutar contra o abate religioso ou ritual, que submete o animal a um padecimento atroz, devido à ausência de prévia insensi-bilização; atuar contra a caça, o contrabando de animais, a indústrias de peles e a biopirataria. Conscientizar os homens do valor supremo da vida; resgatar, enfim, a individualidade dos animais, como seres sensíveis que são (LEVAI, 2007, p. 2

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Por fim, pode-se perceber que a Promotoria Especializada de Defesa Animal, se criada, é plenamente capaz de combater os crimes cometidos contra os animais, seja em razão da quantidade de instrumentos à sua disposição, seja porque em meio às funções institucionais do Parquet está a defesa da vida, da ordem jurídica e da paz social. Assim, a inflição voluntária de dor a qualquer animal atenta, invariavelmente, contra esses objetivos.

6. CONCLUSÃO

Apesar dos avanços legislativos, os animais continuam sendo discri-minados pela indiferença humana, pela insignificância jurídica e pela vala co-mum das condutas de menor potencial ofensivo.

Para se chegar à conclusão de que os animais possuem direitos não é necessário um extenso exercício de raciocínio e lógica. É algo evidente, cris-talino. Ao se ler o art. 225, §1º, VII da Constituição da República, nota-se que o legislador vedou a prática da crueldade para proteger os animais sob um viés moral, considerando-os sujeitos jurídicos.

Nessa linha de raciocínio, pode-se concluir que os animais, indepen-dentemente da proteção jurídica que lhes é conferida, devem ser respeitados em razão dos princípios éticos e morais que devem ser a base de todas as ações humanas, pois são seres sensíveis, vulneráveis e que possuem características que os tornam seres únicos.

Conforme ficou plenamente demonstrado, existem mecanismos para proteger os animais. Basta uma leitura superficial do art. 32 da Lei 9.605/98 para se compreender que maltratar animais é crime.

É cristalino, também, o importante papel que o Ministério Público tem para que ocorra uma mudança na mentalidade dos seres humanos com relação ao tratamento dispensado aos outros seres vivos. Sendo curador dos animais, e também dispondo de diversos instrumentos para a concretização do Direito Animal, como a Ação Civil Pública e o Termo de Ajustamento de Conduta, por exemplo, não pode o Parquet se manter omisso diante de tantos casos de crueldade. A tutela jurídica dos animais deve ser exercida de maneira articulada e objetiva, de forma a gerar crédito social. Para resolver esse problema, nada mais eficiente do que criar uma Promotoria Especializada de Defesa Animal.

A visão antropocêntrica, que contamina o raciocínio jurídico atualmente e coloca o ser humano como o único ser vivo digno de proteção legal e respeito, deve ser superada por uma visão biocêntrica, que coloca a vida, independentemente de sua forma, como o bem que deve ser protegido e tutelado. Para isso, se faz neces-sário que haja uma mudança na educação, passando-se a privilegiar princípios mo-rais e éticos que considerem qualquer forma de vida importante e digna de respeito.

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REFERÊNCIAS

FEITOSA, Valéria. Ceará pode ser pioneiro em Promotoria Especializada. Diário do Nordeste, Fortaleza, fev.2011. Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=941476>. Acesso em: 30 out 2012.

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos Animais. 2. ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2006.

______. Promotoria de Defesa Animal. Ministério Público do Estado de São Paulo, São Paulo, out.2007. Disponível em: <http://www.mp.sp.gov.br/portal/page/portal/cao_urbanismo_e_meio_ambiente/biblioteca_virtual/bv_teses_congressos/L%20F%20Levai%20-%20PROM%20DE%20DEFESA%20ANIMAL.htm>. Acesso em: 03 nov 2012.

MENDES, Gilmar; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (Org.). Ministério Público: reflexões sobre princípios e funções institucionais. São Paulo: Atlas, 2010.

RODRIGUES, Danielle Tetü. O Direito & os Animais: uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

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O PAPEL DO SENADO NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO

THE ROLE OF THE SENATE IN THE CONSTITUTIONAL CONTROL AND THE ABSTRACTION OF THE DIFFUSE CONTROL

ana EliSa DEtzEl

Acadêmica do 8º período da Faculdade de Direito do Centro Universi-tário Curitiba - UNICURITIBA

luiz guStaVo DE anDraDE

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advoga-do militante no Paraná.

RESUMO

O controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro possui um sistema híbrido que conjuga o controle difuso e concentrado. O Supre-mo Tribunal Federal exerce a função de guardião da Constituição, salientando-se que os efeitos de suas decisões são diversos a depender do sistema de controle de constitucionalidade e espécie de ação ajuizada. Ressalta-se que através do artigo 52, inciso X da Constituição da República Federativa do Brasil foi outorgada ao Senado Federal uma função no controle de constitucionalidade, havendo a necessidade de este papel ser analisado à luz das modificações introduzidas a partir de 1988, as quais conferiram amplitude ao controle concentrado de consti-tucionalidade. Destaca-se que referida norma constitucional deve ser observada, mesmo diante da predominância do controle abstrato, em razão de inexistir muta-ção constitucional apta a sedimentar entendimento diverso. Outrossim, mostra-se pertinente o exame da teoria da abstrativização do controle difuso de constitu-cionalidade, a qual apresenta vantagens como economia e celeridade processual, mas carece de positivação para legitimar sua aplicabilidade.

Palavras-chave: controle difuso de constitucionalidade, Senado Federal, abstra-tivização, eficácia erga omnes.

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ABSTRACT

The constitutional control of the Brazilian legal system adopts a hy-brid system which combines the diffuse as well as the centralized control. The Supreme Federal Court exercises the function of the Constitution’s guardian and the effect of its decisions are diverse depending on the system of consti-tutional control and the nature of the filed claim. It must be highlighted that article 52 item X of the Brazilian Constitution granted part of the constitutional control to the Senate, whose role must be analyzed under the light of the amend-ments made since 1988 which broadened the centralized constitutional control. It should be emphasized that such provision must be observed even with the predominance of the abstract control, due to the inexistence of a constitutio-nal development able to consolidate a different understanding. Therefore it is important to analyze the theory of the abstraction of the diffuse constitutional control that presents advantages such procedural efficiency but lacks an express legal provision to allow its applicability.

Keywords: diffuse constitutional control, Senate, abstraction, erga omnes effec-tiveness.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro. 2.1. Controle difuso. 2.2. Controle concentrado. 3. Controle difuso perante o Supremo Tribunal Federal. 3.1. O Supremo Tribunal Federal enquanto guardião da Constituição. 3.2. Efeitos da decisão do Supremo Tribunal Federal 3.2.1 Efeitos da decisão no controle concentrado. 3.2.2 Efeitos da decisão no controle difuso. 4. O artigo 52, inciso X da Constituição. 5. A abstrativização do controle difuso 6. Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente estudo busca analisar o artigo 52, inciso X, da Constituição da República Federativa do Brasil, em virtude do mencionado dispositivo ser alvo de discussões e diversas interpretações, quanto à sua aplicação e à necessidade de sua mutação, bem como em razão de o fenômeno de abstrativização das decisões se apresentar como uma inovação em matéria de controle de constitucionalidade.

No primeiro capítulo são explanadas breves noções do controle de constitucionalidade brasileiro, apresentando-se os sistemas de controle repres-sivo jurisdicional, difuso e concentrado.

Dando-se sequência, no segundo capítulo, passa-se a estudar o con-trole de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, abordando a temática dos diversos efeitos que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal

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Federal pode surtir a depender do sistema de controle de constitucionalidade, concentrado ou difuso.

No terceiro capítulo são feitas considerações sobre o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade brasileiro, mediante o estudo do arti-go 52, inciso X da Constituição da República Federativa do Brasil, que outorga à Casa Alta do Congresso Nacional a competência de suspender, no todo ou em parte, lei declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle difuso de constitucionalidade. Por fim, no quarto capítulo são teci-das ponderações acerca do fenômeno da abstrativização do controle difuso de constitucionalidade, apresentando os argumentos favoráveis e os argumentos contrários à tese que pretende estender às decisões tomadas em controle difuso de constitucionalidade eficácia erga omnes e vinculante.

2. O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO

O controle de constitucionalidade pode ser definido como a análise da compatibilidade de lei ou ato normativo em comparação à Constituição. A rigidez constitucional, assim como a supremacia da Carta Magna ante todos os demais atos normativos infraconstitucionais, apresentam-se como pressupostos de existência do controle de constitucionalidade.

Assim, em um ordenamento jurídico cuja Constituição possua natu-reza rígida e esteja em um patamar hierarquicamente superior ao das outras normas, torna-se imprescindível a existência de um sistema de controle de constitucionalidade, considerando-se que no caso de as normas infraconstitu-cionais se encontrarem em dissonância, quando cotejadas à Constituição, aque-las deverão ser retiradas do mundo jurídico, através do reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro é híbrido, pois abriga concomitantemente o controle difuso e o controle concentrado.

2.1 CONTROLE DIFUSO

O controle difuso de constitucionalidade teve origem com o julga-mento realizado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1803, do caso Marbury v. Madison. Em resumo, o conflito de interesses se instalou em virtude de o secretário de Estado, James Madison, se recusar a entregar o diploma de investidura do juiz de paz William Marbury.

Destaca-se que esta espécie de controle, também chamada de modelo americano, pode ser realizada por qualquer Juízo ou Tribunal, observando-se as regras concernentes à divisão de competência. Neste modelo, as partes liti-

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gantes possuem dúvida quando a inconstitucionalidade de determinada lei ou ato normativo aplicável ao caso concreto, de modo que tal controvérsia torna necessária a realização de controle de constitucionalidade por parte do Juízo para que seja resolvida a demanda.

Neste sentido, ensina José Joaquim Gomes Canotilho:

No sistema difuso a competência para fiscalizar a constitucionalidade das leis é reconhecida a qualquer juiz chamado a fazer a aplicação de uma determinada lei a um caso concreto submetido a apreciação judicial.(CANOTILHO, 2011, p.898).

Importante assinalar que o Supremo Tribunal Federal realiza controle difuso de constitucionalidade, incidentalmente, através do Recurso Extraordinário.

2.2 CONTROLE CONCENTRADO

A Constituição da Áustria de 1920, inspirada por Kelsen, deu origem ao controle concentrado de constitucionalidade, uma vez que “regulamentou a Corte de Justiça Constitucional (Verfassungsgerichshof) enquanto único órgão do Judiciário competente para exercer a fiscalização da constitucionalidade das leis” (DIMOULIS; LUNARDI, 2011, p. 48).

Sobre o sistema austríaco, Alexandre de Moraes comenta:

O sistema austríaco [...] foi obra pessoal de Hans Kelsen e expressado pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920 e posteriormente atualizado na reforma de 1929. [...] o sistema austríaco configura-se como um controle concentrado, uma vez que a análise sobre a incons-titucionalidade das leis é de competência de um único Tribunal Cons-titucional. [...] Portanto, na Áustria, o controle de constitucionalidade somente poderia ser realizado pelo Tribunal Constitucional que, me-diante pedido formal de um dos órgãos políticos constitucionalmente legitimados, analisaria a compatibilidade abstrata da lei com a Cons-tituição. (MORAES, 2000, p. 124-25). Depreende-se disso, que o controle concentrado de constitucionalida-

de originariamente delegou a exclusividade para a declaração de inconstitucio-nalidade das leis ao Tribunal Constitucional.

Este sistema, denominado modelo austríaco ou europeu, pressupõe a existência de uma Corte especializada que tem por função principal verificar efe-tivamente a constitucionalidade das leis e atos normativos infraconstitucionais.

Acerca deste modelo, Gilmar Ferreira Mendes comenta:

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O controle concentrado de constitucionalidade (austríaco ou europeu) defere a atribuição para o julgamento das questões constitucionais a um órgão jurisdicional superior ou a uma Corte Constitucional. O controle de constitucionalidade concentrado tem ampla variedade de organização, podendo a própria Corte Constitucional ser composta por membros vitalícios ou por membros detentores de mandato, em geral, com prazo bastante alargado. (MENDES, 2010, p. 337.)

No Brasil, o Supremo Tribunal Federal exerce este papel de Corte Constitucional tendo por função a guarda da Constituição. A Corte Constitu-cional brasileira conhece originariamente as ações de sistema concentrado de controle de constitucionalidade.

3. O CONTROLE DIFUSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

O Supremo Tribunal Federal é composto por onze Ministros que são nomeados pelo Presidente da República, após a aprovação da escolha pela maioria absoluta do Senado Federal. Para ocupar o cargo de Ministro do Pre-tório Excelso necessariamente devem ser respeitados alguns requisitos, dentre eles ser cidadão brasileiro nato, ter mais de trinta e cinco anos e menos de ses-senta e cinco, possuir notável saber jurídico e reputação ilibada.

Conforme visto anteriormente, o controle difuso de constitucionali-dade permite que qualquer Juízo ou Tribunal conheça da questão referente à constitucionalidade de uma lei ou ato normativo no julgamento de um caso concreto, portanto, o Supremo Tribunal Federal também detém competência para controlar a constitucionalidade de modo difuso.

3.1 O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ENQUANTO GUARDIÃO DA CONSTITUIÇÃO

O legislador constituinte outorgou ao Supremo Tribunal Federal a guar-da da Constituição tal como se extrai o artigo 102, caput, do Texto Constitucional.

Em comentário ao referido dispositivo, José Afonso da Silva afirma que:

Isso vale, em primeiro lugar, dizer que ele é o intérprete maior da Cons-tituição, que nessa matéria suas decisões valem como entendimento úl-timo do texto constitucional; em segundo lugar, significa que ele cons-titui o centro da jurisdição constitucional, mormente como Tribunal do controle constitucional concentrado. (SILVA, 2010. p. 548.)

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Destarte, o Supremo Tribunal Federal possui o dever de garantir a supremacia da Constituição, primando pela defesa da Carta Maior.

Em relação às funções do Pretório Excelso, Uadi Lammêgo Bulos assevera que compete à instituição, preponderantemente, fiscalizar a constitu-cionalidade das leis e dos atos normativos, emitir a palavra final nas questões submetidas ao seu veredito, primar pela regularidade do Estado Democrático de Direito, garantindo a separação de Poderes, assim como defender a supremacia das liberdades públicas e dos direitos fundamentais, em face dos Poderes do Estado (BULOS, 2011, p. 1287).

Portanto, incumbe ao Supremo Tribunal Federal o dever de guarda da Constituição. Porém, faz-se mister analisar se este papel outorgado pela Lei Maior é cumprido a contento.

Marco Antônio Villa afirma que em mais de 120 anos de existência do Pretório Excelso, a Corte em diversos momentos, transformou-se de respon-sável pela defesa da Constituição e da democracia em uma seção ‘subalterna’ dos interesses do Executivo, de forma que mesmo diante das novas atribuições trazidas pela Constituição de 1988, o Tribunal manteve a postura histórica da omissão e da obediência aos desmandos do Executivo. Além disso, o autor su-pramencionado lembra que a demora na tramitação dos processos faz parte da tradição do STF, bem como ressalta os excessivos adiamentos, de modo que o guardião da Constituição tem representado ao longo dos anos uma síntese das deficiências da Justiça brasileira. (VILLA, 2011. p. 131-48).

Deste modo, entende-se o Supremo Tribunal Federal não têm exerci-do plenamente a função de guardião da Constituição.

3.2 EFEITOS DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Diante das várias espécies de ações que podem ser ajuizadas perante o Supremo Tribunal Federal tanto em sede de controle difuso quanto concentrado as decisões prolatadas pela Corte assumem efeitos diversos.

3.2.1 EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE CONCENTRADO

Por regra, a decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, ou reconhece sua constitucionalidade, no caso da Ação Declaratória de Constitucionalidade, possui eficácia erga omnes e efeitos ex tunc.

Acerca do tema, Paulo Roberto de Figueiredo Dantas assinala:[...] a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, como regra geral, terá eficácia erga omnes (em face de to-

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dos) e efeitos ex tunc (retroativos à data da edição do diploma norma-tivo. [...] Por tal razão, levando-se em conta aqueles normais efeitos da sentença que declara a inconstitucionalidade – eficácia erga omnes e efeitos ex tunc -, referida norma é considerada nula, como se nunca tivesse existido no ordenamento jurídico. (DANTAS, 2012, p. 227.)

Depreende-se disso que dizer que a sentença possui eficácia erga om-nes, significa afirmar que a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, em sede de controle concentrado, estende-se a toda coletividade, em que pese não terem figurado como partes na demanda.

Sempre que forem tutelados em Juízo interesses difusos, ocorrerá a eficácia erga omnes.

Ainda, ressalta-se o entendimento de Georges Abboud:

O efeito erga omnes não vincula os particulares, tal vinculação é pro-veniente do efeito vinculante (CF/1988, art. 102, §2º). Além disso, também não retira o texto normativo do mundo jurídico. A retirada de determinada lei do mundo jurídico ocorre em razão da eficácia declaratória da coisa julgada material operada nas sentenças de total rechaço que declaram a inconstitucionalidade e a nulidade de toda a lei ou parte dela. (ABBOUD, 2011. p.135-136).

O efeito vinculante é um instituto exclusivo do controle concentrado de constitucionalidade, o qual necessariamente deve se agregar à coisa julgada material, em virtude de o legislador constituinte, no artigo 102, §2º da Consti-tuição, ter atribuído mencionado efeito apenas as decisões definitivas de mérito. (ABBOUD, 2011. p.126).

No que tange aos efeitos ex tunc, entende-se que estes atingem fatos pre-téritos à data de edição da norma declarada inconstitucional. Tal situação autoriza a ocorrência do efeito repristinatório, pois, sendo o diploma legal considerado nulo, admite-se que a lei vigente antes da edição da lei inconstitucional volte a vigorar. Todavia, em algumas ocasiões a aplicação plena dos efeitos ex tunc poderia causar insegurança jurídica, de modo que se faz precisa a modulação dos efeitos da decisão.

O Supremo Tribunal Federal pode, por maioria de 2/3 (dois terços) de seus membros, restringir os efeitos da decisão, ou decidir que a eficácia dela seja a partir de seu trânsito em julgado ou em algum outro momento que venha a ser fixado, para que haja garantia da segurança jurídica ou excepcional inte-resse social (DANTAS, 2012, p. 227).

Diante de todo o exposto, extrai-se que, por regra, as decisões tomadas em controle concentrado de constitucionalidade possuem efeitos ex tunc. Em con-

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trapartida, esses podem ser restritos, mediante a modulação dos efeitos da decisão.

3.2.2 EFEITOS DA DECISÃO NO CONTROLE DIFUSO

A decisão que declara a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo através do controle difuso de constitucionalidade, possui eficácia somente entre as partes litigantes (inter partes), desta forma a lei continua válida e eficaz em relação a toda a coletividade que não figurou como parte na demanda. Os efeitos são ex tunc, ou seja, retroagem à data de edição da lei declarada inconstitucional.

Paulo Roberto de Figueiredo Dantas disserta sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal conferir efeitos ex nunc (irretroativos) à decisão tomada em controle difuso, fazendo uso do artigo 27 da Lei n.º 9.868/1999 – mencionado no tópico anterior – por analogia:

É imperioso ressaltar, contudo, que, em caráter excepcional, o Su-premo Tribunal Federal poderá conferir eficácia ex nunc ou mesmo pro futuro à decisão proferida no controle difuso de constitucionalida-de, por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, utilizando-se, para tanto, do artigo 27, da Lei nº 9.868/1999, aplicado por analogia. O caso concreto que deu ensejo àquela possibilidade, e citado pela generalidade dos doutrinadores, foi o julgamento do Re-curso Extraordinário nº 197.917-SP, em que o Plenário do Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 6º da Lei Orgânica do Município de Mira Estrela, no Estado de São Paulo, re-duzindo o número de parlamentares, daquela municipalidade, de onze para nove vereadores. (DANTAS, 2012, p. 197).

Assim, a decisão tomada no julgamento do Recurso Extraordinário nº 197.917-SP é um precedente de aplicação por analogia do artigo 27 da Lei nº 9.868/1999, conferindo eficácia ex nunc à declaração de inconstitucionalidade, sob o fundamento da garantia da segurança jurídica.

Contudo, existe outra situação em que os efeitos da decisão em sede de controle difuso serão ex nunc, e, além disso, possuirão eficácia erga omnes, trata-se da hipótese contemplada no artigo 52, inciso X da Constituição Federal, a qual será explanada no capítulo seguinte.

4. O ARTIGO 52, INCISO X DA CONSTITUIÇÃO

Segundo prevê o artigo 52, inciso X da Carta Magna, compete, privativamente ao Senado Federal, suspender a execução, no todo ou em

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parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Acerca do referido dispositivo, José Afonso da Silva comenta:

Entenda-se: se toda lei foi declarada inconstitucional, a suspensão há de ser dela toda; o Senado não pode decidir fazê-lo apenas em parte. Portanto, quando o texto fala em suspender “em parte”, significa que também só dita parte foi declarada inconstitucional. De outro lado, esse procedimento não tem cabimento quando a declaração de inconstitu-cionalidade decorreu de ação direta, nos termos do art. 102, I, “a”; é procedimento adequado à declaração de inconstitucionalidade inciden-ter tantum, ou seja, no caso concreto, segundo a técnica do controle difuso, pois que sua razão de ser está precisamente em fazer expandir a todos os efeitos da decisão, que, em si, só tem eficácia entre as partes; é a suspensão da execução da lei que confere efeitos erga omnes à sen-tença que decretou a inconstitucionalidade. [...] A suspensão prevista realiza-se por meio de resolução daquela Câmara Alta do Congresso. O pressuposto para a atuação do Senado é a existência da declaração definitiva de inconstitucionalidade de lei pelo STF (SILVA, 2010, p. 42

Constata-se, pois, que o Senado Federal está adstrito aos limites da declaração de inconstitucionalidade da lei, de modo que se sua totalidade foi declarada inconstitucional, deve a Alta Casa do Congresso Nacional suspender integralmente sua execução. O mesmo raciocínio há de ser empregado em caso da declaração de inconstitucionalidade de parte da lei, situação na qual o Se-nado Federal suspenderá a execução apenas dos dispositivos inconstitucionais.

Interessante a consideração feita por Luiz Roberto Barroso quanto à interpretação do dispositivo mencionado, afirmando quando se fala em sus-pensão de lei deve-se realizar uma interpretação extensiva para que se incluam todos os atos normativos de quaisquer os três níveis de poder, de modo que o Senado também suspende atos estaduais e municipais, desde que tal ato norma-tivo tiver sido declarado inconstitucional (BARROSO, 2012, p.156).

Carlos Alberto Lúcio Bittencourt ressalta a impropriedade técnica da expressão “suspender a execução”, tendo em vista que, em razão de o ato ser inexistente ou ineficaz, não há possibilidade de ser suspensa a sua execução. (BITTENCOURT, 1997. p.146).

Ainda, em relação à suspensão de lei inconstitucional pelo Senado Federal, Gregório Assagra de Almeida e Mirna Cianci asseveram:

O STF, caso venha proferir decisão declarando a inconstituciona-lidade de lei em sede de controle difuso ou incidental (ou concre-

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to), deverá remeter cópia do acórdão ao Senado Federal, que poderá emitir resolução suspendendo a eficácia da lei no território nacional. Pela orientação da jurisprudência do STF, a suspensão ou não da lei é decisão discricionária e política do Senado Federal. [...] quando a decisão do STF for proferida em julgamento de ação direta com pedido declaratório de inconstitucionalidade, a decisão faz coisa julgada erga omnes e, por si só tem o condão de retirar a eficá-cia, em todo o território nacional, do comando normativo declarado inconstitucional. Nesse caso, portanto, não se remete a decisão do STF ao Senado Federal para os efeitos previstos no art. 52, X, da CF.(CIANCI; ALMEIDA, 2011, p. 57).

Assim, a previsão constitucional que outorga ao Senado a atribuição de suspender no todo ou em parte lei declarada inconstitucional tem aplicabilidade apenas aos casos de sentença declaratória em sede de controle difuso, isso pelo fato de que as decisões proferidas nas ações de controle concentrado já possuem efeitos erga omnes que acarretam na expansão dos efeitos para além das partes litigantes.

O artigo 52, inciso X da Carta Maior emprega em sua redação a ex-pressão decisão definitiva. Acerca deste vocábulo, Kildare Gonçalves Carvalho assevera:

[...] por definitiva deve-se entender uma série de decisões tomadas no mesmo sentido, embora não haja um número de acórdãos que tornem definitiva a decisão. Em regra geral, o Presidente do Supremo Tribu-nal Federal não encaminha uma decisão para o Senado, a não ser que seja firme, isto é, que a jurisprudência da Corte seja pacífica em rela-ção à inconstitucionalidade da norma. (CARVALHO, 2008. p. 420).

O Senado Federal efetiva sua competência constitucional de suspen-der a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Su-premo Tribunal Federal mediante a emissão de Resolução.

No que tange à Resolução do Senado Federal, esta tem por função essencial atribuir eficácia erga omnes às decisões definitivas de inconstitucio-nalidade prolatadas em sede de controle difuso, visto que implica na perda de eficácia da norma.

A Alta Casa do Congresso Nacional não tem um prazo constitucional-mente estabelecido para deliberar sobre a suspensão da lei ou ato normativo. Po-rém, depois de promulgada a resolução, não pode o Senado Federal revogá-la, pois exaurida sua competência. Frisa-se que somente na hipótese de o STF consi-derar a lei constitucional em julgamento de ação declaratória de constitucionali-

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dade, a resolução suspensiva será revogável. (CARVALHO, 2008. p. 424).Salienta-se que o Senado não pode restringir ou ampliar a extensão da

decisão proferida pelo Excelso Sodalício. (MENDES, 2004. p. 154).Este ato exercido pelo Senado possui natureza política e caráter dis-

cricionário, inexistindo, portanto, obrigatoriedade em praticá-lo. (PIMENTA, 2010, p. 103-04.)

Em sentido contrário, Carlos Alberto Lúcio Bittencourt afirma que:

O ato do Senado, porém, não é optativo, mas deve ser baixado sempre que se verificar a hipótese prevista na Constituição: decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Se o Senado não agir, nem por isso ficará afetada a eficácia da decisão, a qual continuará a produzir todos os seus efeitos regulares, que, de fato, independem da colaboração de qualquer outro dos poderes (BITTENCOURT, 1997, p.145.)

Deste modo, o autor supracitado entende que a atividade do Senado possui caráter vinculado.

O referido posicionamento não pode ser convalidado, uma vez que caracterizaria afronta ao princípio da separação dos poderes.

Há de se reconhecer que o artigo 52, inciso X da Constituição garante a concretização do chamado sistema de freios e contrapesos (Checks and Ba-lances), pois representa um mecanismo de controle recíproco entre os Poderes Legislativo e Judiciário, na medida em que é outorgada ao Senado Federal uma função no sistema de controle de constitucionalidade, sendo que, notadamente, a atividade consistente em exercer o controle de constitucionalidade é, de forma predominante, efetuada pelo Poder Judiciário.

Frisa-se, porém, que o fato da atuação do Senado ser discricionária é motivo da inércia do Legislativo, o qual pratica a função constitucionalmente outorgada esporadicamente. Podendo, em razão disso, ser caracterizado obsole-to o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade.

Contudo, não se pode olvidar que a previsão constitucional que ou-torga ao Senado Federal a possibilidade de suspender lei declarada inconstitu-cional democratiza o controle de constitucionalidade brasileiro, isso porque o Poder Legislativo passa a deter parcela de competência no controle de constitu-cionalidade, considerando-se que a função é exercida predominantemente pelo Poder Judiciário.

A fórmula que delegou à Alta Casa do Congresso Nacional a função de suspender a lei declarada inconstitucional teve surgimento na vigência da Constituição de 1934.

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Importante relembrar que no período de 1934, quando referido precei-to foi inserido na Constituição brasileira, o sistema de controle de constitucio-nalidade que detinha hegemonia era o difuso, de modo que se mostrava neces-sária a existência de um mecanismo apto a dar amplitude à decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal.

Clèmerson Merlin Clève ressalta que:

[...] a fórmula encontrada pelo Constituinte de 1934, para estender ao julgado da Suprema Corte a eficácia erga omnes, parece ter sido cria-tiva e adequada. Todavia, é questionável a permanência da fórmula na Constituição de 1988. Parece constituir um anacronismo a permanência do mecanismo quando o país adota, na atualidade, não apenas a fiscaliza-ção incidental, mas também a concentrado-principal, decorrente de ação direta e, inclusive, para suprimento de omissão. (CLÈVE, 2000.p. 124).

Assim, compreende o referido autor que, à luz da Constituição/88, a atribuição de suspender a execução de lei ou ato normativo declarado inconsti-tucional deveria ser retirada do Senado Federal.

Latente se mostra a desnecessidade do preceito constitucional que ou-torga à Alta Casa do Congresso a competência para suspender a execução de lei declarada inconstitucional em sede de controle difuso. Isto porque, com a Carta Magna de 1988 o controle abstrato de constitucionalidade ganhou elevada am-plitude. Gilmar Ferreira Mendes ressalta que “a única resposta plausível nos leva a crer que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão de índole exclusivamente histórica”. (MENDES, 2012, p. 155)

Ademais, com o advento da EC n.º 45/2004 foi outorgada ao Pretório Excelso a possibilidade de edição de súmula vinculante, outro fato que demons-tra a desnecessidade atuação do Senado, visto que:

A súmula vinculante viabiliza que decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal, sobre matéria constitucional, terão efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direita e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (CARVALHO, 2008, p.424).

Carlos Alberto Lúcio Bittencourt compreende que o preceito constitu-cional que confere ao Senado Federal a competência para suspender a execução no todo ou em parte de lei ou ato normativo declarado inconstitucional em sede de controle difuso pelo STF tem por escopo apenas dar publicidade a decisão do Excelso Sodalício, levando-a a conhecimento de todos os cidadãos. (BIT-TENCOURT, 1997, p.145).

Gilmar Ferreira Mendes comunga o mesmo entendimento ao afirmar

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que “parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspen-são de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publici-dade”. (MENDES, 2004, p.165.)

Marcus Vinicius Martins Antunes refuta este posicionamento, asse-verando que:

É inaceitável, data vênia, a tese de que o Senado passe a ser o mero publicador das decisões do STF, pois isto não faz sentido. Tal ‘home-nagem’ ao Senado soará como capitis deminutio. Se, como querem os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau, todas as decisões do Supre-mo tiverem efeito contra todos, a publicidade dessas decisões virá da simples publicação no Diário Oficial. Note-se que a contradição não está somente, nem principalmente, na atuação do STF e do Senado Federal. Está, também, no campo de atuação do controle concreto versus controle abstrato, em que se descobrem conflitos efetivamente insanáveis.( ANTUNES, 2012. p. 45.)

Entretanto, referido autor sugere algumas soluções, diante da desneces-sidade da atuação da Alta Casa do Congresso no controle de constitucionalidade, como a aprovação de emenda à Constituição retirando a competência outorgada ao Senado Federal no artigo 52, inciso X da Carta Magna, bem como a hipótese de se extinguir a adoção do controle difuso de constitucionalidade, implementan-do a técnica dos tribunais constitucionais europeus. (ANTUNES, 2012. p. 45).

Assim, ante todo o exposto, seria imprescindível a mutação constitu-cional concernente à atuação do Senado Federal no controle de constitucio-nalidade brasileiro, uma vez que o controle abstrato de constitucionalidade foi ampliado com o advento da Constituição de 1988, bem como em razão da possibilidade de edição de súmulas vinculantes através das quais os demais órgãos do Poder Judiciário se sujeitam às decisões reiteradas do Supremo Tri-bunal Federal. Porém, enquanto tal modificação não emerge, deve ser respei-tado o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade brasileiro.

5. A ABSTRATIVIZAÇÃO DO CONTROLE DIFUSO

Pode-se definir como abstrativização do controle difuso de constitu-cionalidade o fenômeno de atribuir eficácia erga omnes e vinculante à decisão prolatada, no sistema difuso, quanto à constitucionalidade ou inconstitucio-nalidade de uma lei, que, em razão da questão constitucional ser incidental e necessária para resolução da lide, por regra, teria efeitos apenas inter partes. Em outras palavras, inserem-se nos processos do controle difuso característi-cas típicas do controle abstrato.

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Aderbal Torres de Amorim afirma que em decorrência do novo mode-lo constitucional adotado desde a edição da Emenda Constitucional n. 45/2004, o número de recursos extraordinários foi restringido de forma drástica, isso por-que, faz-se necessária a característica de repercussão geral para que eles subam ao Pretório Excelso. Deste modo, o recurso mencionado não leva ao Supremo Tribunal Federal simplesmente ações individuais que não possuem ressonância na tessitura social. Com efeito, a eficácia da decisão prolatada na ação em sede de controle difuso pode se estender em caráter erga omnes, desde que a maioria absoluta dos juízes votantes, presentes à sessão, assim entendam. Desta manei-ra, o juiz está adstrito não só à Constituição e a lei, mas à observância do que foi decidido em outros processos. (AMORIM, 2011, p.381-383).

Sobre a abstrativização do controle difuso, Dalton Santos Morais assevera:

Nesse contexto, é que se vem lançando, tanto legislativamente, quan-to doutrinária e jurisprudencialmente, as bases para um controle di-fuso abstrato de constitucionalidade, no qual as decisões emanadas pelo plenário do STF venham a ter eficácia geral e não restrita entre as partes, como forma de proteger efetivamente a Constituição, ga-rantindo que a efetivação da decisão jurisdicional realize os valores da segurança jurídica e da razoável duração do processo declarados pela própria Constituição de 1988. E a principal característica desta construção está relacionada com a caracterização da natureza objeti-va do recurso extraordinário, o qual não deveria ser utilizado como mero instrumento de perseguição de direitos subjetivos das partes no processo judicial, mas sim como meio constitucionalmente estipulado para a preservação da própria Constituição vigente, posicionamento que o STF vem adotando reiteradamente. (MORAIS, 2008, p. 198)

Mencionado autor compreende que se faz mister a evolução dos ins-titutos processuais e constitucionais para o aprimoramento da efetivação con-creta da Constituição em ambos os sistemas de controle de constitucionalidade. (MORAIS, 2009, p. 63-64).

Pode-se citar como exemplos da abstrativização do controle difuso o desenvolvimento da corrente concretista geral no mandado de injunção, a qual pretende equiparar os efeitos da mencionada ação individual aos de uma decisão erga omnes; a criação da súmula vinculante que possibilita a exten-são dos efeitos erga omnes da decisão do STF; ainda no que toca à súmula vinculante, destaca-se que as entidades que são legitimadas para postular seu cancelamento ou alteração aproximam-se dos legitimados para a propositura de ações de controle concentrado, sendo acrescentados, apenas, os tribunais e o

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Defensor Público Geral da União; igualmente, é uma forma de manifestação da abstrativização a aplicação da modulação de efeitos temporal e repristinatório no controle difuso, assim como as decisões do Pretório Excelso, em controle difuso, que antecipam a atribuição de efeitos gerais, independente da atuação do Senado Federal. (CRUZ; MEYER; RODRIGUES, 2012, p. 129-130).

Os fatores principais a justificar o posicionamento favorável à abstra-tivização do controle difuso, seriam, segundo Pedro Lenza, a força normativa da Constituição, o princípio da supremacia da Constituição e a sua aplicação uniforme a todos os destinatários, o Supremo Tribunal Federal enquanto guar-dião da Constituição e seu intérprete máximo, bem como a dimensão política das decisões do STF. (LENZA, 2012, p. 280).

O autor supracitado salienta, ainda, que a tese da transcendência dos motivos determinantes no controle difuso é sedutora, relevante e eficaz, por proporcionar economia processual, a efetividade do processo e celeridade pro-cessual (LENZA, 2012, p. 28

Fredie Didier Jr. entende que este fenômeno é importantíssimo na le-gislação e jurisprudência brasileira, sendo que a nova feição que vem assumin-do o controle difuso de constitucionalidade, quando exercido pelo Supremo Tribunal Federal, abre a possibilidade de ser fazer uma interpretação extensiva, como forma de evitar decisões contraditórias e acelerar o julgamento das de-mandas (DIDIER JR., 2006, p.984-986).

Gilmar Ferreira Mendes assevera que equiparar os efeitos das decisões proferidas nos processos de controle abstrato e concreto caracteriza uma evolução no sistema de controle de constitucionalidade brasileiro (MENDES, 2012, p. 756).

Mirna Cianci e Gregório Assagra de Almeida compreendem que a tese da abstrativização do controle difuso viola o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 1988, bem como gera um sincretismo entre os sistemas de controle de constitucionalidade concentrado e difuso. Outrossim, para os autores, referida tendência atenta contra a disposição constitucional prevista no artigo 52, inciso X, da Carta Magna, gerando situação de desrespeito ao devido processo legal (CIANCI; ALMEIDA, 2011, p. 6

Destarte, para os autores supracitados, não se mostra pertinente afir-mar que o controle difuso é espécie de controle puramente objetivo, isso porque, o exercício do controle difuso e incidental se dá em processo do tipo subjetivo, ou seja, há litígio e tutela de direito subjetivo, individual ou coletivo, de modo que a eficácia da decisão deverá estender-se somente para as partes litigantes.

(CIANCI; ALMEIDA, 2011, p.6Pedro Lenza não aderiu à teoria da abstrativização, por entender que em

sede de controle difuso, inexistem dispositivos e regras, quer sejam processuais ou constitucionais, para a sua implementação. (LENZA, 2012, p. 28

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Neste sentido, o autor supracitado assevera:

O efeito erga omnes da decisão foi previsto somente para o controle concentrado e para a súmula vinculante (EC n. 45/2004) e, em se tra-tando de controle difuso, nos termos da regra do art. 52, X, da CF/88, somente após atuação discricionária e política do Senado Federal. Portanto, no controle difuso, não havendo suspensão da lei pelo Sena-do Federal, a lei continua válida e eficaz, só se tornando nula no caso concreto, em razão de sua não aplicação (LENZA, 2012, p. 28

Portanto, para Pedro Lenza, somente através de uma reforma consti-tucional, alterando a redação do art. 52, inciso X, bem como a regra do art. 97, ambos da Constituição brasileira de 1988, haveria possibilidade de assegurar a constitucionalidade da tendência de transcendência dos motivos determi-nantes no controle difuso, com caráter vinculante (LENZA, 2012, p. 282).

Paulo Roberto de Figueiredo Dantas compartilha entendimento semelhan-te, asseverando que a Constituição, nos moldes atuais, não permite a aplicação da teoria da transcendência dos motivos determinantes, no que tange ao controle difuso de constitucionalidade. De modo que apenas com a alteração do artigo 52, inciso X da Carta Magna, assim como do artigo 102, §2º do texto constitucional, haveria tal possibilidade. Isso porque, consoante o último dispositivo mencionado, a eficá-cia erga omnes e os efeitos vinculantes só são aplicáveis ao controle concentrado de constitucionalidade e não ao controle difuso. O autor comenta, ainda, que a atividade do Senado Federal é discricionária, de forma que se mostra incabível transformar tal Casa Legislativa em mero órgão de publicidade (DANTAS, 2012. p. 203-204).

Ademais, o objetivo pretendido com a abstrativização pode ser al-cançado mediante a edição de súmula vinculante, medida que seria legítima e eficaz, assim como uma forma de evitar casuísmos e prestigiar a segurança jurí-dica, tendo em vista que se faz mister a existência de reiteradas decisões sobre a matéria constitucional controvertida, bem como o quórum qualificado de 2/3 para sua edição (LENZA, 2012, p. 282).

Assim, diante do exposto, a tese da abstrativização do controle difu-so, embora atraente por conta de suas vantagens, não poderia ser aplicável ao Direito pátrio.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A existência de uma Constituição rígida e hierarquicamente superior às demais normas do ordenamento jurídico, fundamenta a existência do siste-ma de controle de constitucionalidade no Brasil. Por este motivo, toda lei ou

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ato normativo em dissonância com o texto constitucional deve ser afastado do mundo jurídico, em razão de ser inconstitucional.

O sistema de controle de constitucionalidade repressivo jurisdicio-nal brasileiro é hibrido, pois conjuga o sistema difuso e concentrado conco-mitantemente.

O controle difuso é realizado por qualquer juiz ou tribunal na aprecia-ção de um caso concreto. Por regra, a decisão que declara inconstitucional uma lei ou ato normativo tem efeitos inter partes. Todavia, aquela poderá possuir eficácia erga omnes quando o Senado Federal suspende a execução da lei de-clarada inconstitucional ou através do fenômeno da abstrativização do controle difuso. De outro lado, o controle concentrado é realizado por uma Corte espe-cializada, que, no Brasil, é o Supremo Tribunal Federal.

Oportuno pontuar que o legislador constituinte outorgou ao Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição. Contudo, é evidente que o Pretório Excelso não exerce tal função a contento, uma vez que a morosidade e adiamen-tos excessivos sintetizam as deficiências do Judiciário brasileiro.

No que tange ao papel do Senado no controle de constitucionalidade, depreende-se que seria imprescindível a mutação constitucional concernente à atuação do Senado Federal no controle de constitucionalidade brasileiro, uma vez que o controle abstrato de constitucionalidade foi ampliado com o advento da Constituição de 1988, bem como em razão da possibilidade de edição de súmulas vinculantes através das quais os demais órgãos do Poder Judiciário se sujeitam às decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal. Porém, enquanto tal modificação não emerge, deve ser respeitado o papel do Senado Federal no controle de constitucionalidade brasileiro.

Por fim, quanto à temática alusiva à abstrativização do controle difu-so de constitucionalidade, constata-se que esta tem se manifestado de diversas maneiras, aproximando o controle difuso do controle concentrado. Resta evi-dente que esta proximidade, em alguns aspectos, parece vantajosa, posto que a atribuição de eficácia erga omnes e vinculante às decisões proferidas em sede de controle difuso traz economia e celeridade processual. Contudo, ainda fal-tam comandos normativos legais, processuais e constitucionais que legitimem a adoção da teoria da abstrativização do controle difuso. Deste modo, conso-ante o atual ordenamento jurídico pátrio, a tese é inaplicável, visto que devem conviver ambos os sistemas, difuso e concentrado, cada qual com suas especi-ficidades, razão pela qual o Supremo Tribunal Federal não pode simplesmente ignorar o comando constitucional que determina a necessidade da atuação sena-torial para ampliação dos efeitos de suas decisões definitivas tomadas em sede de controle difuso. Portanto, inexistindo mutação constitucional, bem como legislativa, a fim de legitimar a ampliação dos efeitos das decisões proferidas em controle concreto, não há possibilidade de a tendência de abstrativização do controle difuso ser implementada.

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ÉTICA DO MARKETING NA ADVOCACIA

ETHICS OF MARKETING IN ADVOCACY

camila Franco torrES

Graduanda do Curso de Direito da Faculdade de Direito de Curitiba. Produtora

JoSé mario taFuri

Possui graduação em Direito pela Universidade São Francisco (1986), especialização em Direito Tributário e Processual Tributário pela Pon-tifícia Universidade Católica do Paraná (1997) e mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003). Tem experiên-cia na área de Direito, com ênfase em Direito Civil

RESUMO

O presente artigo possui em seu foco a análise da ética do ma-rketing na advocacia, com a preocupação de instruir o profissional a se posicionar diante da sociedade, que espera cada vez mais profissionais completos. Esse tema pode ser o diferencial para profissionais que de-sejam atingir o sucesso. Fazer uma análise completa de mercado e saber se posicionar garante ao operador do direito uma característica evolutiva acompanhando as mudanças do mundo global.

Sempre considerando os limites permissivos ditados pelo Código de Ética na Advocacia dentro do ordenamento jurídico.

Palavras-chave: ética, marketing, direito, conduta, consciência, wwinovação.

ABSTRACT

This paper has its focus on the analysis of the ethics of marketing in advocacy (law), with a concern to educate professionals to position themselves before society, which increasingly expects complete professionals in the field. This theme can make a difference for professionals who want to achieve suc-cess. Making a complete analysis of the market and knowing how to position your work, guarantees to the attorney an evolutionary characteristics following the changes of the global world.

Always considering the permissive boundaries dictated by the Code of Ethics in Advocacy within the legal system.

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Keywords: ethics, marketing, law, conduct, conscience, innovation.

1. INTRODUÇÃO

Durante toda a graduação de direito, passamos pela análise de vários temas, desde os primeiros semestres em que nos encontramos com a filosofia e a língua portuguesa, até os últimos em que temos contato com matérias de psicologia e ética.

No entanto a ética, possui muitas vertentes e é responsável pelos dire-cionamentos de marketing/publicidade dos advogados. E neste momento surge a grande questão que envolve o presente artigo: Quais são as ferramentas que o advogado pode utilizar para fazer o seu marketing pessoal/ de seu escritório, sem ultrapassar os limites éticos iminentes ao mundo jurídico?

Considerando as mudanças de costumes, o universo tecnológico, as necessidades do mercado profissional, os profissionais do Direito devem respeitar os preceitos éticos, devem atuar em consonância com o Código de Ética, regulamentado pela Lei nº 8.906, de 04 de Julho de 1994, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia (“EAOAB”) e a Ordem dos Advogados do Brasil (“OAB”).

Neste paradigma a Constituição Federal do Brasil de 1988 instituiu, conforme fundamentado pelo autor Eduardo C. B. Bittar que, a agitação política e o fermento democrático decorrentes do clima de modificações vivido pelo país corroboraram o sancionamento do Código de Ética da Advocacia. Deve--se perceber que a Constituição inaugurou uma nova fase para o ordenamen-to jurídico brasileiro, mas, dentro de um contexto tal que a recebe como can-dente reclamo social. A própria sociedade promulga a Constituição, recebe os efeitos dessa promulgação, vive o clima de modificações por ela instituído, na medida exata do preparo que essas revoluções conceituais e políticas ocorrem (BITTAR, 2002).

Sendo assim, a aplicação da ética do marketing realizado pelos opera-dores do Direito requer a aplicação das exigências públicas e lícitas fundamen-tadas na Constituição Federal 1988 e pelo Código de Ética.

Faz-se necessário definir uma série de conceitos para entender qual o papel da ética na advocacia, principalmente no que tange o marketing.

Embora este seja um campo imensamente abrangente, envolvendo a maioria das atividades a literatura vem sendo escassa, como bem cita Antonio Lopes de Sá em sua obra: Ética Profissional (LOPES DE SÁ, 2010).

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2. ÉTICA, CONDUTA HUMANA EM SOCIEDADE E MARKETING JURÍDICO

A origem etimológica da palavra “ética” vem do Grego “ethos”1 que significa “modo de ser” ou “caráter”. Esse é um tema antigo, mas que ganha destaque no momento atual frente à velocidade em que o mercado se movimen-ta e a quantidade em que se formam novos advogados.

Fato é que, as necessidades da sociedade motivam o ser humano e consequentemente o atingem profissionalmente, as novas necessidades vêm forçando a mudança de antigos padrões.

No contexto histórico, para o autor Antonio Lopes de Sá, sobre a ética é que não se trata apenas de uma teoria, mas sim uma junção de todas as perfi-lações que envolvem noções e limites no âmbito coletivo e no individual, e as diferenças que os seres humanos são capazes de aceitar entre si no convívio em sociedade (LOPES DE SÁ, 2010).

A Ética, para Eduardo C. B. Bittar é: O poder de deliberar e decidir qual a melhor ou mais oportuna, ou mais adequada forma de conduzir a pró-pria personalidade em interação (familiar, grupal, social...) é uma liberdade da qual faz uso todo ser humano, a ética é a capacidade coligada a essa liberdade (BITTAR, 2002).

Portanto o homem que sabe lidar com a razão é livre. Então o próprio ser consciente passa a identificar e reconhecer atitudes como imorais nas socie-dades mais antigas, a partir de então surgiu a idéia de um conjunto de regras que devem ser seguidos para guiar de maneira “correta” qualquer sociedade, e isso tem nome de moralidade.

O que significa dizer que todos os padrões e regras que entendemos como ideais e nos sentimos pressionados a seguir, são criações do próprio homem.

Para o autor Bittar ainda distingue a ética, moral e direito como: Se a moral demanda que o sujeito uma atitude (solidariedade) seu estado de es-pírito, sua intenção e seu convencimento interiores devem estar direcionados no mesmo sentido vetorial das ações exteriores que realiza (intenção solidaria e não interesseira). É certo que a norma ética se constitui na mesma medida que a norma jurídica, de um comando de ordenação de orientação de conduta humana (dever-ser), tornando-se critério para averiguação da ação conforme ou desconforme, mas há que se notar esse diferencial. Se o direito demanda do sujeito uma atitude (não matar), se conforma a simples não-ocorrência do fato criminoso, não arguido a cerca volição (rivalidade). (BITTAR, 2002).

O que se pode concluir, mediante analise de Bittar é que existem vá-rias morais, ela não tem compromisso com a universalidade nem com o direito. Por vezes quando questionada, a moral se apresenta como direito de todos,

1 Fonte no site http://www.brasilescola.com/sociologia/o-que-etica.htm

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muito embora existam morais legítimas o que as torna um fenômeno particular, e que muitas vezes não são legais ou lícitas. (BITTAR, 2002).

Ao ponto que a ética, deve ser utilizada ao máximo por todos, qual-quer indivíduo de qualquer povo ou religião, pode ser vivida e demonstrada em uma atitude qualquer do cotidiano, a ética está relacionada para manter entre os humanos atitudes justas e aceitáveis.

É importante entender o que Bittar fundamenta em sua obra que a ética é, sempre foi e será sempre um conceito relativo, já que o justo e o injusto só podem ser definidos a partir de uma concepção pessoal ou geral sobre o que é certo ou er-rado. E mesmo esses são relativos, o que nos remete ao fato de que, sob um ângulo a ética e a filosofia estão profundamente relacionadas. (BITTAR, 2002).

E apesar de sua relatividade ela é considerada a ciência da conduta humana e em sentido amplo, tem sido diagnosticada como a ciência da conduta humana perante os seus semelhantes.

Fica claro assim, que a teoria ética, não foi feita para esmagar a liber-dade, mas sim auxiliar com flexibilidade a formação da consciência ética,

já que a prática de atitudes éticas é o objetivo final, a teoria é apenas um acessório em relação ao principal. Todos precisam ter espaço para divagar diante de um assunto com tantas influencias. Além dos alicerces culturais, a ética considera a tradição e os usos e costumes.

Sobre consciência ética, Antônio Lopes de Sá em sua obra “Ética Pro-fissional” afirma que: A consciência resulta da relação do homem consigo mes-mo, ou seja, é fruto da conexão entre as capacidades do ego e as energias espiri-tuais, responsáveis pela nossa vida.. A consciência ética, portanto, é esse estado decorrente de mente e espírito através do qual não só aceitamos modelos para a conduta, como efetivamos julgamentos próprios; ou ainda, nos condicionamos, mentalmente, para a realização dos fatos inspirados na conduta sadia para com os nossos semelhantes em geral e os de nosso grupo em particular e também reali-zamos críticas a tais condicionamentos. (LOPES DE SÁ, 2010).

Em outra analise pelo autor Nalini: Também não é verdade que a Ética seja parcela da Filosofia especulativa, elaborada a cientificamente e sem preo-cupação com a realidade moral humana. E ainda que as questões éticas tenham sido sempre estudadas pelos filósofos, hoje elas adquiriram autonomia científi-ca. ( NALINI,2009).

E por fim devemos citar a virtude, de acordo com Bittar baseado na obra de Aristóteles “Ética a Nicômaco” pegar os dados a ética seria entre ou-tros elementos, a virtude, e somente cultivando as virtudes que se obtém o real desenvolvimento humano. Cultivar as virtudes é o meio por excelência de cres-cimento pessoal. A virtude está atada a qualidade do ser e ela se manifesta de várias maneiras através de sentimentos bons, do exercício de respeitar o próxi-

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mo em todas as esferas e na prática dos atos morais. (BITTAR, 2002)No que diz respeito a conduta humana, principalmente em sociedade,

a ética tem um papel direcionador da vontade, regularidade e fiscalização. Fi-xando um esquema de vigilância de uns para com os outros, em que uma pessoa sente-se moralmente atingida caso a outra tome atitudes antiéticas para com quem quer que seja. O ponto central do estudo da ética é a grandiosidade do estudo da conduta humana, mais do que o comportamento em si, mas a forma de responder a todas as questões inerentes do convívio em sociedade.

Todas as profissões desempenham um papel social, variando na forma de conduta e em seu prestígio de acordo com a natureza dos serviços prestados em relação a necessidade.

Ética no trabalho é uma preocupação constante para o profissional opera-dor ou não de direito, mesmo quando não há um código específico ou uma conduta regulamentadora. O bom senso, o senso comum, o modelo padrão e/ou costumeiro é empregado para tentar identificar, quais os comportamentos são aceitáveis ou não.

Independente do tempo vivido, antigamente ou época atual, a ordem estabelece organização e segundo o dicionário Houaiss, a ordem legal é o: “es-tado de serenidade, de tranquilidade pública decorrente da consonância com as leis e os preceitos que regulam uma coletividade”. (HOUAISS, 2012).

A carreira jurídica traz consigo a característica da busca pelo corre-to, tanto no que tange a vida pessoal quanto a profissional daquele que opera o direito. Para tanto se definiu um conjunto de regras que regem os caminhos e as atividades do profissional de Direito, este chama-se Deontologia forense. Esse regramento específico é absolutamente necessário diante da quantidade de interesses do coletivo em cheque que a carreira jurídica traz consigo.

A luz do ensinamento de Eduardo C. B. Bittar: Esses comportamen-tos regrados vêm expressos em legislação que regulamenta a profissão, ou em códigos éticos, ou em regimentos internos, ou em portarias, regulamentos e circulares ou ate mesmo em texto constitucional. O que se encontra implícito nos princípios deontológicos é explicitado por meio de comandos prescritivos da conduta profissional jurídica. ( BITTAR, 2002).

No caso do profissional de direito, além do Código de Ética existem órgãos munidos de poder e do dever de manter a ordem e o respeito no mundo jurídico, normalmente se constituem em grupos e possuem poder sancionário. Isso ocorre porque a justiça deve ser o fim se toda atividade jurídica. Deve-se sempre lembrar que o operador do direito tem em suas mãos poderes relaciona-dos a todos os direitos básicos do ser humano inclusive o da liberdade.

Por isso da advocacia espera-se que seja o canal capaz de conferir a toda a população conhecimento e acesso aos seus próprios direitos ad-quiridos no nascimento. O primeiro dever ético dessa classe é zelar pelas

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necessidades especiais, deixando de lado o individualismo e lutando pelo exercício da cidadania do país. Passando para o próximo dever, encontra-mos a fidelidade ao cliente, a consciência de estar sempre focado em defen-der os interesses que patrocina.

Nessa cadeia todos devem estar cientes de seus papéis, exercendo as-sim o compromisso com a honestidade em todas as relações e motivando o melhor acordo entre as partes.

O Tribunal de Ética tem estado presente, garantindo a dignidade da profissão e fiscalizando a sobriedade da conduta dos advogados inscritos na ordem, inclusive com relação a publicidade.

O advogado não necessita ser podado, de tudo que lhe possa inclusive favorecer, mas deve sim, exercer um compromisso real e profundo com a ho-nestidade nas relações sejam elas litigiosas ou não, e prestar serviço de maneira conciliatória, estimulando o melhor acordo entre as partes.

Diante de todos os preceitos éticos supracitados, fica claro que a o ser-viço do profissional de direito não pode ser oferecido de maneira mercantil como os demais. Mesmo com todas as exigências inerentes a profissão, segundo o blog Exame da Ordem o Brasil2 forma 10 advogados por hora, 243 por dia, 88.695 por ano; como se destacar dentre todos esses nem expor seu conhecimento de maneira mercantilista? Como utilizar as ferramentas do marketing jurídico sem infringir os mandamentos éticos e as regras ditadas pelo Código de Ética?

É fato que o mercado atual exige uma relação mais densa entre os se-tores de marketing e direito, apesar da aparente distância entre os dois, no cená-rio de constante mutação que envolve as perspectivas futuras torna-se essencial a imersão da palavra inovação em praticamente todas as áreas.

Os profissionais não podem manter-se estáticos enquanto os clientes vão mudando em ritmo acelerado, cada vez mais o tempo é precioso e as pesso-as buscam soluções eficientes.

Destarte para Rodrigo Bertozzi: O seu cliente não é mais o mesmo e quer um advogado pró-negócio. Chega de fechar-se em soluções fáceis como, por exemplo, utilizar a palavra Não. Não pode, não é possível, a lei não permite, não tenho como ajudá-lo ou a responder determinada questão. E num piscar de olhos o cliente começa a pensar em buscar uma nova banca. (BERTOZZI, 2008).

No momento atual aquele que optar pela carreira jurídica terá um tipo de marketing específico e não menos importante que garantirá o posicionamen-to do profissional.

Um dos elementos de grande valia dentro do conceito de marketing pelo autor Kotler, é que o marketing de relacionamento é baseado na premissa de que os clientes importantes precisam receber atenção contínua. ( KOTLER, 1998).

2 Site http://www.portalexamedeordem.com.br/blog/

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Alguns fatores analisados por Kotler, dizem que os princípios da ven-da pessoal e da negociação são descritos e orientados para a transação, com propósito de ajudar o vendedor a fechar uma venda específica com um cliente, em muitos casos a empresa não está preocupada em fechar uma venda, ela está interessada em conquistar um cliente específico para atendê-los durante muito tempo. ( KOTLER, 1998).

A publicidade e a propaganda, são partes da estratégia de marketing, são os mecanismos para o cliente saber que determinado serviço existe, onde procurá-lo e porque escolher determinada marca. Elas tornaram possível um consumo estável, através do estímulo e motivação da venda, não deixando de ser necessários os fatores principais, qualidade do produto e facilidade para o consumidor.

Sendo assim, a publicidade e propaganda são vitais para todo e qual-quer mercado, se ligam indissociavelmente ao conjunto de operações executa-das por qualquer empresário, e em todo ato que envolve processos de comercia-lização de produtos e serviços. Porém elas não se confundem com Marketing Jurídico. E aqui encontramos o ponto crucial desde artigo.

O marketing jurídico é um assunto incrivelmente interessante e pouco enfatizado durante o curso educacional padrão, e mesmo entre os profissionais da área. No entanto atualmente, é a principal ferramenta capaz de manter o advogado em condições de disputar o mercado. A intenção é chegar a fórmula ideal para atrair e manter clientes, desenvolver ao máximo seus relacionamentos perante os novos fatores tecnológicos inerentes ao mercado jurídico contemporâneo.

O autor Rodrigo Bertozzi esclarece que o Marketing Jurídico é levar pessoas (empresas, pessoas físicas ou sindicatos) que estão com um problema específico a conhecerem, gostarem e confiarem em você e na sua equipe. (BER-TOZZI, 2008).

Neste território, criatividade e inovação são tão importantes quanto a pró-pria capacidade de trabalho burocrático, pois quando falamos em marketing jurídi-co não se trata apenas de comunicação, a matéria deve estar impregnada em todos os envolvidos, em cada lugar do escritório, em cada caneta usada. O conjunto de ferramentas é tão abrangente que passa a ser a orientação na direção na estratégia, sendo assim é preciso viver essa realidade e ela precisa atingir a todos. Desde o colaborador, passando por todos dentro do escritório e finalmente ao cliente.

O marketing jurídico aumenta de tamanho sem precedentes, não interessando se o escritório é novo ou antigo, moderno ou tradicionalista, pois isso não tem haver com experiência e sim com o fato de aderir e com-preender um novo conhecimento para viver em um novo ambiente extrema-mente competitivo.

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Estamos vivendo uma nova fase na advocacia, e mesmo os profis-sionais mais antigos devem atualizar-se. A zona de conforto não pode ser uma assassina de oportunidades, é preciso agir como agente transformador num país em construção.

Mediante os comentários do autor Mamede: O mercado jurídico amadureceu, tornou-se mais que competitivo: é altamente qualitativo em sua imaculada seleção natural. O futuro pertence aos profissionais que souberem alinharem-se com a gestão do conhecimento, de pessoas, financeiro, processos ao marketing jurídico. Acabou o amadorismo na advocacia. (MAMEDE, 201

Advogados competitivos devem ser perspicazes em adotar novas interpretações da lei, devem deixar de lado a lógica sabida de como agir em determinado caso e criar um método novo. Segundo o Rodrigo Bertozzi, The economist: A inovação é reconhecida como o ingrediente em si mais importante em qualquer economia. Inovar é a resposta aos seus anseios mais profundos na busca pelo equilíbrio da carreira e do escritório em longo prazo. Sem olhar para o futuro o Direito tende a retroagir e, assim, impedir que a imaginação e as ideias sejam o verdadeiro motor das mudanças. (BERTOZZI, 2008).

É preciso entender que o marketing jurídico nada tem de ofensivo ao Código de Ética, é diferente de publicidade e propaganda, para atingir os obje-tivos do mesmo mais de 95% do processo é estratégico.

O profissional da advocacia deve utilizar dos meios conforme ale-ga Mamede: A Ordem dos advogados do Brasil, não vedou ao advogado o direito de anunciar-se como profissional, oferecendo seus serviços. Tomou o cuidado, porém, de regulá-lo, definindo balizas cujo cumprimento é obrigató-rio. Lamentavelmente, essas balizas têm sido reiteradamente desprezadas e a resposta da OAB não se mostra à altura. Isto é muito ruim, pois é preferível não definir normas rígidas para que sejam descumpridas; melhor seria defi-nir normas que estipulem o que será exigido. Afinal, o Direito se desmerece sempre que normas não são voluntariamente cumpridas, nem coercitivamente aplicadas. (MAMEDE, 201

Sendo assim, a estratégia na advocacia hoje em dia está totalmente ligada a maneira de agir em relação ao mercado e consiste em um conjunto de ferramentas e ações que sendo devidamente aplicadas contribuem para o suces-so das empresas em geral.

Aqui duas citações geniais sobre estratégia, Ozires Silva em prefácio na obra de Carlos Alberto Júlio: Nada substitui a estratégia. Porém não é fácil elaborá-la e executá-la. Daí a importância de que seja direta e simples, comi-nada em função do ambiente no qual se vive e das condições que podem somar para que os sonhos se realizem. (CARLOS ALBERTO JÚLIO, 2005).

E na mesma obra, o próprio autor: Estratégia é o caminho mais rá-

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pido para alcançar seus objetivos (...) Acredite: pior que uma estratégia rasa é não ter estratégia. Pior que uma estratégia simplificada é não parar para pensar o negócio e discutir seu futuro, sua concorrência, suas publicidades e novos produtos, clientes e mercados. Pior do que uma estratégia que não seja a mais defensível tecnicamente é navegar sem bússola. (CARLOS AL-BERTO JÚLIO, 2005).

O planejamento é a estrutura do conceito da estratégia, ele direciona o futuro com as escolhas feitas no presente. É imprescindível ter equilíbrio, sa-bendo usar a experiência passada e as tendências futuras para posicionar-se em uma perspectiva global, a frente do seu tempo. Para Todeschini3o pensamento estratégico é antever situações e solucionar problemas antes mesmo que acon-teçam, pensando em todas as possibilidades e agindo pró - ativamente (agir no presente, pensando no futuro), sempre.

Para o autor Cobra o planejamento estratégico é definido “como a criação de condições para que as organizações decidam rapidamente diante de oportunidades e ameaças, otimizando as vantagens competitivas em relação ao ambiente concorrencial em que atuam”. (COBRA, 1989).

Neste Sentido,Fischmann e Almeida: [...] o planejamento estratégico é uma técnica administrativa que através da análise do ambiente de uma organiza-ção, cria a consciência das suas oportunidades e ameaças dos seus pontos fortes e fracos para o cumprimento da sua missão e através desta consciência, estabelece o propósito de direção que a organização deverá seguir para aproveitar as oportu-nidades e evitar riscos.( FISCHMANN, A. A., ALMEIDA, M. I. R., 199

Assim uma estratégia pode manter-se em diversas linhas, em diversas características específicas, mantendo-a em seu foco, para alcançar o objetivo traçado.

Conforme entendimento de Oliveira: O escopo do planejamento pode ser definido como o desenvolvimento de processos, técnicas e atitudes adminis-trativas, as quais proporcionam uma situação viável de avaliar as implicações futuras de decisões presentes em função dos objetivos empresariais que facili-tarão a tomada de decisão no futuro, de modo mais rápido, coerente e eficaz. (OLIVEIRA, 2002).

A autora Lara Selem, afirmando que o profissional de qualquer área que não participar do processo evolutivo na inovação, aquele que não oferece novos serviços e criar meios para ter uma relação acentuada com seu cliente obviamente passará por processos de permanecer no mesmo lugar, sem ter uma evolução. (SELEM, 2008).

Ainda, Lara Selem proclama que: Á medida que uma empresa cresce em tamanho e complexidade cresce também o leque de decisões e ações, forço-

3 Site Todeschini http://www.todeschini.com.br

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samente tomadas ou executadas diariamente, que têm relevância estratégica e de longo prazo. A partir de determinado ponto, somente um plano estratégico pode permitir analisar e avaliar corretamente estas decisões e ações. (SELEM, 2008).

Segmentação é a nova forma de conquistar, nesse mercado cheio de opções desconexas, é preciso posicionar a sua marca e definir qual a sua espe-cialidade para então poder investir tudo nisso. E ser realmente diferente naquilo que tem seu foco.

A intenção aqui é sempre manter um comportamento rápido, concor-rente e eficaz. Já que, como cita a autora Lara Selem, o profissional de qual-quer área que não participar do processo evolutivo na inovação, aquele que não oferece novos serviços e criar meios para ter uma relação acentuada com seu cliente obviamente passará por processos de permanecer no mesmo lugar, sem ter uma evolução.

É fato que os cursos de direito deveriam passar noções gerais, mes-mo que fossem optativas para os profissionais de direito que pretendem dirigir seus escritórios, ou mesmo aos empresários estudantes de direito para que saibam como unir o mundo das regras jurídicas com um planejamento empresarial eficaz.

Na era em que estamos vivendo, a expertise jurídica não é mais sufi-ciente. Para que os escritórios continuem tendo padrões de atendimento e qua-lidade aceitáveis, deve-se adotar uma rotina e prática empresarial, sendo gerido e supervisionado de acordo com a complexibilidade em que está envolto um es-critório de advocacia, é essencial saber negociar, empreender, manter a ordem, motivar a sua equipe, advogar e estudar sempre ampliando sempre seu campo de visão e interpretando sempre seu meio.

Esse esquema de fluxo empresarial é interessante para todos. Para os sócios e também associados, pois surge a oportunidade de novos profissionais desenvolverem essas habilidades gerais.

Em uma pesquisa apresentada na obra Estratégia na Advocacia de Lara Selem, 50 advogados e diretores reuniram-se para definir quais são as habilidades de gerenciamento e empresarias que um advogado completo deve adquirir ao longo da carreira, concluíram que são 58 os quesitos essenciais para um bom profissional.

Com a análise destes dados pode-se dizer que afasta-se do direito a subjetividade no passado considerada “inerente a carreira”. Acredita-se que com prudência nas escolhas e estratégia com novos basilares de gestão o profissional identifica rapidamente os anseios do cliente e se antecipa aos fatores decisivos.

Com tudo isso, ao reconhecer o fato de que passamos por uma revo-lução o advogado precisa criar o seu futuro, eliminar o improviso, acabar com o senso comum de que para ser advoga basta advogar, dominar a tecnologia, trabalhar bem a marca pessoal, e principalmente desmitificar o real conceito do marketing jurídico e aprofundar-se no tema para destacar-se.

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Hoje em dia querer estar à frente do mercado em que compete é uma questão de escolha. Pretendo com este trabalho, que os advogados qualificados analisem sua postura empresarial, publicitária, gerencial, financeira, organiza-cional e em todas as outras 53 habilidades consideradas básicas para um profis-sional reconhecido e completo.

Para regulamentar a prática dos atos relativos ao comportamento ético exigido pelo direito, a Ordem dos Advogados do Brasil possui o Código de Éti-ca e Disciplina que veio para nortear a conduta do advogado de um modo geral, tratando sobre várias questões e delineando as formas de fazer publicidade sem infringir as normas éticas cabíveis.

No texto da inviolabilidade no exercício da advocacia de Mamede, o au-tor descreve a importância do advogado na sociedade à luz da Constituição Federal: O artigo 133 da Constituição da República, “o advogado é indispensável à admi-nistração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. O fato de tratar-se de norma constitucional impres-siona certo que a eleição de qualquer tema ou questão para constar do corpo da Lei Fundamental revela um reconhecimento de sua relevância na organização própria do pacto político e econômica do País. Portanto, a advocacia é considerada função própria do pacto político. O advogado é fundamental para o Estado Democrático de Direito, incluindo aí a defesa da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como do pluralis-mo político. É o profissional que desempenha papel indispensável para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que objetiva desenvolver-se, erradicando a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, além de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (MAMEDE, 201

Diante do exposto há necessidade de ressaltar que o Código de Ética e Disciplina para atuação dos Advogados e profissionais da área jurídica com os imperativos de conduta deve nortear a ética do marketing, e foi postulado pela Lei nº 8.906, de 4 de Julho de 1994.

3. ÉTICA DO MARKETING NA ADVOCACIA

Todas as profissões com seus valores sociais, vão se entrelaçando para que o ciclo seja completo. A advocacia em particular engloba um papel social muito extenso e complexo. Cheio de é uma atividade que exige amor e dedicação. Moldando toda a sua volta, a um papel de defensor da coletividade deve viver um profissional de direito, honrando sempre seu compromisso com a coletividade.

Comportamentos éticos, valores sociais da profissão e sucesso, são indissociáveis. Existe na advocacia uma característica de luta. Historicamente,

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o advogado tem um papel privilegiado. É o instrumentalizador dos direitos que foram conquistados pelos pilares das revoluções humanas, pessoas que dedi-caram as vidas a defender a cidadania, a ordem jurídica e fundamentalmente a dignidade da pessoa humana.

Através do advogado as pessoas conseguem pleitear suas garantias. E muitas vezes é do advogado o papel de mostrar para seu cliente quais são os seus direitos. E essa é uma parte complexa da advocacia, pois o cliente está em uma posição extremamente vulnerável, qualquer erro do advogado seja por descuido ou má fé pode ser fatal na causa.

A palavra advogado vem do latim advocatus. Segundo o dicionário Houaiss , define-se advogado, como a pessoa habilitada a prestar assistência profissional em assunto jurídico, defendendo judicial ou extrajudicialmente os interesses do cliente, aquele que intercede, que medeia, mediador, intercessor, indivíduo que patrocina ou protege alguém ou uma causa, patrono, defensor. (HOUAISS, 2009). Segundo o autor Mamede: [...] o advogado, assume o dever de parcialidade pois é patrono dos partes. Ele transforma o pedido em pretensão, a resistência em defesa – para lembrarmos a genial frase de Carnelutti. O Juiz tem ao contrário, o dever da imparcialidade. O advogado é o dinamizador da Justiça. Propondo as causas, ele arma a lide, deduzindo o interesse individual, coram iudice. Ele desenvolve a facultas agendi e põe ao Juiz que deve pronun-ciar a norma agendi, em plano superposto ao individualismo.( MAMEDE, 201

Por isso, aquele que decidir exercer essa função, tem obrigação de es-tar sempre lutando pelo melhor, guerreando por seus clientes com as suas armas (conhecimento e palavras), o profissional deve almejar e viver a causa como se sua fosse. O zelo e o amor são essenciais no sucesso de um advogado.

É essencial respeitar a história do Direito e entender que ele vive em constante evolução direcionando a gama de anseios da sociedade, formando padrões que vão orientar a Justiça do Brasil.

Naquele que acreditamos ser o modelo ideal de convivência, todas as pes-soas e profissionais tem como princípios valores e comportamentos éticos, que não estão necessariamente descritos em uma lei, e nem sancionados de maneira nenhuma, simplesmente agem em consonância com o correto pela própria consciência.

Atualmente o ser humano está condicionado a algum tipo de punição para respeitar as regras. Mesmo em condomínios, são aplicadas multas para que haja respeito às normas impostas. O advogado tem ainda em seu papel social a sabedoria de fazer sempre algo além daquilo que é necessário, deve sair da esfera de conforto e estar sempre preocupado em fazer mais, pelos seus clientes, por si mesmo, pela sua carreira, escritório e sociedade em geral.

Espera-se do advogado que tenha um comportamento modelo com atitudes corretas frente a sociedade e seus clientes criando uma justiça mais digna.

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A moral é estrutura basilar nesse aspecto, tendo em vista que conside-ra-se moral a atitude que foi tomada pela crença no correto, a moral está ligada a cultura. É diferente do conceito de legalidade, quando a pessoa toma uma ação por medo da sanção.

Fiquem claros aqui os conceitos de moralidade e legalidade que são temas discutidos na história da sociedade. O assunto trata-se de um clássico problema da distinção entre moral e direito, que é geralmente considerado como problema preliminar de qualquer filosofia do direito.

Como a moralidade e um conceito relativo, A Ordem dos Advogados do Brasil veio literalmente para manter a ordem.

Segundo Mamede, em sua Obra A Advocacia e a Ordem dos advoga-dos do Brasil: A natureza jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil é, sem dúvida, uma questão tormentosa, predominando sua compreensão como au-tarquia corporativa, instituída e regida por lei federal. É portanto, uma pessoa jurídica de Direito Público Interno, instituída por lei e com caráter público, a quem incumbe a prestação de um serviço , público específico, como anotado no artigo 44, caput, do Estatuto. Porém, por expressa previsão legal, é ente que não mantém com a Administração Pública – por qualquer de seus órgãos – uma relação direta, isto é, vínculo funcional ou hierárquico (artigo 44, inciso 1, do EAOAB). Essa independência das estruturas estatais leva a Ordem para uma posição sui generis, próxima de uma associação civil, cuja regência é da com-petência de seus associados; mas tais associações, bem o sabemos, são pessoas jurídicas de Direito Privado, e não é adequado afirmar que a Ordem é meramen-te uma associação civil. (MAMEDE, 201

A Ordem nos dias atuais, é a expressão do cumprimento de deveres, do exercício da função social da advocacia e a defesa da cidadania. Segundo o artigo 44 do Estatuto: Art. 44. Desempenha funções de entidade da classe, gerenciando a categoria dos advogados, e, simultaneamente, desempenha um papel institucional dentro espectro político pátrio.

Pela Lei n 8.906/94, República transfere à Ordem dos Advogados do Brasil o poder de polícia no âmbito administrativo. Podendo fiscalizar todos àqueles que estão inscritos em seus quadros, aceitando submeter-se as regras inerentes.

A idéia aqui não é e nem deve ser confundida com dominação de in-divíduos, mas sim legislar para que seja garantida da vontade de todos. Afinal, estamos falando de um estado democrático de Direito não faria sentido se o poder disciplinar acabasse por expressar a preferência de um sob todos. Cada membro da sociedade é importante nesse sentido.

Para garantir a disciplina, o legislador definiu para os inscritos na OAB, quatro tipos de sanção: censura, suspensão, exclusão e multa. Todas essas só po-

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dem ser aplicadas depois da conclusão do processo administrativa, onde deve ter sido observado o direito a ampla defesa. A Ordem decide e tem poder de punição.

O profissional necessita conhecimento para saber utilizar o marketing jurídico dentro dos limites éticos como o caminho mais curto para atingir os objetivos de qualquer advogado. Salientando sempre as imposições da Ordem nesse aspecto.

Porém a maneira de utilizar é um ponto complexo do estudo. O advo-gado não deve utilizar a mídia como seu canal de publicidade.

Levando em consideração a sua função social, e a sua moral, o advoga-do não pode se misturar com esse tipo de propaganda, além disso só o fato de ser membro da Ordem obriga o profissional a preservar a advocacia, o que significa que o advogado não pode confundir a sua atividade com nenhuma outra. O ad-vogado não pode divulgar seu escritório junto com outro comércio por exemplo.

Note-se que a lei não impede que o advogado exerça outras atividades desde que condizentes com a ética, mas a lei vigora sobre a divulgação delas de maneira confusa ou promíscua. Isso não pode acontecer. O advogado não pode se valer de outra função para divulgar seu escritório, ressaltado no art. 31 do Código de Ética, inciso II: Artigo 31, inciso II, do Código de Ética impede a inserção do nome do advogado em anuncio relativo a outras atividades não advocatícias, faça delas parte ou não.

Sabe-se que os meios de comunicação podem, de uma hora para ou-tra, tornar um profissional do direito uma celebridade. Mas, para tanto, é pre-ciso que o Advogado procure orientação, junto a “experts” no assunto, pois o caráter social dessa profissão não permite que qualquer tipo de exposição seja realizado.

Não é vedado ao advogado oferecer o seu serviço e se anunciar como profissional, desde que seja feito com descrição, sem características de mercantilis-mo, e com finalidade estritamente informativa. No caso concreto caberá ao Tribunal de Ética decidir o que está discreto e moderado, o que pode e o que não. Mas está claro, que o advogado deve destacar-se de outras maneiras que não a mídia.

O mais importante desse estudo é ter sempre em foco o compromisso com o cliente, rigidez nos procedimentos internos e valorização da boa técnica jurídica, tornando-se referência na mediação de conflitos no âmbito extraju-dicial viabilizando uma solução mais célere, econômica e vantajosa às partes.

Ao advogado cabe estabelecer a harmonia e a defesa da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. Fazendo-se uma analogia, o profissional do direito pode ser considerado o tijolo mais forte, refratário às chuvas e tempestades.

É essencial que tenha vontade de fazer a diferença nesse mundo, para assim mirar a justiça como alvo principal e não desistir, por mais difícil que possa parecer.

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Para obter seu espaço no campo de trabalho o advogado necessita utilizar de artifícios para ser conhecido. Neste contexto, usa-se de algumas fer-ramentas e, uma delas é o marketing aplicado com ética na advocacia.

Foi possível entender que a publicidade de advogados ou escritórios possui uma política, deve respeitar à limites e princípios delineados e estabele-cidos pela OAB, e não é antiética, muito menos ilícita.

Porém, resta saber quais são esses limites, a OAB deixa lacunas em seu texto, por exemplo na parte em que diz que o advogado deve anunciar seus servi-ços com “discrição e moderação”, essas expressões são absolutamente interpreta-tivas. Discrição e moderação são conceitos subjetivos e nada específicos e ainda variam de acordo com o que cada um possui como parâmetro ou valor cultural.

Para tanto se faz necessária a analise jurisprudencial, identificando o que o TED – Tribunal de Ética e Disciplina, considera discreto e moderado à luz de cada caso em tela.

Como a gama de meios de divulgação não é muito ampla para os ad-vogados, utilizar das ideias e compartilhá-las através de palestras, informativos, conversas com redes de contatos e outros meios lícitos, são fundamentais.

O momento é a Era da Informação, em 2012 estamos historicamente no período em que a informação viaja rápido, segmentada e é a chave, a solução para várias questões e conflitos.

Informação não se confunde com divulgação. Mas precisam andar juntas. Para realizar uma divulgação, obviamente deve-se ter cuidado com os conteúdos sugeridos, com o tipo de texto, com a veracidade e além disso todas as informações devem ser descritas por parte dos advogados.

Assim, para manter uma ética profissional dentro dos parâmetros es-tabelecidos pelos entes regulatórios, é preciso desenvolvimento de estratégias para alcançar resultados com o propósito em contribuir para o bem-estar da sociedade, permitindo que cada vez mais as pessoas saibam a que profissional procurar, e tenham confiança para fazê-lo.

A ética é um compromisso com valores duradouros e deontologia fixa dos deveres e responsabilidades requeridos por um determinado ambiente pro-fissional e pode refletir evolução e novas prioridades.

Se não houver interrogações sobre como é posta em prática a ética na profissão se não houver um exercício, definha-se, morre e esquece-se que ela existe. Muitas vezes, os próprios profissionais, sonegam a um bem tão precioso como é a ética, no relacionamento com os outros.

A intenção deste trabalho é mostrar para o novo advogado a impor-tância de saber se colocar no mercado, a importância do marketing jurídico, a importância de conhecer as ferramentas para conseguir montar desde cedo uma estratégia que torne possível a consolidação do seu escritório ou sua carreira.

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Sendo considerado assim, não apenas um advogado de sucesso, mas um profissional atual, moderno, dinâmico, administrador, ético e publicitário. Mesmo diante da concorrência, sempre requisitado por ser completo.

As novas trilhas que o direito vem tomando em relação ao mercado como um todo evidencia um cenário em que a ética, o direito e o marketing andam de mãos dadas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O profissional do direito destaca-se pelo compromisso com o cliente, na sua rigidez nos procedimentos internos e valorização da boa técnica jurídica, tornando-se referência na mediação de conflitos no âmbito extrajudicial viabili-zando uma solução mais célere, econômica e vantajosa às partes.

Sua função social é inquestionável frente à necessidade de estabelecer a harmonia e a defesa da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito. Fazendo-se uma analogia, o profissional do direito pode ser considerado o tijolo mais forte, refratário às chuvas e tempestades.

É essencial que o advogado tenha vontade de fazer a diferença nesse mundo, para assim mirar a justiça como alvo principal e não desistir, por mais difícil que possa parecer.

Para obter seu espaço no campo de trabalho o advogado necessita utilizar de artifícios para ser conhecido. Neste contexto, usa-se de algumas fer-ramentas e, uma delas é o marketing aplicado com ética na advocacia.

E a grande questão desse estudo encontra-se desse paradoxo. O mun-do está cada dia mais competitivo e o profissional de qualquer área, inclusive Direito, necessita mostrar ao mercado que possui um diferencial.

O primeiro passo é entender que a publicidade de advogados ou es-critórios possui uma política, deve respeitar à limites e princípios delineados e estabelecidos pela OAB, e não é antiética, muito menos ilícita.

Como a gama de meios de divulgação não é muito ampla para os ad-vogados, utilizar das ideias e compartilhá-las através de palestras, informativos, conversas com redes de contatos e outros meios lícitos, são fundamentais.

Assim, para manter uma ética profissional dentro dos parâmetros es-tabelecidos pelos entes regulatórios, é preciso desenvolvimento de estratégias para alcançar resultados com o propósito em contribuir para o bem-estar da sociedade, permitindo que cada vez mais as pessoas saibam a que profissional procurar, e tenham confiança para fazê-lo.

A ética é um compromisso com valores duradouros e deontologia fixa dos deveres e responsabilidades requeridos por um determinado ambiente pro-fissional e pode refletir evolução e novas prioridades.

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Se não houver interrogações sobre como é posta em prática a ética na profissão se não houver um exercício, definha-se, morre e esquece-se que ela existe. Muitas vezes, os próprios profissionais, sonegam a um bem tão precioso como é a ética, no relacionamento com os outros.

Para tanto, o advogado deve construir desde o começo da carreira uma conduta a frente da defesa do cidadão civil, frente à administração. E desde sempre saber como constituir uma marca forte e competitiva no mercado.

A intenção deste trabalho, é mostrar para o novo advogado a impor-tância de saber se colocar no mercado, a importância do marketing jurídico, a importância de conhecer as ferramentas para conseguir montar desde cedo uma estratégia que torne possível a consolidação do seu escritório ou sua carreira, sempre com ética. O mundo espera comportamentos do século XXI, em que a ética, o direito e o marketing andam de mãos dadas.

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EFEITOS TEMPORAIS DA SENTENÇA REVISIONAL E EXONERATÓRIADE ALIMENTOS

TIME EFFECTS OF REVISIONAL AND EXONERATORY ALIMONY DECREE

carolinE Scholl

Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITI-BA. Atualmente cursa o 8º período.

camila gil marquEz brESolin brESSanElli

Atualmente é professora universitária e Chefe do Departamento de Di-reito Privado no Curso de Direito do Unicuritiba - Centro Univeristário de Curitiba. É Mestre em Direitos Humanos e Democracia, pela UFPR - Universidade Federal do Paraná, tendo como linha de pesquisa, Ci-dadania e Inclusão Social. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos e Direito Civil.

RESUMO

A obrigação alimentar é assunto de grande relevância na seara jurí-dica, pois visa garantir o direito à sobrevivência e à dignidade da pessoa hu-mana, neste âmbito, a análise dos efeitos retroativos da sentença é de suma importância, visto que poderá trazer consequências irreversíveis tanto para o alimentante quanto para o alimentado. A controvérsia em relação aos efeitos da sentença revisional e exoneratória de alimentos orbita em torno do artigo 13, § 2º, da Lei no. 5.478/1968, vez que prevê que, em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação. Todavia, verifica-se que em determinados situações, a aplicação deste dispositivo de lei importará em violação ao princí-pio da irrepetibilidade dos alimentos. Isto ocorrerá nas situações em que o valor da pensão alimentícia for diminuído, através de ação revisional, ou exonerado, uma vez que, a retroação significaria o dever de devolver os alimentos pagos a maior. Assim sendo, serão expostos e analisados os principais posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais sobre o tema.

Palavras-chave: alimentos, efeitos da sentença, retroativos, artigo 13 §2o da Lei de Alimentos, irretroatividade.

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ABSTRACT

Alimony is a subject of large relevance in the legal area, because aims on assuring the person rights to survivor and dignity, in this context, the decree’s retroactive effects analysis is of great importance, since it may bring irreversible consequences not only for the supporter but also for the supported. The contro-versy regarding the alimony revisional and exoneratory decree leans on the article 13, 2nd paragraph of the law number 5.478/1968, hence it predicts that, in any case, the fixed alimony should retroact to the citation date. However, it is verified that, in some situations, this law device usage will lead to the violation of the alimony unrepeatability. This will occur in situations which the support amount is decreased, through revisional action, or exonerated, once the retroaction would lead to obligation of returning the overpaid alimony. Therefore, the main doctrinal and jurisprudential positions regarding the subject will be exposed and analyzed.

Keywords: alimony/child support, decree effects, retroactive, article 13 §2o of Ali-mony Statute, non-retroactive.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Sentenças de Alimentos. 2.1 Dos Efeitos da Sentença de Alimentos. 2.2 Das Ações Revisionais e Exoneratórias de Alimentos. 2.3 Causas de Exoneração da Obrigação Alimentar. 2.4 Da Retroatividade da Sentença e da Irrepetibilidade dos Alimentos. 3. Considerações Finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

No âmbito do Direito de Família os alimentos se mostram um tema de suma importância, vez que visam garantir o direito à sobrevivência daqueles que os recebem, prova disso é que a dívida alimentar constitui uma exceção à vedação de prisão civil, conforme previsto no artigo 5o, LXVII, da Constituição da República. Em se tratando de obrigações alimentares, a análise dos efeitos retroativos da sentença é um tema relevante, uma vez que a possibilidade de retroação poderá gerar diversas consequências tanto ao alimentante quanto ao alimentado.

Levando-se em conta que de um lado o artigo 13, §2o, da Lei de Ali-mentos prevê que em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação, e de outro o princípio da irrepetibilidade dos alimentos veda a possibi-lidade de devolução de valores pagos com este intuito. Sendo assim, verifica-se que se houver respeito ao artigo de lei poderão ser geradas situações que des-respeitam a irrepetibilidade dos alimentos.

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Isto porque, nos casos em que a verba alimentar é reduzida ou o paga-dor é exonerado da obrigação, a aplicação da retroatividade da sentença importa em infringência ao princípio da irrestituibilidade dos alimentos ou incentivo ao inadimplemento, enquanto a não aplicação pode causar danos ao alimentante, que necessitava da tutela jurisdicional desde o momento em que propôs a ação.

Lado outro, quando se trata de majoração dos alimentos, o mais vanta-joso ao alimentante seria a retroação a data da citação ou até mesmo da propositu-ra da ação, visto que também necessitava da tutela jurisdicional imediata.

O presente tema é de grande relevância no âmbito do direito de fa-mília, na medida em que causa inúmeros reflexos na prestação dos alimentos. Discutir a aplicabilidade ou não do artigo 13, § 2º, da Lei no. 5.478/1968 em determinados casos, demonstrará os efeitos no que tange a irrepetibilidade, os direitos do alimentante de não perecer ou ser condenado à prisão civil e os do alimentado de ter garantida a prestação alimentícia.

Ressalte-se que em que pese a Lei de Alimentos tenha previsto a obri-gatoriedade da retroatividade dos efeitos da sentença de alimentos que fixa ali-mentos, há grande discussão na doutrina e jurisprudência a cerca da abrangên-cia deste dispositivo, principalmente no que concerne os alimentos provisórios, provisionais e as ações revisionais de alimentos, isto também motiva o estudo do presente tema.

2. SENTENÇAS DE ALIMENTOS

Inicialmente, indispensável analisar as características das sentenças. Observemos a definição de sentença apresentada por Pontes de Miranda (2002, p. 37): “A sentença é a prestação jurisdicional, objeto da relação jurídica pro-cessual, cuja estrutura já conhecemos. Põe fim, normalmente, à relação”.

Verifica-se que antes da alteração do Código de Processo Civil apre-sentada pela Lei n.o 11.232/2005, considerava-se sentença como ato processual, através do qual o juiz coloca fim ao processo, julgando ou não o mérito da causa.

