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COLETÂNEA 04

DIGNIDADE HUMANA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

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Coordenadores

ViViane Coelho de SélloS-Knoerr

eloete Camilli de oliVeira

Organizadores

Sandro manSur Gibran

JoSé mario tafuri

COLETÂNEA 04

DIGNIDADE HUMANA E ORGANIZAÇÃO SOCIAL

2013 Curitiba

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Editora Responsável: Verônica GottgtroyProdução Editorial: Editora Clássica Capa: Editora Clássica

Equipe Editorial

EDITORA CLÁSSICA

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Conselho Editorial

D575Séllos Knoerr, Viviane Coelho – Coordenadora.Oliveira, Eloete Camilli – Coordenadora. Dignidade humana e organização social : coletânea 4.Título independente.Curitiba : 1ª. ed. Clássica Editora, 2013.

ISBN 978-85-99651-71-1

1. Direito.I. Título.

CDD 342

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE

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Apresentação

“Feliz aquele que transfere o que sabe, e aprende o que ensina”Cora Coralina

O Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba, tem uma história e tra-dição de ensino superior em nossa cidade e estado, que já conta com 63 anos, mantendo o compromisso de oferecer excelência e qualidade, com a mesma dedicação e profissionalismo que sempre lhe caracterizaram, e que fez com que esta Instituição se tornasse uma referência na área da educação.

A sua visão de ensino vai além das salas de aulas, por isto que se orgu-lha da missão sobejamente conhecida através desse tempo, que é: “Educar, para formar pessoas capacitadas e comprometidas com o desenvolvimento social”.

Desenvolver, crescer, progredir, evoluir, são expressões e formas de como podemos responder as expectativas da sociedade. É por isto que criamos o UNICURITIBA PESQUISANDO DIREITO, que são coletâneas resultantes de um dos projetos de integração entre a Coordenação do Curso de Graduação em Direito, a Supervisão do Trabalho de Conclusão de Curso do Centro Univer-sitário Curitiba-UNICURITIBA e o nosso Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, com o objetivo de incentivar e divulgar as pesquisas desenvolvidas pelos alunos, sob a orientação dos professores, para o fomento da pesquisa e o comprometimento com a ciência do Direito.

Danilo ViannaReitor

Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

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Prefaciar os cinco livros da coleção “UNICURITIBA Pensando Direi-to” é algo que muito me orgulha. Obras que versam sobre justiça e cidadania, sustentabilidade social, econômica e ambiental em favor dos direitos humanos, concretização constitucional, a dignidade humana e organização social, e os novos direitos nas atividades empresariais no Estado solidário.

Primeiro porque o Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA faz parte de nossa história acadêmica, sendo que hoje atuo como professora visitante em seu Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania.

Segundo, porque se trata de uma das mais renomadas escolas jurí-dicas do Brasil, o que se comprova pela qualidade docente, discente e pelos profissionais que forma.

A tradição que se moderniza com o incentivo à pesquisa e à publica-ção acadêmica na forma eletrônica demonstra o interesse da Instituição para com o desenvolvimento social, educacional e sustentável.

O acesso do material que ora se publica é amplo, pois beneficia os estudantes não apenas brasileiros, mas de todos os países de língua portuguesa, como o caso dos hoje meus conterrâneos do continente europeu, mais especifi-camente em Terras Lusitanas.

A interação entre graduandos, mestrandos e professores faz com que estes trabalhos representem extratos reais da realidade jurídica brasileira. As inquietudes dos jovens ligadas à experiência e ao conhecimento dos profes-sores resultam nesta coleção, que vem a enriquecer ainda mais o cenário aca-dêmico brasileiro.

Os assuntos apresentados nos trabalhos possuem profundidade temá-tica e evidenciam a responsabilidade social que fundamenta a educação jurídica do Centro Universitário Curitiba.

Com muita honra, desejo a todos excelente leitura.

ElizabEth acciolyDoutora em Direito pela USP. Graduada em Direito pela Faculdade de

Direito de Curitiba, Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Facul-dade de Direito da Universidade de Lisboa. Atualmente é Professora da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa, Professora colaboradora do curso de Estu-dos Europeus da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Professora visitante

da Universidade Católica Portuguesa.

prefácio

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Sumário

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 05

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 09

PRESSUPOSTOS CAUTELARES DA PRISÃO PREVENTIVA E A OFENSA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIABarbara Sayuri Poffo Taniguti e Alexandre Knopfholz ................... 12

ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA: UM CAMINHO PARA PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADOCamila Agibert Maia e Regina Maria Bueno Bacellar ....................... 27

A ANTROPOLOGIA JURÍDICA DE ALAIN SUPIOT ATRAVÉS DE UMA RESE-NHA CRÍTICACássio Marcelo Mochi ................................................................................... 52

EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 66/2010 E SEUS EFEITOS: PERMANÊN-CIA OU EXTINÇÃO DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRODaniela Karina Felippe e Luiz Gustavo de Andrade ............................ 81

RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRÂNSITODanielle Eleutério e José Mário Tafuri ................................................... 104

TUTELA JURÍDICA DO CORPO HUMANO MORTO E A DISPONIBILIDADE DA FAMÍLIA EM DOAÇÃO DE ÓRGÃOSDiandra Aline Reiner Bergamin e Maria da Glória Colucci ........... 125

DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E FRATERNIDADE: A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE AS ASSOCIAÇÕES CIVIS E AS AGÊNCIAS REGULADORAS NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICOÉrico Prado Klein e Ana Luiza Chalusnhak ........................................... 147

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DANOS AMBIENTAIS DECORRENTES DO USO DE AGROTÓXICOS: RESPONSABILIDADE CIVIL, ADMINISTRATIVA E PENALHerica Paula Skrzek e Regina Maria Bueno Bacellar ........................ 171

SEGURANÇA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO NO COMÉRCIO ELETRÔNICOJailson Bernardo de Lemos e Luciana Carneiro de Lara .................... 191

PROPAGANDAS DESTINADAS AO PÚBLICO INFANTIL: A INCAPACIDADE DE DISCERNIMENTO DA CRIANÇA FRENTE AO APELO DA INDÚSTRIA DE CONSUMOJosé Carlos Hornung e Lucimar de Paula ................................................ 212

A INCONSTITUCIONALIDADE DO FATOR PREVIDENCIÁRIOLorenssa Milanezi de Siqueira e Ivan Furmann ..................................... 233

RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS À SAÚDE MENTAL DO TRABA-LHADOR EM DECORRÊNCIA DO DESEQUILÍBRIO NO MEIO AMBIENTE DE TRABALHOLuciana Lopes Fontana e Miriam Cipriani Gomes .................................. 246

A APLICABILIDADE DA RETALIAÇÃO CRUZADA NO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIOMichel Abdo Zeghbi e Sandro Mansur Gibran ...................................... 277

OS SERVIÇOS PÚBLICOS, O USUÁRIO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANAClaudio de Fraga e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr ........................ 294

A TUTELA DA LIBERDADE DO TRABALHADOR PELO DIREITO PENAL BRASILEIRO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA José Carlos Portella Junior e Fábio André Guaragni ........................ 319

O JUIZ E A GESTÃO DA PROVA: A VERDADE MATERIAL E SUA BUSCA NO PROCESSO CIVIL MODERNOEmanuel Fernando Castelli Ribas e Fernando Gustavo Knoerr .... 335

TÓPICOS CONCLUSIVOS ...................................................................................... 352

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INTRODUÇÃO

A presente obra é dedicada à temática da dignidade humana e organização social. Reúnem-se nesta coletânea alunos e professores, os quais em orientação começam a apresentar os resultados de suas investigações. O trabalho conjunto busca por meio da dignidade humana e organização social estudar as temáticas propostas.

O primeiro artigo de Barbara Sayuri Poffo Taniguti e Alexandre Knopfholz mostra que o principio da presunção de inocência surge como um dos meios aptos a garantir o respeito aos direitos fundamentais de todos, em especial perante os possíveis arbítrios estatais.

Camila Agibert Maia e Regina Maria Bueno Bacellar mostram que envolvimento do Direito Ambiental no processo de conscientização e educação ambiental dos povos e dos atores envolvidos nos processos de produção, pode ser um forte auxiliar na busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

Através de uma resenha crítica de Alain Mochi, Cássio Marcelo Mochi em seu artigo demostra a antropologia jurídica. Ele pretende demonstrar que para o homem receperar-se como um todo, ele necessita retomar um referencial onde a solidariedade coletiva e identificada, substitua a solidariedade anônima.

Daniela Karina Felippe e Luiz Gustavo de Andrade analisam a emenda constitucional n.º 66/2010 e seus efeitos com o seguinte questionamento: permanência ou extinção do instituto da separação no ordenamento jurídico brasileiro.

O graduanda Danielle Eleutério, conjuntamente com seu orientador José Mário Tafuri buscam mostrar a responsabilidade civil no trânsito, dando como conclusão a necessidade que a normatização acompanhe o crescimento e a complexização da sociedade, porquanto isto não ocorra, as regras sempre estarão atrás dos acontecimentos sociais.

Analisando a tutela jurídica do corpo humano morto e a disponibilidade da família em doação de órgãos, Diandra Aline Reiner Bergamin e Maria da Glória Colucci demostraram que o corpo humano morto é tutelado pelo ordenamento jurídico nacional e estrangeiro e que há a existência de legitimidade na outorga à família do morto do poder de decisão acerca de eventuais atos praticados sobre o cadáver do sujeito.

Érico Prado Klein e Ana Luiza Chalusnhak demonstraram a importância da relação entre as associações civis e as agências reguladoras na prestação do serviço público, bem como a construção de uma sociedade em que se valorizer a dignidade do homem, com base na democracia participativa e fraternidade.

A responsabilidade civil, administrativa e penal dos danos ambientais decorrentes do uso de agrotóxicos foi o tema trabalhado por Herica Paula Skrzek e Regina Maria Bueno Bacellar. Para tanto, se utilizaram de pesquisas bibliográficas, doutrinárias e de legislação.

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Abordando a segurança nas relações de consumo no comércio eletrônico, o acadêmico Jailson Bernardo de Lemos, conjuntamente com sua orientadora Luciana Carneiro de Lara, demostram a nova vertente nas relações de consumo, a praticas de ilicitudes por meio da captura de dados de seus usuários. Trazendo a toma a necessidade do consumidor internauta atente-se para as medidas que pode tomar para não ser enganado.

José Carlos Hornung e Lucimar de Paula em seu artigo, procuram compreender de que modo o conflito de interesses alcança um nível que gera conflito normativo e, por esse viés, quais são os dispositivos legais existentes pertinentes à limitação da atividade de publicidade e propaganda perante a proteção das crianças e dos adolescentes.

Demostrando a inconstitucionalidade do fator previdenciário, a graduanda Lorenssa Milanezi de Siqueira, conjuntamente com o seu orientador Ivan Furmann, revelam em seu artigo que o fator previdenciário é inconstitucional por atentar contra, principalmente, os princípios da isonomia e o da irretroatividade dos direitos sociais, além de ser prejudicial aos trabalhadores brasileiros.

No artigo de Luciana Lopes Fontana e Miriam Cipriani Gomes, buscaram avaliar a responsabilidade civil do empregador por danos à saúde mental do trabalhador (cujas enfermidades são menos perceptíveis que as físicas), em decorrência do desequilíbrio ou poluição do meio ambiente do trabalho.

A aplicabilidade da retaliação cruzada no sistema de solução de controvérsias da organização mundial do comércio, Michel Abdo Zeghbi e Sandro Mansur Gibran, trabalham buscando demonstrar qual a real efetividade do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio.

Os serviços públicos, o usuário e o princípio da dignidade da pessoa humana foi trabalhado por Claudio de Fraga e Viviane Coêlho de Séllos Knoerr. Abordam temas como serviço público, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, Estado, entre outros; utilizando-se da análise da doutrina, legislação e também da pesquisa de jurisprudência existente acerca da matéria.

O artigo de José Carlos Portella Junior, com orientação de Fábio André Guaragni, trata de analisar a legitimidade da intervenção penal nas relações de trabalho, especificamente no que toca à prática do trabalho escravo. Também pretende verificar, no atual contexto de desregulamentação dos mercados mundiais e de flexibilização das leis trabalhistas, incentivadas pela globalização econômica, o fundamento da função do Direito Penal na preservação da liberdade do trabalhador.