Atualmente, com a nova redação do artigo 162, §1o, do Código de Processo Civil, observa-se uma conceituação mais taxativa, em que a sentença é ato processual que implica em alguma das situações elencadas pelos artigos 267 e 269, do Código de Processo Civil, ou seja, resolução do mérito ou extin-ção do processo sem resolução do mérito. No entanto, tem-se que a alteração não trouxe substanciais alterações no que tange a definição de sentença.

Sendo assim, as sentenças podem ser terminativas ou definitivas, as primeiras ocorrem se observadas irregularidades processuais conforme previs-tas no artigo 267, do Código de Processo Civil, como o indeferimento da peti-ção inicial ou a desídia do autor em promover os atos processuais necessários.

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Sendo assim, a sentença terminativa não gera coisa julgada material, tão so-mente formal, tornando possível nova propositura da demanda.

Lado outro, as sentenças definitivas resolvem o mérito da causa, par-cial ou totalmente, apresentando às partes a prestação jurisdicional desejada, e, por conseguinte, põem fim ao processo, fazendo coisa julgada material e for-mal, o que obsta nova análise judicial da lide, visto que o mérito foi esgotado na prestação jurisdicional.

As sentenças também podem ser classificadas conforme sua eficácia, sendo que, para tal análise, observar-se-á a classificação quinária apresentada por Pontes de Miranda (2002, p. 39-49), em que as sentenças podem ser decla-rativas, constitutivas, condenatórias, mandamentais e executórias.

Inicialmente, a sentença declarativa é verificada quando a preten-são da parte é a sentença em si, requer tão somente a declaração de algo, sem qualquer outra eficácia a ser pleiteada. Ocorre, verbi gratia, quando se busca a declaração de autenticidade de um documento, ou, o reconhecimento de pater-nidade (ARENHART; MARINONI, 2008, p. 427).

Em razão disso, a eficácia das sentenças declarativas é ex tunc, ou seja, seus efeitos retroagem a data em que a relação jurídica se formou ou em que o fato aconteceu.

A sentença constitutiva tem eficácia mais ampla, visa, além de uma declaração, uma alteração no mundo jurídico, criando, alterando ou extinguindo relações jurídicas (ASSIS, 2004, p. 60-62). Por exemplo, a anulação de negócio jurídico que possuía objeto impossível e a dissolução do vínculo conjugal.

Em geral, as sentenças constitutivas possuem efeitos ex nunc, pro-duzindo efeitos para o futuro, após a prolação da sentença, todavia, em alguns casos, é possível reconhecer os efeitos ex tunc desta sentença, como ocorre nas ações de anulação de crédito, em que as quantias são restituídas e se passa como se a cessão de crédito jamais tivesse acontecido (MIRANDA, 2002, p. 46).

Por sua vez, a sentença condenatória possui as mesmas características da constitutiva, exceto pelos seus efeitos, uma vez que gerará um titulo execu-tório judicial, que, então, dará início à fase de cumprimento da sentença e fim ao processo de conhecimento.

Sendo assim, a sentença condenatória não tem efeitos imediatos, ao contrário do que ocorre com a sentença mandamental, que é um ato do juiz e não um ato que em que ordena que a parte faça, como ocorre com a sentença condenatória.

A sentença mandamental tem como objeto um ato que somente pode ser praticado pelo juiz, através de um mandato, como por exemplo, o arresto de bens para garantir a satisfação de um direito.

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Lado outro, a sentença executiva, que também possui eficácia imedia-ta, possibilita a execução sem que haja a necessidade de processo de execução, são, por exemplo, as ações de despejo e de imissão na posse.

Observe-se que as sentenças declaratórias e constitutivas são sen-tenças satisfativas, ou seja, independem de execução para que tenham efi-cácia, já as sentenças mandamentais e executivas dependem de execução, enquanto a sentença condenatória possui apenas um objetivo, o pagamento de quantia certa.

Assim, apresentada uma análise perfunctória da sentença e suas clas-sificações, proceder-se-á a delimitação das características da sentença de ali-mentos, uma vez que é este o objeto do presente estudo.

Em regra, tem-se que o tipo de ação define a natureza da sentença, sen-do que no âmbito da ação de alimentos podemos afirmar que a sentença tem uma multiplicidade de carga de eficácia, sem, no entanto, ser contraditória, vejamos.

A sentença que fixa alimentos possui caráter declaratório, pois de-clara a própria obrigação, a relação jurídica que dá ensejo ao dever de ali-mentos, possui, também, caráter constitutivo, visto que constitui o pagamento da pensão alimentícia e fixa o seu quantum. Por outro lado, a sentença de alimentos ainda é agasalhada pelo caráter condenatório, uma vez que resolve uma pretensão satisfativa, condenando o alimentante a adimplir o quantum fixado (CAHALI, 2009, p. 59

Observe-se, que, em se tratando de ação ordinária de alimentos em que não exista prova pré-constituída do vínculo que gera o dever alimentar, a sentença terá caráter constitutivo, pois criará a relação jurídica e, também cará-ter declaratório, nos casos em que se reconheça a paternidade ou a maternidade (RIZZARDO, 2011, p. 745-746). Enquanto que nas ações que tramitam sob o rito especial, ou seja, que possuem prova pré-constituída da obrigação alimen-tar, preponderará o caráter condenatório da sentença de alimentos.

Ainda, as sentenças que exoneram o alimentante do dever de pagar os alimentos ou modificam o quantum da prestação (revisionais) se revestem de cará-ter eminentemente constitutivo, pois irão extinguir ou modificar a relação jurídica.

Todavia, mesmo estas sentenças permanecem com uma combinação de cargas de eficácia, ou seja, do caráter constitutivo com o declaratório, uma vez que também reconhece a impossibilidade de exercício da pretensão mate-rial enquanto subsistirem as causas que importam na minoração, majoração ou extinção do quantum (PORTO, 2012).

Sendo assim, vencida a breve análise sobre as características e eficá-cia das sentenças, principalmente em relação às sentenças de alimentos, pro-ceder-se-á ao estudo dos seus efeitos, para, então, colocá-los em cotejo com o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.

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2.1 DOS EFEITOS DA SENTENÇA DE ALIMENTOS

A ação de alimentos poderá seguir sob o rito ordinário ou especial. Isto porque, diante da já verificada natureza peculiar da prestação alimentar, que se destinada a subsistência de quem não pode provê-la por si só, o legis-lador estabeleceu através da Lei de Alimentos um rito especial, mais célere e simplificado para a ação de alimentos, inclusive afastando algumas regras pro-cessuais civis, com tal finalidade.

A Lei de Alimentos, todavia, prevê, em seu artigo 2o, que para o exer-cício da ação de alimentos pelo rito ordinário, é necessário que o autor possa provar sua condição de credor, ou seja, a relação jurídica com o réu, que enseje a prestação da obrigação.

Não havendo prova pré-constituída do vínculo do qual decorre o dever de alimentos, a ação deve ser ajuizada pelo rito ordinário, da mesma maneira, o autor da ação possui a faculdade de optar pelo referido rito. Caso se deseje cumular ações, tais como a ação de divórcio e guarda dos filhos menores, isto poderá ser feito, desde que observada a regra do §2o, do artigo 292, do Código de Processo Civil, que impõe a utilização do rito ordinário, enfrentando, desta feita, maior morosidade processual.

Seja qual for o rito, haverá a instrução probatória, em que as partes produzirão as mais diversas provas, documentais, testemunhais, depoimentos pessoais e até perícias, a fim de provar sua necessidade ou possibilidade e, no caso da ação sob o rito ordinário, a relação jurídica que gera o dever alimentar.

Superada a análise das provas, irá sobrevir sentença em que se julgará a procedência ou não dos pedidos formulados, tal sentença terá efeitos, que pode-rão ser ex nunc ou ex tunc. Se a sentença tiver efeitos futuros, apenas, é chamada de ex nunc, lado outro, caso seus efeitos retroajam a momentos anteriores a sua própria existência, caracterizar-se-ão os efeitos da sentença ex tunc.

A Lei de Alimentos (Lei n.o 5.478/1968) prevê em seu artigo 13, § 2º, que, em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação, assim sendo, de acordo com esta lei, as sentenças de alimentos sempre se revestiriam de efeitos ex tunc, a seguir, tal disposição será analisada com maior minúcia e confrontada com o princípio da irrestituibilidade dos alimentos.

As sentenças de alimentos sempre possuem eficácia imediata, jamais podem ter efeitos suspensivos, cosoante dispõe o inciso II, do artigo 520, do Código de Processo Civil. No mesmo sentido é a previsão do artigo 14, da Lei n.o 5.478/1968, sendo assim, de maneira excepcional, sempre que se interpuser recurso de apelação contra sentenças de alimentos, o recurso se revestirá tão somente de seu efeito devolutivo, e, jamais do suspensivo.

As apelações podem ser recebidas em seu efeito devolutivo, o que significa dizer que a matéria discutida em primeiro grau de jurisdição será nova-

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mente analisada pelo grau superior, em homenagem ao princípio constitucional do duplo grau de jurisdição.

O efeito suspensivo, por sua vez, tem o condão de impedir que a sen-tença produza seus efeitos, obstando que a sentença tenha eficácia imediata, o que é vedado no âmbito dos alimentos, conforme os dispositivos legais supra-mencionados.

Todavia, Arnaldo Rizzardo (2011, p. 746) leciona que, em se tratando de sentença que julga improcedente o pedido de alimentos, a apelação deve ser recebida em seu duplo efeito (devolutivo e suspensivo), assim, suspendendo-se a eficácia desta decisão, os alimentos provisórios continuam a ser pagos, a fim de beneficiar o alimentado, parte mais fraca da relação.

Isto porque o artigo 520, do Código de Processo Civil dispõe que não será recebida em seu efeito suspensivo a sentença que condenar à prestação de alimentos, sendo que quando julgado improcedente o pedido de alimentos, não haverá condenação para prestá-los.

Lado outro, Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery (2003, p. 885), consideram que também as decisões que majoram, minoram ou extin-guem o dever alimentar devem ser recebidas tão somente no efeito devolutivo, bem como que, em se tratando de ação com outro conteúdo além do alimentar, como o reconhecimento de paternidade ou o divórcio, tão somente a parte con-cernente aos alimentos não terá efeito devolutivo, enquanto o restante deverá ser recebido no duplo efeito.

Verifica-se, assim, que ainda não há entendimento pacificado na doutrina brasileira quanto à possibilidade de recebimento da apelação em seu duplo efeito, quando intentada contra sentença que não condenou ao pagamento de alimentos.

Superada, portanto, a análise dos efeitos da sentença de alimento, em relação ao recurso de apelação, analisar-se-á, por fim, a possibilidade de retroa-ção dos efeitos da sentença de alimentos, em se tratando de decisão que minora, majora ou exonera o quantum alimentar, ante à vedação ao princípio da repeti-ção de valores pagos a título de alimentos.

2.2 DAS AÇÕES REVISIONAIS E EXONERATÓRIAS DE ALIMENTOS

A sentença que fixa alimentos leva em conta a necessidade de quem os recebe e a possibilidade de quem os presta, sendo que esta situação é aferida no mo-mento da fixação, observando, ainda, a proporcionalidade entre aquelas variantes.

Todavia, justamente pelo fato de que o dever alimentar se prolon-ga no tempo, o valor da prestação alimentar está sempre sujeito a alterações no equilíbrio do trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade, assim

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sendo, verificando-se a alteração de algum desses fatores, ou seja, a quebra da proporcionalidade, haverá a possibilidade de alteração no valor da prestação, o que será feito através de ações revisionais ou, até mesmo, exoneratórias.

O artigo 1.699, do Código Civil, garante a possibilidade de majora-ção, minoração e exoneração do quantum alimentício, a qualquer tempo, desde que devidamente comprovada a modificação da situação econômica do alimen-tante ou do alimentando. Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 756) ressaltam que a alteração na condição financeira das partes não pode ter sido por elas ensejadas, caso for, não é apta para causar revisão do quantum.

Importante salientar que não são apenas os alimentos definitivos que podem sofrer revisão, os alimentos provisionais e provisórios também são pas-síveis de alteração no curso da demanda (BRUM, 2001, p. 106), sempre que observadas as condições acima expostas. Em regra, a pensão alimentícia fixada em caráter provisório perdura até sobrevir sentença fixando seu quantum em definitivo, entretanto, tanto os alimentos provisórios, quanto os provisionais podem ser alterados, aqueles com espeque no §1o do artigo 13, da Lei de Ali-mentos, e estes com base no artigo 807, do Código de Processo Civil.

A ação revisional pode ser intentada tanto pelo alimentado quanto pelo alimentante. Em qualquer caso, não basta a mera alegação de alteração na situação econômica de uma, ou ambas as partes, é preciso produzir prova robusta dos fatos que levaram a diminuição da capacidade financeira de quem presta a obrigação ou a ampliação da necessidade de quem recebe os alimentos.

Tratando-se de pleito revisional impulsionado pelo alimentado, ou seja, a fim de majorar o valor da obrigação, deverá restar comprovado o au-mento de suas necessidades, bem como a ampliação da capacidade econômica do alimentante. Não basta a comprovação, tão somente, do aumento da fortuna do alimentante, é preciso que, em contrapartida, o alimentado também tenha o custo para sua mantença aumentado, uma vez que a modificação do quantum deve observar a proporcionalidade.

De outra banda, quando o alimentante buscar a redução do valor da prestação alimentar, este terá o dever de demonstrar a diminuição de sua capa-cidade financeira, o que será feito através de documentos que comprovem seus rendimentos mensais, como, por exemplo, Carteira de Trabalho, comprovantes de declaração de Imposto de Renda, folha de pagamento, entre outros.

Também é possível que o alimentante demonstre a constituição de nova família e o nascimento de outros filhos, que gerem, consequentemente, o dever de sustento, diminuindo sua capacidade financeira. Neste ponto, impor-tante sublinhar que esta alegação, por si só, não é apta a ensejar a minoração do valor da prestação alimentícia, é preciso demonstrar, também a diminuição das necessidades do alimentado, caso contrário, estaria se admitindo a transferência

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da obrigação alimentar de um filho para outro(DIAS, 2010, p. 593).Quanto ao procedimento da ação revisional, observa-se o mesmo

previsto para ação de alimentos, ou seja, o procedimento especial da Lei n.º 5.478/1968, inclusive com a possibilidade de fixação de alimentos provisó-rios e com a ocorrência de audiência una, conforme previsto no artigo 13, da Lei de Alimentos.

A concessão de medida liminar, em sede de ação revisional de ali-mentos, é possível para reduzir ou majorar o quantum, todavia, é preciso frisar que tal concessão terá caráter excepcional, ocorrendo somente quando restar, de maneira absolutamente clara, comprovado que os alimentos prestados estão em desacordo com a realidade econômica das partes.

Assim, observa-se que ao contrário do que ocorre na ação de alimen-tos, na ação revisional não há a obrigação de fixação de alimentos provisórios, uma vez que estes só serão deferidos quando a análise do caso concreto de-monstrar sua essencialidade e, ainda assim, a mudança no valor não deve ser acentuada em demasia, uma vez que a real necessidade e possibilidade das par-tes ainda não foi submetida ao crivo do contraditório (CAHALI, 2009, p. 676).

Entretanto, em se tratando de ação exoneratória de alimentos, o ma-gistrado deve redobrar as cautelas ao analisar a possibilidade exoneração limi-nar, sendo que caso verifique que o deferimento da medida liminar pode colocar em risco a parte mais fraca da relação, qual seja, o alimentado, a exoneração não poderá ser concedida. Tal vedação preservará o credor da surpresa de um dia para o outro deixar de contar com valores essenciais à sua subsistência.

Neste sentido é o posicionamento sumulado pelo Superior Tribunal de Justiça (Súmula n.o 358), no que tange à exoneração de alimentos decorrente da maioridade do credor, ao afirmar que a concessão da exoneração só se dará mediante contraditório, sendo que tal entendimento também pode ser aplicada para as demais questões envolvendo a exoneração dos alimentos.

Em relação à competência para processar e julgar a ação revisional, esta também deve seguir a regra de privilégio de foro do alimentando, prevista no artigo 100, inciso II, do Código de Processo Civil, devendo, assim, ser pro-posta na comarca onde resida ou tenha domicílio o credor dos alimentos. Ou-trossim, não é necessário que tramite na mesma vara onde foi processada a ação de alimentos, uma vez que não existe conexão entre as causas, pois o pedido e a causa de pedir não são os mesmos (FARIAS; ROSENVALD, p. 757).

Sendo que, em qualquer caso, ou seja, revisão de alimentos provi-sórios, provisionais ou definitivos, o pedido deverá ser processado em autos apartados da ação principal.

Ademais, insta salientar, novamente, quanto aos efeitos da revelia, a lição de Maria Berenice Dias (2010, p. 591), uma vez que, em que pese a previsão

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do artigo 7o, da Lei de Alimentos de que a ausência do réu importa em revelia e confissão quanto à matéria de fato, tal presunção não pode ser aplicada em ações revisionais que buscam a redução ou exoneração do encargo alimentar. Isto por-que a Lei de Alimentos possui caráter protetivo em favor do credor, assim sendo, os efeitos da revelia devem ocorrer em seu favor e não ao contrário.

2.3 CAUSAS DE EXONERAÇÃO DA OBRIGAÇÃO ALIMENTAR

Diversas são as causas que podem gerar a exoneração de alimentos, em geral, a principal delas é a cessação da necessidade do alimentando em receber alimentos, usualmente isto ocorre quando ele constitui nova família ou se insere no mercado de trabalho, auferindo renda suficiente para garantir seu próprio sustento. Entretanto, a superveniência destes fatos, por si só, não autoriza a exoneração do dever de prestar alimentos, é necessário provar que estes acontecimentos acarretaram a possibilidade do alimentado em prover ao seu próprio sustento.

D’outro lado, verifica-se que o desemprego do alimentante jamais poderá justificar a extinção do dever alimentar, visto que, em que pese a di-minuição do poder aquisitivo do prestador de alimentos, as necessidades do alimentado subsistem, não podendo ser deixado à mercê.

Evidentemente que o dever de prestar alimentos não pode prejudicar o próprio sustento do alimentante, assim sendo, uma solução razoável é a dimi-nuição do quantum, jamais a exoneração, e, quando possível, a determinação de que os alimentos incidam sobre os valores recebidos pelo alimentante em decorrência do rompimento da relação empregatícia, tais como o seguro desem-prego e demais verbas trabalhistas.

A exoneração do dever alimentar pode ocorrer quando a guarda dos filhos for invertida, uma vez que o novo guardião atenderá as necessidades in natura do alimentado, enquanto o outro, o antigo guardião, prestará os paga-mentos in pecúnia.

Em relação à pensão alimentícia devida em decorrência do dever mú-tuo de assistência, em razão do fim do casamento ou da união estável, caso o ex-cônjuge, o qual é credor dos alimentos, constitua novo casamento ou união estável, deve-se exonerá-lo o dever de prestar alimentos, nos termos do que prevê artigo 1.708, do Código Civil.

É de suma importância ressaltar que o comportamento afetivo e sexu-al do alimentado não poderá dar causa a exoneração, isto porque, com o fim da união, cessa o dever recíproco de fidelidade, não havendo qualquer impedimen-to para o exercício de sua liberdade afetiva e sexual (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 76 A exoneração do dever alimentar se dá quando o cônjuge passa a ter

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uma união estável ou contrai matrimônio, apenas.Ainda, é possível que ocorra a exoneração dos alimentos, mas jamais

de maneira automáticas, quando o alimentado apresentar comportamento indig-no para com o alimentante, nos termos do parágrafo único do artigo 1.708, do Código Civil.

Segundo Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho (2011, p. 700), não há uma descrição clara do que caracteriza o comportamento indigno, sen-do que linha gerais, poderia se dizer que uma agressão física ou moral, bem como o cometimento de crime contra o alimentante podem ser considerados como tal.

É possível, ainda, afirmar que o conceito de indignidade é trazido pelo Código Civil, no âmbito de direito das sucessões, sendo assim, é possível apli-car as causas de indignidade elencadas para este caso, ou seja, as previstas no artigo 1.814, do Código Civil, para justificar a exoneração do dever alimentar.

Em suma, verifica-se que o quantum da obrigação alimentícia e a pró-pria obrigação estão sempre sujeitos a alterações, conforme a real situação das partes demonstrar necessário. Os instrumentos adequados para tais modifica-ções são as ações revisionais e exoneratórias, que observando o trinômio neces-sidade/possibilidade/proporcionalidade culminarão em sentenças, majorando, minorando, exonerando ou mantendo o dever alimentar.

Observa-se, então, que a grande questão envolvendo as ações revisio-nais e exoneratórias, e que é tema do presente estudo, diz respeito aos efeitos das sentenças, nestes casos. Haja vista que, conforme já explicitado, tais ações são regidas pela Lei n.o 5.478/1968, conforme dispõe seu artigo 13, sendo que o §2o deste artigo prevê que em qualquer caso, os alimentos fixados retroagem à data da citação.

Desta feita, em que pese a disposição literal do artigo de lei supracita-do, vislumbra-se sua incompatibilidade com uma das principais características dos alimentos, qual seja, a sua irrepetibilidade.

Isto porque caso o quantum do dever alimentar seja minorado e o ali-mentante tenha permanecido durante todo o processo arcando com a o valor a maior, aplicando-se tal regra, de que a fixação dos alimentos retroage à data da citação, o alimentado deveria devolver os valores, colidindo frontalmente com a irrestituibilidade dos alimentos.

Ainda, tal situação também poderia incentivar a desídia do devedor de alimentos, o qual, ciente da irrepetibilidade das verbas de caráter alimentar, dei-xa de pagá-las, a fim de garantir que, em ocorrendo a diminuição ou exoneração de seu dever, não venha a perder os valores pagos no curso da ação revisional.

Por outro lado, tem-se que não aplicar a retroação dos alimentos à data da citação é uma legítima afronta ao dispositivo legal, bem como poderia prejudicar o alimentante, uma vez que, se reconhecida, após o contraditório, a

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sua impossibilidade de arcar com o valor dos alimentos no montante anterior-mente fixado, significa dizer que desde o momento em que ajuizou a ação revi-sional não possuía condições de adimplir a obrigação, justificando a retroação à data da citação.

Diante de tais questões, demonstra-se imprescindível o próximo capí-tulo deste trabalho monográfico, que se prestará a enfrentar as situações acima explanadas, através da análise da eficácia das sentenças de alimentos, principal-mente daquelas que modificam ou exoneram o dever alimentar, bem como do princípio da irrestituibilidade dos alimentos.

2.4 DA RETROATIVIDADE DA SENTENÇA E DA IRREPETIBILIDADE DOS ALIMENTOS

A Lei de Alimentos (Lei n.o 5.478/1968), conforme anteriormente as-sinalado, prevê que, em qualquer caso, os alimentos fixados deverão retroagir à data da citação, prima facie, tal disposição não apresenta maiores questiona-mentos, uma vez que, em linhas gerais, o momento da citação é o em que o réu toma conhecimento da ação e de seu dever, sendo inclusive justo que o alimen-tante preste os alimentos desde a citação, em benefício do alimentado.

Todavia, ao analisar as hipóteses em que há fixação provisória dos ali-mentos e a sentença pode determinar alimentos definitivos a maior ou a menor, bem como as sentenças prolatadas em ações revisionais ou exoneratórias é que a previsão legal esbarra no princípio da irrepetibilidade dos alimentos.

Observando-se o rito especial previsto na Lei n.o 5.478/1968, tem-se que o magistrado deve, no primeiro despacho da ação de alimentos, fixar alimen-tos provisórios, ainda que estes não tenham sido pleiteados na petição inicial. Os alimentos provisórios podem ser revistos em qualquer fase processual, sendo revistos e diminuídos ou majorados, conforme a prova apresentada no processo.

Fixando-se novo quantum aos alimentos provisórios, anulam-se os ante-riores e passam a valer, desde que fixados, os novos valores. Não havendo modifi-cação no valor dos alimentos provisórios estes perdurarão até a prolação de senten-ça definitiva, sendo que, então, serão substituídos pelos alimentos definitivos.

Seguindo-se a regra do §2o, do artigo 13, da Lei de Alimentos, os alimentos definitivos deverão retroagir à data da citação, o que significaria que caso fossem maiores que os provisórios, o alimentante deveria complementar os valores pagos e, sendo fixados a menor em relação aos provisórios, o alimen-tado deveria devolvê-los.

Inconcebível, entretanto, considerar possível que o alimentado resti-tua valores ao alimentante, uma vez que, justamente em razão do caráter ime-diato dos alimentos, eles não estão sujeitos à repetição, pois visam garantir a subsistência do alimentado no mês em que foram prestados.

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Da mesma maneira ocorreria no caso em que a sentença minora o quantum do dever alimentar, em ação revisional, e quando livra o alimentante da obrigação de prestar a pensão alimentícia, em ações exoneratórias.

Como já dito, a obrigação de prestar alimentos se trata de uma relação jurídica continuativa, e, em razão disto, sujeita ao princípio do rebus sic standi-bus, segundo o qual, verificando-se alteração na situação das parte, ou seja, no caso dos alimentos, no trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade, é possível requer nova apreciação da situação fática a fim de adequar o valor da pensão alimentícia.

Assim sendo, caso o alimentante ajuíze ação revisional ou exoneratória e tenha seu pleito atendido, aplicando-se a regra prevista na Lei n.o 5.478/1968, a sentença deverá retroagir à data da citação, sendo que, então, o credor dos ali-mentos teria de devolver as prestações pagas a maior (no caso da revisão) ou as indevidas (em se tratando de exoneração), o que evidentemente seria uma situa-ção impossível, ante o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.

Diante desta tela, tendo em vista a flagrante incompatibilidade da pre-visão legal e do princípio da irrestituibilidade dos alimentos, doutrina e juris-prudência tendem a apresentar soluções.

O Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de autoria da Ministra Nancy Andrighi, publicado no Diário da Justiça no dia 21 de fevereiro de 2005, decidiu que em se tratando de sentença que fixa alimentos em montante inferior aos provisórios, esta deverá retroagir à data da citação, conforme previsto em lei. Todavia, considerou que a retroação alcançará tão somente as parcelas que ainda não tiverem sido pagas pelo alimentante, sendo que as quitadas conside-ram-se intocáveis, ante ao princípio da irrepetibilidade.

Na mesma linha de entendimento, mas tratando de ação exoneratória, em voto proferido pelo Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, negou--se provimento ao Recurso Especial manejado pelo alimentado que buscava o pagamento de parcelas devidas pelo alimentante e referentes ao período ocor-rido entre a sua citação sobre a ação de exoneração e a publicação da sentença que exonerou o devedor dos pagamentos.

Nesta decisão, o pleito recursal dirigido ao Superior Tribunal de Justiça foi indeferido, ao argumento de que uma vez suspensa a execução dos alimentos e, em sobrevindo decisão que exonera o pagamento dos ali-mentos, tais parcelas não são devidas, sem prejuízo do princípio da irrepe-tibilidade, portanto.

Da mesma maneira, entendeu a Ministra Nancy Andrighi, desta vez, em relação à revisão dos alimentos, ao julgar que caso a sentença de alimentos reduza o quantum anteriormente fixado, a decisão deverá retroagir à data da citação do alimentado, operando-se efeitos ex tunc. Ressalva, no entanto, que as

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parcelas pagas não serão afetadas pela retroação, mas, tão somente, as que ain-da não tiverem sido quitadas, a fim de resguardar o princípio da irrepetibilidade.

Desta opinião também partilha Yussef Said Cahali (2009, p. 685), uma vez que assevera:

Tratando-se de ação exoneratória ou de redução, os alimentos pagos até a sentença são irrepetíveis; quanto aos alimentos ou às diferenças não pagas pelo alimentante vitorioso, parece razoável e mesmo equi-tativo também reconhecer o efeito retroativo da sentença, para liberar o mesmo pagamento da pensão ou das diferenças pretéritas.Parece não ser justo impor ao devedor o pagamento de uma dívida que sabe não ser devida e que não vai ser reembolsável.

No entanto, este tipo de posicionamento é minoritário na doutrina, sen-do refutado por outros doutrinadores, ao argumento de que poderia atuar como um incentivador de inadimplemento para o devedor, o qual, diante da possibilida-de de ter sua tutela atendida e o valor da pensão minorada, e sabendo que, neste caso, só teria desconto no valor das parcelas impagas, deixaria de quitá-las, a fim de resguardar a possibilidade de receber eventuais diferenças de valores.

Tal entendimento incentivaria, ainda, a propositura de demandas revi-sionais por alimentários que estejam sofrendo processos de execução, a fim de tentarem, injustamente, suspender a execução durante o curso da ação revisional.

Neste sentido é o posicionamento de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 785), em sua obra conjunta, Direito das Famílias e Luiz Guilherme Marinoni, juntamente com Sérgio Cruz Arenhart (2008, p. 283-284), que consideram que em se tratando de sentença que minora o valor dos alimentos, não é cabível a retroação.

Igualmente se posiciona Maria Berenice Dias (2010, p. 583) ao afirmar:

Admitir tal possibilidade daria ensejo, inclusive, à suspensão do pro-cesso de execução até o trânsito em julgado da demanda revisional, sob o fundamento de que o encargo alimentar pode ser reduzido ou excluído. Assim, não há como conceder efeito retroativo à redução ou exclusão do dever de pagar alimentos. O resultado seria desastroso. Além de incentivar a mora, induziria a todos que são executados a buscarem a via judicial, propondo ação de redução ou exclusão do encargo, tão só para verem a execução suspensa.

Desta feita, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça acima mencionado, não parece ser o mais adequado, ainda que traga uma solução razoá-

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vel, pode vir a redundar em incentivo ao inadimplemento das parcelas alimentares.Mais apuradas se mostram outras decisões, do próprio Superior Tri-

bunal de Justiça, que vetam a retroação da sentença de alimentos quando esta minorar os valores da prestação, ou extingui-la, nesta toada foi o entendimento exarado pelo Ministro Sidnei Beneti, que fazendo menção também há outras reiteradas decisões daquela Corte no mesmo sentido, afirmou que os efeitos da sentença que exonera o alimentante do pagamento da pensão alimentícia só se dão após ao trânsito em julgado e jamais retroagem à data da citação, em home-nagem ao princípio da irrepetibilidade dos alimentos.

No mesmo sentido, foi a decisão exarada pelo Ministro Aldir Passari-nho Junior, também do Superior Tribunal de Justiça, nos autos de Recurso Es-pecial n.o 513.645/SP, na qual asseverou que a retroação dos efeitos da sentença revisional de alimentos que reduz ou exonera o pagamento ofende o princípio da irrepetibilidade dos alimentos.

Assim sendo, verifica-se que, em se tratando de ação revisional de alimentos, as sentenças que minoram o quantum da prestação alimentícia ou que exoneram o devedor do pagamento não devem retroagir à data da citação e nem sequer atingir as parcelas impagas, a fim de evitar o incentivo ao inadim-plemento da prestação alimentar.

Evidentemente tal posicionamento vai de encontro com o que prevê a Lei de Alimentos (Lei n.o 5.478/1968) e, eventualmente, pode representar prejuízo ao devedor dos alimentos, uma vez que este necessitava da tutela juris-dicional desde o momento em que ajuizou a ação revisional.

Muito embora, seja possível considerar que se a situação do alimen-tante, ao pleitear a redução dos alimentos, fosse deveras periclitante, poderia ele pugnar a concessão liminar da redução dos alimentos, a fim de resguardar seus direitos, através de via judicial legítima, e evitando importar em prejuízo ao credor dos alimentos.

Frente ao princípio da irrepetibilidade, portanto, considerar o termo a quo (inicial) dos efeitos da sentença que reduz ou exonera o dever alimentar como sendo após sua prolação, tão somente, se mostra como a solução mais apurada para garantir a subsistência daqueles que não podem provê-la com seu próprio sustento, ou seja, os alimentados, e que, portanto, se demonstram como a parte mais frágil da relação jurídica.

Ademais, permitir que os alimentos fixados a menor retroagissem à data da citação, atingindo tão somente as parcelas não quitadas seria uma viola-ção ao princípio da igualdade, uma vez que somente os que deixaram de adim-plir seriam beneficiados pela retroação, inclusive, premiando a mora.

De outra banda, em relação às sentenças que majoram o valor da obri-gação alimentar não há óbice para que os seus efeitos retroajam à data da cita-

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ção do réu, isto porque, neste caso, obviamente não há falar em repetição dos valores prestados à titulo de alimentos (2011, p. 742).

Assim, majorada a pensão alimentícia em ação revisional, comple-tamente cabível a aplicação do artigo 13, §2o, da Lei n.o 5.478/1968, sendo que, então, poderá o credor dos alimentos executar os valores referentes às diferenças devidas naquele período (FARIAS; ROSEN-VALD, 2010, p. 758).Em que pese tal colocação possa parecer contraditória em relação ao anteriormente afirmado, não é. De fato, o credor dos alimentos nunca perde (MADALENO, 2011, p. 859), mas também não será prejudica-do o alimentante, uma vez que o novo valor será fixado de acordo com suas possibilidades.Ao deferir o pleito revisional, o magistrado analisará minuciosamen-te cada um dos componentes do trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade, a fim de comprovar a realidade fática das partes, sendo assim, restará comprovado a possibilidade do alimentante de arcar com o valor majorado.Verifica-se, portanto, que não haverá óbice para que o devedor preste os alimentos no valor dilatado desde o momento de sua citação, uma vez que sua situação econômica o permitia.Em suma, tem-se que, em que pese à existência de disposição legal obri-gando que os alimentos fixados retroajam a data da citação, a tendência doutrinária e jurisprudencial caminha no sentido de mitigar tal manda-mento, a fim de preservar a finalidade precípua dos alimentos, que é a de garantir o sustento daqueles que não podem provê-lo por si só.Desta feita, preservar-se-á os direitos do alimentado, sem, no entanto, onerar em demasia o alimentante.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho analisou a possibilidade de retroação da senten-ça que minora, majora ou exonera o dever de prestar alimentos, isto em cotejo com o artigo 13, §2o, da Lei de Alimentos e com o princípio da irrepetibilida-de das prestações alimentares.

Tendo em vista que as prestações alimentícias visam garantir as neces-sidades básicas dos que não podem provê-las por si só, mostra-se inimaginável a hipótese de que o valor dos alimentos poderiam estar sujeitos a devoluções.

Para tanto, analisou-se que os alimentos podem ser pleiteados de duas maneiras, através do rito ordinário ou do rito especial. Havendo prova pré-cons-tituída da relação de parentesco que enseja o dever alimentar, cabível é o rito ordinário, muito mais célere.

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Caso contrário, inexistindo tal prova pré-constituída, ou desejando o autor cumular pedidos incompatíveis com o rito especial, observar-se-á o rito ordinário, nos moldes do Código de Processo Civil.

Após esta breve análise processual do procedimento para o pedido de alimentos, verificou-se que as parcelas alimentares estão sempre sujeitas a alterações em seu quantum, uma vez que a obrigação de prestar alimentos se trata de uma relação jurídica continuativa.

Desta feita, sempre que houver alteração no trinômio necessidade/possibilidade/proporcionalidade é possível que uma das partes pleiteie a revisão dos alimentos, ou, até mesmo a exoneração.

Alterado o valor dos alimentos em ação revisional ou dispensado o de-ver de prestá-los, em ação exoneratória, surge o questionamento quanto aos efei-tos destas sentenças revisionais. Isto porque o artigo 13, §2o, da Lei n.o 5.478/1968 prevê que em qualquer caso os alimentos fixados retroagem à data da citação.

No entanto, a aplicação deste artigo nos casos de redução ou exone-ração da obrigação alimentar importa em flagrante desrespeito ao princípio da irrepetibilidade dos alimentos. Desta feita, doutrina e jurisprudência passaram a tentar encontrar um ponto de equilíbrio entre o dispositivo legal e o princípio da irrestituibilidade dos alimentos.

Verificou-se que parte da jurisprudência se posicionou no sentido de que os efeitos das sentença, nestes casos, retroagiriam, no entanto, não atingi-riam as parcelas ainda não quitadas, de maneira que não haveria infringência ao princípio. Todavia, tal posicionamento não foi aceito pela maior parte da doutrina, vez que poderia causar incentivo ao inadimplemento das prestações e violar o princípio da isonomia, beneficiando os maus pagadores.

Desta forma, outras decisões foram prolatadas no sentido de proibir a retroação dos efeitos da sentença de alimentos que minora ou exonera do pagamento da obrigação alimentar, tais decisões são as mais aceitas no âmbito doutrinário, pois garantem a irrepetibilidade dos alimentos e resguardam os di-reitos dos alimentados, em que pese, em arrepio da lei.

Mostrou-se também que em se tratando de majoração dos alimentos, a tendência jurisprudencial e doutrinária vai no sentido de permitir a retroação dos alimentos. Embora tal posicionamento pareça contraditório, pois é impres-cindível que o alimentante arque com seus deveres, a fim de não deixar à mercê o alimentado, que não pode prover sua subsistência por si próprio.

Sendo assim, em suma, tem-se que diante da antinomia entre o artigo 13, §2o, da Lei n.o 5.478/1968 e o princípio da irrepetibilidade dos alimentos, deve prevalecer este último. Os alimentos devem retroagir à data da citação so-mente quando forem majorados, a fim de garantir a aplicação do princípio que veda a restituição de parcelas alimentares.

Desta forma, garantir-se-á, também, o melhor interesse dos alimentados, que são a parte mais frágil da relação jurídica e que devem ser protegidos pelo direito.

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LIBERDADE SINDICAL E O SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO DOS TRABALHADORES

FREEDOM OF LABOR ASSOCIATION AND THE REPRESENTATIVES SYSTEM OF WORKERS

EliSa maria DE albuquErquE KornDorFEr

Acadêmica do curso de Direito – 8º termo / 4 º ano do Centro Universi-tário Curitiba - UNICURITIBA. Estagiária de Direito do Escritório de Advocacia De Paula Machado Advogados Associados.

miriam cipriani gomES

Possui Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Uni-versitário Curitiba (2008). Atualmente é professora de Direito do Tra-balho e Direito Processual do Trabalho da UNICURITIBA.

SUMÁRIO: Resumo. Abstract. 1. Introdução. 2. Direito Sindical. 3. Princípio da Liber-dade sindical. 3.1. Liberdade sindical no Brasil. 3.2. Liberdade sindical e a organização internacional do trabalho. 4. Sistema de representação dos trabalhadores. 4.1. Unicidade sindical. 4.2. Pluralidade sindical. 4.3. Unidade sindical. 4.4. Pluralidade x unicidade no sistema brasileiro. 4.5. Crítica. 5. Considerações finais. 6. Referências bibliográficas.

RESUMO

O sistema de representação dos trabalhadores no Brasil não assegura a liber-dade sindical, muito embora esta seja garantida pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 8º, e pela própria Organização Internacional do Trabalho, que disciplina acer-ca de tal liberdade em suas Convenções. O motivo pelo qual a liberdade sindical não é preservada no sistema de representação dos trabalhadores está no fato de que o país adota o sistema de unicidade sindical, que admite somente um sindicato de uma mesma categoria em uma base territorial, ou seja, há uma limitação da liberdade, configurando--se uma “falha” que só seria descaracterizada caso houvesse harmonia entre unicidade e pluralidade sindical.

Palavras-chave: Liberdade Sindical, Unicidade Sindical, Pluralidade Sindical, Organização Internacional do Trabalho e Representação Sindical.

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ABSTRACT

The system of labor representation in Brazil does not guarantee free-dom of association, even though this is guaranteed by the Constitution of 1988, in its Article 8, and by the International Labour Organization, which regulates about such freedom in its Conventions. The reason why freedom of association is not preserved in the system of worker representation lies in the fact that the country adopts the single union system, which admits only one syndicate of the same category on a same territorial basis, in other words, there is a limitation freedom by setting up a “failure” that would only be uncharacterized if there were harmony between unity and plurality union.

Keywords: Freedom of Association, Single Union System, Plurality Associa-tion, International Labour Organization and Representation of Association.

1. INTRODUÇÃO

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, dispõe que os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos. Junto ao direto à propriedade, à segurança, à resistência à opressão, o direito a li-berdade ocupa a lista dos direitos naturais. A liberdade integra um núcleo de prin-cípios de uma teoria da “cidadania” baseada nos valores da escolha individual.

Liberdade nada mais é do que a livre escolha, o que leva ao entendi-mento nítido de que, para que haja liberdade dentro do direito sindical, é neces-sário haver autonomia de escolha entre seus entes.

Em se tratando de direito sindical, a liberdade integra um papel fundamental, e encontra respaldo no artigo 8º da Constituição Federal, que permite a fundação de sindicatos sem a autorização estatal, salvo exceções, além da liberdade pessoal do individuo de filiar-se ou não a um sindicato e nele manter-se filiado.

O mesmo artigo da Magna Carta afirma ser “livre a associação sindi-cal”. Contudo, mesmo assegurando certa liberdade, seu inciso II veda a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de cate-goria profissional ou econômica, na mesma base territorial, nunca inferior que a área de um Município.

Diante deste quadro, o presente artigo pretende discutir a melhor for-ma de garantir a legitimidade do sistema de representação de trabalhadores, a qual encontra embasamento nos sistemas de unicidade e pluralidade sindical, esboçando os entendimentos da Organização Internacional do Trabalho em sua Convenção n. 87, da doutrina e da jurisdição brasileira.

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2. DIREITO SINDICAL

Direito Sindical nada mais é do que um segmento do Direito do Tra-balho, sendo que, diferentemente deste, não possui autonomia, muito embora detenha princípios e normas próprias.

Como bem explicita o autor Maurício Godinho Delgado (2005, p. 1277):

Engloba o Direito do Trabalho dois segmentos, um individual e um coletivo, cada um contando com regras, instituições, teorias, institutos e princípios próprios. O Direito Coletivo do Trabalho, por sua vez, regula as relações inerentes à chamada autonomia privada coletiva, isto é, relações entre organizações coletivas de empregados e empre-gadores e empregadores e/ou entre as organizações obreiras e empre-gadores diretamente, a par das demais relações surgidas na dinâmica da representação e atuação coletiva dos trabalhadores.

Desde seu surgimento, no século XIX, o direito coletivo tem recebido algumas formas de denominação. Este ramo já foi denominado Direito Indus-trial, Direito Operário e Direito Corporativo. Mas, com o passar do tempo, tal direito passou a receber duas denominações até hoje empregadas, o Direito Coletivo ou Direito Sindical (DELGADO, 2005, p. 1279).

Para Alice Monteiro de Barros, Direito Sindical: “constitui parte do Direito do Trabalho, devendo este ser considerado uma unidade harmônica que, dada a extensão, permite essa subdivisão” (BARROS, 2009, p. 1282)

Os sujeitos coletivos do direito do trabalho são os protagonistas das relações coletivas. São aqueles admitidos em cada ordenamento jurídicos, sendo que, no Brasil, são os sujeitos coletivos de trabalhadores: as categorias, repre-sentadas pelos sindicatos, pelas federações e pelas confederações. As centrais sindicais, muito embora atuem como coordenadoras de entidades sindicais, não podem ser consideradas sujeitos do direito coletivo por não estarem contempla-das na legislação como sendo, mas são um “terceiro elemento” e detém grande importância para a realidade sindical brasileira (NASCIMENTO, 2009, p. 6

Para Cláudio Rodrigues Morales, o sindicato pode ser definido da se-guinte forma: “organização social que objetiva defender os interesses trabalhis-tas e econômicos dos trabalhadores” (MORALES, 1999, p 43).

O sindicato detém um sistema único, dotado de autonomia e organiza-do por categoria profissional ou diferenciada, quando se trata de trabalhadores, ou por categoria econômica, quando se trata de empregadores.

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Sua função primordial é prezar pela defesa dos direitos e interesses da categoria que representa.

É uma pessoa jurídica de direito privado e é considerado um ente sindical de primeiro grau.

O artigo 513 da Consolidação das Leis do Trabalho expressa as prerro-gativas dos sindicatos, entre elas: representar, perante as autoridades administra-tivas e judiciais os interesses gerais da respectiva categoria ou profissional liberal; celebrar convenções coletivas de trabalho, colaboras com o Estado para o estudo de solução dos problemas relacionados a respectiva categoria ou profissional li-beral; impor contribuição aos seus representados, dentre outras (BRASIL, 201

É facultado aos sindicatos, quando forem pelo menos cinco deles e que representem a maioria absoluta de um grupo de atividades ou profissões liberais, similares ou conexas, organizarem-se em federação. Ou seja, a federa-ção é, basicamente, uma conjunção de pelo menos cinco sindicatos.

É, em conjunto com a confederação, uma entidade sindical de segun-do grau, muito embora nesse sistema não haja hierarquia.

Sua natureza jurídica, assim como a dos sindicatos, é pessoa física de direito privado e a elas só filiam-se sindicatos, nunca empregados ou empregadores.

Assim como a federação, a confederação se encontra no segundo grau do sistema de entidade sindical.

É uma união de no mínimo três confederações, como dispõe o artigo 535 da Consolidação das Leis do Trabalho. O mesmo artigo expressa que o local da sede das confederações deverá ser na Capital da República.

A celebração de convenções coletivas de trabalho por este ente sin-dical só será possível quando não existirem, simultaneamente, sindicatos ou federações representativas de uma determinada categoria.

As confederações detém uma função particular, que é a propositura de ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade.

Esse ente sindical somente pode filiar-se às federações, nunca a sindi-catos, empregados ou empregadores.

As centrais sindicais não são consideradas entes sindicais pelo fato de não estarem previstas na Consolidação das Leis do Trabalho e na Constituição Federal. Mas é valido ressaltar que estas são um importante grupo que luta pe-los interesses de várias categorias.

3. PRINCÍPIO DA LIBERDADE SINDICAL

A liberdade sindical é o mais importante dos preceitos do direito co-letivo. A partir dele surgem outras diretrizes, como a sindicalização livre, a autonomia sindical, dentre outros.

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Nas palavras de Mozart Victor Russomano: “a liberdade sindical pres-supõe a sindicalização livre, contra a sindicalização obrigatória; a autonomia sindical, contra o dirigismo sindical; a pluralidade sindical, contra a unicidade sindical” (1997, p. 65).

O maior traço da liberdade sindical é o fato de serem impedidas in-terferências estranhas. Este direito não está presente só no âmbito do Direito do Trabalho brasileiro, mas é garantido universalmente, consubstanciando-se em duas Convenções da OIT: a 87, que proíbe interferências governamentais e, a 98, que veda que os sindicatos de trabalhadores e empregadores interfiram entre si (MAGANO, 1993, p. 27).

A liberdade sindical pode ser individual ou coletiva, sendo que a pri-meira é relacionada a pessoa individual e a segunda aos grupos profissionais. Neste contexto, pode-se dizer que o sujeito tem o direito de constituir sindicato, o que pertine à liberdade coletiva e o de nele permanecer ou dele retirar-se, o que tange à liberdade individual. Como no Brasil existe a continuidade do cri-tério de unicidade sindical, há de se condicionar a permanência ao exercício de atividade ou profissão (MAGANO, 1993, p. 30).

Para o autor Mozart Victor Russomano: “se tomarmos a liberdade sindical no seu conceito mais amplo, necessariamente encontraremos, no fundo deste instituto, aqueles três ideias básicas, sem as quais não existe liberdade plena, nem para o sindicato, nem para os trabalhadores que nele encontram os pulmões da vida social” (1997, p. 66).

Esta liberdade visa garantir que os trabalhadores e empregadores constituam as organizações que julgarem convenientes mediante a condição de observância dos respectivos estatutos. Além disso, este mesmo princípio garan-te aos sujeitos o gozo de proteção adequada contra quaisquer atos de ingerência de umas em relação a outras. (MAGANO, 1993, p. 27).

Nas palavras de Octavio Bueno Magano (1993, p. 46):

A liberdade sindical implica necessariamente pressão junto ao Gover-no, no sentido de favorecer uma política de consumo, ao passo que o crescimento econômico requer, de modo imperioso, a adoção de uma política de poupança, destinada a financiar o mesmo crescimento.

Existem duas formas de liberdade sindical, a plena ou ilimitada e a restrita ou limitada.

A liberdade plena ou ilimitada garante aos entes sindicais total auto-nomia, e proporciona a eles direito de criar e administrar sindicatos sem que para isso devam ser inspecionados pelo Estado, porém ela é uma forma que não é adotada pelo Brasil.

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Já na liberdade restrita ou limitada os entes sindicais ficam condicio-nados a fatores objetivos de controle no que tange a criação e a administração de sindicatos. Esta restrição deve abranger todos, pois tem caráter objetivo.

No Brasil, a liberdade sindical não é plena, pois a Constituição Federal esti-pula limitações, assim como as leis infraconstitucionais, que promovem uma dificul-dade para a criação de uma entidade, delimitam a área de sua atuação, dentre outros.

3.1 LIBERDADE SINDICAL NO BRASIL

No Brasil, o Sindicato somente ingressou no constitucionalismo no ano de 1934, com a promulgação da Constituição Federal.

De acordo com Amauri Mascaro Nascimento, o modelo brasileiro atual é o semicorporativista, muito embora, na década de 1940, o modelo fosse o corporativista, em que o Estado sujeitava os sindicatos, retirando destes sua autonomia e implantou o sistema de unicidade sindical (2009, p. 405).

Com o passar do tempo, uma das mudanças mais significativas foi a legalização das Centrais Sindicais, com a Lei 11.648 de 2008, sendo que é ne-cessária a representatividade para a criação de uma organização sindical, sendo que, sem ela, uma entidade não pode ser uma Central Sindical (NASCIMEN-TO, 2009, p. 405).

A legislação trabalhista e sindical começou a ser elaborada na década de 1930, quando ainda prevaleciam princípios de marcantes traços individua-listas, com a maior parte da população vivendo no campo, diferente de hoje em dia, em que a maioria da população brasileira é urbana. Em 1940 havia uma busca pela solução de questões sociais, como a greve, a segurança do trabalho, a previdência social, dentre outros, já hoje em dia existe uma busca pelo ético, pelos valores sociais. O individualismo está superado e dá lugar a novas formas de coletivização e de socialização (SANTOS, 2005, p. 163).

Quando se trata de direito coletivo brasileiro atual, é necessário que este encontre amparo nos princípios da socialidade, da cooperação, da solida-riedade humana e em valores éticos.

Enoque Ribeiro dos Santos dispõe (2005, p. 167):

O Direito Coletivo do Trabalho para vencer os perçalos que se apre-sentam no mundo moderno e cumprir a sua missão histórica huma-nitária e de justiça social precisa revestir e implementar a teoria que podemos chamar do “esforço aliado”. Assim, os empresários, traba-lhadores e sindicatos, poderiam conseguir maiores e melhores resul-tados para todos, mediante um esforço cooperativo, que poderia ser engendrado por intermédio da negociação coletiva de trabalho e de

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seus instrumentos peculiares - acordo, convenção ou contrato coletivo de trabalho – dentro do qual cada uma das partes passaria a defender interesses uns dos outros.

Na década de 1980, a atuação sindical foi responsável não apenas pelo restabelecimento das negociações coletivas do trabalho como também pelo crescimento restabelecimento da democracia no país. Nos últimos anos, houve um notável desenvolvimento da negociação coletiva do trabalho, o que só prova que os sindicatos estão conduzindo bem as negociações coletivas de trabalho com os empresários (SANTOS, 2005, p. 17

Com o advento da Constituição Federal de 88 pode ser observado um aumento do número de sindicatos. Em 1987 eram 9.118 sindicatos no Brasil, em 2001, o número passou para 15.961 (BRASIL, 200

Muito embora exista esse aumento, não houve mudanças no critério de abrangência territorial. Grande parte deste crescimento de sindicatos no Bra-sil pode ser atribuído ao reconhecimento do direito de organização sindical no setor público, assegurado pela Constituição de 1998. Assim, várias associações de funcionários públicos foram transformadas em sindicatos, ao lado de outros que foram fundados após a Carta Magna de 88 (SANTOS, 2005. p. 173).

No Brasil, segundo a Fundação IBGE, ocorreu um aumento de 43% no nú-mero de Sindicatos sendo que o aumento da taxa de sindicalização foi menor, soman-do 27.3%. Estes dados só demonstra que há uma grande descoletivização no Brasil, mesmo que o número se sindicatos tenha aumentado (SANTOS, 2005, p. 174).

Para reverter o processo de descoletivização e de desinteresse do tra-balhador pelo sindicato e assim atingir o objetivo de fortalecimento dessas or-ganizações de trabalhadores é necessário que o país ratifique as Convenções da Organização Internacional do Trabalho, as quais ainda não o fez, como a n. 87, que trata da liberdade sindical, a n. 151, que prevê a garantia da negociação coletiva da administração pública e a n. 158 que dispõe contra a demissão imo-tivada, além da implementação efetiva na prática da Convenção n. 98 também da OIT (SANTOS, 2005, p. 175).

Na estrutura sindical externa brasileira pode ser observada uma pi-râmide, composta pelo sindicato, em sua base, em seu meio se encontra a fe-deração e em sua cúpula a confederação. As centrais sindicais não compõem o modelo corporativista, pois não se reconheceu os poderes inerentes às entidades sindicais. Com isso, observam-se que há na base do sistema um sindicato único, organizado por categoria profissional ou diferenciada, ou por uma categoria econômica, quando se trata de empregadores (DELGADO, 2005, p. 1335).

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3.2 LIBERDADE SINDICAL E A ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

A criação da Organização Internacional do Trabalho, também conhe-cida como OIT, em 1919, representou uma inovação do Direito Internacional e uma forma original de cooperação internacional (SUSSEKIND, 1998, p. 1

A OIT dá um relevo especial ao tema liberdade sindical e nele cen-traliza grandes esforços no sentido da contínua divulgação de seus princípios, que inspiram o desenvolvimento do sindicalismo democrático e o faz aprovando as Convenções e as Recomendações. Estas duas formas de instrumentos jurídi-cos se diferenciam pela aprovação na sua assembleia de votação e seus efeitos. Aquelas exigem um quórum de aprovação maior do que o das Recomendações, além de criarem obrigações para os Estados que as ratificam. Já estas são me-ramente pragmáticas, não dotadas de imperatividade, não sendo ratificáveis e valem como mera orientação que cada governo adotará ou não mediante instru-mentos internos de deus ordenamentos jurídicos (NASCIMENTO, 2009, p. 15

As Convenções Internacionais do Trabalho Fundamentais da OIT são as seguintes: A Convenção n. 87: liberação sindical (liberdade de associação) e pro-teção aos direitos do sindicato; a Convenção n. 98: direito de negociação coletiva; as Convenções n. 29 e n. 105: abolição do trabalho forçado; a Convenção n. 100: igualdade salarial entre homem e mulher; a Convenção n. 111: não discriminação no emprego; a Convenção n. 138: idade mínima para trabalhar; e a Convenção n. 182: piores formas de trabalho infantil. (VIDOTTI e GIORDANI, 2003, p. 156).

Dentre todas as Convenções supracitadas, a única que não foi ratifica-da pelo Brasil é a n. 87, tendo em vista a Unicidade Sindical, além da cobrança de Contribuição obrigatória, denominada Contribuição Sindical, ambos adota-dos pela Constituição brasileira e que não estão dispostas na Convenção n. 87.

De acordo com a Emenda Constitucional 45 de 2004, ao ser ratificada, a Convenção terá valor equivalente a de uma Emenda Constitucional.

A Convenção n. 87 da OIT adotada em 9 de julho de 1948 trata espe-cificamente sobre liberdade sindical e a proteção do direito sindical. É conside-rada a mais importante das convenções da OIT e foi ratificada por mais de 120 dos Estados-Membros da Organização, sendo que o Brasil não se insere neles, pois o país adota o sistema de unicidade sindical, o que não é o adotado pela OIT, de pluralidade sindical, além de manter a contribuição compulsória dos in-tegrantes das respectivas categorias para o custeio do sistema. Esta Convenção possui quatro garantias sindicais universais, que são: as de fundar sindicatos; administrar sindicatos; garantir a atuação dos sindicatos; e a assegurar o direito de se filiar ou não a um sindicato (SUSSEKIND, 1998, p. 467).

A primeira prevê o direito de o sujeito, empregado ou empregador, constituir, sem necessidade da outorga do Estado, entidade sindical, bem como o direito de se filiar ou desfiliar a este sindicato.

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A segunda faculta aos sindicatos o direito de redigir os próprios esta-tutos e regulamentos administrativos, de eleger seus representantes, ou seja, ge-rir e administrar seus sindicatos e, o mais importante, sem a intervenção estatal.

A terceira é uma garantia contra a extinção ou a suspensão das en-tidades sindicais pelo Estado, ou seja, tem por finalidade impedir o controle arbitrário da autoridade pública no que pertine à vida sindical.

E a última prevê o direito dos sindicatos de criarem federações, de filiarem-se às organizações internacionais (NASCIMENTO. 2009. p. 153).

No modelo brasileiro, não existe a possibilidade da existência de um sindicato da mesma categoria em um mesmo espaço territorial, garantida pelo sistema pluralista, o qual é sustentado pela Convenção n. 87 da OIT. Além dis-so, é previsto na Constituição Federal a cobrança compulsória, pelos sindicatos, da contribuição sindical de todos os trabalhadores, sócios ou não do sindicato (NASCIMENTO. 2009. p. 154).

4. SISTEMA DE REPRESENTAÇÃO DOS TRABALHADORES

No Brasil, desde 1930, vigora o sistema de unicidade sindical, sindi-cato único por força de lei.

O sistema de liberdade sindical, seja tanto pelo pluralismo ou pela unicidade sindical, prepondera na maioria dos países ocidentais desenvolvidos, como a França, a Alemanha, e os Estados Unidos da América. No caso da Ale-manha, em que há uma unidade prática de sindicatos, esta liberdade é resultado de uma experiência histórica e não de determinação legal. O sistema de liber-dade sindical plena encontra respaldo na Convenção n. 87 da OIT, ainda não subscrita pelo Brasil (DELGADO, 2005, p. 1330).

Para muitos estudiosos, o sistema pluralista e o sistema de unicidade sindical são um dos temas mais discutidos e que detém maiores controvérsias dentro do Direito Coletivo do Trabalho. Os que se mostram favoráveis ao sis-tema do pluralismo sindical acreditam que este é o mais democrático, pois con-sidera o sujeito livre para se organizar em mais de um sindicato para a mesma atividade profissional (VIANNA, 1972, p. 5

No caso do Brasil, o sistema é de unicidade sindical, em que a lei veda a criação de mais de um sindicato da mesma categoria em uma mesma base territorial, que não pode ser inferior a um município. Para Amauri Mascaro Nascimento: “O sistema brasileiro é o monopólio de representação por imposição de lei” (2009, p. 22

4.1. UNICIDADE SINDICAL

O sistema de unicidade sindical, adotado pelo Brasil, que não é ado-tado pela Organização Internacional do Trabalho, é o sistema que restringe à

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criação de sindicatos de uma mesma categoria em uma mesma base territorial. Neste sentido, este sistema não faculta aos trabalhadores a possibilidade de or-ganização espontânea para formar uma coletividade natural (NASCIMENTO, 2009, p. 222).

A base territorial mínima é delimitada pelos interessados, devendo ser, pelo menos, igual a um município. A livre vontade não existe, muito em-bora os interessados, trabalhadores e empregadores possam delimitar a base territorial, ela fica condicionada à inexistência, na base pretendida, de outra entidade sindical que reúna o mesmo grupo, econômico ou profissional (BRITO FILHO, 2000, p. 115).

Para Amauri Mascaro Nascimento: “o melhor sistema sindical é o que permite aos próprios interessados escolher o tipo de associação que querem constituir, sem entraves legais que prejudiquem essa escolha” (2009, p. 216).

José Claudio Monteiro de Brito Filho conceitua unicidade sindical como sendo a possibilidade de existência de uma única entidade sindical, repre-sentativa do mesmo grupo, em determinada base física, por imposição estatal. Para o autor, as características da unicidade são: a representação de um grupo por uma única entidade sindical; que isso ocorra dentro de uma determinada base territorial; que isso ocorra por imposição do Estado (2000, p. 99).

Para Mauricio Godinho Delgado, a unicidade corresponde à previsão normativa obrigatória de existência de um único sindicato representativo dos componentes obreiros, sendo que no Brasil ele vigora desde 1930 (2005, p. 1330).

O sistema de unicidade sindical nada mais é do que uma definição legal imperativa de como o sindicato se organiza e a vedação da existência de entidades sindicais concorrentes ou de outros tipos sindicais. É um sistema de sindicato único.

Em seu artigo 8º, inciso II, a Constituição Federal dispõe a respeito do sistema de representação e veda a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou eco-nômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município. Trata-se da representatividade territorial única, em que os trabalhadores e os empregadores, muito embora tenham autonomia para se filiarem ou não ao sindicato, fruto da liberdade sindical, não podem escolher a que sindicato se filiar, pois só existirá uma opção.

Assim como a Constituição Federal, a Consolidação das Leis do Tra-balho, em seu artigo 516, determina que: “Não será reconhecido mais de um sindicato representativo da mesma categoria econômica ou profissional, ou pro-fissão liberal em uma dada base territorial.

A unicidade sindical é antagônica à pluralidade. Esta forma assegura a força do movimento sindical, neutraliza as disputas entre sindicatos rivais que,

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para alguns, enfraquecem a classe, pois não existe desordem, ameaças, entre outros problemas causados pela rivalidade (TEIXEIRA , 1979, p. 14

O sistema de unicidade possui alguns pontos estruturais, quais sejam: o modelo de sindicato único; a vinculação direta ou indireta do sindicalismo ao Estado; o financiamento compulsório do sistema, mediante contribuição sindi-cal obrigatória, de origem legal; e a existência de poder normativo do Judiciário Trabalhista, em concorrência direta com a negociação coletiva sindical (DEL-GADO, 2005, p. 133

O sistema de representação dos trabalhadores continua o mesmo de mais de 80 anos atrás. Sendo que o sistema de unicidade sindical preservou o financiamento compulsório de suas entidades integrantes, deu continuidade ao poder normativo de concorrência da Justiça do Trabalho, além de manter a im-posição legal de somente um sindicato de cada categoria em uma mesma base territorial (DELGADO, 2005, p. 133

4.2 PLURALIDADE SINDICAL

Este sistema é adotado pela Organização Internacional do Trabalho e não é o adotado pelo sistema brasileiro. Ele é o princípio, segundo o qual, em uma mesma base territorial, pode haver mais de um sindicato representando a mesma categoria de pessoas ou atividades (NASCIMENTO, 2009, P. 219).

De acordo com Rodolfo Pamplona Filho: “a pluralidade sindical é a liberdade total dos trabalhadores de se organizarem, constituindo as entidades representativas da forma que considerarem convenientes, com a condição de observância de seus estatutos” (1997, p. 45).

A pluralidade não é a forma perfeita. Como afirma Rodolfo Pamplo-na Filho existem inconvenientes da pluralidade e de sua possível adoção pelo Brasil, como o fato de que se existisse mais de um sindicato de uma categoria em uma mesma base territorial, como saber qual sindicato é o representante de determinados trabalhadores se eles não se filiarem a nenhum? Ou qual seria ou critério de representatividade e quem pode escolhê-lo se não cabe a intervenção estatal? (1997, p. 45).

Como expressa o mesmo autor, na maioria dos países há pluralidade de direito e de fato, como na França e na Itália, por exemplo, e em outros é fa-cultada a pluralidade sindical, como a Alemanha e o Reino Unido, mas nestes casos vigora o sistema de unicidade sindical (PAMPLONA FILHO, 1997, p. 47).

Para Rodolfo Pamplona Filho, o artigo 2º da Convenção n. 87 da OIT dá aos trabalhadores e empregadores o direito de constituir as organizações que acharem convenientes, sendo esta a regra básica para se garantir a liberdade sindical, portanto, não há como se defender que o regime da unicidade, imposto

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pelo Estado pode conviver com a liberdade pública. Mas o autor acredita que não poderia ser vedado aos trabalhadores se organizarem em um único sindi-cato, mas que fosse a eles atribuída uma faculdade, para que eles pudessem escolher se querem e precisam de mais de um sindicato em uma mesma base territorial, para uma mesma categoria (1997, p. 60).

A liberdade sindical absoluta só poderá existir em um sistema que se adote um meio termo entre a unicidade e a pluralidade sindical, uma liberdade de escolha entre uma e outra, pelo fato de que a pluralidade decorre necessa-riamente de certos fatores, como a independência dos sindicatos em relação ao Estado, o caráter facultativo da associação e a representação dos interesses profissionais do respectivo grupo, além da própria pluralidade sindical, porém, detém certos problemas que já foram expressamente abordados.

Para José Segadas Vianna, não foi boa a experiência da pluralidade sindical no Brasil em 1934, com a fragmentação e o enfraquecimento de um sindicalismo incipiente. Nesta época, na antiga capital do país, os ferroviários da Leopoldina tinham dois sindicatos que nunca chegavam em um acordo nas reivindicações de classes. Enquanto havia, em 1936, 242 sindicatos de empre-gados, com o sindicalismo plúrimo, em 1939, com a pluralidade sindical, estes sindicatos passaram para dois mil (1972, p. 55).

Em contrapartida ao pensamento de José Segadas Vianna, Amauri Mascaro Nascimento acredita que o argumento de que elevaria o número de sindicatos é falso, pois já existem cerca de 18000 entidades sindicais no país. Além disso, isso não levaria os sindicatos ao enfraquecimento, pois este já é fra-co, e o que fez com isso acontecesse foi a reestruturação do processo produtivo mundial (2009, p. 227).

Na França, com a representação legal da classe, havendo mais de um sindicato, compete ao poder público decidir qual o mais representativo, levan-do em consideração a importância, a atividade e a independência da entidade (VIANNA, 1972, p. 56).

4.3 UNIDADE SINDICAL

Unidade Sindical é o sistema no qual os sindicatos se unem pelo fato de existir uma faculdade de fazê-lo, e não por imposição legal. A unidade não é contrária ao princípio da liberdade sindical e são exemplos de países que a utilizam a Inglaterra, a Suécia e a Alemanha (NASCIMENTO, 2009, p. 218).

Para Amauri Mascaro Nascimento: “este sistema traduz a estrutura-ção ou operação unitárias dos sindicatos, em sua prática, fruto de sua maturida-de, e não de imposição legal” (2009, p. 218).

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4.4 PLURALIDADE X UNICIDADE NO SISTEMA BRASILEIRO

No sistema de pluralidade sindical, preconizado pela Organização In-ternacional do Trabalho, em sua Convenção n. 87, a criação de sindicatos seria livre e seriam feitas de acordo com o interesse das categorias, sem quaisquer restrições (MARTINS, 2008, p. 696).

O sistema brasileiro é, nas palavras de Amauri Mascaro Nascimento, o monopólio de representação por imposição de lei, o sistema da unicidade sin-dical, que não faculta aos trabalhadores a possibilidade de organização espontâ-nea para formar uma coletividade, uma unidade de fato (2009, p. 22

O Brasil segue uma tradição legal de unicidade sindical, mas as leis de 1903 e 1907 permitiam a pluralidade sindical e a Constituição Federal de 1934 a manteve. Foi no ano de 1939 que a unicidade sindical foi introduzida no ordenamento brasileiro, através do Decreto-lei n. 1.402. E a Constituição de 1988 manteve este sistema, vigente até a presente data.

A Lei Maior estabelece que a unicidade envolve a base territo-rial, impedindo a existência de vários sindicatos de uma mesma categoria, inclusive de sindicatos por empresa. Limita a unicidade sindical o direito de liberdade sindical, sendo produto artificial do sistema legal vigente. Não deixa de ser uma forma de controle, por meio do Estado, do sindicato e da classe trabalhadora, evitando que esta faça reivindicações ou greve (MARTINS, 2008, p. 695).

Muito embora exista esta previsão legal e fortes argumentos que fa-zem este sistema se manter até hoje, a unicidade sindical não é considerada a melhor forma de sistema de representação dos trabalhadores por todos. Em 1998, o Poder Executivo propôs uma emenda à Constituição que buscou a al-teração do artigo 8 º da Constituição Federal, buscando eliminar a unicidade sindical e a contribuição sindical obrigatória. Esta proposição encontra-se até hoje sujeita à apreciação do Plenário (PEC n. 623, 1998).

Além desta proposta, desde o ano de 2003, existe uma Proposta de Emenda Constitucional, elaborada pelos deputados Vicentinho, do PT de São Paulo e Maurício Rands, do PT de Pernambuco, que institui a liberdade sindical e altera a redação do artigo 8º da Constituição Federal. Esta proposta se fun-damenta no entendimento de que não existe liberdade sindical plena no Brasil. Por ser um direito social, a liberdade sindical exerce um papel fundamental na efetividade do exercício de direito de associação (PEC n. 29, 2003).

Amauri Mascaro Nascimento dispõe que: “nossa cultura é avessa à pluralidade sindical, embora na cúpula da organização sindical exista pluralida-de de centrais sindicais, o que é contraditório com o que acontece nas bases da pirâmide sindical” (NASCIMENTO, 2009, p. 227).

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A unicidade sindical busca assegurar a eficácia total da atividade de um ente profissional, já a pluralidade sindical parte da permissibilidade de cons-tituição livre de vários sindicatos para categorial ou ramos de produção e, com isso, pretende constituir a liberdade de determinação da circunscrição territorial que atuará cada entidade sindical (DE ANDRADE, 1991, p. 4

A estrutura sindical brasileira baseia-se no regime corporativo de Mussolini, em que só é possível o reconhecimento de um sindicato em dada base territorial, pelo fato de que um único sindicato é mais fácil de ser contro-lado. Nasce então um sindicato por imposição do Estado, de cima para baixo, o que demonstra um descumprimento de um dos preceitos mais importantes do Direito Coletivo do Trabalho, a liberdade sindical (MARTINS, 2008, p. 696).

4.5 CRÍTICA

O maior problema relacionado à representação dos trabalhadores não é a admissão da unicidade, nem a não ratificação da Convenção n. 87, da OIT, com a preferência pela pluralidade. O grande problema do impedimento à li-berdade sindical plena é a proibição da livre escolha aos entes. O correto seria a faculdade no que pertine à escolha do sistema, é a própria escolha do que é melhor ou pior aos olhos dos trabalhadores.

O pluralismo é o mais democrático dos sistemas, o que não significa que todas as entidades sindicais tenham necessidade de constituir mais sindica-tos, mas o que irá determinar isso é a sua possibilidade, é a faculdade.

Consoante com o pensamento de José Carlos Arouca: “não atenta contra a liberdade sindical nem com os objetivos da Convenção n. 87 admitir--se o pluralismo de associações com unidade representado pelo sindicato mais representativo”. Com isso, podemos estabelecer um vínculo entre a liberdade sindical e a representação dos trabalhadores, pois, como o autor explicita, o pluralismo pode ser admitido, pois não irá atentar contra a liberdade sindical. Pelo contrário, com o sistema pluralista, os trabalhadores e empregadores terão a opção de escolha e assim, garantir uma liberdade (2003, p. 629).

Sergio Pinto Martins é outro autor que acredita que o sistema de pluralidade sindical é a melhor forma de representação dos trabalhadores. Para ele a reforma trabalhista deve ser iniciada pela modificação da Cons-tituição Federal para que seja permitido o reconhecimento da pluralidade sindical e não a manutenção da unicidade sindical, por ser uma orientação da OIT (2008, p. 696).

Para o autor, com a pluralidade sindical todos poderiam constituir o sindicato livremente. A tendência seria, num primeiro momento, a criação de vários sindicatos, mas o tempo ia passar e as pessoas notariam que muitos

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sindicatos não tem tanto poder de reivindicação e iriam começar a se agru-par. As pessoas se filiariam aos sindicatos em razão do serviço prestado pela agremiação e das conquistas que elas poderiam trazer. Com esta “abertura”, muitos sindicatos seriam constituídos, mas muitas vezes não existiriam mui-tas entidades para cada categoria e somente as mais representativas e for-tes continuariam existindo. Sindicatos fracos desapareceriam com o tempo (MARTINS, 2008, p. 696).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Da exposição de todos os posicionamentos citados no presente traba-lho, é fato notório que a liberdade sindical encontra-se restringida pelo sistema da unicidade sindical.

A Convenção n. 87 da Organização Internacional do Trabalho, não ratificada pelo Brasil permite, entre outras coisas, que o empregado ou o em-pregador, constitua, sem necessidade da outorga do Estado, entidade sindical, bem como o direito dos trabalhadores se filiarem ou desfiliarem a este sindicato, defendendo-se assim a autonomia da organização sindical perante o Estado, e a livre escolha, individual, de cada pessoa, do sindicato em que pretender inscrever-se como sócio ou do qual quer deixar de sê-lo.

Ou seja, este sistema garante, mais do que qualquer outro, a liberdade sindical, sendo imprescindível que o Brasil o adote para garantir o que a Cons-tituição Federal prega em seu artigo 8º.

Mesmo que a unicidade tenha sido um sistema importante para o de-senvolvimento do sindicalismo brasileiro, dando a este um maior enfoque e representatividade e o tornou mais forte e atuante, ela impõe a impossibilidade de criação de um sindicato concorrente.

Porém, o sistema pluralista também se demonstra frágil, com a noção de que se criam sindicatos a todo momento e estes não buscariam solucionar conflitos entre classes, lutar por suas prerrogativas, mas seriam criados com o fulcro político, desenvolvendo rivalidades entre si.

A estipulação da pluralidade sindical seria a melhor forma de repre-sentação. A abertura para o surgimento de mais sindicatos geraria concorrência, e esta faria com que houvesse incentivo à busca de melhorias, de aperfeiçoa-mento, de benefícios para os trabalhadores. Muito embora possa causar certo desvirtuamento de responsabilidades, ela é a melhor forma de garantia da liber-dade sindical plena.

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A ARBITRABILIDADE SUBJETIVA NAS SOCIEDADES POR AÇÕES

L’ARBITRABILITÉ SUBJECTIVE DANS LES SOCIETÉS ANONYMES

gErmano mEnon FornEcK

Graduando em Direito pelo Unicuritiba, pesquisador, ex-secretário ge-ral do DCE-Unicuritiba, foi voluntário no Tribunal de Justiça do Esta-do do Paraná, ex-membro do grupo de pesquisa intitulado “A Interna-cionalização das Relações Contratuais da Empresa: A Uniformização da Regulamentação dos Contratos Internacionais pela Jurisprudência Arbitral Internacional”, é mootie tendo participado dos seguintes even-tos: IV Competencia Internacional de Arbitraje IV(2011); Pre-Moot Unicuritiba (2012); 19th Willen C. Vis International Commercial Ar-bitration Moot (2011-2012); Belgrade Open Pre-Moot(2012); 4th FIU International Arbitration Pre-Moot(2012). Recebeu em 2011 “Home-nagem Especial” do Unicuritiba pelos trabalhos desenvolvidos dentro do grupo de pesquisa.

SanDro manSur gibran

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996), Mestre em Direito Social e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003) e é Doutor em Direito Econômico e So-cioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2009). Atualmente é professor de Direito Empresarial I e III e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curiti-ba - UniCuritiba, também de Direito Empresarial junto ao Centro de Estudos Jurídicos do Paraná e junto à Escola da Magistratura Federal do Paraná e advogado - Roberto Ferraz Advogados. Tem experiência na área de Direito Empresarial.

RESUMO

A partir de estudo sobre as sociedades anônimas, abordando sua ori-gem, conceito, características, espécies e forma de constituição, bem como atra-vés da análise aprofundada sobre a evolução normativa, natureza jurídica, van-tagens em relação ao tradicional processo estatal e sistemática da arbitragem, o presente artigo tem por escopo verificar a aplicabilidade desta alternativa de solução de controvérsias naquele tipo específico de sociedade, mais precisa-mente naquilo que se refere à arbitrabilidade subjetiva, em face da inclusão

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do § 3º no art. 109 da Lei das Sociedades Anônimas. Busca elucidar a proble-mática relativa à limitação objetiva do poder jurídico particular que está, de regra, incluída na Ordem Pública – como o conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da sociedade e do Estado – tais como a diminuição do poder do particular em face de prevalência do interesse social. Neste sentido, as questões que se levantam frente à óbvia intenção do legislador em indicar o caminho da arbitragem para a solução das possíveis desavenças na seara das sociedades anônimas passam a sugerir a abordagem do caráter institucional das sociedades anônimas em contraposição aos interesses individuais dos acionistas, em especial daqueles que acabam de ingressar na companhia, dos dissidentes ou dos acionistas ausentes no processo de delibe-ração sobre a inclusão da cláusula arbitral. Primeiramente é preciso considerar, como premissa fundamental, que a arbitragem se processa dentro dos padrões principiológicos que embasam o direito societário, arbitral e processual. É em razão desses princípios que se estabeleceram as teses oposicionistas à adoção da cláusula compromissória. Entre eles estão o princípio do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, da CF), da razoável dura-ção do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF), da igualdade (art. 5º, caput, da CF), da imparcialidade (art. art. 13, § 6º do CPC) e do livre consentimento (art. 131, do CPC). As questões suscitadas são: a) renúncia antecipada à jurisdição estatal, o que se opõe à ordem pública; b) vinculação dos novos acionista à clau-sula compromissória estatutária; d) vinculação dos dissidentes e dos ausentes à cláusula compromissória estatutária; e) a arbitragem nos grupos societários e contratos anexos; f) a cláusula compromissória em contratos que envolvam a Administração Pública ou o interesse público, com destaque à sociedade de economia mista.

Palavras-chave: arbitrabilidade subjetiva; sociedades anônimas; arbitragem; caráter institucional das sociedades anônimas.

RESUMÉ

A partir de l’étude sur les socités anonymes, en adressant leur origine, concept, caractéristiques, espèces et la forme de leur constitution, ainsi que par une analyse en profondeur sur l’évolution normative, juridique, avantages par rapport au traditionnel process d’Etat et systématique d’arbitrage, le champ d’application de cet article est de vérifier l’applicabilité de cette alternative de résolution des litiges dans ce type spécifique de société, plus précisément dans ce qui se rapporte à l’arbitrabilité subjective, face l’inclusion du § 3 de l’art. 109 de la Loi des Societés Anonymes. On cherche à élucider le problème de la

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limitation objective du pouvoir juridique particulier qui est, en principe, inclus dans l’Ordre Public - comme l’ensemble de normes juridiques qui réglementent et protègent les intérêts fondamentaux de la société et de l’Etat – telles quelles la réduction du pouvoir du particulier face la prévalence de l’intérêt social. En ce sens, les questions qui se posent devant la manifeste intention du législa-teur d’indiquer le chemin d’arbitrage pour le règlement des éventuels désaccor-ds dans les champ des sociétés anonymes commencent à suggérer l’approche du caractère institutionnel des sociétés anonymes contrairement aux intérêts individuels des actionnaires, en particulier de ceux qui viennent de rejoint l’entreprise, des dissidents ou des actionnaires absents dans le procèss de déli-bération sur l’inclusion de la clause d’arbitrage. Il faut d’abord prendre en con-sidération, en tant que principe fondamental, que l’arbitrage se déroule dans les normes qui sous-tendent le droit societaire, processuel et de l’arbitrage. C’est à cause de ces principes qui se sont établies les thèses opposée à l’adoption de la clause compromissoire. Parmi eux, le principe du contradictoire (art. 5, inc., FC), de’ample défense (art. 5, inc., FC), de la raisonable longueur du procèss (art. 5, inc. LXXVIII, Constitution), d’égalité (art. 5, FC), d’impartialité (art. art. 13, § 6, CPC) et du libre consentement (article 131, CPC). Les questions soulevées sont: a) renonciation antecipée à la juridiction de l’État, ce qui est contraire à l’ordre public ; b) liement des nouvaux actionnaires à la clause com-promissoire de le estatut ; c) liaison des dissidents et des absents à la clause de le estatut; d) l’arbitrage dans des groupes societaires et contrats annexés ; e) la clause compromissoire dans les contrats qui impliquent l’Administration Publi-que ou l’intérêt public, en particulier la société d’économie mixte.

Mots-clés: arbitrabilité subjective; societés anonymes; arbitrage; caractère ins-titutionnel des societés anonymes.

1. INTRODUÇÃO

Como instituto jurídico destinado a proporcionar um sistema alterna-tivo de acesso à Justiça, e frente às mudanças sociais e ao intenso dinamismo do mercado atual – de feições próprias da globalização – a arbitragem desponta como instrumento benéfico e vantajoso para as companhias, dada a rapidez, a confidencialidade e a economia com que podem ser dirimidos os conflitos da própria empresa, de seus administradores e, no caso das Sociedades por Ações, de seus acionistas. Assim, a arbitragem compõe o rol de elementos que integram o debate sobre um dos principais temas da atualidade, que é o acesso à Justiça.

A inclusão do § 3º no art. 109 da Lei das Sociedades Anônimas de-monstra o estímulo dado pelo legislador, de forma enfática, indicando o uso desse instituto para a solução dos eventuais conflitos.

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Deve-se considerar que esse incentivo legislativo deve-se à dinâmica das atividades empresariais que exige para as suas questões respostas rápidas e satisfatórias, não podendo submeter-se à morosidade judicial em face do seu caráter institucional que afeta o mercado no que tange à geração de empregos, tributos etc., além dos conseqüentes reflexos no setor financeiro.

De outro lado, a arbitragem se processa dentro dos padrões prin-cipiológicos que embasam o direito societário, arbitral e processual. Em razão desses princípios se estabeleceram as teses oposicionistas à adoção da cláusula compromissória. Entre eles estão o princípio do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, da CF), da razoável duração do processo (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF), da igualdade (art. 5º, caput, da CF), da imparcialidade (art. art. 13, § 6º do CPC) e do livre con-sentimento (art. 131, do CPC).

Aliada a esses princípios, a questão da arbitrabilidade subjetiva que determina a vinculação à cláusula compromissória também embasa a contro-vérsia, levantando-se alguns questionamentos acerca da renúncia antecipada à jurisdição estatal, da vinculação dos novos acionistas à referida cláusula, da vinculação dos dissidentes e dos ausentes à cláusula compromissória estatu-tária, da arbitragem nos grupos societários e contratos anexos e da cláusula compromissória em contratos que envolvam a Direito Público ou o interesse público, com destaque à Sociedade por Ações.

2. AS SOCIEDADES ANÔNIMAS E DISPOSIÇÕES SOBRE ARBITRAGEM

As sociedades anônimas surgiram com as bases do Capitalismo permitindo a formação de volumosas somas de capitais voltados à realiza-ção de grandes empreendimentos. Também chamada de companhia, consti-tui mecanismo jurídico cujo objetivo é tão somente o de movimentar capi-tais, com o diferencial pautado na redução dos riscos que outras sociedades não podem proporcionar, já que se baseiam no prestígio pessoal e na con-fiança mútua existente entre seus sócios. Daí a irrelevância da composição societária, pois o interesse é a movimentação de capitais. São as ações, títulos advindos do estatuto ou ajuste social que conferem ao seu titular o status socii, e cuja negociação determinará se os acionistas ingressam ou se retiram da sociedade, o que não interfere na estrutura societária e tampouco chega ao conhecimento dos demais integrantes do quadro social.4

4 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de Direito Societário: sociedade anônima. 1. ed. v. 2. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005. p. 4-5

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De acordo com a preleção de Gonçalves Neto a sociedade anônima fica completamente afastada do direito comum, cujas regras gerais sobre con-tratos e obrigações jamais poderão ser aplicadas na sua constituição. Isto se deve aos efeitos que os contratos produzem, refletidos nas obrigações pessoais, do que se depreende a conseqüente responsabilidade pessoal dos contratantes ou, ao menos, de alguns deles. Nas companhias, por outro lado, não se cogita a responsabilidade pessoal por não poder existir, já que essa sociedade é cons-tituída unicamente de coisas.5 Com isso ao considerar a dinâmica das grandes sociedades comerciais, denominadas sociedades empresárias, depara-se com um grande grau de complexidade no que se refere aos conceitos e regras gerais relativos aos contratos de permuta e que “parecem de difícil aplicação aos con-tratos de sociedade”.6

Deve-se ressaltar que o novo Código Civil não teve como objetivo precípuo desenvolver a noção de empresa e o conceito de empresário, temas já extensamente debatidos pela doutrina pátria e estrangeira. Observou, sim, a necessidade de ultrapassar o tradicional Direito Comercial e trazer a empresa como centro do moderno Direito Empresarial, condizente com as atividades negociais de agentes econômicos atuando em uma economia globalizada e de alto grau de capitalização, além de se afinar com os fundamentos estabelecidos pela Constituição Federal.7

Nesta mesma esteira circunstancial e paralelamente a essas questões, a Lei 10.303 de 31 de dezembro de 2001, vem alterar e acrescentar dispositivos à Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, que dispõe sobre as Sociedades por Ações, e na Lei 6.385 de 7 de dezembro de 1976, que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários e cria a Comissão de Valores Mobiliários. Dentre essas alterações e acréscimos, está o § 3º do art. 109 que prevê a possibilidade de acionistas, administradores e a própria companhia recorrerem ao juízo arbitral, desde que inserida, no estatuto da sociedade, a cláusula compromissória.

Ainda que a utilização da arbitragem para dirimir os conflitos societários, segundo Marcelo Bertoldi, já fosse possível mesmo antes das alterações havidas na Lei das Sociedades por Ações. Conforme seu enten-dimento, a inclusão do § 3º no art. 109 da referida Lei apenas demonstra visível intenção do legislador em enfatizar e incentivar o uso desse instru-mento para a solução dos conflitos.8

5 Idem, p. 2.6 ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades Anônimas e Direito Comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva: 1969. p. 255.7 WALD, Arnold. Das Sociedades Simples e Empresariais. Questões relacionadas ao regime jurídico da Sociedade Simples e seu registro. Disponível em: <http:// www.irtdpjbrasil. com.br/NEWSITE/ ParecerWald.pdf.>. Acesso em: 10.06.20128 BERTOLDI, Marcelo: Reforma das Sociedades Anônimas: comentários à Lei nº 10.303, de 31

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No mesmo sentido é a visão de Paulo Egídio Seabra Succar ao afirmar que a arbitragem já constava da Constituição Imperial do Brasil, de 1824, como instrumento de resolução de conflitos privados. Posteriormente, o instituto foi incluído no Código de Processo Civil de 1939, fortemente marcado pelo desuso9

De outra banda, a inclusão do § 3º no art. 109 da Lei das Sociedades Anônimas tem levantado algumas questões relativas ao seu alcance e real efetividade. Também se questiona se a cláusula compromissória inserida no estatuto societário tem caráter vinculante para a sociedade e para os acionis-tas, já que podem existir aqueles que divergem sobre a sua adoção, outros que não tenham tido participação ativa no momento da deliberação sobre a adoção da referida cláusula ou, ainda, aqueles que se tornaram acionistas em momento posterior.

A doutrina, em geral, enaltece as sociedades anônimas como instru-mento do capitalismo para atrair a poupança popular para participar de grandes empreendimentos, sem vínculos de responsabilidade e com a possibilidade de liquidez a qualquer momento. Requião ainda ressalta a facilidade de negociar livremente, sem dar satisfação a ninguém considerando, também, essa forma da poupança privada ingressar no mundo dos negócios. Por essas razões afirma serem as companhias o instrumento fundamental do capitalismo, “sem o qual se poderia conceber a sua expansão”.10

Ressalta, ainda, que como qualquer outro tipo de sociedade comercial, a sociedade anônima constitui empresa com fins lucrativos, sujeita às normas de licitude relativas à ordem pública e com os bons costumes. Outro aspecto a ser realçado, ainda conforme Requião, é que esse tipo de sociedade será sempre comercial, independentemente do seu objeto. “A comercialidade lhe é inerente; é da própria essência estrutural da sociedade. Não se concebe, em face da lei, sociedade anônima de natureza civil”.11

Aliada essa característica é importante ressaltar a função econô-mica das sociedades anônimas. Requião afirma que estas são maravilho-sos “mecanismos de financiamento das grandes empresas, porque permite atender uma extensa área de poupança atraída simultaneamente pela limita-ção da responsabilidade e pela possibilidade de negociação dos títulos, de mobilizá-los em dinheiro liquido”.12

de outubro de 2002. São Paulo: RT, 2002. p. 73.9 SUCCAR, Paulo Egídio Seabra. A arbitragem como meio de resolver conflitos societários. Disponível em: <http:// www.mackenzie. br/fileadmini/ Graduação/FDir/ Artigos/artigos_ 2009/ Paulo_Succar. pdf.>. Acesso em: 10.06.2012.10 . REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 23. ed. atual. v. 2. São Paulo: Saraiva, 2003., p. 7.11 Idem, p. 2-3.12 Idem., p. 7.