Diante da busca do “processo justo” na Modernidade, Emanuel Fernando Castelli Ribas e Fernando Gustavo Knoerr buscam analisar a atuação do Juiz diante dos desafios da manutenção da necessária imparcialidade, diante da busca do “processo justo”, em contraposição ao termo “processo legal”.

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A presente obra é resultado das pesquisas desenvolvidas pelos grupos de pesquisa, alunos e professores do Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA, na busca da formação de novos pensadores do direito e de sua função social.

Desejamos a todos uma boa leitura e reflexão acerca dos temas abordados neste trabalho, vista a profundidade dos textos que aqui apresentamos.

ViVianE coêlho DE SélloS-KnoErr

Doutora e Mestre em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Pro-cessual Civil pela PUCCAMP. Atualmente é coordenadora do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Líder do grupo de pesquisa

“Cidadania Empresarial”, registrado no CNPq.

EloEtE camilli oliVEira

Doutora pela UFPR. Mestre pela PUC/PR. Professora adjunta nível III da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, representante dos docentes no CEPE

-UNICURITIBA, Supervisora do setor de registro dos Trabalhos de Conclusão de Curso- UNICURITIBA e professor titular - UNICURITIBA.

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PRESSUPOSTOS CAUTELARES DA PRISÃO PREVENTIVA E A OFENSA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

barbara Sayuri Poffo taniguti

Graduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba.

alExanDrE KnoPfholz

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), Pós-Graduação em Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes (2005) e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo UNICURITIBA (Centro Universitário Curitiba) (2012), onde é profes-sor horista da disciplina de Processo Penal, nos cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Direito, atuando princi-palmente nos seguintes temas: direito processual penal e direito penal.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O princípio da presunção de inocência. 3. Aspectos gerais das medidas cautelares pessoais. 4. Prisão preventiva e a ofensa ao primado da presunção de inocência. 5. Conclusões. 6. Referências.

RESUMO

A constitucionalização do Código de Processo Penal Brasileiro, diploma advindo de uma época em que os direitos e garantias fundamentais eram extensamente restritos, ou inexistentes, fez-se necessária para ser compatível com a Carta Magna pátria, tendo em vista ser ela contempladora dos direitos e garantias intrínsecos a todo cidadão. Neste contexto, o princípio da presunção de inocência surge como um dos meios aptos a garantir o respeito aos direitos fundamentais de todos, em especial perante os possíveis arbítrios estatais. Em decorrência disto, este princípio não pode ser violado por nenhuma medida prevista nos Diplomas do ordenamento jurídico brasileiro. Bem assim, a prisão preventiva, por restringir a liberdade do indivíduo e por ser uma forma de prisão anterior ao trânsito em julgado de sentença penal condenatória, em primeiro momento fere a disposição do primado da inocência, vez que presume o acusado culpado e não inocente. Portanto, a análise dos requisitos da prisão é necessária, tanto para entender esta medida, quanto para verificar em que pontos pode ferir o princípio da presunção de inocência.

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Palavras-chave: direitos e garantias constitucionais; princípio da presunção de inocência; prisão preventiva.

ABSTRACT

The constitutionalization of the Brazilian Criminal Procedure Code, code from a time when the fundamental rights and guarantees were widely restricted, or non existent, was required to be compatible with the Magna Carta, that contemplate the intrinsic rights and guarantees to every citizen. In this context, the principle of presumption of innocence is one of the means to ensure respect for the fundamental rights of all, especially given the possible state taxes. In consequence, this principle cannot be violated by any measure provided for in the Diplomas of the Brazilian legal system. As well as pre-trial detention, by restricting the freedom of the individual and for being a previous prison sentence dismissed the criminal conviction, first time hurts the layout of the primacy of innocence, as presume the accused guilty, not innocent. Therefore, the analysis of the requirements of the prison is needed, both to understand it, how to verify check points can hurt the principle of presumption of innocence.

Keywords: rights and constitutional guarantees; principle of presumption of innocence; pre-trial detention.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por fim analisar os pressupostos cautelares da pri-são preventiva sob a égide do princípio da presunção da inocência, verificando em que medida estes pressupostos podem ser utilizados, ou não, para funda-mentar a decretação da prisão preventiva sem ofender este princípio.

A constitucionalização do Código de Processo Penal brasileiro fez-se ne-cessária para amoldar a sua interpretação à Carta Magna, tendo em vista que aquele diploma é de uma época em que os direitos e garantias fundamentais eram extensamente restritos, ou inexistentes, sendo completamente contrários aos preceitos contidos na Constituição, posterior a ele, e contempladora dos direitos e garantias intrínsecos a todo cidadão, como há de ser em um Estado Democrático de Direito.

Neste contexto, o princípio da presunção de inocência, surge como imor-tante ferramenta para concretizar esses direitos e garantias, principalmente frente aos possíveis arbítrios do Estado, em especial quando se trata de um pro-cesso criminal. Assim, verificar sua inserção no ordenamento pátrio, bem como as dimensões que o princípio ocupa no ordenamento jurídico brasileiro como

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uma garantia da pessoa que figura como acusada em um processo criminal, será importante para a análise da prisão preventiva.

Por fim, antes que seja feita a análise crítica dos pressupostos cautela-res da prisão preventiva, quais sejam, garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e/ou para assegurar a aplicação da lei penal, sob a luz do princípio constitucional da presunção de inocência, serão estudados os requisitos gerais das medidas cautelares pessoais.

2 O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O Código de Processo Penal Brasileiro, de 1941, cuja vigência iniciou em 1.º de janeiro de 1942, foi elaborado à época em que o país vivenciava um momento histórico bastante diferente: o chamado Estado Novo, de Getúlio Vargas, inspirado nos regimes totalitários, os quais restringiam de forma signi-ficativa a liberdade e as garantias individuais.

O princípio que norteava o Código de Processo Penal era o da presunção de culpabilidade, tendo como características relevantes o tratamento do acusado como culpado, principalmente nos casos em que ocorresse prisão em flagrante; a preocupação com a segurança pública em detrimento da liberdade individual; práticas abusivas e autoritárias por parte do Estado, a fim de justificar a busca pela verdade real; e, o interrogatório do acusado exclusivamente como meio de prova.

Com o passar dos anos, foram surgindo alterações no CPP visando uma maior flexibilidade quanto à aplicação da lei penal e à restrição dos direitos individuais, em especial a liberdade.

Em 1988 foi promulgada a Constituição da República Federativa do Bra-sil, que, ao contrário do Código de Processo Penal, notoriamente autoritário, instituiu o regime democrático, logo em seu artigo 1.º, e representou, conforme Fernando Luiz Ximenes Rocha (2008, p. 109), “inegável avanço no campo dos direitos e garantias fundamentais”.

Dentre estes avanços, um dos mais importantes foi o surgimento do pri-mado da presunção de inocência, que, assim como outros princípios constitu-cionais, destina-se a tutelar o cumprimento das obrigações do Estado de efetivar os direitos e as garantias fundamentais dos indivíduos.

Segundo o primado da presunção de inocência nenhuma pessoa será con-siderada culpada até que sobrevenha sentença penal transitada em julgado, após o devido processo legal, tendo sido possibilitada a produção de todas as provas que considerou necessárias a sua defesa, conforme o art. 5º, LVII da Constituição.

O status de não culpado, ou a presunção de inocência, surge como uma garantia voltada à proteção específica daquele a quem se imputa a autoria de alguma infração penal, sendo um óbice às restrições de sua liberdade, diante de uma possível arbitrariedade do Estado

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Segundo o professor Aury Lopes Jr. (2012, p. 236), “[...] sendo o princí-pio reitor do processo penal, e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual penal através do seu nível de observância (eficácia)”.

Pode-se, também, falar que a presunção de inocência, enquanto princípio constitucional, é um instrumento para se promover o equilíbrio entre o dever do Estado de punir àquele que comete um crime – jus puniendi – e a liberdade deste mesmo indivíduo – jus libertatis – durante o curso do processo até que seja comprovada a sua culpa por sentença condenatória transitada em julgado, sendo dever de quem acusa comprovar a culpa e não do acusado provar sua inocência.

No ordenamento jurídico pátrio, o primado da presunção de inocência assume três dimensões, quais sejam: como regra de juízo, regra de valoração probatória e como regra de tratamento do imputado. A primeira exclui qualquer possibilidade de condenação quando restar dúvida quanto à culpabilidade do acusado ou quando houver insuficiência de provas da autoria e/ou materialidade delitiva, determinando, ainda, que a prova completa da infração penal seja ônus da acusação, não tendo o acusado que provar sua inocência e, caso alegue algu-ma excludente de ilicitude, por exemplo, também caberá a acusação provar que a causa não existe. Pela valoração probatória tem-se, como afirma Aury Lopes Jr (2012, p. 239): “Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz, determinando que a carga de prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa provar nada) e que a dúvi-da conduza inexoravelmente à absolvição; [...]”. A terceira regra, por sua vez, garante ao imputado, além da garantia de ter seu status de inocente mantido até eventual condenação transitada em julgado, a garantia de continuar sendo respeitado e tratado como sujeito de direitos que é, uma vez que a condição de acusado não retira essa característica intrínseca e inafastável, não obstante figu-rando no pólo passivo de um processo criminal.

Uma vez brevemente analisado o princípio da presunção de inocência, passa- se ao estudo dos aspectos gerais das medidas cautelares pessoais previs-tas no ordenamento jurídico brasileiro.

3 ASPECTOS GERAIS DAS MEDIDAS CAUTELARES

As medidas cautelares no processo penal são destinadas à tutelar o pro-cesso (LOPES JR., 2011, p. 13), visando garantir o curso normal da investiga-ção ou instrução criminal, a aplicação da lei penal e, nos casos previstos em lei, a evitabilidade da prática de nova infração penal, podendo ser impostas na fase investigatória ou ao longo da ação penal.

Com o advento da Lei 12.403/2011, as cautelares que envolvem a liberda-de da pessoa, no caso as prisões, passaram a dever ser utilizadas, mais do que an-

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tes, apenas em último caso, quando esgotadas todas as demais possibilidades de aplicação das cautelares diversas, ou, ainda, quando houver o descumprimento de outra medida cautelar já imposta.

Nos ensinamentos do professor Eugênio Pacelli (2012, p. 498):

É que, agora, a regra deverá ser a imposição preferencial das medidas cautelares, deixando a prisão preventiva para casos de maior gravidade, cujas circunstancias sejam indicativas de maior risco à efetividade do processo ou de reiteração criminosa. Esta, que, em princípio, deve ser evitada, passa a ocupar o último degrau das preocupações com o processo, somente tendo cabimento quando inadequadas ou descumpridas aquelas (as outras medidas cautelares).

Para uma aplicação adequada das medidas cautelares pessoais, tanto as prisões como as formas diversas, é necessário que sejam observados os postu-lados da necessidade e da adequabilidade, como dispõem os incisos I e II do artigo 282 do Código de Processo Penal:

Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a:I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.II - adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.

Pelo critério da necessidade deve-se avaliar, em respeito à premissa do estado de inocência, a indispensabilidade da medida, para a investigação ou instrução, ou para a aplicação da lei penal.

O critério da adequação determina que seja observada a gravidade do delito, as circunstâncias do fato e as condições pessoais do investigado ou acu-sado, para que a cautelar aplicada seja proporcional.

Para Pacelli (2012, p. 498), a “necessidade e adequação, portanto, são os referenciais fundamentais na aplicação das novas medidas cautelares no proces-so penal”, sendo que “ambas as perspectivas se reúnem no já famoso postulado, ou princípio (como prefere a doutrina), da proporcionalidade”.

O princípio da proporcionalidade garante ao acusado a efetivação de suas garantias fundamentais, sendo um óbice aos excessos que possam ocor-rer quando da decretação de uma medida cautelar, privativa de liberdade ou não, e servindo como juízo de ponderação na escolha da medida mais adequa-da a ser empregada.

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Ainda, Pacelli (2012, p. 498):

Quando presente a necessidade da cautelar, tendo em vista eventuais riscos ao processo, o primeiro passo do juiz no exame das medidas cabíveis será na direção da adequação da providência, em vista da concreta situação pessoal do agente, bem como da gravidade e das circunstâncias do fato.

A priori, o que se extrai acerca das medidas cautelares é que a prisão será a última opção, salvo nas hipóteses legais expressamente previstas no Código de Processo Penal.