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Daí a sua importância na sociedade moderna, a ponto de se tornarem relevantes preocupações dos economistas e juristas quando se apresentam pro-blemas internos ou externos nessas sociedades. Isto porque as empresas gigantes da economia capitalista constituem-se verdadeiros impérios, o que pode compro-meter a estabilidade e a autonomia dos Estados. Sob este aspecto, essas empresas passam a ser tema de constantes debates encetados por moralistas, sociólogos, economistas, juristas e mesmo psicólogos, que vêem nas grandes corporações mais que a manifestação da economia individual, mas instrumento que domina os interesses gerais da sociedade pelos mecanismos utilizados pelo sistema capitalis-ta para estimular o acúmulo de capital para o aumento do consumo.

Vista desse ângulo é legitimo afirmar que a função social das socieda-des é tão edificante quanto destrutiva, extremos que levam a permanente obser-vância e controle por parte dos Governos. No exemplo dado pelo autor, se uma empresa do porte da General Motors, nos Estados Unidos, considerada a maior indústria do mundo, viesse a sofrer uma administração deficiente, o risco de ser levada à falência seria maior que o risco de falência de estados como o de Mi-chigan, Colorado e Virgínia. Outras companhias de porte semelhante também causariam danos incalculáveis se falissem, exigindo do Governo medidas para assumir o controle direto, como de fato acontece em razão da Lei Chandler que sujeita as “corporations” em estado de debilidade econômica ao regime judicial da recuperação, afastando-as da falência.13

3. CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE ANÔNIMA E SEU CARÁTER INSTITUCIONAL DE DIREITO PÚBLICO

Ao tratar da constituição da sociedade anônima, Requião sustenta, preliminarmente, a sua posição no sentido de as sociedades em geral se consti-tuírem pelo contrato plurilateral. Afirma que o direito brasileiro desconhece as sociedades unipessoais, fundamentando sua posição no art. 80 da Lei 6.404/76, que determina que a constituição da companhia dependa do cumprimento de vários requisitos, a começar pela subscrição, pelo menos de duas pessoas, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto.14 No caso de companhia subsidiária integral é possível que a sociedade anônima seja cons-tituída por apenas um sócio, em conformidade com o art. 251 da mesma Lei.15 Com isso no que se refere à constituição das sociedades anônimas, alguns dou-trinadores adotam a Teoria da Instituição (uma das teorias anticontratualistas) para determinar a sua natureza jurídica. Conforme explana Aquino, essa teo-

13 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 12.14 Ibidem, p 119. 15 Ibidem, p. 29.

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ria foi elaborada a partir das instituições de direito público e posteriormente transportada para o Direito Comercial, no intuito de esclarecer a constituição das sociedades anônimas. Para este doutrinador, se levar em conta a defini-ção de instituição como sendo “uma organização social, estável em relação à ordem gral das coisas, cuja permanência é assegurada por um equilíbrio de forças ou por uma separação de poderes, e que constitui, por si mesma, estado de direito”,16 não se pode negar que as sociedades anônimas são instituições, mas uma instituição derivada de um contrato, já que o caráter institucional a elas atribuído deriva da sua função, e não do contrato. Finaliza afirmando que a natureza jurídica do ato constitutivo das sociedades é o contrato plurilateral, também podendo advir de contrato social ou correspondente, como é o caso do Estatuto das sociedades anônimas.17

Este também é o entendimento de Tullio Ascarelli, afirmando que, mesmo sendo o contrato firmado entre duas partes, ainda existe a possibilidade de participação de mais pessoas, além de duas. Em diversos outros negócios jurídicos, existem sempre duas partes, mas nas sociedades sempre existirá a possibilidade de se reunir uma pluralidade de partes. No contrato plurilateral cada parte tem obrigação para com todas as outras partes, não se podendo falar em vontades antagônicas.18

De maneira contrária é um ato complexo que fundamenta a tese an-ticontratualista, base que supera a bilateralidade que reflete o antagonismo na vontade dos contratantes. Isto porque não há que se considerar este aspecto em uma sociedade, já que as vontades convergem para um mesmo objetivo, razão pela qual o contrato seria um ato complexo.

Estabelecem-se, assim, duas correntes doutrinárias e suas respecti-vas teses, a anticontratualista e a contratualista. Túllio Ascarelli assevera que o problema de se estabelecer a distinção entre os contratos de sociedade e os contratos que, genericamente, podem ser denominados de contratos de permu-ta, reside na dificuldade de se aplicar algumas regras e princípios gerais do contrato, ao contrato de sociedades. 19

Entende-se que, antes de se discutir o caráter institucional das socie-dades anônimas, é importante se inteirar do significado da palavra “instituição” através de uma abordagem interdisciplinar. Assim, inicia-se pela lógica termi-nista medieval, em que “instituição” é a adoção de novo vocábulo durante uma

16 AQUINO, Leonardo Gomes de. Sociedade: uma análise acerca das teorias que envolvem a sua formação. Disponível em: <http://www. ambito-juridico.com. br/site/index. php?n_link=revista_ artigos_leitura& artigo_id=8563>. Acesso em: 10.06.2012.17 Idem.18 ASCARELLI, Tullio. Op. Cit.,. p. 374.19 Ibidem. p. 256-261.

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discussão, pelo tempo que ela durar, com a finalidade de tornar a linguagem mais concisa, discutir algo desconhecido ou enganar o interlocutor ou, ainda, permitir-lhe responder mais facilmente às objeções. Neste último sentido é uma das “obrigações” que, na lógica terminista, consiste no compromisso em vista do qual o interlocutor admite na discussão algo que antes não admitia.20

Na sociologia contemporânea, o termo é de uso freqüente e tem sido um de seus objetos de estudo específico. Definido por Émile DurKheim como um conjunto de normas que regulam as ações sociais – conceito até hoje utili-zado – o termo também é usado para designar “qualquer atitude suficientemente recorrente em um grupo social”.21

Com base nos estudos de Durkheim, Peter Berger e Thomas Luckman afirmam que toda a institucionalização vem precedida de processo de formação de hábitos que são tipificados reciprocamente por determinados atores. Na ver-dade, qualquer uma dessas tipificações já é uma instituição. A ênfase a ser dada nesse processo refere-se à reciprocidade, ou seja, sempre serão partilhadas as tipificações das ações habituais que constituem as instituições.22

Por essa razão as instituições não se criam instantaneamente, o que implica historicidade e controle do prévio estabelecimento de padrões definidos de condutas, canalizadas em uma determinada direção, em função do objetivo daqueles que monopolizam o controle. Este se dá sem que haja mecanismos de sanções especificamente estabelecidas para apoiar a instituição e constituem o que geralmente se chama de sistema de controle social do tipo suplementar. Isto porque o caráter controlador das instituições é inerente a ela, razão pela qual se pode afirmar que, se um segmento da atividade humana for institucionalizado, este segmento foi submetido ao controle social.23

Da perspectiva jurídica, interessam as instituições que se confundem com os institutos do Direito, como o casamento, os contratos etc. No plano políti-co, revelam-se as instituições estreitamente ligadas com os fenômenos do poder, em especial aquelas que se articulam mais direitamente com o Estado ou que constituem propriamente o Estado. Em se tratando da microfísica do poder par-ticular, tem-se como exemplo a família e ,o que pretendemos frisar, a empresa.

Cabe, ainda, consignar a visão de Carnelutti traduzida em estudo ela-borado por Darcy Bessone de Oliveira Andrade. O autor ensina que o mestre italiano, no que tange à proteção da minoria, diz que esta proteção só interessa

20 INSTITUIÇÃO. In: Abagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 570-571.21 Idem.22 BERGER, Peter L.; LUCKMAN, Thomas. A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Trd. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 79.23 Ibidem, 79-80.

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quando se processa o sacrifício da minoria por efeito de deliberações da maio-ria, as quais são inatacáveis do ponto de vista formal. Porém, considera que a solução para as questões advindas do conflito entre estas duas partes pode ser encontrada no direito tradicional.24

Segundo Darcy Andrade, o motivo pelo qual Carnelutti faz a anterior assertiva deve-se à sua crença de que o instituto da sociedade situa-se em po-sição circunscrita entre o Direito Público e o Privado. O doutrinador italiano considera necessário que os juristas alarguem seu horizonte visual à procura de elementos que contribuam com o tema e proteção à minoria, pois este é o pro-cedimento ideal quando se passa da área dos interesses individuais para a área dos interesses coletivos.25

Nesta seara, as assembléias gerais das sociedades anônimas povoam o a área do Direito Público em função das zonas limítrofes de outras áreas que este tangencia. Assim, segundo Andrade, Carnelutti afirma que a distinção entre controle de legitimidade e controle de mérito, estabelecida pelos juspublicistas, inclui-se entre as soluções que podem ser úteis para o assunto.

Como o interesse da sociedade é livremente definido pela assembléia geral, Carnelutti considera que a teoria do excesso de poder está estreitamente ligada à predominância do interesse público, não permitindo transições para o Direito Privado, ceara predominantemente dirigida pela autonomia privada.

Observa-se, portanto, que a análise de Carnelutti sobre o poder de con-trole nas sociedades anônimas tem um viés totalmente institucional, afirmando, in-clusive, que sua zona de confinamento está entre o Direito Público e o Privado e considerando que esta zona deveria ser ultrapassada em direção do Direito Público.

Sobre a manifestação do mestre italiano, Darcy Andrade ainda co-menta que a tese carneluttiana foi aceita, com ligeiras alterações, por “Ascarelli (“Sulla protezione delle minoranze nelle soietà per azioni – in Revista Del Di-rito Coomerciale, vol. XXXII, p. 735) e Ferri (“Excesso di potere e tutela delle minoria – in Revista Del Dirito Commerciale, vol. XXXI, p. 723)”.26

A função social, segundo Fábio Konder Comparato, está relacionada a um objetivo determinado pelo interesse coletivo.27 Para Orlando Gomes, po-rém, “sob o ponto de vista jurídico o exercício de acordo com o bem comum é insuficiente para a caracterização da função social”.28

24 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Das Sociedades Coligadas e Controladas. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/88469425/Darcy-Bessone-de-Oliveira-Andrade-Das-Sociedades-Coligadas-e-Controladas>. Acesso em: 22.09.2012.25 Idem.26 Idem.27 COMPARATO, Fábio Konder. Função Social da Propriedade dos Bens de Produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. n. 63. São Paulo: RT, 1986. p. 75.28 GOMES, Orlando. Relações entre o Direito e a Economia: direito econômico e outros ensaios.

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Por sua vez, Waldírio Bulgarelli diz que o Direito, como instrumento de controle social, faz uma análise institucional da empresa nela destacando um interesse que se sobrepõe aos interesses egoísticos de seus integrantes, além de lhe atribuir especial relevância como núcleo social.29

Ao se falar que a função social está relacionada a um objetivo deter-minado pelo interesse coletivo ou bem comum, é natural que a definição reporte ao conceito do princípio do interesse público. Humberto Ávila, discorrendo sobre o princípio da supremacia do interesse público sobre o privado afirma que o interesse público determina os fins e fundamentos legítimos de atuação do Estado e que o bem comum é uma finalidade abstrata, “verdadeiro fundamento da permanência da vida social, a ser entendida como medida ou proporção esta-belecida entre bens jurídicos exteriores conflitantes e distribuíveis”.30

Por essa razão entende-se que a dicotomia público/privado fica bem clara na questão das sociedades anônimas, quando o Estado deve, entre as suas funções, regular as relações privadas – que, no que se refere às empresas, trata--se do importante instituto da propriedade privada – sem absorvê-las, principal-mente quando elas promovem importantes reflexos no âmbito social, resultan-tes do seu caráter institucional.

Tomando a questão dos acionistas minoritários, protegidos pelo ca-ráter institucional das sociedades por ações, interessa fazer constar as impres-sões de Bertoldi. Referindo-se ao parágrafo único do art. 116, diz que a adoção de novas medidas desvinculando a propriedade do poder de controle indica uma economia desenvolvida, mas somente será viável quando sustentada por um sistema legal dotado de “mecanismos confiáveis e eficazes de proteção dos acionistas que fazem parte do bloco que não detém o poder de controle”.31 É neste contexto que o autor afirma ter o parágrafo único do art. 116 um papel de suma importância, pois consegue aliar o primado constitucional da função social da propriedade ao exercício do poder de controle, propiciando não só aos acionistas não-controladores, mas à própria comunidade social, os meios para combater os eventuais excessos no exercício do poder.32

Como o interesse da sociedade é livremente definido pela assembléia geral, Carnelutti considera que a teoria do excesso de poder está estreitamente

Slavador: DLS, 1975. p. 73.29 BULGARELLI, Waldirio. Tratado de Direito Empresarial. 3. ed. São apulo: Atlas, 1997. p. 71.30 ÁVILA, Humberto. Repensando a “Supremacia do Interesse Público sobre o Particular”. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado. n. 11. set-nov/2007. Salvador. Disponível em: <http://www.direitodoestado.com.br.>. Acesso em: 24.09.2012.31 BERTOLDI, Marcelo M. O Poder de Controle na Sociedade Anônima: alguns aspectos. Disponível: <http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/iuris/article/download/11102/9815.>. Acesso em: 23.09.2012.32 Idem.

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ligada à predominância do interesse público, não permitindo transições para o Direito Privado 33, o que a nosso ver poderia ser óbice a aplicação plena das normas de Direito Privado, entre elas a adoção da clausula compromissória.

É importante ressaltar, diante da constatação da liberdade concedi-da aos contendentes e que permeia o procedimento arbitral, que a autonomia da vontade parece ser o princípio fundamental de regência do mecanismo da arbitragem,.34também se tratando dos limites, também é importante frisar que não basta a capacidade para submeter aos árbitros um litígio: é necessário ainda que a desavença diga respeito a direito patrimonial disponível. Carmona define os direitos disponíveis como aqueles “que podem ser ou não exercidos livre-mente pelo seu titular, sem que haja norma cogente impondo o cumprimento do preceito, sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência”.35Requisito que esbarra, talvez, na visão Carneluttiana ao tecer comentários tocantes ao caráter de Direito Publico dentro das Socidades por Ações36. Isso por que o regime jurídico de Direito Público poderia trazer con-sigo critérios de indisponibilidade para o patrimônio da Sociedade Anônima decorrentes do Interesse Público 37,, Critérios melhor explicados pela doutrina de Celso Antônio Bandeira de Melo ao discorrer sobre a Teoria da Supremacia e Indisponibilidade do Interesse Público38.

4. A ARBITRAGEM NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS

O negócio jurídico é, por excelência, a materialização da auto-nomia privada. Na acepção de Francisco Amaral, entende-se por negócio jurídico “a declaração de vontade privada destinada a produzir efeitos que o agente pretende e o Direito reconhece. Tais efeitos são a constituição, modificação ou extinção de relações jurídicas, de modo vinculante, obri-gatório para as partes intervenientes”.39

A expressão “vontade privada”, ou “autonomia privada”, tem sido tomada como sinônimo de “autonomia da vontade” por grande parte da doutri-

33 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Op. Cit.34 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 6435 CARMONA, Carlos Alberto. Processo Arbitral. Revista de Arbitragem e Mediação. ano I, n.1, jan-abr/2004, São Paulo: RT. p. 27..36 ANDRADE, Darcy Bessone de Oliveira. Op. Cit.37 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 4ª Ed revista e atualizada São Paulo: Saraiva 2009. p. 5538 DE MELO, Celso Antônio Bandeira de Melo. Curso de Direito Administrativo, 22. Ed. São Paulo: Malheiros 2007. p. 70 e 9339 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 361.

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na contemporânea. Porém, segundo Amaral, não se confundem, apresentando entre si profundas diferenças. A locução “autonomia da vontade” é carregada de teor subjetivo por tratar-se de projeção, no Direito, do personalismo ético, concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário da ordem jurídica privada. Já a “autonomia privada” marca o poder da vontade no Direito de um modo objetivo, concreto e real.40

Todavia, Amaral adverte sobre a amplitude e a natureza de tal poder asseverando não ser originário nem ilimitado. Primeiramente porque dimana do ordenamento jurídico estatal que o reconhece e fixa os limites de sua fruição e, em segundo lugar, porque a sua esfera de aplicação é essencialmente patrimonial no campo do Direito Civil, que se volta à disciplina que regula as atividades eco-nômicas do indivíduo, tendo portanto uma limitação objetiva do poder jurídico particular o que está, de regra, incluída na Ordem Pública – como o conjunto de normas jurídicas que regulam e protegem os interesses fundamentais da socieda-de e do Estado – tais como a diminuição do poder do particular em face de preva-lência do interesse social, contratações obrigatórias de atividades empresariais de monopólio legal, contratos em que as disposições são impostas pelo Estado etc.41

Por outro lado, ultrapassando a simples letra da lei, é importan-te que se enfatize a solidariedade de interesses entre as partes que, assim motivadas, buscam agir cooperativamente no sentido de superar eventuais obstáculos no transcorrer da execução contratual. Aqui reside o conjunto de regras morais oriundas dos bons costumes, entre as quais é de extrema importância a idéia da boa-fé objetiva a compelir as partes a, solidariamen-te, cumprirem o acordado, adequadamente e a bom termo. o autor Orlan-do Gomes refere-se ao que, modernamente, denomina-se boa-fé objetiva e corresponde a uma regra de conduta, um modelo de comportamento social, distinguindo-se da boa-fé subjetiva, interna ao sujeito, um estado psicológi-co, aplicável notadamente no Direito das Coisas, quando se faz referência, por exemplo, ao “possuidor de boa-fé”.42

Psicologicamente, a vontade motiva o ser humano, impelindo-o para a realização de um valor. Juridicamente, importa para a gênese dos direitos sub-jetivos, determinando a diferenciação entre fatos e atos jurídicos e embasando a doutrina que justifica esses mesmos direitos.43

Logo, a boa-fé objetiva qualifica uma norma de comportamento leal, como preleciona Judith Martins-Costa, quando afirma tratar-se de “regra de

40 Ibidem, p. 338.41 Ibidem, p. 338-339.42 GOMES, Orlando. Contratos. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 4343 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000. p. 412.

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conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do ‘alter’, visto como um membro do con-junto social que é juridicamente tutelado”.44

Dentre os fatos jurídicos lícitos ressalta-se o negócio jurídico em ra-zão da complexidade de sua estrutura interna, pois não se trata de mera manifes-tação da vontade para aderir aos efeitos previstos na ordem jurídica, mas de uma composição de interesses em que se estabelece um regramento de conduta entre as partes envolvidas. A vontade exteriorizada no negócio jurídico está voltada a uma negociação que, por sua vez, visa criar, adquirir, transferir, modificar ou extinguir direitos. É onde a autonomia da vontade se sobressai como principal característica, não obstante tal princípio, hodiernamente, encontre-se limitado pelos princípios constitucionais voltados à proteção da pessoa humana.45

É nessa especificidade que se encontram os limites objetivos das cláu-sulas compromissórias, ou a arbitrabilidade objetiva, já que não é qualquer im-passe gerado por desavenças entre os sócios que os levará a recorrerem ao juízo arbitral, em decorrência da existência de cláusula compromissória. Ainda, ex-pressão “composição de interesses”, revelados no negócio jurídico, demonstra a necessidade do assentimento ou consentimento do destinatário como condição de eficácia do negócio.46

É legítimo afirmar ainda que, resguardados os limites acima descri-tos, ainda que a decisão arbitral não fosse guarnecida dos efeitos descritos nas disposições contidas no art. 31 da Lei 9.307/96, ela teria absorvido para si o caráter do negócio jurídico pactuado entre as partes e, portanto, estaria dotada de normatividade relativamente à controvérsia dirimida. Neste momento o prin-cípio da boa-fé objetiva daria resguardo à decisão, vinculando as partes que, de comum acordo, recorreram ao juízo arbitral.

Cabe ainda discorrer sobre a arbitrabilidade subjetiva, ou limites sub-jetivos, a partir da análise da primeira parte do art. 1º da Lei 9.307/96, que diz respeito à capacidade. O Código Civil dispõe, em seu art. 1º, que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil. Maria Helena Diniz comenta que é da leitura desse artigo que se extrai a noção de capacidade, que é a maior ou menor extensão dos direito e obrigações de uma pessoa. A esta aptidão para adquirir direitos e contrair obrigações na vida civil denomina-se capacidade de direito ou de gozo. Já a capacidade de fato ou de exercício refere-se à aptidão

44 Ibidem. p. 412.45 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 513-514.46 MARTINS, Ricardo Marcondes. Contratos Administrativos. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17. jan/fev/mar, 2009. p. 4-5. Disponível em: <http:// www.direitodo estado. com/ revista /REDE -17-JANEIRO-2009-RICARDO%20 MARCONDES%20MARTINS.pdf>. Acesso em: 05.jun.2010.

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de exercer por si os atos da vida civil, “dependendo, portanto, do discernimen-to que é critério, prudência, juízo, tini, inteligência e, sob o prisma jurídico, a aptidão que a pessoa tem de distinguir o lícito do ilícito, o conveniente do prejudicial”.47

Logo, todas as pessoas capazes podem contratar cláusula de arbitra-gem. Conforme assertiva de Pedro A. Batista Martins, a indisponibilidade e a incapacidade são exceções no mundo jurídico e estas devem ser encaradas estritamente.48

Dos aspectos já anteriormente analisados é possível depreender que a manifestação da vontade ladeia a capacidade para que se consigne a opção pelo juízo arbitral. Chega-se, assim, ao cerne do trabalho, quando esta conjuga-ção de requisitos levanta algumas questões que podem, dentro das Sociedades por Ações nos, levar a dúvidas envolvendo os conflitos societários relativos ao acionista novo, do dissidente e do ausente.

Primeiramente é preciso considerar, como premissa fundamental, que a arbitragem se processa dentro dos padrões principiológicos que embasam o direito societário, arbitral e processual. Marcelo Dias Gonçalves Vilela afirma que é em razão desses princípios que se estabeleceram as teses oposicionistas à adoção da cláusula compromissória. Entre eles estão o princípio do contraditório (art. 5º, inc. LV, da CF), da ampla defesa (art. 5º, inc. LV, da CF), da razoável duração do pro-cesso (art. 5º, inc. LXXVIII, da CF), da igualdade (art. 5º, caput, da CF), da impar-cialidade (art. art. 13, § 6º do CPC) e do livre consentimento (art. 131, do CPC).49

O citado doutrinador também enuncia as questões suscitadas: a) re-núncia antecipada à jurisdição estatal, o que se opõe à ordem pública; b) vincu-lação dos novos acionista à clausula compromissória estatutária; d) vinculação dos dissidentes e dos ausentes à cláusula compromissória estatutária; e) a arbi-tragem nos grupos societários e contratos anexos; f) a cláusula compromissória em contratos que envolvam a Administração Pública ou o interesse público, com destaque à sociedade de economia mista.50

No primeiro caso, deve-se esclarecer que a rapidez com que se pro-cessam a compra e venda das ações no mercado não permite, na maioria das vezes, que o novo acionista se inteire da constituição do estatuto social da em-presa, do qual pode constar a cláusula compromissória. Daí o questionamento acerca da sua vinculação.

47 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. v. 1. Teoria Geral do Direito Civil. 19. ed. rev. de acordo com o novo Código Civil (Lei 10.406/02). São Paulo: Saraiva, 2002.48 MARTINS, Pedro A. Batista. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem: comentários à Lei 9.307/96. Rio de Janeiro: Forense, 2008. Introdução. p. 4.49 VILELA, Marcelo Dias Gonçalves. Arbitragem no Direito Societário. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 183-184.50 Idem.

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Conforme o entendimento de alguns doutrinadores, a validade e a efi-cácia da decisão arbitral estão intimamente ligadas à expressa manifestação da vontade das partes, pelo que o novo acionista deverá formalizar, posteriormen-te, a sua aderência à referida cláusula. Esta é a visão de Modesto Carvalhosa e de Nelson Eizirik, conforme discorrem:

(...) Há, com efeito, um requisito necessariamente de forma para a va-lidade e eficácia da cláusula compromissória estatutária que depende de sua específica adoção por parte de todos os compromissados. Sem essa expressa aprovação a cláusula compromissória é nula, por ferir o direito essencial do acionista de se socorrer ao Judiciário. E essa apro-vação vincula os fundadores na constituição e os acionistas que, nas alterações estatutárias posteriores, tiverem expressamente renunciado ao direito essencial prescrito no § 2º do artigo 109, da Lei nº 6.404/76, para a inclusão desse pacto parassocial no estatuto.51

Para os esses autores, o acesso ao Poder Judiciário é direito essencial e personalíssimo dos acionistas, podendo ser restringido unicamente por renún-cia expressa. Pelo fato de não se conceber presunção de renúncia a direito es-sencial, a eficácia da cláusula compromissória inserta em determinado estatuto social limita-se aos acionistas que a ela tenham expressamente se vinculado. Portanto, não se estendem àqueles que não subscreveram o pacto, como os no-vos acionistas.52

Nesta esteira é a visão de Luiz Leonardo Cantidiano, quando afir-ma que o novo acionista simplesmente adere ao conteúdo do estatuto social e, portanto, deve-se aplicar o § 2º do artigo 4º da Lei 9.307/96, por equiparação, o qual estabelece condições especiais para a validade da cláusula arbitral nos contratos de adesão. Sendo assim, a adesão à cláusula deverá se efetuar por iniciativa do novo acionista, exigindo que a sua vontade esteja expressamente contida, por escrito, em documento anexo ou negrito, com assinatura ou visto específico para a cláusula arbitral.53

Ressalte-se que este foi o procedimento adotado pelo Regulamento da Câmara de Arbitragem do Mercado, instituído pela BOVESPA, destinado a regular as eventuais divergências instauradas no âmbito das sociedades listadas em segmentos especiais daquela Bolsa.54

51 CARVALHOSA, Modesto. EIZIRIK, Nelson. A nova Lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 183-184. 52 Idem.53 CANTIDIANO, Luiz Leonardo. Reforma da Lei das S/A. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 119.54 MAKANT, Bárbara. A Arbitragem nas sociedades. In: ______; WALD, Arnold;

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Com relação ao posicionamento de Cantidiano, e conforme já foi analisado anteriormente sobre a natureza jurídica dos contratos de sociedades empresariais, há que se ressaltar que, embora o contrato de adesão tenha algu-mas semelhanças ao estatuto social, este tem natureza plurilateral, sendo que na sua constituição ressalta-se a vontade das partes tanto quanto na sua possível alteração, que deverá ter o seu assentimento majoritário, o que não acontece com o contrato de adesão. A Lei de Arbitragem, no § 2º do art. 4º, reporta-se aos contratos pactuados nas relações consumeristas.

Ao tratar da arbitragem nas relações de consumo, Selma M. Ferreira Lemes pontifica que a exigência da lei quanto ao fator volitivo do hipossufi-ciente no que tange a submeter-se ao juízo arbitral deve-se à necessidade de proteção ao consumidor e por não ser admissível a imposição de determinadas cláusulas nos denominados contratos de massa. Trata-se de impor condições de aceitabilidade por parte do aderente. Não se refere o legislador a momento pos-terior à adesão e nem à hipótese de não existir a referida cláusula no contrato, quando não há mais que se falar em elemento volitivo.55

Dando continuidade à sua explanação, a doutrinadora esclarece que nos contratos de adesão “uma das partes tem que aceitar, em bloco, as cláusulas estabelecidas pela outra, aderindo a uma situação contratual que se encontra definida em todos os seus termos”.56

O Código do Consumidor estatuiu a primeira definição legal de con-trato de adesão, no art. 54: (...) “aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente o seu conteúdo”. Segundo Lemes, a definição abrange os “contratos de adesão” e os “contratos por adesão”.57

Caracterizam-se assim, os contratos de adesão, pela desigualdade en-tre os contratantes. Refletem uma patente superioridade econômica de uma das

FONSECA, Rodrigo Garcia da. A Empresa do Terceiro Milênio: aspectos jurídicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 575-603.55 LEMES, Selma M. Ferreira. Arbitragem em Relações de Consumo no Direito Brasileiro e Comparado. In: _____; MRTINS, Pedro A. Batista; CARMONA, Carlos Alberto. Aspectos Fundamentais da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 113-141.56 Ibidem, p. 115.57 “Neste sentido é de se observar, também, as ponderações de Orlando Gomes quando assevera que os contratos ‘de adesão’ são contratos cuja estipulação é feita pelo Poder Público, cujas cláusulas preestabelecidas não podem ser recusadas como, por exemplo, os contratos de fornecimento de gás, energia elétrica, abastecimento de água etc.; e os contratos ‘por adesão’, os celebrados com base em cláusulas estabelecidas unilateralmente por particulares, sem a característica de irrecusabilidade”. (Cf. Nelson Nery Júnior. “Da proteção Contratual”, Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 288).

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partes, que é a que estipula as cláusulas contratuais de forma predeterminada, uniforme e rígida. Talvez, aqui, se pudesse ultrapassar a rígida metodologia de elaboração desse trabalho e cogitar sobre a possibilidade de Cantidiano não ter se baseado nessas características para adotar o procedimento formal de adesão à cláusula compromissória. Afinal, no sistema majoritário “existe uma correlação direta entre risco de capital empregado e controle social”,58 o que não deixa de se constituir desigualdade entre as partes.

Retornando à situação do novo acionista, cabe incluir a visão de San-dra Yuri Yonekuda que também entende que ficam vinculados os sócios fun-dadores quando a cláusula compromissória tenha integrado o ato constitutivo da companhia “ou os demais sócios que tenham integrado o corpo societário posteriormente e que expressamente tenham manifestado sua vontade de aderir a tal cláusula”.59 Ademais, afirma que essa situação não afeta os direitos dos acionistas que ingressaram na sociedade em momento posterior à sua constitui-ção, pela aquisição de ações.

Deve-se frisar, também, que existe normatização específica sobre a arbitragem nas companhias com o intuito de restabelecer o equilíbrio das rela-ções no seio da sociedade e de reparação civil dos eventuais prejuízos causados ao patrimônio social pelos administradores e controladores, o que interessa a to-dos os acionistas, como se depreende do art. 109, § 3º da Lei 6.404/76 ao dispor que “os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou assembléia geral”.60

A interpretação do artigo em foco leva a concluir que a arbitragem encontra-se entre os meios que a lei confere aos acionistas colimando a defesa de seus direitos. De forma consoante ao mecanismo adotado nos contratos de adesão a arbitragem não se impõe a uma parte que não se sujeitou ao procedi-mento judicial, seja novo acionista, dissidente ou divergente, posto que o acesso ao Poder Judiciário seja direito essencial.61

Por sua vez, Vilela considera que a cláusula compromissória passa a inteirar o estatuto ou contrato social:

A convenção arbitral (cláusula compromissória) integra-se ao próprio estatuto ou contrato social e independentiza-se da vontade dos sócios fundadores ou instituidores, para se tornar uma “vontade” (norma) so-

58 CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 473.59 YONEKURA, Sandra Yuri. A arbitragem e a Lei das Sociedades Anônimas. Revista de Direito Empresarial, n. 2, jul-dez. Curitiba: Juruá, 2004. p. 84. 60 CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 366. 61 FINKELSTEIN, Cláudio. A Questão da arbitrabilidade. Revista Brasileira de Arbitragem, n. 13, jan-mar, Porto Alegre: Thompson, 2007. p. 27-28.

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cial, que vincula a relação entre os associados. Na verdade, a cláusula compromissória estatutária não é uma regra paraestatutária (parasso-cial), mas se coloca como uma regra orgânica da sociedade.62

De entendimento contrário, Carvalhosa afirma que a cláusula com-promissória não compõe as normas de organização da empresa, “não vinculan-do, portanto, a todos os seus acionistas. A sociedade aí não aparece como centro de imputação de interesse, mas como parte num pacto social”. E acrescenta:

A sociedade despe-se, por conseguinte, do seu poder de impor a todos os acionistas a cláusula compromissória estatutária, na medida em que se coloca como parte no pacto compromissório diante de outras partes, ou seja, os acionistas que individualmente aceitaram essa con-venção arbitral para dirimir seus conflitos.63

Dessa ótica, a cláusula compromissória não adquire caráter associa-tivo e, portanto, não é oponível aos acionistas novos, mesmo àqueles que não aderiram posteriormente a seus termos ou àqueles já integrados à sociedade e que não foram favoráveis à sua adoção. De fato, esta é a estrita interpretação do § 3º do art. 109, da Lei das Sociedades Anônimas que, acima de tudo, está em conformidade com o preceito fundamental de acesso ao Poder Judiciário.

Frente ao raciocínio do autor em destaque, é de se concluir que as cláusulas compromissórias constituem um pacto parassocial entre a sociedade e os seus fun-dadores e acionistas que, aprovando a sua inclusão, expressamente aderiram a seus termos. Nesta esteira, Carvalhosa alerta sobre a necessidade de não se confundir a cláusula compromissória estatutária com as normas estatutárias “impostas a todos os acionistas coletiva e individualmente. Há (...) clara distinção entre a livre declaração de vontade dos acionistas e a obrigação destes como membros da sociedade”.64

Sendo assim, não há como se afirmar que ao ingressar na sociedade, pela compra de ações, o novo acionista deve se inteirar do estatuto social, que goza de publicidade, e aderir automaticamente à cláusula compromissória por esta se encontrar inserta ao estatuto social. Ocorre que a referida cláusula não pode ser considerada como pertinente às normas de organização da empresa e, logo, ter um caráter oponível. Mesmo porque,

Ao renunciar à jurisdição estatal para adotar o juízo arbitral, o acionista e a sociedade estão renunciando a um direito essencial, que, portanto,

62 VILELA, Marcelo Dias Gonçalves. Op. cit., p. 19263 CARVALHOSA, Modesto. Op. cit., p. 314.64 Idem.

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tem caráter personalíssimo, como referido, não se transmitindo entre os acionistas que não renunciaram expressamente a esse direito cons-titucionalmente assegurado (art. 5º, XXXV, da CF) e societariamente reiterado (§ 2º do art. 109, ora comentado).65 [com grifo no original]

Por outro lado, deve-se considerar que a exigência da vontade expres-sa para instituir a arbitragem (art. 4º, § 2º da Lei de arbitragem) refere-se espe-cificamente aos contratos de adesão, como já comentado anteriormente, ao se trazer à colação os ensinamentos de Selma M. Ferreira Lemos. A verdade é que, no que tange à regulação das sociedades empresariais não há norma própria para os casos que agora se discute. Apenas a interpretação do § 2º do art. 109 da Lei das Sociedades Anônimas: é a interpretação literal de que a cláusula com-promissória não se impõe pelo estatuto, já que este não pode elidir os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar seus direitos, sendo que o maior deles é o direito essencial e, portanto, personalíssimo, de acesso ao Poder Judiciário.

Emparelhando o seu entendimento com aqueles autores que argumen-tam não haver necessidade desse tipo de formalidade para a adesão de novos só-cios, ou sócios ausentes aderirem à cláusula compromissória, Bárbara Makant traz como um de seus argumentos o princípio da decisão majoritária, segundo o qual não se admite a prevalência da vontade individual em detrimento da so-ciedade. Outro fundamento para a sua negativa à sistemática anteriormente de-talhada é a dinâmica do mercado das companhias abertas, que não é compatível com a manifestação formal de cada novo acionista para expressar a sua vontade de aderir à cláusula compromissória. Por outro lado, assevera que a negação dos acionistas “importaria no âmbito de atuação da cláusula compromissória, uma vez que a ela estariam vinculados somente a sociedade e o acionista con-trolador, mas não ao universo de acionistas em cujas mãos estão pulverizadas as ações da companhia”.66

Por ora resta concluir, a partir das anteriores considerações, que a doutrina é unânime no que se refere à cláusula arbitral instituída na consti-tuição da companhia, tornando-se vinculante entre os acionistas fundadores, assim como também na hipótese de reforma estatutária em que a maioria votou favoravelmente à adoção da cláusula compromissória. Porém, no tocante às questões relativas ao novo acionista, ao acionista divergente ou dissidente, é possível afirmar que se estabelecem duas correntes, diametralmente opostas: uma que restringe a letra da lei e outra que a expande.

65 Ibidem, p. 315.66 MAKANT, Bárbara. Op, cit., p. 93-95.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluiu-se que o ordenamento jurídico estabelece ampla autonomia para as sociedades anônimas regerem-se como organização econômica. É através dessa autonomia negocial que se conservam as relações empresariais e, por meio da arbi-tragem, elas se restabelecem frente a eventuais conflitos, dando continuidade à orga-nização empresarial. A própria estabilidade da empresa reporta à sua função social.

Conforme indicam os estudos na seara da Sociologia, as instituições são capazes de controlarem situações conflitantes e antagonismos. É por essa razão que elas são dotadas de poder para elaborar normas e referências conven-cionais que transformam o antagonismo em diferenciações sociais dotadas de certa estabilidade, aspecto importante que permeia a sua função social.

As companhias, em razão da sua atividade econômica, interagem com dois institutos fundamentais: a função social e os contratos (art. 421, do Código Civil e art. 116, parágrafo único, da Lei 6.404/76). A função social das companhias está intimamente relacionada à função social da propriedade (art. 5º, inc. XXIII, c/c art. 170, caput, inc. III, ambos da Constituição Federal). No entanto, ela também pode ser avaliada pela função social do contrato, à medida que este reflete a conjugação dos variados interesses com o escopo de atingir o melhor interesse da sociedade.

A abordagem institucional sobre as sociedades anônimas extrapola a própria empresa e alcança inúmeros setores econômicos e sociais que, portanto, podem ser afetados pelas decisões tomadas por seus administradores. Por essa razão, o poder de controle empresarial passa a ser incluído na abrangência do conceito constitucional de propriedade e, conseqüentemente, naquilo que res-peita à função social da propriedade.

É assim que os meios alternativos de composição de litígios tiveram sua pronta aceitação frente às dificuldades enfrentadas pelo Poder Judiciário. A autonomia legalmente concedida às organizações permite que os particulares envolvidos em um negócio jurídico exerçam a sua autonomia negocial expres-sando-a na cláusula compromissória acessória ao estatuto social, a fim de que se mantenha a estabilidade necessária às empresas e toda a gama de setores econômicos e sociais que com ela se relacionam economicamente. (art. 116, 117 e caput do art. 154, da Lei 6.404/76).

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EDUCAÇÃO NO BRASIL: SISTEMA DE COTAS

EDUCATION IN BRAZIL: QUOTA SYSTEM

gErSon DE França

Graduando em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICU-RITIBA. Pedagogo graduado em 2001 pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.

maria Da glória colucci

Advogada. Possui graduação em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (1968). Especialização em Filosofia do Direito pela Puc-Pr (1984). Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1990). Profª. adjunta 04, aposentada da Universidade Federal do Paraná. Profª. titular do Centro Universitário Curitiba - UNI-CURITIBA. Membro da Sociedade Brasileira de Curitiba. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. Membro do Instituto dos Ad-vogados do Paraná (1989). Membro do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Profª. Emérita do UNICURI-TIBA, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010.

SUMÁRIO: 1 Introdução, 2 Colonização do Brasil E Os Aspectos Históricos, 3 Educa-ção no Brasil: Sistema de Cotas, 3.1 Direito à Educação, 3.1.1 O Direito à Educação na Constituição de 1988, 3.1.2 Ações Afirmativas: Peculiaridades, 3.1.3 Políticas Públicas e Programas: Inclusão, Utilização e Discriminação, 3.1.4 Ações Afirmativas para Negros e Menos Favorecidos, 4. O Poder Judiciário, 4.1. Traçado Histórico do Problema de Cotas, 4.2. Recentes Decisões, 4.3. O Estado Atual da Questão, 5. Conclusão, Referências

RESUMO

A sociedade brasileira tem buscado o acesso ao ensino público e gra-tuito, sobretudo, as classes sociais menos favorecidas. Neste contexto, o Estado tentando encontrar saídas estabeleceu as denominadas cotas sociais e raciais. Contudo os resultados não foram satisfatórios, porque ao fixar percentuais ou reservas de vagas gerou uma diversidade de polêmicas em relação ao todo da população. A partir de um estudo interdisciplinar, o Artigo correlaciona áreas como o Direito, História e Pedagogia.

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Palavras-chave: cotas raciais, cotas sociais, direito à educação.

ABSTRACT

Brazilian society has sought access to free public education, especially the lo-wer social classes. In this context, the State established outlets trying to find the so-called social and racial quotas. However the results were not satisfactory, because the fixed percentage or reservation of vacancies generated a variety of controversies in relation to the whole population. From an interdisciplinary study, article correlates areas such as Law, History, Pedagogy. Keywords: racial quotas, quotas social right to education.

1. INTRODUÇÃO

As diferenças existentes na educação do Brasil vêm desde o Império e estenderam-se aos dias de hoje. O índio, o negro e o branco enfrentaram difi-culdades em uma época que o território brasileiro era explorado por Portugal. Os colonizadores portugueses buscavam as riquezas que tinham na nova terra para enviá-las para a capital portuguesa.

A crescente necessidade de mão de obra levou os portugueses a bus-carem outros meios para suprir essa carência. O uso do trabalho escravo foi a solução encontrada para suprir a deficiência de mão de obra. O negro foi utili-zado como mão de obra escrava e passou por severas crueldades.

O tempo passou e a Lei Áurea foi um marco para a proclamação da abolição dos escravos no Brasil. Contudo, inexistia um planejamento estratégico socioeconômico capaz de absorvê-los na sociedade capitalista da época. Nesta fase da história brasileira as leis estavam em constantes mudanças por causa da Revolução Francesa (1789) e a independência dos Estados Unidos da América (1776). O princípio da igualdade na promoção de medidas sociais e igualitárias era influenciado pelas ideias liberais que consistiam na igualdade formal.

O Poder Público, ao longo dos anos, foi sendo persuadido pelas mu-danças internacionais. Aos poucos foram sendo incluídos na Lei Maior institu-tos que criminalizavam o preconceito em relação à origem, raça, cor, idade, e outros. Com a Constituição de 1988, cognominada Constituição Cidadã, veio a inclusão de crime inafiançável para a discriminação racial.

Os anos se passaram e hoje é objeto de grande controvérsia a inserção no ensino superior de alunos advindos de famílias de baixa renda e de negros, através de cotas sociais e raciais. A Lei de Diretrizes e Bases (9.394/96) da

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educação estabeleceu estruturas e fundamentos para a educação no Brasil e a sistemática das cotas deve ser discutida no ambiente escolar.

O Poder Judiciário se manifestou sobre o regime de cotas nas Univer-sidades públicas e considerou constitucional esse regime. Neste mesmo sentido houve a aprovação da Lei de Cotas (12.711/12) que prevê a destinação de 50% das vagas em instituições públicas de ensino técnico e superior para alunos cotistas. Neste contexto será conduzida a presente análise abordando o sistema de cotas e a diversidade racial na educação brasileira sob o foco jurídico e da sistemática social de implementação de melhorias na educação do País.

Dessa feita, as políticas públicas para o acesso à educação das mino-rias étnicas no Brasil devem ser ponderadas pela inclusão de ações afirmativas. A sociedade pode contribuir para o equacionamento das diferenças existentes em relação às minorias raciais. As reservas de cotas sociais e raciais não são coincidentes no contexto socioeconômico brasileiro.

2. COLONIZAÇÃO DO BRASIL E OS ASPECTOS HISTÓRICOS

O Brasil foi colonizado por Portugal que estava enfrentando grave crise econômica e com isso precisava explorar a Colônia. Os índios que aqui viviam possuíam uma estrutura própria organizacional baseada na tradição do seu povo.

A carência de mão de obra e a necessidade de desenvolver a agricul-tura, a pecuária e outros meios de extração de riquezas, levou os portugueses a buscarem trabalhadores para suprir essa necessidade. O trabalho desenvolvido pelos camponeses ganhou força dos escravos trazidos da África que, na maioria dos casos, eram designados às propriedades rurais.

Uma das prerrogativas enfrentadas pelos portugueses na Colônia foi devido às invasões holandesas, e a crescente disputa pela terra para o cultivo da lavoura, e para a pastagem dos animais, que foram obrigados a adentrar para o interior do Brasil através da exploração pecuária. Seguindo essa lógica o gado, um produto que se move, foi o instrumento básico desta penetração guiado por produtores alagoanos e sergipanos, que subiam o rio São Francisco em deman-da dos ‘sertões’ (LINHARES, 1990, p. 83).

A mineração teve influência muito grande na dinâmica da Colônia brasileira. A economia do ouro ocasionou o alargamento da ocupação do terri-tório, também atraiu para si a pecuária do sul através de São Paulo e realçou o papel do Rio de Janeiro como capital da Colônia.

Na segunda metade do século XVIII houve a exaustão da mineração do ouro e diamantes, por conseguinte, o ciclo econômico em torno desta estra-tificação mineral não era mais atrativo como outrora. De acordo com Skidmore

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(2010, p. 75.) a economia brasileira tornou-se dependente de “[...] exportações agrícolas, como algodão e o arroz complementando agora as tradicionais expor-tações do tabaco e açúcar. Por volta de 1830 um novo produto havia aparecido – o café, um produto de exportação que abasteceria a economia de exportação do Brasil”.

Com a crescente demanda no mercado internacional, o café se va-lorizou de tal maneira que houve a necessidade de ampliar a sua produção. A escassez de trabalhadores em São Paulo levou poucos fazendeiros a importar imigrantes europeus para trabalhar na lavoura cafeeira:

Os fazendeiros brasileiros pagavam a passagem para esses imigran-tes e prometiam emprego, condições de trabalho aceitáveis e ganhos razoáveis em troca do trabalho. A experiência fracassou, talvez por causa da inerente incompatibilidade do trabalho escravo e livre numa mesma plantação. De todo modo, muitos desses imigrantes reclama-ram a seus governos que estavam sendo tratados como escravos – e com tanta veemência que a Prússia reagiu proibindo o recrutamento de imigrantes pelo Brasil. (SKIDMORE, 2010, p. 76.)

Contudo, mesmo com as assimetrias existentes entre os trabalhadores imigrantes e escravos, era vantajoso para os fazendeiros trazerem estrangeiros para o Brasil. Isso acontecia porque estes logo penetravam na sociedade local e tinham acesso fácil aos locais e países da América do Sul e Estados Unidos. Conforme explicação de Skidmore (2010, p. 105.) “[…] Os imigrantes que chegavam ao Brasil eram tipicamente versáteis, muitas vezes demonstrando sua grande mobilidade do trabalho agrícola ao têxtil e à metalurgia”.

Com a abolição da escravatura se intensificou a imigração de estran-geiros que se endereçavam para São Paulo e a região sul do País. A formação social do Brasil passava por um novo momento. Os imigrantes tinham o obje-tivo de encontrar melhores condições socioeconômicas e condições de trabalho favoráveis à ascensão social.

Os ex-escravos ficaram em uma situação desconfortável pelo regime de exclusão socioeconômica que se perpetuou. Com isso, na base da pirâmide social estava o não branco que alijado do acesso a melhores condições sociais tinham que buscar alternativas para a sobrevivência. Na maioria dos casos, fi-cavam sem empregos e tinham que morar nas periferias das grandes cidades.

A exclusão social e o abandono pelo Poder Público da época in-tensificaram a marginalização e discriminação que já existiam. Segundo o historiador (SKIDMORE, 2010, p. 103) a abolição foi obtida gradual-mente sem muitos conflitos se comparada com a abolição estadunidense.

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Embora não houvesse conflitos significativos entre raças no Brasil após a abolição, existia um completo abandono por parte do Estado que não propiciou condições sociais dignas aos negros livres. Por isso, mesmo passando longos anos, ainda assim há reflexos desta política abolicionis-ta desacompanhada de infraestrutura para os negros.

3. EDUCAÇÃO NO BRASIL: SISTEMA DE COTAS

3.1 DIREITO À EDUCAÇÃO

Antes de conceituar educação é interessante saber como se iniciou a edu-cação no Brasil. Segundo o historiador americano (SKIDMORE, 2010, p. 44) com a chegada dos jesuítas para a Colônia, desde logo, implantaram um sistema de ensi-no que foi denominado “colégios”67 e, por isso, detinham o monopólio da educação.

Observa-se que o início da educação no Brasil se deu pela iniciativa privada e que segundo Skidmore (2010, p. 45) “[...] O cenário mudou com a chegada dos jesuítas, que logo se tornaram a influência católica dominante pelo seu controle da educação (suas escolas eram chamadas colégios) e sua criação de missões indígenas.” A influência da religião na educação do Brasil foi muito acentuada a ponto de, até nos dias atuais, existirem influências no que tange às escolas administradas por entidades religiosas.

O conceito de educação, conforme o artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, abrange os processos formativos que são desen-volvidos no ambiente familiar, no convívio humano entre as pessoas, no rela-cionamento no mundo do trabalho, nos movimentos sociais que se aglutinam em prol de uma causa, nas instituições de ensino e pesquisa que desenvolvem as habilidades cognitivas e motoras do indivíduo, por fim, nas manifestações culturais e na organização da sociedade civil como um todo.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação também estabelece no artigo 1º, parágrafo 2º da Lei 9.394/96 conforme ressalta Saviani (2008. p. 163.) que “[...] a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e prática so-cial”. Essa vinculação da educação com o mundo do trabalho deve ser analisada com cuidado para não privilegiar o trabalho em detrimento dos estudos.

Na atualidade, a estrutura e organização do ensino no Brasil dis-põe que a Educação Básica compreende a educação infantil, o ensino fun-damental e o ensino médio. O artigo 3º da Lei 11.274/06 ampliou o ensino fundamental para nove anos com a seguinte redação: “[…] O ensino fun-damental obrigatório, com duração de 9 (nove) anos, gratuito na escola pú-67 “1. Estabelecimento de ensino de 1º e 2º grau. 2. Corporação eleitoral, etc”. (FERREIRA, 2010, p. 175)

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blica, iniciando-se aos 6 (seis) anos de idade, terá por objetivo a formação básica do cidadão [...]”68. A partir do ano de 2010 as crianças de seis anos de idade devem ser matriculadas no primeiro ano do ensino fundamental.

As diversas normas criadas pelo Poder Legislativo sobre educa-ção buscam dar efetiva melhoria ao ensino brasileiro. A exemplo disso, o Plano Nacional de Educação (PNE) mediante a Lei 10.172/01 preconi-zou prioridades para garantir o acesso ao ensino fundamental obrigató-rio. A criação de leis que regulam e norteiam ações a serem tomadas pelo Poder Público são necessárias e importantes, porém nem sempre atingem o fim proposto acerca de melhorias efetivas na educação.

No Plano Nacional de Educação está previsto que o governo busque implementar no sistema educacional, através de medidas que as-segurem a elaboração de diretrizes curriculares, a regularização de fluxo escolar e a formação de professores. Esses três aspectos são importantes para que se alcance a tão desejada melhoria na qualidade da educação nacional. Contudo, há muito a ser feito para que se possa ter educação democrática e acessível para a população.

A natureza constitucional da educação está prevista nos direitos funda-mentais e na ordem social. A Constituição de 1988 prevê no artigo 6º que a educa-ção é um direito fundamental e também nos artigos 205 a 214 como ordem social. Nesse sentido, (SOUZA NETO; SARMENTO, 2010, p. 774) afirmam que “[...] esse direito significa, primariamente, o direito de (igual) acesso à educação, que deve ser concedido a todos, especialmente para os níveis mais basilares do ensino”.

A responsabilidade do Poder Público em implementar medidas que venham garantir a efetivação dos direitos fundamentais e sociais é grande, por-que o Estado Democrático de Direito exige do governante ações individuais e coletivas para a população.69 Ademais cabe à educação promover a visão de mundo para as pessoas e a forma que elas vão visualizar os acontecimentos.

A análise crítica na leitura de um jornal, revista, internet ou programa

68 BRASIL, Lei nº 11.274, de 6 de fevereiro de 2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 7 fev. 2006. Disponível em: <http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=07/02/2006>. Acesso em: 31 ago. 2012.69 “O acolhimento dos princípios de um Estado social e democrático de direito pela Constituição brasileira impõe [...] uma série de tarefas tendentes à realização de finalidades coletivas – as quais não se limitam à produção de leis ou normas gerais (como ocorre no Estado de direito liberal); tampouco à garantia de participação popular do processo de tomada de decisões (exigência do Estado democrático de direito). No Estado social de direito, é a elaboração e a implementação de políticas públicas – objetivo, por excelência, dos direitos sociais – que constituem o grande eixo orientador da atividade estatal, o que pressupõe a reorganização dos poderes em torno da função planejadora, tendo em vista a coordenação de suas funções para a criação de sistemas públicos de saúde, educação, previdência social, etc”. (DUARTE, 2007, p. 964).

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de televisão, exige do agente receptor, reflexões oriundas do esforço, dedicação e empenho na compreensão de conteúdos complexos ensinados na escola atra-vés da educação:

Ela pode e deve ter, em um Estado Constitucional, a função de superação das concepções de mundo marcadas pela intolerância, pelo preconceito, pela dis-criminação, pela análise não crítica dos acontecimentos [...]. A consciência de que viver em uma República não implica apenas desfrutar direitos, mas também compreende responsabilidades cívicas, devem ser promovida pela Educação. (SOUZA NETO; SARMENTO, 2010, 790-791)

A importância da educação vai além das fronteiras da sala de aula, tanto é verdade que a Constituição e a Lei de Diretrizes e Bases enfatizam que é um dever do Estado e da família. A educação é um direito público subjetivo, isto é, o Estado oferece democraticamente para toda uma coletividade por ser um direito difuso.

O artigo 5º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, segundo Saviani (2008, p. 165) especifica que entidades de classe, o Ministério Público, associações comunitárias e outros grupos podem exigir do Poder Públi-co o cumprimento do acesso ao ensino. Para Bucci (2006, p. 268) “[...] o direito público subjetivo configura-se como um instrumento jurídico de controle da atuação do poder estatal, pois permite ao seu titular cons-tranger judicialmente o Estado a executar o que deve”.

Na realidade, o pleiteamento da pretensão de que o Poder Público faça ou deixe de fazer na esfera individual não está contemplada quando se fala em direito difuso. Entretanto, segundo entendimento de Bucci (2006 apud FERRAZ JUNIOR, 1994, p. 146) é possível fazê-lo acionando “[...] normas ju-rídicas (direito objetivo), transformando-as em seu direito (direito subjetivo)”. Por isso, cada cidadão que se sentir prejudicado no acesso à educação poderá, sobretudo no ensino fundamental, pleitear, ainda que individualmente, o direito ao ensino público e gratuito, mesmo a lei prescrevendo que a educação é um direito público subjetivo.

Também a população que se sentir lesada por descumprimento de al-gum direito fundamental pode acionar o Ministério Público que tem uma im-portante tarefa dentre as muitas que já desenvolve. Conforme entendimento de Mazzilli (2001. p. 76) , está encarregado de assegurar o acesso à Justiça, bem como defender todos os direitos sociais, e também individuais, se disponíveis. Um dos instrumentos disponíveis para efetivação das ações, dentre outras, seria

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a ação civil pública.Não obstante, a Carta Magna faculta ao cidadão escolher se quer estu-

dar em instituições públicas ou privadas. Contudo, a população mais carente da sociedade não tem o direito de escolha porque não possui condições de pagar escola privada de ensino. Para Souza Neto (2010, p. 795) “[...] Infelizmente hoje muitas escolas públicas, [...] constituem em ambientes violentos que tam-bém interferem na decisão daqueles que possuem condições para matricular seus filhos em escolas particulares”.

Além disso, a falta de qualidade e valorização do profissional de edu-cação é uma realidade presente no ensino público brasileiro. Ao passo que é garantido o acesso obrigatório e gratuito à educação e isso é assegurado a todos indistintamente, mesmo assim, os que podem pagar pelo ensino sempre estarão em vantagem.

3.1.1 O DIREITO À EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A educação no Brasil, com a Constituição de 1988, representou um avanço se comparado as legislação anteriores. Essas prerrogativas, de até mes-mo responsabilizar o Poder Público pela sua omissão, são uma das conquis-tas com a Carta Maior deste País. A Constituição (1988) apresentou segundo Oliveira (1999. p. 61) “[...] com maior precisão da educação e detalhamento, introduzindo-se, até mesmo, os instrumentos jurídicos para a sua garantia. En-tretanto, o acesso, a permanência e o sucesso na escola fundamental continuam como promessa não efetivada”.

Os Municípios, Estados, Distrito Federal e a União, respectivamente, têm a obrigação de ofertar vagas na educação básica, no ensino fundamental/médio e no ensino superior como determina a Constituição de 1988. É garantida a universalização do acesso à educação com gratuidade pelo Poder Público na educação básica e no ensino fundamental.

No ensino médio devem ser conferidas as mesmas prerrogativas des-critas para o ensino fundamental. Além disso, dispõe que sejam oferecidos de maneira suplementar material didático, alimentação (merenda escolar) e assis-tência à saúde.70

70 “O artigo que detalha o Direito à Educação é o 208, formulado nos seguintes termos: O dever do Estado para com a educação4 será efetivado mediante a garantia de: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria; II - progressiva extensão da obrigatoriedade e gratuidade ao ensino médio; III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino; IV - atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade; V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um; VI - oferta de ensino noturno regular, adequada às condições do educando; VII

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A Magna Carta da República Federativa do Brasil também prevê a educação nas escolas particulares. Por conseguinte, a educação privada é ofere-cida por grupos educacionais que, além do lucro, buscam competitividade neste mercado, oferecendo qualidade no ensino, pois querem ter mais alunos.

A Lei Maior de 1988, ainda, determina que a União deva aplicar, no mínimo, 18%, excluídas as transferências, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25% do total da receita resultante de impostos, incluídas as transfe-rências constitucionais, na manutenção e desenvolvimento do ensino público.71 O Estado deveria investir em educação de qualidade para toda a população bra-sileira, porém, sabe-se que a Administração Pública enfrenta dificuldades para gerar receitas e o investimento em educação fica em segundo plano.

Os denominados direitos de segunda geração, devem ser implementa-dos pelo Estado, para que haja uma relação social mais equilibrada, garantindo melhores condições socioeconômicas e neutralizando as diferenças de classes para proteger os mais fracos:

[…] os direitos sociais exigem, para sua efetividade, uma atuação “prove-dora” do Poder Executivo. As implicações econômicas e jurídicas dessas dependências recíprocas são evidentes quando as políticas tributárias são insuficientes, elas não conseguem carrear os recursos necessários para os gastos do governo tanto com custeio quanto com investimento. Por con-seguinte, receitas fiscais insuficientes acabam inviabilizando o alcance e a efetividade das políticas educacionais. (ANNONI, 2002. p. 344)

A necessidade de custeio e ampliação da promoção social do acesso à educação é um desafio dos gestores da administração pública. Os ajustes eco-nômicos promovidos pelo Poder Público acabam elegendo outras prioridades que não a educação.

É necessário que o gestor público realize medidas que fomentem a economia, gerem mais emprego, cortem gastos e equilibrem as contas públicas, implementando medidas que viabilizem o acesso à educação e à permanência destes alunos na escola. O investimento em educação é muito baixo se compa-rado aos países desenvolvidos.

Por sua vez, conforme manda a Constituição de 1988, são necessários

- atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde”. (OLIVEIRA, 1999, p. 62)71 “Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino”. BRASIL, Código civil; Comercial; processo civil; constituição federal. Organização dos textos, Antonio Luis de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Wind; Lívia Céspedes. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 100.

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gestores públicos, eleitos pelo povo, que passem a investir em educação, além do mínimo necessário e buscando sempre a eficiência pública na promoção e custeio da educação no Brasil.

3.1.2 AÇÕES AFIRMATIVAS: PECULIARIDADES

A questão das ações afirmativas já foi objeto de discussão em várias partes do mundo. Isso se deu pela provocação da sociedade civil, através de lide, que teve como objeto central da controvérsia a referida ação afirmativa. A questão é delicada e apresenta grande complexidade por envolver a interpreta-ção e aplicação de normas constitucionais e infraconstitucionais.

A prerrogativa de se programar medidas que viabilizem justiça social para os necessitados são políticas que se esperam do Estado, no entanto, não é fácil quando estão em discussão ações afirmativas na educação. Mas qual será a definição de ação afirmativa? Segundo entendimento de Menezes é:

[...] o conjunto de estratégias, iniciativas ou políticas que visam favo-recer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condi-ções de competição em qualquer sociedade em razão, na maior parte das vezes, da prática de discriminações negativas, sejam elas presen-tes ou passadas. [...] são medidas especiais que buscam eliminar os desequilíbrios existentes entre determinadas categorias sociais até que eles sejam neutralizados, o que se realiza por meio de providên-cias efetivas em favor das categorias que se encontram em posições desvantajosas. (MENEZES, 2001. p. 27)

As ações afirmativas não podem ser confundidas com cotas porque se assim o fizerem estarão reduzindo-a apenas uma das modalidades de medidas por esta abrangida. Para que se possa deixar bem definido o conceito de ação afirmativa buscou-se em outros autores a descrição sobre o assunto. Para Car-valho (2008, p. 735), ações afirmativas são:

[…] medidas que objetivam eliminar os desequilíbrios existentes en-tre determinadas categorias sociais até que sejam eles neutralizados, concretizando-se mediante providencias efetivas em favor daquelas categorias que se encontram em situação desvantajosa. […] Fala-se, por isso mesmo, entre outras, em quotas de ação afirmativa para a população negra no acesso a cargos e empregos públicos, educação superior, reserva de vagas nas universidades públicas para alunos egressos da rede pública de ensino.

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No Brasil a Consolidação das Leis do Trabalho aprovada em 1937 vedou a diferenciação em relação aos rendimentos do prestador de serviços, com base no sexo, nacionalidade ou idade. “[...] O advento da Constituição de 1988 trouxe novos ‘ventos’ para a sociedade brasileira, que começa a articular discussões sobre o tema” (CRUZ, 2005, p. 164). As ações afirmativas foram ganhando força no cenário nacional a ponto de legislações estaduais contem-plarem esta prerrogativa nos órgãos públicos.

Segundo Ferreira Filho (2010, p. 212), as políticas de ações afirmati-vas teriam uma série de dificuldades no que tange à identificação do grupo que há de ser beneficiado pelas medidas. Para ele não se pode, por exemplo, utili-zar conceito impreciso, indeterminado, de quem é negro. Neste mesmo sentido Carvalho especifica que:

[…] alguns problemas são levados por quem se posiciona de maneira contrária ao seu implemento, traduzidos na adequação ou não daque-las medidas aos fins dos concursos públicos ou dos vestibulares, que envolvem a aplicação do sistema de mérito, lembrando-se que deter-minado candidato, em decorrência da etnia, poderá ser beneficiado na entrada, com a continuação do curso sem base anterior, preparo ou conhecimento mínimo. (CARVALHO, 2008, p. 735)

Deve-se considerar em que medida do avantajamento decorrente das regras deve ser aferida em face da desigualdade a ser corrigida. As normas devem ser adequadas à correção de desigualdade. Também na avaliação da pro-porcionalidade e adequação do tratamento diferenciado para que não tenha efei-to contrário com excessiva onerosidade aos outros grupos ou para a sociedade como um todo.

Outro ponto em questão levantado por Ferreira Filho (2010, p. 213.) é justamente que as cotas devem ser temporárias como descreve a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Com isso, se passar o tempo colimado não atinge o objetivo proposto e geram a violação do princípio da razoabilidade:

[…] Uma dificuldade a mais surge na aplicação das ações afirmativas. Trata-se da verificação de pertencer ou não quem delas quer benefi-ciar-se ao grupo que elas favorecem. [...] É evidente que a cor de pele não serve de comparação, porque tanto há afrodescendentes negros ou de pele escura, como há de pele clara, “branca” na visão comum. E ao invés, há quem não seja afrodescendente e tenha pele escura.

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(FERREIRA FILHO, 2010, p. 213)

Os critérios a serem adotados para mensurar quem pertence ao grupo ou não são subjetivos. No artigo 3º da lei 12.711/2012 especifica que “[...] as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas”.72 Logo, verifica-se que não há crité-rio objetivo bem definido para poder aplicar ação afirmativa no regime de cotas:

[…] às compensações em favor dos negros, debate-se sobre a enor-me dificuldade de se determinar quem é negro, já que especialmen-te indicam não haver critério que não deixe, em todas as hipóteses, dúvidas sobre a etnia do indivíduo, considerando-se, ademais, que a raça não é determinada apenas pela cor de pele (o critério adotado pela legislação, neste caso, é a manifestação da própria pessoa, que deve declarar-se negra, o que pode levar a desvirtuamentos). (CAR-VALHO, 2008, p. 735.)

A propósito da existência de uma categoria social que não tem acesso democraticamente a determinados direitos fundamentais, e isso se dá pela sua condição peculiar, tais como gênero, condição social, religião, raça, e outros, as ações afirmativas se tornam necessárias. “[...] É importante chamar a atenção para o fato de que o sistema de quotas é apenas uma das modalidades existentes de ação afirmativa” (MENEZES, 2001, p. 30.). Existem outras formas de se ter ação afirmativa para alcançar justiça social.

Pelo mundo afora houve experiências de ação afirmativa que foram implantadas em alguns países. No âmbito internacional acredita-se que a pri-meira experiência de ação afirmativa aconteceu na Índia:

[…] A Constituição da Índia, editada em 1950, baniu juridicamente o regime de castas, o que, por óbvio, não foi suficiente para por fim à discriminação contra os indivíduos pertencentes às castas inferio-res, nem muito menos assegurar a igualdade de oportunidades a estas pessoas. Assim, em 1951, chega à Suprema Corte da Índia o primeiro caso envolvendo políticas de ação afirmativa [...] em que se discutia a constitucionalidade de uma lei estadual que instituíra reserva de vagas para integrantes de castas inferiores em universidades de Medicina e de Engenharia. (SARMENTO, 2010, p.156)

72 BRASIL, Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 ago. 2012. Disponível em: <http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=30/08/2012>. Acesso em: 30 ago. 2012.

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Neste caso, a Lei foi considerada inconstitucional por considerarem que violaria o princípio da isonomia. Com essa alegação da Suprema Corte indiana houve uma corrida para que fosse editada uma emenda constitucional que foi efetivada no mesmo ano. A partir deste momento a lei autorizou que houvesse discriminação positiva para determinadas castas, e ainda, de tribos que se encontravam em situação desfavoráveis em relação as outras.

Exemplifique-se com os norte americanos, que enfrentaram grande conflito racial, no entanto, “[...] o sistema de quotas, de fato, praticamente não é utilizado nos Estados Unidos, na atualidade, por ser considerado inconstitucio-nal” (MENEZES, 2001, p. 3 No ano de 1978 a Suprema Corte Americana teve de julgar um caso de ação afirmativa:

Tratava-se do caso Bakke […] na qual um aluno branco, alam bakke, impugnava a validade do programa de quotas para afro-americanos estabelecido pela Faculdade de Medicina da Universidade Estadual da Califórnia, em Davis, que reservava 16 dentre suas 100 vagas para o candidatos negros. Bakke obtivera pontuação superior à de candida-tos negros que conseguiram entrar na faculdade e, não obstante, não pudera nela ingressar em razão do sistema de quotas, que, segundo ele, violaria o seu direito à igualdade. (MENEZES, 2001, p. 158)

Neste caso a Suprema Corte se encontrou em uma situação complica-

da e dos nove juízes quatro foram a favor e cinco foram contrários ao regime de cotas. A fundamentação de um dos juízes considerava inconstitucional segundo as normas consuetudinárias americanas, porém acreditava que sob o ponto de vista do pluralismo seria conveniente. Em suma, Bakke conseguiu a vaga e pode cursar medicina.

Em relação às cotas nos Estados Unidos “[...] a opinião pública não apro-va este sistema, embora seja favorável a outras formas de ação afirmativa, como a oferta de treinamento profissional complementar para grupos, marginalizados” (MENEZES, 2001, p. 3 Neste sentido, houve vários pedidos de ação afirmativa para que a Suprema Corte se manifestasse sobre o acesso ao emprego e inclusive a disponibilidade de vaga para negro em empresas públicas (agências reguladoras). Entretanto, nos últimos tempos houve nova composição nas cadeiras da Corte Su-prema Americana que passou a ser mais conservadora nas suas decisões:

[...] nas últimas décadas estas políticas começaram a escassear, so-frendo forte oposição dos seguimentos mais à direita do aspecto po-lítico. Por outro lado, a própria Suprema Corte assumiu um perfil mais conservador, pelas sucessivas nomeações de juízes em adminis-

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trações republicanas, e este fato refletiu-se na sua posição, cada vez mais reticente, sobre as medidas de discriminação positiva em favor de minorias étnicas. (MENEZES, 2001, p. 159).

Por conseguinte, as políticas de ações afirmativas no campo étni-co-racial foram implementadas em países como “[...] Austrália, Nova Ze-lândia, Israel, China, Rússia, Sri Lanka, Malásia Nigéria, Ilhas Fuji, Canadá e África do Sul” (SARMENTO, 2010, p.16 Nos Estados Unidos o regime de cotas, após longas discussões na Suprema Corte, é considerado incons-titucional. Por conseguinte, o Poder Público apoia ações afirmativas que propiciem igualdade de condições:

“[...] O governo federal norte-americano, por exemplo, reconhece ou-tros mecanismos que enquadram nesse conceito, mas que não adotam o sistema de quotas. É o caso, por exemplo, da oferta de treinamentos específicos para membros de certos grupos, quando tendentes a corri-gir os desequilíbrios existentes [...]”.(MENEZES, 2001, p. 30)

Por certo que os que são favoráveis às ações afirmativas étnico-raciais justificam a necessidade de ser implementada essa modalidade por considera-rem quatro prerrogativas. Uns acreditam ser necessárias por se tratar de justiça compensatória. A segunda opinião considera fundamental para que haja justiça distributiva. Outros pela promoção pluralista do convívio entre eles. Por fim, ainda os que acreditam ser necessárias pelo fortalecimento da identidade negra.

3.1.3 POLÍTICAS PÚBLICAS E PROGRAMAS: INCLUSÃO, UTILIZAÇÃO E DISCRIM-INAÇÃO

As políticas e programas que o Poder Público tem desenvolvido na inclusão das minorias no acesso à educação têm sido muito controvertidos. As ações afirmativas para acesso à educação, sobretudo, no ensino superior as po-líticas de cotas são questionadas por parte da população alegando ser antidemo-cráticas. Por outro lado, os defensores destas medidas justificam a necessidade de ampliação do acesso ao ensino superior para as pessoas carentes.

O governo brasileiro criou o Programa Universidade para Todos (PROUNI), por Medida Provisória em 2004, e foi institucionalizado pela Lei 11.096/2005. O Programa tem como finalidade a concessão de bolsa de estudos integral ou parcial a estudantes de baixa renda em curso de graduação e sequen-ciais de formação específica. As instituições privadas de ensino que optaram em aderir ao programa obtiveram isenção de alguns impostos.

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Sobre o regime de cotas foi aprovada a Lei 12.711/2012 que regula-mentou a necessidade de as universidades federais disponibilizarem 50% das vagas para alunos cotistas. Antes disso havia resoluções dos Conselhos Univer-sitários das Universidades Federais estabeleciam o regime de cotas.

No Rio de Janeiro, a Lei 4.151, de 4 de setembro de 2003, estabeleceu nas Universidades públicas estaduais cotas para ingresso nos seus cursos de graduação. Neste sentido, Roberta Fragoso entende que a falta de qualidade no ensino público é o grande vilão para o acesso dos negros ao ensino superior:

[...] não há dúvidas de que a falta de preparo adequado pode ser asso-ciada às precárias condições econômicas dos negros e à necessidade de estudar em escolas públicas, nas quais o ensino fundamental e mé-dio, na maioria das vezes, é de qualidade inferior à do ensino privado. (KAUFMANN, 2007, p. 136)

A luta por uma educação de qualidade e melhores condições de traba-lho para o profissional de educação se faz necessária; pois, a formação do aluno, sobretudo o de escolas públicas, está cada vez mais precária.

Logo, este educando não terá a mínima condição de ser aprovado em um vestibular concorrido. As universidades públicas federais são gratuitas e, no entanto, os cursos mais concorridos como: Medicina, Arquitetura, Engenharia, Direito, e outros, são em sua maioria, preenchidos por alunos que tiveram um ensino de qualidade.

As dificuldades enfrentadas pelos alunos que foram incluídos pelo sistema de cotas são muitas. Além disso, deveriam ser considerados os elementos que são ca-racterísticos de cada nicho social, além de análise pormenorizada que levasse em con-sideração as especificidades individuais da pessoa que se beneficia desse Programa:

A personalidade humana possui elementos que a compõe como a dig-nidade, a individualidade e a personalidade. A dignidade humana con-siste no elemento indicador da localização do ser humano no Univer-so. A individualidade consiste na unidade indivisível do ser humano, consigo mesmo identificada, que possui um caráter próprio, que todo indivíduo traz consigo ao nascer. A personalidade é o terceiro ele-mento, que se traduz pela relação do indivíduo com o mundo exterior. (SZANIAWSKI, 2005. p. 114.)

A dignidade humana, a individualidade de cada aluno e a personalida-de que estabelece a universalidade de direitos e deveres sociais deve ser tomada como referenciais permanentes na implantação de qualquer política pública.

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Por conseguinte, os estudantes de instituições privadas que se prepa-raram ao longo de vários anos enfrentam no acesso ao ensino público superior medidas consideradas por muitos como sendo antidemocráticas.

Embora se saiba que nas Resoluções há um tempo máximo de vi-gência das cotas, a exemplo da UFPR, que pela Resolução nº 37/04-COUN, estabeleceu tempo máximo para as cotas como sendo de 10 anos, ainda assim, seriam antidemocráticas, segundo o entendimento dos que lhes são contrarias.

3.1.4 AÇÕES AFIRMATIVAS PARA NEGROS E MENOS FAVORECIDOS

Para promoção das ações afirmativas, sejam cotas para negros ou so-ciais, é necessário que se ofereçam oportunidades para o acesso ao ensino su-perior, porém, sem se omitir de proporcionar um ensino público de qualidade nas séries iniciais. Voltando um pouco no tempo, observa-se que na década de 1980 a situação era precária “[...] os resultados eram altas taxas de evasão e um exército de crianças semi-analfabetas, a maioria das quais ingressava no mer-cado de trabalho antes de atingir a idade normal para terminar o segundo grau” (SKIDMORE, 2010, p. 28 Ademais aqueles que podiam pagar escola particular para seus filhos não hesitaram em fazê-lo:

As crianças nas escolas brasileiras repetiam as séries elementares numa proporção mais alta do que em qualquer outro país. A classe média, com mais recursos, reagia mandando seus filhos para escolas particulares, o que aumentava a segregação educacional por classe social e solapava o senso coeso da cidadania ao qual o sistema de escolas públicas era delicado. (SKIDMORE, 2010, p. 281)

Esse problema crônico é histórico e afeta toda uma sociedade inde-pendente da sua condição étnica. A questão dos negros “[...] a criação de me-didas positivas em que a cor da pele seja o único fator levado em consideração não parece ter a eficácia desejada para combater a raiz dos problemas” (KAU-FMANN, 2007, p. 142). A falta de oportunidades e a melhor distribuição de renda para a população brasileira geram exclusão aos menos favorecidos.

A ausência de educação com qualidade, principalmente, no ensino médio, causa um efeito cruel sobre o aluno marginalizado, impedindo-o de en-trar em uma universidade pública. A justificação das cotas “mascara” a inope-rância do Estado em oferecer uma educação de qualidade criando oportunida-des efetivas a todos os cidadãos brasileiros. Segundo Azevedo (2004, p. 215):

[...]eu já posso ouvir os proponentes da cota racial a reclamar de tanta

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ingenuidade: esforço, disciplina, talento, enfim, mérito, não existem em abstrato, assim como não passa de um mito a tradicional aspira-ção iluminista de igualdade de todos perante a lei. Tudo depende das oportunidades de cada um, ou melhor, do ponto de arrancada de cada um na grande corrida pela vida. Os “melhores”, os “vencedores”, se-rão aqueles que tiverem reunido a maior gama de oportunidades já ao nascer e ao longo da vida.

A criação de oportunidades pelo Estado para que a população tenha acesso às riquezas produzidas no País são fundamentais para que diminua as diferenças entre a população pobre da mais rica. Logo, a equiparação entre uma escola pública e uma instituição privada - partindo da premissa que a escola privada é de melhor qualidade - não seria necessária que se criem cotas para negros ou cotas sociais, porque esses alunos estariam preparados para competir com outros alunos das mais diversas Universidades.

A geração de oportunidades concretas para o acesso ao ensino de qua-lidade em todas as etapas do processo educativo é um fator preponderante para o equacionamento social:

Assim, se quisermos contrapormo-nos ao racismo subjacente e invi-sível das nossas instituições precisamos, em primeiro lugar, garantir a criação de oportunidades para os negros brasileiros, sem o que não lhes será possível vencer no cenário competitivo da sociedade moder-na de livres e iguais perante a lei. ( AZEVEDO, 2004, p. 215)O Estado brasileiro através das cotas (raciais, sociais, PROUNI)

vitimizam a todos os que participam do processo educativo. Os professores se obrigam a transmitir e acompanhar o processo educativo de um aluno que ainda não está preparado para enfrentar os desafios do ensino superior, em-bora haja os defensores desta prática. Esse aluno se vê obrigado a se superar a todo o momento.

Por certo que, devido a sua carência no ensino médio, tem dificul-dade para acompanhar as aulas que são conceituais e requerem um raciocínio mais abstrato. Ademais a falta de condições econômicas para o transporte escolar, compra de materiais, lanche, e a própria necessidade de trabalhar, acabam estando em desvantagem em relação aos alunos advindos de uma condição mais favorável.

Outro aspecto importante é o ambiente familiar que nem sempre ofe-rece a atenção especial necessária para o estudante, isto é, não somente a ava-liação deve ser feita sob a ótica da renda familiar, mas, sobretudo, a estrutura psicossocial deve ser considerada para a concessão de uma vaga cotista. O des-

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contentamento de ambas as partes é grande porque uns acreditam que as cotas afirmativas são uma medida compensatória. Já aqueles que são contra as cotas acreditam ser antidemocráticas.

4. O PODER JUDICIÁRIO

4.1 TRAÇADO HISTÓRICO DO PROBLEMA DE COTAS

As ações afirmativas em regime de cotas, como já foram abordadas anteriormente, entende-se que tiveram início na Índia conforme mencionado por Sarmento (2010, p.154). Nos Estados Unidos a ação afirmativa surgiu “[...] sendo o Presidente John F. Kennedy o primeiro a utilizar a expressão em um texto ofi-cial, em 1961, ao propor medidas que tinham como objetivo ampliar a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho” (SARMENTO, 2010, p.154).

Paralelamente, no Brasil, alguns entenderam que houve ação afirma-tiva quando foi aprovada, em 1937, a Consolidação das Leis do Trabalho “[...] que vedou a diferenciação, no tocante ao rendimento do prestador de serviços, com base no sexo, nacionalidade ou idade” (MELLO, 2001, p. Neste mesmo sentido, a Constituição de 1988 preconizou, segundo entendimento de Cruz (2005, p. 143-144) que:

[...] as ações afirmativas têm guarida no texto constitucional vigente, como se depreende do artigo 3º, inciso IV. É um objetivo/princípio fundamental do Brasil a promoção do bem geral, que deve passar necessariamente pela superação de preconceitos discriminatórios. A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível (art. 5º, XLII). São invioláveis a liberdade de expressão, de consciência, de crença (art. 5º, VI) e a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, I). É obrigação comum de todos os nossos entes federativos a proteção e a garantia das pessoas portadoras de deficiência (art. 23, II).

O ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição de 1988, permitiu grandes avanços na garantia dos direitos fundamentais. Por conseguinte, alguns entes da federação, na Constituição Estadual, instituíram leis estaduais que garantiam a discriminação positiva para o acesso ao ensino superior.

O Estado do Rio de Janeiro através da aprovação da Lei 4.151 de 4 de setembro de 2003, criou 45% de vagas para cotistas nas Universidades Estadu-ais. As vagas seriam distribuídas 20% para negros e indígenas, 20% para estu-dantes oriundos de escolas públicas e 5% para pessoas com deficiência. Através

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da Lei 5.074/2007 o Legislativo Fluminense incluiu no regime de cotas os filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares, inspetores de segurança, administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.

Nas Universidades Federais foi sendo implementado o sistema de co-tas aos poucos pelos conselhos universitários através de resoluções. A primeira instituição Federal a adotar ação afirmativa para negros como critério de acesso ao ensino superior foi a Universidade de Brasília (UnB) em 2004.

A Universidade Federal do Paraná, com a Resolução 37/04, estabe-leceu um plano de metas para inclusão de cotas raciais por um período de dez anos. Por conseguinte, as cotas raciais e sociais foram sendo implantadas nas instituições públicas federais em quase todo território nacional.

Por certo que, com a aprovação pelo Senado Federal do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 180/2008, foi regulamentado por força de lei federal o regime de cotas nas universidades públicas brasileiras. Com isso, abre-se um precedente para que haja discriminação positiva entre os alunos no acesso ao ensino superior nas instituições federais.

4.2 RECENTES DECISÕES

A questão da controvérsia do acesso ao ensino superior público brasi-leiro tem gerado muitas discussões na sociedade e no meio acadêmico. Os mo-vimentos sociais têm se organizado no que tange às ações afirmativas. As cotas sociais e raciais têm gerado decisões no Poder Judiciário, Poder Legislativo e Executivo que normatizam e regulamentam a implementação destas medidas.

No início do ano de 2012 o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 186), ajuizada pelos Democratas, contra o sistema de cotas na Universidade de Brasília (UnB), como sendo constitucional. Por unanimidade os ministros se pronunciaram favoráveis ao sistema de cotas implantado naquela Instituição. As cotas devem ser ofertadas no período de 12 anos. Portanto, com essa decisão o Supremo Tribunal Federal legiti-mou o regime de cotas adotado por outras instituições federais de ensino superior.

No Legislativo Federal, em agosto de 2012, houve a votação do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 180/08 que foi aprovado pelo Senado Federal. O Projeto assegurou 50% das vagas nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. Os critérios para reserva de vagas são a rede de ensino, renda familiar, cor e raça e terá validade por um período de 10 anos.

Contudo as críticas são inevitáveis e acontecem em todas as camadas da sociedade, entretanto, houve decisões soberanas da Corte máxima do País e do Poder Legislativo na aprovação da Lei de Cotas, por isso devem ser respei-tadas as decisões. Além do que o Poder Executivo sancionou em 29 de agosto

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de 2012 a Lei 12.71173. Porém, não se exclui de análises críticas e construtivas para se alcançar um equilíbrio entre o público e o privado na implementação de melhorias na educação do Brasil.

4.3 O ESTADO ATUAL DA QUESTÃO

As decisões atuais sobre as ações afirmativas no regime de cotas nas Universidades públicas brasileiras, segundo o entendimento do Supremo Tri-bunal Federal, são constitucionais. Foi aprovado na Câmara o Projeto de Lei 180/08 que regulamentou as cotas nas Universidades públicas e escolas técni-cas federais por um período de dez anos a ser promovido pelo Poder Executivo.

O Projeto foi muito criticado [...] “as escolas particulares reagiram ao Projeto de Lei aprovado no Congresso Nacional que reserva 50% das vagas das 59 universidades federais a alunos oriundos da rede pública de ensino e ameaçam ir à Justiça” (FOREQUE; GUERREIRO, 2012, p. 4). As desigualda-des existentes dos alunos egressos por cotas é gritante e carece de uma atenção especial sobre a questão.

A diferença de nível de educação é alarmante entre o ensino médio da instituição pública em comparação ao privado. Tanto é verdade que na Univer-sidade Federal do Rio Grande do Sul foi necessário que diminuísse a nota de corte da prova objetiva para que aumentasse o número de alunos cotistas com a redação corrigida. Além do que, em cursos concorridos a diferença de notas dos escores é gritante o que demonstra grande disparidade do nível de cada aluno ingressante na instituição federal.74

O que está vigente atualmente é a Lei 12.711/2012 que trata do re-gime de cotas para as instituições de ensino público de nível federal ligado ao Ministério da Educação. Essa lei terá validade de dez anos disponibilizando cotas de 50% para alunos pretos, pardos, índios e estudantes de baixa renda.

Por certo que o pré-questionamento a ser feito, no que tange a cotas para o acesso ao ensino superior público, é justamente que o negro não conse-gue passar no vestibular por sua condição de cor ou é pela exclusão social sub-metido ao longo da história? A grande questão é justamente se o Poder Público

73 BRASIL, Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 30 ago. 2012. Disponível em: <http://www.in.gov.br/imprensa/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=1&data=30/08/2012>. Acesso em: 30 ago. 2012.74 Formados pelo deficiente ensino público, os futuros médicos cotistas vão ingressar em desvantagem em relação aos colegas. É o que sugerem os seus desempenhos. O escore do afrodescendente pior colocado é 565 — média que jamais garantiria o acesso à Medicina em vestibulares passados. Entre aqueles que entraram via acesso universal, a média mais baixa é 754,11. (ETCHICHURY, 2012, p. 3)

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está fazendo algo para reduzir as diferenças em relação à qualidade na educação pública para se chegar à igualdade de condições entre os diversos alunos de instituições públicas e privadas.

5. CONCLUSÃO

A diversidade na educação é positiva porque um país como o Brasil tem influência de outras culturas como a europeia, africana, indígena e outras. Por isso, não há como negar que a influência dos colonizadores e imigrantes construíram uma Nação miscigenada. Também é sabido, conforme os registros históricos apresentados, que houve no passado grande discriminação racial no Brasil e atualmente ainda existe em menor escala, ainda que de forma velada.

É certo que as diferentes regiões brasileiras possuem peculiaridades típicas que influenciam no processo ensino-aprendizagem dos alunos e isso deve ser considerado, porém não se poder deixar de lado a qualidade da edu-cação oferecida para essa população. A divulgação da nota do Índice de De-senvolvimento da Educação Básica (Ideb) no segundo semestre de 2012 foi lamentável. Os resultados de nove Estados pioraram, por isso, é necessário que se busque meios para melhorar a qualidade da educação.

Os excluídos do acesso a um ensino de qualidade (negros, os índios e os de menor poder aquisitivo), necessitam que o Poder Público saia da neutrali-dade em relação à igualdade de oportunidade no âmbito educacional e propicie condições de acesso ao ensino de qualidade desde a mais tenra idade. Sabe-se, contudo, que o Estado, em muitos casos, alega que não possui recursos orça-mentários para tanto.

Quando se busca inserir no ensino superior alunos através de cotas está causando um desnível muito grande na dinâmica do ensino-aprendizagem. Tanto é verdade que o Ministério da Educação planeja realizar reforço esco-lar para os alunos ingressantes através de cotas como já relatado nos capítulos anteriores. É necessário e justo que se tenham ações pontuais para as minorias sociais garantindo-lhes melhores oportunidades no acesso ao ensino superior e técnico, porém, a desvantagem enfrentada por aqueles que ingressam por cotas é muito grande.

Os alunos melhor preparados sempre estarão em vantagem, porque mesmo tendo acesso a somente 50% das vagas, estarão em melhores condições porque estudaram nos melhores colégios. Por isso um aluno cotista deverá se superar a todo o momento e o princípio constitucional da igualdade material, defendido pelos favoráveis às cotas, se torna ineficaz na academia porque todos os alunos, aparentemente, estão sob o mesmo ponto de partida (igualdade for-mal), porém que não se materializam.

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Os alunos cotistas (social, negro e índio) que não conseguem ser apro-vados no vestibular convencional é justamente porque não foram assistidos pelo Estado com um ensino de qualidade. Por conseguinte, da mesma forma que um aluno advindo de uma instituição privada, que estudou bastante, e isso lhe exigiu concentração, dedicação, empenho, força de vontade para adquirir conhecimentos não pode ser desassistido pelo Estado.

A Lei de Cotas (12.711/12) prevê o prazo de dez anos para o funcio-namento desta discriminação positiva; porém, não estipula e nem atribui metas para que o Poder Executivo crie, implemente e melhore a qualidade no ensino público para os alunos após o final do prazo.

Dessa forma, é necessário que a Justiça Social (igualdade material) não seja usada como argumento para disponibilizar vagas em instituições pú-blicas de formação superior, através de cotas étnico-raciais sem levar em consi-deração o nível de ensino oferecido aos alunos nas séries iniciais.

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A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

REVERSING THE ONUS OF PROOF IN THE LABOUR PROCEDURE

luiz EDuarDo KuDla

Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

mauro JoSElito borDin

Graduado em Direito (1988), Pós-Graduado em Direito Individual e Coletivo pela Faculdade de Direito de Curitiba (1990) e Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2007). Atualmente é pro-fessor da cadeira de Processo do Trabalho da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e advogado - Gomes Coelho & Bordin Sociedade de Advogados. Tem experiência na área de Direito do Trabalho.

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Da Prova no Processo de Conhecimento; 3 Do Ônus da Prova; 4 A Inversão do Ônus da Prova no Processo do Trabalho; 5 Conclusão; Referências.