4 PRISÃO PREVENTIVA E A OFENSA AO PRIMADO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A prisão preventiva, prevista nos artigos 311 a 316 do Código de Proces-so Penal, é a medida cautelar pessoal que consiste na privação da liberdade do suposto autor de um delito. Por se tratar da privação da liberdade, que é um di-reito fundamental intrínseco, e constitucionalmente assim considerado, de todo cidadão – inclusive daquele a quem se imputa a prática de um crime –, deve ser empregada apenas como ultima ratio, quando nenhuma medida cautelar diversa for suficiente à tutela, ou for descumprida, e respeitando-se todos os requisitos legalmente determinados, como a seguir será visto.

Segundo Eugenio Pacelli de Oliveira (2012, p.524):

Referida modalidade de prisão, por trazer a privação da liberdade antes do trânsito em julgado, somente se justifica enquanto e na medida em que puder realizar a proteção da persecução penal, em todo o seu iter procedimental, e, mais, quando se mostrar a única maneira de satisfazer tal necessidade.

Conforme prevê o art. 311, a prisão preventiva pode ser decretada, a qualquer tempo, tanto na fase das investigações, quando durante o curso do processo, a requerimento da autoridade policial, do Ministério Público, do as-sistente de acusação, do querelante e, se durante a persecução penal, de ofício pelo magistrado.

Hão de ser observados requisitos e pressupostos1 para verificar se é cabí-vel a prisão preventiva, sendo que quando não mais se fizerem presentes, deve,

1 Cumpre esclarecer que no presente artigo não será feita análise da distinção entre pressupostos e requisitos, não obstante seja conhecida a existência de diferenciação e de posicionamentos diversos sobre o assunto, adotando-se, então, o entendimento do Professor Luiz Antonio Câmara, no livro “Medidas Cautelares Pessoais: Prisão e Liberdade Provisória”, em que apenas opta por diferenciar o conteúdo do art. 312 do Código de Processo Penal entre pressupostos probatórios e pressupostos cautelares, tema central deste estudo.

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imediatamente, ser relaxada a prisão, o que não obsta que seja decretada nova-mente caso sobrevenham novos fundamentos a ensejar sua decretação.

O chamado fumus commissi delicti, encontrado na parte final do art. 312 do Código de Processo Penal, é pressuposto indispensável para decretação da prisão preventiva e é composto da prova suficiente da existência do delito e de indício suficiente de sua prática, os quais devem estar de forma cumulada pre-sentes na fundamentação do magistrado que a decretar.

Conforme o professor Aury Lopes Jr. (2011, p.73):

Para a decretação de uma prisão preventiva (ou qualquer outra prisão cautelar), diante do altíssimo custo que significa, é necessário um juízo de probabilidade, um predomínio das razões positivas. Se a possibilidade basta para a imputação, não pode bastar para a prisão preventiva, pois o peso do processo agrava-se notavelmente sobre as costas do imputado.

Para o processualista penal, citando o saudoso Francesco Carnelutti, há uma distinção entre possibilidade e probabilidade: aquela trata as razões posi-tivas e negativas de forma equivalente; já pela segunda há uma predominância das razões positivas sobre as negativas, ou das negativas sobre as positivas (LOPES JR., 2011, p. 73).

Como não se pode exigir um juízo de certeza, por parte do magistrado, quanto à autoria do delito quando for decretar a prisão preventiva, eis que a certeza só será conhecida (ou não) com o trânsito em julgado de uma sentença criminal, deve, então, existir um juízo do provável e não apenas do possível (MENDONÇA, Andrey Borges de, 2011, p. 19).

O mesmo não ocorre em relação a existência do delito. Para que seja de-cretada a prisão preventiva há de estar provada a existência do crime, seja por meio de exames e laudos, seja por meio de provas documentais, enfim, qualquer meio que prove a materialidade delitiva.

Além disto, para caracterizar um crime, a conduta precisa, necessaria-mente, ser típica, ilícita e culpável, não podendo, então, como prevê o art. 314 do Código de Processo Penal, quando o juiz perceber ter o suposto agente prati-cado o delito nas condições do art. 23 do Código Penal, ou seja, em alguma das causas excludentes de ilicitude, decretar a prisão preventiva. Ora, por óbvio que se a ilicitude é um dos elementos que compõe o crime, se o agente agiu em uma condição que exclui este elemento, não há que se falar em crime.

Porém, para este caso, o art. 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal determina que seja imposta a liberdade provisória vinculada ao compare-cimento a todos os atos processuais, sob pena de revogação.

Sobre o assunto, as relevantes considerações do professor Eugenio Pace-lli de Oliveira (2012, p. 546):

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[...] Observa-se, aliás, que, em princípio, comparecer ou não aos atos do processo dependeria do juízo de conveniência do acusado. Mas, a exigência do art. 310, parágrafo único, CPP, se justifica como medida cautelar unicamente em razão da anterior prisão em flagrante.

Então, para que a prisão preventiva seja decretada de forma regular, deve estar presente o fumus commissi delicti, com a certeza da existência do delito e a probabilidade da sua autoria.

Os pressupostos cautelares da prisão preventiva também estão previstos no art. 312 do Código de Processo Penal e caracterizam o periculum libertatis que, ao contrário dos formadores do fumus commissi delicti, não precisam estar presentes de forma cumulada. São eles: garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal e/ou para assegurar a apli-cação da lei penal.

Segundo Aury Lopes Jr. (2011, p. 76):

São conceitos que pretendem designar situações fáticas cuja proteção se faz necessária, constituindo, assim, o fundamento periculum libertatis, sem o qual nenhuma prisão preventiva poderá ser decretada. Tais situações, para a decretação da prisão, são alternativas e não cumulativas, de modo que basta uma delas para justificar-se a medida cautelar.

Assim, pode-se considerar que o periculum libertatis é o perigo que decorre do estado de liberdade do sujeito passivo, previsto no CPP como o risco para a ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Além dos pressupostos que devem estar presentes para o cabimento da prisão preventiva, há previsto, no art. 313 do Código de Processo Penal, hipóte-ses que também delimitam o uso desta medida cautelar, sendo que os incisos II e III devem estar cumulados com o inciso I, mas não necessariamente entre si.

O inciso I do art. 313 do Código de Processo Penal determina que caberá prisão preventiva quando se tratar de crimes dolosos punidos com pena priva-tiva de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos.