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar e compreender o critério utilizado para a determinação da inversão do ônus da prova no direito processual do trabalho brasileiro. A fim de melhor abordar o tema, apresentou-se um breve estudo geral sobre a prova no processo judicial, destacando a sua importância para a formação do juízo de convencimento do julgador e a forma de como este deve avaliá-la e valorá-la. Após, passou-se ao estudo jurídico acerca do ônus probatório, para, deste modo, identificar os critérios utilizados pelo sistema ju-diciário trabalhista para determinar a inversão deste ônus probatório e a sua admissibilidade com a legislação trabalhista, pretendendo-se, com isso, estudar a construção lógica desse raciocínio, identificar possíveis fragilidades e, assim, buscar o aperfeiçoamento de sua interpretação e aplicação.

Palavras-Chave: ônus da prova, inversão, compatibilidade de dispositivos e princípio da aptidão para prova.

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ABSTRACT

The present article aims to study the criteria used to determine the reversal of onus of proof in the brazilian labor procedural law. In order to bet-ter address the issue, presented a brief overview of the study evidence in the judicial process, highlighting its importance for the formation of the judgment of conviction and order of the judge of how this should evaluate it and assess this one. After, we went to the legal study about the evidential onus, to thereby identify the criteria used by the judiciary to determine labor reversing this evi-dential onus and its admissibility labor legislation, intending thereby to study the construction logic of this reasoning, identifying potential weaknesses and thus seek improvement of its interpretation and application.

Keywords: onus of proof, inversion, device compatibility and suitability for proof of principle.

1. INTRODUÇÃO

A fase probatória constitui uma etapa primordial ao processo do tra-balho. É através dela que as partes podem trazer aos autos a realidade externa ao processo, dando fundamento às suas teses e para que estas possam ser devidamente analisadas pelo julgador. Assim, “provar significa formar con-vicção do juiz sobre a existência ou não de fatos relevantes ao processo” (CHIOVENDA, 2009, p. 1047).

Com efeito, conforme prevê o artigo 131 do Código de Processo Ci-vil, a construção do juízo de convicção do juiz está diretamente vinculada às provas produzidas nos autos, pois, sendo superados os sistemas primitivos de valoração de prova, o magistrado não pode proferir uma decisão contrária às provas constantes do processo sem que esclareça as razões pelas quais o fez.

Deste modo, o ônus probatório no direito do trabalho constitui ele-mento fundamental com relação aos interesses das partes no processo e as con-sequências jurídicas que dele decorrem, sobretudo, quando a parte que detém este encargo de provar o fato não o faz, devendo-se, portanto, observar os parâ-metros estabelecidos pela lei e pelos princípios processuais referentes à distri-buição do ônus da prova acerca dos fatos aduzidos no processo.

Destarte, deve-se analisar se os critérios adotados pelos tribunais pá-trios no que atine á atribuição do ônus da prova às partes no processo do traba-lho apresentam alguma incongruência com a legislação processual trabalhista em si, tendo em vista que, para isso, é corriqueira a utilização de normas pro-cessuais estranhas ao direito processual do trabalho.

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Não obstante, para que o estudo desta questão seja possível, se faz necessário primeiramente abordar a prova no processo de conhecimento sob um aspecto geral, discorrendo sobre a atuação do magistrado no processo probatório.

Após, procurou-se definir o conceito e os aspectos gerais acerca do ônus da prova e sua distribuição no processo do trabalho, para, enfim, abordar o objeto principal deste estudo, qual seja, a inversão do ônus da prova no pro-cesso do trabalho, destacando os critérios utilizados pelo sistema processual do trabalho para tal e o posicionamento da doutrina e jurisprudência pátria acerca do tema.

2. DA PROVA NO PROCESSO DE CONHECIMENTO

Antes de nos lançarmos ao estudo do ônus da prova no processo do trabalho, sua inversão e os fundamentos utilizados para tal, faz-se necessário estudar o conceito de prova em si.

Buscando definir este importante instituto processual, Pontes de Mi-randa (2000, p. 451) conceituou a prova como sendo um ato judicial ou proces-sual a que o juiz utiliza para determinar a certeza acerca dos fatos controversos ou duvidosos a que os litigantes trazem a juízo.

Sob este mesmo prisma, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2009, p. 264) definiram a prova como um meio retórico, regulado pela lei, que, através dos parâmetros previamente estipulados pelo direito e de critérios racionais, busca o convencimento do Estado-juiz acerca das alegações feitas no processo que foram objeto de impugnação.

Assim, podemos concluir que a prova tem como finalidade constituir uma base de certeza acerca dos fatos arguidos pelos litigantes, proporcionando ao juiz que dela se utilize para que este possa formar seu juízo de convencimento so-bre os fatos controversos ou duvidosos, relevantes à relação jurídica trazida à sua apreciação, e, deste modo, que a prova possa influir e fundamentar a sua decisão.

Para isso, o processo probatório deve ser dirigido através da busca pela verdade. Com efeito, a despeito do processo judicial conseguir contemplar apenas a verdade formal, constituída pelos elementos distribuídos no processo, a fase probatória deverá sempre ter como fim a verdade material, que é aquela realizada no mundo fenomênico.

Ainda, em virtude do princípio do livre convencimento motivado do juiz, apesar deste ter ampla liberdade para análise das provas produzidas no processo, independente da forma ou da origem a que lhe são apresentadas, lhe é defeso proferir uma decisão contrária às provas produzidas sem que demons-tre os fundamentos que determinaram aquele resultado, sendo-lhe exigível que

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esclareça o caminho e, deste modo, as verdades sobre os fatos que culminaram para aquela decisão.

Neste sentido, Manoel Antônio Teixeira Filho (2009, p. 992-993) esclarece:

O seu convencimento, por isto, longe de ser arbitrário, fica ajoujado a certas regras específicas, bem como a regras de lógica jurídica, sem desprezo pelas máximas de experiência. Por esta razão, ele apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes, mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.

Sendo assim, a prova não possui somente a função de nortear o pro-cesso de convencimento, mas também de delimitar a sentença proferida pelo magistrado, uma vez que, segundo o disposto no artigo 131 do Código de Pro-cesso Civil brasileiro.

Em razão desta importância, a prova é considerada um direito essencial, diretamente ligada aos direitos fundamentais do contraditório e acesso à justiça.

Neste sentido, destacamos o posicionamento de Luiz Guilherme Ma-rinoni (1999, p. 258), o qual assevera que o direito à prova é o resultado da garantia da adequada participação no processo, uma vez que de nada adiantaria a garantia de participação às partes em que não haja a possibilidade do uso efetivo dos meios probatórios, mitigando os meios pelos quais estas possam demonstrar a veracidade de suas alegações.

Logo, deve-se propiciar às partes o direito de requerer a produção das provas, de participarem diretamente de sua elaboração e de se manifestarem so-bre os resultados obtidos com esta, uma vez que as alegações dos fatos trazidos ao processo têm relação direta com o a fase probatória.

Não obstante, sendo o juiz o principal destinatário das provas, este tam-bém deverá assumir uma conduta ativa nesta fase processual. Segundo o Código de Processo Civil Brasileiro, mais precisamente em seu artigo 130, o juiz deverá determinar as provas necessárias à instrução do processo, a requerimento das par-tes ou mesmo de ofício, devendo ainda impedir a realização das diligências que se revelem inúteis ou que contenham um caráter meramente protelatório.

Com efeito, cumpre esclarecer que a possibilidade que as partes de-tém para requerer as provas que entendam como necessárias para a instrução processual não afasta a legitimidade do juiz para ordenar a produção de outras provas. Com isso, o julgador possui melhores condições para exercer a sua função conforme lhe é exigido, uma vez que esta prerrogativa afasta a condição de colocá-lo como mero expectador no processo, proporcionando que este, ob-servada a busca pela verdade material, a inafastabilidade da prestação jurisdi-

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cional e o princípio inquisitivo que rege o processo probatório, tenha melhores condições para resolver os conflitos que lhe são apresentados.

3. DO ÔNUS DA PROVA

Conforme exposto no ponto anterior, a prova é a principal ferramenta a que o juiz dispõe para formar a sua convicção sobre os fatos controversos e relevantes ao processo, cabendo às partes a responsabilidade da produção das provas que lhes sejam úteis para que tenham suas pretensões acolhidas.

No entanto, podemos identificar um elemento fundamental para a fase probatória, que merece ser analisado com cautela, vez que é capaz de ser utilizado como critério determinante para o provimento ou desprovimento das pretensões almejadas pelas partes: o ônus da prova.

Para melhor analisarmos este elementos, ressaltamos o conceito de ônus da prova formulado por Amauri Mascaro Nascimento (2009, p. 538):

Ônus da prova é a responsabilidade atribuída à parte para produzir uma prova e que, uma vez desempenhada satisfatoriamente, , traz, como conseqüência, o não-reconhecimento, pelo órgão jurisdicional, da existência do fato a que a prova se destina a demonstrar.

Ainda sobre o ônus da prova, Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart (2009, p. 269) dispõem que, sendo a prova um comportamento neces-sário ao julgamento favorável, o ônus da prova indica à parte que caso esta não produza determinada prova se sujeitará ao risco de ter um julgamento desfa-vorável. Com isso, o não cumprimento deste ônus não resulta necessariamente no resultado desfavorável em si, mas sim no risco que esta tem de não ter sua pretensão acolhida em razão de não tê-lo satisfeito.

Não obstante, cumpre ressaltar que a doutrina majoritária é cate-górica ao afirmar que o ônus da prova não se trata de um dever, mas de uma liberalidade que as partes dispõem para produzirem as provas que acharem necessárias e úteis. Isto porque, sendo a satisfação deste ônus uma escolha das partes, em não o fazendo, estas assumem o risco de, em virtude da não produção daquela prova e não sendo comprovado o fato alegado, terem um julgamento desfavorável contra si.

Do mesmo modo, o ônus da prova não pode ser considerado um dever porque a parte que o detém não está obrigada a cumpri-lo, seja em relação ao juiz, seja em relação aos demais litigantes. Esta realização se dá (ou não) exclu-sivamente por um interesse próprio, individual.

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Corroborando com o exposto, ensinou Pontes de Miranda (2000, p. 457):

Ônus da prova é o ônus que tem alguém de dar a prova de algum enunciado de fato. Não se pode pensar em dever de provar, porque não existe tal dever, quer perante a outra pessoa, quer perante o juiz; o que incumbe ao que tem o ônus da prova há de exercer-se no seu próprio interesse.

Em relação ao direito processual do trabalho, a doutrina também é uníssona ao estabelecer a diferenciação ônus/dever em relação ao ônus da pro-va, evidenciando tal entendimento nas palavras de Manoel Antônio Teixeira Filho (2009, p.971):

O ônus probandi se vincula ao interesse da parte em ver provados os fatos narrados em juízo; daí porque a lei fixou, objetivamente, e com base nesse interesse, os critérios relativos à distribuição desse encargo processual. Tanto é verdadeiro que o ônus da prova não constituiu uma obrigação, que, em certos casos, mesmo que a parte dele não tenha se desincumbido, poderá ter acolhida a sua pretensão, que tinha como pressuposto o fato que deixou de provar: isso poderia ocorrer, por exemplo, na hipótese de a parte contrária, inadvertidamente, pro-duzir, em benefício da outra, a prova que a esta competia.

Com base nestas definições acerca da natureza do ônus probatório, podemos concluir que trata-se de um ônus imperfeito, pois, uma vez não aten-dido, não acarretará necessariamente na rejeição dos pedidos formulados pela parte que deixou de fazê-lo. Em contrapartida, o ônus perfeito seria aquele que não satisfeito automaticamente implica em uma consequência jurídica à desfa-vorável à parte.

Nesse sentido, ressaltamos o pronunciamento do Superior Tribunal de Jusiça no julgamento do Recurso Especial nº 696.816/RJ (REsp 696.816/RJ, julgado em 06/10/2009, DJe 29/10/2009):

PROCESSUAL CIVIL. ÔNUS PROCESSUAL. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. ATIVIDADE INSTRUTÓRIA DO JUIZ. DE-TERMINAÇÃO DE OFÍCIO DE PRODUÇÃO DE PROVA PERI-CIAL. ADIANTAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS.I - Ônus processual pode ser entendido como uma faculdade cujo exercício configura implemento de condição apta a colocar a parte em situação processual mais vantajosa. Transportando essa noção para o campo probatório é possível afirmar que o ônus da prova exorta a

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parte que o suporta a produzir determinada prova, sob pena de, não o fazendo, ver constituída em seu desfavor, uma situação gravosa.Assim, se a parte não se desincumbe do ônus de provar determinado fato, resta ao juiz interpretar o non liquet que daí pode se originar em desfavor dessa mesma parte.II - Considerando o princípio da inafastabilidade da Jurisdição, as re-gras relativas ao ônus da prova se apresentam, portanto, como um instrumento que permite ao juiz proferir sentença nas hipóteses em que ele não conseguiu formar uma convicção (motivada) a respeito dos fatos. Precedentes.III - A inversão do ônus da prova não é incompatível com a atividade instrutória do juiz reconhecida no artigo 130 do Código de Processo Civil.IV - Não se impõe à parte contrária a obrigação de adiantar as custas relativas às provas determinadas de ofício pelo juiz, cumprindo, nesse caso, ao próprio autor beneficiado com a inversão, adiantar as custas. Precedentes.Recurso especial improvido.

Não obstante, em relação à natureza da regra do ônus da prova, Pontes de Miranda (2000, p. 459) defende que esta não seria de direito material e nem de direito processual, mas sim, pertencente aos dois ramos do direito, voltada essencialmente para dirimir conflitos tanto no âmbito jurídico como extraju-rídico. Para fundamentar sua opinião, o autor defende que, embora seja mais evidente quando presente na esfera judicial, existe o ônus da prova mesmo em uma relação pré-jurídica, em que uma parte cobra uma determinada dívida e a outra deve comprovar o pagamento em sua defesa. Segundo ele, mesmo nesta situação, já há uma alusão a uma regra que não se apresenta como a regra do ônus de prova em si.

Com base nos sujeitos do processo, Coqueijo Costa (1978, p. 290-291) estabeleceu uma distinção entre o ônus subjetivo e ônus objetivo da prova: enquanto o primeiro consiste em uma construção lógica sobre qual parte recairá o risco de arcar com as consequências jurídicas da não satisfação deste ônus, o segundo tem como fim a análise a ser feita pelo juiz ao proferir a sentença acer-ca dos fatos provados e os emproados, tendo a regra do ônus da prova, portanto, o juiz como destinatário.

A despeito disso, segundo o entendimento de Pontes de Miranda (2000, p. 461), o critério do ônus da prova é estritamente objetivo. Conforme fundamenta o referido autor, sendo as partes sujeitos da relação processual am-bas deverão provar os fatos aduzidos na lide, não havendo, assim, uma discri-

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minação subjetiva com relação ao ônus de provar. Deste modo, tendo o proces-so como fim a formação de uma verdade formal que se equivale à verdade real, ambas as partes devem visar esclarecer os fatos.

Deste modo, o critério objetivo do ônus da prova determina somente a quem recairá as consequências jurídicas acerca dos fatos improvados no processo, não tendo como fim determinar a qual das partes cabe o ônus de provar os fatos.

Outrossim, o processualista do trabalho Manoel Antônio Teixeira Filho (2009, p. 973) também tece suas críticas à distinção feita por Coqueijo Costa, posicionando-se no sentido de que o ônus probatório teria como único critério o objetivo. Fundamenta assim o referido autor:

A objetividade, assim, relaciona-se à distribuição da carga da prova, feita por lei, e não à pessoa do juiz; e, em que pese ao fato de essa participação legal do ônus ter como destinatários os litigantes, nem por isso pode-se afirmar que ele seja subjetivo.

Diante disso, podemos afirmar que o ônus da prova como fim últi-mo “iluminar o juiz que chega ao final do procedimento probatório sem se convencer sobre os fatos que se passaram [...] é um indicativo ara o juiz se livrar do estado de dúvida e, assim, definir o mérito” (MARINONI; ARE-NHART, 2008, p. 267).

No processo do trabalho, em específico, a regra de distribuição do ônus da prova está prevista no artigo 818 da Consolidação das Leis do Trabalho, o qual dispõe que a prova das alegações incumbe à parte que as fizer.

Entretanto, tendo em vista a extrema simplicidade da lei especial, os tribunais entenderam por bem utilizar o Código de Processo Civil de maneira subsidiária, no intuito de aprofundar esta regra. Segundo este entendimento, esta aplicação subsidiária é viável, uma vez que, conforme previsão do artigo 769 da CLT, nos casos em que haja omissão no direito processual do trabalho, o direito comum será utilizado para suprir esta lacuna, exceto, por óbvio, nos casos em que haja incompatibilidade entre os diplomas legais.

Por derradeiro, o Código de Processo Civil (BRASIL, Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973) assim dispõe em seu artigo 333:

Art. 333. O ônus da prova incumbe:I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:I - recair sobre direito indisponível da parte;

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II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

Em combate a esta aplicação subsidiária da legislação comum ao pro-cesso do trabalho está uma corrente minoritária, do qual faz parte Manoel Antô-nio Teixeira Filho. Segundo este autor, esta manobra é impraticável, sendo que a referida incursão do intérprete ao artigo do Código de Processo Civil carece de um requisito explícito do artigo 769 da CLT: a omissão.

Fundamentando seu posicionamento, ele afirma que a falta da omis-são da norma processual trabalhista encontra-se como obstáculo intransponí-vel à admissibilidade deste procedimento. Ainda, defende que, ao contrário do que alega a jurisprudência majoritária, os dois dispositivos são incompatíveis. Para fundamentar o exposto, exemplifica seu entendimento, conforme se transcreve adiante:

Alegando, o autor (empregado), que realizava trabalho em jornada extraordinária (cujo fato, contudo, é contestado pelo réu), mas não produzindo prova quanto a isso, o seu pedido relativo às horas extras, em consequência, será rejeitado pelo órgão judicante, constituindo corolário desta assertiva a manifestação jurisprudencial vogante. Cer-tamente que o julgador, aqui, fez incidir, consciente ou inconscien-temente, o critério estabelecido pelo art. 333 do CPC (I), do ponto de vista do qual o fato (trabalho em jornada excedente à normal) era constitutivo do direito do autor. Daí, a consequente rejeição do seu pedido (TEIXEIRA FILHO, 2009, p. 974-976).

Entretanto, analisando-se o mesmo caso sob o prisma do artigo 818 da CLT chega-se a uma conclusão diversa da exposta. Ao contestar o relatado pelo autor, o réu atrai para si o onnus probandi, uma vez que trouxe aos autos um fato relevante e substituto àquele. Deste modo, caso o réu não se desincumba deste ônus considerar-se-á como verdadeiros os fatos aduzidos pelo autor.

Neste caso em específico, Teixeira Filho ressalta que não houve a in-versão do ônus objetivo da prova, mas tão somente a aplicação da regra confor-me prevê o artigo 818 da CLT. Ainda, aduz o referido jurista que, no caso sob análise, a alegação do reclamado no sentido de que a referida jornada extraor-dinária não ocorreu não constitui a alegação de fato impeditivo ao direito do reclamante e tampouco de fato extintivo. Por fim, ressalta que a ao atribuir ao réu o ônus da prova não se estaria exigindo a produção de uma prova negativa, mas sim, positiva, tendo em vista que lhe era exigível tão somente a prova de que o reclamante cumpria sua jornada conforme o estabelecido.

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No entanto, em que pese os argumentos e reflexões de Manoel An-tônio Teixeira Filho, os tribunais pátrios já pacificaram o tema, adotando o posicionamento de que a legislação processual civil, no que diz respeito às regras de fixação do ônus probatório, é plenamente aplicável ao processo do trabalho.

A fim de exemplificar esta situação, transcrevemos a seguir um jul-gado proferido pelo Tribunal Superior do Trabalho, que, em consonância com o entendimento predominante acerca do tema, utiliza os dispositivos citados anteriormente como base para sua decisão. Veja-se:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. HORAS EXTRAS. PROVA TESTEMUNHAL.O Tribunal manteve a condenação da reclamada ao pagamento de horas extras, com fundamento na testemunha do reclamante. Portanto, verifica-se que o reclamante fez a prova que lhe competia (art. 818 da CLT e 333, inciso I, do CPC), ao contrário da alegação da agravante. Como não houve a inversão do ônus da prova para a reclamada, os arestos que enfocam essa tese não estabelecem divergência jurisprudencial, por se tratarem de hipótese fática diversa, o que não se amolda à exigência da Súmula nº 296 do TST Agravo de instrumento a que se nega provimento. (BRASIL, TST, Agravo de Instrumento nº 133440-28.2000.5.01.0491, DJ de 19/12/2008).

Dentre outras conclusões a que podemos chegar, é que, em que pese o entendimento da corrente doutrinária que defende na haver omissão no que atine o artigo 818, a utilização subsidiária da regra processual civil tem o fim de resguardar dois princípios fundamentais: a segurança jurídica e a rápida e efetiva prestação jurisdicional.

Isto porque, embora o processo do trabalho não contenha uma omis-são com relação à distribuição do ônus da prova, uma vez que regulamentado pelo artigo 818 da CLT, este coloca à disposição do intérprete uma norma muito vaga, necessitando de uma maior sistematização de tal regra.

Sendo assim, sobre um mesmo caso, conforme as pretensões e fun-damentações das partes poder-se-iam extrair inúmeras conclusões acerca da questão sobre qual sujeito processual recairia o onnus probandi. Deste modo, as controvérsias acerca do tema teriam como consequência a demora na presta-ção jurisdicional, esvaziando o fim a que o Poder Judiciário pretende oferecer à sociedade: como agente legítimo de pacificador de conflitos e como órgão que visa garantir o Estado de Direito à sociedade brasileira.

Por fim, ressaltamos que a aplicação do dispositivo civil, observados os princípios e características específicas presentes no processo do trabalho,

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em nenhum momento substitui a regra disposta na CLT, mas, tão somente lhe define uma linha de interpretação a fim de auxiliar o intérprete do direito acerca da distribuição do ônus da prova, qual seja, que cabe ao autor provar os fatos constitutivos de seu direito, enquanto ao réu cabe provar os fatos impeditivos, modificativos e extintivos do direito a que aduz ter o reclamante.

4. A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

Conforme já abordado, o ônus da prova é um elemento essencial ob-jetivo da justa prestação jurisdicional, ao qual o magistrado deve observar ao aplicar a norma ao caso concreto.

No entanto, a aplicação da regra do ônus da prova no processo do trabalho conforme estabelecido pelo artigo 333 do Código Civil, por vezes, torna-se desproporcional: existem situações em que os direitos constitutivos pleiteados pelo trabalhador somente poderão ser provados através de elementos que se encontram em posse do empregador.

Nestes casos, entende-se que o rigor na aplicação das normas de dis-tribuição do ônus da prova acaba por inviabilizando a pretensão que o autor busca frente ao judiciário.

Outrossim, cumpre destacar que a relação empregado/empregador, objeto da justiça do trabalho, não estabelece condições paritárias entre os en-volvidos: o empregado é hipossuficiente em relação ao empregador, podendo esta ser tanto em razão da situação econômica do trabalhador quanto, em alguns casos, em relação à capacidade de produzir as provas sobre os fatos alegados.

Deste modo, o próprio Estado assumiu a função de interventor nesta relação, reconhecendo a hipossuficiência (ao menos econômica) do trabalhador, criando um critério fundamental que tem como objetivo orientar o direito do tra-balho, estabelecendo um amparo ao trabalhador que lhe dê condições de igualda-de perante o empregador. Este critério é chamado de princípio da proteção.

Acerca do princípio da proteção no direito do trabalho, destacamos os ensinamentos de Maurício Godinho Delgado (2004, p.197-198):

[...] que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de pro-teção à parte hipossuficiente na relação empregatícia -o obreiro-, vi-sando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. O princípio tutelar influi em todos os segmentos do Direito Individual do Trabalho, influindo na própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar como direito. Efetivamente, há ampla predominância nesse ramo ju-

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rídico especializado de regras essencialmente protetivas, tutelares da vontade e interesse obreiros; seus princípios são fundamentalmente favoráveis ao trabalhador; suas presunções são elaboradas em vista do alcance da mesma vantagem jurídica retificadora da diferenciação social prática. Na verdade, pode-se afirmar que sem a idéia protetivo--retificadora, o Direito Individual do Trabalho não se justificaria his-tórica e cientificamente.

Com efeito, sendo o Poder Judiciário o meio pelo qual a sociedade busca a efetivação dos direitos que lhe são negados, uma vez que este assumiu o papel de solucionador de conflitos e guardião da paz através do pacto federa-tivo, este deve proporcionar à população instrumentos hábeis para tal.

Sendo assim, nem sempre a regra geral de distribuição do ônus da prova será justa. Neste entendimento, assevera Amauri Mascaro Nascimento (2009, p. 539):

Nem sempre a igual distribuição do ônus da prova atende às necessi-dades do processo trabalhista, porque sobrecarrega o empregado, que não tem as mesmas condições e facilidades do empregador. Outras vezes, acarreta cômoda posição para o empregador. Basta negar todos os fatos e o empregado tem de prová-los, o que não é fácil.

Com base nessa linha de pensamento, a doutrina e os tribunais pátrios, visando dar efetividade ao provimento jurisdicional e em atenção à condição de hipossuficiência do trabalhador, veem com bons olhos a aplicação de um outro dispositivo alienígena às normas processuais trabalhistas: o Código de Defesa do Consumidor.

Isso porque, enquanto as relações jurídicas regulamentadas pelo Código de Processo Civil têm como pressuposto a posição de igualdade en-tre as partes, o Código de Defesa do Consumidor, instituído através da Lei nº 8.078/1990, assumiu um posicionamento vanguardista, que, a fim de disciplinar as relações e entre consumidor e os fornecedores de serviços e mercadorias, estabeleceu nitidamente a condição de hipossuficiencia do consumidor.

Desta feita, o Código de Defesa do Consumidor assim estabeleceu em seu artigo 6º acerca do ônus da prova:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:[...]VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for ve-rossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordi-

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nárias de experiências. (BRASIL, Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990).O citado dispositivo possibilita a inversão do ônus da prova caso se

verifique no caso concreto que o consumidor é realmente hipossuficiente em relação ao fornecedor e que as suas alegações forem verossímeis.

Ressalta-se apenas que esta hipossuficiência a que se refere o CDC é de natureza técnica e não econômica, uma vez que o fornecedor ou fabricante dos serviços ou produtos oferecidos ao consumidor possui maiores conhecimentos téc-nicos acerca do produto. Assim, a inversão do ônus da prova nestes casos visa pos-sibilitar à parte hipossuficiente as informações necessárias para que esta possa pos-tular adequadamente seus direitos, em respeito ao princípio da aptidão para a prova.

Com efeito, a aplicação desta regra de inversão dos ônus da prova revela-se objetiva, uma vez que estando presentes os requisitos da hipossufi-cência do consumidor e da verossimilhança de suas alegações sua aplicação torna-se possível.

Acerca da sua aplicabilidade no processo do trabalho, ressalta-se o entendimento de Henrique Bezerra Leite (2010, p. 74-75):

O próprio CDC, que, segundo pensamos, aceita a aplicação subsidi-ária na espécie, admite a inversão do ônus da prova, como se depre-ende do seu art. 6º, VIII, que prescreve, entre os direitos básicos do consumidor, a ‘facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímel a alegação ou quando for ele hipossu-ficiente, segundo as regras ordinárias da experiência.Ora, se é uma regra aplicável ao processo civil, cremos que, a par da omissão do texto consolidado, não existe qualquer incompatibilida-de na sua aplicação supletória, porquanto em perfeita sintonia com a principiologia protetiva do direito processual do trabalho (CLT, art. 769). Aliás, há nítida correlação social e política entre trabalhadores e consumidores hipossuficientes.

Em que pese o princípio da aptidão para a prova constar expressamen-te somente no CDC de 1990, uma parte da doutrina já previa a sua aplicação no que se refere ao processo do trabalho, conforme cita Manoel Teixeira Filho (2003, p. 126):

Assim, o princípio da aptidão para a prova, a que já se referira Pórras López, deve ser eleito como o principal elemento supletivo do proces-so do trabalho, em cujo âmbito permanecerá em estado de latência, vindo a aflorar sempre que convocado a dirimir eventuais dificuldades

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em matéria de ônus da prova, prescrevendo-se, em definitivo, a pre-sença incômoda do art. 333 do CPC, que nada mais representa – em última análise – do que uma abstração da realidade prática do proces-so do trabalho.

Com efeito, o princípio da aptidão para a prova tem o fito de analisar qual dos litigantes possui a melhor capacidade de produzir a prova que interes-sará ao processo, ou seja, em vez de considerar qual das partes será, ao menos em tese, beneficiada pala prova a ser produzida, leva-se em conta a aptidão/condição destas para produzirem a prova.

No entanto, cumpre estabelecer o conteúdo inserto no artigo 6º, VIII, do CDC, tem suas origens na construção doutrinária acerca do princí-pio da aptidão para a prova, sendo este um conceito aberto, tendo, portanto, um maior alcance.

A utilização deste princípio tem crescido no judiciário nos últimos anos em razão da ascensão da corrente doutrinária e jurisprudencial que defen-de a maior dinâmica das normas processuais em favor da busca pela verdade real, sobretudo no direito processual do trabalho.

Como fundamento para a aplicação deste princípio, temos os princí-pios da igualdade, boa-fé e lealdade das partes, uma vez que cabe aos litigantes o dever de colaborar com os atos processuais em prol do interesse social e do Estado de dirimir os conflitos trazidos a Juízo, possibilitando assim a paz social almejada pelo Poder Judiciário.

Neste sentido, destacamos o julgado do Tribunal Superior do Trabalho:

PRINCÍPIO DA APTIDÃO PARA A PROVA. OMISSÃO DA RE-CLAMADA EM TRAZER AS PROVAS EM SEU PODER.A inversão do ônus probatório, com apoio no princípio da aptidão para a prova, não está condicionada à existência de determinação ju-dicial para a exibição de documento e recusa injustificada ao seu cum-primento. O Princípio da Aptidão informa que se deve atribuir o ônus de fornecer a prova à parte que se apresentar mais apta para produzi--la. O critério será o da proximidade real e o da facilidade de acesso aos meios de prova. Somente dessa forma a distribuição do ônus da prova se revelará um instrumento condizente com o escopo do pro-cesso, que não é a simples composição, mas a justa composição da lide. Por isso, o ônus probatório deve recair sobre a parte que melhor possa contribuir para que a convicção do juiz coincida com a verdade. Esse princípio encontra fundamento na justiça distributiva aliada ao princípio da igualdade, cabendo a cada parte aquilo que normalmente

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lhe resulta mais fácil. Funda-se também nos princípios da boa fé e lealdade processual que regem a conduta dos litigantes, e lhes impõe o dever de conjugar esforços com o Estado no processo para solu-cionar o litígio, cooperando e trazendo aos autos as provas que estão em seu poder independentemente de haver ou não determinação ju-dicial expressa nesse sentido. Diante desse entendimento, tem-se que a conduta da Reclamada, que deixou de trazer os cartões de ponto, justifica a inversão do ônus probatório e a presunção de veracidade do horário de trabalho declinado na petição inicial, ainda que não tenha havido determinação judicial expressa para a juntada de qualquer do-cumento, em face do princípio da aptidão para a prova. Embargos de Declaração rejeitados. (Grifo nosso). (BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. 5ª Turma. Trabalhista. Embargos de Declaração em Acódão de Recurso de Revista nº TST-ED-RR-73.647/2003-900-02-00.4, DJ em 12/03/2004)

Outrossim, o Tribunal Superior do Trabalho já vem utilizando o princí-pio para a aptidão para a prova em seus julgados e até mesmo em suas súmulas.

Com efeito, a Súmula 6 do TST dispõe acerca da equiparação sala-rial, regulamentada pelo artigo 461 da CLT, que seria, em termos genéricos, o direito do trabalhador à igualdade de salários em comparação com um colega que trabalhe para o mesmo empregador, que desempenhe uma função igual e simultânea à sua, em uma mesma localidade.

Em seu inciso VIII, a Súmula nº 6 do TST assim estabelece que o ônus da prova acerca de um fato impeditivo, modificativo ou extintivo da equipara-ção salarial requerida pelo trabalhador é do empregador.

A princípio, o ônus de provar que o trabalhador cumpre os requisitos previstos no artigo 461 da CLT é do próprio empregado, uma vez que o fato alegado visa constituir um direito seu.

Entretanto, tendo em vista que o empregador detém maiores con-dições de produzir uma prova que afaste este direito, uma vez que possui todas as informações relativas ao seu quadro funcional, o Tribunal Superior do Trabalho, aplicando o princípio da aptidão para a prova, entendeu por bem inverter este ônus.

Podemos encontrar também a aplicação do princípio da aptidão para a prova na Súmula 338 do TST: dispõe a CLT, em seu artigo 74, §2º da CLT, que é ônus do empregador com mais de 10 (dez) empregados o registro do horário de entrada e saída de seus funcionários. Com base nisto, a Súmula nº 338 do TST, em seu inciso I, dispôs que o ônus de juntar os registros de jornada de trabalho,

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quando a empresa possuir dez empregados ou mais, é do empregador. Veja-se:TST Enunciado nº 338 - Determinação Judicial - Registros de Horário - Ônus da ProvaI - É ônus do empregador que conta com mais de 10 (dez) empregados o registro da jornada de trabalho na forma do art. 74, § 2º, da CLT. A não-apresentação injustificada dos controles de freqüência gera pre-sunção relativa de veracidade da jornada de trabalho, a qual pode ser elidida por prova em contrário. [...](BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. Súmula nº 338)

Sendo assim, cabe ao empregador a produção de uma prova que de um fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito pleiteado pelo autor.

Deste modo, podemos considerar o princípio da aptidão para a prova como fundamento para inversão do ônus probatório nos litígios em trâmite na justiça do trabalho que tenham como inevitável consequência uma situação de injustiça caso aplicadas as regras presentes nos artigos 818 da LT e 333 da CLT.

Esta inversão do ônus da prova com base no princípio da aptidão para a prova tem fundamento do sistema inquisitivo adotado pelo processo do traba-lho, uma vez que, segundo o princípio da imediação do juiz, este deve procurar dirigir a fase probatória sempre objetivando igualar a verdade formal do pro-cesso com a verdade real.

A aplicação deste princípio para a fixação do ônus probatório, ao con-trário do artigo do CPC e da CLT que, nas palavras do Juiz do Trabalho João Humberto Cesário, “disciplinam a distribuição estática do ônus da prova, a prá-xis forense preconiza a repartição dinâmica do encargo probatório, para que por via dela se evitem julgamentos injustos” , dá efetividade aos princípios constitucionais da isonomia e do contraditório, uma vez que analisam as condi-ções da relação jurídica entre as partes no caso concreto, caso hajam elementos suficientes para fundamentar esta decisão e se entenda realmente necessária a inversão deste ônus probatório.

Não obstante, dada a sua importância, o princípio da aptidão para a prova também mostra-se presente no Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, elaborado pela Comissão presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Luiz Fux. Mantendo a atual redação do artigo 333 do atual CPC, o pro-jeto traz a previsão da aplicação do referido princípio no artigo 262 , conforme observa-se abaixo:

Art. 262. Considerando as circunstâncias da causa e as peculiaridades do fato a ser provado, o juiz poderá, em decisão fundamentada, ob-

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servado o contraditório, distribuir de modo diverso o ônus da prova, impondo-o à parte que estiver em melhores condições de produzi-la.§ 1º Sempre que o juiz distribuir o ônus da prova de modo diverso do disposto no art. 261, deverá dar à parte oportunidade para o desempe-nho adequado do ônus que lhe foi atribuído.§ 2º A inversão do ônus da prova, determinada expressamente por decisão judicial, não implica alteração das regras referentes aos encar-gos da respectiva produção. (BRASIL, Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil. Projeto n. 166, de 2010).

Conforme se denota do referido artigo do Anteprojeto do Novo Có-digo de Processo Civil, poderá o magistrado atribuir o ônus probatório à parte que estiver em melhores condições para produzi-la, desde que as condições e peculiaridades do caso concreto justifiquem esta inversão do encargo da prova.

Dessa forma, a atribuição do ônus da prova torna-se mais dinâmico, uma vez que o juiz dispõe de critérios que possibilitem a análise do caso con-creto para fazê-lo, trazendo ao Código de Processo Civil a hoje a sistemática de inversão do ônus da prova já empregada pelos tribunais trabalhistas e cíveis.

5. CONCLUSÃO

Como visto, o presente trabalho tem como objetivo o estudo acerca da distribuição do ônus da prova no âmbito do processo do trabalho, mais es-pecificamente, em relação aos critérios adotados pelos tribunais pátrios para determinar a inversão deste ônus probatório e sua compatibilidade com as leis processuais trabalhistas..

Inicialmente, cumpre destacar que a análise do instituto da prova no processo de conhecimento, na qual foi explicitada a sua importância em relação à prestação jurisdicional desejada pelas partes, assim como o estudo sobre a função e as condutas a serem tomadas pelo juiz no processo do tra-balho foram de suma importância para o desenvolvimento do tema principal do presente trabalho.

Da análise acerca do instituto do ônus da prova no processo do trabalho, revelou-se que a norma processual trabalhista que regulamenta a distribuição do ônus da prova, disposta no artigo 818 da CLT, ainda que não seja omissa, mostra-se insuficiente para que o desenvolvimento da fase probatória proporcione ao julgador o pleno conhecimento acerca dos fatos trazidos á lide. Isso porque, ao estabelecer que a prova cabe á parte que alegou o fato onera de forma desproporcional o traba-lhador, hipossuficiente, colocando o empregador em uma cômoda posição, e, assim, negando vigência aos princípios reitores da prova no processo do trabalho, ao prin-

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cípio da igualdade das partes e o direito à justa pretensão jurisdicional.Deste modo, a aplicação deste dispositivo por si só, por mais que se

defenda a construção de uma interpretação lógica que satisfaça a necessidade de aplicação de uma legislação subsidiária, a norma revela-se vaga, necessitan-do de uma maior sistematização.

Com efeito, a interpretação do artigo 818 da CLT através do enfoque do artigo 333 do CPC, conforme amplamente aceito pelos tribunais pátrios, serve como auxílio ao intérprete do direito para que este possa estabelecer um raciocínio lógico acerca da fixação do ônus da prova, garantindo maior segu-rança jurídica às partes.

Contudo, existem casos em que, mesmo utilizando-se do dispositivo oriundo do Código de Processo Civil, a distribuição do ônus da prova acaba por tornar prejudicada a efetivação desta, vez que o trabalhador não consegue supri-lo em muitos casos.

Em decorrência disto, vem-se aplicando a norma prevista no artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a inversão do ônus da prova nos casos em que o consumido demonstra-se hipossuficiente e suas alegações mostram-se verossímeis.

Entretanto, a aplicação deste entendimento, ainda que não seja con-trário ao processo do trabalho, mostra-se desnecessária quando observado o princípio da aptidão para a prova. Isto porque, havendo-se um fundamento no próprio processo do trabalho capaz de suprir a necessidade de uma norma estra-nha á este, deve-se repudiar sua utilização, evitando-se uma descaracterização das normas processuais trabalhistas.

O princípio da aptidão para a prova proporciona que o juiz, utilizan-do-se de seu poder diretivo no processo probatório, determine a inversão do ônus da prova com base nas condições que as partes dispõem para realizá-la.

Por fim, ressalta-se apenas que a referida inversão do ônus probatório deve ser aplicada sempre com base nos princípios regentes da prova no proces-so do trabalho, eis que estes têm a função de assegurar que nenhuma das partes tenha tratamento diferenciado sem que haja prévia justificação para tal.

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AS INSTITUIÇÕES TOTAIS DE ERVING GOFFMAN E A CONDIÇÃO DO ENCARCERADO NO SISTEMA PRISIONAL: UMA ANÁLISE DA

VISÃO DOS INTERLOCUTORES DOS PRESOS NO PARANÁ

ERVING GOFFMAN’S TOTAL INSTITUTIONS AND THE CONDITION OF THE INMATE INSIDE THE PRISON SYSTEM: AN ANALYSIS OF THE VISION OF THE PRISONERS’ INTERLOCUTORS IN PARANÁ

mariana pabiS balan

Acadêmica do 8º período da Faculdade de Direito do Centro Universi-tário Curitiba (UNICURITIBA)

iVan Furmann

Cursando Doutorado em Direito pela UFPR (2009-) com o texto de tese qualificado e com previsão de defesa até Agosto de 2013. Possui Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2003) e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2006). Atualmente é professor Assistente II no Unicuritiba (Centro Universi-tário Curitiba) lecionando para alunos de graduação e especialização. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em História do Direito, Sociologia Jurídica e Metodologia científica atuando principalmente nos seguintes temas: História do direito, Cidadania, ensino de História, Educação e Extensão universitária.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 As prisões como instituições totais. 3 A visão dos interlocuto-res da população carcerária. 3.1 Justificativa. 3.2 Entrevistados. 3.2.1 Magistrada da Vara de Execuções Penais de Guarapuava – Paraná (ENTREVISTADA 3.2.2 Agente Penitenciário (ENTREVISTADO 2). 3.2.3 Professora de uma penitenciária (ENTREVISTADA 3). 3.2.4 Esposa de um interno (ENTREVISTADA 4). 3.3 Dados Levantados. 3.3.1 Estrutura física e assistência material dos presídios. 3.3.2 Alimentação. 3.3.3 Trabalho e cursos. 3.3.4 As-sistência Social. 3.3.4.1 Agentes penitenciários. 3.3.5 Família. 3.3.6 Relacionamento entre os presos e a presença de facções criminosas nos presídios. 4 Considerações Finais. 5 Refe-rências Bibliográficas. 6 Apêndice.

RESUMO

Tendo como objetivo inicial verificar como se dá a presença do Es-tado nas penitenciárias nacionais, a pesquisa limitou-se à análise da condição em que os presos que cumprem pena em prisões paranaenses se encontram.

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Também se buscou observar as prisões como se estas fossem instituições totais, tendo como referencial teórico o trabalho do cientista social Erving Goffman, “Manicômios, prisões e conventos”. Foram analisados depoimentos, coletados a partir de entrevistas qualitativas, de pessoas que atuaram como interlocutoras dos detentos que cumprem pena em penitenciárias do Paraná, além de cartas en-viadas por um interno da Penitenciária Central do Estado, localizada na região metropolitana de Curitiba, à sua família, buscando conhecer qual é a situação dos presídios paranaenses e como se dá o relacionamento entre aqueles que cumprem pena nessas instituições. Os resultados da pesquisa demonstram que o Estado é faltoso em vários pontos da vida no cárcere, especialmente no to-cante à alimentação e ao assistencialismo, tanto social quanto material. Ainda, é possível perceber que nem sempre o relacionamento entre os internos de uma penitenciária se dá de forma tranquila e que existem organizações criminosas no interior das instituições carcerárias nacionais, mas fatores como um número adequado de presos por cela podem minimizar o risco de desentendimento entre esses indivíduos. Conclui-se, assim, que essa omissão estatal no interior das penitenciárias acaba por prejudicar a função de ressocialização do condenado que a pena privativa de liberdade deveria possuir.

Palavras-chave: sistema prisional, pena privativa de liberdade, reclusão, aban-dono estatal, população carcerária, instituições totais.

ABSTRACT

The initial objective of this research was to verify how the presence of the State inside national penitentiaries happens, but the work was limited to the analysis of the condition in which inmates serving time in paranaense prisons find themselves. It also sought to observe the prison as if it was a total institu-tion, having the work of the social scientist Erving Goffman, “Asylums: Essays on the Social Situation of Mental Patients and Other Inmates”, as a theorical basis. Testimonies, collected from qualitative interviews, of people who acted as interlocutors of inmates serving time in prisons in Paraná, were analyzed, be-sides letters that were sent by an inmate of the Penitenciária Central do Estado, located in the metropolitan region of Curitiba, to his family, with the intention of knowing what is the situation of the paranaense prisons and how is the rela-tionship between people who are serving time in these institutions. The research results show that the State is not present in a lot of points of the life in prison, especially when it comes to food and welfare (social and material). It is also possible to realize that it is not always that the relationship between the inmates of a prison occurs in a calm way and that there are criminal organizations inside

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these institutions, but factors such as adequate number of inmates per cell can minimize the risk of misunderstanding between these people. Therefore, it can be concluded that this “silence” of the State inside prisons eventually affects the rehabilitation function of the inmate that the custodial sentence should have.

Keywords: prison system, custodial sentence, incarceration, state abandonment, prison population, total institutions.

1. INTRODUÇÃO

Feita para punir, mas também para reintegrar os delinquentes à socie-dade, “corrigir os costumes dos detentos, a fim de que seu retorno à liberdade não seja uma desgraça nem para a sociedade, nem para eles mesmos”, a prisão acaba por excluí-los (PERROT, 1988, p. 236).

A prisão da maneira como é conhecida hoje tem suas origens em meados do século XVIII, como substituição às práticas de banimento e, espe-cialmente, aos suplícios, que eram punições corporais que causavam intenso sofrimento físico nos condenados. Os suplícios eram executados publicamente e tinham a intenção de servir de “lição” para os outros cidadãos; eles eram o poder do rei sendo explicitado para que os outros indivíduos não tivessem atitu-des similares. Ao final dos anos 1700, a justiça penal se renovou e colocou fim a estes atos, então, “desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo” (FOUCAULT, 2009, p. 13).

Um dos motivos dessa “reforma”, que ensejou a redação de códigos mais modernos, foi que a sociedade começou a colocar em dúvida o papel da justiça e dos governantes e a ver os carrascos como criminosos, uma vez que muitas vezes a pena terminava por ser um crime pior do que o cometido pelo condenado. A solução encontrada à época para condenar aqueles que haviam cometido um crime foi a pena privativa de liberdade.

Atualmente, a cadeia é uma instituição que povoa o imaginário popu-lar e se encontra presente na vida dos indivíduos brasileiros de forma quase que cotidiana, através de reportagens jornalísticas e até em fontes de entretenimen-to, como filmes e telenovelas.

Apesar de a prisão ser uma instituição conhecida de todos, a popula-ção leiga possui uma visão distorcida acerca dos internos de uma penitenciária, acreditando que estes indivíduos não possuem nenhum direito, que precisam “pagar” pelo o que fizeram. De acordo com Drauzio Varella, “a sociedade bra-sileira, que vive assustada com a violência urbana, é omissa e conivente com aquela praticada pelo Estado, desde que a classe média e os mais ricos sejam

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poupados” (VARELLA, 2012, p. 145), sendo que a população carcerária é de-tentora de direitos garantidos pelo próprio Poder Estatal. Por esta razão, faz-se necessário analisar se os presidiários cumprem uma pena digna e como buscam se adaptar à vida em reclusão e de que maneira o Estado se faz presente no inte-rior das cadeias nacionais, se ele se encontra presente de maneira uniforme em todas as camadas da sociedade.

2. AS PRISÕES COMO INSTITUIÇÕES TOTAIS

O cientista social canadense Erving Goffman, em seu estudo “Mani-cômios, prisões e conventos”, via as prisões como se elas fossem uma “institui-ção total”, que seria, de acordo com sua própria definição:

[...] um local de residência ou trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada (GOFFMAN, 1974, p. 1)

Apesar de o trabalho antropológico de Goffman ter sido realizado em uma instituição para doentes mentais, o hospital norte-americano St. Elizabets, ele pode muito bem ser aplicado aos presídios e a outras instituições fechadas, como internatos escolares.

São os mecanismos de estruturação de uma instituição que indicarão se ela se encaixa no conceito de “instituição total”, sendo tais mecanismos res-ponsáveis por uma “reestruturação” da identidade do indivíduo inserido neste local. O caráter “total” que a instituição adquire se deve ao fato de ela ser uma célula fechada, destinada apenas a um grupo de pessoas, sendo estas separadas da sociedade geral. De acordo com Cezar Roberto Bitencourt, as principais características dessas instituições são que:

Todos os aspectos da vida desenvolvem-se no mesmo local e sob o comando de uma única autoridade; todas as atividades diárias são realizadas na companhia imediata de outras pessoas, a quem se dis-pensa o mesmo tratamento e de quem se exige que façam juntas as mesmas coisas; todas as atividades diárias encontram-se estri-tamente programadas, de maneira que a realização de uma conduz diretamente à realização da outra, impondo uma sequência rotineira de atividades através de normas formais explícitas e de um corpo de funcionários. Além disso, as diversas atividades obrigatórias encon-tram-se integradas em um só plano racional, cujos propósitos são

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conseguir os objetivos próprios da instituição (BITENCOURT apud REGHELIN, 2002).

Existem três pontos da pesquisa de Goffman que são facilmente iden-tificáveis no dia-a-dia de uma penitenciária: a “mortificação” do eu, os “incen-tivos” e os chamados “ajustamentos”.

Quando o indivíduo adentra uma instituição total, sua identidade é su-primida, sofre um processo de “mortificação”, uma vez que suas características adquiridas na vida civil e familiar serão drasticamente modificadas pelas expe-riências e pelo modo de vida ao qual será condicionado dentro da instituição. Nestas instituições, o interno tem seu contato com o mundo exterior barrado; a ele são impostas certas regras de conduta, é privado de seus bens materiais e tem um dossiê a seu respeito elaborado. Esses mecanismos causam “o ‘de-sequilíbrio do eu’, uma vez que profanam as ações, a autonomia e a liberdade do internado” (KUNZE, 2009, p. 278). Por conta do ambiente da instituição e desta “perda” da identidade, o indivíduo se sente fracassado, uma vez que há a impressão de que este tempo será perdido, que sua vida não será a mesma de antes quando ele for embora.

Embora alguns dos papéis possam ser restabelecidos pelo interna-do, se e quando ele voltar para o mundo, é claro que outras perdas são irrecuperáveis e podem ser dolorosamente sentidas como tais. Pode não ser possível recuperar, em fase posterior do ciclo vital, o tempo não empregado no progresso educacional ou profissional, no namoro, na criação dos filhos. Um aspecto legal dessa perda permanente pode ser encontrado no conceito de “morte civil”: os presos podem enfrentar, não apenas urna perda temporária dos di-reitos de dispor do dinheiro e assinar cheques, opor-se a proces-sos de divórcio ou adoção, e votar, mas ainda podem ter alguns desses direitos permanentemente negados. Portanto, o internado descobre que perdeu alguns dos papéis em virtude da barreira que o separa do mundo externo. Geralmente, o processo de admissão também leva a outros processos de perda e mortificação. Muito frequentemente verificamos que a equipe dirigente emprega o que denominamos processos de admissão: obter urna história de vida tirar fotografia, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam guardados, des-pir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto a regras, designar um local para o internados. (GOFFMAN, 1974, p. 27-28).

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Dentro da instituição total haverá uma reorganização no modo de se portar do indivíduo, sendo que este passará a ser regido por ins-truções tanto formais quanto informais. Se agir de acordo com as regras da casa, o interno receberá benefícios, como a diminuição de um dia de pena para três trabalhados que ocorre no sistema prisional brasileiro; caso desobedeça as ordens, um castigo será recebido. Esses benefícios são definidos por Goffman como “incentivos”:

[...] às vezes se reconhece que há necessidade de dar “incentivos”, - isto é, prêmios ou pagamentos indiretos que francamente atraem o indivíduo como alguém cujos interesses finais não se confundem com os da organização. Alguns desses incentivos são externamente signi-ficativos, pois são prêmios que o indivíduo pode levar consigo e usar, de acordo com sua vontade, sem comprometer os outros participantes da organização; pagamentos em dinheiro, instrução e diplomas são exemplos fundamentais desse caso (GOFFMAN, 1974, p. 152).

Os “ajustamentos”, por sua vez, são um importante mecanismo utilizado pelo interno por conta dessa reorganização em sua maneira de se portar, sendo que são divididos em “primários” e “secundários”, podendo também haver uma combinação entre estas duas espécies. Os “ajustamentos primários” ocorrem quando o indivíduo torna-se um colaborador da insti-tuição, quando ele:

[...] contribui, cooperativamente, com a atividade exigida por uma organização, e sob as condições exigidas [...] se transforma num cola-borador; torna-se o participante “normal”, “programado” ou “interio-rizado” [...] verifica que, oficialmente, deve ser não mais e não menos do que aquilo para o qual foi preparado, e é obrigado a viver num mundo que, na realidade, lhe é afim (GOFFMAN, 1974, p. 159-160).

Ou seja, o indivíduo irá se adaptar à rotina da instituição, colaborará com as atividades cotidianas do local, terá um bom relacionamento com seus colegas, enfim, ele irá agir da maneira que ele acredita que seja a esperada.

Já os “ajustamentos secundários” ocorrem quando os internos em-pregam meios ilícitos ou não autorizados a fim de obter privilégios e escapar daquilo que a instituição espera que ele seja.

Nas instituições totais há também outro sistema que poderia ser de-nominado ajustamentos secundários isto é, práticas que não desafiam

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diretamente a equipe dirigente, mas que permitem que os internados consigam satisfações proibidas ou obtenham, por meios proibidos, as satisfações permitidas (GOFFMAN, 1974, p. 54).

Como exemplo de “ajustamento secundário”, Goffman fala dos pre-sos americanos que frequentavam as bibliotecas dos presídios não porque acre-ditavam que a leitura pudesse melhorar sua educação, mas pura e simplesmente para causar uma boa impressão à comissão de livramento condicional (GOFF-MAN, 1974, p. 54).

3. A VISÃO DOS INTERLOCUTORES DA POPULAÇÃO CARCERÁRIA

Para que fosse possível constatar qual é a condição do encarcerado no sistema prisional, foram analisados relatos, coletados através de entrevistas qualitativas, com pessoas que atuaram como interlocutoras dos indivíduos que cumprem pena em penitenciárias paranaenses.

3.1 JUSTIFICATIVA

Realizou-se uma pesquisa empírica a fim de compreender melhor o que acontece no interior de uma penitenciária. Como é a comida servida aos detentos? Como é a estrutura do(s) presídio(s)? Como se dá o relacionamento entre os internos? A intenção das entrevistas realizadas era comprovar (ou pro-var o contrário) que o Estado não se encontra presente dentro das instituições carcerárias da forma como deveria.

Foi escolhido não entrevistar pessoas que já passaram pela prisão como internos, mas sim personagens que funcionam como interlocutores dos detentos, com o fim de a pesquisa fugir do lugar-comum dos trabalhos que tratam da vida no cárcere, em que internos são entrevistados diretamente. Os personagens esco-lhidos foram: a Magistrada de uma Vara de Execuções Penais, um agente peniten-ciário, uma professora de uma penitenciária e a esposa de um interno.

Além da fuga do lugar-comum deste tipo de pesquisa, a escolha dos entrevistados foi feita deste modo para que fosse possível coletar diferentes vi-sões acerca da vida em uma prisão. Os interlocutores escolhidos encontram-se localizados em posições diversas, das quais não se pode enxergar a prisão de um mesmo ponto. A esposa de um preso, por exemplo, passa por situações que uma Juíza não passa, como a revista nos dias de visita.

Foram feitas nove perguntas para cada entrevistado, tendo todas a mesma base, mas com variações nos questionamentos de acordo com a posição de cada interlocutor. Por exemplo, ao invés de perguntar à esposa de um preso

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em qual presídio ela trabalha, foi perguntado em qual presídio seu marido se encontra preso75.

3.2 ENTREVISTADOS

Quem são as pessoas entrevistadas? Com quais presídios elas têm ou tiveram contato?

3.2.1 MAGISTRADA DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS DE GUARAPUAVA – PARANÁ (ENTREVISTADA 1)

A primeira entrevistada foi uma Juíza de Direito de 53 anos que até abril de 2012 laborou na Vara de Execuções Penais e na Corregedoria dos Presí-dios de Guarapuava, cidade do interior do Paraná. Em relação às penitenciárias, a Magistrada teve contato com a Penitenciária Industrial de Guarapuava, com o Centro de Regime Semiaberto de Guarapuava e com a Cadeia Pública da mes-ma cidade (14ª SDP). Além disso, foi membro do Conselho Nacional de Políti-ca Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, com sede em Brasília, que dentre suas atribuições visa avaliar periodicamente o sistema criminal a fim de conferir se este é adequado para atender as necessidades do País76.

A Penitenciária Industrial de Guarapuava (PIG), presídio com o qual a in-terlocutora teve mais contato, é considerada nacionalmente como uma cadeia modelo:

Ela difere em tudo dos presídios convencionais. Para começar, funciona num prédio moderno, pintado de amarelo, vermelho e azul, que pouco lembra uma prisão. Não tem muros, apenas cercas de arame farpado com sensores de toque. Os presos têm consultórios médico e odontológico bem equipados e camas de alvenaria em todas as celas. Um pavilhão especial para os dias de visita dispõe de berçário, fraldário e doze suítes para encon-tros íntimos. Mas a maior inovação mesmo é a linha de produção de móveis estofados que existe dentro da penitenciária. Embora esparso, o trabalho carcerário não é novidade. No Paraná, 70% dos detentos cumprem pena trabalhando. A diferença é que a Penitenciária Industrial de Guarapuava é a primeira projetada e construída como uma verdadeira fábrica. Os presos recebem treinamento e são responsáveis por toda a linha de produção. A ad-ministração está entregue a uma empresa privada. Apenas seis funcionários públicos trabalham ali (CAVALCANTI; VERANO, 1999).

75 O roteiro de entrevistas utilizado pode ser observado na íntegra no Apêndice deste artigo.76 Informações a respeito do CNPCP estão disponíveis no sítio eletrônico do Ministério da Justiça: <http://portal.mj.gov.br>

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3.2.2 AGENTE PENITENCIÁRIO (ENTREVISTADO 2)

O segundo entrevistado foi um senhor de 47 anos que desde agosto de 1998 trabalha como agente penitenciário na Penitenciária Estadual de Londrina (PEL).

3.2.3 PROFESSORA DE UMA PENITENCIÁRIA (ENTREVISTADA 3)

Também foi entrevistada uma educadora de 56 anos que trabalha como professora alfabetizadora da Penitenciária Industrial de Guarapuava (PIG), cadeia considerada um modelo nacional, e do Centro de Recuperação de Adultos de Guarapuava (CRAG), que é o centro de regime semiaberto da cidade. Os relatos feitos pela entrevistada dizem respeito apenas à PIG.

3.2.4 ESPOSA DE UM INTERNO (ENTREVISTADA 4)

A última entrevistada foi uma professora de ensino fundamental de 37 anos que é esposa de um condenado que cumpre pena na Penitenciária Central do Estado do Paraná (PCE), localizada em Piraquara, região metropolitana de Curi-tiba, mas que já foi preso outras vezes. Nos quinze anos em que está casada com o detento, a professora acredita que ele tenha ficado ao menos dez anos preso, por diferentes crimes e em diferentes penitenciárias – inclusive, a entrevistada engra-vidou da filha do casal, que hoje está com 12 anos, em uma visita ao marido no Presídio Regional de Joinville, na primeira vez em que ele foi preso.

3.3 DADOS LEVANTADOS

3.3.1 ESTRUTURA FÍSICA E ASSISTÊNCIA MATERIAL DOS PRESÍDIOS

No tocante à estrutura física e à assistência material fornecida nos presídios, foram levantadas questões a respeito de instalações como celas, pá-tio, biblioteca, entre outras, das penitenciárias com as quais os interlocutores tiveram contato, e sobre o fornecimento de vestuário e materiais de higiene aos detentos, sendo que à comida será destinado um tópico específico.

Como a Penitenciária Industrial de Guarapuava é tida nacionalmente como um presídio modelo, os relatos a respeito de sua estrutura foram melhores que os relatos a respeito das penitenciárias estaduais, mas ainda não ideais – nas palavras da alfabetizadora entrevistada, “dentro dos limites do possível, aos presos é garantida toda estrutura necessária” (ENTREVISTADA 3, 2012). Nes-ta instituição, as celas têm capacidade para dois presos – e não há problema de superlotação –, onde a entrada de televisores é permitida, há quadra de esportes

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e solário para as atividades de lazer dos detentos, uma biblioteca equipada e salas de aula.

Porém, nem mesmo uma penitenciária tida como modelo é ideal. Ob-serve-se a declaração da Magistrada que laborou na Vara de Execuções Penais do município sobre o governo ter assumido completamente a administração da Penitenciária Industrial de Guarapuava, há pouco tempo – com exceção da comida servida aos detentos:

Quando o Estado assumiu completamente a administração a gente já sentiu as dificuldades. Falta remédio, falta material de higiene, falta material de limpeza, tem que esperar a mudança de governo. Então a gente vê que o Estado não é competente o suficiente para tocar uma prisão, ele deixa muito a desejar (ENTREVISTADA 1, 2012).

A Juíza também afirmou que a assistência material na Penitenciária Industrial de Guarapuava decaiu quando ocorreu a mudança do governo esta-dual, um ano e meio atrás. Segundo ela, “os chinelos arrebentados não eram repostos, os lençóis rasgados não eram substituídos de imediato e também havia reclamação a respeito dos materiais de limpeza” (ENTREVISTADA 1, 2012).

Em relação às penitenciárias estaduais, os relatos foram menos oti-mistas, sobretudo a respeito da assistência material concedida pelo Estado aos detentos. De acordo com a esposa entrevistada, os internos sofrem muito no inverno, uma vez que devem usar o uniforme fornecido pela penitenciária, que consiste em apenas uma camiseta, uma calça e uma blusa fina de moletom, além do fato de que os banhos são gelados. O Estado fornece uma vez ao mês materiais de higiene aos internos, porém, de acordo com o agente penitenciário entrevistado, os presos precisam contar com a ajuda de suas famílias, que a cada quinze dias vão até o presídio entregar alimentos e material higiênico aos de-tentos, porque “na maioria das vezes, o que o governo fornece não é necessário para passar o mês” (ENTREVISTADO 2, 2012).

Sobre a estrutura desses presídios, a esposa diz não ter acesso às celas, bibliotecas e outras instalações, mas que por onde passa “percebe-se que tudo é muito limpo, tanto porque são os próprios presos que fazem a limpeza do presí-dio” (ENTREVISTADA 4, 2012), mas que já ouviu comentários de seu marido a respeito da presença de ratos na cozinha.

O agente penitenciário relata que a Penitenciária Estadual de Londri-na possui oficinas de trabalho, quadra e pátio para banhos de sol bem amplos, um local para a prática de capoeira, locais para a prática de cultos e visitas de religiosos e uma biblioteca razoável, uma vez que, segundo palavras do entre-vistado, “a maioria dos presos não se interessa por leituras” (ENTREVISTADO

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2, 2012). Sobre as celas, o funcionário afirma que elas são arejadas, mas que já há problemas de superlotação. Segundo ele, a capacidade das celas é de seis presos, mas que após a mudança de governo em 2011 as celas já abrigam nove presos e acredita que em breve abrigarão doze presos. O agente também fez declarações a respeito da segurança no presídio em que trabalha, relatando que o sistema de alarme da penitenciária não funciona há dez anos, sem previsões de conserto.

A Magistrada entrevistada também fez relatos interessantes a respeito de prisões que visitou Brasil afora, uma vez que durante quatro anos foi mem-bro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. A Juíza afirmou que praticamente em sua totalidade nenhum presídio cumpre a Lei de Execução Penal (BRASIL, 1984), que, dentre outras coisas, garante ao preso assistência social e material:

São terríveis, são verdadeiros depósitos de preso. É uma coisa im-pressionante. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rondônia. Meu Deus do céu, são coisas horríveis, não se tem interesse nenhum quanto ao preso. Realmente não se aplica a Lei e não querem aplicar! A alegação maior que se pode ter é que preso não vota, embora os familiares votem (ENTREVISTADA 1, 2012).

A Magistrada tem uma opinião polêmica a respeito da situação dos presídios nacionais: ela acredita que o sistema carcerário nacional reflete a for-ma do brasileiro de ver e pensar, que acredita que apenas a vítima deve ser atendida pelo Estado. Atente-se ao relato:

As pessoas não gostam de ouvir isso, mas não tenha dúvida de que o nosso sistema carcerário, desse jeito, reflete a nossa forma de ver e pensar – e vamos aqui separar preso de vítima. A vítima deve ser atendida pelo Estado, mas o preso também, para que ele não saia pior. Avisei inclusive, quando saí da Vara de Execuções Penais, que nossa segurança pública iria ficar pior. A cadeia é uma “fábri-ca de monstros”, mas eu não tenho dúvida de que eles têm toda a razão de sair de lá revoltados, porque do jeito com que o preso é tratado, apanha e é torturado desde o momento em que entra numa cadeia pública até o momento em que ele sai... Ele é muito oprimi-do e vai ficando com ódio das pessoas que estão foram da cadeia (ENTREVISTADA 1, 2012).

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3.3.2 ALIMENTAÇÃO

A alimentação, com certeza, é um dos pontos mais delicados para se tratar a respeito da vida no cárcere. Todas as penitenciárias analisadas possuem um sistema terceirizado para fornecer alimentação aos detentos, sendo que as empresas que realizam o serviço são escolhidas por licitação – que às vezes “não convencem”, segundo a Juíza entrevistada.

Em relação à Penitenciária Industrial de Guarapuava, a professora da instituição afirma que a comida servida aos presos recebe a supervisão de uma nutricionista, mas que eles reclamam do sabor. A Magistrada entrevistada afirmou não concordar com a terceirização deste setor na PIG, uma vez que ela acredita ser completamente possível a elaboração da comida dentro da penitenciária, sem contar que “seria muito mais barato se os mantimentos fossem entregues e se os próprios presos cozinhassem, inclusive os da cadeia pública; seria até uma forma de eles trabalharem” (ENTREVISTADA 1, 2012). A Juíza também trabalhou na Cadeia Pública de Guarapuava, que também terceirizava o setor de alimentação, e afirmou que lá vinha uma “comida terrível, horrorosa, às vezes ‘incomível’, porque vinha para eu experimentar” (ENTREVISTADA 1, 2012).

Na Penitenciária Estadual de Londrina, a comida nem sempre foi feita por empresa terceirizada. Segundo o agente penitenciário da instituição entrevistado, antigamente a comida era feita no próprio presídio, “mas devido ao grande desperdício, foi terceirizada e uma empresa fornece a alimentação que vem acondicionada em marmitas” (ENTREVISTADO 2, 2012). As famo-sas marmitas, aliás, são a principal reclamação dos detentos da Penitenciária Central do Estado, de acordo com o marido, que cumpre pena, de uma das en-trevistadas. A esposa afirma que praticamente não há variedade nos alimentos servidos e que muitas vezes a comida vem azeda.

Em 2011 ocorreu uma rebelião na Penitenciária Estadual de Piraquara II, tendo como motivo a não realização de melhorias nesta cadeia. Em depoi-mento ao portal Paraná Online, a esposa de um dos internos desta instituição disse que “eles comem salsicha inchada, feijão azedo e frango duro. Tudo bem que aqui ninguém é ‘santo’, mas eles já estão pagando pelo que fizeram median-te o que prevê a lei. Ninguém quer além do que é humano” (DESLANDER, 201

3.3.3 TRABALHO E CURSOS

Os três presídios analisados dispõem de oficinas de trabalho aos pre-sos – diga-se de passagem, canteiros de trabalho exclusivamente braçal –, ha-vendo, assim, a figura da remição da pena, já que três dias trabalhados equiva-lem a um dia a menos na pena que foi imposta ao condenado.

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Na Penitenciária Industrial de Guarapuava os presos podem traba-lhar na fábrica existente no presídio, que produz móveis, prendedores e palitos, ou na realização de atividades de manutenção da própria penitenciária, como faxina, trabalho na cozinha, lavanderia ou na montagem de embalagem dos produtos fabricados. Embora a maioria dos internos exerça alguma atividade, a professora da unidade afirmou que “muitos se recusam a executar qualquer trabalho, bem como frequentar a escola” (ENTREVISTADA 3, 2012).

A esposa do detento da Penitenciária Central do Estado relatou que os internos desta instituição contam com alguns cursos:

Os presos que não são alfabetizados podem concluir a alfabetização na Unidade. Eles também têm outros cursos; meu marido fez corte e costura industrial, de apicultura [...].. Muitos trabalham e, dependen-do da função, são remunerados com uma porcentagem em cima do salário mínimo e outros recebem o pecúlio, que retiram quando sair da prisão (ENTREVISTADA 4, 2012).

Além dos cursos que fez, o marido da entrevistada labora na cozinha da PCE, cozinhando para os agentes penitenciários que trabalham na institui-ção. A entrevistada afirma que o esposo tem sorte de trabalhar na cozinha, uma vez que pode comer o alimento que ele mesmo elabora, “escapando” da marmi-ta tão temida pelos presos.

O pecúlio citado pela entrevistada é uma reserva de dinheiro que será constituída para o preso em caderneta de poupança, que será entrega ao interno quando ele se encontrar em liberdade (RESSEL, [S.D.]). Essa reserva possui extrema importância para o indivíduo condenado, uma vez que, em tese, será capaz de ajudar o preso a se manter até ele encontrar um emprego e se reajustar na sociedade, a partir do momento em que for posto em liberdade. A entrevista-da afirma que a remuneração dos condenados que cumprem pena na Penitenci-ária Central do Estado é inferior a um salário mínimo.

O ato de trabalhar na instituição e ser agraciado com a remição e o pecúlio pode ser encaixado em alguns pontos discorridos acerca da prisão pelo sociólogo Erving Goffman.

Goffman afirma que se o interno da uma instituição total agir de acor-do com as regras da casa, ele receberá “incentivos”, quesito no qual tanto a remição e o pecúlio, pela colaboração do preso com a instituição através do trabalho, encaixam-se. Trabalhar, além do mais, pode se encaixar tanto na de-finição de “ajustamento primário”, quanto na definição de “ajustamento secun-dário”, mecanismos dos quais o condenado se usa para conseguir se adaptar ao local no qual se encontra privado de sua liberdade. O “ajustamento primário”

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ocorre quando o indivíduo escolhe colaborar com a instituição, trabalhando, neste caso, por vontade espontânea. O “ajustamento secundário”, no entanto, ocorre quando o condenado contribui para a instituição visando um fim que não o esperado, que é melhorar como indivíduo por conta de sua passagem, como se trabalhasse apenas para remir sua pena ou escolhesse trabalhar na cozinha ape-nas para poder se alimentar melhor, por exemplo – o “ajustamento secundário” também pode ser visto como agir de modo ilícito para conseguir uma vantagem.

3.3.4 ASSISTÊNCIA SOCIAL

A já citada Lei de Execução Penal garante, além da assistência material, assistência social aos presos, que inclui assistência religiosa, à saúde e jurídica.

A respeito da Penitenciária Industrial de Guarapuava, os relatos sobre a assistência social e profissional aos detentos são divergentes. A professora da instituição não forneceu muitos detalhes para este tópico, mas afirmou que os presos recebem auxílio religioso e contam com visitas regulares de médicos e dentistas, e como exemplo de assistencialismo, relatou que se os professores da instituição percebem que algum apenado sofre de dores de cabeça em decor-rência da leitura, uma visita ao oftalmologista é agendada para que o problema seja averiguado.

A Juíza que trabalhou na PIG, por sua vez, deu relatos menos otimis-tas acerca da assistência social do presídio. A entrevistada afirmou que enquan-to esteve presente na instituição, procurava tratar e conhecer os presos um a um, de forma individualizada, sem transformá-los em uma “massa carcerária”. Relatou também que os advogados, que ocupavam cargos de comissão, eram dedicados e acreditavam na “causa”, mas que agora não sabe muito bem como está a situação da PIG neste sentido.

A Magistrada relatou que à época de sua saída da Vara de Execuções Penais de Guarapuava, médicos estavam sendo retirados do presídio, sem subs-tituição, e que “a psicóloga saía de férias e não colocavam outra no lugar, o agente estava doente e não vinha outro no lugar, o professor estava de licença e não vinha outro no lugar” (ENTREVISTADA 1, 2012). Outras questões que desgostaram a Juíza na maneira como a PIG vinha sendo administrada foi que a Secretaria de Estado da Justiça começou a fazer testes a fim de colocar agentes penitenciários como diretores, sendo que a entrevistada acreditava que cargos de diretoria deveriam ser de comissão, de confiança, e que no regime semiaber-to o Estado pretendia diminuir a quantidade de agentes penitenciários.

Na Penitenciária Estadual de Londrina, o agente penitenciário entre-vistado afirmou que em tese os presos podem contar com assistência jurídica, social, médica, psicológica e pedagógica e assistência religiosa, mas que esse

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tipo de assistência tem sido deficiente, “pois ultimamente o governo não tem contratado pessoal técnico” (ENTREVISTADO 2, 2012).

Sobre a Penitenciária Central do Estado, a esposa do detento entre-vistada afirmou que já precisou dos serviços de uma assistente social e que foi bem atendida, além de saber que os presos analfabetos têm a oportunidade de aprender a ler e escrever na instituição. A respeito de encontros religiosos, esta entrevistada contou que seu marido não comenta sobre o assunto com ela, mas que no entorno da penitenciária há uma forte presença de participantes de diversas igrejas, principalmente da Igreja Universal do Reino de Deus, dis-tribuindo material de apoio para as esposas e familiares mais velhos e doces para as crianças.

Em relação à assistência jurídica na Penitenciária Central do Estado, é interessante analisar (a transcrição de) uma carta cedida pela família do detento cuja esposa foi entrevistada, já que a correspondência demonstra o quão com-plicado é conseguir assistência jurídica nesta penitenciária, além de ser possível perceber como os detentos enfrentam dificuldades mesmo com os advogados contratados de maneira particular, por intermédio da família.

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CARTA DE UM DETENTO DA PENITENCIÁRIA CENTRAL DO ESTADO À FAMÍLIA77

Piraquara, 14/03/2011IRMÃ,

Espero que esteja bem, com saúde e em paz. Aqui a situação está cada vez mais difícil, porque a unidade não quer fazer nada

por mim, porque alega que tenho advogado particular. Tenho?A ESPOSA me disse que não tem condições de pagar o doutor ADVOGADO,

e ele sem receber não faz nada. Mesmo recebendo, é devagar ao extremo, vai fazendo aos poucos e demoradamente até receber tudo e não tenho tanta certeza se ele fará tudo mesmo recebendo.

Eu pedi a ele para pegar a minha permanência carcerária da 2ª Delegacia de Roubos (o período exato eu passei para ele, as datas certas) e até agora ele não fez. Isso só faz 7 meses.

Ele diz que fez a minha defesa da apelação da 11ª Vara. Eu não acredito, porque depois que eu assinei a procuração para ele, veio um papel da 11ª Vara dizendo que se eu não constituísse outro defensor (depois da OUTRA ADVOGADA), seria nomeada uma tal de ADVOGADA DATIVA.

Pedi a ele para fazer 3 pedidos de comutação de pena; ele fez? Os 3 pedidos?Estou desanimado. O OUTRO IRMÃO me prometeu uma coisa, que faria o possí-

vel para me ajudar. Mas diante das atitudes dele, não espero mais nada. Só espero que um dia ele não precise de mim para nada, nada mesmo. E ainda tenho que ter uma conversa com ele muito séria...

Acho que ainda me resta uma esperança em você, porque não tenho mais ninguém que possa me ajudar, além da ESPOSA, que não me abandona nessas horas.

Sei que você não tem obrigação nenhuma comigo, mas se puder me ajudar a ver com o doutor ADVOGADO tudo o que ele fez ou deixou de fazer, se vai continuar no meu caso (se continuar é para fazer as coisas e não enrolar) ou se vai desistir.

Não posso viver de ilusões, ou ele caga (sic) ou sai da moita. Se ele fizer o que é necessário, sem enrolação, eu pagarei cada centavo com todo o prazer, custe o que custar. Se não, que diga logo que não vai fazer e pronto, pelo menos tento correr de outra forma.

Você, se puder (tiver tempo), pegue um extrato da Vara de Execuções Penais e outro do Tribunal de Justiça para que eu possa ver se foi realmente o doutor ADVOGADO que fez a defesa da apelação, se ele pôs as 3 comutações que pedi.

Me escreva (sic) (mande envelope com selo e folha) e me dê uma posição, por favor.Fique com Deus.Você ainda considero como irmã.

FONTE: CARTA DISPONIBILIZADA PELA CUNHADA DA ENTREVISTADA 4

77 Os nomes verdadeiros dos familiares foram omitidos na transcrição das cartas presentes no artigo.

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3.3.4.1 AGENTES PENITENCIÁRIOS

Ainda na seara da assistência social recebida pelos presos, foi ques-tionado aos entrevistados a respeito da relação entre os apenados e os agentes penitenciários dentro das instituições com as quais os interlocutores têm contato.

A professora da Penitenciária Industrial de Guarapuava afirmou nun-ca ter presenciado ou sabido de casos de tentativa de suborno dos presos em relação aos agentes, em busca de benefícios. A Magistrada que trabalhou na unidade também relatou nunca ter tido problemas quanto a isso nesta peniten-ciária, mas que tem conhecimento de que em penitenciárias de outros Estados e do próprio Paraná casos de propina para agentes são corriqueiros. A Juíza também relatou que quando integrou o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, deparou-se com o caso de uma penitenciária no Rio de Janeiro em que uma cantina da unidade era administrada por um agente aposentado, sendo que no estabelecimento uma lata de refrigerante custava cinco reais.

Por fim, o agente penitenciário entrevistado contou que na Peniten-ciária Estadual de Londrina as tentativas de suborno dos presos para com os agentes são cotidianas, sendo que a maioria dos pedidos é para que seja possível trazer drogas e celulares para dentro dos presídios.

Esta tentativa de corromper os funcionários dos presídios também pode ser classificada como um “ajustamento secundário” discorrido por Goff-man, uma vez que é o uso de um meio ilícito que visa obter um privilégio não concedido pela instituição.

3.3.5 FAMÍLIA

A família, depois do próprio condenado, é a figura que mais sofre com o encarceramento de um ente próximo. A alfabetizadora da Penitenciária Indus-trial de Guarapuava afirmou que “na medida do possível as famílias são muito presentes na vida dos presos” (ENTREVISTADA 3, 2012).

A esposa do detento da Penitenciária Central do Estado entrevistada con-tou que em uma das piores fases de sua vida ocorreu em uma das vezes que seu marido foi preso, quando ela estava grávida de cinco meses e a filha que o casal já tinha, que foi, inclusive, gerada em uma visita íntima de um encarceramento ante-rior, estava prestes a completar dois anos: “Foi a pior fase da minha vida; não gosto muito de lembrar, porque sofremos muito” (ENTREVISTADA 4, 2012). A interlo-cutora também relatou não receber auxílio-reclusão do Estado, já que o esposo não se encontrava na qualidade de segurado do Regime Geral da Previdência Social na última vez em que foi preso, o que torna sua vida e a vida de seus filhos mais difícil.

Além de a esposa ter esperanças que o marido vá mudar, o próprio de-monstra, em carta enviada à mulher e aos filhos, que quer mudar e não cometer

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mais erros, mas também se sente impotente, com medo do que encontrará em liberdade. Segundo Goffman, esse medo, essa sensação de fracasso, ocorre por conta da perda da identidade que o indivíduo sofre dentro da instituição, tendo a impressão de que o tempo em que ficou privado de liberdade não voltará mais. Observe-se abaixo a transcrição da correspondência enviada:

CARTA DE UM DETENTO DA PENITENCIÁRIA CENTRAL DO ESTADO ENVIADA À FAMÍLIA

Piraquara, 04/01/2012Meus amores!

Espero que vocês estejam com muita saúde e paz. Eu adorei as duas cartas que me escreveram. A 1ª de receitas da FILHA e a outra de vocês dois.

Não gostei nem um pouco da ideia de ser avô, isso quer dizer que eu já estou velho. E, além disso, o FILHO DE 20 ANOS é muito novo para já ser pai. Mas, fazer o quê, né?

FILHO, o pai vai se esforçar para não fazer nada errado, te prometo (sic). Vai depender muito do que eu vou encontrar aí fora, as condições, o tratamento... Mas eu te garanto (sic) que eu não quero errar mais, quero sair daqui e viver até morrer ao lado de vocês. Vou lutar de todas as maneiras para não fazer nada de errado e não voltar para cá.

Eu amo muito vocês e é por vocês que vou me esforçar, pela nossa família, está bom?Quero que você se esforce também para estudar e para viver em paz com a FILHA,

com a mãe, com a vó, com a tia, sem brigas e se comportando, certo?Você é meu gurizinho, eu te amo muito, muito...FILHA, eu adorei as receitas e quando sair quero fazer essas e outras tortas e bolos

que aprendi, para vocês. Minha tuquinha (sic), o pai te ama muito, muito...E quero, quando sair, passar a maior parte do meu tempo com você, com o FILHO,

com a mãe, com a vó, com a tia, com o FILHO MAIS VELHO, enfim, com vocês.Você sabe o quanto o pai adora vocês e se esforça para vê-los felizes, né?E desta vez será para sempre, sem nunca mais voltar para este lugar.Se Deus quiser e assim permitir.Que este ano de 2012 seja de muita paz, amor, prosperidade (e liberdade para mim

e indiretamente para vocês também).Acredito que no próximo Natal e Ano Novo estarei aí com vocês, meu anjo.Meus amores, meus anjos, que eu adoro e são tudo de bom, que ganhei de presente

dessa mulher maravilhosa que amo demais, acreditem, orem e peçam a Deus para termos ainda muitos anos juntos.

Vocês são muito importantes para mim e a razão maior pra eu mudar meu modo de vida.Que Deus abençoe você, FILHO, você, FILHA, você, ESPOSA, minha querida, você,

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minha mãezinha, você, meu FILHO MAIS VELHO adorado, você, minha IRMÃ ímpar.Eu amo muito vocês, realmente.Um milhão de beijos desse paizão, desse marido, desse filho, desse irmão que ado-

ra vocês.Com todo carinho

FONTE: CARTA DISPONIBILIZADA PELA ENTREVISTADA 4

A entrevistada afirmou que o que mais lhe incomoda em relação à pri-são do marido, além da privação de liberdade do companheiro, obviamente, são as revistas pelas quais precisa se submeter todas as vezes que vai ao presídio. Observe-se o depoimento:

Do meu ponto de vista o maior constrangimento são as revistas. Ne-nhum visitante entra sem passar por ela. Primeiramente, não se entra com roupa preta, vermelha, curta, com decote, nem regatinha. Não se pode entrar com bijuterias e salto alto, apenas com chinelinho e sapatilha. Nós, mulheres, devemos ficar nuas perante as agentes, onde devemos passar por uma porta e banquinho detector de metal. Devemos fa-zer seis agachamentos em cima de um espelho. É horrível, mas pelo menos as crianças não fazem isso. Além de o agachamento ser humi-lhante por si só, muitas agentes nos humilham verbalmente; eu já saí muitas vezes de lá chorando. Essa é umas das grandes reclamações dos familiares. Nos dias de visita entra só lanche. Uma vez por mês é o dia da sacola. Nessa sacola só entram certos alimentos e material de higiene que a casa permite.As visitas acontecem todo final de semana, por três horas. Há a visita social, a visita íntima e a visita das crianças, que é uma vez por mês (ENTREVISTADA 4, 2012).

Se for parado para refletir, as revistas íntimas podem acabar por res-tringir o convívio familiar dos internos, uma vez que tal constrangimento pode desestimular as visitas feitas pelos familiares aos seus entes que se encontram em reclusão, tornando, assim, muito mais difícil a passagem do apenado pela instituição carcerária.

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3.3.6 RELACIONAMENTO ENTRE OS PRESOS E A PRESENÇA DE FACÇÕES CRIMINOSAS NOS PRESÍDIOS

As penitenciárias brasileiras possuem uma característica interessante, que é o fato de o interior dessas instituições ter sido o local de nascimento de organizações criminosas, como as maiores e mais conhecidas associações bra-sileiras de crime organizado, o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Coman-do da Capital (PCC).

O Comando Vermelho é uma evolução da organização criminosa Fa-lange Vermelha, tendo esta surgido no presídio da Ilha Grande (em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro), o já desativado Instituto Penal Cândido Mendes, e atuou entre 1967 e 1975. O Comando Vermelho foi criado neste mesmo pre-sídio, a partir do convívio entre presidiários “comuns” e militantes de grupos armados que lutavam contra o regime militar. Embora a organização seja co-nhecida por suas práticas criminosas, o que motivou sua fundação, além das violentas disputas que ocorriam entre os próprios detentos, foi a sistema carce-rário, que eles consideravam brutal. Esse desejo de condições mais dignas para os presidiários permanece até hoje no grupo (ORGANIZAÇÃO, [S.D]).

O Primeiro Comando da Capital, por sua vez, foi fundado em 31 de agosto de 1993, na Casa de Custódia e Tratamento de Taubaté, conhecida como “Piranhão”, localizada no interior do estado de São Paulo. Foi durante um jogo de futebol neste presídio que oito presos transferidos da cidade de São Paulo resolveram se autodenominar “Comando da Capital”. Os fundadores afirma-vam que a organização havia sido criada para “combater a opressão dentro do sistema prisional paulista” e também “para vingar a morte dos 111 presos”, ocorridas no episódio que ficou conhecido como “massacre do Carandiru”, em outubro de 1992, quando homens da Polícia Militar mataram os internos no pavilhão 9, na Casa de Detenção de São Paulo (FACÇÃO, 2006).

O Padre Valdir João Silveira, coordenador da Pastoral Carcerá-ria da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil de São Paulo, afirma à publicação Estudos Avançados que:

Os grupos e facções do crime surgiram pela lacuna do Estado. Num primeiro momento, para se protegerem contra a violência e a tortura com que o Estado agia. Depois, para criar uma ordem entre os presos, pois havia extorsão, exploração e violência sexual de preso para com preso, então o crime se estruturou para impedir essa desordem toda.As fações que forneciam o mínimo para a sobrevivência, seja material de higiene, seja medicamentos, atendiam também os familiares (...). Então restou às facções cobrir lacunas, também conseguir advogado e

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assistência social. O Estado abandonou o presídio, também a socieda-de num todo, e o Estado aqui é o Administrativo, o Jurídico, o Minis-tério Público e também o Legislativo, que viraram as costas para os presos (SILVEIRA, 2007, p. 210).

Sobre o relacionamento entre os internos de uma instituição pe-nitenciária, não foi questionado aos interlocutores de forma direta a res-peito da presença de facções criminosas nos presídios, buscando assim evitar influenciar respostas dos entrevistados. O que se questionou foi se eles recebiam ajuda de alguém que não a família, se já haviam percebido alguma confusão entre os internos e se existia algum tipo de hierarquia entre esses indivíduos.

As interlocutoras da Penitenciária Industrial de Guarapuava em momento algum das entrevistas relataram a presença de organizações criminosas dentro desta penitenciária. Tanto a professora quanto a Juíza que trabalharam na instituição afirmaram nunca ter presenciado qualquer tipo de confusão entre os condenados que cumprem pena nesta cadeia, reforçando que todos agem com muita disciplina e ordem. A PIG vive uma atipicidade em relação às outras penitenciárias nacionais quanto à lotação: cada cela comporta apenas dois presos e não há superlotação.

No tocante a uma possível hierarquia entre os presidiários, a professora da instituição afirmou nunca ter percebido este fato, princi-palmente porque existe uma padronização no vestuário dos internos. Essa uniformização, aliás, remete à “mortificação do eu” trazida por Goffman, uma vez que dentro de uma instituição total o indivíduo aca-ba perdendo a sua identidade e o tratamento dispensado aos internos é o mesmo, e demonstra a vida formalmente administrada que o indivíduo que integra uma instituição total leva. A Magistrada da PIG também relatou nunca ter presenciado qualquer espécie de hierarquia nesta ins-tituição, contudo afirmou que este fenômeno existia nas cadeias públi-cas, inclusive na de Guarapuava:

Hierarquia normalmente existe em cadeias públicas. Na de Guara-puava já teve muita confusão, morte... Porque na cadeia pública não há gente suficiente para monitorar os presos. Nas cadeias que vi pelo Brasil afora geralmente existia um “chefe”, o que “mandava” nos ou-tros (ENTREVISTADA 1, 2012).

Os interlocutores dos detentos das penitenciárias estaduais, no entanto, falaram diretamente a respeito da presença de facções criminosas no

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interior destes presídios – presídios que apresentam muito mais falhas do que a Penitenciária Industrial de Guarapuava: “O relacionamento entre os presos não é nada dócil, tem muitas facções e rivalidades entre vários grupos, já presenciei várias brigas e tivemos que fazer inúmeras intervenções para não acontecer o pior” (ENTREVISTADO 2, 2012).

A esposa do detento da Penitenciária Central do Estado afirmou que seu marido relata ser muito difícil a convivência com os outros ape-nados nesta penitenciária: “Nas celas eles moram em seis, e meu marido diz que é horrível conviver com diferentes pensares e atitudes” (ENTRE-VISTADA 4, 2012). Ela disse que a prisão é “outro mundo”, que a mo-eda de troca entre os internos é pão francês, o qual usam para trocar por artesanato para presentear os familiares – na cadeia, os detentos fazem artesanato para passar o tempo – e por doce que algum outro preso tenha, porque, segundo a entrevistada, os internos sentem muita falta de doce. Ela ainda contou curiosidades sobre a vida no cárcere, como se pode observar no relato abaixo:

Lá, nenhum preso pode olhar a mulher do outro quando passamos pe-los corredores até chegar ao pátio, que é o local das visitas. Se houver homens nesse mesmo caminho eles devem virar o corpo para parede, até que todas tenham passado. Se presos encontrarem advogados pelo corredor não podem conversar, a não ser que os agentes penitenciários estejam junto ou que seja a pedido do próprio advogado (ENTREVIS-TADA 4, 2012).

A interlocutora também afirmou que seu marido lhe conta que na PCE existem, sim, facções criminosas, mas que é tudo muito “discreto”:

Faz dois anos que fizeram rebelião e foi muito triste; teve morte, des-truíram parte do presídio. Sofreram maus tratos e todos pagaram; se não estou enganada, ficaram três meses sem visita por estarem de cas-tigo. Meu esposo até hoje tem receio pelo que presenciou durante a rebelião e após (ENTREVISTADA 4, 2012).A rebelião a que a entrevistada se refere ocorreu no início de 2010, na

qual cinco apenados faleceram e ocorreram muitos danos à estrutura do presí-dio – aproximadamente 90% da unidade foi destruída. Essa rebelião, segundo a Polícia Militar, foi motivada por duas facções criminosas rivais (OLAVO, 2010).

À pesquisa foi fornecida uma carta do detento casado com a entre-vistada, que ele enviou à família relatando a rebelião. No documento, o interno

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da Penitenciária Central do Estado relata que a rebelião foi a pior do presídio e que os presos ficaram quase quatro meses dormindo ao relento, no pátio da instituição, por conta da destruição que ocorreu nas galerias da instituição, onde 600 portas foram arrancadas e a maioria das paredes foi destruída parcialmente, além de pias, encanamentos, etc. Também relatou que os militares foram muito cruéis e que tiros de borracha e bombas de efeito moral eram cotidianas no pós--rebelião. Abaixo, transcreve-se a carta:

CARTA ENVIADA À FAMÍLIA RELATANDO A REBELIÃO OCORRIDA NA PENITENCIÁRIA CENTRAL DO ESTADO

Piraquara, 11/05/2010IRMÃ,

Espero que esteja bem, com saúde e em paz.A ESPOSA me disse que você está lecionando italiano aí nessa escola. Disse tam-

bém que você está ajudando ela muito. Eu fico feliz em saber que vocês duas estão se dando bem, e fico grato por saber que você está ajudando. É isso mesmo, acho que mesmo estando neste lugar, Deus me ajuda através de outras pessoas, porque nunca me pesei em fazer fa-vores, sempre que posso ajudo, e Deus me retribui através de pessoas como você. Estando ajudando minha esposa e meus filhos, está me ajudando. E sempre que puder, estando em liberdade, posso retribuir, mesmo não sendo financeiramente.

Aqui a rebelião foi a pior da história da PCE, somente agora há poucos dias saí-mos do relento (pátio) e estamos novamente nas galerias com portas (porque na rebelião foram arrancadas todas as portas, 600 portas e destruíram as paredes parcialmente, enca-namentos, pias, etc). Agora faltam outras galerias para arrumar que mais tarde alojarão outros presos que chegarão aqui. Uma grande parte foi transferida, uns para a colônia (que estavam no direito há muito tempo), outros para outras unidades. Aqui ainda perma-necem aproximadamente 800 presos dos 1.600 que estavam até o dia da rebelião.

A nova direção é mais experiente e está sabendo organizar a unidade para que di-ficilmente ocorra outra rebelião ou mortes, através da seleção de novos presos. Só ficarão aqui os mais tranquilos (como eu), que não incomodam.

Acredito que agora em poucos meses tudo normalizará e isto ficará estilo antigo Ahú. Os setores de trabalho serão reabertos e criados novos para ganharmos remição da pena e ocupar o tempo. Mas tudo isso é de forma compassada, aos poucos. A visita deve normalizar no início do mês (no pátio), como era antes. Eu vou começar a trabalhar dentro de alguns dias, o que me ajudará muito, porque agora sou hipertenso por causa do nervo-sismo e do sofrimento pós-rebelião. Foi um inferno a crueldade dos militares no primeiro mês. Levei um tiro de bala de borracha, a revista no pátio era quase diária (todos pelados

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e correndo para as galerias com a mão na cabeça, depois voltando para o pátio, e assim sucessivamente). Soltavam rojões e bombas de efeito moral e bombas de pimenta dentro das galerias (ainda sem portas nas celas), tremia o prédio todo. Só um dia em 24 horas eu contei 78 bombas e tiros de borracha. Foi realmente um inferno nos primeiros 30 dias. Depois mudou a direção e a segurança e amenizou o sofrimento. Havia tortura psicológica por parte dos militares (como correr pelado no dia da revista, para pegar alimentação, etc), mas os tiros e bombas diminuíram bastante, mas não cessaram. Agora acabou a tor-tura e os tiros definitivamente. Tudo caminha (literalmente) mais tranquilo.

Como disse, fiquei hipertenso por esses motivos, fui para o CMP (Complexo Médi-co Penal), fiquei 22 dias com crise renal e princípio de infarto. Estou tomando 5 comprimi-dos diariamente para manter minha pressão normal, mas logo que começar a trabalhar, as visitas normalizarem, acredito que não precisarei mais dessa medicação.

Eu peço para a ESPOSA me escrever, para por as cartinhas das crianças no cor-reio, mas ela não faz isso. Me disse (sic) sábado (dia 8) que faria isso esta semana, estou esperando. Uma carta para mim é como se fosse uma meia-visita, é bom poder ler, saber das coisas (fiquei 90 dias sem notícias). E a comissão técnica de avaliação registra tudo isso, é importante receber cartas porque alguém está se importando com a gente, é parte da observação deles.

Bom, quero finalizar te parabenizando por esse dia, que você viva muitos e muitos anos e quero que saiba que é importante para todos nós. Você tem um coração bom e me-rece ser feliz. Te amo, minha irmã querida.

Deixo um beijão para a mãe, para a ESPOSA, para as crianças, para o SOBRI-NHO, para você, para os FILHOS, etc.

Que Deus te ilumine sempre e te dê paz e harmonia, saúde e força para viver ainda muitos anos. Me escreva (sic) e peça para a mãe e para a ESPOSA escreverem.

Abraço e beijos do seu mano que te admira e que te ama.

FONTE: CARTA DISPONIBILIZADA PELA CUNHADA DA ENTREVISTADA 4

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi exposto, é possível concluir que o Estado realmente é omisso em vários pontos da vida no cárcere brasileiro. A alimentação, a assis-tência material e a social são alguns pontos em que a ajuda do governo falha. Observou-se também que existem facções criminosas em alguns presídios, mas que também é possível a existência de uma instituição penitenciária sem a pre-sença delas, com um bom relacionamento entre os presos, desde que o Estado consiga manter condições dignas para o condenado.

Percebe-se, conforme os relatos analisados, que a situação da Pe-nitenciária Industrial de Guarapuava piorou a partir do momento em que o

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governo assumiu o controle de seus setores, mas será que terceirizar uma pe-nitenciária completamente é a solução? Em todas as penitenciárias analisadas existe reclamação dos presos em relação à alimentação, que é justamente o setor que é terceirizado em todas elas. Questiona-se, deste modo, se as lici-tações realizadas para terceirizar setores das penitenciárias realmente visam uma melhoria nessas instituições ou se são apenas uma maneira de o Estado se livrar da responsabilidade sobre a população carcerária. Mais grave ainda, é possível questionar se esses processos não têm a intenção de beneficiar em-presas “parceiras” do Poder Estatal.

A pesquisa realizada, portanto, permite concluir que o Estado não se mostra presente no interior das penitenciárias da maneira como deveria, colo-cando em xeque, desta maneira, a função de ressocializar um condenado que a pena privativa de liberdade, em tese, possui, vez que sua finalidade não é a de atuar como uma vingança social. Aliás, foi essa ausência do Poder Estatal que abriu brechas para o surgimento de organizações criminosas no interior das penitenciárias brasileiras, quando seus fundadores constataram que o Estado não se mostra presente de forma igual em todos os setores da sociedade. Tam-bém foi possível ver e concluir que o próprio presidiário teme a maneira com a qual poderá ser tratado pela sociedade ao tempo em que sua pena for cumprida, como se pode observar na carta de um preso à família, na seção 3.3.5 da pesqui-sa. O motivo, talvez, realmente se explique pela afirmativa da Juíza entrevis-tada, que o preso simplesmente é esquecido por não votar e que a situação em que a maioria dos presídios nacionais se encontra reflete o fato de a sociedade brasileira ser realmente muito punitiva.

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ENTREVISTADA 1, Entrevista concedida a Mariana Pabis Balan. Curitiba, agosto de 2012.

ENTREVISTADO 2 , Entrevista concedida a Mariana Pabis Balan. Curitiba, agosto de 2012.

ENTREVISTADA 3, Entrevista concedida a Mariana Pabis Balan. Curitiba, agosto de 2012.

ENTREVISTADA 4, Entrevista concedida a Mariana Pabis Balan. Curitiba, agosto de 2012.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 36 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1974.

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PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 1. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1988

OLAVO, Jorge. Destruição, mortes e um futuro incerto. Gazeta do Povo. Curitiba, 16 de janeiro de 2010. Disponível em <http://gazetadopovo.com.br>. Acesso em: 06 de setembro 2012.

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VARELLA, Drauzio. Carcereiros. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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APÊNDICE:

ROTEIRO DE ENTREVISTA

1. Qual é a sua idade, profissão e qual é a sua ligação com a prisão?

2. Em qual(is) presídio(s) trabalhou? Por quanto tempo/desde quando? / Em qual presídio seu marido se encontra cumprindo pena?

3. Como são as instalações do presídio (celas, pátio, biblioteca, etc)? Acre-dita que elas poderiam ser melhores?

4. Como é a comida no presídio? É feita no próprio local ou é terceirizada?

5. Além da alimentação, a Lei de Execução Penal garante aos presos vestu-ário, instalações higiênicas, à saúde, jurídica, educacional, social e reli-giosa. Acredita que o presídio com o qual você tem (teve) contato dispõe dessas coisas sem deficiências? / Acredita que o presídio com o qual seu marido tem (teve) contato dispõe dessas coisas sem deficiências? / Quais são as maiores queixas de seu marido em relação à vida em prisão?

6. Sabe como se dá o relacionamento entre os internados? Já percebeu se há alguma hierarquia entre eles? Já presenciou alguma confusão? / Seu marido já lhe relatou alguma confusão?

7. Sabe se os presos recebem algum auxílio de fora? Seja da família ou de outras pessoas?

8. Sabe se os presos oferecem dinheiro aos agentes penitenciários em troca de alguma regalia de que eles não possuem direito? Se nunca ouviu al-gum relato sobre isso, acredita que poderia acontecer?

9. Já percebeu se, em troca de dinheiro, os presos recebem ou já receberam algum benefício dos agentes penitenciários? Se não viu, acredita que isso pode acontecer?

10. Seu marido já relatou alguma curiosidade a respeito da vida em prisão? – pergunta feita apenas para a esposa de um preso

11. Como funciona o esquema de visitas para familiares? Como é feita a revista? – pergunta feita apenas para a esposa de um preso

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PROCESSO PENAL: ENTRE O GARANTISMO E O DEVER DE PUNIR

raFaEl urba

Graduando do curso de Direito Do Centro Universitário Curitiba

alExanDrE KnopFholz

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é profes-sor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando princi-palmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A “eficiência” antigarantista. 3. A eficiência com a garantia de direitos fundamentais. 4. Conclusões. 5. Referências.

RESUMO

A eficiência do direito processual penal está umbilicalmente ligada à garantia dos direitos fundamentais. Os movimentos de “Lei e Ordem” e “To-lerância Zero” revelam, no entanto, uma tendência do Estado a tornar-se mais repressivo, difundindo na sociedade, por meio da mídia, uma concepção errô-nea do direito e do processo penal. Assim, surge um clamor por uma eficiência utilitarista do processo, uma vez que a sociedade passa a ver o processo penal como mero instrumento de condenação e não como garantia do réu em face do poder repressivo do Estado, nem como fator de limitação deste poder. O au-mento da repressão não implica na diminuição da criminalidade, uma vez que o Brasil possui atualmente a terceira maior população carcerária do mundo. A tendência moderna de privilegiar a chamada “segurança social” em detrimento de direitos e garantias individuais representa uma volta a um modelo autoritário de direito penal, modelo este que se utiliza do discurso da “segurança coletiva” para justificar a relativização de direitos e garantias individuais.

Palavras-chave: Direito penal e processual penal; Lei e Ordem; Tolerância Zero; eficiência; garantismo; segurança social; direitos e garantias fundamentais.

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ABSTRACT

The notion of eficiency in criminal proceedings Law is intrinsically related to the protection and promotion of fundamental rights. Recent repres-sionist movements, however, sucha as “Law and Order” and “Zero Tolerance”, reveal a governmental tendency in hardening criminal persecution, ignoring in this process individual rights. Such turnaround in public policies, towards a more severe and intolerant penal system, is supported by the general public, who is fuelled by a sensasionalist media that can only conceive an increase in repression as a possible solution to criminality. As a consequence, society views penal law and criminal proceedings law as means to obtain a conviction and not as a barrier, a protection against the state’s police power. There has been a change in the way fundamental and individual rights are viewed when “public safety” is at stake. The protection of the group is the argument used by autorities to disregard and even ignore constitutional rights due to every citizen.

Keywords: Penal Law; Criminal Proceedings Law; Law and Order; Zero Tole-rance; eficiency; criminal garantism; public safety; fundamental rights.

1. INTRODUÇÃO

Ao processo penal cabe a difícil tarefa de conciliar pretensões apa-rentemente antagônicas. De um lado há o dever de assegurar ao indivíduo um ambiente seguro dentro do qual possa se desenvolver, sem o temor constante de vir a sofrer violência por parte de seus semelhantes. Esse dever do Estado, o de possibilitar à coletividade uma convivência pacífica, ou seja, de garantir a “se-gurança social”, decorre do monopólio do uso da força que o torna o único legi-timado a perpetrar uma violência contra o indivíduo. Por outro lado, ao dever de promover a segurança social se contrapõe o direito de liberdade de cada pessoa. Em um Estado Democrático de Direito, o ente estatal não é um fim em si mes-mo, mas somente tem sua existência justificada na medida em que torna possí-vel aos seus cidadãos uma vida digna. A dignidade da pessoa humana, constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, considerando-se como intrínsecos a ela uma série de outros valores positivados na Constituição de 1988 na forma de direitos fundamentais. Estes, principalmente os de primeira dimensão, tem como escopo proteger o indivíduo em face do poder do Estado.

Assim, possui o poder público a difícil tarefa de exercer o poder pu-nitivo, preservando a segurança social, ao mesmo tempo em que respeita as

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liberdades individuais e os demais direitos fundamentais de seus cidadãos.O processo penal, dentre todos os ramos do direito, é aquele no

qual a dificuldade de encontrar o equilíbrio entre o dever/poder de promover a segurança social e o dever de respeito aos direitos e garantias individuais se torna mais evidente, uma vez que é no processo que o direito penal78 ad-quire concretude.

Como afirma Antonio Scarance Fernandes (2008, p.231),

Entre as tendências contemporâneas do processo penal, uma vem se manifestando de forma intensa, a que busca o equilíbrio entre a exi-gência de assegurar ao investigado, ao acusado e ao condenado a apli-cação das garantias fundamentais do devido processo legal e a neces-sidade de maior eficiência do sistema persecutório para a segurança social. Com isso se almeja evitar os extremos do hipergarantismo ou de movimentos como o do Direito Penal do Inimigo ou da Lei e da Ordem.Contudo, ante a impossibilidade de se definir com clareza o que seria esse justo equilíbrio e a imensa dificuldade em traduzi-lo nos textos de lei ou na aplicação concreta do direito, essa tendência representa na realidade somente uma meta, uma diretriz, que deve nortear o processo penal, fazendo com que ele, no movimento pen-dular da história, não se distancie do ponto médio entre a proteção à liberdade e a segurança da sociedade.

A eficiência do sistema persecutório tem sido tema de debate não só no âmbito jurídico, mas também tem se sido objeto de interesse e crítica do lei-go, aquele cujo entendimento acerca do direito penal e processual penal advém única e exclusivamente da mídia. Sendo assim, não é incomum na sociedade brasileira a proliferação de frases impensadas como “vagabundo não tem direi-to”, “bandido bom é bandido morto”, “direitos humanos para humanos direitos” etc. Surge um clamor, fomentado e alimentado pelos meios de comunicação, bem como por outros fatores como a sensação de insegurança, reinante na so-ciedade contemporânea, para o fim da “impunidade”. Para realização desse objetivo, todos os olhos se voltam para o aparato repressor do Estado, para o direito penal e processual penal. Mede-se a eficiência do processo pelo núme-ro de condenações, crê-se realizada a justiça quando acusado/investigado está preso e algemado. Diante de tal quadro, como não poderia deixar de ser, os direitos fundamentais representam um óbice a promoção da segurança social, um empecilho a um processo penal eficiente.

78 O direito penal, por dispor da sanção mais severa de todas, a pena privativa de liberdade, é o ramo do direito mais invasivo em relação à esfera pessoal de vida do cidadão.

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Para melhor compreensão, necessário conceituar o que é “eficiência”, bem como diferenciar tal conceito dos de “eficácia” e “efetividade”. De acordo com o professor Fábio Ramazzini Bechara (2009, p. 17) os conceitos de eficiência, eficácia e efetividade podem ser extraídos das ciências econômicas, bem como do Direito Administrativo. Nas palavras de referido professor (2009, p 17-19),

Nas Ciências Econômicas e na Administração, a eficiência é a virtude e a faculdade para atingir um efeito determinado, em que a ênfase está menos no resultado ou no efeito, mas na qualidade para produzi--lo e a ação necessária para alcançá-lo. Consiste na capacidade ou qualidade de atuação de um sistema ou sujeito econômico para obter o cumprimento de um objetivo determinado, minimizando o emprego de recursos.A eficácia, por sua vez, traduz-se na produção intencionada de uma realidade, como resultado da ação de uma agente idôneo para agir, medindo o resultado obtido com os objetivos pretendidos. É o grau e a medida através da qual se alcançam os objetivos propostos.[...] Já a efetividade consiste na qualidade daquilo que se manifes-ta por um efeito real, positivo, seguro,firme, que mereça confiança, cujos efeitos projetam-se para além do próprio resultado.[...] Assim, por eficiência entender-se-á a aptidão para um resultado; por eficácia entender-se-á a obtenção do resultado; por efetividade en-tender-se-á a qualidade externa que se projeta para além do resultado

Portanto, uma vez que a eficiência poder ser definida como a quali-dade, a aptidão para obtenção de um determinado resultado, resta saber qual é o resultado, o objetivo, a ser alcançado por meio do processo. Se o fim do processo penal for de fato a produção de maior número de condenações e/ou promoção do encarceramento de “bandidos” de forma célere e contundente, então o sistema repressivo brasileiro nunca funcionou tão bem como neste início de século.

De acordo com o Instituo Brasileiro de Ciências Criminais (IBCRIM, 2011, p.01), a população carcerária brasileira em 1994 era de cerca de 129.000 presos, o equivalente a 88 presos a cada 100.000 habitantes. Já no final de 2011 o Brasil chegou à marca dos 500.000 presos, nada mais nada menos do que 261 presos a cada 100.000 habitantes. Enquanto a população passou por um aumen-to de 29% (de 147.000.000 de habitantes em 1994 para 191.000.000 em 2010) a população carcerária passou por um incremento de 390%. Esse crescimento acentuado da população carcerária no Brasil não se deveu ao

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[...] aumento vertiginoso da criminalidade (que, nos últimos anos, chegou a decrescer em algumas esferas), mas, fundamentalmente, foi uma opção: pu-nir mais. Legislações recentes criaram novos crimes, maximizaram penas de delitos já existentes, aumentaram as hipóteses de detenções provisórias (26% das pessoas encarceradas no Brasil aguardam julgamento), dificulta-ram a progressão de regime e o livramento condicional. Criou-se uma cultu-ra punitiva. (IBCRIM, 2011, p.01)

Percebe-se, portanto, que o clamor popular e midiático por maior ri-gor na repressão à criminalidade tem sido atendido e como resultado o Brasil possui atualmente a terceira maior população carcerária do mundo (OAB No-tícias, 2010, p.01), ficando atrás apenas de Estados Unidos e China. Diante de semelhante quadro, inevitável reconhecer a fragilidade do discurso punitivo, tendo vista que apesar do crescimento da repressão não houve decréscimo da sensação de insegurança, nem do clamor pelo fim da “impunidade”.

Importante mencionar, porém, que o discurso da impunidade possui, não obstante seus excessos e equívocos, uma faceta legítima, na medida em que critica a seletividade do direito penal, o fato deste incidir sobre um público de-terminado, qual seja, as classes marginalizadas, deixando incólumes as cama-das mais abastadas da sociedade. Nesse sentido, o discurso que prega o fim da impunidade ou, em outras palavras, a aplicação de lei penal de modo uniforme, independentemente de classe social, raça, cor etc., é legítimo.

A concepção popular de que o aumento da repressão significaria a diminuição da criminalidade, parte de uma premissa falsa de que a solução para tal problema reside no direito e no processo penal. Estes, porém, são “re-médios” meramente paliativos e não curativos no combate ao comportamento desviante. Não se pretende, todavia, no presente artigo, explorar as causas e possíveis soluções para o problema da criminalidade, basta saber que o direito penal e processual penal nãos se prestam para tanto.

Portanto, tendo em vista que a concepção de eficiência e do objetivo do processo penal, apregoada pela mídia e pelo público, se assenta em premissas falsas, resta saber quais paradigmas se afiguram legítimos para orientarem a definição de qual seja o fim do processo penal, bem como se este é ou não eficiente na promoção desse fim.Com a Constituição da República de 1988, optou-se por estatuir no Brasil um estado democrático de direito. Como conseqüência, o di-reito passou a ser informado pelos valores inerentes à democracia. A participação, a transparência, o tratamento isonômico das partes, o respeito aos direitos fundamentais, dentre eles o contraditório e a am-

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pla defesa, são apenas alguns dos ideais democráticos incorporados a ordem jurídica brasileira. Tais valores são imprescindíveis à defini-ção do que seja um processo penal eficiente, uma vez que constituem pressupostos sem os quais o processo deixa de ser processo e passa a ser um rito arbitrário, mera formalidade antecedente à condenação.Para Antonio Scarance Fernandes (2008, p.234),

Será eficiente o processo que, em tempo razoável, permitir atingir--se um resultado justo, seja possibilitando aos órgãos da persecução penal agir para fazer atuar o direito punitivo, seja assegurando ao acusado as garantias do processo legal.

As garantias do processo legal abrangem todos os direitos fundamen-tais elencados na constituição. Um processo penal eficiente, portanto, pode ser percebido como aquele que, além de buscar um resultado justo, possibilita ao acusado/investigado exercer seus direitos. Um processo que busca de forma ati-va o equilíbrio entre o dever de punir, garantir a segurança social, e o de respeito e promoção dos direitos fundamentais, preservando a incolumidade física e mo-ral do réu, possibilitando que este, na medida do possível, responda ao processo em liberdade, sendo-lhe assegurado o pleno exercício do contraditório e da am-pla defesa. Nas palavras do professor Aury Lopes Jr.(2006, p.09), é importante

[...] visualizar o processo desde seu exterior para constatar que o sis-tema não tem valor em si mesmo, senão pelos objetivos que é cha-mado a cumprir (projeto democrático- constitucional). Sem embargo, devemos ter cuidado na definição do alcance de suas metas, pois o processo penal não pode ser transformado em instrumento de segu-rança pública.

A consolidação do garantismo, aqui entendido como filosofia do direito e filosofia política, não é, no entanto, a tendência observada no mundo atual. Pre-valece o discurso do Estado de lei e ordem, da tolerância zero com a criminalida-de, de uma eficiência medida pelo nível de violência da repressão. Nesse contexto os direitos e garantias individuais são relativizados em favor de uma sociedade mais “segura”, imperando uma concepção de eficiência antigarantista.

2. A “EFICIÊNCIA” ANTIGARANTISTA

Faz-se necessário, para compreensão da tendência mundial de apoiar movimentos repressivos e de relativização de direitos e garantias fundamentais,

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realizar uma análise da influência do sistema econômico sobre o aparato puni-tivo estatal. A relação entre neoliberalismo e o direito penal e processual penal, bem como entre as políticas de segurança pública e o discurso oficial é estreita, revelando que existe uma ideologia sendo paulatinamente implantada na socie-dade com o fim de melhor moldá-la as exigências de um sistema de mercado dentro do qual o ser humano é mera engrenagem.

A sociedade contemporânea é indubitavelmente uma sociedade formada por consumidores. O consumo de produtos, bens e serviços é a base do sistema capitalista que vigora no ocidente e, consequentemente, o consumismo foi elevado ao patamar de ideal de vida. Portanto, o modelo de homem ideal, o exemplo a ser seguido por todos os membros da sociedade, é a do homem que consome, produz, é eficiente e pertence a uma das várias “tribos” sociais para a qual existe um nicho específico de mercado. Aquele que não se encaixa em nenhum dos modelos social-mente aceitos, por não possuir poder aquisitivo relevante, é excluído, marginaliza-do, uma vez que se torna “inútil” à promoção e manutenção dos níveis de consumo. Essa população marginalizada, que existe em grande quantidade principalmente nos países periféricos, tem como único amparo o Estado e medidas que promovam o bem estar social, um nivelamento, por meio de políticas públicas de assistência social, da população que “não possui” com aquela que “possui”.

A cartilha neoliberal, por sua vez, prevê uma redução, “enxugamen-to”, do Estado em favor de maior liberdade para a iniciativa privada e da expan-são do livre mercado. Tal redução do Estado, porém, envolve o corte de polí-ticas assistencialistas direcionadas às classes menos abastadas, substituindo-as por medidas que visam a repressão e subjugação, uma vez que na sociedade neoliberal o indivíduo “só interessa enquanto consumidor.Logo, cria-se o binô-mio consumidor-cidadão. Não há espaço para o diverso, para a tolerância e a solidariedade humana.” (LOPES JR., Aury, 2006, p. 23)

O direito penal torna-se ferramenta de manutenção do satus quo, en-quanto que o processo assume feição inquisitória na medida em que vislumbra o indivíduo como mero objeto de investigação e não sujeito de direitos. Nesse sentido, afirma Alexandre Morais da Rosa (2008, p. 27-40) que

[...] o neoliberalismo ganhou um estatuto forte no combate às idéias do Estado de Bem-Estar, eis que as considera prejudicial ao mercado, verdadeira fonte da Democracia, justificando, portanto, a diminuição do Estado. <<Ordem espontânea>> e <<mercado>> são os slogans difundidos. Os sujeitos, segundo o modelo neoliberal, não podem depender do Estado que, pelo mercado e a seleção natural dos mais capazes, pode naturalizar as desigualdades sociais. A <<Liberdade>> como valor democrático fundamental retiraria a legitimidade das ações estatais, salvo na repressão, claro. Assim é que o Estado deve

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ser mínimo na busca de “justiça social”, a cargo do mercado, mas com mão de ferro implacável na esfera penal, reprimindo as manifestações sociais que busquem o que Hayek denomina como paternalismo es-tatal. Afinal, o mercado das prisões demanda insumos. De um lado cria-se uma insegurança adubada ideologicamente e de outro cria-se mecanismos de assimilação da violência, numa escalada de controle social. O controle social, via sistema penal, contracena, num aparente paradoxo, com uma desregulação e diminuição do Estado.

Percebe-se, portanto, que o discurso neoliberal ao mesmo tempo em que busca a diminuição do Estado, enquanto Estado de bem estar-social, de-fende o aumento de seu poder repressivo na forma de políticas de segurança pública que promovam um “tratamento penal e não social da miséria.” (LOPES JR., Aury, 2006, p. 24)

O projeto neoliberal se infiltra no processo penal por meio de movi-mentos como “Lei e Ordem” (Law and Order) e “Tolerância Zero” (LOPES JR., Aury, 2006, p. 24). Tais movimentos surgiram nos Estados Unidos, vindo, no entanto, a se espalhar pela Europa e América Latina. Constituem um conjun-to de políticas voltadas à segurança pública que endurecem a atividade repres-siva do Estado, concedendo maiores poderes à polícia e criando normas que, em prejuízo de direitos e garantias fundamentais, tornam a persecução penal mais “eficiente”. É nada mais nada menos que o Direito Penal sendo usado para solução de problemas que simplesmente não se pode resolver.

Os movimentos de “lei e ordem” e “tolerância zero” possuem como fundamento um discurso que prega a segurança acima da liberdade. Esse dis-curso, por sua vez, surge em razão de novos problemas e ameaças enfrentados pela sociedade globalizada. O fenômeno da globalização e o discurso de segu-rança andam juntos.

Diante desse quadro, no qual se configura uma sociedade de risco, uma vez que na sociedade global poucas são as certezas diante do ritmo acele-rado de mudança, surge uma crescente necessidade de controle.

Para o criminólogo alemão Peter-Alexis Albrecht (2010, p. 103-104),

“A função de proteção jurídico-penal é confrontada, em sociedades de risco altamente desenvolvidas, especialmente com dois aspectos prblemáticos:• No lugar de bens jurídicos individuais e de sua ameaça por atu-

ante autor culpável, comparecem multiplicadas necessidades de proteção coletiva, que são ameaçadas por ações organizadas (cri-minalidade ambiental, econômica, de drogas).

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• A proteção jurídico- penal de bens jurídicos, vinculada a pres-supostos de intervenção nacionais, está defronte a uma situação de perigo internacionalmente produzida (genocídio, terrorismo, destruição ambiental)

• • Ambos aspectos do problema são invocados, nas atuais reformas

do Direito, como fundamentação para uma “desformalização” das normas do Direito Penal: para as tendências

• de delito de lesão para delito de perigo• da causalidade para imputação• da estrita vinculação legal para incontrolável discrição• Esta redução da limitação de Estado de Direito do poder penal

produz a abertura de espaços de intervenção funcionais do Estado moderno.”

Na sociedade de risco impera um medo difuso, uma vez que a iden-tidade do inimigo, muitas vezes, não pode ser definida. Crimes de terrorismo, crimes ambientais, crimes da internet, a criminalidade organizada etc., não per-mitem, em grande número de casos, identificar o real inimigo, uma vez que, no caso do terrorismo, por exemplo, os atentados são cometidos pelas chamadas “células” terroristas, um grupo que faz parte de uma organização maior. O foco do direito penal passa, portanto, do indivíduo para o grupo, uma vez que a cri-minalidade no século 21 assume um caráter coletivo.

Destarte, ao invés de se operar uma humanização do indivíduo, sendo este visto como sujeito de direitos, ocorre um processo de massificação que in-sere a pessoa no todo, etiquetando-a conforme o grupo a que pertença. Em tais circunstâncias, um indivíduo pode ser detido e submetido a uma averiguação/investigação pelo que ele é e não pelo que fez.

Como já anteriormente afirmado, os movimentos de lei e ordem não são um fenômeno local ou regional, mas mundial. No Brasil, por exemplo, como produto desse movimento pode ser citada a lei dos crimes hediondos ( 8.072/90), bem como algumas das hipóteses, previstas pelo art. 312 do Código de Processo Penal, que ensejam a decretação de prisão preventiva.

A lei dos crimes hediondos veda uma série de garantias àqueles con-denados por ou até mesmo suspeitos de terem cometido crime previsto como hediondo. É uma lei que veio com o objetivo de endurecer a persecução pe-nal, proibindo, em seu formato original, a progressão de regime, a liberdade provisória, vedando a concessão de fiança, anistia, graça e indulto, bem como aumentando o tempo para concessão de livramento condicional e estendendo o prazo de prisão temporária. Em seu formato atual, no entanto, após reformas

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realizadas em 2007, a Lei 8072/90 passou a admitir a progressão de regime, todavia com restrições, uma vez que a pena deverá ser cumprida inicialmente em regime fechado, só tendo o preso direito à progressão de regime após ter cumprido 2/5 (dois quintos) da pena, quando primário, ou 3/5 (três quintos) quando reincidente.

De acordo com o artigo 312 do Código de Processo Penal da Repúbli-ca Federativa do Brasil, “a prisão preventiva poderá ser decretada como garan-tia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução cri-minal, ou para assegurar a aplicação da lei penal...”. A grande crítica referente a este artigo recai sobre os conceitos de “ordem pública” e “ordem econômica”, conceitos estes que são indeterminados, possuindo o juiz, consequentemente, uma liberdade perigosa de preencher o conceito conforme seja mais convenien-te a interesses repressivos.

O endurecimento do sistema repressivo, todavia, também tem ocor-rido em países como a Alemanha, cujo legislativo busca implementar os cha-mados “pacotes de segurança” (ALBRECHT,2010, p.113), na forma de leis de combate ao terrorismo que modificaram uma série de outras leis de forma a aumentar o poder do instrumentário estatal em prejuízo da liberdade. Afirma Albrecht (2010, p.113) que

“São implantados ou planejados:• competências de intervenção do órgão federal criminal, indepen-

dente de suspeita;• prisão preventiva de estrangeiros, que são classificados como ris-

co de segurança;• suspeita de simpatia com extremistas como impedimento de en-

trada ou fundamento de extradição, portanto, difamação de atitu-de como fundamento de intervenção estatal;

• independente direito de informação da proteção constitucional perante bancos, referente a contas e movimentações de contas de clientes de banco, sem controle judicial;

• central de registros para contas e depósitos na instituição federal para inspeção de prestações de serviços financeiros;

• screening de contas para criação de perfis de contas, pelo que é possível um controle quase ilimitado dos espaços privados de liberdade.”

No caso da Alemanha, o discurso de segurança se volta, principal-mente, contra o estrangeiro. Destarte, impossível não constatar que as leis de combate ao terrorismo promulgadas na Alemanha são xenófobas, na me-

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dida em que estigmatizam pessoas de determinada nacionalidade, possibili-tando que estas sejam “preventivamente” detidas, caso sejam classificadas como “risco de segurança”, classificação esta que fica a mercê do arbítrio das autoridades públicas.

As movimentos de “lei e ordem”, “tolerância zero” e as leis de com-bate ao terrorismo têm sua sustentação no forte sentimento de medo, experien-ciado pela população. Tal medo é, no entanto, pelo menos em parte, gerado de forma artificial. A instigação do medo se mostra muitas vezes vantajosa àqueles que exercem o poder, pois lhes permite a implantação de medidas que lhes as-segure a manutenção do status quo, bem como meios de dominação. Zaffaroni (2006, p.58) afirma que

[...] toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe con-trolar sua própria conduta para não debilitar-se (mesmo nas socieda-des de castas,os membros das mais privilegiadas não podem casar-se com aqueles pertencentes a castas inferiores).Deste modo, toda sociedade tem uma estrutura de poder (político e econômico) com grupos mais próximos e grupos mais margina-lizados do poder, na qual, logicamente, podem distinguir-se graus de centralização e de marginalização. Há sociedades com centra-lização e marginalização extremas, e outras em que o fenômeno se apresenta mais atenuado, mas em toda sociedade há centralização e marginalização do poder.

A manutenção da estrutura do poder se torna um objetivo dos grupos mais próximos a ele. Para tanto, tais grupos recorrem à difusão de ideologias - termo aqui empregado para designar “toda crença adotada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se por ‘crença’ uma noção que vincula a conduta e que pode ou não ter validez objetiva” (ZAFFARONI, 2006, p.60)- que lhes sejam mais benéficas no sentido de permitir maior dominação sobre aqueles mais afastados do centro do poder.

Destarte, “o poder instrumentaliza as ideologias na parte em que estas lhes são úteis e as descarta quanto ao resto.” (ZAFFARONI, 2006, p.61)

Os movimentos repressivistas se fundamentam em uma ideologia que prega a redução do Estado de bem-estar social e um aumento do Estado Penal,

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a promoção da “segurança” acima da liberdade, bem como a pronta punição de qualquer ofensa à ordem estabelecida, ainda que o delito seja de menor poten-cial ofensivo. Os direitos e garantias fundamentais são colocados em segundo plano, quando não totalmente esquecidos.

Para Albrecht (2010, p.216),

A continuidade na erosão do Direito impõe-se cada vez mais, na vira-da para o século 21. Um pós-preventivo Direito Penal de segurança, carregado por orientações globais de segurança, como desafios em relação a formas desenfreadas de violência (designadas, segundo a perspectiva, como terrorismo), aspira, de modo claro, garantia de do-mínio global. O conceito de segurança experimenta uma inequívoca prioridade diante da proteção da liberdade. Com uma intervenção de segurança independente de suspeita, o pós-preventivo Direito Penal de segurança recorre mesmo a meios de militarização da segurança interna (emprego do exército para persecução penal internacional, ou para perseguição de finalidades de segurança interna). Ideal-típico para esta orientação global de segurança é a invocação de sacrifícios especiais, como dever geral dos cidadãos, em favor da segurança to-tal, que não existe mais. O pós-preventivo Direito Penal de segurança não está mais interessado, nem remotamente, em orientações crimi-nológicas. Trata-se apenas da multiplicação de puras medidas legais de segurança, que são, mesmo, aclamadas pela maioria da população. Neste desenvolvimento existe, sem dúvida, um claro modelo de nega-ção do Direito, até mesmo de aniquilação do Direito.

Na sociedade de risco, dentro da qual vivemos, e que se mostra recep-tiva a um direito penal de segurança, repudiando direitos e garantias fundamen-tais tão duramente conquistados, sempre há um inimigo a combater. Interessan-temente, o inimigo é sempre primeiramente reconhecido e depois revelado ao resto do mundo pelos Estados Unidos da América, país no qual os discursos re-pressivistas, que levaram a um encarceramento em massa, tiveram sua origem.

A primeira grande ameaça foi o comunismo, inimigo que foi usado como justificativa para o golpe de 1964 no Brasil, bem como a implanta-ção da política de segurança nacional, na esteira da qual foram decretados os famigerados atos institucionais. Com a dissolução da União Soviética e queda do comunismo, surge uma nova ameaça, as drogas e, após estas, o terrorismo internacional.

Na América do Sul, não é o terrorismo, mas sim a questão da seguran-ça urbana que tem alimentado o discurso de “Lei e Ordem”. No Brasil, a guerra

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contra as drogas tem assumido dimensões de verdadeira guerra, uma vez que o próprio exército foi empregado para ocupar favelas no Rio de Janeiro. Destarte, como bem reconheceu Albrecht, ocorre uma erosão do direito, uma negação deste, na medida em que é substituído por medidas legais cuja única finalidade é a repressão, sem consideração alguma a direitos individuais, na medida em que não reconhece aquele que delinqüe como cidadão, mas como inimigo.

No processo penal, procura-se encurtar os procedimentos, acelerando o processo e atropelando garantias.

O mundo atual é regido pela instantaneidade. A velocidade da troca de informações é tamanha que o fator tempo foi praticamente anulado, uma vez que tudo se processa no momento presente e de forma instantânea.

Assevera Aury Lopes Jr.( 2006, p.27) que

Sob o enfoque econômico, o “cassino planetário” é formado pelas bolsas de valores que funcionam 24h por dia, em tempo real, com uma imensa velocidade de circulação de capital especulativo, gerando uma economia virtual, transnacional e imprevisível – liberta do pre-sente e do concreto. Isso fulmina com o elo social, pois aqueles que investem na economia real não têm como antecipar a ação, desenco-rajando investimentos, destruindo empresas e empregos.Nessa lógica de mercado, para conseguir lucros, é preciso acelerar a circulação dos recursos, abreviando o tempo de cada operação. Como conseqüência, a contratação de mão-de-obra também navega nesse ritmo: ao menor sinal de diminuição das encomendas, dispensa-se a mão-de-obra. É a hiperaceleração levando o risco ao extremo.

Dentro desse quadro, procura-se transmitir ao processo o caráter hipe-racelerado da sociedade. Clama-se por um punição instantânea dos crimes, sur-gindo uma preferência por medidas de cautelares que, preferencialmente, mante-nham o investigado sob custódia, ocorrendo uma verdadeira antecipação da pena.

Assim,de acordo com Aury Lopes Jr.(2006, p.28),

[...] a sociedade acostumada com a velocidade da virtualidade não quer esperar pelo processo, daí a paixão pelas prisões cautelares e a visibilidade de uma imediata punição. Assim querem o mercado (que não pode esperar, pois tempo é dinheiro) e a sociedade (que não quer esperar, pois está acostumada ao instantâneo).Isso ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, ex-pandindo o presente. Desse presenteísmo/ imediatismo brota o Estado de Urgência, uma conseqüência natural da incerteza epistemológica,

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da indeterminação democrática,do desmoronamento do Estado social e a correlativa subida da sociedade de risco, a aceleração e o tempo efêmero da moda.

Ocorre uma banalização do estado de urgência que de exceção passa a ser regra, uma vez que “as medidas verdadeiramente ‘cautelares’ e ‘provisionais’ (ou situ-acionais e temporárias) estão sendo substituídas por antecipatórias da tutela (dando-se hoje o que deveria ser concedido amanhã...)” (LOPES JR., Aury, 2006, p. 32)

Olvida-se, contudo, que o direito possui um tempo próprio, incompa-tível com o imediatismo exigido pela sociedade.

Tendo em vista que no processo penal, o que está em jogo são alguns dos bens mais preciosos da pessoa, quais sejam, a liberdade, reputação e digni-dade, deve-se reconhecer que para prolação de uma sentença penal, deve haver certo tempo de “maturação”. O tempo dentro do processo deve ser suficiente para possibilitar ao acusado o exercício da ampla defesa e do contraditório, permitindo a realização da dialética processual.

Por outro lado, o juiz não deve ser pressionado a tomar decisões sem que haja o devido tempo de reflexão, necessário a uma avaliação clara do caso sub judice.79

A “eficiência” antigarantista, porém, como já exposto, clama por outra abordagem do processo, baseada na “urgência” que impõe primeira-mente a prisão e depois o julgamento, representando uma antecipação de “um grave e doloroso efeito do processo (que somente poderia decorrer de uma sentença, após decorrido o tempo de reflexão que lhe é inerente)...”(LOPES JR., Aury, 2006, p. 32).

3. A EFICIÊNCIA COM A GARANTIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O processo penal possui o condão de revelar a verdadeira natureza de um Estado. Um processo fundamentado em uma constituição autoritária será necessariamente autoritário e repressivo, tendo como principal objetivo a pro-moção da “segurança” coletiva em detrimento das garantias e direitos funda-mentais do indivíduo. Por outro lado, um processo que permita ao acusado a ampla defesa, o contraditório, bem como a possibilidade usufruir dos demais direitos e garantias fundamentais, estará fundamentado em uma constituição democrática e garantista. Como afirma Aury Lopes Jr.(2006, p.02) “o processo

79 Importante frisar que o que se crítica é uma busca de celeridade sem a devida consideração às garantias e direitos fundamentais. O processo deve, na medida do possível, ser célere, uma vez que o seu retardamento injustificado também constitui abuso, tendo em vista que o réu tem direito a uma prestação jurisdicional a ser realizada dentro de uma espaço de tempo razoável.

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penal de uma nação não é senão um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da sua constituição”.

Ao longo da história vem ocorrendo uma alternação entre momentos de maior autoritarismo e, consequentemente, maior repressão por parte do Esta-do, com momentos de maior liberdade. Nesse contexto, surgiram dois sistemas processuais distintos, o sistema acusatório e outro dito inquisitório. O primeiro correspondeu aos tempos em que houve maior liberdade, enquanto que o segun-do se relaciona com períodos de maior autoritarismo e perseguição como, por exemplo, a baixa idade média e início da idade moderna, períodos estes em que a inquisição vitimou milhares de pessoas na Europa.

O sistema acusatório tem suas origens no direito grego e no direito romano do período republicano. Na Grécia antiga era o povo que acusava e julgava os delinqüentes. Já na Roma republicana, em que pese os cidadãos, assim como na Grécia, deterem a prerrogativa de acusar, o julgamento ficava a cargo de um magistrado. Aury Lopes Jr.(2009, p.59), destaca como principais características do sistema acusatório da época:

a) a atuação do juízes era passiva, no sentido de ele se mantinha afastado da iniciativa e gestão da prova, atividades a cargo das partes;

b) as atividades de acusar e julgar estão encarregadas a pessoas distintas;c) adoção do princípio ne procedat iudex ex officio, não se admitindo a

denúncia anônima nem processo sem acusador legítimo e idôneo;d) estava apenado o delito de denúncia caluniosa, como forma de punir

acusações falsas e não se podia proceder contra réu ausente (até porque as penas são corporais);

e) acusação era pro escrito e indicava as provas;f) havia contraditório e direito de defesa;g) o procedimento era oral;h) os julgamentos eram públicos, com os magistrados votando ao final sem

deliberar.Já nos tempos atuais, o sistema acusatório caracteriza-se pela:

a) clara distinção entre as atividades de acusar e julgar;b) a iniciativa probatória deve ser das partes;c) mantém-se o juiz como terceiro imparcial, alheio a labor de investigação

e passivo no que se refere à coleta da prova, tanto de imputação como de descargo;

d) tratamento igualitário das partes (igualdade de oportunidades no processo)e) o procedimento é em regra oral (ou predominantemente)f) plena publicidade de todo o procedimento (ou de sua maior parte)

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g) contraditório e possibilidade de resistência (defesa)h) ausência de uma tarifa probatória, sustentando-se a sentença pelo livre

convencimento motivado do órgão jurisdicional;i) instituição, atendendo a critérios de segurança jurídica (e social) da coisa

julgada;j) possibilidade de impugnar as decisões e o duplo grau de jurisdição.

No sistema acusatório, é dada maior relevância à atividade das partes no processo, uma vez que o julgador se mantém eqüidistante, não participando da produção probatória. É um sistema que prima pela dialética processual, na qual o acusado não é visto como mero objeto da persecução/investigação cri-minal, mas como verdadeira parte no processo e, consequentemente, sujeito de direitos e deveres.

Nesse quadro, a posição de passividade imposta ao magistrado per-mite com que este se mantenha, na medida do possível, imparcial ao resultado da demanda, decidindo com base no material probatório produzido pelas partes. Com a gestão da produção probatória inteiramente a cargo das partes, evita-se, também, o perigo do juiz que, precipitadamente, trata o acusado como culpado e, para confirmar tal hipótese, ordena a produção de provas ex officio.

A forma acusatória exige uma clara separação entre as atividades de julgar e acusar. A primeira cabe ao magistrado enquanto que a segunda é desti-nada a um órgão distinto, no caso do Brasil, o Ministério Público. Não existe, importante frisar, ordem hierárquica entre os órgãos de defesa, acusação e jul-gamento, uma vez que constitui corolário do sistema acusatório a imparcialida-de do órgão julgador, que permite às partes ampla liberdade de atuação dentro dos limites do processo, sem privilegiar uma nem outra.

Além das supramencionadas características, o sistema acusatório tem como traços marcantes a oralidade e publicidade dos procedimentos, bem como a paridade de armas entre as partes. O acusado, em geral, responderá ao processo em liberdade, tendo o direito, caso seja hipossuficiente, a um defensor público.

Tendo em vista que a forma acusatória exige participação intensa das partes, a figura do defensor é de vital importância para que o acusado possa exer-cer de forma concreta seu direito à ampla defesa e ao contraditório. Para tanto, o Estado possui o dever positivo de assegurar, de forma gratuita, àqueles que não disponham de condições financeiras para contratar um advogado, um defensor.

Destarte, percebe-se que as características do processo acusatório re-fletem valores democráticos, como a ampla participação das partes, o tratamen-to isonômico destas, bem como o respeito ao cidadão, na medida em que este é visto como sujeito do processo e não objeto de investigação.

Com a Constituição da República de 1988, o Brasil optou pelo mode-

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lo acusatório. Não é esta a forma, no entanto, que vem sendo aplicada na prá-tica. O código penal e de processo penal foram criados antes da promulgação da nova constituição e, mesmo após inúmeras reformas, continuam a se pautar por um modelo mais autoritário, possuindo fortes traços do sistema inquisitório.

Até o final do século XII, predominou na Europa o sistema acusatório. Este, porém, foi considerado insatisfatório para uma persecução penal eficiente, uma vez que, muitas vezes, a inatividade das partes atrapalhava ou impedia a con-clusão do julgamento. Destarte, chegou-se a conclusão de que “a persecução cri-minal não poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso comprometia seriamente a eficácia do combate à delinquencia.” (LOPES JR., Aury, 2009, p.63)

Sendo assim, o modelo acusatório foi, ao longo dos séculos XII ao XIV, gradualmente substituído por um novo sistema, o inquisitório. Este novo modelo foi inicialmente adotado pela igreja, porém, em decorrência de suas pretensas vantagens, acabou sendo incorporado à prática legislativa secular.

De acordo com Aury Lopes Jr. (2009, p.63),

O sistema inquisitório muda a fisionomia do processo de forma radi-cal. O que era um duelo leal e franco entre acusador e acusado, com igualdade de poderes e oportunidades, se transforma em uma disputa desigual entre o juiz-inquisidor e o acusado. O primeiro abandona sua posição de árbitro imparcial e assume a atividade de inquisidor, atuando desde o inicio também como acusador. Confundem-se as ati-vidades do juiz e acusador, e o acusado perde a condição de sujeito processual e se converte em mero objeto de investigação.

O sistema inquisitório transfere ao Estado o poder de iniciar as inves-tigações com base em mera suspeita, ou seja, de ofício, sem que anteriormente tenha havido uma representação formal contra o suspeito. O investigado não é mais parte de um processo, portanto não é mais visto como sujeito de direito, tornando-se mero objeto nas mãos do inquisidor.

Perde-se a publicidade e a oralidade do procedimento, que no novo sistema adquire caráter sigiloso e eminentemente escrito. É estabelecida uma tarifa probatória, sendo a confissão considerada a maior de todas a provas (re-gina probationum), fato este que ensejou a prática da tortura para obtenção de confissões. Instituiu-se como regra a prisão processual do investigado que fica a disposição do inquisidor.

A figura do juiz-inquisidor é toda poderosa, estando imbuído tanto do poder de julgar quanto de acusar, possuindo ampla liberdade para determinar a pro-dução probatória, selecionando e valorando as provas conforme seu bem entender.

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O acusado não possui direito ao contraditório e, consequente-mente, à ampla defesa, uma vez que os atos praticados, as provas produ-zidas, bem como a identidade das testemunhas são mantidas em completo sigilo. Não há instituição da coisa julgada, tendo em vista que a decisão do inquisidor pode ser revista a qualquer momento, sendo inexistente, ainda, a figura do defensor.

O sistema inquisitório teve sua maior expressão com o Tribunal do Santo Ofício, instituído pela Igreja católica no século XIII e que tinha como objetivo localizar e erradicar heresias. Era considerado heresia tudo aquilo que fosse ao encontro dos dogmas da Igreja, que via como uma ameaça a sua doutrina, tida como a verdade absoluta, qualquer forma de pensamento ou comportamento que não coadunasse com o discurso oficial.

Percebe-se, portanto, claramente a enorme diferença existente en-tre o sistema inquisitório e o sistema acusatório. Enquanto o primeiro prima por uma eficiência punitiva que não leva em consideração qualquer direito do acusado, baseando suas decisões, muitas vezes, em testemunhos falsos, bem como em “provas” absurdas, como por exemplo a confissão obtida me-diante tortura, o segundo vislumbra a persecução penal partindo do ponto de vista do indivíduo como parte autêntica do processo, possuindo este o direito de participar de todos os atos processuais, podendo oferecer o con-traditório das provas contra ele apresentadas.

Para Geraldo Prado (2006, p.104), o sistema inquisitório

[...] se satisfaz com o resultado obtido de qualquer modo, pois nele prevalece o objetivo de realizar o direito penal material, enquanto no processo acusatório é a defesa dos direitos fundamentais do acusado contra possibilidade de arbítrio do poder punir que define o horizonte de mencionado processo.

Portanto, o que define o processo acusatório é a possibilidade de parti-cipação das partes na construção da verdade processual, bem como o reposiciona-mento do julgador par uma postura de imparcialidade, na medida em que este deixa nas mãos das partes a produção probatória. Enquanto o juiz-inquisidor tomava uma postura pró-ativa dentro do processo, ordenando a produção de provas e acumulan-do em suas mãos a dupla função de acusar e julgar, o magistrado do modelo acu-satório assume uma postura passiva, deixando a cargo do Ministério Público ou do particular a função de acusar, e nas mãos das partes o ônus da produção probatória.

No Brasil prevalece o chamado sistema misto, tendo em vista que na fase pré-processual, investigação, predomina o princípio inquisitivo, enquanto que a fase processual é pautada pelo sistema acusatório.

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O sistema misto, no entanto, é, de acordo com Aury Lopes Jr (2009, p.71), uma farsa, tendo em vista que

[...] a prova é colhida na inquisição do inquérito, sendo trazida inte-gralmente para dentro do processo e, ao final, basta o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corrobora-da pela prova judicializada; cotejando a prova policial com a prova ju-dicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição. O pro-cesso acaba por converter-se em uma mera repetição ou encenação da primeira fase.

O processo penal brasileiro está impregnado de traços inquisitórios, fazendo com que nosso sistema seja mais inquisitivo do que acusatório. O que define um sistema não são características isoladas, portanto um sistema acu-satório pode possuir elementos do modelo inquisitório e vice versa. O fator determinante para discernir a verdadeira natureza de um sistema é o modelo de gestão da prova por ele adotado. Se o julgador possui o poder de determinar a produção de provas ex officio, então o sistema penderá para o princípio inqui-sitivo, uma vez que a imparcialidade do magistrado não pode ser garantida em face do poder que este detém de influir na produção probatória, fato este que gera confusão entre as atividades de julgar e acusar. Por outro lado, penderá para o modelo acusatório o sistema que confia a gestão probatória inteiramente nas mãos das partes, criando, assim, condições mais propícias à manutenção da imparcialidade do julgador.

O modelo processual penal brasileiro é mais inquisitivo do que acusató-rio, porquanto nosso sistema possibilita ao juiz determinar de ofício80 a produção de provas que considere necessárias, podendo, inclusive, condenar o réu ainda que tenha havido pedido de absolvição por parte do ministério público.

Ante ao que já foi exposto, percebe-se que o sistema inquisitório cor-responde a uma concepção “utilitarista”, “antigarantista” e “ repressivista” do direito e processo penal. O princípio inquisitivo parte do pressuposto de que o indivíduo é culpado, não havendo presunção de inocência, e que para manu-tenção da “paz social” o investigado pode ser submetido à violência do aparato estatal sem qualquer garantia. Portanto, tal sistema se adéqua muito bem aos movimentos de “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero”.

80 Vide art. 156, incisos I e II, do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de Outubro de 1941.

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O sistema acusatório, por outro lado, se amolda às exigências constitu-cionais de um processo penal garantista, uma vez que possibilita às partes ampla liberdade de atuação no processo, assegurando ao investigado/acusado uma série de garantias que visam protegê-lo das arbitrariedades do poder punitivo do Estado.

Não obstante o Brasil possuir a terceira maior população carcerária do mundo e um processo penal de caráter inquisitório, não houve uma diminuição da sensação geral de insegurança, nem um decréscimo significativo da crimina-lidade. Tal fato demonstra que um processo guiado pela eficiência antigarantista é, na realidade concreta, ineficiente para lidar com o problema da delinqüência. Destarte, em que pese o processo ter como uma de suas finalidades assegurar a aplicação da lei penal, ele é incapaz de resolver o problema da criminalidade. Portanto, deve-se analisar o processo penal sob uma perspectiva diferente, não como instrumento de combate ao crime, pois para isso não se presta, mas como garantia do indivíduo em face do Estado, como limite a violência do poder es-tatal. Sob essa perspectiva, o processo penal terá como um de seus principais objetivos proteger a pessoa de abusos por parte do Estado, conferindo plena efetividade, dentro da relação processual, a direitos e garantias fundamentais.

Para que o processo possa de fato servir como garantia ao indivíduo, deve ser respeitado o tempo necessário para que o julgador reflita sobre o caso e para que o acusado exercite a ampla defesa. Sendo assim, “(...) o objetivo pro-fundo de muitas regras jurídicas é atrasar a tomada de decisão, ora para permitir que se exprimam todos os pontos de vista e que as paixões se arrefeçam, ora para proteger o próprio interessado.” (AMARAL, 2012, p. 823)

No mesmo sentido, reforça Augusto Jobim do Amaral (2012, p.825) que

A velocidade no processo aqui destacada incrementará o risco nele exis-tente e dirá que a ideologia que o perpassa; quanto maior for a acelera-ção da resposta penal, mais autoritário (inquisitório) mostra-se o sistema. Atropelar o tempo tornando-o mais célere é tolher os direitos de defesa, da mesma forma que procrastiná-lo demasiadamente também representa sofrimento desnecessário como forma de punição do réu.

O processo penal, portanto, deverá cumprir uma dupla fun-ção (LOPES JR., Aury, 2006, p. 38). Ao mesmo tempo em que as-segura a aplicação da lei penal, protege o cidadão dos excessos do poder punitivo, permitindo que o acusado exerça seus direitos cons-titucionalmente previstos. Para tanto, o processo não deve sofrer uma aceleração em virtude da qual sejam prejudicados direitos e garantias fundamentais do indivíduo.

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Entre a ação delituosa e a concretização da pena, disse-se que deve ha-ver a oportunização da dialética do processo, do palco da discussão com paridade de armas para que tenha a viabilidade de decidir de forma eqüi-distante. É neste contexto que o risco, o tempo e a velocidade travam o maior confronto com o processo penal. (AMARAL, 2012, p.824)

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 optou pelo modelo acusatório de processo penal, tendo em vista que trouxe em seu bojo amplo rol de direitos e garantias direcionados, em sua maioria, à pessoa indivi-dualmente considerada. A nova ordem constitucional brasileira, instituída após o trauma da ditadura, procurou valorizar o indivíduo, superando discursos autori-tários do antigo regime, como por exemplo a política de segurança nacional, que colocava a “segurança” da coletividade acima do bem estar da pessoa.

Afirma Aury Lopes Jr. (2009, p.38) que

A democracia é um sistema político-cultural que valoriza o indivíduo frente ao Estado e que se manifesta em todas as esferas da relação Estado-indivíduo. Inegavelmente, leva a uma democratização do pro-cesso penal, refletindo essa valorização do indivíduo no fortalecimen-to do sujeito passivo do processo penal. Pode-se afirmar, com toda segurança, que o princípio que primeiro impera no processo penal é o da proteção dos inocentes (débil), ou seja, o processo penal como direito protetor dos inocentes. Esse status (inocência) adquiriu caráter constitucional e deve ser mantido até que exista uma sentença penal condenatória transitada em julgado.

Seguindo essa linha de raciocínio, o processo não será “(...) um mero meio para se atingir uma sentença condenatória, mas um pressuposto sem o qual não pode haver condenação justa, senão por intermédio da proteção dos direitos e garantias fundamentais.” (AMARAL, 2012, p. 834)

O processo eficiente, portanto, não será aquele que outorga maiores poderes ao Estado para realização da persecução penal, nem aquele mais célere, no sentido de abreviar procedimentos para possibilitar a pronta punição, mas sim aquele que mantém o equilíbrio entre o dever de punir e o dever de proteger a pessoa dos abusos do poder estatal.

Os direitos e garantias fundamentais, longe de constituírem entraves a uma persecução penal eficiente, representam antes um objetivo a ser alcançado pelo processo na aplicação da lei penal.

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4. CONCLUSÕES

Diante do exposto no presente artigo, pode-se concluir que os direitos e garantias fundamentais, ao invés de constituir empecilho a um processo penal eficiente, representam um dos próprios fins do processo. Em outras palavras, a persecução penal só será eficiente quando respeitar devidamente os direitos e garantias fundamentais.

Os discursos de “Lei e Ordem” e “Tolerância Zero” que pregam um eficientismo antigarantista e utilitarista mostraram ser uma tese “oca”, uma vez que restou comprovado que o Brasil, apesar de possuir a terceira maior popu-lação carcerária do mundo, decorrente de uma política repressivista que vai de encontro à ordem constitucional, não conseguiu diminuir a sensação geral de insegurança, nem provocar uma queda significativa nas taxas de criminalidade.

Destarte, uma vez que o termo eficiência pode ser conceituado como sendo a adequação de um meio para consecução de determinado fim, conclui--se que um processo penal arbitrário e inquisitório é ineficiente, pois é incapaz de resolver os problemas atacados pelas políticas de segurança pública, quais sejam, os altos níveis de delinqüência, bem como a sensação generalizada de insegurança.

Neste diapasão, se faz necessária uma mudança de perspectiva em relação ao processo penal, redefinindo seus objetivos, para somente então de-terminar o que é um processo eficiente. Tendo em vista que o direito penal e o processo penal não se prestam à diminuição da criminalidade, sendo, portanto, inócuo o processo que permita atingir o maior número de condenações no me-nor espaço de tempo, será eficiente o sistema processual penal que ao mesmo tempo em que assegure a aplicação da lei penal, proteja o indivíduo da violência inerente a persecução criminal. Para tanto, o processo deverá atender às exigên-cias do modelo processual acusatório, já adotado pela Constituição de 1988, porém ainda não devidamente aplicado na realidade concreta.

A busca pelo equilíbrio entre o dever do Estado punir o comportamen-to desviante, zelando pela segurança da coletividade, e o dever de proteger o indivíduo, nunca terá um fim, mas é uma tarefa que o processo deve, constante-mente, realizar. O Estado somente está legitimado a exercer o poder punitivo na medida em que zela para que esse poder não se torne arbitrário, causando mais dano do que benefício. Sendo assim, o equilíbrio entre a persecução penal esta-tal e a garantia dos direitos fundamentais do acusado não é uma possibilidade, mas um dever e uma necessidade.

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A ILEGITIMIDADE DA UTILIZAÇÃO DE ELEMENTOS SUBJETIVOS COMO CRITÉRIOS PARA A FIXAÇÃO DA PENA

The illegitimacy of the use of subjective elements as criterion for penalty fixation

tuany rayra Da SilVa naSS Acadêmica do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA.

guilhErmE oliVEira DE anDraDE

É advogado e professor de Direito Penal do Centro Universitário Curitiba. É Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2006) e Especialista em Direito Criminal pelo Centro Universitário Curitiba (2008). É Mestre em Direito Penal pelo Centro Universitário Curitiba (2009) e Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

RESUMO

O presente artigo científico tem a problemática centralizada na analise de se é legitima a utilização de critérios subjetivos como fixadores da pena base. O legislador infraconstitucional determinou no artigo 59 do Código Penal que o magistrado deve analisar a personalidade e conduta social, com o fim de fixar a pena. Buscou-se primeiramente apresentar conceitos e princípios basilares do direito penal vigente, tais como os princípios da secularização, legalidade, le-sividade, dignidade da pessoa humana, trabalhada sobre a tese de Kant descrita por Ingo Sarlet. Sendo necessário também apresentar o conceito de bem - ju-rídico, as concepções de direito penal de autor e de fato, bem como as teorias sob as quais a pena é fundamentada. Por fim, serão demonstrados os conceitos da conduta social e da personalidade do agente sobre uma visão crítica, bem como é feita analise destes pelos magistrados diariamente, e os reflexos desta determinação legislativa. Os conceitos foram encontrados através de pesquisa doutrinária, constatando-se que a analise de elementos pertinentes a vida e a pessoa do criminoso, com o fim de fixação da pena base é ilegítimo.

Palavras-chave: Código Penal, Conduta Social, Personalidade.

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ABSTRACT

The present article seeks to study whether there is legitimacy in the analy-sis of the criteria on which are based the defendant personal traits in the first phase of the penalty calculation. The infra-constitutional legislator determined, on the 59th article of the Brazilian Criminal Code, that every judge must examine the defendant’s persona-lity and his/her social conduct in order to establish the respective penalty. At the begin-ning, many concepts and basic principles were introduced, such as the secularization, legality, lesivity and dignity of the human being; the latter being a thesis worked on Immanuel Kant, once described by Ingo Sarlet. It is also indispensable to introduce the concept of protected legal property, the abstract ideas of penal law of the author and penal law of the facts, as well as the theories on which the penalty is based. Finally, the concepts of social conduct and the agent personality traits will be introduced, both under a critical view, in addition to the judges analysis proce-dure on them and the results of this legislative determination. All the concepts were developed after a doctrinal research, which led to the conclusion that the analysis regarding the defendant’s traits and lifestyle in order to calculate his/her suitable penalty is nothing but illegitimate.

Keywords: Criminal Code, Social Conduct, Agent Personality.

INTRODUÇÃO

O sistema jurídico penal brasileiro adotou o sistema trifásico para fi-xação da pena a ser aplicada ao indivíduo autor de uma conduta criminosa. No artigo 59 do Código Penal o legislador ao definir a primeira fase de aplicação da pena dentre os critérios a serem analisados inseriu a conduta social e a persona-lidade do agente, elementos estes subjetivos que dizem respeito diretamente à vida e a pessoa do criminoso. Esta determinação legislativa permite uma série de efeitos jurídicos-sociais, dentre eles discricionariedades e arbitrariedades por parte dos magistrados, colocando em segundo plano elementos essenciais do direito penal vigente, além de permitir uma condenação sem qualquer funda-mento relevante.

Para que possa ser desenvolvido o presente artigo cientifico, faz-se necessário estudar os princípios basilares do direito penal que estão diretamente ligados a determinação do legislador. Sendo eles o princípio da dignidade hu-mana, através dos argumentos levantados por Ingo Sarlet, sobre a teoria descrita por Kant, o princípio da secularização trabalhado sobre a perspectiva garantista de Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho. Além dos princípios da legalidade e da lesividade, bem como as concepções de direito penal de autor e

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de fato. Ainda para a compreensão do sistema de determinação da pena base é indispensável o estudo das principais características das teorias da pena.

Após o estudo destes conceitos basilares serão estudados a condu-ta social, a personalidade, assim como os efeitos decorrentes desta afirmação legislativa, para que seja possível a analise de se é legitima a utilização de ele-mentos subjetivos como critérios para a fixação da pena base.

1. O SISTEMA DE DETERMINAÇÃO DA PENA

Primeiramente faz se necessário descrever o sistema de aplicação da pena, atualmente vigente no ordenamento jurídico para que posteriormente possa ser feita a analise da legitimidade da determinação do artigo 59 do Có-digo Penal. O legislador brasileiro escolheu adotar o sistema trifásico para a determinação da pena. Em decorrência da escolha legislativa para a fixação do quantum final são analisadas circunstâncias distintas e implícitas a cada um dos momentos, estando este sistema exemplificado no artigo 68 do Código Penal.

Na primeira fase é fixada a pena base e são analisados critérios gené-ricos descritos no artigo 59. Os critérios apontados pelo art. 59 são os seguintes: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, às circunstâncias e consequências do crime e o comportamento da vítima. Após isto, são apuradas as causas agravantes e atenuantes genéricas, previstas do artigo 61 ao 66 do Código Penal. E por fim, na terceira fase as causas de aumento e diminuição da pena.

Dentre os elementos expressos no artigo 59 do Código Penal, para a determinação da dosimetria da pena base, nota-se a existência de dois elementos subjetivos que dizem respeito à vida do sujeito. Sendo estes a conduta social e a per-sonalidade do agente, trazendo assim, ao ordenamento contradições e antinomias.

Para analisar a legitimidade de tal utilização visto que ela da margem a arbitrariedade e discricionariedade do magistrado é necessário realizar uma analise do sistema penal vigente.

2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS RELATIVOS À FIXAÇÃO DA PENA E CON-CEPÇÃO DE DIREITO PENAL DE ATO E AUTOR

O ordenamento jurídico como um sistema complexo, além de ser for-mado por leis ou atos normativos, é formado por princípios que permeiam o ordenamento como um todo.

Um dos principais princípios do ordenamento jurídico esta descrito no artigo 1º da Constituição da Republica é o principio da dignidade da pessoa humana. Tendo, este princípio origem na antiguidade clássica, sendo definido

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como um valor intrínseco a pessoa humana e levado até o pensamento jucaico--cristão. Na antiguidade clássica era chamado de “dignitas” e atribuída aos in-divíduos conforme o status social.

Este conceito foi sendo alterado em decorrência dos períodos histó-ricos subsequentes, existindo obras especificas que marcaram cada período. Tendo na Idade Média se destacado Tomás de Aquino, e na época renascen-tista Giovanni Pico Della Mirandola. Nos séculos XVII e XVIII, os conceitos de dignidade humana ligados as teorias de Hugo Grócio e Thomas Hobbes, destacaram-se.

Mas o princípio da dignidade sofreu realmente uma ruptura ao mode-lo anterior com a teoria de Samuel Pufendort, que o definiu como uma liberdade inerente ao homem, no sentido de ser este capaz coordenar suas ações conforme sua razão (SARLET, 2010, p. 35). Contudo embora tenha a teoria de Pufendort, quebrado com o modelo anterior, a teoria com o maior destaque é a escrita por Immanuel Kant. Não tendo deixado esta de receber criticas, vez que segundo Salet, Schopenhauer, afirma que a teoria de Kant, tem fundamentos insuficien-tes para que a problemática seja sustentada (SARLET, 2010, p. 42).

Kant construiu sua teoria através de termos éticos sendo os principais, a autodeterminação e a não instrumentalização do homem. Segundo Ingo Sar-let, a racionalidade humana é algo implícito ao homem, e indispensável aos ter-mos da autodeterminação e não instrumentalização humana, por proporcionar a este uma condição diferenciada no mundo.

Ao destacar a teoria de Kant, é necessário segundo Sarlet, considerar o homem como alguém dotado de liberdade, que em conjunto com a raciona-lidade humana, resulta no que Kant chamava de autonomia da vontade. Con-sistindo esta em o indivíduo poder coordenar suas próprias ações nos limites legais, e traduzindo-se em uma capacidade de se autodeterminar. A autonomia da vontade encontra seus limites definidos na lei e no próprio conceito de dig-nidade (SARLET, 2010, p. 37).

Seguindo a teoria escrita por Kant, o homem é um fim em si mesmo, não sendo aceito, portanto, que este seja utilizado como meio para qualquer fim. E esta condição lhe é garantida pelo fato de possuir racionalidade, vez que ape-nas os irracionais podem ser considerados como meios para a realização de fins. Assim, considerar seres racionais como meios remete a uma instrumentalização e coisificação destes. Todavia, segundo Sarlet para Kant, os interesses egoístas jamais poderão instrumentalizar o homem, porém, jamais afirmou o autor que a própria sorte deste não possa fazê-lo (SARLET, 2010, p. 43).

O princípio da secularização por sua vez, é um princípio que coordena todo o sistema, e no direito penal tem uma função especial que será demonstra-da na sequência. Segundo Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho é

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discutido na doutrina se este princípio foi recepcionado pela carta constitucio-nal de 1988 ou se a ela está implícito. Acreditam os autores que este está im-plícito a todas as constituições de estado democráticos de direito, sendo vários outros princípios decorrentes deste (CARVALHO; CARVALHO, 2008. p. 15).

Resta buscar o significado do termo secularização, que segundos os autores é:

utilizado para definir os processos pelos quais a sociedade, a partir do século XV, produziu uma cisão entre a cultura eclesiástica e as dou-trinas filosóficas (laicização), mais especificamente entre a moral do clero e o modo de produção das ciências (CARVALHO;CARVALHO, 2008, p. 5).

Nesse sentido fica demonstrado que o termo secularização remete a mudanças nas estruturas sociais, que resultaram na separação entre os ideais religiosos e as designações das ciências.

A primeira obra produzida sob os ideias da secularização é nomeada de “Docta Ignorantia” e foi escrita por Nicolau de Cusa, durante a primeira metade do século XV, mais precisamente em 1440(CARVALHO;CARVALHO, 2008, p. 5).

O processo de secularização foi influenciado diretamente pela altera-ção da visão e analise dos fenômenos mundanos, que eram de suma importância à época. Inicialmente todos os fenômenos mundanos eram analisados sobre o viés religioso, ou seja, as respostas para todos os problemas eram buscadas atra-vés das explicações da igreja. No entanto, em decorrência do desenvolvimento das ciências no século XVI, que estavam estagnadas durante todo o período da idade média passou a buscar explicações, através das ciências, dando origem ao pensamento antropocêntrico (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 06).

Além das mudanças sócias decorrentes da secularização estatal, o sis-tema penal, foi significativamente alterado, vez que até esse momento a ideia de crime estava diretamente ligada à ideia de pecado caracterizando o caráter híbrido, “delito-pecado”. A secularização provocou também alterações na for-ma de aplicação da pena, pois, até então era aplicada com o intuito de punir a pessoa do criminoso, por representar esta um risco social, fazendo com que a punição passe a ser dirigida a conduta criminosa que lese um bem jurídico. (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 8 e 9).

A ruptura entre estado e religião ocorreu lentamente e foi influencia-da diretamente pelas teorias contratualistas, principalmente a escrita por John Locke, que traz uma explicação direta quanto à forma de aplicação da pena. Antes do contrato social, todos os indivíduos viviam livremente, entretanto a

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insegurança e o caos social não permitiam que eles fizessem uso desta liber-dade. Assim, segundo Locke seria necessário que cada um abdicasse a parcela de sua liberdade, em nome de um ente fictício, sendo este o Estado, que seria o responsável pela vida em harmonia dos indivíduos. Após a celebração deste contrato, os homens ainda seriam livres, entretanto, suas condutas poderiam se tornar ilícitas se lesassem a esfera de liberdade de um terceiro.

A mudança na aplicação da pena esta legitimada à medida que se passou a punir as condutas que violam a esfera de liberdade alheia, fato este que contribuiu para a exclusão de todos os conceitos morais do direito penal (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 10).

Com o fim de apresentar os demais princípios constitucionais, faz se necessário a demonstração do conceito e as funções do bem jurídico. O concei-to de bem jurídico é trabalhado por vários autores, sendo que alguns apresentam semelhanças e outros são contrários. Zaffaroni e Pierangeli trabalham com um conceito semelhante ao de Assis Toledo.

Assis Toledo define bem jurídico como “valores éticos-sociais que o di-reito seleciona, com o objetivo de assegurar a paz social, e coloca sob sua proteção para que não sejam expostos a perigo de ataque ou a lesões efetivas” (TOLEDO, 1986, p. 16). Enquanto que Zaffaroni e Pierangeli definem bem jurídico como:

a relação de disponibilidade de uma pessoa com um objeto, protegida pelo Estado, que revela seu interesse mediante normas que proíbem determinadas condutas que as afetam, aquelas que são expressadas com a tipificação dessas condutas (ZAFFARONI, apud, PRADO, 2003, p. 50).

Como visto, é possível identificar semelhanças nestes conceitos à me-dida que os autores afirmam que o bem jurídico decorre da vontade do estado, em proteger do risco de lesão objetos que a ele interessarem. Entretanto, exis-tem ainda, os que acreditam que o bem jurídico decorre da vontade da vida e não do Estado, pois, embora sejam protegidos pelo direito são criados através dos interesses do homem (LISZT, 1999. p. 93).

Segundo Luiz Regis Prado, tem o bem - jurídico quatro funções prin-cipais no ordenamento jurídico. A primeira função consiste em limitar o poder punitivo estatal, e é dirigida diretamente a pessoa do legislador, ocorrendo no momento em que é criada a lei. Consiste no dever deste de criminalizar apenas as condutas que causem lesão a um bem importante a coletividade. A segunda função é nomeada de teleológica ou interpretativa, determinando ser o bem jurí-dico um requisito essencial a interpretação do tipo penal, assim, o bem jurídico, ocupa o núcleo da norma, sendo um elemento essencial desta.

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A função individualizadora, é a terceira função, e consiste em ser o bem jurídico um medidor utilizado para a fixação da pena, afirmando-se à medida que esta é fixada considerando quanto à ação criminosa lesou o bem jurídico. E por fim, a última função do bem jurídico tratada por Regis Prado é a função sistemá-tica, demonstrada, através da divisão dos tipos em grupo, constituindo assim, o ponto central dos diferentes tipos penais (PRADO, 2003, p. 6

Após apresentação do conceito de bem jurídico pode se seguir com os princípios da legalidade e lesividade.

O princípio da legalidade, no ordenamento brasileiro foi positivado na Constituição Política do Império de 1824, em seguida pelo Código Criminal de 1830, e nos códigos penais de 1890 e 1940 (PRADO, 2010, p. 14 Atualmen-te está previsto no artigo 5º, XXXIX da Constituição da República, e também no artigo 1º do Código Penal, sendo um princípio que limita o poder punitivo estatal.

Ficou este principio consagrado pelo termo “nullum crimen, nulla po-ena sine lege” (BITENCOURT, 2010, p. 40), cuja autoria foi atribuída a Feuer-bach, mas segundo Nilo Batista, esta frase jamais foi encontrada nas obras dele, afirmando que:

das obras de Feuerbach não consta a fórmula ampla “nullum crimen, nulla poena sine lege”; nelas se encontra, sim, uma articulação das fórmulas “ nulla poena sine lege”, “ nullum crimen sine poena le-gali” e “ nulla poena (legalis) sine crimine(BATISTA, 2007, p.66).

O princípio da legalidade é de suma importância para o direito por garantir segurança jurídica ao ordenamento e aos indivíduos (BATISTA, 2007, p. 67). Através do princípio da legalidade, fica estabelecido que só existe crime se houver uma lei, que tipifique tal conduta, e ainda, só poderá à essa conduta ser aplicada a pena, se houver lei anterior que a defina.

O termo que representa o princípio da legalidade foi desenvolvido tendo como base a teoria da prevenção geral negativa da pena, e segundo Nilo Batista, possui quatro funções principais.

A primeira função é determinada pelo termo “nullum crimen nulla poena sine lege praevia” significa que não há crime sem que haja uma lei que determine a pena para ele, e serve para evitar que seja criada uma lei posterior a ocorrência do crime que a ele seria aplicado (BATISTA, 2007, p. 68). A se-gunda é representada pelo termo “nullum crimen nula poena sine lege scripta”, significa dizer que mesmo que a fonte derive dos costumes, os tipos penais e as penas a eles cominadas só podem ser instituídas no ordenamento após serem respeitados todos os procedimentos legislativos (BATISTA, 2007, p. 70).

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As duas últimas funções são descritas pelos termos em latim “nullum crimen nulla poena sine lege stricta” e “nullum crimen nulla poena sine lege certa”. Aquele determina que a analogia não pode imputar ao indivíduo um cri-me, uma pena ou nem mesmo um aumento de pena, no entanto, no caso da pena se analogia ajudar beneficiar o réu sua aplicação é permitida. Enquanto que está estabelece que em respeito ao princípio da legalidade incriminações vagas são proibidas, e esta função é aplicada primeiramente no momento de criação da lei, significando que os tipos penais devem ser denotativos, ou seja, qualquer ocul-tação do núcleo do tipo ou ainda, tipificações abertas e exemplificativas, podem acarretar na violação deste princípio (BATISTA, 2007, p. 82 e 83).

O princípio da lesividade por sua vez, também é de suma importância ao ordenamento jurídico, por influenciar diretamente na tipificação do crime, tendo o autor Nilo Batista também reservado quatro funções principais a ele.

Consiste a primeira função em proibir a incriminação de uma atitu-de interna do indivíduo, e esta proibição se dá através da impossibilidade do Estado em punir desejos internos do sujeito, assim, estes nunca poderão ser tipificadas. Isso decorre do fato dos desejos internos não causarem lesão a bens jurídicos. A segunda função é caracterizada pela proibição de incrimi-nação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor. Significa que desde que não tenha sido iniciada a execução do crime, atos preparató-rios de conluio ou planejamento nunca poderão ser penalmente sancionados (BATISTA, 2007, p. 92).

A terceira função também consiste em uma proibição que é a de punir simples estados ou condições existentes, ou seja, jamais poderá o direito penal punir condições pessoais e psíquicas do sujeito, por isso remeter a uma concep-ção de direito penal de autor (BATISTA, 2007, p. 93). A última função atribu-ída consiste em proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. Ou seja, mesmo que a ação praticada não condiga com os padrões sociais esta não poderá ser considerada crime se não lesar bens jurí-dicos. Ainda, segundo Nilo Batista, a própria tipificação do crime estabelecerá o bem jurídico que por ele será defendido, demonstrando a intenção do legislador (BATISTA, 2007, p. 97).

A terceira função do princípio da lesividade remete diretamente a concepção de direito penal de autor, assim, com o fim de obter uma compreen-são geral da legitimidade fez-se necessário o estudo das concepções de direito penal de autor e de fato.

A concepção de direito penal de fato é adotada no direito penal atual, é trabalhada direitamente através na conduta criminosa, no sentido de se punir exclusivamente a conduta, em decorrência desta ter ameaçado ou lesionado um bem jurídico. Nesta concepção as características pessoais do indivíduo são ig-

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noradas e consideradas totalmente afastadas da conduta criminosa.A aplicação da concepção de direito penal de fato decorre da ideia

de culpabilidade, principalmente a culpabilidade de ato, que consiste como já declarado em punir o homem a medida em que pode se autodeterminar no caso concreto, ou seja, na medida em ele poderia evitar a prática da conduta e não o fez. Dentre uma das principais consequências da adoção da concepção de di-reito penal de autor foi à criação do conceito analítico de crime (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2008, p. 107).

A concepção de direito penal de autor por sua vez, é fundada na peri-culosidade do indivíduo e nega a capacidade de autodeterminação deste, assim, a punição decorre da pessoa do criminoso, da personalidade deste, por ser a personalidade voltada ao cometimento de crimes.

Como visto, a punição é fixada na personalidade, na forma de ser dos indivíduos, pois, o crime é apenas uma consequência desta, trazendo claramen-te a ideia de periculosidade. Nesse modelo de sistema penal, o sujeito é punido basicamente pela ideia de periculosidade social, ou seja, pelo risco que o indi-víduo representa para todos os outros que vivem no meio social, decorrente do contrato social celebrado entre eles.

Embora não haja como falar em direito de autor, sem tratar a peri-culosidade esta concepção comporta também segundo Zaffaroni e Pirangeli, a culpabilidade de autor. Na culpabilidade de autor analisa-se o grau de reprova-bilidade que recaí sobre o autor do crime, sobre a personalidade deste, ficando o delito em segundo plano. Ao imputar a culpabilidade sobre a pessoa do sujeito cometidor de crimes, pune-se a vida inteira do sujeito, o modo como este a con-duziu, como fato determinante ao cometimento do crime. Esta determinação recebe o nome de culpabilidade por conduta de vida, termo este Aristotélico (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2008, p. 253).

Na concepção Aristotélica o homem era livre iniciante, mas em algum momento de sua vida optou pelo caminho do vício, pela caminho do erro, e ao optar por esse caminho, abriu mão de sua liberdade para ser virtuoso, sendo re-provável sua conduta por ter escolhido o caminho do vício. Traz ainda, o autor o exemplo de Aristóteles, afirmando que esta conduta é semelhante a de alguém que lança uma pedra e não é capaz de detê-la (PIERANGELI; ZAFFARONI 2008, p. 254).

Sobre esse posicionamento é possível concluir que o homem ao optar pela prática de atos contrários à norma, perde sua capacidade de autodetermi-nação, tornando-se alguém mal, merecedor da punição, em decorrência de sua escolha pelo caminho errado. A teoria escrita por Aristóteles tem como base conceitos puramente filosóficos, não utilizando-se de nenhum conceito jurídico. Isso decorre da época histórica em que viveu Aristóteles, por essa ser muito

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anterior consolidação do direito. A concepção de direito de autor também comporta tipo penais pró-

prios, diversos dos utilizados no direito penal de fato. O tipo de autor tipifica personalidades, formas de ser e não condutas como no direito de ato. Se esta concepção fosse vigente no ordenamento os tipos seriam ser homicida, ser la-drão, ser estelionatário e não homicídio, furto, roubo ou estelionato. Esta forma de tipificar desrespeita direitos fundamentais dos indivíduos e não podem de forma alguma ser aceita no direito positivo brasileiro (PIERANGELI; ZAFFA-RONI, p. 388).

3. CULPABILIDADE E PERICULOSIDADE

Como demonstrado no capítulo anterior os conceitos de culpabilidade e periculosidade estão diretamente ligados ás concepções de direito penal e autor e de ato, além de estarem relacionados também com o princípio da legali-dade e lesividade, assim, faz-se necessário a apresentação destes.

Inicialmente será explicado o conceito de culpabilidade através dos conceitos de Juarez Cirino dos Santos, Assis Toledo, Pierangeli e Zaffaroni. A culpabilidade é um elemento essencial à aplicação da pena e por um longo pe-ríodo de tempo discutiu-se o conceito desta, tendo passado por três momentos principais que refletem em três conceitos, sendo estes, o psicológico, psicoló-gico normativo, e por fim o conceito exclusivamente normativo no século XX (SANTOS, 2007, p. 276). Atualmente discute-se, se este elemento está implíci-to a conduta do indivíduo ou na mente do magistrado (TOLEDO, 2005, p. 217).

A primeira teoria que surgiu para conceituar a culpabilidade foi à teoria psicológica, assim, denominada pela presença de espécies subjetivas, o que remete a uma relação psicológica entre sujeito e conduta criminosa. As espécies subjetivas segundo Assis Toledo consistem na vontade de praticar o fato criminoso, e na previsibilidade em cometê-lo. A primeira característica, sendo esta a vontade se traduz através do dolo, já a previsibilidade traduz-se na culpa. Para a caracterização da culpabilidade era essencial à presença de um pressuposto que é a imputabilidade, consistindo na capacidade do indiví-duo em ser culpável.

Através dos elementos subjetivos esta teoria envolve diretamente uma relação psicológica entre sujeito e ato criminoso, dando origem há alguns pro-blemas. Segundo Zaffaroni e Pierangeli estando à culpabilidade diretamente relacionada a uma relação psicológica entre sujeito e fato criminoso, em situa-ções em que esta relação não pode ser constatada seria a culpabilidade afastada, mesmo havendo dolo ou culpa. E isso aconteceria como por exemplo, nos ca-sos da culpa inconsciente. Além disso, Zaffaroni e Pierangeli, afirmam que uma

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vez formada esta teoria apenas sobre conceitos psicológicos, faz com que ele adquirisse um posicionamento puramente sociológico e filosófico, o que remete a uma não observância na capacidade de autodeterminação do indivíduo.

Como nas situações como a da culpa inconsciente onde não existe uma relação psíquica entre sujeito e conduta criminosa, a culpabilidade afastada ou negada, Reinhartdt Frank visando suprir essa falha, no início do século XX, mas precisamente no ano 1907, acrescentou na teoria psicológica um elemento normativo, dando origem ao conceito psicológico - normativo de culpabilida-de. No conceito normativo - psicológico construído por Frank foi acrescido a reprovabilidade, que somada ao dolo ou a culpa torna a culpabilidade um juízo de valor que recaí sobre a situação de fato, que ordinariamente era puramente psicológica, podendo os elementos subjetivos ser encontrados no agente e a reprovabilidade na mente do magistrado julgador (TOLEDO, 2005, p. 224).

Posteriormente, sofreu modificações realizadas por Mezger e Goldchimidt, aproximando-se dos conceitos atuais. Após as modificações de Mezger o conceito passou a ter os seguintes contornos, os elementos básicos da culpabilidade são a reprovação que recaí sobre a conduta, o dolo e a culpa stricto sensu, além da exigibilidade da conduta conforme a norma. A exigi-bilidade é analisada na medida em que o sujeito poderia ter agido nos limites da norma e não fez, ou seja, exigibilidade a medida em que o sujeito é capaz de se autodeterminar. Recaindo então, a reprovação ou a censura ao sujeito que era capaz de ser autodeterminar, e ainda tinha plena consciência do fato criminoso, mas o realizou. Neste modelo dolo e culpa ocupam o mesmo nível assim, a reprovação recai de igual modo para os dois elementos subjetivos (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2006, p. 52

Analisando o conceito psicológico – normativo, Hans Welzel, segundo Assis Toledo, constatou que os elementos subjetivos, dolo e culpa, não poderiam constituir elementos da culpabilidade, por serem motivos que levaram o indiví-duo a cometer o fato criminoso, constituindo estes elementos para Welzel parte do tipo e não da culpabilidade. Justificando assim, a retirada destes elementos da culpabilidade para constituírem elementos do tipo (TOLEDO, 2005, p. 225).

Quando os elementos culpa e dolo, deixam de integrar a culpabili-dade, esta passa a ser puramente normativa segundo Zaffaroni e Pierangeli, dando origem ao conceito normativo de culpabilidade. Além disso, passou a ser formada por dois nucleostemáticos, a possibilidade de autodeterminação do indivíduo e o potencial conhecimento da ilicitude.

Cumpre também salientar, que a culpabilidade apresenta-se como um conceito gradual, fazendo com que a reprovabilidade possa ser apresentada em graus (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2008, p. 520), sendo necessário para con-cluir o posicionamento defendido por Zaffaroni e Pierangeli, saber que, a auto-

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determinação e o conhecimento da antijuridicidade são dois núcleos temáticos da culpabilidade, portanto, se esses ou apenas um desses não existir ainda que minimamente a culpabilidade não poderá ser caracterizada.