Por esta disposição, a priori já é eliminada qualquer possibilidade de de-cretar esta medida provisória privativa de liberdade aos crimes culposos e às contravenções penais.

Outra observação importante é que este dispositivo, por determinar o mí-nimo de pena a ser respeitado para decretação da preventiva, parece, de forma indireta, mostrar que o legislador quis que o magistrado contemplasse o rol de

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medidas cautelares diversas da prisão, previsto no art. 319 do CPP, uma vez que no caso concreto poderá, não raro, ocorrer a prática um delito cuja pena máxima, em abstrato, seja inferior a 4 (quatro) anos, porém necessite de uma medida cautelar.

O inciso II diz respeito à reincidência em crime doloso, salvo quando o novo delito for praticado após o lapso de 5 (cinco) anos da outra condenação, conforme o art. 64, I, do Código Penal.

Este dispositivo fere claramente o princípio do non bis in idem, o qual determina que ninguém será punido duas ou mais vezes pelo mesmo fato, e também o postulado na presunção de inocência.

A terceira hipótese de cabimento da prisão preventiva trata de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medi-das protetivas de urgência. Afirma Andrey Borges de Mendonça (2011, p. 19):

A finalidade do dispositivo inserido no art. 313, inc. III, é proteger determinadas categorias de pessoas que se encontram normalmente em situação de hipossuficiência, especialmente quando o delito é praticado no âmbito domiciliar ou domestico. Sempre que as medidas de proteção forem insuficientes ou inadequadas (leia-se, também, as medidas cautelares alternativas à prisão), especialmente em razão do risco de seu descumprimento, será possível a decretação da prisão preventiva nesta situação, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

O conteúdo do inciso III do art. 313 do Código de Processo Penal tam-bém é abrangido pela Lei 11.340/2006, Lei Maria da Penha, porém no disposi-tivo do CPP o rol taxativo de possíveis vítimas é maior.

Como já visto, a segunda parte do art. 312 do Código de Processo Penal contém os pressupostos probatórios da prisão preventiva, prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria, que representam o fumus commissi delicti e devem imprescindivelmente estar presentes, de forma cumulada, e fun-damentados em qualquer decisão que decrete esta medida.

O restante do art. 312 do Código de Processo Penal versa sobre os pres-supostos cautelares da prisão preventiva, quais sejam: a garantia da ordem pú-blica, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e para assegurar a aplicação da lei penal.

O primeiro pressuposto cautelar, previsto no art. 312 do Código de Pro-cesso Penal, que, em tese, pode fundamentar a decretação da prisão preventiva é a garantia da ordem pública.

Ocorre que o conceito de ordem pública, vez que não foi definido em lei, é muito amplo e indeterminado, sendo que, por este motivo, recebe diversas

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críticas e ainda é muito discutido na doutrina e na jurisprudência pátria o que caracteriza tal pressuposto.

A doutrina e os operadores do direito muito debatem acerca de estar ou não presente em um caso concreto uma lesão à ordem pública que justifique a custódia preventiva. Alguns procuram estender a abrangência do conceito de ordem pública, enquanto outros restringi-lo, conforme a posição que ocupem no processo, sejam acusadores, sejam defensores. Da mesma forma a jurisprudência ingressa nesta celeuma, ora firmando posição mais rigorosa, ora mais branda, conforme a formação e o entendimento pessoal de cada julgador. (CAVALHEIRO NETO, 2012, p. 2)

Em virtude disto, a doutrina e a jurisprudência entenderam necessário (tentar) delimitar o que configuraria a ofensa à ordem pública. Assim, esta-beleceu-se como referenciais o clamor público, a gravidade do delito, a pos-sibilidade de reiteração em conduta criminosa e a necessidade de preservar a credibilidade da justiça.

Não obstante entendimentos contrários, claramente percebe-se que todas estas hipóteses adotadas com frequência, para significar a ofensa à ordem pú-blica, ferem o princípio constitucional da presunção de inocência, vez que todas equiparam o acusado ao condenado, com prévia consideração de culpabilidade (PACELLI, 2012, p. 133), assumindo contornos de verdadeira pena antecipada, violando, além da presunção de inocência, o devido processo legal.

Aury Lopes Jr. (2011, p. 92-93), citando Odone Sanguiné, afirma, neste sentido, que:

[...] a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou, ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de “prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém, deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e a natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe funções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”.

E acrescenta, o processualista penal, que “as funções da prevenção geral e especial e retribuição são exclusivas de uma pena, que supõe um processo judicial válido e uma sentença transitada em julgado, jamais podendo ser bus-cadas na via cautelar” (LOPES JR., 2011, p. 92-93).

Em especial quanto à possibilidade de reiteração em conduta criminosa, pode-se também perceber que a ofensa ao primado da presunção da inocência, além do que foi exposto, se da na medida em que se retira d aquele p rocesso a

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e sfera d e p roteção, remetendo-a p a ra um fu tu ro o utro p rocesso – c a s o realmente ocorra a p rática de novo d e lito – ficando evidente a p resunção de c u lpabilidade e não da inocência, como deve ser.

Assim, invocar a garantia da ordem pública como fundamento para de-cretar a prisão preventiva, claramente enseja ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência, que, como já foi exposto, representa uma das garan-tias de qualquer cidadão, inclusive daquele a quem se imputa a prática de um delito, em um estado democrático de direito, uma vez que, especialmente, não cumpre com a função primordial das medidas cautelares – tutelar o processo.

Assim c omo o c onceito d e o rdem p ú b lica, o c o n ceito de o rdem e c o nômica para caracterizar um pressuposto pa ra decretação da p risão p reventiva t ambém é muito amplo.

De acordo com Luiz Regis Prado (2011, p. 39) a ordem econômica pode ser assim definida:

[...] para efeito de proteção penal, é reconhecida a noção de ordem econômica lato sensu, apreendida como a ordem econômica do Estado, que abrange a intervenção estatal na economia, a organização, o desenvolvimento e a conservação dos bens econômicos (inclusive serviços), bem como sua produção, circulação, distribuição e consumo.

A garantia da ordem econômica como pressuposto para decretação da prisão preventiva foi inserida no Código de Processo Penal pela Lei 8.884/94 e mantida pela Lei 12.403/11, visando a prisão de quem puder reiterar em infra-ções penais que perturbem o livre-exercício de qualquer atividade econômica, com abuso do poder econômico, objetivando a dominação dos mercados, a eli-minação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros (LIMA, 2011, p. 39).