Sobre o conceito finalista Juarez Cirino dos Santos, descreve novos elementos afirmando que a teoria escrita por Welzel trouxe uma alteração signi-ficativa não apenas para o conceito de culpabilidade e sim também para o dolo, além de que a exclusão dos elementos subjetivos do conceito de culpabilidade faz com que a culpa torne-se puramente um juízo de valor. Segundo Cirino dos Santos a culpabilidade no conceito de Welzel esta estruturada sobre “a ca-pacidade de culpabilidade; conhecimento real ou possível do injusto; exigibili-dade de comportamento conforme a norma” (ROXIN, apud, SANTOS, 2007, p. 280). Nesse sentido recairia a culpabilidade sobre o sujeito imputável, que mesmo possuindo consciência da antijurídica e em condições normais optou pela prática do crime.

Atualmente o conceito de culpabilidade segue o modelo normativo, não é um conceito acabado. Cirino dos Santos define a culpabilidade como juízo de reprovação que recaí sobre a prática injustificada do tipo penal. Po-dendo esta ser excluída se no caso concreto, se o sujeito não possuía condições mentais mínimas de saber o que estava fazendo, sendo a capacidade traduzida através da consciência da antijuricidade, a exigibilidade da conduta diversa, demonstrada através de circunstâncias que demonstrem que o autor poderia agir de forma diversa (SANTOS, 2007, p. 276).

Como demonstrado anteriormente no presente artigo existem duas concepções diversas de direito penal, a de direito penal de fato e de autor, e es-tas concepções trazem modificações no conceito de culpabilidade dividindo-se em culpabilidade de autor e de fato.

Atualmente em decorrência da adoção do direito penal de fato, a con-cepção de culpabilidade adota é a de culpabilidade de fato, sendo esta definida segundo Zaffaroni e Pierangeli, como a reprovação que irá incidir sobre a con-duta do indivíduo, em razão de ser este um ser racional dotado de autodeter-minação, mas que no entanto, optou pela realização do crime (PIERANGELI; ZAFFARONI, p. 523). Assis Toledo, afirma que sobre a conduta que gerou a incidência do juízo de reprovação, ou seja, da culpabilidade, está o fundamento “poder-de-agir-de-outro-modo”, sendo o centro da problemática ocupado pela conduta criminosa (TOLEDO, 2005, p. 235).

Como citado a culpabilidade de fato ocupa o centro do ordenamento em razão da secularização estatal (TOLEDO, 2005, p. 236), mas nem sempre foi assim, por séculos à pessoa do criminoso ocupou o centro do direito penal e era vigente a culpabilidade de autor.

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Zaffaroni e Pierangeli, com o fim de explicar a culpabilidade de autor, utilizam o conceito de culpabilidade por conduta de vida escrita por Aristóteles, Assis Toledo, por sua vez amplia o tema, afirmando existir a culpabilidade de ca-ráter, culpabilidade pela descisão de vida, culpabilidade na formação da persona-lidade e culpabilidade da pessoa (TOLEDO, 2005, p. 238). Assim como Zaffaroni e Pierangeli, Assis Toledo usa o conceito de culpabilidade por conduta de vida, no entanto, não usa o conceito construído por Aristóteles e sim o de Mezger.

Segundo Assis Toledo, Mezger afirma que o indivíduo constrói sua personalidade de uma forma reprovável, resultando na perda a seu entendimen-to acerca do certo e do errado, em termos jurídicos do que é licitou ou ilícito.

Já a segunda e a terceira teoria da culpabilidade de autor para Assis Tole-do, são a por decisão e a culpabilidade de caráter. A por decisão de vida foi criada por Bockelmann, e ocorre em momento anterior a conduta criminosa, neste modelo o juízo de reprovabilidade recaí ao indivíduo pelo fato deste ser livre, e ter optado por ser mal, enquanto poderia ter sido bom (TOLEDO, 2005, p. 240). Já a cul-pabilidade de caráter, foi construída por Aristóteles e nesse modelo o homem cria seu caráter pelas escolhas que toma durante a vida. Sendo possível reconsidera-las, recaindo assim, a culpabilidade sobre a decisão de ser mal ou de agir em desacordo as normas que resultou na conduta criminosa (TOLEDO, 2005, p. 238).

Por fim a quarta concepção de culpabilidade, pode ocorrer na formação da personalidade do indivíduo ou na culpabilidade da pessoa, constituindo na perspecti-va de Francisco Assis Toledo, em uma omissão que resultou no não desenvolvimento por parte do indivíduo de suas potencialidades, o levando a prática do crime.

Com o estudo das teorias do conceito de culpabilidade e a culpabilida-de de fato e de autor, pode-se passar ao estudo da periculosidade. O conceito de periculosidade varia de um autor para outro. Cezar Roberto Bitencourt dispõe ser esta “um estado subjetivo mais ou menos duradouro de antissociabilidade” sendo também um juízo de reprovabilidade (BITENCOURT, 2010, p. 782). Já segundo Cernicchiaro, é a periculosidade:

potencialidade(probabilidade, não mera possibilidade) demonstra-da pelo homem para a prática de condutas proibidas pela sociedade. A constatação de periculosidade envolve matéria de complexidade de fatores, que em divisão ampla, são agrupados em duas catego-rias, e por sua vez, ensejam subdivisão. Os fatores subjetivos di-zem respeito á pessoa do agente, enquanto os objetivos são externos que influem na conduta dos indivíduos, entre os quais, ressaltam os sociológicos(CERNICCHIARO, 1974, p. 376).

De acordo com este conceito, está o homem predestinado a realização da conduta criminosa, derivando a predestinação de sua personalidade, resul-tando na realização de práticas anti-sociais.

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O modelo de periculosidade era adotado para a fixação da pena, con-tudo, em decorrência da secularização estatal e a mudança na forma de pensar humana, a periculosidade foi afastada do sistema da pena, sendo substituída pela culpabilidade, tendo sido transferida ao sistema de aplicação da medida de se-gurança. Segundo Luiz Regis Prado é um pressuposto a aplicação da medida de segurança, e anterior ao cometimento do crime. Todavia, poderá receber no-menclaturas distintas de acordo com o momento de sua constatação, podendo ser pré-delitiva e pós-delitiva. Para fins de aplicação de medida de segurança é necessário que esta seja demonstrada, com base neste argumento foi à periculo-sidade pré-delitiva excluída do ordenamento (PRADO, 2010, p. 646).

Já Jorge Figueiredo Dias, afirma que a periculosidade também pode ser chamada de perigosidade, decorrendo de situações específicas, que envol-vem a personalidade do agente. Devendo ser aplicada em uma concepção de prevenção especial, ou seja, buscando a neutralização ou a ressocialização do indivíduo para que não volte a delinquir (DIAS, 1999, p. 144 e 145).

Haja vista os conceitos e informações apontadas pelos autores sobre periculosidade fica demonstrada a incompatibilidade desta com o sistema de aplicação da pena, vez que é analisada como critério de aplicação da medida de segurança, por ser a periculosidade atribuída indivíduos inimputáveis ou semi--imputáveis. Fazendo com que se constate que a periculosidade decorre da falta de discernimento ou do discernimento reduzido dos indivíduos, enquanto que, para a aplicação da pena é necessário que o indivíduo seja imputável, recaindo a sobre a conduta dele o juízo de culpabilidade.

Além disso, a aplicação dos conceitos de culpabilidade e periculo-sidade como visto decorrem do modelo de direito penal a ser adotado, direito penal de autor e direito penal de ato, e esta aplicação influência diretamente também nas teorias da pena.

As teorias da pena são divididas em teorias absolutas ou retribucio-nistas, tendo sido escritas por Kant e Hegel, considerando a pena como algo fim em si mesmo, baseada na culpabilidade do indivíduo. As teorias relativas ou prevencionistas, por sua vez são dividas em prevenção geral, positiva e negati-va, sendo dirigidas as população como um todo. E prevenção especial, voltadas aos sujeitos que já delinquirem a norma, com o fim de não voltarem a pratica de crimes. Também divididas em prevenção especial negativa e positiva, visando à periculosidade do indivíduo. E por fim, teorias ecléticas ou mista que aprovei-tam aspectos das teorias absolutas e das relativas.

Nas situações de fato aplica-se a culpabilidade, e pelo fato de não ser este um conceito acabado, sua aplicação poderá variar de acordo com o caso concreto, bem como com as circunstâncias de fato e o grau de autodetermina-ção que envolviam o agente autor da conduta criminosa no momento do crime.

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Segundo este raciocínio sustenta Zaffaroni e Pierangeli, que a culpabilidade de-riva do termo alemão “Schuld”, tendo este um sentido dúplice de culpabilidade e dívida. Portanto, sendo as teorias retribucionistas fundadas na culpabilidade seriam estas pautadas na ideia de pagamento.

É importante neste raciocínio analisar se o indivíduo poderia exercer a conduta sem oposição a sua liberdade, vez que o exercício da ação sem algo que possa obstá-la, representa a ideia do sujeito poder se autodeterminar no caso concreto, consistindo no poder de optar pelo certo ou o errado. Também segundo Zaffaroni e Pierangeli, a autodeterminação é essencial para que se reconheça a condição humana do sujeito (PIERANGELI; ZAFFARONI, 2008, p.104).

Todavia, quando considera-se o sujeito um incapaz de optar por suas escolhas, ou seja, de agir livremente, para considerá-lo alguém que age motiva-do por causas, a culpabilidade é excluída e substituída pela periculosidade, que consiste, na determinação que o sujeito portava no momento do cometimento do crime, alterando-se assim, a forma de ver e aplicar o direito. Sendo este, nesta concepção o direito é um direito de periculosidade.

Sobre o determinismo, que envolve o conceito de periculosidade, dis-põe Zaffaroni e Pierangeli que:

o determinismo é uma degradação da imagem humana que, embora sendo um ente submetido a condicionamentos históricos de índole muito diversa, nunca perde totalmente a sua capacidade de escolha, sua autonomia moral e, portanto, sua responsabilidade (PIERANGE-LI; ZAFFARONI, 2008, p.104).

Com base no afirmado por Zaffaroni e Pierangeli, concluí-se que o determinismo é prejudicial para a própria imagem do homem, que sofreu modi-ficações históricas, mas não faz com que o homem renuncie ou perca toda sua racionalidade e por consequência a capacidade de escolher, fato que faz com que sua responsabilidade não seja excluída. No entanto, se for negado à capa-cidade ou for provado que no caso concreto o homem não possuía escolha, sua responsabilização poderá ser excluída.

Para concluir seria segundo Zaffaroni e Pierangeli o direito penal de culpabilidade fundado na ideia do homem ser capaz de coordenar suas esco-lhas. Sendo esta capacidade a autorização para que todas as ações do indivíduo que estejam em desacordo com o direito, recaía um juízo de reprovabilidade. E ainda que, embora não seja apropriado a pena ter função direta de retribuir a culpabilidade, esta é o limite de imposição daquela. Já a periculosidade seria fundada na ideia do homem estar determinado, sendo possível a constatação do grau de determinação deste. Tendo a pena função diretamente de prevenção es-

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pecial, ou seja, ressocializar o indivíduo e neutralizar a sua periculosidade. Sen-do o limite da pena o grau de periculosidade do indivíduo perante a sociedade.

4. A CONDUTA SOCIAL, A PERSONALIDADE DO AGENTE E OS EFEITOS DE SUA APLICAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO

Anteriormente ao estudo dos reflexos provocados pela determinação legislativa ao incluir a conduta social e a personalidade como elementos a se-rem analisados com o fim de fixação da pena base é necessário estudá-los indi-vidualmente. Assim, faz-se necessário primeiramente demonstrar o conceito de conduta social.

Os conceitos escolhidos foram o de Paulo José Costa Junior e Rogério Greco. Paulo José Costa Junior define a conduta social como:

o papel que o acusado teve, em sua vida pregressa, na comunida-de em que houver integrado. Se foi um homem voltado ao trabalho, probo, caridoso, ou se ao revés transcorreu os seus dias ociosamente, ou exercendo atividades parasitárias ou anti-sociais. Será igualmente considerado o comportamento do agente no seio da família, o modo pelo qual desempenhou-se como pai e como marido ou companheiro. Será igualmente considerada sua conduta no ambiente de trabalho, de lazer ou escolar. Se se mostrava o agente sociável, cordial, educado, prestativo, ou introvertido, ríspido, egocêntrico, egoísta, agressivo para com seus colegas de trabalho, ou de escola, ou para com seus companheiros de clube (COSTA JUNIOR, 2011, p. 27

E Rogério Greco:

por conduta social quer a lei traduzir o comportamento do agente perante a sociedade. Verifica-se o seu relacionamento com seus pa-rentes, procura-se descobrir seu temperamento, se calmo ou agres-sivo, se possuí algum vício, a exemplo de jogos ou bebidas, enfim, tenta-se saber como é seu comportamento social, que poderá ou não ter influenciado no cometimento da infração penal (GRECO, 2008, p. 564 e 565).

Através destes conceitos, resta demonstrado que apesar de utilizarem os autores termos diversos, ambos ao conceituarem a conduta social, remetem a práticas relacionadas e específicas da vida diária do autor fato punível, assim, como padrões comportamentais e conceitos puramente morais.

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A conduta social passou a ser um elemento autônomo com a Lei 7.204, que no ano de 1984 reformou a parte geral do Código Penal, vez que até esta data era analisada junto aos antecedentes. A diferença entre estes termos esta concretizada no fato deste, consistir na prática pelo indivíduo de condutas típicas, enquanto aquela constitui fatos inerentes à pessoa do acusado com o meio em que está inserido.

Segundo Pagnella Boschi com o fim de evitar discricionariedade e ar-bitrariedades por parte dos magistrados, ao analisar a conduta social, em razão desta ser formada por conceitos morais, construídos através da convivência so-cial, antes de afirmar se a conduta é boa ou má, o magistrado deve se inserir-se no meio social do acusado e deixar suas convicções em segundo plano (BOS-CHI, 2011, p. 169 e 170).

Ainda, pelo dever de fundamentar a decisão o juiz ao valorar a con-duta social, deve se basear em provas dos autos, sendo necessário assim que se produzam provas para estes fatos. A prova testemunhal é o meio de prova utilizado nesta situação, não necessitando fazer prova documental, com base na não culpabilidade do agente consagrada no ordenamento jurídico (BOSCHI, 2011, p. 170).

Quanto à aplicação deste no ordenamento Boschi, é favorável, afir-mando que embora esta sistemática fortaleça a culpabilidade de autor, poderia o magistrado ser injusto ao fixar pena igual a indivíduos “comunitária e social-mente inseridos e desalinhados dos padrões que regem a vida em família, no emprego, na vizinhança, enfim, nas relações com os outros” (BOSCHI, 2011, p. 17 Em contrário senso Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho, de-fendem que sem exceções a análise da vida do indivíduo autor da conduta de-lituosa, nas circunstâncias previstas pelo regime jurídico vigente “cria um me-canismo incontrolável do arbítrio judicial, pois, tende a (pré)determinar juízos de condenação, geralmente chegado o momento de prolatar a sentença penal, o juiz já decidiu se condenará ou absolverá o réu” (BRUM, apud CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 5 Ou seja, contraria a própria existência do princípio da secularização e da ordem constitucional o ordenamento proporciona aos magis-trados um oportunidade para a prática de discricionariedade e demonstração de seus juízos de valor.

A personalidade por sua vez, também possui uma série de conceitos, e segundo a doutrina este é um dos termos que mais traz fascínio as pessoas, possuindo significados escritos por juristas e também escrito por psicólogos.

Paulo José da Costa Junior, traz um conceito amplo de personalidade, afirmando que:

para ser valorada em seu aspecto global e dinâmico, considerando o agente em seu meio social circundante ocasional ou permanente, que

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o pressiona e que o faz reagir, de forma passiva ou agressiva, não pode ser analisada isoladamente, destacada da conduta social (COS-TA JUNIOR, 2011, p. 272).

Assim, Costa Junior, apresenta um conceito amplo de personalidade, afirmando que esta deve ser estudada considerando-se o meio social em que o indivíduo vive, no entanto, existem conceitos tais como o de Bitencourt, que consideram aspectos pessoais do indivíduo delinquente da norma. Bitencourt, dispõe que a personalidade é formada pelas qualidades do sujeito, sendo neces-sária em sua analise verificar aspectos bons e ruins, com o fim de verificar se o crime constitui um fato isolado do agente ou um reflexo de sua personalidade (BITENCOURT, 2009, p. 179).

Ainda, existem aqueles que acreditam que a personalidade é algo que vai sofrendo modificações no decorrer da vida, e que ela esta relacionada a ca-racterísticas do caráter o indivíduo. Segundo Boschi, Myra y Lopes, afirma que:

ela evolui em cinco grandes etapas: durante a infância, a juventu-de, o estado adulto, a maturidade e a selinidade, estruturando seus elementos(o id, o ego e o superego em meio a desejos, atitudes, an-siedades, frustações, controle/descontrole crítico, etc) (MYRA Y LÓ-PEZ, apud, BOSCHI, 2011, p. 172). Assim, segundo Myra y Lopes, a personalidade invariavelmente sofre

modificações em momentos determinados da vida, como se estivessem predes-tinados e não possuíssem liberdade para formar sua personalidade. Os juristas ao buscarem conceitos para a personalidade acabam ingressando na esfera cien-tifica dos psicólogos (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 55 e 56), contudo, mesmo entre eles não há conceito fechado sobre o tema, mesmo alguns autores dedicando livros inteiros sobre o tema.

Os psicólogos desenvolveram testes com o fim de apurar a personali-dade dos indivíduos e este é dividido em etapas. A primeira fase é chamada de “Testagem Psicológica de Inteligência e Personalidade” (CARVALHO; CARVA-LHO, 2008, p. 57), e deve ser divida em duas etapas. O primeiro procedimento constitui em uma série de perguntas, com o fim de montar perfis ou enquadrar o indivíduo em um perfil, que posteriormente será objeto de analise pelos psicólo-gos. O segundo procedimento é um “teste projetivo, que apresenta estímulos cujo significado não é imediatamente óbvio, devido ao grau de ambiguidade que força o sujeito a projetar suas próprias necessidades na situação de testagem” (CAR-VALHO; CARVALHO, 2008, p. 57). E além desses testes alguns exames seriam necessários para atingir o objetivo pretendido. O conjunto de exames é chamado de “Estudos Diagnosticais” (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 57).

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Embora existam estes testes, o consenso e o diagnóstico do psiquiatra só poderia ser dado depois de concluso às duas etapas de teses, e o método de apuração é variável dependendo do conceito escolhido como ponto de partida (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 57).

Quanto à personalidade como um requisito a ser analisado no sistema de determinação da pena, afirmam Salo e Amilton de Carvalho que ao fixar a pena o magistrado deveria afirmar qual o conceito de personalidade utilizou, com base no dever de fundamentar a decisão que possui o magistrado, confor-me o inciso IX, do artigo 5º da Constituição Federal.

Por determinação legislativa do artigo 59 a analise da personalida-de é obrigatória, o que em razão da falta de conhecimento dos juízes sobre o tema acarreta em definições vagas e indeterminadas, tais como “personalidade ajustada”, “desajustada”, “agressiva”, “impulsiva”, “boa” ou “má” (BOSCHI, 2011, p. 172). Esta analise imprecisa segundo Salo e Amilton de Carvalho, de-corre do fato de ser o imposto pelos legisladores uma tarefa impossível aos ma-gistrados, dada o grande número de definições para este termo, sendo a maioria derivada de aspectos pessoais do indivíduo e dos que vivem a seu redor (CAR-VALHO; CARVALHO, 2008, p. 54 e 55).

Assim, fica claro que para demonstrar ainda que minimamente as-pectos inerentes à personalidade do indivíduo, existem procedimentos a serem seguidos, o que nos faz concluir que os elementos trazidos nos autos jamais poderiam servir de analise para tal elemento.

Ainda, os autores salientam que:

a noção de personalidade do acusado normalmente auferida pelos magistrados padece de profunda anemia significativa, conformando o substrato de decisões infundadas, sem o mínimo controle técnico, fe-rindo, pois, o principio da ampla defesa e da estrita jurisdicionalidade (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 57).

Ficando assim, claro que é quase impossível que na analise da per-sonalidade feita pelo juiz e demonstrado na sentença condenatória, tenha sido realizada sobre aspectos técnicos, causando uma violação de princípios básicos do ordenamento. Ainda, mesmo que fossem os magistrados agentes capazes de realizar uma analise sobre a personalidade, esta representaria uma incongru-ência, por ser baseada em conceitos morais que dizem respeito estritamente a pessoa do delinquente, representando uma afronta ao princípio da secularização (CARVALHO;CARVALHO, 2008, p. 58 e 59).

Estudados os conceitos de conduta social e personalidade do agente, é possível prosseguir apresentando os efeitos gerados com esta aplicação.

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Primeiramente com esta determinação Salo e Amilton de Carvalho, afirmam que:

o sistema revela toda sua perversidade ao admitir o emprego de ele-mentos essencialmente morais, desprovidos de significado, sem averi-guabilidade probatória e, consequentemente, isentos de possibilidade de refutação empírica.(CARVALHO; CARVALHO, 2008, 33).

Como apresentado no primeiro capítulo deste artigo, existem duas concepções de direito penal, a de autor e a de ato, sendo aquela formada por conceito absolutos, tais como bem é mal, sendo que nesta concepção “o crime é concebido como uma manifestação de maldade do agente e, por conseguinte, portanto, deve ser valorado, não na medida de seus atos, mas de sua pervesida-de” (CARVALHO; CARVALHO, 2008, p. 58 e 59). Segundo Tulio Vianna, é impossível e inadmissível, a convivência harmônica de critérios subjetivos na perspectiva de direito penal de fato. E ao responder a exigência legislativa, o magistrado, também pode violar direitos fundamentais previstos no artigo 5º da Constituição Federal.

A constituição consagra como direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXIX, o principio da legalidade, afirmando que não é possível a conde-nação sem lei anterior que defina a conduta como crime, atuando nos limites já definidos no primeiro capítulo desta artigo científico, significa dizer que o magistrado ao não fixar a pena no mínimo legal em razão da conduta social ou personalidade do agente, acaba condenando e impondo pena ao sujeito, em razão de condutas não tipificadas como crime, desrespeitando o princípio da legalidade (VIANNA, p. 310).

A laicidade e amoralidade também estão definidas na constituição, com previsão no inciso VI, estabelecendo que jamais servirão para restringir direitos. E a disposição do artigo 59, acaba criando uma oportunidade do juiz impor pena ao indivíduo, o condenando indiretamente por sua crenças religio-sas, ou ainda, por entender que a conduta do acusado contraria perspectivas morais (VIANNA, 306 e 307). Nesse sentido dispõe segundo Tulio Vianna, Ferrajoli que:

o princípio nominativo da separação (entre direito e moral) impõe que o julgamento não verse sobre a moralidade, ou sobre o caráter, ou ain-da, sobre aspectos substanciais da personalidade do réu, mas apenas sobre os fatos penalmente proibidos que lhe são imputados e que, por seu turno, constituem as únicas coisas que podem ser empiricamen-te provadas pela acusação e refutadas pela defesa. Assim, o juiz não deve indagar sobre a alma do imputado, e tampouco emitir veredictos

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morais sobre a sua pessoa, mas apenas por aquilo que fez, e não pelo que é (FERRAJOLI, apud VIANNA, 307).

O texto de Ferrajoli demonstra que na perspectiva garantista o juiz não está autorizado a realizar a analise de critérios específicos da vida do acu-sado, e essa determinação decorre do princípio separativo do direito e moral.

O artigo 5º traz também a previsão do devido processo legal, no in-ciso LIV, dispondo que “ninguém será privado de liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. E a medida em que a condenação é imposta pelo juízo em decorrência das circunstâncias do artigo 59, é o sujeito apenado por ter uma personalidade que não responde aos padrões sociais, o mesmo sendo válido para sua conduta social. No entanto estas condutas não são tipicadas como crime, e muito menos foram objetos de um processo penal, caracteri-zando mais um efeito negativo, e podendo caracterizar um julgamento “extra petitum” (VIANNA, p. 311)

Também como visto no capítulo primeiro este tipo de imposição le-gislativa, também viola o princípio da lesividade, vez que este determina que para constituir crime a conduta deve diretamente violar um bem jurídico penal-mente protegido, sendo necessário que de haja um nexo de causalidade entre a conduta do indivíduo e a lesão ao bem jurídico. Contudo, no mesmo sentido das outras situações apresentadas quando o juiz impõe pena em razão da per-sonalidade do indivíduo ou de sua conduta social, o condena também por ser, por exemplo, mal vizinho, mal marido, ou ainda, por ter uma personalidade não ajustada com os padrões sociais.

Assim, frente aos conceitos de conduta social e personalidade, além dos feitos decorrentes da aplicação destes apresentados nesse capítulo, fica cla-ra que determinação legislativa acarreta uma série de problemas e contradições ao ordenamento jurídico.

CONCLUSÃO

O presente artigo científico se propôs a analisar se é legitima a deter-minação do legislador no artigo 59 do Código Penal, quando definiu como um dos critérios básicos para determinar o “quantum” de fixação da pena base à personalidade do agente e sua conduta social. No primeiro capítulo procurou-se demonstrar esta determinação, perante o ordenamento jurídico atualmente em vigência e algumas conclusões já puderam ser constatadas.

O ordenamento jurídico é formado por leis, atos normativos e também por princípios, tendo sido abordado princípios essenciais ao direito penal. O princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no artigo 1º, III, demons-

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trado através da analise realizada por Ingo Sarlet, a tese escrita por Kant, é vio-lado à medida que o homem é tido como uma vítima de sua personalidade, ele é considerado como alguém, incapaz de controlar seus próprios instintos, o que remete a ideia de coisificação e instrumentalização do indivíduo.

O princípio da secularização por sua vez, tratado segundo a analise de Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho, determina que devem ser afastados do direito penal todos os conceitos morais, éticos e religiosos, para evitar arbitrariedades e discricionariedades. Ficando demonstrado que a inclu-são de conceitos que tratam diretamente da vida e pessoa do criminoso, tratam diretamente de padrões morais e sociais, causando violação e este princípio.

Também é o direito penal norteado pelos princípios da legalidade e lesividade. O primeiro determina que apenas poderão ser consideradas típicas as condutas que estiverem assim determinadas pelo legislador, ou seja, para ser caracterizado crime é necessário que haja uma lei que assim o classifique. Por sua vez o princípio da lesividade determina que apenas as condutas que lesio-narem bem jurídicos, podem ser determinadas como crime.

A não capacidade de autodeterminação remete a concepção de direito penal de autor, que não esta vigente atualmente. Configurando assim uma vio-lação ao ordenamento que resulta na condenação do indivíduo não apenas pelo crime praticado e sim por toda sua história. Ainda, para que houvesse compre-ensão total sobre o tema, e para explicar os princípios da legalidade e lesividade foi necessário ter uma compreensão geral, sobre o conceito de bem jurídico, por este ser um elemento essencial do direito penal, demonstrando sua importância inclusive para a classificação dos tipos penais.

Em decorrência do estudo das teorias da pena e das concepções de direito penal de autor e de fato, foi imprescindível também a demonstração dos conceitos que norteiam estas ideias que são os conceitos de culpabilidade e periculosidade. Este é aplicado diretamente no sistema de determinação da me-dida de segurança, por ser o indivíduo alguém inimputável, e sem capacidade plena de coordenar seus atos. Ainda, quando utilizada para a determinação da pena condena o indivíduo por toda a sua história, vez que representa um perigo a sociedade. E isso fica claramente demonstrado com a determinação disposta no artigo da pena base que a ideia de conduta social e personalidade remetem diretamente a periculosidade do sujeito, à medida que na são fatos alheios ao cometimento do crime.

Enquanto a culpabilidade é em compatível ao ordenamento jurídico vigente, por corresponder à capacidade autodeterminar-se, ou seja, o poder que o agente tinha para o não cometimento do crime, quando o cometeu, ou seja, julga-se apenas as circunstâncias que envolveram o cometimento do crime, e não toda a vida do sujeito. Tendo o trabalho também demonstrado como seria

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em tese o direito penal regido pela culpabilidade e o direito penal regido pela periculosidade.

Cabe salientar ainda, que o Código Penal em seu texto original editado na década de quarenta e a grande reforma que acrescentou a conduta social, no ano de 1894 através da lei 7.209, como um critério autônomo que anteriormente era tratado junto aos antedecentes, devem estar em harmonia com a Constitui-ção Federal promulgada no ano de 1988, em respeito a pirâmide de hierarquia das normas e do sistema positivista construída pela teoria de Hans Kelzen.

Quanto a analise dos critérios da conduta social e personalidade, ficou demonstrado através dos argumentos Salo de Carvalho e Amilton de Carvalho, e dos elementos aqui estudados, que os critérios subjetivos são incompatíveis ao ordenamento penal vigente, pelos efeitos que sua aplicação acarreta no sis-tema jurídico. E ainda, por violarem a estrutura basilar do coordenado das nor-mas, portanto, a sua aplicação é ilegítima, sendo este argumento reforçado pelo fato de tal determinação estar extinta no projeto do novo Código Penal que foi feito por uma comissão de juristas e apresentado ao Senado Federal.

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ASPECTOS PROCESSUAIS DA LEI 9.034/95

VanESSa FErrEira SantoSGraduanda no Curso de Direito – Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

alExanDrE KnopFholzPossui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é profes-sor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando princi-palmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Mecanismos de investigação previstos na lei 9.034/95 e seu reflexo no âmbito processual penal. 2.1 Ação Controlada. 2.2 Acesso a dados, documentos, informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais. 2.3 Captação e interceptação am-biental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos. 2.4 Infiltração de agentes policiais. 2.5 Delação premiada. 2.6 Julgamento colegiado. 3 Considerações finais.

RESUMO

Ao longo do tempo, a evolução da criminalidade tem se tornado evi-dente. E isso não se refere apenas ao método empregado na execução de crimes, em decorrência do avanço desenfreado da tecnologia e da globalização, mas também à mudança no modo de organização entre sujeitos para a prática de todo e qualquer tipo de delito. Trata-se da formação organizações criminosas, com estruturas definidas e planejamento próprio, desenvolvendo vários perfis, porém com características em comum, cuja finalidade é, além da prática de atividades ilícitas, o proveito econômico. Sob perspectiva geral, o crime or-ganizado é um fenômeno que há tempos acompanha a evolução cultural, so-cioeconômica e política e, cada vez mais, vem atraindo a atenção das pessoas, desde especialistas até a população em geral. Por conta disso, o presente arti-go, primeiramente, almeja a compreensão desta forma de criminalidade. Assim sendo, o estudo será focado especificamente na análise dos meios operacionais de investigação respaldados pela Lei 9.034/95, em âmbito processual penal.

Palavras-chave: Organizações criminosas, globalização, atividades ilícitas, meios operacionais de investigação, Lei 9.034/95.

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ABSTRACT

Over time, crime trends have become evident. And it not only refers to the method used in the execution of crimes, due to the rampant advance of technology and globalization, but also a change in the mode of organization among subjects to practice any kind of offense. It is the formation criminal organizations with defined structures and proper planning, developing multiple profiles, but with common characteristics, the purpose of which is beyond the illicit activities, the economic advantage. Under general perspective, organized crime is a phenomenon that accompanies long cultural evolution, socioecono-mic and political and, increasingly, is attracting people’s attention from spe-cialists to the general population. Because of this, this article firstly aims at the understanding of this form of crime. Therefore, the study will focus specifically on the analysis of operational resources research supported by Law 9.034/95, in the context of criminal procedure.

Keywords: Criminal organizations; globalization; illicit activities; operational resources research; Law 9.034/95.

1. INTRODUÇÃO

A criminalidade organizada é um fenômeno que tem repercussão direta em toda a sociedade, sendo objeto de discussão no mundo inteiro. É caracterizada por abranger uma série de práticas delitivas que geram graves consequências econômicas, políticas e sociais, marcadas principalmente pela violência, corrupção e lavagem de dinheiro, dentre muitas outras peculiarida-des. A preocupação que se tem é com a constante evolução do crime organizado e, simultaneamente, com o poder que as suas atividades produzem, em razão da dimensão da sua influência em todas as classes sociais.

Observa-se no Brasil a atuação de organizações criminosas, que ge-ram perplexidade e indignação por parte da população. Há consciência da exis-tência do crime organizado, assim como da sua amplitude e gravidade, por meio dos meios de comunicação, que veiculam frequentemente notícias relacionadas ao assunto. Todavia, o fato é que a sociedade, em sua grande maioria, não faz ideia de tudo que envolve a estrutura de uma facção como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), por exemplo, tampouco como foi o seu surgimento e como se dá o seu funcionamento.

Sem dúvida, é um tema de grande relevância e que traz reflexos imediatos no contexto brasileiro. Na realidade, criou-se um sistema complexo formado por um grupo hierarquicamente estruturado com características de

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uma verdadeira “indústria do crime”, a tal ponto a ser considerado um poder paralelo ao Estado, cujo controle parece ser ameaçado.

Os grupos criminosos organizados, à medida que foram se desen-volvendo, adquiriram tamanha estabilidade, de tal modo que dificilmente é possível identificar quem está no topo da hierarquia, ou seja, quem emana as ordens para a execução das atividades delituosas e a forma de execução. E é por isso que, em virtude do crescimento desenfreado do crime organizado, e objetivando a proteção ao interesse social, buscam-se meios para combater, por meio de prevenção e repressão, essa forma de criminalidade.

O combate ao crime organizado está disciplinado na Lei n. 9.034 de 1995. A referida legislação dispõe sobre a forma como se dará a investigação e os aspectos processuais diferenciados para os crimes praticados pelas or-ganizações. Diante disso, há a necessidade de se analisar a compatibilidade dessa lei com os princípios constitucionais, refletindo sobre esses parâmetros perante um Estado Democrático de Direito como o Brasil.

Por essas razões, acerca do tema proposto, a finalidade deste artigo científico é abordar, a partir das perspectivas doutrinárias, a tutela processual penal que se dá a essa forma de criminalidade, tratando especificamente sobre a análise da Lei 9.034/95 e sua incidência legal, sobretudo em relação aos meios operacionais nela previstos, os quais ensejam uma maior possibilidade de investigar e colher provas do funcionamento e das práticas desenvolvidas pelo crime organizado.

2. MECANISMOS DE INVESTIGAÇÃO PREVISTOS NA LEI 9.034/95 E SEU REFLEXO NO ÂMBITO PROCESSUAL PENAL

A Lei 9.034/95, também chamada de Lei de Combate ao Crime Orga-nizado, foi criada para regulamentar os meios de prova e procedimentos de inves-tigação que versarem sobre os crimes praticados por organizações ou associações criminosas. A referida legislação prevê formas de prevenção e repressão às condu-tas ilícitas dos grupos criminosos, tendo o intuito de se utilizar de técnicas diferen-ciadas que sejam capazes de enfrentá-los efetivamente. Não se trata exclusivamente de investigação dos crimes, mas sim de tudo que está envolvido na estrutura da organização criminosa, a forma como operam suas atividades delituosas, quem são os seus integrantes e os líderes, a rotina, a habitualidade, dentre outros fatores.

Para atingir a sua finalidade, a lei 9.034/95 dispõe sobre os procedimen-tos adequados não apenas para a punição dos membros da organização, mas tam-bém, e acima de tudo, para o desmantelamento do grupo. As medidas cautelares previstas são justificadas pela complexidade do crime organizado, assim como pela dificuldade que se tem para a visualização das suas estratégias e funcionamento.

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À medida que a criminalidade organizada evolui, os meios investi-gativos devem ser aprimorados para que o Estado possa, de fato, atuar no seu enfrentamento. E, cada vez mais, diante da situação, o que se está exigindo é uma prestação jurisdicional eficiente, proporcional e satisfatória.

A Lei em questão, em seu artigo 2º, incisos II a V, dispõe que em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízos dos já pre-vistos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de pro-vas: a ação controlada; o acesso de dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais; a captação e a interceptação ambiental e a infiltração de agentes de polícia.

Quanto aos efeitos dos referidos mecanismos como meios probató-rios, Eduardo Araújo da Silva salienta:

Nesse contexto, observa-se no cenário internacional uma acentuada propensão quanto à necessidade de assimilação da ideia de que o Es-tado deve excepcionalmente restringir certos diretos fundamentais de indivíduos envolvidos com a prática de determinadas formas de criminalidade, que colocam em risco os direitos fundamentais dos de-mais cidadãos. O entendimento nesse caso é no sentido de que a ba-lança necessariamente deve pender em favor dos interesses do Estado, cujos representantes devem buscar uma reação proporcional à ameaça produzida à sociedade por certas organizações criminosas, sob pena de malograrem uma das atividades estatais primordiais, que é a de proporcionar a pacificação social. (SILVA, 2009, p. 37).

A tutela processual dada pelo legislador brasileiro justifica-se, conforme o entendimento de boa parte da doutrina, pelo fato de que os direitos que estão sendo restringidos não são, de todo, absolutos. De qualquer forma, há a necessida-de de uma ponderação entre o interesse público de se ter uma eficiência penal no enfrentamento da criminalidade e, ao mesmo tempo, ter a cautela de evitar abusos nas limitações das garantias processuais dos investigados/acusados. A questão é que as medidas devem atender ao princípio da proporcionalidade, ou seja, é preciso verificar, em cada caso concreto, a real necessidade e utilidade do procedimento que implicará na restrição de direitos, analisando ainda se este alcançará a finalidade a que se propõe. Sobre isso, o supramencionado autor ainda comenta:

Assim como em outros ramos do Direito, o princípio da proporcio-nalidade no processo penal destina-se a regulamentar a confrontação indivíduo-Estado. De um lado, os interesses estatais na realização da investigação criminal e da persecução penal em juízo, visando ao

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Exercício do ius puniendi para a concretização do Direito Penal; de outro lado, o cidadão investigado ou acusado, titular de direitos e ga-rantias individuais, que tem interesse na preservação do ius libertatis. Tem a finalidade, portanto, de equilibrar essa relação aparentemente contraditória de interesses, para evitar tanto a violação dos direitos fundamentais do particular, como o comprometimento da atividade estatal na repressão da criminalidade. (SILVA, 2009, p. 44)

Antes de tudo, é primordial observar que o fato de a criminalidade or-ganizada, no decorrer do tempo, ter aprimorado seus métodos, utilizando tecnolo-gias avançadas, estrutura altamente hierarquizada, bem como a facilidade em que autoridades públicas se corrompem para “deixar fluir” as ilicitudes, tem contribu-ído significativamente para que as organizações criminosas ganhem espaço. E é por essa razão que o Estado, sobretudo em relação à colheita de provas, objetiva adaptar os instrumentos processuais a esse constante desenvolvimento, a fim de que se possa propiciar um processo penal eficaz.

É importante frisar ainda que o intuito é a flexibilização das garantias, e não a sua supressão. Resta clara a necessidade de se compatibilizar um trata-mento jurídico às próprias características das organizações criminosas, as quais, por si só, já acabam por inviabilizar uma investigação comum, tendo em vista a dificuldade de se apurar quem são os envolvidos e a maneira como executam as suas atividades delitivas.

Não obstante seja necessário, no ponto de vista teórico, um tra-tamento diferenciado a um fenômeno criminológico de tamanha gravida-de, cabe agora discutir especificamente sobre os mencionados métodos de investigação disciplinados no texto legal, avaliando seus reflexos no processual e constitucional.

2.1 AÇÃO CONTROLADA

Também chamada de “flagrante diferido”, a ação controlada está pre-vista na Lei 9.034/95 como aquela que “consiste em retardar a interdição poli-cial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vincu-lado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações”.

Significa dizer que a autoridade policial aguardará o momento mais oportuno para fazer a colheita de provas, mantendo o flagrante sob observação à distância, até que surja a hora adequada para intervir. A ocasião propícia para a intervenção dependerá de cada caso concreto, bem como do juízo de valor de quem esteja presidindo a ação.

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Conforme disciplina o artigo 302 do Código de Processo Penal: “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Já o artigo 303, também do referido Código, dispõe: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”. É evidente que, em se tratando de crime organizado, a permanência e continuidade das ati-vidades ilícitas são características próprias do grupo e, portanto, a intenção do flagrante, aqui estudado, não é simplesmente surpreender o delinquente no ato, e sim ter a cautela de colher e apurar os elementos de provas.

Excepcionalmente, então, as autoridades poderão se utilizar da ação controlada como uma forma de estratégia para obter as informações necessá-rias, monitorando os integrantes da organização criminosa. Contudo, a legisla-ção não fala em prévia autorização judicial para esse tipo de flagrante, o que, em contrapartida, dá margem à discussão na doutrina. Segundo Rogério Cury:

Em que pese a divergência doutrinária, entendemos que não há exi-gência de autorização judicial para que ocorra a prática da ação con-trolada, tendo em vista a falta de previsão legal a respeito, embo-ra concordamos que na prática a falta de referida autorização possa substanciar a absolvição de policiais corruptos. Vale lembrar que, di-versamente da Lei n. 9.034/95, a Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), em seu art. 53, caput, permite a ação controlada sobre os portadores de drogas, visando responsabilizar os integrantes que praticam o tráfico de drogas (art. 53, II), desde que haja a autorização judicial e oitiva do Ministério Público. (CURY, 2012, p.280).Embora a legislação em estudo não mencione a necessidade de auto-

rização e nem o tempo de duração da medida, não basta ter apenas a situação sob controle, à arbitrariedade da polícia, pois a mesma deve cumprir certos requisitos, conforme assevera Francisco Tolentino Neto:

Todo ato praticado pela autoridade policial deve ser fundamentado no corpo do inquérito policial aberto sobre o caso. Nele se apresentarão os pressupostos objetivos da ação controlada, os elementos que configu-ram como organização criminosa, a associação investigada, bem como a finalidade do retardamento da prisão e a relevância das provas a serem obtidas. Sem a exposição desses motivos, a autoridade policial poderá responder pelo crime de prevaricação e caso haja desconformidade dos motivos expostos com a medida, a autoridade será responsabilizada no âmbito administrativo. (TOLENTINO NETO, 2012, p. 62).

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Pode-se dizer que, cumpridos os requisitos, o agente policial, mesmo presenciando uma infração penal, terá a discricionariedade de optar por deixar de efetuar a prisão em flagrante para aguardar o momento mais adequado, mais favorável para a concretização das provas, considerando a investigação como um todo. Isso se justifica na medida em que será possível a comprovação, não apenas do cometimento dos delitos, mas também a participação e identificação dos envolvidos na organização.

Importante ressaltar ainda que a ação controlada, ou flagrante diferi-do, assim considerado, diferencia-se do flagrante esperado e do flagrante prepa-rado. Neste último a polícia instiga o agente à prática de uma infração penal e prepara o ato. Todavia, a jurisprudência entende que, nesse caso, é ilegal. Já o flagrante esperado é revestido de legalidade, pois a autoridade policial somente aguarda a prática do crime para agir, não havendo acompanhamento à campana, como é caso das ações controladas.

Há vários meios pelos quais se utilizam os agentes policiais para man-ter o controle da situação, sem que os investigados, integrantes das organizações criminosas, saibam que estejam sendo monitorados. O essencial é que a autorida-de acompanhe a movimentação e as ações do grupo criminoso organizado e, ao mesmo tempo, tenha consciência de que este é o procedimento necessário, senão o único, para conseguir, com maior êxito, a formação das provas.

2.2 ACESSO A DADOS, DOCUMENTOS, INFORMAÇÕES FISCAIS, BANCÁRIAS, FINANCEIRAS E ELEITORAIS

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, garante o direito à privacidade. Em que pese esse direito não ser absoluto, a quebra do sigilo é per-mitida apenas nas hipóteses previstas em lei, considerada uma medida excep-cional, assegurado o devido processo legal e, ainda, a decisão que decreta esse tipo de procedimento deve estar baseada em um critério de proporcionalidade.

É permitido, então, o acesso, mediante prévia autorização judicial, quando for de extrema importância para a investigação criminal ou instrução processual. O interesse público, nesse caso, é maior e relevante, de modo que se sobrepõe particular, dada a exigência e necessidade de divulgação dos dados individuais para a apuração de uma infração penal.

Para Ana Flávia Messa, além de demonstrado o critério de propor-cionalidade, ainda é indispensável o atendimento a determinados pressupostos para que a medida seja legítima:

A quebra de sigilo reveste-se de legitimidade quando preenchidos os seguintes requisitos: a) É jurisprudência pacífica do Superior Tribunal

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de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que a legitimidade da que-bra de sigilo necessita apoiar-se em decisão revestida de satisfatória fundamentação, ou seja, que encontre apoio concreto em suporte fá-tico idôneo, sob pena de invalidade do ato estatal que a decreta; b) a demonstração das razões para eventual quebra de sigilo, necessárias ao pleno esclarecimento dos fatos delituosos, não constitui constran-gimento ilegal o seu deferimento pela autoridade judicial; c) a manu-tenção do sigilo em relação às pessoas estranhas à causa; d) pode ser feita por ordem judicial, determinação de CPI, requisição do Ministé-rio Público ou ainda pedido de autorização fazendária, desde que no âmbito de um processo administrativo instaurado; e) individualização da pessoa investigada e do objeto de investigação; f) indispensabili-dade dos dados. (MESSA, 2012, p. 115).

Fazendo uma análise, é possível dizer que procedimento pode ser adotado nas hipóteses em que os meios de investigação comum sejam insu-ficientes para produzir provas. Ou seja, havendo indícios da prática dos deli-tos, a quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro se faz necessária, a fim de que os elementos apurados subsidiem a averiguação dos fatos. Particular-mente, caracteriza-se como um instrumento de extrema importância para a persecução criminal de atividades ilícitas que assegurem ganho econômico ao agente, uma vez que o intuito lucrativo faz parte da própria essência de uma organização criminosa.

Sobre o tema, Ana Brasil Rocha afirma:

Note-se que uma organização criminosa não sobrevive sem bens e capital, e, pressupondo que grande parte do patrimônio que a sustenta, em regra, é obtido por meio ilícitos, faz surgir para ela, organização criminosa, a necessidade de ocultar e “lavar” os bens oriundos do cri-me, camuflando sua origem, dissimulando o seu destino, para que, ao final, tais bens possam voltar para as mãos dos criminosos, com ares de aparente legalidade. (ROCHA, 2012, p. 340).

A lavagem de dinheiro é uma característica típica de crime organi-zado, em que a grande quantidade de dinheiro obtida pelo tráfico de drogas, por exemplo, é convertida em ativos lícitos para ocultar a sua origem ilícita. É o caso de separação física entre os agentes e o produto de seus crimes, com o objetivo de se evadir de eventual suspeita em uma investigação fiscal. Sendo assim, o meio operacional capaz de revelar um esquema como este é relativizar o direito à privacidade mediante a quebra do sigilo para obter acesso às infor-mações e conseguir as provas necessárias.

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Marcelo Batlouni Mendroni comenta, embora haja divergências so-bre o assunto na doutrina, sobre a possibilidade e legitimidade de o Ministério Público requisitar diretamente às instituições o fornecimento de dados e docu-mentações de movimentações bancárias, sem autorização judicial:

A quebra de sigilo bancário das empresas, reiteramos, interessa sobrema-neira à investigação das organizações criminosas, pois são comumente utilizadas para fraudes e lavagem de dinheiro, servindo como empresas de fachada ou mesmo sendo utilizada a mescla de dinheiro sujo com ou-tro licitamente obtido através da própria produção. Com a quebra sendo determinada diretamente pelo Ministério Público, proporciona-se uma agilidade muitas vezes imprescindível e que pode representar a maior virtude ao sucesso da investigação. (MENDRONI, 2009, p. 146).

Portanto, levando em conta toda a estrutura de uma organização criminosa, bem como seus esquemas para movimentar elevadas quantias de dinheiro, é possível concluir que a referida medida pode ser considerada um meio probatório de notória relevância e que acompanha a evolução do crime organizado. Isso porque grande parte do que é feito nos grupos criminosos or-ganizados se dá “por debaixo dos panos” e, se não houver uma forma eficaz para apurar as ações, dificilmente se conseguiria comprovar os fatos. Todavia, por se tratar de uma violação a direito fundamental dos investigados, há que se estar em conformidade com a legalidade, especificando as circunstâncias, a real necessidade do mecanismo e os limites da violação.

2.3 CAPTAÇÃO E INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL DE SINAIS ELETROMAGNÉTICOS, ÓTICOS OU ACÚSTICOS

Assim como a quebra de sigilo, a captação ou interceptação ambiental é um mecanismo que necessita de autorização judicial para ser executada, já que a obtenção da prova implica uma limitação do direito à intimidade. Trata-se da gravação de diálogos e imagens de pessoas, mediante a instalação de apare-lhos específicos que sejam capazes de colher informações para a investigação criminal, sendo possível a transcrição do seu teor, que muitas vezes tem relação direta com as ilicitudes exercidas pelo grupo.

Eduardo Araújo da Silva reflete a respeito do assunto, considerando a amplitude desse tipo de interceptação a partir da interpretação da legislação:

Pelo texto legal, poderão os agentes de polícia, mediante prévia auto-rização judicial, instalar aparelhos de gravação de som e imagem em

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ambientes fechados (residências, locais de trabalho, estabelecimentos prisionais etc.) ou abertos (ruas, praças, jardins públicos etc.) com a finalidade de gravar não apenas os diálogos travados entre os inves-tigados (sinais acústicos), mas também de filmar as condutas por ele desenvolvidas (sinais ópticos). Ainda poderão os policiais registrar si-nais emitidos pelos aparelhos de comunicação, como rádios transmis-sores (sinais eletromagnéticos), que tecnicamente não se enquadram no conceito de comunicação telefônica, informática ou telemática. (SILVA, 2009, p. 96).

Ainda, é importante comentar sobre três ferramentas distintas: a in-terceptação ambiental, a “escuta” e a gravação clandestina. Interceptar significa captar, como ouvinte, conversa alheia, com a finalidade de ter acesso ao con-teúdo da conversação, sem que qualquer dos interlocutores tenha conhecimen-to disso. A “escuta” se dará quando a violação do sigilo de comunicação for feita por terceiro, com o conhecimento de um dos interlocutores. Já a gravação clandestina é aquela em que um dos interlocutores providencia a captação da conversa, sem o conhecimento do outro.

Sendo procedimentos distintos na essência, Marcelo Batlouni Men-droni reflete acerca da exigibilidade ou não de autorização judicial, levando em conta a proteção ao direito de privacidade, nesses casos:

Em resumo, enquanto na interceptação ambiental alguém intercepta a conversa de terceiros através de equipamentos eletrônicos, na gra-vação clandestina ambiental o agente participa da situação, evidente-mente com o conhecimento de todos os demais, dividindo o seu teor e, portanto, a privacidade a ela inerente. Naquela (interceptação am-biental), há a necessidade de autorização judicial, dispensável nesta (gravação clandestina ambiental). (MENDRONI, 2009, p. 124).

Não apenas a interceptação ambiental, mas também a interceptação telefônica, prevista na Lei 9.296/96, é um instrumento apropriado para a inves-tigação de organizações criminosas.

Na visão de Ana Brasil Rocha:

Uma das principais vantagens em conduzir uma investigação por meio de interceptação telefônica é a possibilidade de entender e co-nhecer a fundo, em tempo real, a forma e o meio com que agem os investigados, os locais em que atuam, assim como suas vontades di-recionadas às novas práticas delitivas, além da identificação de outras pessoas envolvidas nos crimes, permitindo ao órgão responsável pela

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investigação um trabalho de inteligência, cujo resultado será, na me-dida do possível, mais próximo da perfeição, seja, por exemplo, no que se refere à identificação de todos os integrantes de uma mesma organização criminosa, seja no impedimento da consumação de deli-tos mais graves. (ROCHA, 2012, p. 333).

A interceptação telefônica, por ser um mecanismo moderno, é capaz de fazer frente ao profissionalismo dos integrantes de um grupo criminoso or-ganizado estruturado. A referida legislação prevê requisitos legais que devem ser preenchidas para a concessão da medida, que deve ser fundamentada em decisão judicial. Além disso, dispõe também o prazo legal para a interceptação, sendo este de 15 dias, renováveis por mais 15, desde que justificadamente.

Enquanto a interceptação telefônica tem limites e pressupostos para ser concedida, a interceptação ambiental, na Lei 9.034/95, não tem uma regu-lamentação específica. Essa carência legislativa faz com que surjam dúvidas quanto aos requisitos que devem ser atendidos para requerer a medida cautelar, o seu tempo de duração e, ainda, se este é prorrogável ou não. Em razão disso, boa parte da doutrina entende que se devem aplicar por analogia as regras da interceptação telefônica à interceptação ambiental.

Nesse sentido, Jiskia Sandri Trentin ainda assevera:

Se a interceptação se der em local privado, imprescindível a autori-zação judicial que satisfaça todos os requisitos para a concessão da interceptação telefônica, aplicados analogicamente à interceptação ambiental. Também será necessário o assentimento do Poder Judiciá-rio no caso de escuta ambiental, ou seja, aquela realizada por terceiro, com o conhecimento de um dos interlocutores, porque aquele que não participa da conversa, mas que a acompanha ou monitora, ficará a par da intimidade dos interlocutores, ainda que um deles saiba disso. (TRENTIN, 2012, p. 392).

Em suma, tanto interceptação ambiental quanto a telefônica são ins-trumentos de investigação capazes de mapear a existência de organizações cri-minosas, identificando os seus envolvidos e as suas ações. São medidas utili-zadas para traçar os contornos do grupo, revelando a forma como agem e os detalhes da sua complexa estrutura.

O Estado precisa de aparelhagem mais avançada, meios operacionais cada vez mais aprimorados em questão de tecnologia, a fim de que os investiga-dos, cientes da possibilidade de serem monitorados, não turbem a investigação. Vale dizer, sobretudo, que o procedimento deve obedecer aos parâmetros da

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legalidade, com a devida fundamentação do requerimento e das decisões judi-ciais, sob pena de a prova ser considerada ilícita.

2.4 INFILTRAÇÃO DE AGENTES POLICIAIS

A infiltração é uma técnica pelo qual os agentes policiais ou fun-cionários de agências de inteligência ingressam nas organizações criminosas, mediante prévia autorização judicial, ocultando suas reais identidades, com o intuito de observar a rotina, apurar a prática de infrações, coletar provas e infor-mações úteis para a investigação. Para tanto, esses agentes fingem a condição de integrantes destas organizações, de modo a obter a confiança dos suspeitos e conseguir interagir com os mesmos. Importante lembrar que, assim como a ação controlada, esse método de investigação também tem previsão no artigo 53, inciso I, da Lei 11.343/2006, também chamada Lei de Drogas.

Como a Lei 9.034/95 não estabelece um prazo para que isso seja feito, a infiltração poderá se dar por tempo indeterminado, isto é, por tempo suficiente e necessário para averiguar os fatos, ter acesso às informações sigilosas identifi-car os autores dos delitos e garantir as fontes de provas. Conhecendo a estrutura de comando, a forma de execução das atividades e mantendo os delitos sob vi-gilância, o agente indicará às autoridades policiais os responsáveis, bem como o funcionamento da organização.

Uma questão relevante, portanto, e que traz muita discussão doutriná-ria, diz respeito à possibilidade de o agente praticar crimes, já que, sendo um “membro” da organização e os integrantes assim o considerando, a negação à prática implicaria a desconfiança dos demais. Ainda que seja uma espécie de “en-cenação” perante os membros do grupo criminoso, o profissional tem consciência da situação a que fica submetido e é necessário saber os limites da infiltração.

Analisando o tema, Alexis Couto de Brito salienta:

A infiltração pode acontecer de duas maneiras: em uma, o agente ape-nas se infiltra para acompanhar o que acontece, não tomando nenhu-ma postura ativa, e com a finalidade de intervir no momento da ação policial global que for intentada para o desmantelamento da organiza-ção, chamada de infiltração preventiva; em outra, atua efetivamente na organização, cometendo condutas ilícitas como a provocação de um ato criminoso ou mesmo praticando outros inerentes à organiza-ção de que momentaneamente faz parte, chamada infiltração repres-siva. (BRITO, 2012. p. 252).

O problema, então, especificamente, é quanto à prática de condutas ilícitas do agente policial, em nome da busca e colheita de provas. O que se

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questiona, no caso da possibilidade, é se esse agente será responsabilizado cri-minalmente ou não, dado às circunstâncias do caso concreto.

No entendimento de Luiz Roberto Salles de Souza, não há responsa-bilização:

[...] Por fim, a possibilidade de o agente praticar crimes é uma reali-dade. A autorização judicial para a infiltração, nesta hipótese, funcio-naria como um reconhecimento prévio de excludente de ilicitude. Não se pode imaginar que o agente legalmente infiltrado fosse submetido à persecução penal pelos atos praticados no seio da organização crimi-nosa ou de tráfico de drogas. (SOUZA, 2012, p. 246).

O ponto crucial do debate na doutrina é saber até que ponto o infiltra-do pode ir, em prol da investigação. Saber, principalmente, se há tipicidade da conduta e, portanto, passível de punição no âmbito do Direto Penal. Além disso, analisar quais seriam os fundamentos, tendo por base as causas excludentes, para legitimar a conduta do agente, em que pese tenha praticado crimes em razão da sua condição.

Isso porque um policial infiltrado se vê diante de um dilema: de um lado, agir em conformidade com a legalidade; de outro, ao mesmo tempo, pre-servar a sua própria vida, levando em conta o risco a que está se expondo, especialmente se tiver uma atitude suspeita, como por exemplo, se recusar a participar de um confronto com a polícia ou a praticar atividades ilícitas.

Sobre esta perspectiva, Roberta Rodrigues Camilo afirma:

Entendemos que a melhor medida seria que o agente, antes de ser infiltrado seja devidamente orientado pelo magistrado para que adote um comportamento adequado e em conformidade com a situação fá-tica, mas não se esquecendo da cautela para que não seja descoberto, uma vez que o bem jurídico tutelado de mais-valia é sempre a vida. (CAMILO, 2012, p.297).

Resta analisar se a conduta do agente tem respaldo em uma causa justificadora para preservar a sua integridade física e, ao mesmo tempo, tão somente para atender ao objetivo da sua função como investigador. Dentro desta perspectiva, no tocante à possibilidade da prática de delitos, Rogério Cury ressalta:

Ao nosso sentir, o agente infiltrado somente poderá praticar condu-ta delitiva para salvaguardar sua própria segurança, sendo assim im-

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prescindível a prática do crime. Sob esse viés, estará amparado pela inexigibilidade de conduta diversa, desde que demonstrado que não agiu com arbitrariedade, afastando-se assim a própria culpabilidade do delito. (CURY, 2012, p. 284).

Mais uma vez, para que haja um equilíbrio entre a finalidade da in-filtração e a conduta do agente, fala-se em princípio da proporcionalidade. O Estado busca a repressão à criminalidade organizada, porém isso não autoriza o infiltrado a agir de qualquer forma, praticando infrações mais graves do que as apuradas. Não se pode olvidar que é uma técnica de investigação que se mos-trará eficaz se cumprida o seu propósito, e desde que respeitados os princípios norteadores de um Estado de Direito.

A legislação não especificou a forma como se dará o procedimento, nem estabeleceu limites no campo de atuação desta espécie de investigação, tampouco menciona a respeito da punibilidade do agente infiltrado. Há difi-culdade em se definir a proporcionalidade entre a finalidade investigativa do policial que está ingressado na organização e o crime que está de fato sendo apurado. Por conta disso, a doutrina faz breves considerações a respeito da ili-citude da conduta, analisando as circunstâncias concretas, apontando soluções cabíveis e destacando os pontos críticos da infiltração.

Para Alexis Couto de Brito:

[...] a consideração de uma causa excludente ou de extinção de cul-pabilidade ou punibilidade, ainda que dogmaticamente apresente-se como a melhor solução e pudesse impedir a punição do agente in-filtrado, configuraria apenas esta possibilidade de não imputação da responsabilidade penal e consequente não aplicação de pena, mas não teria o condão – e nem a força dogmática – para retirar o caráter ilícito do fato em si, o que refletiria direta e prejudicialmente sobre a prova colhida nesta situação, ou seja, relacionada com o crime cometido pelo infiltrado. (BRITO, 2012, p. 260).Em que pese à omissão no tratamento legislativo da matéria, o agente

policial deve se ater a sua finalidade principal, ou seja, a busca de elementos das provas. Como ele está inserido no grupo criminoso organizado, há que se ter certa cautela com a obtenção de informações que não tenham qualquer relação com a apuração dos fatos da investigação, especialmente quanto a aspectos que envolvam a vida privada dos investigados. Aqui se vê a necessidade, não apenas de autorização judicial, mas também de acompanhamento do Poder Judiciário, a fim de que sejam evitadas discricionariedades ou arbitrariedades do agente.

Sendo assim, em síntese, o escopo da infiltração policial é o desman-telamento da organização criminosa em que se ingressa. O que se faz, para isso,

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é espionar, de perto, as atividades ilícitas, bem como a sua habitualidade, a sua estrutura, a função dos integrantes, enfim, o modus operandi do grupo. O meio operacional, então, é a participação do próprio agente de polícia na rotina da orga-nização, sendo que este simulará a condição de membro para acompanhar, com-preender e apurar os fatos relevantes para a investigação criminal.

Embora a medida seja capaz de mostrar eficácia, o agente deve ave-riguar não apenas a forma de agir do grupo criminoso, mas também verificar a sua própria conduta, baseando-se pela proporcionalidade, principalmente quanto à questão da prática de crimes. Há que se sobpesar os interesses do Es-tado, as vantagens e desvantagens de um meio como este e, simultaneamente, estar em conformidade com os princípios constitucionais de um Estado De-mocrático de Direito.

2.5 DELAÇÃO PREMIADA

A delação premiada está disciplinada no artigo 6º da Lei 9.034/95, que dispõe: “Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será re-duzida de um a 2/3 (dois terços), quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria”.

Trata-se, portanto, de um instituto pelo qual o colaborador confessa não só a prática do crime, mas também revela os autores envolvidos no delito em ques-tão. A utilização da expressão “premiada” se dá em razão de que o delator terá di-reito a um benefício, uma espécie de recompensa, seja a redução da pena, seja uma aplicação de regime penitenciário brando ou até mesmo o perdão judicial.

Para isso, não basta que o agente apenas relate informações impreci-sas e que não levem à averiguação da autoria. A colaboração deve ser efetiva, isto é, o agente deve prestar informações concretas, suficientes e capazes de auxiliar na elucidação dos fatos na investigação criminal. É diferente de uma simples confissão (strictu sensu), visto que a mesma traduz uma declaração vo-luntária do suspeito ou acusado do delito e tem relação direta com fato pessoal, atingindo e incriminando exclusivamente o próprio confidente.

Nesse mesmo sentido, vale destacar que a colaboração na delação premiada também se difere da chamada “colaboração à justiça”, a qual é re-sultante da admissão de culpa, porém não há incriminação de terceiros. Além disso, é importante enfatizar, ainda, que a delação não assume contornos de testemunho, uma vez que toda testemunha deve ser pessoa estranha à relação processual, diversamente da delação, em que o delator é parte e tem interesse na solução da persecução.

Outro ponto importante diz respeito à espontaneidade do delator, ou seja, deve partir da sua própria iniciativa, sendo isto, na verdade, um requisito

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para a validade do ato. O agente não pode ter sido instigado ou coagido a dela-tar, o que, por óbvio, se leva a concluir que uma confissão mediante tortura ou pressão psicológica não se caracteriza como espontânea.

Do mesmo modo, também constitui requisito a necessidade de que o delator tenha participado do mesmo delito que os demais coautores delatados. Ademais, a colaboração, para ser eficiente, deve viabilizar a descoberta de in-frações penais, dados e nomes de envolvidos que até então eram desconhecidos pela polícia e pelo Ministério Público. Ainda, é necessário avaliar conjuntamen-te as informações prestadas pelo delator e o lastro probatório para que, a partir da base da investigação criminal, se possa intentar uma ação penal.

A delação premiada constitui prova no processo penal, por ter caráter lí-cito. É uma espécie de prova anômala, também considerada inominada, pelo fato de não estar elencada e nem se identificar com as demais provas no ordenamento jurídico. Embora haja discussões na doutrina, não se pode deixar de reconhecer a sua qualidade probatória, já que o magistrado poderá se utilizar desse instrumento para formar as suas convicções e, ao final, fundamentar uma decisão judicial.

Mesmo assim, não poderá ter uma valoração isolada, devendo es-tar em harmonia com o núcleo do contexto acusatório, bem como a sua reprodução deve estar submetida aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Isso porque, e este é o ponto central de discussão, o delator, em razão da sua situação de beneficiário processual, pode vir a colaborar falsa-mente com a justiça, porquanto está amparado pela garantia constitucional da não autoincriminação, o princípio “nemo tenutur se detegere”, não tendo o compromisso de dizer a verdade.

Quanto ao momento, a legislação não faz referência e nem previu um limite temporal, ou a fase processual, para que seja cabível a colaboração do agente. Muitos autores posicionam-se no sentido de que não importa qual foi o momento, mas sim se emergiu o efeito almejado, se alcançou o resultado, o esclarecimento pretendido. Assim sendo, conforme alude Luiz Flávio Gomes:

A colaboração do agente pode ocorrer em qualquer fase da persecução penal (inquisitiva ou contraditória). A lei não estabeleceu qualquer limite temporal, logo, sempre será possível, mesmo após o trânsito em julga-do da condenação (hipótese em que criar-se-ia um incidente na Vara das Execuções para aplicação do benefício legal). (GOMES, 1995, p. 135).

Ainda, cumpre-se mencionar a questão da proteção à integridade fí-sica do delator. Pelo fato de estar contribuindo para a apuração de crimes e revelando possíveis detalhes da forma de funcionamento de uma organização criminosa, levando em conta que nesta prevalece a lei do silêncio, qualquer quebra de confiança nesse sentido é vista como traição.

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Sobre a figura da delação, refere Élio Wanderley de Siqueira Filho:

De qualquer maneira, deve-se reconhecer que, para que possa ser ple-namente utilizada, é fundamental que se garanta a própria seguran-ça do “delator”, já que, pela sua estrutura, em regra, as organizações criminosas conseguem, sem maiores obstáculos, eliminar eventuais “traidores”, praticando a “queima de arquivo”. Nessa situação, caso detido o colaborador, tal eliminação seria ainda mais fácil, diante dos tentáculos que aquelas organizações mantêm no interior dos estabele-cimentos prisionais. (SIQUEIRA FILHO, 2004, p.85-86).

Apesar do risco que pode acarretar ao colaborador, a delação premiada, desde que utilizada adequadamente e observados os seus requisitos, pode ser vista como um procedimento potencialmente capaz de auxiliar na busca da verdade acerca dos crimes praticados pelas organizações criminosas, e, principalmente, para desmantelá-las. Mais do que isso, a própria “traição” do delator pode, por si só, contribuir significativamente para desestruturar o grupo criminoso.

É a partir desse pensamento que Rafael Abujamra conclui:

Desta feita, o método indispensável para o desmantelamento de organiza-ções criminosas reside na derrocada de sua estrutura de atuação eficiente, solidária e sigilosa, mediante a quebra da relação de confiança e do círcu-lo de segredo existente entre seus integrantes (lei do silêncio), cooptando--os por intermédio da oferta de benefícios legais em contrapartida das suas colaborações com a Justiça. (ABUJAMRA, 2012, p. 177).Diante de tudo, é possível considerar a delação premiada como um

meio de prova, a qual poderá ser determinante para a formação da decisão do magistrado, desde que analisada conjuntamente com outros elementos probató-rios. Isso porque há que se ter a ciência da possibilidade de “falsas delações”, em que o indivíduo apenas visa ter o benefício processual, mas não conta a verdade ou simplesmente atribui culpa a terceiros. Por esta razão, necessária é a observância das formalidades legais para, além de atenuar a pena ou extinguir a punibilidade do delator, apurar a veracidade das suas declarações.

2.6 JULGAMENTO COLEGIADO

A possibilidade de julgamento colegiado não está prevista na Lei 9.034/95. Todavia, com o advento da Lei 12.694/12, há previsão dessa forma de julgamento para processos que tenham por objeto crimes praticados por orga-nizações criminosas. É uma inovação dentro do processo penal em análise, vi-

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sando assegurar, acima de tudo, a proteção à integridade física dos magistrados. Assim sendo, o artigo 1º da Lei 12.694 trata da formação de colegia-

dos em primeiro grau, tendo a seguinte redação:

Em processos ou procedimentos que tenham por objeto crimes prati-cados por organizações criminosas, o juiz poderá decidir pela forma-ção de colegiado para a prática de qualquer ato processual, especial-mente:

I - decretação de prisão ou de medidas assecuratórias;

II - concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão;

III - sentença;

IV - progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena;

V - concessão de liberdade condicional;

VI - transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima; e

VII - inclusão do preso no regime disciplinar diferenciado.

§ 1o O juiz poderá instaurar o colegiado, indicando os motivos e as cir-cunstâncias que acarretam risco à sua integridade física em decisão fun-damentada, da qual será dado conhecimento ao órgão correicional.

§ 2o O colegiado será formado pelo juiz do processo e por 2 (dois) outros juízes escolhidos por sorteio eletrônico dentre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição.

§ 3o A competência do colegiado limita-se ao ato para o qual foi convocado.

§ 4o As reuniões poderão ser sigilosas sempre que houver risco de que a publicidade resulte em prejuízo à eficácia da decisão judicial.

§ 5o A reunião do colegiado composto por juízes domiciliados em cida-des diversas poderá ser feita pela via eletrônica.

§ 6o As decisões do colegiado, devidamente fundamentadas e firmadas, sem exceção, por todos os seus integrantes, serão publicadas sem qual-quer referência a voto divergente de qualquer membro.

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§ 7o Os tribunais, no âmbito de suas competências, expedirão normas regulamentando a composição do colegiado e os procedimentos a serem adotados para o seu funcionamento. (BRASIL, Lei nº 12.694 de 24 de julho de 2012).

O objetivo primordial da aludida legislação, portanto, é conferir maior segurança aos juízes que atuam nestes tipos de processos criminais. Isso em ra-zão de que, não raras vezes, o magistrado sente-se ameaçado e tem consciência dos riscos a que está exposto ao julgar as práticas do crime organizado. Pela interpretação da lei, fica claro que a formação de órgão colegiado não é uma medida obrigatória, mas sim facultativa, cabendo ao juiz natural da causa optar se irá conduzir o processo de forma singular ou não; e se instaurar o julgamento colegiado, deverá fundamentar as razões pela qual entende ser necessário.

Um dos pontos importantes que deve ser devidamente esclarecido é em relação ao parágrafo 6º da Lei em comento. A decisão do colegiado será única, fundamentada e pública; não fará referência se foi por unanimidade ou por maioria, tampouco em que sentido votou cada um dos magistrados. Alguns especialistas dis-cutem se o fato de a decisão colegiada não mencionar o voto divergente ofenderia ou não o princípio constitucional da publicidade e a garantia da ampla defesa.

Para Márcio André Lopes Cavalcante, a Lei 12.694/12 é constitucio-nal, em todos os seus aspectos:

A decisão do colegiado deverá ser sempre fundamentada, de modo que o investigado/acusado que for prejudicado saberá exatamente os argumentos utilizados para chegar àquela conclusão. Tendo conheci-mento disso, poderá perfeitamente impugnar a decisão nas instâncias superiores, apontando os eventuais erros da sentença.

Não é necessário que o réu saiba os argumentos de eventual voto ven-cido para que possa interpor o recurso ou exercer a ampla defesa.

Não há, portanto, qualquer ofensa à ampla defesa.

Inexiste também violação ao princípio da publicidade, tendo em vista que a decisão do colegiado será regularmente publicada. Ademais, o interesse social na proteção da independência do Poder Judiciário e da segurança dos magistrados recomenda o sigilo do voto divergente sendo, neste caso, mínimo o sacrifício à publicidade em prol da segu-rança dos juízes. (CAVALCANTE, 2012)

Nesse mesmo entendimento, pode-se dizer ainda que também não há ofensa ao princípio do juiz natural, uma vez que é o próprio juiz da causa quem

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convoca o colegiado e deste faz parte. E assim salienta Vladimir Passos de Freitas:

Nenhuma inconstitucionalidade existe nesta inovação legal. Não há que-bra ao princípio do juiz natural, porque a constituição do colegiado não terá por objetivo afastar o juiz da causa. Ao contrário, dele será a inicia-tiva. E nem ofensa ao princípio da ampla defesa, porque tudo se passará como antes, apenas que decidido por três e não por um. Em tese, a decisão será mais discutida, o que é vantajoso para o infrator. (FREITAS, 2012).

Portanto, não há que se falar na figura no “juiz sem rosto”, tendo em vista que o colegiado é composto por meio de sorteio eletrônico de juízes que tenham competência criminal, em primeiro grau de jurisdição, e serão de-vidamente identificados, de forma a dividir a responsabilidade pela decisão a ser proferida. O fato é que a Lei 12.694/12 visa, além de resguardar a vida e a integridade física de magistrados, ainda preservar a independência dos mesmos, perante os possíveis riscos de julgar membros de organizações criminosas, prin-cipalmente quando as decisões forem desfavoráveis a estes.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O combate ao crime organizado é um tema que está presente não apenas na esfera jurídica, mas também no cenário midiático, estampando capa de revistas e jornais, dada a relevância dos seus efeitos na sociedade como um todo. É perceptível a evolução e proliferação das organizações criminosas tanto no âmbito nacional quanto internacional. Não se trata tão somente do cometimento de crimes, mas sim da dimen-são que esses grupos possuem e o que representam, tendo por base a complexidade da sua estrutura e a dificuldade que se tem para investigar a forma de funcionamento.

A criminalidade organizada surgiu a partir de movimentos populares, e desde sempre, confrontava o Estado, seja em resposta às arbitrariedades praticadas por este, seja em razão da falta de amparo ou até da sua própria omissão. O fato é que indivíduos que, inicialmente, se agrupavam eventualmente para a prática de cri-mes, em coautoria ou participação, tornou-se uma realidade recorrente. Com o tem-po, as organizações criminosas passaram a adquirir peculiaridades próprias, como estabilidade, estrutura, hierarquia e atividades, de certo modo, profissionalizadas.

Predominantemente, entre as várias características do crime organiza-do, o objetivo passa a ser o lucro, mediante a prática de ilícitos. Por isso, fala-se em “empresas do crime”, no sentido de que é esse tipo de ganho econômico que financia e mantém o grupo criminoso. E, mais do que isso, a sua estrutura hie-rarquicamente rígida, com integrantes que possuem funções específicas desig-nadas, além de pessoas que estão do topo da chamada “pirâmide” e que geral-mente não são identificadas, viabilizou o aperfeiçoamento da prática de delitos.

Vale dizer que a existência dessa forma de criminalidade caracteriza-se

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também pela simbiose com o Poder Público, que facilmente é corrompido para se omitir e não fazer frente às organizações criminosas. Ademais, há de fato um modus operandi, com planejamentos e estatutos próprios, em que se prevalece a lei do silêncio, sendo constante a imposição de intimidação e violência.

Quanto ao Brasil, verifica-se que maiores organizações criminosas, Pri-meiro Comando da Capital e Comando Vermelho, acabam por fazer o papel do Estado, satisfazendo as necessidades da população nas periferias e favelas em troca do apoio de moradores. Esse é o “assistencialismo”, cujo objetivo é, acima de tudo, garantir uma forma de impor respeito a essas pessoas, de modo que membros da facção não sejam denunciados. Ocorre que o crime organizado não se restringe às favelas, uma vez que reiteradamente se descobre a participação de juízes, políticos e policiais envolvidos na atuação das organizações criminosas.

Portanto, a dimensão da criminalidade é muito mais complexa e muito maior do que parece. Essa realidade, cada vez mais, como um “poder paralelo” e que parece fugir ao controle do Estado, se tornou uma ameaça à coletividade. Diante disso, houve a iniciativa de criar mecanismos e procedimentos diferen-ciados para investigar as atividades ilícitas praticadas pelos grupos criminosos, e mais do que isso, na tentativa de desmantelamento dessas estruturas.

A finalidade, então, é a investigação e a colheita de provas, de maneira eficaz, tendo em vista que os meios comuns, perante um fenômeno como este, se mostram obsoletos e incapazes de apurar todos os fatos e elementos envolvidos. Bus-cam-se mecanismos hábeis a se adaptar ao constante crescimento e evolução do crime organizado. Nesse sentido, muitos desses mecanismos acabam flexibilizando garan-tias dos investigados ou acusados, para se conseguir atingir o resultado almejado.

Não obstante o resultado eficaz que se possa ter com a utilização de métodos distintos e especializados na persecução penal, é necessário saber os limites e parâmetros constitucionais para que haja a observância da legalidade. Em cada caso concreto, há que se analisar, primeiramente, a insuficiência de outros meios, a real necessidade da medida, a probabilidade do seu êxito, assim como a sua proporcionalidade diante da situação.

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NEOCONSTITUCIONALISMO E O NEOPROCESSUALISMO

Walquirya Da SilVa ValtEr

Graduanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

ruy alVES hEnriquES Filho

Professor e Magistrado. Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (1995). Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Fundamentais e Processo Civil. Mestre pela Univer-sidade Federal do Paraná. Doutorando pela Universidade de Lisboa.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Commom Law e Civil Law. 3. Neoconstitucionalismo. 4. Neoprocessualismo. 5. Considerações Finais. 6. Referências.

RESUMO

Em decorrência do instituto do neoconstitucionalismo, vimos cria-rem-se novos paradigmas, modos de interpretação, criação e aplicação da lei. A abordagem deste tema será trabalhada em cima dos princípios fundamentais, bem como na medida em que estes se refletem no devido processo legal, tendo por finalidade assegurar a eficácia e a efetividade no Poder Judiciário. Em de-corrência dessa nova roupagem da Constituição de 88, surgiu o que chamamos hoje de neoprocessualismo, o “novo processo”, que hoje, tanto o quanto antiga-mente, deve seguir as regras e princípios constitucionais, em cada uma de suas etapas de procedimento.

Palavras-chave: neoconstitucionalismo; neoprocessualismo; expansão jurisdi-cional; tutela jurisdicional efetiva.

ABSTRACT

As a result of the institute’s neoconstitutionalism, we are creating new paradigms, ways of interpretation, creation and enforcement. Addressing this issue will be worked upon fundamental principles, and insofar as these are re-flected in the due process of law, which aims to ensure efficiency and effecti-veness in the Judiciary. Due to this new version of the Constitution of 88, came what we now call neoprocessualism, the “new process”, which today, as much

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as formerly, must follow the constitutional rules and principles in each of its stages of procedure.

Key-words: neoconstitutionalism; neoprocessualismo; expansion court; effecti-ve judicial protection.

1. INTRODUÇÃO

A seguir, falaremos a respeito do instituto da civil Law, aonde encon-traremos a base do direito codificado, instituto este adotado pelo Brasil.

Para solidificar o conhecimento e o entendimento do instituto do Ne-oconstitucionalismo, abordaremos também acerca da Constituição de 1988, sua criação, sua idéia fundamental de limitação do poder estatal e demais garantias.

Ainda, passaremos pelo instituto do positivismo jurídico, que traba-lha com a idéia do direito como ciência, sua aplicação formal, deixando de lado a visão valorativa de sua aplicação, trazendo-nos a idéia da lei positivada. Também, passando pelo instituto do neopositivismo, no qual abordaremos a nova forma de aplicação da lei, agora não mais apenas de forma lógica, mas cumulando-se com a interpretação e compreensão do texto literal, ressaltando os direitos fundamentais como uma das fontes primárias do direito.

Abordaremos, mais especificamente, sobre dois princípios contidos no artigo 5º da Constituição de 1988, passando pelo princípio da inafastabili-dade jurisdicional, que mostrará o direito do cidadão ao amplo acesso ao poder judiciário, bem como, uma prestação jurisdicional adequada; e pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva, garantismo proporcionado pelo Estado constitu-cional de direito.

No que se refere ao instituto do Neoprocessualismo, falaremos sobre o princípio do devido processo legal, criado nas instituições inglesas, mas que no Brasil surgiu com a promulgação da Constituição de 1988, princípio este que deverá ser respeitado amplamente do Poder judiciário, Poder Legislativo e até mesmo no Poder Executivo, objetivando a limitação da arbitrariedade.

Ainda, passaremos pelos princípios da Proporcionalidade e Razoabi-lidade, os quais visam a adequação da aplicação das leis, quando do confronto destas no caso concreto, que se dará por meio do uso da ponderação, sobrepondo os direitos fundamentais, uns sobre os outros, em grau de importância.

Nesse contexto, a finalidade principal é levar ao leitor deste trabalho a evolução história da aplicação do direito no ordenamento jurídico brasileiro, tra-zendo o importante papel dos princípios criados em decorrência da Constituição de 1988, ainda, nos insurgindo acerca da conjunção entre o Direito Constitucional e Direito Processual, a fim de demonstrar as novas formas de metodologia jurídica.

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2. COMMOM LAW E CIVIL LAW

Adotado por muitos países, como por exemplo, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá entre outros, o instituto da commom law trata das questões do caso concreto mediante a jurisprudência, conforme entendimento de alguns doutrinadores, fornecendo maior previsibilidade ao jurisdicionado, proporcio-nando-lhe estabilidade e tranquilidade. Considerando não haver fato notório de sua adaptação, ou ruptura, ou criação, podemos identificar neste instituto uma atualização contínua, tendo em vista sua constante progressão, se podemos assim dizer, uma progressão perfeita, pois sempre deve estar compatível com a sociedade. Evidentemente, dentro deste sistema existe a flexibilização, ainda que ele seja compatível com as carências da sociedade, a própria sociedade passar por mudanças, sejam elas de cultura, conflitos ou necessidades, exigindo um direito correspondente.

Em sua obra o autor René David, realiza uma pequena crítica ao ins-tituto da commom law, definindo sua finalidade:

A commom law não se apresenta como um sistema que visa realizar a justiça: é mais um conglomerado de processos próprios para assegu-rar, em casos cada vez mais numerosos a solução do litígio. (DAVID, 2002. p.365).

O papel dos precedentes vinculantes é tornar um direito igualitário, fazendo com que as decisões atuais sejam julgadas da mesma forma que outras causas semelhantes. Aos juízes caberá julgar suas decisões conforme os prece-dentes vinculantes e, ainda que tomem por base e fundamento a lei escrita, terão de usar da mesma lei já usada por outros juízes, ou seja, não haverá subjetivida-de, ainda que o julgador não concorde com a decisão vinculante, deverá julgar de acordo com esta.

Se existe algo que a tradição inglesa deixou como marco em sua histó-ria, é a sua fase de evolução progressiva pela afirmação dos direitos fundamentais individuais. A exemplo, a bill of rights (declaração de direitos realizados pelo parlamento inglês) é um documento que reorganiza, restabelece e reforça os di-reitos fundamentais que não podem ser violados. É o direito “maduro” dos ingle-ses, uma nova declaração de direitos, direitos individuais, direitos fundamentais naturais, que não possuem vínculo com a esfera estatal, é a liberdade, igualdade, propriedade e etc. dos indivíduos, direitos e interesses privados.

Diferentemente da commom law, o instituto da civil law trás o direi-to positivado, codificado. Originário do direito romano, a partir da Revolução Francesa, onde nasceu este tipo de raciocínio jurídico. O sistema da civil law

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deixa os costumes e a jurisprudência em segundo plano, tornando o direito ma-terial de forma pré-existente, no mecanismo da codificação.

No entendimento do autor Igor Raatz, o instituto da civil law, veio para resolver o problema da “certeza jurídica” dentro do direito, assim vejamos em seu texto publicado na Revista do Processo:

Já foi dito que o problema da certeza do direito pretendia ser resolvi-do na tradição do civil Law através de codificação. Isso é, em parte, verdadeiro. No direito germânico, no qual a codificação ocorreu pos-teriormente, também o positivismo científico cumpria essa missão. Essa necessidade já vinha estampada na obra de Svingy, para quem, o direito, por sua intima condição, deve antes de tudo alcançar o mais alto grau de certeza, e a esta deve acompanhar uma uniforme aplica-ção.(RAATZ, 2011, p. 185)

Da mesma forma que o sistema da commom law, o instituto da civil law buscava pela paz e a igualdade na sociedade, pois acreditava-se que com a predominância da lei, haveria a garantia dos direitos dos homens. A partir de então é que surgiu a idéia da repartição dos poderes, não existindo centraliza-ção, mas sim a unificação de forças equilibradas e ligadas entre si, cada qual com sua competência.

De fato, a igualdade estava entre as principais idéias encampadas pela legislação concebida durante o período revolucionário francês liberté, egalité et fraternité. Estas idéias estava refletidas nas leis escritas e os tribunais deviam aplicar esta lei aos casos concretos, jamais for-mulando novas regras. Entendia-se que o juiz não podia interpretar os textos legais, devendo-se limitar a aplicá-los aos casos, pois o que se tenha é que, pela via interpretativa, pudesse ser distorcido o texto. (WAMBIER, 2009, p. 130)

No instituto da civil law também existe a função dos precedentes, no caso mais específico aqui em nosso país, temos a lei codificada, bem como a ju-risprudência que serve de auxílio para a interpretação no caso concreto, quando a lei deixa “falhas” na sua previsão. Insurgindo-nos à uma mista “confusão” dos princípios da commom law e civil law, pois indiretamente o poder judiciários usa dos dois institutos para suas decisões.

Como boa conclusão acerca dos “mistos” de influências causadas pelos dois institutos, dentro do atual estudo de direito, podemos citar as sábias palavras do autor Igor Raatz, que em seu texto pôde resumir e elucidar os benefícios trazidos:

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É inegável que, em razão da formação histórica e jurídica experimen-tada pelo commom Law e pelo civil Law, cada qual apostou, ao seu modo, em formas distintas para garantir a certeza do direito, ideal perseguido por ambas as tradições. No entanto, o mecanismo esco-lhido pela civil Law – a codificação - não obteve o sucesso esperado. E, apesar das diferenças e aproximações entre as duas tradições, nin-guém duvida que também no civil Law a integridade e a coerência do direito são imprescindíveis, sendo inadmissível que as decisões dos Tribunais modifiquem-se ao sabor do vento. Portanto, uma vez que a segurança jurídica um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, não há nenhum problema em se buscar no respeito aos pro-cedentes uma maneira (apenas uma de tantas) de promovê-la. Não há, pois, uma incompatibilidade necessária entre civil Law e precedentes. Todavia, ainda é imprescindível muita reflexão, além das tentativas legislativas de vinculação obrigatória e de estandardização do direito, para que se possa trabalhar adequadamente com precedentes no Brasil sem comprometer o direito e a democracia. (RAATZ, 2011, p. 187)

Portanto, neste sentido, podemos enxergar além da incompatibilida-de, reconhecendo como os dois institutos, de certa forma, se completam e, ainda poderão originar uma nova forma de aplicação do direito.

3. NEOCONSTITUCIONALISMO

Para entendermos melhor acerca do surgimento do Neoconstitucion-lismo, faremos um breve apanhado de alguns elementos e pressupostos de seu surgimento, assim vejamos na obra de Eduardo Ribeiro:

Para que o neoconstitucionalismo seja alcançado, alguns pressu-postos, oriundos da afirmação do constitucionalismo, devem estar, necessariamente, presentes. Sem esses pressupostos sequer se pode falar em Estado Constitucional de Direito. Ricardo Guastini organi-zou sete condições para que se verifique a constitucionalização do direito. As três primeiras condições, que chamamos de pressupostos, são de natureza formal, a saber: uma constituição rígida, a presen-ça de uma jurisdição constitucional e a força vinculante da Consti-tuição. Esses três pressupostos já se encontravam presentes na for-mação do constitucionalismo. Aos pressupostos formais de Guastini acrescentamos a supremacia da constituição. As outras condições são de natureza material: a aplicação direta das normas constitucio-

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nais, a sobreinterpretação, a interpretação conforme a Constituição e a influência da Constituição sobre as relações políticas. (CAMBI, 2011, p.73)

Assim, será necessário abordar acerca do surgimento do Neoconsti-tucionalismo, algumas de suas ferramentas e suas conseqüências dentro do que chamamos de Neoprocessualismo.

Preliminarmente, vale ressaltar que uma das características do posi-tivismo jurídico, ferramenta no Neoconstitucionalismo, é o reconhecimento do direito como uma efetiva ciência, deixando de lado o caráter valorativo de sua aplicação ou sua repercussão emotiva. O direito será estudado como uma junção de fatos, assim, fazendo com que esta ciência, como tantas outras, seja estudada de modo formal. Tendo em vista o direito ser considerado um “fato” e não um ju-ízo de valor entre “bom” ou “mau”, quando da sua aplicação, podemos dizer que este mesmo direito nada mais é, do que o meio de coação dos poderes, delegando direitos e deveres, e sancionando quando lhe cabe. Assim, trata Noberto Bobbio:

(...) o considerar o direito como fato leva necessariamente a conside-rar como direito o que vige como tal numa determinada sociedade, a saber, aquelas normas que são feitas por meio da força. (BOBBIO, 1995, p.132) No decorrer histórico do surgimento do positivismo jurídico, podemos

reconhecer como fonte de direito a lei positivada, sendo a legislação fonte su-perior do direito, a codificação trouxe a identificação plena do direito com a lei. Ainda que a ciência do direito seja um ordenamento complexo, no qual existem várias fontes para sua aplicação, no positivismo jurídico fica clara a preeminência da lei como sua maior qualificadora, instituto este decorrente da Civil Law.

Assim consta na obra de Eduardo Cambi:O modelo de codificação ressalta ao monismo jurídico (e, consequen-temente, a sistematicidade e autoridade), a soberania estatal, a racio-nalidade dedutiva (as soluções particulares são deduzidas às regras gerais, seguindo interferências lineares e hierarquizadas) e, por fim, a crença do controle do futuro (a lei anteciparia um estado de coisas possível e considerado preferível, para chegar a um porvir melhor). (CAMBI, 2011, p. 80)

O racionalismo fundacionista, faz com que a sociedade acredite na ampliação da função do legislador, na capacidade de unificação de todo o ordenamento. Assim, unificando e tornando o direito igualitário

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e geral, sem haver privilégios por meio do Estado. Nesta mesma linha de pensamento, discorre Eduardo Cambi: “Para o positivismo jurídico, o direito é completo, sem lacunas, sem antinomias, sem ambiguidade e coerente.” (CAMBI, 2011, p.81) A teoria da completude do ordenamento faz com que o direito positivado traga segurança jurídica.

Ainda, no que se refere à codificação e o papel dos julgadores dentro do positivismo jurídico, segundo Eduardo Cambi:

Tratava-se, também, de uma reação ao Ancien Régime, pois a codifi-cação visava prevenir o arbítrio estatal contra possíveis inovações judi-ciais. O juiz, portanto, deveria ser neutro aos interesses em jogo e aos valores plasmados no Código, sendo considerado simplesmente como sendo La bouche de La loi (a boca da lei). A sentença deveria subsumir--se, direta e automaticamente, à lei para que, desta forma, ficasse mais fácil controlar a atividade jurisdicional. (CAMBI, 2011, p. 85)

No ordenamento jurídico haverá hierarquia entre a aplicação das nor-mas, considerando que estas não estão no mesmo plano, haverá subordinação de uma sobre as outras. À exemplo, no nosso ordenamento jurídico, no qual temos a supremacia da Constituição Federal, hierarquicamente superior às leis infraconstitucionais. Conforme já exposto anteriormente, temos a ciência do direito como uma junção de fatos, desse modo, formando-se um ordenamento.

Segundo entendimento de Norberto Bobbio, partindo-se do princípio de que a norma jurídica está atrelada à idéia legalista-estatal, na qual teremos o Estado como única fonte proveniente do direito, tendo por conseqüência que a lei é o resultado da manifestação do poder legislativo do Estado, podemos, então, reconhecer a teoria imperativista da norma jurídica. Assim, discorre o autor:

(...) o positivismo jurídico considera a norma como um comando, for-mulando a teoria imperativista do direito, que se subdivide em nume-rosas subteorias, segundo as quais é concebido este imperativo: como positivo ou negativo, como autônomo ou heterônomo, como técnico ou ético. Há, em seguida, o problema das “normas permissivas”, isto é, se estas normas fazem manifestar em menor grau a natureza impe-rativa do direito; e, enfim, trata-se de estabelecer a quem são dirigidos os comandos jurídicos, de onde deriva o problema dos destinatários da norma.(BOBBIO, 1995, p.132)

Na eminência do positivismo jurídico, os direitos fundamentais eram acessórios, não eram providos de normatividade, e aplicáveis quando os cos-tumes ou a analogia não preenchiam as lacunas da lei positivada. Ainda que

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criado para evitar a arbitrariedade dos julgadores, o positivismo jurídico deixou insatisfação no que se refere aos casos de ausência de um padrão normativo prévio, cabendo aos juízes julgar da melhor forma que lhe parecessem. Assim, deu-se origem ao que chamamos hoje de discricionariedade judicial.

Ainda, vale-se ressaltar, acerca da decadência do regime do positi-vismo jurídico, o qual se deu em função da derrocada de regimes autoritários, tais como facismo e nazismo, tendo em vista que estes pregavam pelo regime jurídico em sentido formal, sem aplicação dos valores éticos.

Decorrente do instituto do positivismo jurídico, o neopositivismo vem para trazer uma nova “roupagem” à forma de interpretação, compreensão e aplicação do direito, com base na Constituição.

No neopositivismo a norma jurídica não terá sua compreensão apenas em um procedimento lógico, terá sua interpretação além do que dispõe o dispositivo legal, havendo uma avaliação do texto literal, distinguindo seus diversos sentidos.

Diferentemente do positivismo jurídico, no neopositivismo, os direi-tos fundamentais passam a ter força normativa dentro da Constituição, firmando uma ordem objetiva de valores, deixando de apenas preencher secundariamente as lacunas da lei, passando a ser fonte primária de direito.

Os princípios estabelecem a preservação dos direitos fundamentais e ainda, asseguram o cumprimento do papel do estado em promover e defender os direitos fundamentais do cidadão. Conforme obra de Eduardo Cambi, os princípios possuem caráter deontológico e teleológico:

(...) por conterem normas imediatamente finalísticas (sendo que ape-nas, imediatamente, preocupam-se com as condutas), estabelecem fins a serem atingidos pela promoção de bens jurídicos (estados de coisa), que impõem condutas necessárias para a sua preservação ou realização. Logo, possuem caráter deontológico (porque estipulam razões para a existência de obrigações, permissões ou proibições) e teleológico (porque as obrigações, permissões e proibições decorrem dos efeitos advindos de determinado comportamento que preservam ou promovem determinado bem jurídico).(CAMBI, 2011, p.89)

Os direitos fundamentais enquadram-se tanto dentro dos direitos sub-jetivos, mediante interpretação, quanto ao direito objetivo de valores, imputando normatividade. Assim, regras e princípio se completam, gerando aqui a segurança jurídica, diferentemente do instituto do positivismo jurídico, quando na prática não funcionava desta forma. Esta junção faz com que regras organizem a estru-tura do ordenamento, e os valores subjetivos incutidos na norma, idealizem a tão esperada justiça nas decisões do caso concreto. A criação de um sistema jurídico

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satisfatório aos que fazem uso da tutela jurisdicional será possível quando se en-contrar um equilíbrio entre as regras e princípio, tornando o direito previsível, e da mesma forma previsível. Portanto, esta nova forma de interpretação dentro do neopositivismo, trás um novo mecanismo de segurança jurídica.

O neoconstitucionalismo reclama uma nova teoria da norma, que pos-sibilite a conjugação de regras e princípios, bem como uma nova teo-ria da interpretação jurídica que não seja puramente mecanicista nem, tampouco, absolutamente discricionária, em que os riscos que com-portam a exegese da Constituição sejam suportados por um esquema plausível de argumentação jurídica.(CAMBI, 2011, p.90)

Ainda, seguindo o entendimento de Eduardo Cambi, o positivismo filosó-fico trouxe inúmeras conseqüências ao formalismo jurídico e processual, vejamos:

a) o direito distanciou-se da moral (vale dize, não precisa haver conexão necessária entre o que é e o que ele deve ser), por estar fundado na realidade objetiva e distanciado de especulações filosóficas; b) deveria ser fundado em juízos de fato, baseados no conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que pudessem representar uma tomada de posição quanto à rea-lidade; c) o sujeito deveria ser neutro, por que o direito seria um objetivo (não uma criação), uma vez que era concebido com um conjunto de con-ceitos que deveriam existir independentemente dos casos concretos ou de quem tivesse de julgá-los, possuindo o valor intrínseco sem necessitar de correspondência com a realidade.(CAMBI, 2011, p.114)

Tais assertivas deram origem, ao que o doutrinador chama de “forma-lismo jurídico”, afastando a aplicação do direito do cunho social e moral, sendo uma ferramenta de aplicação em um sistema fechado, tornando-se procedimen-tos lógicos, em relação à normas pré-existentes, gerais e abstratas.

O que o direito no neopositivismo retrata em sua nova interpretação, é a ausência deste formalismo criado no positivismo jurídico. Portanto, no neo-positivismo, a lei aplicada fará jus ao conteúdo, valorando princípios e direitos fundamentais de acordo com a Constituição, deixando-se o caráter coercitivo e restrito do acesso à justiça.

Segundo Cambi:

O neoprocessualismo procura construir técnicas processuais voltadas a promoção do direito fundamental à adequada, efetiva e célere tutela jurisdicional. Para tanto, é indispensável enfrentar o problema do fe-

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tichismo das formas. O apego exagerado à forma cria obstáculos não razoáveis à utilização do processo como mecanismo de promoção de direitos fundamentais.(CAMBI, 2011, p.116)

Assim, caberá aos operadores do direito encontrar o equilíbrio entre a equação do mecanismo, vindo da mera aplicação da norma pré-existente em sentido, bem como, a aplicação de princípios e direitos fundamentais, com va-loração social e moral, dando maior oportunidade de criação ao que podemos chamar de “justiça”, chegando ao que hoje se chama formalismo valorativo.

Dentro da nova visão do neoprocessualismo e neopositivismo, o di-reito e a valoração moral deixam de ser separados rigidamente pelo formalismo jurídico, dando-se maior importância ao conteúdo da norma.

Em sua obra, Eduardo Cambi estabelece a relação entre direito e moral:

A previsão de direitos constitucionais impôs uma nova relação entre o direito e a moral. Os princípios e valores, contidos na Constituição (especialmente a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a liberdade e a igualdade), abriram uma via de penetração moral no direito positivo. Isto é possível quando se considera os direitos fun-damentais como princípio. Logo, direitos fundamentais, concebidos como princípio, são válidos enquanto correspondem às exigências morais sentidas em um período específico, não podendo ser abolidos (são cláusulas pétreas, conforme o artigo 60, § 4º, IV, da Constituição Federal-1988).(CAMBI, 2011, p.135)

Portanto, a partir da visão do neopositivismo, a aplicação das normas será através da ponderação do julgador, dentro do equilíbrio da relação entre direito e valoração moral.

No que se refere ao Princípio da Supremacia da Constituição, te-mos que esta é criada por um poder constituinte originário, nenhum outro poder é livre e soberano, uma norma jurídica que não tem limite por ne-nhuma outra norma jurídica, em decorrência, as outras leis são criadas com base na constituição, estabelecendo todas as normas formais e materiais.

Dentro da evolução do Neoconstitucionalismo, a supremacia da constituição é de importância fundamental, pois neste “novo instituto” que se encontra a força da normatividade dos direitos e garantias fundamentais, assim, todo o restante do ordenamento jurídico será submetido à esta normatividade.

Acerca da obra de Eduardo Moreira, a supremacia da constituição é um dos pressupostos para formação do novo estudo do

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Neoconstitucionalismo:

A supremacia da constituição também é um pressuposto de constitucionalismo, a verdadeira razão de existir, um documento superior, diferenciado dos demais por forma e matéria. (...) É elemento pressuposto ao Estado, sua norma de organização suprema, a Constituição, rege o ordenamento jurídico e o estatuto político. A supremacia da Constituição sequer é princípio; hoje é a razão jurídica da formação e funcionamento do Estado.(MOREIRA, 2008, p.76)

Para tanto, não haverá um Estado de Direito, se não houver respeito pelos direitos: individuais, políticos, e sociais. Os direitos fundamentais elencados no artigo 5º da Constituição Federal de 88 nos trouxeram inúmeros princípios antes não existentes, considerando que as constituições anteriores eram consideradas por alguns doutrinadores apenas como uma “carta de intenções políticas”, hoje, em nosso ordenamento jurídico brasileiro podemos dizer que temos uma constituição revestida de caráter jurídico, e que possuímos uma hierarquia entre as normas, sendo estas decorrentes da supremacia da Constituição. A partir da nova constituição, vimos a prevalência pela igualdade dos cidadãos, pela seguridade e inviolabilidade de seus direitos, em respeito à dignidade da pessoa humana.

Acerca da dignidade da pessoa humana, discorre Vicente Paulo:

A dignidade da pessoa humana assenta-se no reconhecimento de duas posições jurídicas ao indivíduo. De um lado, apresenta-se como um direito de proteção individual, não só em relação ao Estado, mas, também, frente aos demais indivíduos. Do outro, constitui dever fundamental de tratamento igualitário dos próprios semelhantes.(PAULO, 2008, p.88) Desde o advento da Constituição Federal de 88, são inúmeros os prin-

cípios e os direitos fundamentais assegurados, devendo estes serem obedecidos e seguidos pela lei infraconstitucional, bem como respeitados nas relações entre particulares ou entre particulares e entes públicos.

Independentemente de um marco histórico correto para designar o nascimento da proteção dos direitos fundamentais da pessoa humana, sabemos que seu surgimento visava estreitar os poderes de ação do Estado, em detrimen-to dos interesses do indivíduo.

Os primeiros direitos fundamentais têm o seu surgimento ligado à necessidade de se impor limites e controles aos atos praticados pelo Estado e suas autoridades constituídas. Nasceram, pois, como uma proteção à liberdade do indivíduo frente à ingerência

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abusiva do Estado. Por esse motivo – por exigirem uma abstenção , um não-fazer do Estado em respeito à liberdade individual – são denominados direitos negativos, liberdades negativas, ou direitos de defesa. (...) Somente no século XX, com o reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda dimensão – direitos sociais, culturais e econômicos -, os direitos fundamentais passaram a ter feição positiva, isto é, passaram a aexigir, também, a autuação comissiva do Estado, prestações estatais em favor do bem-estar do indivíduo. (PAULO, 2008, p.92)

São características dos direitos fundamentais: imprescritibilidade; inalienabilidade; irrenunciabilidade; inviolabilidade; universalidade; efetividade; interdependência e complementariedade. Por serem normas abertas, essas características dos direitos fundamentais não são taxativas, sofrem mutações e se aperfeiçoam conforme a época e as necessidades da sociedade.

Considerando que a constituição está no topo da hierarquia das normas, fundando-se na democracia, no Estado de Direito e na dignidade da pessoa humana, cabe à ela conservar e guardar os direitos dos cidadãos por ela tutelados, pois é através de uma norma superior que se assegura a efetividade da aplicação destes direitos.

Assim, entende Paulo Gustavo Gonet:

Correm paralelos no tempo o reconhecimento da Constituição como norma suprema do ordenamento jurídico e a percepção de que os valores mais caros da existência humana merecem estar resguardados em documento com força jurídica vinculativa máxima(...).(MENDES, 2011, p.53)Ainda no seguimento da idéia do doutrinador, os direitos funda-

mentais ao longo da história não são os mesmos, mas são adaptados con-forme a época. Nos dias de hoje o autor classifica os direitos fundamentais em três gerações.81

No primeiro artigo da constituição, já podemos identificar al-guns dos princípios fundamentais do Estado, assim extraindo a forma de federa-ção na forma do Estado, a república como uma forma de governo, e ainda, toma

81 sendo elas: o primeiro, originário das Revoluções francesa e americana, objetivando a limitação dos poderes do Estado, por sua não intervenção nos aspectos da vida pessoal do indivíduo, a prevalência pelo princípio da liberdade. A segunda geração objetiva preliminarmente o direito de igualdade entre os cidadãos, agora nãos mais requerendo a ausência da participação do Estado, mas sim que este intervenha de maneira positiva, assegurando-lhes os chamados “direitos sociais”, tais como saúde, educação, segurança e etc. Já os de terceira geração, é a junção destes direitos, são os chamados direitos coletivos, buscando o bem estar social para todos, a paz, e a preservação de qualidade de vida para todos.

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o regime democrático como seu regime político, enfatizando o mecanismo de poder, da vontade que emana do povo.

Ainda, vale ressaltar que os direitos fundamentais, embora criados para impor limitações aos poderes do Estado, não regulam apenas a relação entre particular e ente público, mas como também engloba todo o âmbito entre particulares.

No enfoque do Neoconstitucionalismo, segundo Eduardo Ribeiro, os prin-cípios “agora são normatizados, axiológicos e positivados, os princípios são o coração das Constituições contemporâneas.” (MOREIRA, 2008, p. 94)

Transcrito no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal de 88, o princípio da inafastabilidade do judiciário, também denominado como “prin-cípio da inafastabilidade da jurisdição” e “princípio do amplo acesso ao poder judiciário”, ou até mesmo como o “direito da ação”, vem assegurar aos cida-dãos o direito de ser reconhecido o seu pleito perante o poder judiciário. Ainda, fixando a impossibilidade de que leis ou atos normativos infraconstitucionais violem tal princípio.

Conforme o entendimento de Vicente Paulo:

Trata-se de princípio relacionado à própria estrutura jurídico-política do Estado brasileiro, especialmente à independência entre os Poderes, obstando que o Legislativo ou o Executivo reduzam o campo de atu-ação do Poder Judiciário, mediante a edição de leis, medidas provisó-rias, enfim, atos que pretendessem excluir determinadas matérias ou controvérsias da apreciação judicial.( PAULO, 2008, p.144)

Vale ressaltar ainda, que este princípio está inserido no artigo 60, § 4º, da Constituição federal como cláusula pétrea, ou seja, não se admitindo mudan-ças nem mesmo pela via da emenda constitucional.

Dentro do princípio do direito à ação, discorre Danielle Pamplona:

Em princípios, admitia-se a autotutela dos interesses individuais em conflito. Mas desde que o Estado chamou para si o poder de dirimir conflitos, deve ser assegurado a todos o direito de ir até ele apresentar sua demanda, e principalmente, vê-la resolvida, tanto no plano proces-sual, quando no plano material. Se assim não ocorrer, está negado ao ci-dadão o direito de ver seu litígio resolvido. (PAMPLONA, 2004. p. 90)

Este direito fundamental, mesmo que expresso na Constituição, tam-bém conta com o mínimo de requisitos formais para a possível apreciação do judiciário, havendo a necessidade da postulação de um direito plausível, preen-chendo os pressupostos processuais e ainda, observando-se os institutos da de-

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cadência, prescrição e sua constitucionalidade. Ainda, devemos mencionar que depois de requerido o direito junto ao poder judiciário, observada a plausividade e condições da ação, o direito pleiteado terá limitações quanto a análise das tutelas antecipatórias e medidas cautelares, respeitando-se o princípio da razoabilidade.

O acesso à jurisdição não tem como pré-requisito o esgotamento da via administrativa para sua efetivação, contudo, quando o litígio estiver sobre a tutela do judiciário, não mais se admitirá sua resolução por via administrativa. Quando o sujeito de direito busca a tutela jurisdicional, tem como resultado a renúncia tácita do seu direito pela via administrativa.82

Conforme Vicente Paulo:

Quanto a utilização simultânea das vias administrativa e judicial, o Su-premo Tribunal Federal considerou constitucional previsão legal que es-tabelece que a opção pela via judicial implica renúncia tácita ao processo administrativo (Lei nº 6.830/1980, art. 38, parágrafo único). Entendeu a Corte Suprema que a presunção de renúncia tácita à possibilidade de recorrer administrativamente ou de desistência do recurso já interposto na esfera administrativa não implica afronta á garantia constitucional da jurisdição, mas sim regra de economia processual, que informa tanto o processo judicial quando administrativo.(PAULO, 2008, p. 146)

No direito moderno, temos a convenção de arbitragem, na qual as par-tes afastam o poder judiciário do conflito, a procura de um meio alternativo de jurisdição e julgamento, buscando um meio mais célere de resultado, contudo, muito mais custoso para quem os procura.

Humberto Dalla, o autor discorre em síntese toda a finalidade e atua-ção do princípio da inafastabilidade:

Não se trata, portanto, de mera garantia de acesso ao juízo (direi-to à ação), mas da própria tutela (proteção) jurisdicional (adequada, tempestiva e , principalmente, efetiva) a quem tiver razão. Em outras palavras, significa o próprio acesso à justiça. Frisa-se, no entanto, que este direito à prestação jurisdicional não é incondicional e genérico, sujeitando-se a condições da legislação processual e do direito subs-tantivo (legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pe-dido).(PINHO, 2008. p. 43)Á exemplo do autor e em conformidade com o que já fora exposto,

ainda que o cidadão tenha assegurado o seu direito ao direito de ação, existe

82 Uma exceção foge à regra, o direito desportivo, conforme previsão legal do artigo 16, § 1º da Constituição Federal, só terá análise de lide no poder judiciário na condição do esgotamento das vias administrativas

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a concordância na maioria da doutrina acerca de uma prestação jurisdicional cumulada com a efetividade, proporcionando ao jurisdicionado o acesso à jus-tiça adequada.

Já o princípio da tutela jurisdicional efetiva decorre da “preocupação” da constituição de 88 em garantir mais um dos direitos fundamentais do cidadão, pois, ainda que com a grande expansão do acesso jurisdicional o cidadão obtenha o reconhecimento do seu direito pleiteado, este necessita de uma prestação efeti-va. Conforme já dito anteriormente, os direitos fundamentais vieram com maior força na constituição brasileira de 1988, por inúmeros motivos, vieram para trazer uma aplicação mais justa da lei dentro do sistema de direito. De acordo com o autor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, o princípio da tutela jurisdicional efetiva, veio com a evolução de três aspectos importantes, assim discorre:

Três aspectos são importantes para melhor compreensão do problema. Em primeiro lugar, a ascensão dos direitos do cidadão em face do Estado absolutista, fator determinante para o surgimento do Estado Liberal, e de que é precursora no plano jurídico a teoria dos direitos subjetivos públicos de Jellineck. Depois o declínio do normativismo legalista, com a formação do Estado democrático de direito e a elabo-ração da teoria das normas de princípio, e o reforçamento dos direitos fundamentais constitucionais.(OLIVEIRA, 2008. p. 12)

Neste sentido, a teoria dos direitos subjetivos públicos, está dire-tamente correlacionada com a busca da igualdade formal, inserida na cons-tituição, na qual, dentro de um Estado moderno de direito, o cidadão é reco-nhecido como um sujeito de direitos, buscando mais que a concessão de sua pretensão jurisdicional, eis que esta não reflete um direito material objetivo. Sabemos que na maioria das vezes o resultado não é favorável para ambas as partes, contudo, teremos a convicção de que o direito será julgado em confor-midade com a lei, justo conforme o caso concreto e satisfativo juridicamente. No que se refere ao declínio do normativismo legalista, assumida pelo posi-tivismo jurídico, alterou-se a visão da aplicabilidade do direito, fazendo com que o processo de conhecimento tivesse maior importância para o julgamento, não se atrelando apenas as informações preliminares, assim, houve maior in-cidência de imprevisibilidade, dando a possibilidade de decisões conflitantes na aplicação do caso concreto.

Diante disto, podemos dizer que existe uma complementaridade, uma relação entre o direito constitucional e a história política.

Segundo Eduardo Cambi:

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Ressalta-se que o direito constitucional constitui o poder político e vice-versa. O Estado de direito exige um organização do poder polí-tico que, constituído conforme o direito constitucional, obriga o po-der político a se legitimar. A interpretação dos direitos fundamentais é exemplo disto, uma vez que, sendo a Constituição um documento político, é expressão de soberania, decisão política de um povo de se governar de determinada forma.(CAMBI, 2011, p. 212)

Para o autor a necessidade da seguridade dos direitos fundamentais no sentido de prevenção e promoção, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, ocorre em razão de uma verdadeira falha interna do Estado, que não pode pro-mover ao cidadão o mínimo existencial.

Problemas com a efetivação dos direitos fundamentais sociais são próprios de países, como o Brasil, onde o Estado não assegura o míni-mo essencial ao desenvolvimento das pessoas. Tal questão, por outro lado, não é tão problematizada para as condições de vida na Europa ou nos Estados Unidos, onde, havendo maior respeito ao mínimo so-cial contido nas necessidades básicas dos bens constitucionais fun-damentais, o direito procura muito mais assegurar a liberdade do que promover a igualdade.(CAMBI, 2011, p.216)

De acordo com o entendimento do autor, países de modernidade tar-dia, prevalecem-se das políticas de solidariedade e igualdade, por não haver evolução no Estado de direito sem prosperar o estado social.

Dentro da problemática de uma tutela jurisdicional efetiva, encontra-mos a instrumentalização do processo, a qual garante meios de organização e procedimentos, com a função de efetivar tal direito fundamental.

Segundo Eduardo Cambi, vejamos:A perspectiva constitucional dos direitos fundamentais garante o di-reito ao “justo” processo, isto é, não mais um processo estruturado formalmente (estático), mas entendido como garantia mínima de meios e resultados, uma vez que deve ser concretizada não apenas a suficiência quantitativa mínima dos meios processuais, mas também um resultado modal (qualitativo) constante.(CAMBI, 2011, p.216)

Nesta perspectiva, normatividade e efetividade aproximam-se por meio do garantismo proporcionado pelo Estado constitucional de direito. Tal garantismo proporciona técnicas idôneas, com a função de garantir o máximo grau de efetividade dos direitos e princípios fundamentais. Nas técnicas idôneas estão inseridos os direitos fundamentais de organização e procedimento, sejam

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para meios de controle da legitimidade constitucional, institutos processuais ou aplicação de regras e princípios processuais. “De nada adiantaria possibilitar o ingresso à justiça se o processo judicial não garantisse meios e resultados.” (CAMBI, 2011, p. 219) A organização e o procedimento promovem a tutela do direito processual, o qual dará complemento à eficácia do direito material. Assim, não poderá haver ausência de mecanismos processuais que impeçam a realização do direito substancial, evitando prejuízo à tutela do direito material.

De acordo com o autor:

A dimensão objetiva do artigo 5º, XXXV, Da Constituição Federal-1988 e , consequentemente, a sua eficácia irradiante sobre as leis (processu-ais) infraconstitucionais permite a construção de técnicas processuais adequadas, céleres e efetivas à realização dos direitos fundamentais, A ausência de regras processuais não é, pois, capaz de inviabilizara reali-zação do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, cabendo, na ausência da lei expressa, ao juiz suprir a omissão obstacularizadora à proteção dos direitos materiais.(CAMBI, 2011, p.222)

Por fim, para a consolidação da tutela jurisdicional efetiva, são neces-sários vários elementos, desde os poderes e deveres dos órgãos judiciais, até as melhores técnicas aplicáveis ao caso concreto.

4. NEOPROCESSUALISMO

Hoje, o Princípio do Devido Processo Legal, encontra-se no dentro do rol dos direitos e garantias fundamentais expressos na Constituição de 88, afir-mando um dos alicerces para o Estado democrático de direito. Visa a garantia de acesso à justiça, por meio de procedimentos (processo) adequados e justos. Se houver uma definição positiva deste princípio, podemos classificá-lo como garantia e segurança para o cidadão.

O autor Humberto Dalla trás uma breve definição acerca do princípio do devido processo legal:

Um conjunto de garantias constitucionais (ou o núcleo central da maio-ria das garantias processuais) destinadas a assegurar às partes o exercí-cio de suas faculdades e poderes processuais, bem como a legitimidade do exercício da jurisdição. Decorrem dele outros importantes princípios processuais, como o princípio do contraditório e o da ampla defesa, também consagrados em sede constitucional.(PINHO, 2008, p. 39)

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Originariamente, o princípio do devido processo legal, vem da ex-pressão “due process of Law”, criado nas instituições inglesas, decorrente do sistema da commom law, e é estabelecido hoje em nosso ordenamento no poder legislativo, poder executivo e poder judiciário.

Acerca do procedimento no legislativo, constata Danielle Pamplona:

A função precípua do Legislativo é a produção de leis. O princípio do de-vido processo legal, inscrito na norma do inc. LIV do artigo 5º de nossa Constituição, obriga o legislador a cumprir o rito procedimental para a feitura de uma nova lei. Assim é que o procedimento legislativo deverá ser respeitado, sob pena de inconstitucionalidade, ao não observar o adequado processo prescrito pela própria Constituição.(PAMPLONA,2004, p. 79)Além de encontrar-se no procedimento de criação da lei, o princípio

do devido processo legal, deverá ser respeitado no conteúdo de tal criação, as-segurando os direitos da coletividade, constitucionalidade da lei e justiça aos cidadão que fazem uso da tutela jurisdicional do Estado. Ainda, deverá ser apli-cável quando da edição das leis, assim, em conformidade com tal princípio, teremos afastada a arbitrariedade do legislador, fazendo com que a lei não seja resultado de eventual abuso do poder legislativo, ou decorrente de poder discri-cionário, assegurando sua generalidade.

No âmbito do Poder Judiciário, o princípio do devido processo legal, será mais individualizado, analisando-se o caso concreto.

O princípio do devido processo legal é termo amplo o bastante para permitir que o Poder Judiciário o preencha de significações, cação. Esta amplitude gera várias possibilidades de significações, tornando--o um termo de conteúdo indeterminado. Tal situações, todavia, não cede lugar para que o judiciário enfrente várias soluções possíveis para determinada situação. De fato, ao analisar as hipóteses que são colocadas a seu exame, a exigência de que elas estejam em confor-midade com o direito, sejam razoáveis e respeitem os princípios im-postos pelo texto constitucional, permite ao juiz chegar a somente um possibilidade aceitável dentro dos parâmetros de retidão e justiça naquele determinado momento histórico. Ainda que se queira afirmar que para o Judiciário há somente uma solução possível, aquela que efetivamente toma, tal situação somente pode ser defendida mediante a abstração de todo o processo decisório. De fato o juiz experimenta situações em que mais de uma saída lhe parecer possível. Entretanto, a leitura que aqui se faz é diversa. Se mais de um saída é possível, aquela tomada não é a única solução plausível por que foi a escolhida,

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mas, sim, por que era a mais Just e em maior conformidade com os princípios gerais do ordenamento.(PAMPLONA, 2004, p.82)

As palavras da autora definem perfeitamente a função de aplicação do princípio do devido processo legal dentro do poder judiciário, em conformidade com demais princípios, direitos e garantias constitucionais. Caberá ainda, por meio do Magistrado, a análise entre os direitos fundamentais, no que se refere ao direito material do princípio do devido processo legal, e quando do conflito de direitos e garantias constitucionais, deverá o Magistrado realizar juízo de valores, escolhendo o mais “justo” para aplicar ao caso concreto.

A aplicação do princípio do devido processo legal, caberá também em relação à atividade da Administração Pública, no âmbito do Poder Exe-cutivo. Sua aplicação se dará através da análise dos atos da administração pública, de sua legalidade, moralidade, bem como da própria atuação do agente administrativo.

Segundo a autora Danielle Pamplona, o devido processo legal, aplica-do no executivo é de suma importância, assim discorre a autora:

É através da observação da atividade da administração pública que mais se pode evoluir na aplicação do princípio do devido processo legal. Ora, em termos processuais, ele se aplica também nos proce-dimentos administrativos, sempre que importarem em privação de liberdade ou de bens. Em seu aspecto processual, representará a ga-rantia para o administrado em ser ouvido; em poder apresentar ampla defesa; em produzir provas; em ser a decisão da Administração pro-nunciada por órgão que atenda ao princípio do juiz natural; a não ser processado, julgado ou condenado por alegada infração às leis ex pos-tfacto; a paridade de armas entre Administração e administrado; di-reito à assistência judiciária, entre outros.(PAMPLONA, 2004, p.94)

O princípio do devido processo legal, também tem por finalidade a proteção do direito do cidadão, em detrimento do poder do Estado, para que este proporcione ao tutelado um processo razoável, dentro dos paradigmas da lei e não apenas por mera vontade superior. Para isto, é que dentro no nosso ordenamento jurídico temos o controle de constitucionalidade e normatividade das leis, submetendo a aplicação do direito à devida análise do caso concreto, não mais sob a visão sistêmica de mera aplicação da regra.

Da obra de Eduardo Cambi podemos interpretar:Para evitar resultados equivocados, porque em direito não basta a so-lução ôntica, sendo imprescindível a análise do caso concreto, todo

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órgão judicial, valendo-se da garantia do devido processo legal, em sentido substantivo ou do postulado normativo aplicativo da propor-cionalidade, deve proceder ao controle incidental de constitucionali-dade.(CAMBI, 2011, p. 226)

Não haverá definição exata para o princípio do devido processo legal, pois se trata de um princípio abstrato, contudo a autora Danielle Pamplona, trás uma breve classificação em sua obra:

O devido processo legal informa nosso sistema jurídico. Como princí-pio, seu grau de abstratividade é alto. Entretanto, várias outras regras constitucionais o afirmam e exigem sua observância. Evita-se concei-tuá-lo, possibilitando assim àqueles que lidam com o Direito possam preencher seu conteúdo em concordância as ansiedades da socieda-de. Ele é, portanto, o princípio que informa todas as outras regras do ordenamento, influenciando os atos de interpretação e aplicação de cada uma delas, que dependerão da compreensão dele para que sejam aplicadas justamente.(PAMPLONA, 2004, p. 28)

Acredito que esta definição deixa muito clara a função do princípio do devido processo legal dentro no nosso ordenamento jurídico brasileiro, pois ainda que abstrato, tal princípio estará presente nos três poderes, bem como, será extensivo em toda a aplicação do direito.

No que se refere ao direito brasileiro, dentro do âmbito do Direito Constitucional, o princípio da proporcionalidade visa a adequação da aplicabi-lidade das normas, mediante conflitos e a fiscalização de constitucionalidade da criação de leis, frente a discricionariedade dos legisladores.

Existe grande divergência dentro da doutrina, quanto ao fundamento do princípio da proporcionalidade no direito brasileiro, para alguns seu sur-gimento deu-se em função dos direitos fundamentais, para outros, deu-se em decorrência do desenvolvimento histórico a partir do Poder de Polícia.

Segundo entendimento da obra de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Go-net, acerca da aplicação do princípio da proporcionalidade dentro dos poderes:

O princípio da proporcionalidade é invocado, igualmente, quando Po-deres, órgãos, instituições ou qualquer outro partícipe da vida consti-tucional ou dos processos constitucionais colocam-se em situações de conflito. Daí a aplicação de referido princípio nas situações de con-flito de competência entre União e Estado ou entre maioria e minoria parlamentar ou, ainda, entre o parlamento e um dado parlamentar.

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(MENDES, 2011, p. 248)

Para os autores, consideram-se elementos para o surgimento do prin-cípio da proporcionalidade:

A doutrina identifica como típica manifestação do excesso do poder le-gislativo a violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso (...), que se revela mediante contraditoriedade, incongruência e ir-razoabilidade ou inadequação entre meios e fins.(MENDES, 2011, p. 248)Segundo a doutrina, o princípio da proporcionalidade no Brasil teve

início em meio a várias decisões dos tribunais superiores, as quais demonstra-vam a precaução dos julgadores em adequar a aplicação das normas ao caso concreto e, fazendo-se do uso de ponderação.

No âmbito dos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade terá função diante da colisão entre tais direitos, dispondo-se à adequação de suas aplica-ções. Vale ressaltar que não haverá hierarquia entre os direitos fundamentais, contudo, haverá ponderação, bem como, poderá prevalecer um direito em detrimento do outro.

Nesta mesma perspectiva, entende Ruy Alves:

Assim, a solução deste conflito de direitos se dará por meio de um juízo de ponderação sobre os valores ou interesses, de modo a atingir uma conclusão sacrificando o mínimo de cada um dos interesses. Não se fala, portanto, em desprezar ou aniquilar um dos princípios, mas em precedência, prestigiando a realização de ambos. Dessa ponde-ração provém a relevância do princípio da proporcionalidade, como meio equacionador da colisão entre os direitos a ser utilizado pelo operador do direito.(HENRIQUES F., 2008. p. 208)

Ressalta-se que, em conformidade com a doutrina, haverá diferencia-ção entre a influência do órgão legislativo e as influências dos demais poderes. Sendo, por parte do órgão legislativo, a garantia constitucional a qual garan-te o direito fundamental, de forma abstrata, e por parte dos demais poderes, não caberá o controle abstrato, mas sim se os direitos fundamentais estão em harmonia com a Constituição. Para o doutrinador Dimitri, tais diferenciações correspondem à fases de procedimentos, nos casos das intervenções do órgão legislativo, serão trifásicas, e as intervenções de outros poderes, serão bifásicas.

No procedimento das intervenções do órgão legislativo:

a) definição e análise do objeto tutelado pelo direito fundamental (área de regulamentação e proteção) que é atingido pela medida le-

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gislativa (análise de parâmetro do controle de constitucionalidade); b) análise de medida legislativa como intervenção (ação ou omissão) estatal na área de proteção do direito potencialmente violado (análise do objeto do exame de constitucionalidade); c) análise da possibili-dade de justificação da intervenção em face da aplicação dos limites constitucionais.(DIMITRI, 2010, p. 176)

No procedimento bifásico de intervenção dos Poderes Executivo e Judiciário:

a) verificação do fundamento legal da medida interventora e de sua constitucionalidade (incluindo o exame de proporcionalidade); b) ponderação concreta, procurando definir se a medida administrativa ou judicial, embora baseada em normas não inconstitucionais, violam o direito fundamental por não satisfazer o critério de proporcionalida-de.( DIMITRI, 2010, p. 176)

Para os autores Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino, o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade possuem subprincípios, denominados: ne-cessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito. Tais elementos compõe a base para uma aplicação razoável e proporcional.

Ainda, segundo entendimento dos autores:

(...) em essência, o princípio da razoabilidade significa que, ao se ana-lisar uma lei restritiva de direitos, deve-se ter em vista o fim a que ela se destina, Oe meios adequados e necessários para atingi-lo e o grau de limitação e de promoção que ela acarretará aos princípios constitu-cionais que estejam envolvidos (adequação, necessidade e proporcio-nalidade em sentido estrito.(PAULO, 2008, p. 164)

Os princípios de razoabilidade e proporcionalidade, para alguns auto-res, são inerentes ao princípio do devido processo legal. Logo, servirão de res-paldo para a ponderação das decisões judiciais, cabendo a cada caso concreto uma aplicação de lei justa e proporcional.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Neoconstitucionalismo, enaltece a norma constitucional, e que com

a Constituição de 1988, pudemos enxergar a primazia pelo direito igualitário, instituto este, objeto dos sistemas tanto da civil law, como da commom law, aplicando-se a lei de forma justa aos tutelados jurisdicionados, portanto, como

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um dos objetivos centrais dos direitos fundamentais inseridos na Constituição. Percebeu-se, ainda, que a Constituição de 1988 teve um caráter trans-

formador no nosso ordenamento jurídico brasileiro, tratando-se de um instru-mento limitativo de poder, de ordem fundamental, por vezes de maneira à man-dar ou proibir (direitos e obrigações).

Conforme fora mostrado, verificamos que os direitos fundamentais representam o conteúdo mínimo para a devida elaboração e aplicação das leis no nosso ordenamento, pois sua eficácia atinge amplamente todo o ordenamen-to, bem como demais poderes.

É sabido, que é garantia dos cidadãos brasileiros, o direito ao reco-nhecimento de seus interesses perante o poder judiciário, o qual não poderá se eximir de sua função social, o que com uma amplitude dos princípios elencados em toda a constituição, garantem um maior acesso a justiça com a efetiva solu-ção de seus conflitos.

Ainda, que tal postulação junto ao poder judiciário obedecerá à um processo formal, respeitando os princípios do devido processo legal, evitando qualquer meio de arbitrariedade por parte dos julgadores.

Outrossim, entendemos que o Neoconstitucionalismo, aplicado no âm-bito do Direito Processual Civil, aumenta a gama de poderes aos magistrados per-mitindo assim uma maior efetivação processual no âmbito do primeiro grau de ju-risdição, aonde caberá ao magistrado indeferir de plano os pedidos que afrontam aos princípios da constituição. Em decorrência disto, teremos um procedimento mais célere, tendo em vista a morosidade do nosso poder judiciário.

Dentro da transformação do mundo jurídico, em decorrência do ins-tituto do Neoconstitucionalismo, o magistrado possuirá um papel de grande relevância no que se refere a defesa dos princípios Constitucionais, pois, caberá à ele a analise e aplicação das leis infraconstitucionais, de forma compatível com a Constituição, quando do confronto entre as mesmas. Ademais, nas hipó-teses de conflito dos direitos fundamentais, diante do caso concreto, caberá ao magistrado definir e valorar qual princípio será preponderante, de forma ativa, será o magistrado o protagonista.

Verificamos que o instituto do Neoconstitucionalismo tem por desíg-nio a busca pela eficácia constitucional, primordialmente no que se refere a consagração dos direitos fundamentais.

E, por fim, entendemos que com a constitucionalização do processo, o poder judiciário poderá trazer mais, e de forma mais extensa, a efetividade e a celeridade às suas decisões, cumprindo com a função social do judiciário, per-mitindo uma maior segurança jurídica e prestígio perante a sociedade brasileira.

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A GRAVAÇÃO CLANDESTINA DE CONVERSA TELEFÔNICA E A SUA UTILIZAÇÃO COMO MEIO DE PROVA JUDICIAL

RECORDING OF ILLEGAL TELEPHONE CONVERSATION AND THEIR USE AS A MEANS OF JUDICIAL PROOF

cláuDio DE Fraga83

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RESUMO

A Constituição Federal prevê uma série de garantias e direitos funda-mentais que orientam nossa sociedade e nosso sistema jurídico, tomando relevo os princípios que regem os pilares da legislação processual. O legislador cui-dou de resguardar o direito à prova, como direito fundamental, com a vedação constitucional quanto à utilização da prova ilícita. Às pessoas é garantida a possibilidade de demonstrar os seus direitos com base nos princípios da ampla defesa e do contraditório, podendo-se valer de uma série de meios de prova, contudo deve ser observado e respeitado o direito à intimidade, intrínseco a cada pessoa. A Constituição estabelece limites, quando proíbe a utilização de provas obtidas por meio ilícito, no entanto, a jurisprudência vem admitindo a possibilidade de utilização de alguns meios de prova obtidos sem a ciência da parte contrária, como a gravação telefônica, na medida em que seria a única forma de demonstrar o fato, sem que isso implique numa violação ao direito de intimidade da pessoa. Desta forma, doutrina e jurisprudência apresentam o princípio da proporcionalidade como meio de equacionar o problema, devendo ser analisado cada caso concreto em seus aspectos singulares, para que, após longa ponderação acerca do caso, possa o julgador aplicar adequadamente os princípios, e buscar fazer a justiça.

Palavras-chaves: prova ilícita, gravação telefônica, princípios, intimidade, proporcionalidade, ponderação.

83 Advogado. Professor da graduação no Curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA. Mestrando pelo Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Membro do Grupo de Pesquisa “Direito Empresarial e Cidadania no Século XXI”. 84 Procurador Federal. Professor do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA.

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ABSTRACT

The Federal Constitution foresees a series of guarantees and funda-mental rights that guide our society and our legal system, emphasizing the prin-ciples that conduct the pillars from the procedural legislation. The legislator took care of saving the right to proof, as a fundamental right, with the constitu-tional prohibition to use the illicit proof. To the people is guaranteed the possi-bility of demonstrating their rights based on the principles of wide defense and contradictory, being allowed to use a series of means of proof, however, must be observed and respected the right to intimacy, intrinsic to each person. The Constitution sets limits, when prohibits the usage of obtained proof by illegal means, nevertheless, the jurisprudence has been admitting the possibility of usage of some means of proof obtained without the lore of the opposite part, as the telephone records, in the way in that would be the only way to demonstrate the fact, without having an implication in a violation to the intimacy right of the person. This way, doctrine and jurisprudence present the principle of proportio-nality as a mean of solving the problem, each concrete case must be analyzed in its singular aspects, so that, after a long deliberation around the case, may the judge apply rightly the principles, and search for justice.

Keywords: illicit proof, telephone records, principles, intimacy, proportionality, deliberation.

SUMÁRIO: Introdução. 1 - A produção da prova judiciária e a Cons-tituição Federal. 2 - O direito à intimidade e a prova judiciária. 3 - A gravação clandestina de conversa telefônica e o seu valor probatório. Conclusão. Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Para regular a vida em sociedade e com a finalidade de estabelecer as bases políticas e sociais do Brasil, também visando tutelar os direitos básicos dos cidadãos, de uma maneira geral, a Constituição Federal tratou de enumerar uma série de disposições que visam resguardar os direitos primeiros, direitos estes que estão intrinsecamente relacionados com o bem-estar social da pessoa, sem se afastar de estabelecer os pilares que embasam o Estado brasileiro.

Dentre tais previsões, a Constituição Federal inseriu no ordenamento jurídico a proibição de utilização das provas obtidas por meios ilícitos, fazendo constar expressamente no rol dos direitos e garantias individuais, como se ve-

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rifica do inciso LVI85 do seu artigo 5º, que estabelece que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

Houve a preocupação do legislador em estabelecer limites na produ-ção da prova judiciária, justamente para que fossem observados e respeitados outros tantos direitos que poderiam ser lesados caso se ultrapasse determinados parâmetros. São lesões que podem abranger inclusive direitos personalíssimos também tutelados pela carta magna, como por exemplo, a dignidade da pessoa humana e sua própria intimidade.

A leitura do dispositivo acima citado pode ser feita de maneira conjun-ta com o previsto no inciso XII86 do mesmo artigo 5º da Constituição Federal, o qual prevê que é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações te-legráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial. Há uma preocupação do legislador em tutelar especificamente a produção da prova judiciária para evitar eventuais abusos.

Contudo, uma das tarefas do direito é desenvolver técnicas eficientes e adequadas para conhecer os fatos alegados que envolvem os pedidos e trazer ao processo elementos suficientes ao julgamento da causa, para verificação da verdade das alegações das partes, visando propiciar condições ao juízo para decidir a causa.

Disso resulta que a prova tem importância fundamental para que o objeto perseguido pela parte seja reconhecido. Ocorre que a parte, para efeti-vação do seu desiderato, por vezes realiza indiscriminada utilização dos meios de prova, dentre os quais alguns sofrem as vedações acima mencionadas. Em outras palavras, a pessoa apenas conseguiria comprovar o direito deduzido em juízo através da utilização de uma prova obtida através de meio ilícito.

Neste contexto, a utilização de prova obtida através de gravação te-lefônica toma relevo, diante da dificuldade da parte conseguir demonstrar em juízo os fatos alegados por outros meios de prova. Contudo, na produção da prova, a pessoa que foi ouvida clandestinamente, pode ser vítima de violação de sua intimidade, direito fundamental também resguardado pela Constituição Federal. Tal quadro demonstra um confronto de possíveis violações a direitos fundamentais. Ao mesmo tempo que a prova servirá de meio para que a pessoa demonstre o seu direito deduzido em juízo, a sua produção e uso poderá estar violando o direito à intimidade de outra pessoa.

Assim, o presente artigo pretende analisar em que medida a gravação clandestina de conversa telefônica pode ofender o princípio da intimidade e a sua possível aceitação num processo judicial como meio de prova. Visa-se traçar uma

85 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.86 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

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relação entre tais direitos de modo a trazer subsídios que demonstrem a existência ou não de violação à intimidade da pessoa e se será apta a servir de prova judicial.

O tema será abordado através da análise da doutrina, legislação e tam-bém da pesquisa de jurisprudência existente acerca da matéria, ressaltando que envolve questões que estão relacionadas com o cotidiano dos cidadãos e refere--se às bases da existência do Estado Democrático do Direito.

1. A PRODUÇÃO DA PROVA JUDICIÁRIA E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A parte no processo judicial tem o direito amplo de se manifestar e pleitear ao juiz-Estado a produção de todos aqueles meios de prova que entenda necessários para a demonstração de suas alegações. É um direito fundamental previsto na Constituição Federal, que deve ser seguido pelas partes e pelo ma-gistrado no trâmite processual.

Neste aspecto, resulta que a prova mostra-se essencial para o integral conhecimento da causa, influindo diretamente no convencimento do julgador (destinatário da prova), para que tenha condições de analisar o caso com justiça. Os fatos e fundamentos, os direitos subjetivos alegados pelas partes hão de ser demonstrados através da produção de provas.

Assegurar o direito de produzir a prova no plano Constitucional, é ga-rantir o acesso ao devido processo legal, e entre os princípios inerentes ao proces-so, destacam-se o contraditório e a ampla defesa para propiciar as partes à possi-bilidade ampla na formação do convencimento do juiz. Um dos pilares do sistema jurídico brasileiro, sem dúvida, está alicerçado na possibilidade das partes exter-narem os seus posicionamentos em face das alegações existentes no processo.

Dentro deste contexto, a possibilidade da produção probatória vem elencada no texto constituicional, dentro do rol dos direitos fundamentais, como se verifica do inciso LV, do artigo 5º da Constituição Federal. No entanto, não obstante a liberdade estabelecida pelo legislador que confere liberdade para a produção das provas, há que se observar os limites traçados pela própria Cons-tituição Federal, no inciso LVI87, do artigo 5º, que prevê que são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos.

O exercício de uma pretensão em juízo pode ser lícito, porém, o meio que parte irá utilizar para demonstrar os fatos que a embasam eventual-mente poderá advir de forma ilícita e afrontar os direitos da personalidade de outra pessoa.

A legislação em vigor não estabelece um rol taxativo de quais provas são admitidas em juízo. A parte pode optar pela produção de qualquer meio de

87 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

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prova que lhe pareça mais oportuno, desde que o modo escolhido seja legítimo e não seja contrário ao ordenamento jurídico e atenda a disposição constitucio-nal. O inciso LVI, do artigo 5º, da Constituição Federal vedou de forma expres-sa a utilização de provas obtidas por meio ilícito no processo.

A leitura de tal dispositivo legal submete à leitura do contido no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que o sigilo das comunica-ções telefônicas, salvo autorização judicial, é inviolável. Ou seja, os parâmetros utilizados pela carta magna impedem expressamente o uso de tal meio de prova para que a parte demonstre a sua pretensão em juiz.

Disso resulta que eventual produção de prova materializada numa gravação clandestina de conversa telefônica, sem o consentimento da parte contrária, terá como conseqüência a sua inadmissibilidade no processo. Em conseqüência, o juiz não poderá levar em consideração o teor dos elementos probatórios, o conteúdo da conversa que tenha sido carreado aos autos nesta circunstância, não podendo apreciá-las para efeito de fundamento da decisão.

O fundamento da não aceitação de provas produzidas ilicitamente está intrinsecamente relacionado ao fato de que a obtenção das provas não po-dem causar ofensa aos direitos e garantias fundamentais da pessoa, como o direito à intimidade.

Na medida em que a Constituição Federal veda a utilização de pro-vas ilícitas ela não pretende inviabilizar o exercício do direito à prova, mas apenas limitá-lo para que não venha a sobrepor-se a outros direitos ou a outros valores que poderiam ser considerados mais relevantes pelo ordenamento ju-rídico e pelo juiz.

No entanto, há que se analisar a extensão e os efeitos da inadmissi-bilidade de provas ilícitas e se tal princípio alcança toda e qualquer espécie de situação, e se efetivamente deve ser tido como regra absoluta, particularmente quando viola o direito à intimidade de outra pessoa.

Deste modo, obedecidos a tais limites, o entendimento mais extre-mado, no sentido de as provas originadas de ato ilícito serem sempre excluídas do processo, tem sido abrandado nas situações em que os prejuízos que expe-rimenta quem se veja impedido de fazer uso de prova assim obtida superem os prejuízos da pessoa que teve sua intimidade invadida por alguns momentos.

Segundo Adalberto Guedes Xavier de Andrade88, na análise proces-sual outros valores devem ser sopesados quando a prova obtida pelas partes no processo possa ofender algum direito fundamental, e através da harmonização das normas constitucionais que estariam em conflito possa se admitir, dentro de certos limites, a ingerência na vida alheia.

88 ANDRADE, Adalberto Guedes Xavier de. A aplicabilidade do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito no processo civil, in Revista de Processo, nº 126, p. 230.

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Partindo de tais aspectos, e tratando de assunto intrigante e controver-so em doutrina e jurisprudência, a utilização de gravação de conversa telefônica obtida por meio clandestino vem sendo admitida como meio de prova em al-guns julgados. No entanto, necessária a análise se tal utilização, apesar de per-mitir a comprovação dos fatos alegados pela parte, fere o direito da intimidade da outra pessoa, o que se passa a analisar.

2. O DIREITO À INTIMIDADE E A PROVA JUDICIÁRIA

O direito à intimidade é reconhecido pela Constituição Federal como direito fundamental, como um instrumento de defesa da dignidade da pessoa humana, assegurando a tutela da intimidade em diversos dispositivos, como nos incisos X, XI, XII, do artigo 5º. A necessidade de se proteger os direitos da personalidade nasce da própria condição da vida em sociedade e das constantes mutações a que estamos sujeitos hodiernamente.

Decorre disso que a observância à inviolabilidade da intimidade das pessoas deve ser respeitada por todos, é o respeito aos direitos subjetivos do indivíduo, que permeia valores que representam os sentimentos mais internos. Quando se fala acerca da efetividade dos direitos e garantias constitucionais sob o aspecto da produção probatória, mister a questão da tutela dos direitos de personalidade particularmente diante da necessidade de discutir os instrumen-tos garantidores da eficácia constitucional. E aí surge a necessária proteção à intimidade que deve ser preservada ainda que estejam em discussão direitos que num primeiro momento possam externar eventual superioridade.

Ainda que se parta do pressuposto que os direitos da personalidade situam-se como “direitos primeiros”, segundo Elimar Szaniawski89, não se olvi-da que certos direitos entrem em conflito e surja polêmica acerca de qual destes direitos conflitantes deve preponderar sobre o outro. A previsão constitucional que veda a utilização de provas obtidas por meio ilícito carrega consigo a pro-teção da intimidade da pessoa, para que não tenha violado direito fundamental.

Pois bem, partindo-se de tal premissa, como permitir uma ampla produ-ção probatória, assegurando-se o contraditório e a ampla defesa, com a vedação de utilização de provas ilícitas, e ao mesmo tempo observar o respeito à intimi-dade, enfim, a questões basilares que envolvem a dignidade da pessoa humana?

Diante de tal quadro, apresentam-se dois valores diametralmente opostos, ou seja, o direito à ampla produção probatória, e o direito da parte ter resguardada a sua intimidade como pessoa humana, sem que seja exposta a exageros que a ocasionem lesão a seus direitos básicos.

89 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 19.

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Há que se observar que os direitos e garantias fundamentais possuem característica primordial, mas não podem servir de proteção para a impunidade de condutas ilícitas. Para Bedaque90 o ponto está em encontrar o equilíbrio entre dois valores contrapostos, quais sejam, a tutela da norma violada com a obten-ção da prova ilícita e a utilização dos meios necessários ao alcance do escopo da atividade jurisdicional.

Isto conduz ao entendimento de que a conciliação entre os direitos fundamentais com o bem comum não implica na exclusão de direitos (segun-do Maria Cecília Pontes Carnaúba91). De fato, os direitos a inviolabilidade da intimidade e das comunicações telefônicas são garantidos pela Constituição Fe-deral, no entanto existem outros direitos igualmente tutelados pelo texto cons-titucional, como a produção probatória, também de grande importância, o que, segundo Nelson Nery Junior92, não pode sugerir uma incompatibilidade entre preceitos constitucionais, mas, ao contrário, é preciso que os direitos consti-tucionais aparentemente em conflito sejam harmonizados e compatibilizados entre si pelo intérprete e aplicador da norma.

A captação da prova deve ser realizada com observância aos direitos da personalidade, não sendo permitida a violação dos princípios fundamen-tais contidos na Constituição Federal. Para Celso Ribeiro Bastos93 o direito não pode ser compartimentado e dividido em blocos estanques, e assim de um lado haveria a geração da prova, arcando o seu responsável com todas as penas resultantes do ilícito praticado, e do outro estaria o interesse processual em descobrir a verdade.

Surge então a necessidade de se compatibilizar os direitos eventual-mente em conflito, para que sejam harmonizados e considerados os aspectos que rodeiam a questão. Na doutrina, que não é unânime quanto ao tema, deve haver ponderação para analisar os interesses que estão em conflito no caso con-creto, escolhendo quais os direitos que necessitam de maior tutela.

Uma solução apresentada pela doutrina e jurisprudência é que a questão da admissibilidade de um meio de prova vai depender da discri-cionária valoração ou da devida ponderação a ser dada pelo juiz aos bens jurídicos em conflito.

Neste sentido, tem-se a aplicação do princípio da proporcionalidade que serve como um mecanismo de abertura do sistema jurídico, sensível às

90 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Garantias Constitucionais do Processo Civil, 1999, p. 185-186.91 CARNAÚBA, Maria Cecília Pontes. Prova ilícita, 2000. São Paulo: Saraiva, p. 49.92 NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal: Processo civil, penal e administrativo. 9º edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, p. 278, 2009.93 BASTOS, Celso Ribeito. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1989, pág. 273.

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interpretações teleológicas capazes de viabilizar a obtenção de resultados mais justos. Para Eduardo Cambi94 a previsão contida no art. 5º, inc. LVI, da Cons-tituição Federal, não pode ser interpretado como uma regra rígida que impeça toda e qualquer prova ilícita, mas uma regra aberta às circunstâncias que pos-sam aparecer nos casos concretos, confiando aos juízes a possibilidade de pon-derar acerca dos valores constitucionais em conflito e evitar que a interpretação literal dessa regra jurídica impossibilite a construção de uma sociedade justa e democrática.

Na aplicação do princípio da proporcionalidade, o juiz deve atentar para alguns pressupostos, dentre eles: a clara determinação dos valores em dis-cussão; a prioridade dos elementos normativos a serem utilizados; a proporção entre o meio empregado e os fins pretendidos.

Neste passo, toma relevo a análise da produção de prova obtida através de gravação clandestina e a sua possível utilização e aceitação num processo judicial.

3. A GRAVAÇÃO CLANDESTINA DE CONVERSA TELEFÔNICA E O SEU VALOR PROBATÓRIO

Ao que se verifica, a liberdade para a produção de provas fica limitada na medida em que a própria Constituição Federal veda a utilização de alguns meios de prova. Como visto acima, a jurisprudência vem abrandando tal enten-dimento, com base no princípio da proporcionalidade e na análise de cada caso concreto.

Até porque existem situações extremas nas quais a única forma de se demonstrar aquele fato seria através da utilização de uma prova ilícita. Vicente Greco Filho95, em situações como esta, entende que a prova teria de ser conside-rada porque a condenação de um inocente é a mais abominável das violências e não pode ser admitida ainda que se sacrifique algum preceito legal.

Num primeiro momento, a gravação clandestina de conversa tele-fônica resulta em grave violação ao direito à intimidade da pessoa. Contudo, o sigilo constitucional das comunicações não pode ser considerado absoluto, sujeitando-se, assim, ao princípio da proporcionalidade, até para que se evite que a sua tutela sirva de pretexto para causar danos aos direitos de outra pessoa.

Assim, a eventual invasão de privacidade seria justificada se analisa-da a situação concreta, a fim de se observar os direitos colocados em confronto,

94 CAMBI, Eduardo. A prova Civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, pág. 49.95 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 112.

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a partir da concepção de que a captação da conversa telefônica não resulte de meios ardilosos e não represente uma injustificável restrição da esfera dos di-reitos da personalidade96.

Segundo análise jurisprudencial, a inadmissibilidade da utilização das provas ilícitas é entendimento que vem sendo abrandado, sendo o princípio da proporcionalidade o instrumento a ser utilizado como forma de aproximar os extremos da situação analisada.

No caso das gravações clandestinas de conversa telefônica, a jurispru-dência vem caminhando para o entendimento de que a gravação de uma conver-sa por um dos interlocutores, sem o consentimento do outro, não se enquadra no conceito de interceptação telefônica, e de consequência, não é considerada meio ilícito de obtenção de prova.

Em recente decisão97, o Tribunal Superior do Trabalho condenou uma empresa a efetuar o pagamento de indenização para uma ex-empregada por ter denegrido a imagem dela ao dar informações a possível novo empregador.

A ex-empregada ingressou na Justiça do Trabalho com reclamação trabalhista afirmando, em síntese que o dono da empresa onde trabalhava a prejudicou na obtenção de novo emprego e manchou sua imagem junto ao novo empregador, que pediu informações a seu respeito. A conversa telefônica foi gravada pela reclamante e serviu como prova na ação trabalhista. A sentença e o acórdão proferidos foram mantidos pelo Tribunal Superior do Trabalho.

Ao analisar o recurso da empresa, a 1ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho considerou legal a prova apresentada pela empregada, entendendo, em síntese, que embora a inviolabilidade das comunicações telefônicas seja assegu-rada pela Constituição Federal, deve também ser preservado o direito de defesa da empregada, que reputou de maior relevância diante da gravidade do dano, pois, sem aquela prova, seria impossível de ser exercido o direito da ex-empregada, ha-vendo um excesso por parte do dono da empresa ao prestar informações a respeito

96 CAMBI, Eduardo, obra citada, p. 108.97 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso de Revista 21500-05.2008.5.15.0001, Relator: JOSÉ PEDRO DE CAMARGO RODRIGUES DE SOUZA- Desembargador Convocado Relator. Ementa: RECURSO DE REVISTA - PRELIMINAR DE NULIDADE POR USO DE PROVA OBTIDA POR MEIO ILÍCITO. A gravação de conversa, realizada por um dos interlocutores, não se enquadra no conceito de interceptação telefônica, razão pela qual não se pode considerá-la meio ilícito de obtenção de prova. O uso desse meio em processo judicial é plenamente válido, mesmo que o ofendido seja um terceiro, que não participou do diálogo, mas foi citado na conversa e obteve a prova por intermédio do interlocutor. Se a obtenção é lícita, o produto, ou seja, a prova, também o é. Na hipótese a reclamante viu sua honra ser maculada por declarações da ex-empregadora, no intuito de frustrar sua admissão em um novo emprego, o que, obviamente, só poderia ter sido documentado por um terceiro, que foi quem recebeu as informações depreciativas a respeito da trabalhadora. Intacto o art. 5º, LVI, da Constituição Federal. Precedentes do STF e desta Corte. Recurso de revista não conhecido.

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da reclamante, adentrando na sua intimidade, o que a prejudicou na obtenção de um novo emprego. As declarações do dono da empresa foram suficientes para demonstrar que foi originado à ex-empregada uma violação à sua honra, e que naquele caso concreto, apenas poderia ter sido documentado por um terceiro, que foi quem recebeu as informações depreciativas a seu respeito.

O relator ainda ressaltou que o sigilo telefônico é uma garantia de inviolabilidade da linha de comunicação telefônica, durante o uso, para evitar a típica atividade de interceptação e, não, um direito ao sigilo do conteúdo da conversação. E ainda, embora a prova obtida por um dos interlocutores tenha sido aproveitada por terceiro, foi considerado lícito o procedimento, diante da dificuldade que a parte teria em comprovar a situação vivida, evitando impedir a reclamante de exercer o seu direito de ação.

Entendimento semelhante, quanto a admissibilidade do uso de grava-ção de conversa telefônica como meio de prova já foi adotado por outros Tribu-nais. O Supremo Tribunal Federal98 acatou como válida a gravação de conversa telefônica que foi feita por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro, quando inexistente causa legal de sigilo ou de reserva de conversação.

Vale acrescentar, contudo, que o entendimento não é unânime en-tre os Tribunais. Como exemplo, o caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça99, ocasião em que foram anuladas as provas produzidas nos autos por entenderem os julgadores que foram violadas a honra, a imagem, a intimidade e a dignidade da pessoa humana dos envolvidos, decidindo que a obtenção da prova fora ilícita, colhidas em desconformidade com o preceito legal, não havendo a necessária razoabilidade para o ato, entendendo pela infração a diversos dispositivos legais e pela contrariedade do ato aos princípios da le-galidade, da imparcialidade e do devido processo legal.

Como se pode observar, a questão ainda é controversa nos Tribunais, havendo situações em que se reconhece a ilegalidade das provas produzidas no processo afastando os seus efeitos, e em outros, ainda que transpareça o meio ilegítimo de sua produção, considera e valora a prova surtindo conse-qüências no convencimento do julgador. Neste caso, apenas após realizar uma análise ponderada acerca dos valores e direitos que estão sendo discutidos sob o enfoque da prova produzida.

A análise ponderada de todos os elementos do caso concreto é que levará o julgador a tomar uma decisão que, espera-se, seja justa. Em outro jul-

98 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 578858 AgR / RS, Rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJe nº 162 de de 28/8/2009.99 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº HC 149250/SP, Relator Ministro Adilson Vieira Macabu.

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gamento100, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela validade das provas obtidas através gravação clandestina de conversa telefônica por entender que o direito à intimidade não pode ser utilizado como um escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, e nem para a diminuição da responsabilidade civil ou pe-nal por atos criminosos, o que viria afrontar o Estado de Direito. O Relator bem se manifestou ao afirmar que Dessa forma, aqueles que, ao praticarem atos ilícitos, inobservarem as liberdades públicas de terceiras pessoas e da própria sociedade, desrespeitando a própria dignidade da pessoa humana, não pode-rão invocar, posteriormente, a ilicitude de determinadas provas para afastar suas responsabilidades civil e criminal perante o Estado.

Há que atentar para o fato de que estão em discussão direitos e ga-rantias fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal, e disso resulta a grande responsabilidade que deve despender o julgador na análise do caso concreto, para que, através dos elementos trazidos ao seu conhecimento, possa, com o discernimento necessário, aplicar o princípio da proporcionalidade e de-cidir visando alcançar a justiça.

4. CONCLUSÃO

A Constituição Federal prevê a possibilidade da produção probatória, assegura o acesso amplo aos meios de prova existentes, vedando o uso de pro-vas obtidas por meio ilícito no processo judicial.

No entanto, a fim de demonstrar o seu direito em juízo, em algumas situações a parte terá de utilizar um meio de prova que, em análise preliminar, não é admitido, é considerado ilícito, o que poderá acarretar uma violação ao direito à intimidade da outra pessoa.

Não há uma resposta na doutrina e jurisprudência unânime quanto à possibilidade do uso de gravação clandestina de conversa telefônica como meio de prova judicial. Não se pode negar que numa primeira análise, o seu uso violaria o direito à intimidade da pessoa. O que se pode constatar é que a regra prevista na Constituição Federal comporta exceções, apontando que cada caso concreto deve ser analisado com as cautelas necessárias, apresentando como solução a utilização do princípio da proporcionalidade.

Os excessos, os abusos, devem ser afastados, atitudes desproporcio-nais e ilegais em nada contribuirão com o regular andamento do processo, ao contrário, apenas acobertarão ilicitudes do seu criador.

Há a necessidade de se compatibilizar os direitos eventualmente em con-flito, para que sejam harmonizados e considerados os aspectos que rodeiam a ques-

100 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário nº 12266/SP, Relator Ministro Hamilton Carvalhido.

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tão, havendo ponderação do julgador para analisar os interesses que estão em con-flito no caso concreto, escolhendo quais os direitos que necessitam de maior tutela.

Desta feita, há que se atender aos limites traçados na Constituição Federal, sem extrapolar a previsão legal, pois só assim é que se atingirá a sua finalidade maior, estabelendo igualdade de condições entre as partes, e princi-palmente, respeitando-se a intimidade dos envolvidos.

A condição de direito e garantia fundamental estabelecida pela Cons-tituição, conferindo a possibilidade da parte produzir suas provas, não afasta a necessidade de respeitar a intimidade da pessoa.

Não há que se falar em sobreposição de direitos ou de garantias fundamen-tais, mas uma apreciação do caso concreto, com ponderação, para que apenas após uma detalhada análise se possa constatar eventual preponderância de algum direito.

Como visto acima, em algumas oportunidades a parte não possui ou-tra possibilidade de demonstrar o seu direito senão através do uso de uma prova obtida por uma gravação telefônica realizada clandestinamente.

Portanto, há situações em que o uso de uma gravação telefônica obtida clandestinamente não ofenderia o princípio da intimidade, sendo apta a servir como prova judicial. É imprescindível que o julgador analise cada caso, um a um, observando as minúcias que envolvem a situação, para a partir deste exame detalhado o Estado-juiz aplique o princípio da proporcionalidade, observando principalmente a clara determinação dos valores em discussão; a prioridade dos elementos normativos a serem utilizados; a proporção entre o meio empregado e os fins pretendidos, e a partir da apreciação conjunta de tais fatores possa en-fim formar o seu convencimento e proferir o seu julgamento.

Em suma, dentro deste quadro, a solução que se mostra plausível é a análise de cada caso concreto, e aplicando-se o princípio da proporcionalidade (e por certo, atendidas as demais determinações legais a respeito), possa o julgador após a análise de tudo o que foi discutido no caso formar o seu convencimento e alcançar uma deci-são justa e equilibrada, mas sempre respeitando os princípios e fundamentos consti-tucionais, pois são estas as garantias e os direitos maiores que devem ser respeitados.

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NORMA PENAL EM BRANCO E PRINCÍPIO DA RESERVA LEGAL NA SOCIEDADE DE RISCO

pEDro auguSto amaral DaSSan101

Fábio anDré guaragni 102

RESUMO

O presente artigo busca compreender a categoria dogmática da nor-ma penal em branco e seus problemas frente ao Princípio da reserva legal no contexto da modernidade. Para isso, será abordada a sociedade de risco, delineando-se suas peculiaridades e influência no direito penal. Passará, as-sim, à análise dos sistemas peritos, como consequência viabilizadora da vida na modernidade e sua ligação com a norma penal em branco. Por fim, será conceituada a norma penal em branco e suas classificações, e conceituado o princípio da legalidade, para, por fim, apontar os conflitos entre a norma penal em branco e a reserva legal.

Palavras-chave: Norma Penal em Branco; Princípio da legalidade; Sociedade de Risco.

ABSTRACT

This article aims to understand the dogmatic category of blank criminal laws and its problems against the principle of legality in the context of modernity. For that, will be broach about the risk society, outlining its peculiarities and influence in the criminal law. Will, thus, the analysis of expert systems as a result enabler of life in modernity and its connection to the blank criminal laws. Finally, the blank criminal laws will be concep-tualized and its classifications, and conceptualized the principle of legality, to finally point out the conflict between the blank criminal laws and the principle of legality.

Keywords: Blank Criminal Laws; Principle of legality; Risk Society.

101 Advogado. Pós-graduado em Direito e Processo Tributário Empresarial pela PUC-PR e Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal pela Centro Universitário Curitiba.102 Promotor de Justiça, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR). Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG.

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1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o mundo vem passando por mudanças substan-ciais que afetam as sociedades de um modo geral. Como consequência, o direito penal, enquanto fenômeno social, também passa a sofrer transformações que tendem a alterar os modelos tradicionais que o compõe.

A modernidade traz consigo as consequências perniciosas do super-desenvolvimento tecnológico da modernidade, que criou riscos para a própria sociedade. Estes novos riscos da modernidade são riscos tecnológicos criados pelo próprio homem, presentes nos mais diversos e variados “setores”, que afe-tam todos globalmente e de maneira catastrófica. Isso é o que se chama de “Sociedade de Risco”.

Neste contexto surgem mecanismos de desencaixe que viabilizem a vida na sociedade moderna. Assim, os sistemas peritos passam a reger o coti-diano das pessoas, uma vez que, somente na confiança em especialistas que se permite fazer uso de todos os bens de consumos disponíveis atualmente.

Diante disso, o direito penal passa a ser exigido para acompanhar as evoluções deste modelo social e, baseado nos sistemas peritos, a norma penal em branco passa a ganhar relevante destaque, uma vez que, diante da comple-xidade da vida moderna, o legislador não mais dá conta da tutela penal, sendo necessária a intervenção de especialistas.

Não obstante essa necessidade evidente, o excesso de uso da norma penal em branco suscita algumas discussões, uma vez que pode representar flexibilizações nas garantias do direito penal.

O presente trabalho busca, portanto, contextualizar a norma penal em branco na modernidade, apontando suas problemáticas frente ao princípio da legalidade do direito penal.

2. DA SOCIEDADE DE RISCO MUNDIAL

O estudo da lei penal em branco impende, primeiramente, uma con-textualização sociológica para uma melhor compreensão do papel desta cate-goria dogmátca na atualidade. Isso porque, o direito penal, como instrumento de controle social, é diretamente influenciado pelo modelo social ao qual está inserido103, de maneira que toda a sua dogmática passa por adaptações à reali-dade da sociedade.

Portanto, é de suma importância a verificação dos processos de tran-sição pela qual a sociedade contemporânea vem passando. A partir da crise do

103 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato e Princípio da Precaução na Sociedade de Risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 28.

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bem-estar social, a sociedade caminha para um novo modelo social, que dissipa a primeira modernidade, firmando-se, cada vez mais, a segunda modernidade ou pós-industrial, desnudando o que chamamos de sociedade de risco (Risiko-gesellschaft), como novo modelo social104.

A modernidade alterou o modo de vida da sociedade de forma excep-cionalmente drástica em relação aos moldes tradicionais, traçando-se intensas transformações jamais antes vistas.

É notório que a industrialização, bem como a tecnologia decorrente daquela, marcou um desenvolvimento de grande escala para a sociedade, per-mitindo avanços nos modos de vida e a saciedade de diversas necessidades das pessoas, trazendo, de um modo geral, benefícios à sociedade.

O que ocorre, entretanto, é que todos estes processos de desenvolvi-mentos na modernidade industrial geraram efeitos e consequências ameaça-doras à sociedade. Os processos paralelos da globalização, individualização, revolução sexual, desenvolvimento tecnológico e subemprego marcaram uma ruptura das estruturas, acarretando “riscos” de ordens globais. No momento em que a sociedade reflete e percebe tais consequências, esta se coloca em movi-mento para evitar estes efeitos.

Isso é o que se pode chamar de modernização reflexiva, onde o de-senvolvimento tecnológico se transforma em autodestruição. Para Marta Rodri-guez105, esse processo de reflexividade

deve ser entendido como confrontação das bases do paradigma da modernidade com as consequências da modernização. [...] derivou do superdesenvolvimento da modernidade industrial, que acabou geran-do efeitos e ameaças que não puderam ser assimilados pela racionali-dade da época industrial.

Portanto, em um primeiro momento, a sociedade apenas consagrava o desenvolvimento industrial e tecnológico, valendo-se de seus benefícios, im-plicando, dessa forma, em mais e mais avanços, sem perceber as consequências negativas deste processo. Este seria o processo de modernização simples. Esta base é alterada no momento em que a própria sociedade percebe as consequ-ências negativas dessa modernidade e se coloca em movimento para evitá-las, passando, assim, para a modernidade reflexiva.

A partir deste momento,

104 MACHADO, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do risco e direito penal: uma análise de novas tendências político-criminais. São Paulo: IBCCRIM, 2005. p.19.105 Ibid., p. 30.

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As instituições de controle da sociedade industrial passam a ser am-plamente questionadas: tanto por terem compactuado com a libera-ção desses riscos como por não conseguirem controlar essas novas ameaças. Vem a luma, nesse momento, a questão da autolimitação do desenvolvimento, assim como a necessidade de serem rediscutidos os padrões de responsabilidade, segurança, controle, causalidade, limita-ção do dano e distribuição das consequências do dano.106

Assim se firma a sociedade de risco, tendo em vista que As certezas da sociedade industrial, o consenso para o progresso e a abstração dos efeitos e dos riscos ecológicos dominaram por muito tempo o pensamento e a ação das pessoas e das instituições desta sociedade e foram responsáveis por legitimar a produção dos novos riscos.107

A sociedade de risco se funda principalmente nos riscos tecnológi-cos, riscos estes não seguráveis, produzidos pelo próprio homem, presentes nos mais diversos e variados “setores”, que afetam todos globalmente. Estas são algumas características da sociedade de risco que modelam os riscos em mote, que serão oportunamente melhores analisados.

É importante, em uma primeira análise, distinguir riscos de perigos. Os riscos seriam ameaças que derivam unicamente de decisões humanas, en-quanto os perigos são ameaças externas que fogem do controle do homem. Segundo Luhmann108,

Esta diferenciação pressupõe a existência de dúvidas quanto a um dano futuro. São duas possibilidades. O dano eventual é visto como consequência da decisão, pelo qual se fala de risco da decisão. Fala-mos de perigo quando o dano hipotético, entendido como causa exter-na, é atribuído ao ambiente. (tradução nossa)

Outra diferenciação importante de se estabelecer é entre os riscos controláveis e os incontroláveis. O homem criou mecanismos para controlar

106 MACHADO, 2005, p. 22. 107 Ibid., p. 36.108 Esta diferenciación presupone la existencia de incertidumbre respecto a un daño futuro. Se dan dos posibilidades. El daño eventual es visto como consecuencia de la decisión, por lo cual se habla de riesgo de la decisión. Hablamos de peligro cuando el hipotético daño, entendido como causado desde el exterior, se le atribuye al entorno. (LUHMANN, Niklas. El concepto de riesgo. In: BERIAIN, Josetxo (Coord.). Las Consecuencias Perversas de la Modernidad: Modernidad, Contingencia y riesgo. Tradução de Celso Sánchez Capdequí. Barcelona: Anthropos, 1996. p.144.).

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riscos comuns às outras épocas (eventos da natureza), mas, consequentemente, deu origem a novos riscos, que se tornaram incontroláveis. A própria sociedade que criou estes novos riscos incontroláveis passa da produção de controles dos antigos riscos à busca de controle dos riscos criados por ela mesma, como re-sultado daquele primeiro momento. 109

A questão que se coloca agora é: se os riscos sempre existiram, porque agora há este enfoque no que chamamos de “sociedade de risco”?

Pode-se dizer que existiram três fases dos riscos na história. A pri-meira seria no início da Idade Moderna, onde os riscos eram incipientes e con-troláveis. Na segunda fase, ocorrida durante o fim do século XIX e durante a primeira metade do século XX, buscava-se controlar estes riscos e, por fim, a terceira fase, correspondente a atual sociedade de risco. 110

Estes riscos atuais são riscos novos, de grandes proporções, cujo homem jamais teve de lidar. Ademais e primordialmente, trata-se de riscos desenvolvidos pelo próprio homem, ao contrário dos riscos até então conhe-cidos. São riscos derivados do desenvolvimento tecnológico e industrial e que possuem escalas coletivas e não mais individuais. Por isso o relevante enfoque ao tema hoje.

Dessa forma, existem características que identificam as peculiarida-des dos riscos em questão111:

1. Estes novos riscos sempre derivam de uma decisão humana adota-da em um processo econômico. Assim, Beck112 esclarece:

Os riscos que procedem das grandes tecnologias e da industrialização dão resultado de decisões conscientes (tomadas por um lado por orga-nizações privadas e/ou estatais para obterem vantagens econômicas e aproveitar as correspondentes oportunidades e, por outro, sobre a base de um cálculo que considera os perigos como a inevitável face oculta do progresso). [...] são produtos de comandos e cabeças humanas, fruto da união de saber técnico e cálculo econômico. (tradução nossa)

109 MACHADO, 2005, p. 37-38.110 FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, "Sociedade de Risco" e o Futuro do Direito Penal: Panorâmica de Alguns Problemas Comuns. Coimbra: Almedina, 2001. p. 33, nota 6.111 MACHADO, 2005, p. 37-38.112 Los riesgos que proceden de las grandes tecnologías y la industrialización son resultado de decisiones conscientes (tomadas por un lado por organizaciones privadas y/o estatales para obtener ventajas económicas y aprovechar las correspondientes oportunidades y, por otro, sobre la base de un cálculo que considera los peligros como la inevitable cara oculta del progreso). [...] son producto de manos y cabezas humanas, fruto de la unión de saber técnico y cálculo económico. (BECK, Ulrich. La Sociedad del Riesgo Mundial. En Busca de la Seguridad Perdida. Tradução de Rosa S. Carbó. Barcelona: Paidós, 2008. p. 49.).

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2. Estes riscos são sempre efeitos colaterais, indesejados e imprevistos, do processo de modernização tecnológica. A intenção inicial é positiva, mas as con-sequências, incalculáveis, são negativas. Assim explica Marta Rodriguez113:

Por representarem consequências secundárias do progresso tecnoló-gico, constituem efeitos indesejados, não previstos ou não passíveis de serem previstos, de um ato humano inicialmente dirigido a fins positivamente valorados.

3. São riscos imperceptíveis, ou seja, não podem ser percebidos em sua origem, pois surgem de forma oculta e gradual. Beck114 esclarece que

Muitos dos novos riscos (contaminações nucleares ou químicas, subs-tâncias nocivas nos alimentos, doenças civilizatórias) fogem comple-tamente da percepção humana imediata. Ao centro passam cada vez mais os perigos, que frequentemente não são visíveis nem percep-tíveis para os afetados, perigos que em certos casos não se ativam durante a vida dos afetados, mas sim aos seus descendentes; trata-se em todo caso de perigos que precisam dos “órgãos perceptíveis” da ciência (teorias, experimentos, instrumentos de medição) para se tor-narem “visíveis”, interpretáveis, como perigos.

4. Estes riscos não possuem determinação espacial e temporal. O processo de globalização colabora para a difusão dos riscos locais a níveis mundiais e seus potenciais são de escalas tão elevadas que atravessam ge-rações. Nas palavras de Paulo Silva Fernandes115, “os efeitos destes riscos arrastam-se por períodos de tempo por vezes muito longos, chegando mesmo a repercutir-se transgeracionalmente”.

113 MACHADO, 2005, p. 39.114 Muchos de los nuevos riesgos (contaminaciones nucleares o químicas, sustancias nocivas en los alimentos, enfermedades civilizatorias) se sustraen por completo a la percepción humana inmediata. Al centro pasan cada vez más los peligros que a menudo para los afectados no son visibles ni perceptibles, peligros que en ciertos casos no se activan durante la vida de los afectados, sino en la de sus descendientes; se trata en todo caso de peligros que precisan de los «órganos perceptivos» de la ciencia (teorías, experimentos, instrumentos de medición) para Placerse «visibles», interpretables, como peligros. (BECK, Ulrich. La sociedad del Riesgo: Hacia uma nueva modernidad. Tradução de Jorge Navarro, Daniel Jiménez e Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998. p. 33.).115 FERNANDES, 2001, p. 60.

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Ulrich Beck116 esclarece que esta “deslocalização” dos riscos tem lugar a três níveis:

a) Espacial: os novos riscos (por exemplo, a mudança climática) se esten-dem além das fronteiras do Estado nacional e também dos continentes. b) Temporal: os novos riscos têm um largo período de latência (por exemplo, os resíduos nucleares), de maneira que suas conseqüências futuras não podem se determinar e limitar de maneira fidedigna. Além disso, o saber e o não saber transformam, de maneira que a pergunta de quem é o afetado resta aberta no tempo e é sempre matéria de discussão. c) Social: posto que os novos riscos resultam de processos complexos e desencadeiam efeitos de largo alcance, suas causas e consequências não se podem determinar com suficiente precisão (por exemplo, as crises financeiras). (tradução nossa)

Em suma, conforme Marta Rodriguez117, “esses novos riscos têm a capacidade de produzir consequências que não permanecerão estritamente vin-culadas ao lugar e ao tempo de seu surgimento”.

5. Estes novos riscos são inseguráveis. Ao contrário dos antigos e co-nhecidos riscos da sociedade industrial, estes novos riscos, não possuindo a mesma delimitação espacial, temporal e, principalmente, sendo incalculáveis em sua origem e indeterminados em suas consequências, muitas vezes catastró-ficas, os seguros não são mais capazes de garantir proteções indenizáveis.

Assim, com razão, Paulo Silva Fernandes esclarece que

Dir-se-á com segurança que nem em contextos propícios à existência de seguros, as sombras lançadas pela natureza dos novos riscos na percepção humana ocasionam a constatação de que nem a existência desses seguros cria segurança, nem de que a desgraça não ocorrerá, nem sequer de que será tal seguro adequado e/ou suficiente no caso de ocorrência dessa mesma desgraça.

116 a) Espacial: los nuevos riesgos (por ejemplo, el cambio climático) se extienden más allá de las fronteras del Estado nacional e incluso de los continentes. b) Temporal: los nuevos riesgos tienen un largo periodo de latencia (por ejemplo, los residuos nucleares), de manera que sus consecuencias futuras no pueden determinarse y limitarse de manera fidedigna. Por otra parte, el saber y el no-saber cambian, de manera que la pregunta de quién es el afectado queda abierta en el tiempo y es siempre materia de discusión. c) Social: puesto que los nuevos riesgos resultan de procesos complejos y desencadenan efectos de largo alcance, sus causas y consecuencias no se pueden determinar con suficiente precisión (por ejemplo, las crisis financieras). (BECK, 2008, p. 84.).117 MACHADO, 2005, p. 41.

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6. Estes novos riscos são potencialmente catastróficos, coletivos, aos quais todos estão sujeitos, independente de classe, gênero, idade ou status. Há uma confusão entre autores e vítimas neste novo contexto. Isto é o que Beck118 chama de efeito boomerang:

Os riscos da modernização afetam cedo ou tarde também a quem os produzem ou se beneficiam deles. Contém um efeito bumerangue que faz saltar pelos ares o esquema de classes. Tampouco os ricos e pode-rosos estão seguros diante deles. (tradução nossa)

7. Os riscos são dotados de um grande e forte conteúdo político. Com a reflexividade da modernidade, as atividades tecnológicas e suas consequên-cias passam a ter uma discussão maior no âmbito popular. O sociólogo Ulrich Beck119 explica:

Quanto mais imperceptíveis são os riscos do desenvolvimento técni-co-científico e quanto mais influem na consciência pública, tanto mais aumenta a pressão nas instâncias políticas e econômicas, e tanto mais importante é para os agentes sociais o recurso ao “poder de definição da ciência”, tanto para minimizar, distrair, redefinir quanto para agra-var ou frear críticas metodológicas como “interferências externas para a definição”. (tradução nossa)

Marta Rodriguez120 conclui que “o potencial político dos riscos volta--se, com ênfase, à vontade de administrá-los e de prevenir catástrofes, o que, muitas vezes, pode incluir a reorganização do poder”.

8. Por fim, a última característica seria a distinção de três espécies de riscos: primeiro, os riscos de perigos globais, que são os riscos ecológi-cos, causados pelo desenvolvimento tecnológico, onde para se identificar tais riscos se faz necessária a percepção das pessoas e a constatação científica. A segunda espécie seriam os riscos resultantes da pobreza, que “representam a destruição ecológica condicionada pelo subdesenvolvimento e pelos riscos

118 los riesgos de la modernización afectan más tarde o más temprano también a quienes los producen o se benefician de ellos. Contienen un efecto bumerang que hace saltar por los aires el esquema de clases. Tampoco los ricos y poderosos están seguros ante ellos. (BECK, 1998, p. 29.).119 Cuanto más imperceptibles son los riesgos del desarrollo científico-técnico y cuanto más influyen en la conciencia pública, tanto más aumenta la presión en las instancias políticas y económicas, y tanto más importante es para los agentes sociales el recurso al «poder de definición de la ciencia», tanto para minimizar, distraer, redefinir cuanto para agravar o frenar críticas metodológicas como «interferencias externas a la definición». (BECK, 1998, p. 219.).120 MACHADO, 2005, p. 44.

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técnico-industriais de um processo inconcluso de industrialização”. A ter-ceira espécie de riscos são provenientes das armas de alto poder destrutivo (armas químicas, biológicas e nucleares), que se tornaram ameaças assusta-doras reais. Essa espécie de risco está presente não apenas nos conflitos entre nações, como também no terrorismo.

Um efeito dessa sociedade de risco é a sensação social de insegu-rança, que se alastra em todos os níveis sociais decorrente da instabilidade das relações sociais e econômicas e dos riscos providos de decisões humanas, ou seja, de pessoas ou grupos que possuem o poder em âmbitos tecnológicos.

Diante destas perspectivas, percebe-se a construção progressiva de novos paradigmas penais capazes de atender a essas características hodiernas da sociedade de risco, razão pela qual a dogmática penal clássica sofrerá mu-danças drásticas.

3. IMPACTO DA SOCIEDADE DE RISCO NO DIREITO PENAL: DOS SISTEMAS PERITOS E DA EXALTAÇÃO À NORMA PENAL EM BRANCO

Conforme verificado, a sociedade de risco traz imensuráveis questões nos mais variados âmbitos, da mais alta complexidade. Hoje, com este novo modelo social, as decisões são realizadas em contextos de extensa complexida-de de informações contraditórias. Assim, decisões apresentam riscos e isso gera mudanças paradigmáticas em diversos setores, inclusive do âmbito penal, uma vez que este ambiente de riscos se configura como um “produtivo” campo para seu desenvolvimento.

Giddens, analisando os problemas atinentes à sociedade de risco, cita os “mecanismos de desencaixe” como viabilidade da modernidade, uma vez que, em um conturbado contexto de grandes transformações da compreensão entre tempo e espaço, que já não mais se encontram interligados como antes, somente através de relações de confianças segmentadas em sistemas peritos viabilizam a vida em um ambiente de riscos.