Assim como o pressuposto para a garantia da ordem pública, aqui tam-bém é clara a o f e n s a ao p rincípio d a p resunção d e inocência, e p e los mesmos motivos: equiparar o acusado ao condenado, assumindo contornos de verdadeira pena antecipada, não preencher o requisito de todas as medidas cautelares, o de tutelar o processo, e presunção de culpabilidade.

Como a prisão preventiva, conforme já visto, deve ser a ultima ratio, asseverado tal entendimento após o advento da Lei 12.403/11, neste caso, por se tratar de suposto risco à ordem econômica, não há dúvidas que outras medi-das cautelares são suficientes a esta tutela. Nesse sentido, bem orienta Eugênio Pacelli de Oliveira (2012, p. 548) “Se o risco é contra a ordem econômica, a medida cautelar mais adequada seria o sequestro e a indisponibilidade dos bens dos possíveis responsáveis pela infração. Parece-nos que é dessa maneira que se poderia melhor tutelar a ordem financeira”.

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Portanto, como a manutenção da garantia da o rdem econômica fo i mantida pela L e i 1 2.403/11, especialmente visando e vitar u ma c o n t inua-ção n a p rática d e d e litos econômicos, a ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência também resta evidente p rincipalmente p o rque a s s im c omo o p ressuposto da garantia da ordem pública, não cumpre com a principal função de qualquer medida cautelar, que é a de tutelar o processo.

A decretação da prisão preventiva pelo pressuposto da conveniência da instrução criminal, ao contrário dos dois primeiros pressupostos, não enseja, é claro que se observados os postulados da necessidade e da adequabilida-de, ofensa ao princípio da presunção de inocência, vez que tem o caráter de tutelar o processo – seja na fase de inquérito, s e ja já durante a persecu-ção p rocessual – , garantindo seu regular seguimento, e de garantir a correta aplicação da lei penal.

Por óbvio, por mais que a decisão de prisão preventiva para conveniên-cia da instrução tenha sido substancialmente fundamentada, não mais estando presentes os fundamentos, deverá, imediatamente, ser restituída a liberdade do investigado ou acusado.

O principal motivo que leva à decretação da prisão preventiva pelo pres-suposto da conveniência da instrução é a obstrução à produção de provas, por isso, estando concretamente presentes os elementos que indiquem que o acusa-do está comprometendo a produção de provas, suprimindo-as ou alterando-as, ameaçando testemunhas, enfim, de qualquer modo que esteja prejudicando a apuração dos fatos e/ou o andamento do processo, a prisão preventiva poderá ser decretada sem caracterizar ofensa ao princípio da presunção de inocência – reitera-se que a mera suposição não poderá, em hipótese alguma, ensejar uma medida cautelar, e menos ainda a privativa de liberdade.

Nesse sentido, o professor Luiz Antonio Câmara (2011, p. 136):

[...] Para que se decrete a medida deve ser evidenciada a necessidade, não podendo a cautela ter lugar apenas a título de conveniência da instrução. Deve mostrar-se nítida a imprescindibilidade da prisão ao adequado desenvolvimento da instrução criminal. Imposta a prisão preventiva com base nesse pressuposto tão logo venha a ser produzida a prova, deve haver revogação incontinenti da cautela.

Além disto, não há que se cogitar a decretação da prisão preventiva para coagir ou estimular o investigado ou acusado a colaborar com a investigação ou instrução, uma vez que não tem obrigação de produzir provas contra si mesmo, além de que a presença os atos processuais é um direito, e não um dever.

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Assim, estando presentes concretamente fatos que demonstrem que o imputado esteja, por qualquer meio, obstruindo a investigação ou instrução, de forma fundamentada poderá ser decretada sua prisão preventiva sem que haja ofensa ao princípio constitucional da presunção de inocência.

Por fim, o último pressuposto cautelar disposto no art. 312 do Código de Processo Penal diz refere-se à decretação da prisão preventiva para garantir a aplicação da lei penal.

Da mesma forma que o pressuposto da conveniência da instrução, o pre-sente também não caracterizará ofensa ao princípio da presunção de inocência, por ter o mesmo caráter de cautela do processo.

Ressalte-se, contudo, que a prisão com base nesse fundamento somente poderá ser decretada quando haja evidência de que o investigado ou acusado fugirá para evitar o cumprimento de futura pena. Importa isso em afirmar que a probabilidade de fuga deve estar bem demonstrada, sendo que mesmo o não comparecimento do acusado a ato processual possa ser indiciário de ausentamento. (CÂMARA, 2011. p. 137.)

Portanto, a prisão preventiva decretada sob o fundamento da garantia de aplicação da lei penal, como não poderia ser diferente, precisa ter elementos concretos de que o acusado pretende furtar-se do distrito da culpa que será a ele imputado ao final de toda a persecução, respeitado-se o devido processo legal e, principalmente, observando-se todas as cautelas para que não haja ofensa ao princípio da presunção de inocência.

5 CONCLUSÃO

Com o advento da Constituição de 1988, houve a necessidade de se ade-quar a interpretação d o Código d e P rocesso P enal ao s eu c onteúdo, u ma vez que t a l Diploma possui um caráter completamente voltado à presun-ção de culpa daquele a quem s e imputa a p rática de um d e lito, s endo in-compatível c o m a Carta Magna, guardiã de direitos e garantias fundamentais.

O p rincípio c o n s t itucional d a p resunção de inocência quebrou o p a radigma histórico d a c u lpabilidade a o e s t a belecer, na o rdem n o rmativa b rasileira, c om s e u c laro caráter garantista, uma garantia constitucional-mente p revista a qualquer cidadão, com intuito de preservar seus direitos e garantias fundamentais perante o Estado.

Ademais, o princípio estabeleceu que aqueles a quem se imputa a prática de um delito passariam a gozar de mais segurança, uma vez que, em conjunto com outros princípios vigentes no ordenamento jurídico prático, como o devido

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processo legal, não permite que se atribua a culpa antes de sentença penal con-denatória transitada em julgado.

Assim, o princípio da presunção de inocência pode ser considerado ins-trumento para promover o equilíbrio entre o jus puniendi do Estado e o jus libertatis do investigado ou acusado, isto até que sobrevenha sentença penal condenatória transitada em julgado apta a estigmatizá-lo culpado.