O sociólogo Inglês define “desencaixe” como o “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”121 e, assim, dois mecanismos de de-sencaixe foram imprescindíveis para a consolidação da modernidade: as fichas simbólicas e os sistemas peritos.

As fichas simbólicas, conforme o autor, são “os meios de intercâmbio que podem ser ‘circulados’ sem ter em vista as características específicas dos indivíduos ou grupos que lidam com eles em qualquer conjuntura particular”

121 GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991. p. 29.

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122, citando, como um maior exemplo, o dinheiro, que permite trocas comerciais imediatas, simbolizando produtos correspondentes e, assim, distanciando os agentes comerciais do tempo e espaço.

Os sistemas peritos, por sua vez, são “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes mate-rial e social em que vivemos hoje”123.

Os sistemas peritos geram relações de confiança que possibilitam as pessoas de consumirem os mais variados produtos e serviços que são disponi-bilizados na modernidade altamente tecnológica.

Essa relação de confiança converge não no especialista, mas sim no próprio sistema perito, um sistema abstrato, ou seja, em um conjunto de exce-lências técnicas aplicado por pessoas desconhecidas. Somente assim o desen-caixe de tempo e espaço se torna possível, na medida em que não se necessita uma averiguação pessoal para cada bem a ser consumido.

Fábio Guaragni124 esclarece essa relação:

Firma-se uma curiosa relação de confiança não entre homem e ho-mem, mas entre homem e objeto. Para o objeto converge todo um caudal de conhecimentos técnicos no qual tenho fé. Isto, de um lado, ratifica o objeto como fotografia do sistema perito que o produz (um corpus emblemático); de outro, é conseqüente com o fenômeno da globalização, dando-lhe parcial explicação.

É evidente que a dinâmica da moderna sociedade de risco, complexa per si, somente é possível através desse sistema abstrato baseado na confiança em um conjunto universal de conhecimentos técnicos.

Um indivíduo somente sai para trabalhar em seu carro por con-fiar que foi aplicado conhecimentos técnicos que permitam utilizá-lo com segurança. Dá mesma forma, somente andam de avião, metrô; consomem alimentos industrializados; utilizam telefone celular; residem em aparta-mentos em enormes prédios, entre outros inúmeros exemplos, por confiar nos conhecimentos técnicos aplicados.

Em uma dinâmica social complexa em que decisões devem ser tomadas imediatamente, onde é preciso estar interligado (conectado) o tem-po todo com o mundo e milhares de bens e serviços são oferecidos para

122 Ibid., p. 30123 Ibid., p. 35.124 GUARAGNI, Fábio André. A Função do Direito Penal e os “Sistemas Peritos”. In Crimes Contra a Ordem Econômica: temas atuais de processo e direito penal. Coords. Luiz Antonio Câmara e Fábio André Guaragni. Curitiba: Juruá, 2011. p. 79.

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facilitar a vivência neste contexto, somente é possível o fazer depositando a confiança em especialistas.

Assim se molda o sistema abstrato baseado na confiança. Uns estu-dam a tecnologia que permitem um avião funcionar, outros estudam a tecnolo-gia que permitem as pessoas dirigirem em segurança com seus carros, outros estudam como manter produtos perecíveis para consumo por longo período de tempo e assim vai.

A relação de confiança consistente nos sistemas peritos não se perfa-zem por um querer, ou uma simples voluntariedade, mas sim se amoldam em contingências inerentes à vida moderna.

Assim, é impossibilitado ao indivíduo conhecer todas as questões que interfere em todos os momentos de sua vida, de maneira que não lhe resta outra solução senão confiar nos sistemas peritos.

O direito, como fenômeno social, passa a acompanhar essas transfor-mações, se adaptando e se remodelando para atender aos anseios deste novel modelo social, sendo empenhado como meio de redução de riscos. No âmbito penal, percebe-se a construção progressiva de novos paradigmas penais capazes de atender a essas características hodiernas da sociedade de risco, razão pela qual a dogmática penal clássica passa a sofrer mudanças substanciais.

Desta forma, os sistemas peritos abordados passam a influenciar di-retamente a política criminal, expandindo a técnica legislativa chamada de lei penal em branco. Isso ocorre, pois o legislador, como indivíduo inserido no determinado contexto social da modernidade, também padece de conhecimen-tos técnicos suficientes acerca de todas as matérias que envolvem situações que devem ser tuteladas pelo direito.

Além disso, o Poder Legislativo não detém meio e estrutura satisfa-tória para acompanhar a constante evolução tecnológica e sua elevada carga técnica, mormente por estar adstrito a um processo legislativo deveras moroso.

Neste sentido é a lição de Guaragni125:Numa sociedade de conhecimentos sofisticados, o Poder Legislativo não dá conta de atingir o conjunto de conhecimentos técnicos reque-ridos para intervir penalmente nos correspondentes setores da vida econômica. Daí produzir-se uma necessidade da categoria dogmática da norma penal em branco, e a intensificação do respectivo uso na política criminal econômica e ambiental.

125 GUARAGNI, Fábio André. Norma penal em branco, tipos abertos, elementos normativos do tipo e remissões a atos concretos de autorização administrativa: o panorama político-criminal comum, distinções e repercussões relativas ao princípio da reserva legal. Trabalho inédito. Curitiba, 2012.

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Por essa razão surge a necessidade de incumbir a detentores de conhe-cimentos técnicos específicos a tarefa de produzir regulamentos que completem as normas penais em branco, viabilizando, assim, a tutela penal.

Estes conhecimentos técnicos, conforme ensina Guaragni126, é encon-trado no Poder Executivo:

Usualmente, o Estado conta com técnicos detentores destes conhe-cimentos no âmbito do Poder Executivo. O executivo, mediante ati-vidade administrativa munida de poder de polícia, realiza controles sobre tais áreas. Com este escopo, os especialistas do corpo funcional do poder executivo produzem regulamentos que completam as nor-mas penais em branco, nutrindo-as de dados técnicos sofisticados que o legislador não possui.

É neste contexto que a categoria dogmática da norma penal em bran-co de expande. Tem-se, portanto, o advento da modernidade circundada com a chamada sociedade de risco, com toda a complexidade a si inerente, com os sistemas peritos como forma de viabilidade da vida na modernidade.

Submetida a sociedade em uma complexidade de sistemas peritos que viabilizam a vida na modernidade, o direito, da mesma forma, deve ser subme-tido a este sistema para acompanhar os anseios e percalços da sociedade.

Como dito, e é importante frisar, não se mostra razoável sujeitar o legislador à proteger novos bens jurídicos penalmente relevantes que dependem de uma maior eficiência e tecnicidade, sob pena de não haver proteção alguma e, ainda mais preocupante, de submeter toda a sociedade a erros crassos que poderiam gerar uma grande insegurança jurídica.

Diante deste panorama, torna-se cogente uma técnica legislativa que per-mita que haja em uma determinada norma penal remissões a regulamentos técnicos e específicos para que possa complementar o preceito primário do tipo penal, per-mitindo uma abrangência mais segura e delimitada do que se pretende tutelar.

A norma penal em branco é a categoria dogmática que cumpre este papel, ao se tratar de uma norma que não possui um traçado completo da con-duta que se procura proibir, exigindo, para isso, outra fonte normativa que a complete.

Atribui-se a Karl Binding a identificação desta categoria de normas sancionadoras que dependem de outra fonte normativa para sua complemen-tação, constatando, assim, a existência de lex imperfectas, denominando-as de blankettstrafgesetze.127

126 GUARAGNI, 2012, p.14.127 ALFLEN, Pablo. O risco da técnica de remissão das leis penais em branco no Direito

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Importante mencionar aqui uma breve diferenciação entre a norma penal em branco e os tipos abertos. Conforme ensina Guaragni128, “as normas penais em branco são espécies do gênero normas penais incriminadoras incom-pletas, formando par com os tipos abertos”.

Em ambos os casos a norma incriminadora é incompleta no preceito pri-mário do tipo. A diferença entre elas reside na forma de complementação. Enquanto a norma penal em branco é completada por uma outra fonte normativa formal, os tipos abertos são complementados pelo operador do direito no caso concreto.

A norma penal em branco comporta algumas classificações. Assim, ela pode ser em sentido amplo, ou homóloga, ou homogênea, quando o complemento da norma se dá por uma mesma lei ou outra lei de igual hierarquia. No primeiro caso, é chamada de homovitelina. Trata-se de uma remissão interna na qual o dispositivo faz remissão a outro dispositivo contido na mesma lei. No segundo caso, é chamada de heterovitelina e são os casos de remissão externa em que o dispositivo remete a outro dispositivo de outra lei, mas da mesma hierarquia.

Pode ser classificada também em norma penal em branco em sentido estrito, ou heteróloga, ou heterogênea, ocasião em que a norma complementa-dora é de uma fonte normativa de instância legislativa diversa, podendo, por exemplo, ser uma portaria, resolução, entre outras.

Percebe-se, diante do que foi exposto, que a norma penal em branco em sentido estrito que adquire especial relevo, uma vez que é nesta categoria que a complementação do tipo penal será realizada pelos especialistas, uma vez que são editadas por instâncias legislativas inferiores, inclusive no âmbito do poder executivo, através de portarias e resoluções.

5. PROBLEMAS À RESERVA LEGAL

Importa fazer breves considerações, aqui, acerca do princípio da le-galidade, princípio este que fundamenta e legitima o modelo do direito penal formado a partir da concepção contratualista do período humanitário, ou seja, de um direito penal como garantia do indivíduo frente ao poder do Estado.

Dito princípio se baseia no axioma de que não há crime sem lei an-terior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal (nullum crimen nulla poena sine lege), ou seja, a norma incriminadora deve descrever expres-samente a conduta reprovada, bem como a sanção como consequência à deso-bediência da norma.

Penal da Sociedade do Risco. Polít. Crim. nº 3, 2007. A7, p. 3. Disponível em: <http://www.politicacriminal.cl/n_03/a_7_3.pdf>. Acesso em: 28 nov 2012.128 GUARAGNI, 2012, p. 10.

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Desta forma, assevera Mir Puig129 queO princípio da legalidade não é somente, então, uma exigência de segurança jurídica, que permita apenas a possibilidade de conheci-mento prévio dos delitos e das penas, mas também a garantia de que o cidadão não poderá se ver submetido por parte do Estado nem dos juízes a penas que o povo não admita. (tradução nossa)

Destarte, o princípio da legalidade é corolário de um direito penal de garantias, que funciona como o maior limitador formal do poder arbitrário do Estado contra o cidadão. Com propriedade esclarece Antonio García-Pablos de Molina130, acerca do referido princípio: “Constitui o primeiro princípio li-mitador do ius puniendi estatal. Mas se trata, fundamentalmente, de um limite “formal” porque afeta não tanto o conteúdo do poder punitivo do Estado como aos seus pressupostos e condições de exercício.” (tradução nossa)

O princípio da legalidade possui quatro funções primordiais para sua perfeita configuração no sentido de garantia aos cidadãos, que aqui iremos bre-vemente expor131.

A primeira seria a da irretroatividade da lei penal (nullum crimen nulla poena sine lege praevia), ou seja, o princípio da legalidade atua aqui para proibir as leis ex post factum. O sujeito precisa saber que no momento em que atua se vai incorrer em algum delito tipificado na legislação penal132.

A segunda função seria a proibição dos costumes como fonte de deli-tos e penas (nullum crimen nulla poena sine lege scripta). Somente a lei formal pode criar crimes e penas, muito embora os costumes sejam importantes para a elucidação do conteúdo dos tipos. Desta forma, não devemos considerar os costumes como algo totalmente alheio ao direito penal133.

Portanto, o que se deve buscar, primordialmente, com a lex scripta, nada mais é do que a segurança jurídica aos cidadãos, através da lei positivada.

129 El principio de legalidad no es sólo, entonces, una exigencia de seguridad jurídica, que permita sólo la posibilidad de conocimiento previo de los delitos y las penas, sino además la garantía de que el ciudadano no podrá verse sometido por parte del Estado ni de los jueces a penas que no admita el pueblo. (MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. 2.ed. Buenos Aires: B de f, 2003. p. 127.)130 Constituye el primer principio limitador del ius puniendi estatal. Pero se trata, fundamentalmente, de un límite "formal" porque afecta no tanto al contenido mismo del poder punitivo del Estado como a sus presupuestos y condiciones de ejercicio. (MOLINA, Antonio García-Pablos de. Derecho Penal: Introducción. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 2000. p. 320.)131 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.132 MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal: Parte General. 7.ed. Barcelona: Reppertor, 2004. p. 116.133 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 25.

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A terceira função é proibir a analogia para criar crimes, ou fundamen-tar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta).

A quarta e última função do princípio da legalidade é a proibição de incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa). Para Assis Toledo134, “a exigência de lei certa diz com a clareza dos tipos, que não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de nor-mas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios.”

Neste sentido e concluindo, Nilo Batista135 esclarece que

Formular tipos penais “genéricos ou vazios”, valendo-se de “cláusu-las gerais” ou “conceitos indeterminados” ou “ambíguos”, equivale teoricamente a nada formular, mas é prática e politicamente muito mais nefasto e perigoso.

Portanto, é de suma importância para o Direito Penal que a técnica le-gislativa seja de tal forma “aprimorada”, que permita um ordenamento jurídico--penal fechado e de clara e possível interpretação, possibilitando a este atingir a garantia ao cidadão e seu fácil acesso ao ordenamento.

Ocorre que, diante das perspectivas da modernidade, percebe-se a construção progressiva de novos paradigmas penais capazes de atender a essas características hodiernas da sociedade de risco, razão pela qual a dogmática penal clássica e seus princípios basilares passam a sofrer distensões.

No direito penal moderno, seja no direito penal ambiental, seja no di-reito penal econômico, cada vez mais surgem tipos penais que remetem a outra norma para sua complementação.

Passa-se, assim, a se quetionar se isso não configuraria uma verdadei-ra insegurança jurídica, flexibilizando um princípio de imperiosa importância para os limites da política criminal, qual seja o da legalidade, principalmente no que diz respeito à função da Lex certa. Muñoz Conde136 adverte que

o direito penal deve criar os pressupostos de suas normas de um modo autônomo e no que possível sem remissões expressas a outros ramos do ordenamento jurídico. Somente quando existam razões técnicas e políticos criminais muito precisas e evidentes pode se recorrer a este

134 Ibid., p. 24.135 BATISTA, 2007, p. 78.136 el derecho penal debe crear los presupuestos de sus normas de un modo autónomo y en lo posible sin remisiones expresas a otras ramas de ordenamiento jurídico. Sólo cuando existan razones técnicas y políticocriminales muy precisas y evidentes puede recurrirse a este procedimiento. Pero aun en este caso debe procederse con sumo cuidado. (CONDE, Francisco Muñoz. Introducción al Derecho Penal. 2.ed. Buenos Aires: B de f, 2001. p. 113.)

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procedimento. Mas ainda neste caso deve se proceder com muito cui-dado. (tradução nossa)

Portanto, muito embora haja, nos dias de hoje, a preferência por tipos penais em branco em razão da complexidade e mutabilidade da nova socieda-de globalizada, esta “técnica” da política criminal pode se mostrar como um campo inseguro para a sociedade de um Estado Democrático de Direito, já que flexibiliza garantias consagradas pelo direito penal humanitário.

A problemática da norma penal branco reside em sua dimensão estri-ta, ou seja, naquela em que a complementação provém de fonte normativa de instância legislativa diversa daquela do tipo remissivo, uma vez que esta “gera atrito com a competência constitucional exclusiva para produção da norma pe-nal reservada ao Poder Legislativo da União”137.

Surge, assim, o primeiro ponto controverso sobre a norma penal em bran-co. A remissão do tipo à normas de outras instâncias e de outros poderes, configu-raria inconstitucionalidade, uma vez que a competência para legislar em matéria penal é privativa da União, com o devido processo legislativo? A resposta é não necessariamente. Para haver constitucionalidade, o legislador há de observar li-mites quando do reenvio. Um deles é cingir o complemento do branco a dados técnicos, quando as razões do reenvio radicam na necessidade de conhecimento ligados a sistemas-peritos, não dominados pelo legislador. Outro é não fazer remis-são dos verbos típicos. O comportamento proibido deve ser definido na lei (verbos núcleos do tipo fundamentalmente, bem como definição de sujeitos ativo e passivo, contornos mínimos do objeto material e demais circunstâncias que interessem ao tipo), dando-se apenas um ajuste de conhecimento científico específico mediante o reenvio a normas editadas por fonte legiferante anômala. Nestes termos, não há qualquer inconstitucionalidade. A definição do comportamento proibido obedece à reserva de lei, garantindo a participação popular, mediante seu representante-legis-lador. Mais: convocam-se técnicos que possuem competências regulamentares de caráter constitucional para, mediante estas mesmas competências, darem contornos técnicos finais ao tipo legal necessitado de aporte técnico-científico.

Por outro lado, parece inconstitucional a norma penal em branco que proce-de ao reenvio integral – e não parcial – da matéria de proibição, inclusive verbos típi-cos e definição integral do objeto material por fonte não legislativa em sentido estrito.

Para além do já exposto, a crítica da inconstitucionalidade estende-se às tensões que esta técnica legislativa produz no princípio da legalidade, mor-mente no que se refere às funções da lex certa e lex praevia.

Primeiramente, para compreender a problematização, deve-se frisar que a norma penal em branco exige uma complementação externa para se perfazer o tipo

137 GUARAGNI, 2012, p. 23.

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penal incriminador capaz de tutelar penalmente determinado bem jurídico-penal.Torna cristalino, por conseguinte, o grande problema que isso gera no

que diz respeito à lei prévia. Se existe um complemento externo que molda o tipo penal, pergunta-se: alterando este complemento, há sucessão de leis penais?

Observa-se que a mudança pode se dar tanto do tipo penal remissivo, quanto de seu complemento, como pode haver mudança apenas no complemen-to, assim como pode haver mudança somente na norma penal em branco.

Para cada caso, uma situação distinta, mas o que suscita maiores dis-cussões diz respeito às mudanças apenas no complemento da norma penal em branco. Tais complementos, em regra, se caracterizam por uma grande mutabi-lidade e tecnicidade. Havendo constantes modificações em tais complementos, logo, em tese, ter-se-ia uma constante sucessão de leis penais, o que implicaria em uma enorme insegurança jurídica.

Por outro bordo, a análise da retroatividade do complemento de uma norma penal em branco depende de uma contextualização. Cada caso concreto pode significar efetiva sucessão de lei penal ou não. Para ilustrar a essencialida-de do contexto, Guaragni138 ensina que

Se a norma extrapenal é admitida como integradora do branco em contexto de temporariedade, motivada pela necessidade de proteção de bem jurídi-co-penal sob uma dada circunstância, premida por uma situação anômala (de modo similar às leis temporárias ou excepcional, regentes de situações anormais passageiras, que demandam uma verdadeira ordem jurídica de exceção), a revogação ou alteração para melhor dela, quando passada a situação anômala que a justificou com a redação primitiva, não tem efeito retroativo. O contexto e o motivo da integração eram diversos dos atuais, de modo que não há isonomia em tratar-se de modo mais brando a situação que se deu noutro contexto. Ao contrário: violar-se-ia a noção de igualdade.

Além disso, ainda que a alteração do complemento da norma em branco não se dê em caráter de temporariedade ou excepcionalidade, pode não retroagir a favor do réu: basta que não altere o conteúdo típico de desvalor cons-truído pelo legislador. No direito penal de trânsito, a infração de uma norma penal em branco que convoque normas administrativas de trânsito relativas, por exemplo, à mão correta de direção, não será desconstituída, mediante retroativi-dade da lex mitior, se no local do fato passar a incidir norma administrativa de trânsito complementar do branco que inverta a mão de direção antes violada.

A seu turno, pari passu, há uma relativização no que diz respeito à lex certa, na medida que os complementos da norma penal em branco, muitas das

138 Ibid., p. 31.

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vezes vigentes no ordenamento jurídico penal através de portarias e resoluções, não são facilmente acessíveis aos cidadãos comuns.

Aqui fica evidente a influência dos sistemas peritos. Os complemen-tos, em regra, carregam um elevado teor técnico, além de que estão em cons-tantes mutações, reflexo da sociedade moderna, dificultando sua compreensão e capacidade dos cidadãos de conhecerem exatamente a proibição.

Pablo Alflen139 bem resume preocupações acerca da relativização à lex certa, desencadeada pelo uso excessivo da norma penal em branco no orde-namento jurídico:

o moderno legislador segue uma tendência à experimentação, orien-tando-se pelas consequências, e quanto mais o legislador penal toma em consideração as consequências, preocupando-se com os efeitos empíricos da sua atuação (e justifica a sua atuação pela produção e pela falta de tais efeitos) tanto mais ameaça a lex certa e à medida em que se formulam preceitos pouco claros, imprecisos, extremamente flexíveis, as questões que não são resolvidas pelo legislador ficam en-tregues ao desenvolvimento judicial, e aqui reside o risco maior, pois a jurisprudência pode desenvolver uma norma formulada de modo flexível em uma direção completamente oposta àquela que queria lhe dar o legislador.

Por força de tais preocupações, a norma penal em branco deve ser em-pregada com parcimônia e cercada de limites. Por outro lado, observados os li-mites e a parcimônia, uma vez contextualizada em uma sociedade de risco, tem sólidos fundamentos para ser empregada como técnica de reenvio pelo legislador.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Portanto, o debate em torno da norma penal em branco se mostra pro-eminente e necessário para buscar soluções que conciliem as vantagens que carrega quando do tratamento de dados técnicos pelo direito penal com a re-lativização do princípio da reserva legal, nos aspectos da lex praevia et certa. Não se pode desconsiderar que a modernidade exige mudanças no direito para a tutela de novas “demandas” sociais.

Ao passo que a norma penal em branco culmina em relativizações de garantias que até então moldaram o direito penal de bases iluministas e servi-ram para a proteção da própria sociedade, não se pode olvidar que se trata de uma categoria dogmática efetiva para também proteger a sociedade dos riscos que a modernidade trouxe à baila.

139 ALFLEN, 2007, p. 16.

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São dois lados de uma mesma moeda que devem ser conciliados. Não se mostra razoável renegar a norma penal em branco ao sistemático argumento de sua inconstitucionalidade. Este argumento esbarra na própria CR, quando erige em indicação constitucional criminalizadora o tráfico de drogas, multici-tado exemplo de norma penal em branco. O certo é que, impostos determinados limites à sua utilização, pode se apresentar como um eficiente instrumento para a proteção dos seres humanos, nomeadamente frente ao caráter supraindividual dos bens jurídicos tipicamente vulnerados no curso das atividades econômico--industriais e comerciais. Cumpre ao direito penal correlato guarnecê-los.

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REFERÊNCIAS

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DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, CONTRADITÓRIO E DEFESA TÉCNICA: A PARIDADE DE ARMAS NOS EMBATES ENTRE FORNECEDORES

E TOMADORES DE CRÉDITO

ViVianE coêlho DE SélloS-KnoErr

mariana mEnDES carDoSo oiKaWa

SUMÁRIO: I. Introdução; II. A dignidade da pessoa humana e o acesso adequado à justiça; II.1. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana; II.2. O direito fun-damental de acesso adequado à justiça no âmbito da dignidade da pessoa humana; III. O papel do consumidor na sociedade do crédito e do endividamento; III.1. Uma sociedade de consumo, de crédito e de dívidas; III.2. Uma análise da vulnerabilidade do consumidor de crédito; IV. Os embates judiciais entre fornecedores e consumidores de crédito; IV.1.A tentativa legal de estabelecer a paridade de armas; IV.2. A realidade indigna dos consumi-dores; V. Conclusão; VI. Referências bibliográficas.

RESUMO

O princípio da dignidade da pessoa humana ocupa, a exemplo do que ocorre na maioria dos países, posição central em nosso ordenamento. Consi-derado o valor central, deve a promoção da dignidade ser o objetivo de todo o ordenamento e de toda a sociedade. Frente a uma socialidade extremamente de-sigual, fundada essencialmente no consumo e no endividamento, o ideal de uma existência digna não atinge a todos. O tratamento indigno recebido pela massa de consumidores é refletido nos embates judiciais por estes travados, como uma continuidade da situação muitas vezes degrada que experimentam no âmbito social. Na busca pela efetivação do mais caro princípio do ordenamento pátrio, a legislação processual avança, mas não de forma suficiente, na busca pela pari-dade de armas nestes embates. O que se observa, no entanto, é que tais medidas são insuficientes ante o abismo que separa a defesa técnica dos envolvidos.

Palavras-Chave: Dignidade da pessoa humana; Acesso à justiça; Contraditório; Ampla defesa; Consumidor; Fornecedor; Sociedade de consumo; Endividamento; Embate judicial; Paridade de armas; Busca de igualdade; Defesa técnica; Desigualdade.

INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo central analisar a busca pela promo-

ção da dignidade do consumidor nos embates judiciais travados por estes em face dos fornecedores. Para tanto, o estudo partirá de uma análise principiológica, passa-

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rá por uma observação da realidade social para, por fim, adentrar no ponto principal, qual seja, os embates judiciais estabelecidos entre consumidores e fornecedores.

Em sendo a dignidade da pessoa humana o mais importante princípio do ordenamento jurídico pátrio, certo que todo este, assim como a sociedade, deve por ele se pautar. A busca pela efetivação deste princípio deve ser objetivo não apenas do Estado, mas de toda a sociedade.

Há, conforme será demonstrado, uma intrínseca relação entre a dignidade da pessoa humana e o acesso à justiça. Não há como efetivar tal princípio sem que se garanta a todos um adequado acesso à justiça, o qual, certamente, não se limita ao simples direito de buscar uma resposta do Poder Judiciário a uma demanda.

Visando tratar da questão do adequado acesso à justiça dos consu-midores, importante analisar a atual conformação da sociedade, uma vez que o direito nada mais é que o reflexo dos anseios desta. O que se buscará neste ponto é delinear o papel ocupado pelo consumidor frente ao fornecedor, dando especial enfoque à questão da dignidade daquele frente a este.

Com base nas conclusões extraídas nos tópicos anteriores, chegar-se-á ao ponto central do trabalho, no qual serão correlacionados a dignidade da pessoa humana, o contraditório e a defesa técnica, a fim de se aferir a existência, ou não, da paridade de armas nos embates entre fornecedores e tomadores de crédito.

II.A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O ACESSO ADEQUADO À JUSTIÇA

II.1. O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

De início, insta destacar que não é pretensão do presente trabalho re-alizar uma exaustiva análise da dignidade da pessoa humana. O que se objetiva neste tópico é traçar um panorama do referido princípio fundamental, para que, posteriormente, seja possível debruçar-se sobre o seu conteúdo, aprofundando--se no estudo do direito de acesso adequado à justiça.

a) Um breve apanhado histórico da evolução da noção de dignida-de: da Antiguidade ao pensamento kantiano

A noção de dignidade da pessoa remonta a Idade Antiga, ganhando importantes contornos com o advento do cristianismo. Na Antiguidade Clássi-ca, o pensamento filosófico e político correlacionava a dignidade com a posição social pelo indivíduo ocupada, existindo, dentro de uma mesma sociedade, pes-soas mais e menos dignas. É o pensamento cristão que concebe, pela primeira vez, uma dignidade individual, atribuída a cada um dos homens140.

140 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e

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Entretanto, é no estoicismo, capitaneado por Cícero, que a ideia de igualdade dos homens, e consequentemente da dignidade, passa a tomar corpo. Esta concepção atravessa a Idade Média, alcançando o jusnaturalismo dos sécu-los XVII e XVIII. É o pensamento jusnaturalista que sedimenta a ideia de igual-dade humana, afirmando a dignidade como um direito, natural, a todos comum141.

Deve-se destacar, entretanto, que é somente com Immanuel Kant que a dignidade abandona as suas “vestes sacrais”. O entendimento kantiano, utilizado por parte expressiva da doutrina, enuncia a autonomia ética do homem como o fundamento de sua dignidade. A dignidade apresenta-se como atributo de todos os homens, e somente destes, tendo em vista a racionalidade que os caracteriza142.

Na esteira do abandono do pensamento cristão, é de suma relevância na concepção kantiana de dignidade a afirmação de sua inafastabilidade. Além disso, de Kant, permanece o entendimento de que, em sendo a pessoa o fim, nunca um meio, deve-se repudiar “toda e qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano”143.

b) A positivação do princípio da dignidade: o fenômeno da cons-titucionalização

Em que pese a noção de dignidade da pessoa datar da Idade Antiga, pode-se afirmar ser recente a sua positivação. É somente no decorrer do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, que a grande parte das constituições ocidentais passa a trazer tal previsão144.

Como bem anota Rizzatto NUNES, é a experiência nazista, marcada por atrocidades sem precedentes, que conscientiza a sociedade ocidental da obrigato-riedade de preservação, a qualquer preço, da dignidade da pessoa humana145. Tem início, a partir de então, um movimento pelapositivação do referido princípio.

Sobre a questão, as palavras de Carmem Lúcia Antunes ROCHA146:

Os desastres humanos das guerras, especialmente aquilo que assistiu o mundo no período da Segunda Guerra Mundial, trouxe, primeiro, a dignidade da pessoa humana para o mundo do direito, como

conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2006. p. 111 a 113.141 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 8. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 31 a 35.142 SARLET, 2010. p. 36 a 39.143 SARLET, 2010. p. 41 e 42.144 SARLET, 2010. p. 72.145 NUNES, Rizzatto. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.p. 48 e 49.146 ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 22.

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contingência que marcava a essência do próprio sociopolítico a ser traduzido no sistema jurídico.(sem grifos no original)

Assim, fundadas no clamor social e político, as constituições ociden-tais, em sua maioria, passam a consagrar em seus textos o princípio da dignida-de da pessoa humana.

Na Alemanha, por exemplo, a Lei Fundamental de Bonn, datada de 1949, estabelece, em seu primeiro artigo, que “a dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo poder o poder públi-co”. E continua o referido dispositivo: “O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”.

A Constituição Italiana de 1947, por sua vez, dispõe, em seu artigo 3º, que “todos os cidadão têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei”. No mesmo sentido, a Constituição Espanhola de 1975, segundo a qual “a dignidade da pessoa, os direitos invioláveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento da personali-dade, o respeito à lei e aos direitos dos demais são fundamentos da ordem política e da paz social”. Ainda, de 1976, a Constituição Portuguesa, que estabelece que “Por-tugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na von-tade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

No âmbito internacional, merece ser citada a 1ª Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas, em 1948. De acordo com esta, “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

Na mesma corrente, o texto constitucional brasileiro de 1988 não só positiva o mencionado princípio, mas eleva-o, pela primeira vez, ao status de norma fundamental.

Já em seu artigo 1º, a Constituição Federal passa a apontar a dignida-de da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito bra-sileiro. Tal disposição acaba por alterar os contornos do próprio sistema jurídico já existente, conforme anota Ingo Wolfgang SARLET147:

Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Es-tado democrático (e social) de Direito (art. 1º, inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha –, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que

147 SARLET, 2010. p. 75.

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existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal.

Nas palavras do já citado Rizzatto NUNES, a opção do constituinte deu à dignidade da pessoa humana contornos de “um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais”, não podendo “ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, aplicação ou criação de normas jurídicas”148.

No mesmo sentido, importante transcrever trecho da obra de Maria Celina Bodin de MORAES149:

A Constituição consagrou o princípio e, considerando a sua eminência, proclamou-o entre os princípios fundamentais, atribuindo-lhe o valor supremo de alicerce da ordem jurídica democrática. Com efeito, da mesma forma que Kant estabelecera para a ordem moral, é na dignida-de humana que a ordem jurídica (democrática) se apoia e constitui-se.

O valor hermenêutico do princípio fundamental da dignidade da pes-soa humana é incontestável. A positivação jurídico-constitucional do referido princípio elevou-o à categoria de fundamento da ordem jurídica, regedor, por-tanto, de todo o sistema. Diante da importância assumida, importante se mostra o estabelecimento de um conceito, bem como a análise do seu conteúdo.

c) Princípio da dignidade da pessoa humana: conceito e conteúdo

Inicialmente, deve-se ter observar que não é a positivação da dig-nidade que estabelece, por óbvio, seu conteúdo. Neste sentido, anota a já citada autora Carmen Lucia Antunes ROCHA150:

O sistema normativo de Direito não constitui, pois, por óbvio, a dig-nidade da pessoa humana. O que ele pode é tão-somente reconhecê--la como dado essencial da construção jurídico-normativa, princípio do ordenamento e matriz de toda organização social, protegendo o homem e criando garantias institucionais postas à disposição das pes-soas a fim de que elas possam garantir a sua eficácia e o respeito à sua estatuição. A dignidade é mais um dado jurídico que uma construção

148 NUNES, 2002. p. 51.149 MORAES, Maria Celina Bodin de, 2006. p. 117.150 ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. In: Revista de interesse público, Porto Alegre, n. 4, p. 23-47, 1999. p. 25.

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acabada no Direito, porque se firma e se afirma no sentimento de jus-tiça que domina o pensamento e a busca de cada povo em sua busca de realizar as suas vocações e necessidades.

O ordenamento jurídico vem, como destaca Maria Celina Bodin de MORAES, enunciar um valor que já se encontra “cristalizado na consciência coletiva”151. O conteúdo, portanto, da dignidade da pessoa humana não é deter-minado pela lei, mas sim pelo pensamento social, político e filosófico.

Esta evolução do pensamento filosófico e político foi essencial ao de-senvolvimento da atual concepção de dignidade. Como dito, esta não é fruto da positivação, mas de aspectos históricos, políticos, sociais e culturais que aca-bam determinando o seu conteúdo e dificultando a enunciação de um conceito que contemple todas as suas dimensões.

Em que pese esta dificuldade, importantes doutrinadores não se esqui-varam da tarefa e conceituaram, em suas obras, conceitos do princípio funda-mental da dignidade da pessoa humana. De início, merece citação a definição de Alexandre de MORAES, que, valendo-se do pensamento kantiano, afirma ser aquela “um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta sin-gularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”152.

Carmen Lucia Antunes Rocha. enunciando a origem do princípio, adota o entendimento predominante de ser este ao inerente ao ser humano153:

Dignidade é o pressuposto da idéia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimen-to. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pes-soal ou social. Não se há de ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal. (...). Toda pessoa humana é digna. Essa singularidade fundamental e insubstituível é ínsita à condição humana do ser humano, qualifica-o nessa categoria e o põe acima de qualquer indagação.Posteriormente, faz a autora importante reflexão acerca da dimensão

da dignidade, esclarecendo-a154:

Quando retorna com novo conteúdo e contornos fundamentais no Direi-to contemporâneo, aquela palavra, referindo-se à pessoa humana, ganha

151 MORAES, Maria Celina Bodin de, 2006. p. 116.152 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 16.153 ROCHA, Carmen Lucia Antunes, 1999, p. 25.154 ROCHA, Carmen Lucia Antunes, 1999, p. 27.

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significado inédito, qual seja, passa a respeitar à integridade e à inviolabi-lidade do homem, e não apenas tomados tais atributos em sua dimensão física, mas em todas as dimensões existenciais nas quais se contém a sua humanidade, que o lança para muito além do meramente físico.

Nesta busca, vale transcrever, novamente, trecho de obra de Ingo Wolfgang SARLET, cujo conceito parece bastante aplicável à realidade que se apresenta155:

(...) tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres funda-mentais que assegurem a pessoa tanto quanto todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.

É relevante neste conceito a afirmação de que o princípio da digni-dade da pessoa humana implica uma série de direitos e deveres fundamentais, os quais, ao serem observados, garantem a concretização daquele. Dentre tais direitos, não remanescem dúvidas que está presente, de forma destacada, o de acesso adequado à justiça, sobre o qual tratará o tópico que segue.

II.2. O DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO ADEQUADO À JUSTIÇA NO ÂMBITO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Conforme anteriormente anotado, da dignidade da pessoa humana emergem diversos direitos e deveres fundamentais cuja observância garante a preservação daquela. Em verdade, como bem afirma Luiz Edson FACHIN, os direitos fundamentais são inerentes à dignidade, traduzindo as suas exigências e as concretizando156.

Dentro deste contexto, observado o valor fundamental da dignidade da pessoa humana, certo é que o direito de acesso adequado à justiça, vez que uma das mais importantes garantias fundamentais do Estado Democrático de

155 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Revista brasileira de direito constitucional, n. 9, p. 361 a 388, jan./ jun. 2007. p. 383.156 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 12.

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Direito,nele encontra guarida. Neste sentido, relevante é a observação de Gus-tavo de Medeiros MELO157:

O processo se tornou um instrumento ético de democratização das de-cisões do Estado, assumindo de vez a postura de veículo de realização dos valores básicos consagrados no sistema constitucional que institui o Estado democrático de Direito.

É a partir do reconhecimento da instrumentalidade do processo que deve ser analisado o direito de acesso adequado à justiça. Hoje, mostrando-se indiscutível a importância do processo para fins de efetivação dos preceitos democráticos, a concepção de acesso à justiça perpassa a noção de mera possi-bilidade de petição ao Poder Judiciário para acesso a uma decisão. Relevante é, portanto, realizar uma breve digressão histórica para, posteriormente, adentrar à detida análise do direito em questão.

a) Um breve apanhado histórico da evolução da concepção de acesso à justiça: de um direito meramente formal a um direito materialmente voltado à justiça social

Verifica-se que, no Estado liberal burguês dos séculos XVIII e XIX, a concepção de acesso à justiça limitava-se ao direito de ação. Este, por sua vez, correspondia ao direito meramente formal do indivíduo de propô-la ou de contestá-la caso demandado158.

Com o decurso do tempo, a concepção burguesa de Estado passou, ela mesma, a ser questionada. O quadro socioeconômico que decorreu da apro-priação ilimitada de bens do capitalismo liberal e da atuação estatal mínima, acabou por destacar o aspecto meramente formal da tão propalada igualdade burguesa. No mundo real, a liberdade, assim como a igualdade, apresentou-se apenas formalmente, uma vez que eram desconsideradas as desigualdades fá-ticas existentes. Tal quadro determinou, inevitavelmente, um novo contexto de opressão, desta vez capitaneado pela burguesia dominante.

Esta realidade de desigualdades materiais limitadoras da liberdade individual acaba por conclamar uma nova forma de atuação estatal, agora ati-va, fundada no reconhecimento das reais desigualdades e na busca pela justiça

157 MELO, Gustavo Medeiros. O acesso adequado à justiça na perspectiva do justo processo. 2006. Disponível em http://www.ibds.com.br/artigos/ESSOADEQUADOaJUSTIcANAPERSPECTIVADOJUSTOPROCESSO.pdf. Acesso em 01.08.2012. p. 2. 158 CAPPELLETTI, Mauro & GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1988.p. 9.

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social e econômica159. Emerge o Estado Social e, com ele, o direito de acesso à justiça assume nova feição. Sobre o tema, transcreve-se breve excerto da obra de Luiz Guilherme MARINONI160:

Sabe-se, porém, que, quando as liberdades públicas passaram a ser vistas como privilégio de alguns, ou como privilégios burgueses, o Estado deu uma nova roupagem e dimensão aos antigos direitos e instituiu direitos pensados como fundamentais para uma organização justa e igualitária da sociedade, abrindo também oportunidade para que ao direito de ação fossem agregados outros conteúdos.

A partir de então, o direito de acesso à justiça passa a desenvolver-se na direção da justiça social. Pouco a pouco, ele abandona o viés essencialmente técnico-processual, assumindo caráter social, passando a impor ao Poder Públi-co “o compromisso com o fornecimento de uma tutela jurisdicional de qualida-de, capaz de solucionar o conflito de modo adequado e correspondente com os valores essenciais do Estado Democrático de Direito”161.

Sobre a questão, reproduz-se novo trecho da obra do já citado Autor Luiz Guilherme MARINONI162:

Uma leitura mais moderna, no entanto, faz surgir a ideia de que essa nor-ma constitucional garante não só o direito de ação, mas a possibilidade de um acesso efetivo à justiça e, assim, um direito à tutela jurisdicional adequada, efetiva e tem pestiva. Não teria cabimento entender, com efei-to, que a Constituição da República garante ao cidadão que pode afirmar uma lesão ou uma ameaça a direito apenas e tão somente uma resposta, independentemente de ser ela efetiva e tempestiva. Ora se o direito de acesso à justiça é um direito fundamental, porque garantidor de todos os demais, não há como imaginar que a Constituição da República proclama apenas que todos têm direito a uma mera resposta do juiz.

Hoje, pode-se afirmar que o direito de acesso adequado à justiça possui amplo e complexo conteúdo. Como já tratado, ele não se resume mais ao sim-

159 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 42.160 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: RT, 2010. p. 188.161 MELO,2006. p. 18 e 19.162 MARINONI, Luiz Guilher me. Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e duplo grau de jurisdição. In: CRUZ E TUCCI, José Rogério. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: RT, 1999. p. 218.

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ples direito de ação, assumindo múltiplas dimensões. Como bem destaca José de Albuquerque ROCHA, não se trata o direito de acesso adequado à justiça de “uma situação jurídica simples, mas complexa, pois se compõe de vários poderes, faculdades, deveres e ônus”163.Convém, tendo em vista os objetivos do presente trabalho, tratar, a partir de agora, dos principais elementos do direito em questão.

b) O direito fundamental de acesso à justiça: uma análise dos seus principais elementos

De início, vale tratar de elemento muito importante do direito de aces-so à justiça, porém pouco debatido, vez que referente ao momento pré-proces-sual. É essencial à concretização do direito de acesso adequado à justiça que os indivíduos sejam capazes de reconhecer os seus direitos, para que possam, pela via de consequência, reconhecer a sua violação. Além disso, faz-se necessário que, reconhecidos direito e violação, possuam também os indivíduos o conhe-cimento de que é possível recorrer à tutela judicial em seu favor164.

Ainda no que se refere à “capacidade jurídica pessoal”, há outra im-portante barreira a ser transposta nesta busca pela concretização do direito de acesso adequado à justiça: tendo o indivíduo reconhecido a violação ao seu di-reito e desejando a tutela judicial, deve ele possuir informações essenciais sobre de que forma proceder. O acesso adequado à justiça depende, pode-se afirmar, de um mínimo conhecimento do Poder Judiciário e de seu funcionamento, pelo que “é preciso fazer muito mais para aumentar o grau de conhecimento do pú-blico a respeito dos meios disponíveis e de como utilizá-los”165.

Ainda no que se refere ao acesso aos órgãos jurisdicionais, é impor-tante seja garantida a tão propalada “universalidade da jurisdição”. Em outras palavras, deve-se buscar “a mais ampla admissão de pessoas e causas ao pro-cesso”, mostrando-se imprescindível “eliminar as dificuldades econômicas que impeçam ou desanimem as pessoas de litigar ou dificultem o oferecimento de defesa adequada”166.

Adentrando na esfera processual, fala-se em justo processo. De acor-do com Gustavo Medeiros MELO, à ideia de justo processo correspondem o direito a uma duração razoável do processo, o direito ao contraditório e à ampla defesa e o julgamento por um juiz imparcial, participativo e qualificado167.

163 ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 151.164 CAPPELLETTI, 1988, p. 22 a 25.165 CAPPELLETTI, 1988, p. 22 a 25.166 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini & DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 33 e 34.167 MELO, 2006. p. 18 a 22.

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No que se refere ao fator temporal, certo é que “a demora para a ob-tenção da tutela jurisdicional obviamente repercute sobre a efetividade da ação. (...). O direito de ação exige que o tempo para concessão da tutela jurisdicional seja razoável, mesmo que não exista qualquer perigo de dano”168. Sobre a ques-tão, complementa Gustavo Medeiros MELO169:

Fala-se que o tempo é a dimensão fundamental da vida humana, de-sempenhando no processo idêntico papel. Sendo o processo uma enti-dade da vida social, a demora em sua conclusão corre em detrimento da própria eficácia do direito material que visa proteger.Na verdade, a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legítimos não é útil senão quando obtida em espaço razoavelmente rápido de tempo, sendo por isso indiscutível que a lentidão do aparelho judici-ário provoca o que se tem chamado de fenômeno de compressão dos direitos fundamentais do cidadão. O fator tempo sobressai como elemento determinante para garantir e realizar o acesso à Justiça. Por conseqüência, a natureza dinâmica e extrínseca do processo como ordenação de atos tendentes à definição da lide insere, por inexorável, o tempo como obstáculo a ser adequa-damente administrado.

Elementos centrais do presente estudo, o contraditório e a ampla defesa emergem como garantia fundamental sem a qual não há justo processo e, por via de consequência, não há acesso adequado à justiça. Como bem destaca José de Albuquerque ROCHA, a essencialidade do contraditório e da ampla defesa decorre “da exigência da estrutura dialética do processo”, a qual parte do pressuposto de que “ideia de verdade só pode ser evidenciada pelas teses contrapostas das partes”170.

Há, de início, que destacar que o contraditório e a ampla defesa pos-suem conteúdo diferente. O princípio da ampla defesa refere-se à possibilidade da parte exercer a sua defesa, tecendo argumentos e produzindo provas em seu favor. O contraditório, como destaca Vicente GRECO FILHO tem relação com a igualdade de oportunidades para as partes se manifestarem no processo171. Segue excerto que explica a efetivação do referido princípio172:

O contraditório se efetiva assegurando-se os seguintes elementos: a) o conhecimento da demanda por meio do ato formal de citação; b) a

168 MARINONI, 2010. p. 223 a 224.169 MELO, 2006. p. 20 e 21.170 ROCHA, José de Albuquerque, 2007. p. 32.171 GRECO FILHO,1996, p. 90.172 GRECO FILHO, 1996. p. 90.

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oportunidade, em prazo razoável, de se contrariar o pedido inicial; c) a oportunidade de produzir prova e se manifestar sobre a prova pro-duzida pelo adversário; d) a oportunidade de estar presente a todos os atos processuais orais, fazendo consignar as observações que desejar; e) a oportunidade de recorrer da decisão desfavorável.

Pode-se inferir, da diferenciação realizada, que o princípio da ampla de-fesa é instrumentalizado pelo contraditório. Através da observância aos elementos acima enunciados, efetiva-se a ampla defesa. Há que se destacar, entretanto, que o desenvolvimento do contraditório envolve uma assistência jurídica qualificada.

Em outras palavras, a efetivação do princípio do contraditório, e, con-sequentemente, o da ampla defesa, depende de uma instrução contraditória, o que só se alcança através de profissionais (advogados) qualificados e compro-metidos com os ideais da justiça.

No que se refere ao juiz, certo é que uma tutela adequada exige a sua imparcialidade, a máxima qualificação e a sua participação. Especial destaque dá-se, em razão do objeto central deste estudo, à figura do juiz participativo. Este deve participar ativamente do diálogo processual, possibilitando às partes a produção de suas provas, construindo de forma verdadeiramente o seu convencimento. Em suma, “o juiz não deve ser mero espectador dos atos processuais das partes, mas um protagonista ativo de todo o drama processual”173.

Não se busca aqui adentrar na discussão sobre a possibilidade, ou não, de produção probatória pelo juiz. O que se espera do magistrado é que efetiva-mente participe dos atos processuais, verdadeiramente conduzindo as audiên-cias, ouvindo as partes e as testemunhas, analisando os pedidos de produção de provas, observando o comportamento dos envolvidos etc.

Por fim, fala-se da efetividade e da justiça das decisões. Não há dúvidas serem estes elementos de suma importância para a concretização do direito de acesso adequado à justiça. Sobre este ponto, segue importante exceto de obra de Antonio Car-los de Araújo CINTRA, Ada Pellegrini GRINOVER e Candido DINAMARCO174:

Todo processo deve dar a quem tem direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter. Essa máxima de nobre linhagem doutrinária constitui verdadeiro slogan dos modernos movimentos em prol da efetividade do processo e deve servir de alerta contra tomadas de posição que tornem acanhadas ou mesmo inúteis as medidas judi-ciais, deixando resíduos de injustiça. Insta destacar que o objetivo deste tópico não é exaurir a análise do

direito de acesso à justiça. Na análise do seu conteúdo, buscou-se apenas des-

173 CINTRA, 2003. p. 34.174 CINTRA, 2003. p. 34.

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tacar, dentre os seus principais elementos, aqueles que serão úteis ao estudo que se desenvolverá nos próximos tópicos. Em tempo, remanesce o dever de observar que o direito de acesso à justiça possui um núcleo mutante, que, em razão de seu viés social, abarca continuamente novas garantias.

III. O PAPEL DO CONSUMIDOR NA SOCIEDADE DO CRÉDITO E DO ENDIVIDA-MENTO

III.1. UMA SOCIEDADE DE CONSUMO, DE CRÉDITO E DE DÍVIDAS

A análise da posição pelo consumidor ocupada nos embates judiciais reflete a posição que este ocupa na sociedade. Assim, para que seja possível uma real compreensão do papel que é ocupado pelo consumidor, em especial o de crédito, na sociedade, essencial se mostra seja realizada, ainda que perfunc-toriamente, uma análise desta.

Com o advento da Revolução Industrial, inaugura-se uma nova forma de produção. Fala-se, a partir de então, em produção em massa, a qual necessi-tava, para garantir os interesses dos industriais burgueses, ávidos pelo lucro, de um consumo igualmente massificado. Assim, visando fomentar a demanda pe-los produtos produzidos pela burguesia industrial, passa-se a induzir a mudança de hábitos nos indivíduos, introduzindo-os na era do consumo em larga escala.

O consumo, dada à proporção que assume, para além de se tornar motor da economia, passa a alterar os contornos da própria sociedade. Nas pala-vras de Jean BAUDRILLARD, “o consumo surge como modo ativo de relação, como modo de atividade sistemática e resposta global, que serve de base a todo o nosso sistema cultural”175. Emerge, neste contexto, o que o Autor pioneira-mente denominou de “sociedade de consumo”176.

Sobre esta sociedade de consumo, reveste-se também de suma impor-tância a análise da obra de Zygmunt BAUMANN. Segue abaixo excerto de seu estudo, o qual evidencia os contornos desta nova conformação social177:

A maneira como a sociedade atual molda seus membros é ditada pri-meiro e acima de tudo pelo dever de desempenhar o papel de consu-midor. A norma que nossa sociedade coloca para seus membros é a da capacidade e vontade de desempenhar esse papel.

175 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1981. p. 11.176 Atribui-se a Jean BAUDRILLARD a criação do termo “sociedade de consumo”. Afirma-se que este a utilizou pioneiramente em sua obra “A sociedade de consumo”, publicada em 1970.177 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 87 e 88.

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A chamada “sociedade de consumo” considera os indivíduos pura e simplesmente consumidores. Cria-se neles um novo processo de identificação, afastado de toda e qualquer individualidade, segundo o qual o “ser” confunde--se com o “consumir”, vigorando a lógica de que se é o que se compra.

Não é difícil inferir que neste contexto social, em que se confundem iden-tidade e consumo, a ideia de pertencimento está umbilicalmente ligada ao ato de consumir. Ora, em uma sociedade reconhecida como de consumo, aquele que não pode consumir, dela não faz parte. Segundo Erich FROMM, “tem-se a impressão de que a própria essência de ser é ter, de que se alguém nada tem, não é”178.

No influxo deste movimento de integração à sociedade por meio do consumo de bens, ganha máxima relevância o crédito. Se de um lado se encontrava a incessante busca burguesa pelo lucro, de outro se verificava, em que pese à avidez dos indivíduos pelo consumo, a falta de capital para fazer frente a todos os bens desejados. A oferta de crédito desponta, neste contexto, como solução.

Observe-se que, conforme bem destaca Maurizio LAZZARATO, um dos grandes nomes da sociologia e da filosofia contemporâneas, o ofe-recimento de crédito em grande escala decorre do próprio sistema capitalista fundado na massificação do consumo. Em suas próprias palavras, “O funcio-namento mundial das finanças, dispositivo central do capitalismo, requer a generalização do crédito”179.

Dissemina-se, a partir de tal momento, o crédito. Aproveitando-se da ânsia pelo consumo, valendo-se do argumento do desenvolvimento econômico, este novo elemento é inserido na sociedade, mudando completamente os seus rumos. E tamanha é a importância assumida por ele, que Zygmunt BAUMANN atualmente afirma que hoje se vivencia não a sociedade de consumo, mas sim a “sociedade de consumo e de crédito”180.

Ocorre que ao crédito corresponde, necessariamente, uma dívida, pelo que se pode afirmar que emerge o endividamento como natural consequência da equação oferta de crédito e busca dos indivíduos pela inclusão social pela via do consumo de bens. Entretanto, tamanha é esta busca, e tamanha é a oferta, que

178 FROMM, Erich. Ter ou ser. Rio de Janeiro: LTC, 1987. p. 35.179 LAZZARATO, Maurizio. Atualmente vigora um capitalismo social e do desejo. In: Página/ 12. 20 de dezembro de 2010. Entrevista concedida a Pedro Lipcovich. Tradução de Anne Ledun. Disponível em < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/39543-atualmente-vigora-um-capitalismo-social-e-do-desejo-entrevista-com-maurizio-lazzarato>. Acesso em 01 de março de 2012.180 BAUMAN, Zygmunt. Sociedade do consumo e do crédito não funciona mais. In: Consultor jurídico. 27 de janeiro de 2012. Entrevista concedida a SílioBoccanera. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2012-jan-27/ideias-milenio-zygmunt-bauman-sociologo-polones>. Acesso em 03 de março de 2012.

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o endividamento acaba por não mais configurar uma exceção, mas apresenta-se como uma constante social.

Sobre o tema, traz-se excerto da vasta obra de Claudia Lima MAR-QUES, jurista brasileira que tem se destacado no estudo do endividamento181:

O endividamento ou ter alguma dívida frente a um fornecedor (super-mercado, banco, cartão de crédito, loja de departamento, financeira de carros) é um fato inerente à vida na atual sociedade de consumo, faz parte da liberdade das pessoas no mercado de hoje, do ser “consumi-dor”, em qualquer classe social.Efetivamente, para consumir produtos e serviços, essenciais ou não, os consumidores estão – quase todos – constantemente endividando--se, e criando um “passivo” de dívidas que devemos mês a mês fazer frente com o nosso orçamento familiar e patrimônio (nosso “ativo”, se pensarmos em termos de planejamento financeiro).O endividamento é um fato individual, mas com consequências so-ciais. A economia de mercado, liberal e em desenvolvimento no Bra-sil, é por natureza uma economia do endividamento, mais do que uma economia de poupança.

Observe-se aqui que a análise feita sobre a realidade brasileira pode ser transportada para a realidade social de todas as economias capita-listas do mundo. Efetivamente, o mundo vem vivenciando uma cultura de endividamento, de forma que a assunção de dívidas não é mais considerada um fato excepcional e indesejado, mas um desdobramento natural do coti-diano dos indivíduos.

Sobre esta nova cultura, cite-se excerto de Geraldo de Faria Martins da COSTA, professor mineiro que tem focado suas pesquisas na questão da dívida182:

Na economia do endividamento, tudo se articula com o crédito. O crescimento econômico é condicionado por ele. O endividamento dos lares funciona como meio de financiar a atividade econômica. Se-gundo a cultura do endividamento, viver a crédito é um bom hábito de vida. Maneira de ascensão ao nível de vida e conforto do mundo contemporâneo, o crédito não é um favor, mas um direito fácil. Direi-

181 MARQUES, Claudia Lima. Prevenção e tratamento do superendividamento. Brasília: Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor, 2010. p. 17.182 COSTA, Geraldo de Faria Martins da. Superendividamento: solidariedade e boa-fé. In: MARQUES, Cláudia Lima; CAVALAZZI, Rosângela Lunardelli (coordenadoras). Direitos do consumidor endividado: superendividamento e crédito. São Paulo: RT, 2006. p. 231.

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to fácil, mas perigoso. O consumidor endividado é uma engrenagem essencial, mas frágil da economia fundada sobre o crédito.

Bem reflete esta cultura a valorização do consumo, e do consu-midor, pela política econômica adotada pelo país. Há alguns anos o país tem fundado seu crescimento no estímulo ao consumo, especialmente pela classe C. Entretanto, tal medida, em que pese ter afastado o Brasil da reces-são, está construindo uma sociedade endividada183, do que podem decorrer efeitos extremamente perniciosos184.

Do que foi até aqui exposto, pode-se facilmente inferir que houve, e continua havendo, a imposição de uma cultura do endividamento aos indiví-duos. Erra, contudo, quem pensa que tal imposição tem finalidade meramente econômica. Além desta, fatores sociais e políticos engendram-se para manu-tenção deste paradigma, de sorte que a cultura da dívida era, e continua sendo, constantemente incutida nos potenciais devedores, como forma de dominação econômica, social e política.

Sobre a relação de endividamento e seu papel na sociedade, destaca--se novamente a obra de Maurizio LAZZARATO. Para o Autor, hoje a relação “credor e devedor” é a fundação sobre a qual se assenta toda a sociedade, con-figurando, afirma, “a lógica política de governo das classes sociais na globa-lização”. O endividamento, para além do mero aspecto econômico, assume

183 Notícia veiculada no jornal eletrônico da Folha de São Paulo em 18/05/2011 traz importantes dados da Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), os quais dão conta de que o endividamento das famílias brasileiras aumento neste mês em relação ao mesmo período do ano passado. Segundo a referida pesquisa, neste ano, o índice de famílias endividadas ficou em 64,2%, percentual consideravelmente maior do que os 58,7% verificados no ano de 2010. In <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/917486-endividamento-das-familias-aumenta-em-maio.shtml>.Ainda neste mesmo jornal eletrônico, notícia datada de 24/10/2010, informa que a Serasa Experian apurou que o volume das dívidas dos brasileiros representam 39,1% de sua renda. Avalia ainda a referida instituição que “diante da falta de informações sobre o perfil das dívidas das famílias, e da capacidade de pagamento, o Brasil corre sério risco de enfrentar um cenário de superendividamento”. In <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/819395-serasa-aponta-risco-de-superendividamento-39-da-renda-no-brasil-vao-para-dividas.shtml>.Confirmando a informação trazida, de que o endividamento das famílias brasileiras tem atingido níveis altíssimos, colaciona-se mais uma recente notícia, esta veiculada no jornal eletrônico Gazeta do Povo em 05/05/2011. De acordo com o respeitado meio, das famílias que admitem estar inadimplentes, 38,6% afirmaram não ter condições de pagar as contas atrasadas, um número considerado "preocupante" pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), responsável pela enquete. In <http://www.gazetadopovo.com.br/economia/conteudo.phtml?id=1122830>.184 A crise norte-americana de 2008, decorrente de uma bolha imobiliária decorrente das hipotecas contratadas, bem exemplifica os desastrosos efeitos de uma sociedade fundada no consumo e no endividamento.

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viés político, sendo utilizado para a manutenção de uma massa de endividados subordinados a poucos credores detentores das riquezas185.

O endividamento deve ser considerado um elemento estrutural da nossa sociedade que possibilita a manutenção das posições de poder político e econômico sobre as quais ela se assenta. É, portanto, sob este viés que devem ser analisadas as relações entre credor e devedor, este em constante condição de hipossuficiência dentro de uma conformação social voltada à promoção do seu endividamento.

III.2. UMA ANÁLISE DA VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR DE CRÉDITO

Conforme enunciado no tópico anterior, a posição que o consu-midor de crédito assume em relação ao fornecedor reflete a situação social em que ele se encontra. Como destacado, em uma sociedade estruturada no consumo, no crédito e na dívida, o indivíduo é visto apenas como um con-sumidor apto a se endividar e, assim, manter as estruturas sociais, políticas e econômicas vigentes.

Visando tratar dos embates judiciais entre consumidores e fornecedo-res de crédito, mostra-se interessante analisar os diversos aspectos que a condi-ção de vulneráveis daqueles assume. Mais uma vez, o tratamento oferecido não será exaustivo, mas, acredita-se, suficiente para que se compreenda a debilidade judicial do endividado.

Insta inicialmente destacar que a vulnerabilidade é, conforme afirma Claudia Lima MARQUES, “um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses”, que “fragiliza, enfraque-ce o sujeito de direitos, desequilibrando a relação”186.

Há que se observar que há tempos, reconhece o nosso ordenamento jurídico a posição vulnerável ocupada pelo consumidor. Como enfatiza Sérgio CAVALIERI FILHO, o direito do consumidor pátrio funda-se essencialmente na ideia de vulnerabilidade deste. Segue excerto de sua obra187:

O Direito do Consumidor, conforme já enfatizamos, funda-se na vul-nerabilidade do consumidor. Nas palavras de João Batista de Almei-da, essa é a espinha dorsal de proteção do consumidor, sobre o que se assenta toda a filosofia do movimento. Reconhecendo-se a desi-gualdade existente, busca-se estabelecer uma igualdade real entre as partes nas relações de consumo. Logo, o princípio da vulnerabilidade,

185 LAZZARATO, Maurizio. Sobre a crise: finanças e direitos pessoais (ou de propriedade).In: Lugar comum: estudos de mídia, cultura e democracia. n. 27. janeiro/ abril de 2009. p. 85.186 MARQUES, Claudia Lima; BENJAMIN, Antonio Herman & MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2003. p. 120.187 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. p. 38.

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expresso no art. 4º, I, do CPC, é também um princípio estruturante do seu sistema, na verdade, elemento informador da Política Nacional de Relações de Consumo. As normas do CDC estão sistematizados a partir dessa ideia básica de proteção de um determinado sujeito: o consumidor, por ele ser vulnerável. A vulnerabilidade, diz Antonio Herman Benjamim, é a peça fundamental do direito do consumidor, o ponto de partida de toda a sua aplicação.

No que tange às relações consumeristas, anota a doutrina que esta vulnerabilidade manifesta-se de diferentes formas. Fala-se, assim, na existência de uma vulnerabilidade fática, de uma vulnerabilidade técnica e de uma vulne-rabilidade jurídica188.

A vulnerabilidade fática, também denominada socioeconômica, “é aquela desproporção fática de forças, intelectuais e econômicas, que caracte-riza a relação de consumo”189.O desequilíbrio, como bem observa o conceito enunciado, dá-se não apenas na esfera econômica, mas também na social. Neste sentido, transcreve-se interessante excerto de Sergio CAVALIERI FILHO190:

A vulnerabilidade fática é a mais facilmente perceptível, decorren-do da discrepância entre a maior capacidade econômica e social dos agentes econômicos – detentores dos mecanismos de controle de produção, em todas as suas fases, e, portanto, do capital e, como consequência, de status, prestígio social – e a condição de hipossuficiente dos consumidores.

O preconceito social existe e não pode nem deve ser negado. E, para-doxalmente, é uma das causas mais eficientes da vulnerabilidade econômica e social do consumidor.

O reconhecimento social, a imagem do sucesso, está relacionado à aptidão para ter, para consumir. Como na cadeia alimentar, na lei da selva, os que estão na base servem de alimento para os que lhe estão acima. Na base da cadeia de consumo estão os consumidores.

A ânsia pela ascensão social traz consigo, entre outras coisas, o desejo de respeito, do reconhecimento de direitos fundamentais que, para os que estão na base da pirâmide social, é mera retórica. (...).O mercado de consumo vende ilusões, necessidades irreais, estilos de vida. Ao mesmo tempo, nos convence da nossa insignificância diante da impossibilidade de consumir, muitas vezes originadas em força maior social (...).

188 MARQUES, 2003. p. 120.189 MARQUES, 2003. p. 121190 CAVALIERI FILHO, 2008. p. 39.

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Nos termos do excerto acima, é a vulnerabilidade socioeconômica facilmente perceptível, especialmente quando se trata das relações de consumo de crédito. Economicamente, não há como negar a posição ocupada pelos for-necedores deste. Ocupam as instituições financeiras posição tão destacada que, pode-se afirmar, inexiste relação com elas travadas em que o consumidor não se mostre vulnerável.

Socialmente, a ideia de vulnerabilidade encontra correspondência no papel do consumo da sociedade hodierna. Conforme destacado no tópico a este precedente, são os indivíduos considerados pura e simplesmente consumidores. Por sua vez, são os grandes conglomerados econômicos e industriais, dentre os quais ocupam posição de destaque as instituições de fornecimento de crédito, que neles incutem a lógica perversa de que se é o que se compra, fomentando o consumo desenfreado, inconsciente e irresponsável. Sobre a questão, mais uma vez utiliza-se o pensamento de Sergio CAVALIERI FILHO191:

O mercado de consumo vende ilusões, necessidades irreais, estilos de vida. Ao mesmo tempo, nos convence da nossa insignificância diante da impossibilidade de consumir, muitas vezes originadas em força maior social – desemprego, recessão etc.Obscurecido em seu poder crítico, quer por razões de ordem biológica, quer por razões de ordem psicológica, o “ambicioso” consumidor “dá um passo maior que a perna”. O fim da história: superendividamento, restrição ao crédito, piora da situação socioeconômica do consumidor, maior distanciamento do estilo de vida que pretendia adquirir, agrava-mento do preconceito social. Aquele que então seria pobre e, quiçá, um “fracassado” (em oposição a bem-sucedido na vida) agora é “calotei-ro”, “inadimplente”, “mau pagador”, “safado”, para ficarmos apenas nisso. Ciclo vicioso, aparentemente interminável, se não forem encon-tradas soluções em políticas de consumo e no Direito do Consumidor.

A vulnerabilidade dita técnica, por sua vez, consiste na ausência de conhecimentos específicos, por parte do consumidor, acerca do produto ou do serviço adquirido, o que o coloca em posição de fragilidade ante a grande possibilidade de ser pelo fornecedor, detentor do conhecimento técnico, enganado192.

Mais uma vez é fácil perceber que o consumidor de crédito é tecnica-mente vulnerável. É possível dizer que é apenas uma reduzida minoria destes consumidores que tem algum tipo de conhecimento capaz de compreender os

191 CAVALIERI FILHO, 2008, p. 40.192 MARQUES, 2003. p. 121.

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contratos de fornecimento de crédito em todas as suas dimensões. Resta a ele, claramente fragilizado, acreditar na boa-fé do fornecedor e nas informações por este fornecidas, as quais, sabe-se, raramente são suficientes.

Por fim, resta tratar da vulnerabilidade jurídica. Vale-se, aqui, do con-ceito de Sergio CAVALIERI FILHO193:

A vulnerabilidade jurídica ou científica resulta da falta de informação do consumidor a respeito de seus direitos, inclusive no que respeita a quem recorrer ou reclamar; a falta de assistência judiciária, em juízo ou fora dele; a dificuldade de acesso à Justiça; a impossibilidade de aguardar a demorada e longa tramitação de um processo judicial que, por deturpação de princípios processuais legítimos, culmina por conferir privilegiada si-tuação aos réus, mormente os chamados litigantes habituais.

Quando se trata da vulnerabilidade jurídica deve-se dar relevo à pro-blemática relação que existe entre os litigantes eventuais, consumidores, e os litigantes habituais, fornecedores. Estes são, especialmente quando se trata de atividade financeira, juridicamente preparados para atuar em juízo, uma vez que os embates judiciais são comuns. Em contrapartida, os consumidores são litigantes ocasionais e, na maioria das vezes, por não possuírem conhecimentos jurídicos ou meios de acesso a estes, relutam em buscar a tutela jurisdicional194.

Observa-se, então, que se encontram os consumidores tomadores de crédito em posição de extrema desvantagem em relação aos fornecedores. Esta discrepância dá-se, no âmbito das relações estabelecidas com as instituições financeiras, em todas as esferas e etapas da contratação realizada.

Não há, contudo, como negar, que esta vulnerabilidade excessiva que caracteriza o consumidor na relação de fornecimento de crédito decorre das pró-prias bases em que se encontra assentada a sociedade. Ora, diante de uma con-formação social pautada nas relações entre credores e devedores, a manutenção dos paradigmas de consumo e de endividamento já consolidados significa a pre-servação da própria estrutura social, o que interessa aos grandes conglomerados econômicos, representantes das grandes nações ditas ‘desenvolvidas’.

IV. OS EMBATES JUDICIAIS ENTRE FORNECEDORES E CONSUMIDORES DE CRÉDITO

IV.1. A TENTATIVA LEGAL DE ESTABELECER A PARIDADE DE ARMAS

Conforme discorre o tópico anterior, o consumidor de crédito ocupa posição extremamente vulnerável em relação ao fornecedor. Esta vulnerabilida-

193 CAVALIERI FILHO, 2008. p. 42.194 CAPPELLETT, 1988, p. 25 e 26.

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de, que já se delineia em momento anterior à contratação, acaba por se refletir de forma direta e intensa nos embates judiciais entre eles travados.

Há que se observar que esta fragilidade do consumidor, que o acaba colocando em posição de hipossuficiência na busca por uma tutela jurisdicio-nal, foi reconhecida, após o clamor social, pelo ordenamento jurídico pátrio.

Inicialmente, a Constituição Federal de 1988 insere a proteção do consumidor entre as garantias individuais dos cidadãos (art. 5o) e como princí-pio regedor da ordem econômica e financeira (art. 170). Buscando dar efetivi-dade ao mandamento constitucional, em 1990 promulga-se no Brasil o Código de Defesa do Consumidor, o qual tem por fim consolidar os novos paradigmas que passaram a informar as relações consumeristas. Sobre a legislação, escreve Antonio Carlos EFING referenciando Luiz Olavo Batista195:

A edição do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/ 90) pode ser considerada como divisor de águas, para a sociedade brasileira em geral, entre os problemas decorrentes da evolução industrial irrefreada e conse-quente massificação do consumo, e a possibilidade de solução dos mesmos.Luiz Olavo Batista assinala o percurso evolutivo da proteção do con-sumidor em face das mudanças tecnológicas e econômicas, afirmando que a “noção de contratos de massa, o uso universal das ‘condições gerais da venda’, mesmo as ações no campo do Direito do Traba-lho ou para a defesa dos chamados interesses difusos”, surgem como adaptações dos instrumentos jurídicos, a fim de que possam eles de-sempenhar o controle das imperfeições de produção e dos métodos de distribuição dos produtos, bem como a adequação das prestações de serviços. A responsabilidade dos fornecedores frente a massa dos consumidores torna-se coletiva, cabendo aos primeiros a seguridade de sua produção face aos usuários. Em homenagem ao bem-estar da sociedade e das relações humanas, o legislador consagra a proteção ao consumidor, intervindo de forma a proporcionar a prevenção quanto à possibilidade de ocorrência de defeitos (vícios ou danos), e também disponibilizando instrumentos de reparação em favor do consumidor lesado no mercado de consumo, inclusive com práticas comerciais abusivas e no campo da proteção contratual.

Verifica-se que a legislação consumerista brasileira busca combater os abusos decorrentes da vulnerabilidade do consumidor em todos os momentos das relações de consumo. Em que pese a importância das medidas preventivas e reparatórias, o presente tópico se debruçará sobre a análise das disposições que

195 EFING, Antonio Carlos. Direito do consumo. Curitiba: Juruá, 2002. p. 17.

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buscam estabelecer uma paridade de armas nos embates judiciais estabelecidos entre consumidores e fornecedores, garantindo àqueles a efetivação do direito de acesso adequado à justiça. Sobre elas escreve Sergio CAVALIERI FILHO196:

É universalmente consagrado o entendimento de que aos direitos ma-teriais básicos do consumidor devem corresponder as garantias pro-cessuais indispensáveis à sua efetivação. Sem essas garantias proces-suais, os direitos materiais tornam-se normas programáticas sem o maior contato com a realidade e o cotidiano dos cidadãos. Não basta, portanto, garantir a defesa do consumidor no plano material; é preciso garanti-la também no plano processual.

A primeira garantia processual que merece destaque refere-se à so-lidariedade passiva estabelecida pelo Código de Defesa do Consumidor. De acordo com tal regra, todos os partícipes da relação de fornecimento, produto-res, fornecedores e distribuidores, são responsáveis pelos danos causados pelo produto ou serviço ao consumidor. E, em se estabelecendo uma relação de so-lidariedade, nos termos previsto pelo Código Civil, qualquer deles pode ser em juízo demandado, conforme escolha do consumidor197:

O fato de possibilitar que o consumidor litigue em face de qualquer dos participantes da cadeia de fornecimento do produto ou do serviço significa, obvia-mente, grande avanço e importante garantia. Ora, não é difícil imaginar quão seria impeditivo ao direito de acesso adequado à justiça se ao consumidor fosse obriga-tório o estabelecimento de litígio somente em face de um dos polos de tal cadeia.

Na busca pela celeridade processual, elemento importante do direito de acesso adequado à justiça, o Código de Defesa do Consumidor estabelece a impossibilidade de denunciação à lide nas lides consumeristas. Intimado o fornecedor a responder por danos decorrentes da relação estabelecida com o consumidor, deve ele atuar sozinho (todavia, lhe é garantido o direito de regres-so em ação autônoma). Em suma, “não lhe é possibilitada a denunciação da lide para responder pelos prejuízos, justamente para que não se tumultue o processo e seja o consumidor celeremente reparado”198.

Outra importante garantia processual estabelecida pela legislação consumerista diz respeito à regra de competência. Nos termos do art. 101, in-ciso I, do Código de Defesa do Consumidor, é possível que este ajuíze ação de responsabilidade civil em face de fornecedor no foro de seu domicílio.

196 CAVALIERI FILHO, 2008, p. 283.197 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 140.198 EFING, 2002, p. 79 e 80.

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Mais uma vez, não remanescem dúvidas acerca da importância deste dispositivo. Caso ao consumidor fosse exigido o ajuizamento de demanda ape-nas no foro do fornecedor, o direito ao acesso à justiça daquele restaria total-mente prejudicado dada a dificuldade prática que decorreria tal determinação. Insta destacar que tal norma produz importantes efeitos importantes na esfera dos contratos, especialmente os de crédito, afastando as cláusulas de eleição de foro aos consumidores impostas. Sobre a questão, tece comentário Sergio CAVALIERI FILHO199:

Por força da regra do art.101, inciso I, do CDC (foro do domicílio do consumidor), a jurisprudência, da primeira à mais elevada instância, não admite o foro de eleição no contrato de consumo quando este, de alguma forma, dificulte o acesso à Justiça do consumidor. (...).Outra consequência que a jurisprudência tem extraído da norma que estabelece o foro de domicílio do consumidor é a de que a nulidade da cláusula do foro de eleição pode ser declarada de ofício pelo juiz por se tratar de matéria de ordem pública.

Merece destaque, ainda, a previsão de possibilidade de desconsidera-ção da personalidade jurídica para que seja ao consumidor assegurado o ressar-cimento dos danos de responsabilidade do fornecedor. Nos termos do artigo 28 do Código de Processo Civil, é possível seja determinada a desconsideração da pessoa jurídica quando houver, em detrimento do consumidor, “abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social”, ou, ainda, “quando houver falência, estado de insolvência, en-cerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração”.

Por fim, saliente-se a garantia processual mais importante na bus-ca pela paridade de armas nos embates entre consumidores e fornecedores de crédito,qualseja, a da inversão do ônus da prova. Com absoluta certeza, é no campo da instrução probatória que o consumidor encontra os maiores obstácu-los na esfera judicial, o que confere a tal garantia uma relevância ímpar.

Nos termos do artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consu-midor, deve ser invertido o ônus probatório em favor do consumidor quando, a critério do magistrado, houver verossimilhança nas alegações ou quando o consumidor for hipossuficiente.

No que tange às relações de fornecimento de crédito, tal norma ad-quire, pode-se afirmar, aplicação quase obrigatória. Conforme observado em momento anterior, com relação às instituições financeiras, sempre o consumi-dor tomador de crédito assume posição extremamente vulnerável. A menor ca-pacidade socioeconômica, a falta de conhecimentos técnicos e a eventualidade

199 CAVALIERI FILHO, 2008, p. 285.

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da atuação na esfera judicial colocam o consumidor em posição de hipossufi-ciência nas mais diversas dimensões, mas especialmente no que se refere à sua capacidade de instruir o feito. Daí a relevância da inversão do ônus da prova. Sobre a questão, Antonio Carlos EFING200:

Com a aplicação da inversão do ônus da prova, teremos, além da fa-cilitação do acesso à justiça, a efetiva prestação da tutela jurisdicional célere como pretende o sistema de proteção do consumidor; uma vez que caberá aos fornecedores a prova da inexistência do defeito ou de outras excludentes de sua responsabilidade objetiva mitigada, haja vista a evidente hipossuficiência técnica do consumidor nestes casos.

Cumpre ressaltar que as garantias processuais previstas no Código de Defesa do Consumidor não são as únicas que advogam em favor deste ante o re-conhecimento da sua hipossuficiência. Entretanto, o estudo limitou-se à análise das garantias que, entende-se, produzirem mais efeitos no âmbito das relações de consumo e de fornecimento de crédito.

IV.2. A VIOLAÇÃO AO DIREITO DE ACESSO ADEQUADO À JUSTIÇA E A REALI-DADE INDIGNA DOS CONSUMIDORES

Em que pese as garantias processuais acima elencadas atuarem positiva-mente na busca da paridade de armas nos embates entre consumidores e fornece-dores de crédito, a realidade é que elas não têm se mostrado para tanto suficientes.

Na prática, a discrepância entre consumidores e fornecedores assume tamanha dimensão que as citadas medidas acabam por fazer pouca diferença nesta busca pelo acesso adequado à justiça.

De início, a falta de conhecimento técnico do consumidor o impede de analisar os termos das propostas apresentadas antes mesmo da celebração dos contratos delas decorrentes. De um lado está o poder socioeconômico das instituições financeiras, de outro a falta de conhecimento do consumidor, que acaba servindo inteiramente aos interesses do fornecedor. Neste ponto, as me-didas processuais não apresentam qualquer eficácia.

Esta falta de conhecimento técnico se reflete na questão, outrora men-cionada, da impossibilidade de reconhecimento de uma lesão. Ora, desconhe-cendo o direito, não há como reconhecer a sua violação. E quando tratamos do fornecimento de crédito, observar esta afronta a direitos é de suma dificuldade, dado o tecnicismo envolvido.

Não há dúvida, por exemplo, que a possibilidade de o consumidor ajuizar a demanda em face de qualquer um dos participantes da cadeia de for-

200 CAVALIERI FILHO, 2008. p. 73.

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necimento, tendo por competente o foro do seu domicílio, facilita o acesso da-quele aos Poder Judiciário. Entretanto, a sua situação socioeconômica frente a do fornecedor de crédito o coloca em tão subalterna posição no jogo de forças existente, que tais medidas mostram-se insuficientes e incapazes de estimular a busca judicial por soluções.

Outro fator que acaba por frear as intenções dos consumidores de bus-car a tutela jurisdicional é o econômico. Para além das custas processuais a serem pagas em uma parte dos casos, os custos de contratação de um advogado também inviabilizam o acesso aos meios judiciais (considerando aqui a ínfima participa-ção da defensoria pública). Ainda, pode-se afirmar que o poder econômico dos fornecedores de crédito lhes possibilita a contratação de profissionais de maior qualidade, o que acaba por desequilibrar, ainda mais, o jogo de forças em análise.

No que se refere especificamente à questão probatória, em que pese a inversão do ônus se mostrar uma das principais garantias do consumidor em juízo, na prática o embate permanece desequilibrado. Quando o consumidor, rompendo as já mencionadas barreiras iniciais, decide buscar a tutela judicial, depende do seu defensor, muitas vezes pouco qualificado ou na causa pouco interessado, requerer a inversão e atuar ativamente neste sentido.

Por fim, insta destacar um grave problema processual que acaba pre-judicando tão somente os consumidores, qual seja, a demora processual. Esta, decorrente dos mais variados fatores, dentre os quais destaque-se a enormida-de de recursos existentes, apenas beneficia os fornecedores. Aos consumidores resta aguardar uma definição da lide apresentada, vendo o seu direito material ser consumido pelo tempo. Serve a demora apenas como forma de afastamento do indivíduo do Poder Judiciário, um verdadeiro atentado ao direito de acesso adequado à justiça.

Diante deste panorama, torna-se impossível falar em paridade de ar-mas. Os embates jurídicos encontram-se maculados pelas desigualdades extra-processuais, sendo que as medidas legislativas em matéria processual existentes não são suficientes para o restabelecimento da isonomia das partes.

Vale lembrar que estes são apenas alguns pontos da triste realidade que assola os consumidores de crédito. Os endividados, pelos fatores que anali-samos anteriormente, já têm a sua dignidade ferida em razão da impossibilidade de continuar consumindo dentro de uma sociedade em que a identidade confun-de-se com os atos de consumo. Esta violação apenas aumenta com a afronta ao direito de acesso adequado à justiça.

Ainda que busque a legislação obter a tão sonhada paridade de ar-mas nos embates judiciais estabelecidos entre consumidores e fornecedores, no caso da atividade de fornecimento de crédito as medidas existentes são pouco ou nada eficazes. A discrepância entre as partes é tão grande que as garantias

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existentes mostram-se insuficientes. O acesso adequado à justiça é, desta forma, obstado e, consequentemente, a dignidade do consumidor mais uma vez ferida.

V. CONCLUSÃO

Conforme enunciado anteriormente, era objetivo do presente trabalho analisar a busca pela promoção da dignidade do consumidor nos embates judiciais travados por estes em face dos fornecedores. Para tanto, o estudo realizou uma análise principiológica e uma análise sociológica, para, posteriormente, adentrar ao estudo dos embates judiciais estabelecidos entre consumidores e fornecedores. Superado este caminho, as conclusões que se alcançam não são as melhores.

O que se observa é que as desigualdades existentes na relação entre con-sumidores e fornecedores no âmbito social acabam por influir nas relações proces-suais entre eles estabelecidas. O direito do consumidor a um adequado acesso à jus-tiça, ante a sua situação de completa hipossuficiência, acaba por ser desconsiderado.

Não se trata aqui do simples direito de buscar uma resposta do Poder Judiciário para a sua demanda. Trata-se, em verdade, de proporcio-nar aos consumidores profundo conhecimento sobre os seus direitos, sobre os efeitos das violações a este e funcionamento do Poder Judiciário. Além disso, trata-se de propiciar defesa técnica de qualidade para todos, especial-mente aos consumidores.

Frente a uma socialidade extremamente desigual, fundada essencial-mente no consumo e no endividamento, o ideal de uma existência digna não atinge a todos. O tratamento indigno recebido pela massa de consumidores é refletido nos embates judiciais por estes travados, como uma continuidade da situação muitas vezes degradada que experimentam no âmbito social.

Observa-se que na busca pela efetivação do mais caro princípio do or-denamento pátrio, a legislação processual avança, mas não de forma suficiente, na busca pela paridade de armas nestes embates. Entanto, a verdade é que tais medidas tem se mostrado insuficientes por diversos motivos.

Assim como já enunciado, carecem os consumidores de conhecimen-to acerca dos seus direitos, da violação destes e do funcionamento do Poder Judiciário. Esta situação acaba por colocá-los em uma situação de desvantagem que, em que pese se dar em momento pré-processual, acaba alcançando o de-senvolvimento do processo.

No momento processual, a paridade de armas, essencial à efetivação do ideal de existência digna dos consumidores, é liquidada ante o abismo que separa a defesa técnica dos envolvidos. A qualidade da defesa da grande massa dos consumidores é reduzida frente à daquela realizada em prol dos grandes fornecedores, detentores do poder econômico.

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Em suma, a conformação socioeconômica que determina a relação entre consumidores e fornecedores estabelece um abismo tão grande entre estes que as mais importantes medidas judiciais tem se mostrado pouco eficientes. A diferença entre eles adentra ao processo, consolidando os seus papéis sociais. Neste contexto, a principal conclusão que se alcança é a necessidade de que seja oferecida uma qualificada educação sobre o consumo e suas implicações, bem como sobre os seus direitos e sobre aspectos gerais do Poder Judiciário. No âmbito processual, a grande mudança que se exige é promoção de uma defesa técnica de qualidade para os consumidores, no mesmo nível que é disponibili-zada aos fornecedores. Um grande passo para isso é, sem dúvida, a instituição em todo o país de defensorias públicas de qualidade. Outro, que não deve ser desprezado, refere-se à formação dos profissionais de direito, o que exigirá uma atuação diferenciada do Poder Público e da Ordem dos Advogados do Brasil no âmbito das instituições de ensino superior.

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TÓPICOS CONCLUSIVOS

Da leitura dos artigos que compõem esta obra, podemos extrair, den-tre outas reflexões, os seguintes pontos:

• A tutela jurídica dos animais deve ser exercida de maneira articulada e objetiva, de forma a gerar crédito social. Para resolver esse proble-ma, nada mais eficiente do que criar uma Promotoria Especializada de Defesa Animal. (RUIZ e BACELLAR).

• No que tange ao papel do Senado no controle de constitucionalida-de, depreende-se que seria imprescindível à mutação constitucional concernente à atuação do Senado Federal no controle de constitu-cionalidade brasileiro, uma vez que o controle abstrato de constitu-cionalidade foi ampliado com o advento da Constituição de 1988. (DETZEL e ANDRADE).

• O advogado deve construir desde o começo da carreira uma conduta a frente da defesa do cidadão civil, frente à administração. E des-de sempre saber como constituir uma marca forte e competitiva no mercado. (TORRES e TAFURI).

• Os alimentos devem retroagir à data da citação somente quando fo-rem majorados, a fim de garantir a aplicação do princípio que veda a restituição de parcelas alimentares. Desta forma, garantir-se-á, também, o melhor interesse dos alimentados, que são a parte mais frágil da relação jurídica e que devem ser protegidos pelo direito. (SCHOLL e BRESSANELLI).

• A estipulação da pluralidade sindical seria a melhor forma de repre-sentação. A abertura para o surgimento de mais sindicatos geraria concorrência, e esta faria com que houvesse incentivo à busca de melhorias, de aperfeiçoamento, de benefícios para os trabalhadores. (KORNDORFER e GOMES).

• As instituições são capazes de controlarem situações conflitantes e antagonismos. É por essa razão que elas são dotadas de poder para elaborar normas e referências convencionais que transformam o antagonismo em diferenciações sociais dotadas de certa estabili-dade, aspecto importante que permeia a sua função social. (FOR-NECK e GIBRAN).

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• Os excluídos do acesso a um ensino de qualidade (negros, os índios e os de menor poder aquisitivo), necessitam que o Poder Público saia da neutralidade em relação à igualdade de oportunidade no âm-bito educacional e propicie condições de acesso ao ensino de quali-dade desde a mais tenra idade. (FRANÇA e COLUCCI).

• A inversão do ônus probatório deve ser aplicada sempre com base nos princípios regentes da prova no processo do trabalho, eis que estes têm a função de assegurar que nenhuma das partes tenha trata-mento diferenciado sem que haja prévia justificação para tal. (KU-DLA e BORDIN).

• O Estado não se mostra presente no interior das penitenciárias da maneira como deveria, colocando em xeque, desta maneira, a fun-ção de ressocializar um condenado que a pena privativa de liberda-de, em tese, possui, vez que sua finalidade não é a de atuar como uma vingança social. (BALAN e FURMANN).

• O Estado somente está legitimado a exercer o poder punitivo na medida em que zela para que esse poder não se torne arbitrário, causando mais dano do que benefício. (URBA e KNOPFHOLZ).

• Os critérios subjetivos são incompatíveis ao ordenamento penal vi-gente, pelos efeitos que sua aplicação acarreta no sistema jurídico. E ainda, por violarem a estrutura basilar do coordenado das normas, portanto, a sua aplicação é ilegítima, sendo este argumento reforça-do pelo fato de tal determinação estar extinta no projeto do novo Có-digo Penal que foi feito por uma comissão de juristas e apresentado ao Senado Federal. (NASS e ANDRADE).

• Buscam-se mecanismos hábeis a se adaptar ao constante crescimen-to e evolução do crime organizado. Nesse sentido, muitos desses mecanismos acabam flexibilizando garantias dos investigados ou acusados, para se conseguir atingir o resultado almejado. (SANTOS e KNOPFHOLZ).

• A constitucionalização do processo, o poder judiciário poderá trazer mais, e de forma mais extensa, a efetividade e a celeridade às suas decisões, cumprindo com a função social do judiciário, permitindo uma maior segurança jurídica e prestígio perante a sociedade brasi-leira. (VALTER e HENRIQUES FILHO).

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• Há situações em que o uso de uma gravação telefônica obtida clan-destinamente não ofenderia o princípio da intimidade, sendo apta a servir como prova judicial. É imprescindível que o julgador analise cada caso, um a um, observando as minúcias que envolvem a situa-ção. (FRAGA e KNOERR).

• O debate em torno da norma penal em branco se mostra proeminen-te e necessário para buscar soluções que conciliem as vantagens que carrega quando do tratamento de dados técnicos pelo direito penal com a relativização do princípio da reserva legal, nos aspectos da lex praevia et certa. (DASSAN e GUARAGNI).

• Necessidade de que seja oferecida uma qualificada educação sobre o consumo e suas implicações, bem como sobre os seus direitos e sobre aspectos gerais do Poder Judiciário. No âmbito processual, a grande mudança que se exige é promoção de uma defesa técnica de qualidade para os consumidores, no mesmo nível que é disponibili-zada aos fornecedores. (SÉLLOS-KNOERR e OIKAWA).