Quanto à s medidas cautelares e xistentes, d e s t inadas a t utelar o p rocesso, visando garantir o curso normal da investigação ou da instrução, a aplicação da lei penal e, em casos legalmente previstos, a evitabilidade da prática de nova infração penal, a valoração p ara a s u a aplicação, tanto d a prisão p reventiva, quanto das modalidades diversas, passou a ser regida pelo binômio necessidade e adequação, reunindo no princípio da proporcionalidade.

A necessidade impõe a observância, em respeito ao primado da presun-ção de inocência, da indispensabilidade da medida. A adequação, por sua vez, põe equilíbrio entre o tipo legal mais apropriado a se subsumir ao caso concreto, de acordo com sua gravidade, as circunstancias em que foi perpetrado e as con-dições pessoais do agente, seja ele indiciado ou acusado.

As condições impostas para decretação da constrição da liberdade do indivíduo, quais sejam, o fumus commissi delicti, o periculum libertatis, a proporcionalidade da aplicação da medida e a sua necessidade diante do caso concreto, devem ser obrigatoriamente observados para que não haja ofensa ao princípio da presunção de inocência.

Portanto, o que se tentou defender no presente trabalho não foi a abolição da prisão preventiva do ordenamento jurídico, mas sim que sua utilização seja feita em conformidade com a Constituição, e principalmente com o princípio da presunção de inocência, sem a utilização de fundamentos inconsistentes, abstratos, indefinidos e sem nenhuma previsão legal, para que não se macule a dignidade daquele que tem seu status libertatis atingido, mantendo, além disto, o respeito ao Estado Democrático de Direito.

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REFERÊNCIAS

CÂMARA, Luiz Antonio. Medidas Cautelares Pessoais: Prisão e Liberdade Provisória. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2011.

CAVALHEIRO NETO, Augusto. “Garantia de Ordem Pública” é insuficiente para prisão preventiva. Conjur, 9 março 2004. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2004-mar- 09/insuficiencia_argumento_prisao_preventiva>.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Rio de J aneiro: Impetus, 2011, v.1.

LOPES J R, Aury. Direito Processual Penal: a s ua Conformidade Constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

. O Novo Regime Político da Prisão Processual, Liberdade Provisória e M edidas Cautelares Diversas. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisão e Outras Medidas Cautelares Pessoais. 1. ed. São Paulo: Método, 2011.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 16. ed. São Paulo: Atlas 2012.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal Econômico. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2011. p. 39.

ROCHA, Fernando Luiz Ximenes. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Revista dos Tribunais, São Paulo, vol. 25.

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ALFABETIZAÇÃO ECOLÓGICA: UM CAMINHO PARA A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO

ECOLOGICAL LITERACY: A WAY TO PROTECT THE ECOLOGICALLY BALANCED ENVIRONMENT

camila agibErt maia

Graduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

rEgina maria buEno bacEllar

Possui graduação em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambien-tal. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direi-to de Energia/Regulatório.

“O sucesso da comunidade toda depende do sucesso de cada um de seus membros, enquanto que o sucesso de cada membro depende

do sucesso da comunidade como um todo”fritjoj caPra, 2006

RESUMO

O meio ambiente sadio é um direito difuso destinado à todas as pessoas, inclusive às gerações vindouras, assegurado pelo texto da Constituição Federal, de modo que, para esse direito tornar-se efetivo faz-se necessário aprender as lições básicas que envolvam o meio e seus recursos naturais a fim de adaptá-las aos processos do cotidiano. É fundamental que a sociedade tome conhecimento da inter-relação entre a economia, a sociedade e o meio ambiente com o intuito de alcançar o desenvolvimento sustentável e preservação do ecossistema, para tanto o envolvimento do Direito Ambiental no processo de conscientização e educação ambiental dos povos e dos atores envolvidos nos processos de produção, pode ser um forte auxiliar na busca de um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.

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Palavras-chave: educação ambiental; preservação ambiental; conscientização ecológica.

ABSTRACT

The healthy environment is a right designed to reach everybody, including future generations, provided by the text of the Federal Constitution. For this right to become effective it is necessary to learn the basic lessons involving the environment and natural resources in order to adapt them to the processes of everyday life. It is crucial that the society become aware of the interrelationship between the economy, society and the environment, in order to achieve sustainable development and preserve the ecosystem. This is why the involvement of the environmental right in the process of the environmental awareness and education of people and the actors involved in the production processes can be a powerful aid in the search for an ecologically balanced environment for present and future generations.

Keywords: environmental education; environmental preservation; ecological awareness.

1 INTRODUÇÃO

No presente trabalho, pretende-se mostrar a importância da educação ambiental e a conscientização coletiva como elementos fundamentais na proteção do meio ambiente.

Nas últimas décadas tornou-se mais intenso o debate a respeito da crise ambiental e a preservação do ecossistema, surgindo nesse meio o fortalecimento das ideias sustentáveis.

Mesmo diante da globalização, na qual a onda capitalista inunda o mundo inteiro e que o papel das empresas para o desenvolvimento econômico e tecnológico é fundamental para uma nação, é importante que se preserve o meio ambiente e que se promovam os direitos humanos. O objetivo não é eliminar o desenvolvimento econômico das empresas, mas agregar através da alfabetização ecológica, valores às atitudes de seus administradores, sócios e empregados, a fim de diminuir os resíduos oriundos dos meios de produção e modificar as técnicas de exploração de recursos naturais para que se tenha um número reduzido de prejuízos ao ecossistema, desenvolvendo uma sociedade mais sustentável e preocupada com o meio em que vive e do qual necessita para a sobrevivência.

Em razão dos apontamentos acima, o objetivo do presente artigo é conciliar, através da educação ambiental e da conscientização coletiva, o

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desenvolvimento econômico, a proteção ao meio ambiente e o direito a uma vida saudável, buscando uma maneira de satisfazer as necessidades e aspirações de cada comunidade – política, econômica, humana - sem diminuir as chances das gerações vindouras a um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

O estudo utiliza-se do método dedutivo, fundamentando-se na pesquisa bibliográfica, legislação vigente e os dados oriundos de meio eletrônico, com suporte nas obras de autores como LUZZI (1992) FREIRE DIAS (2000) GALLI (2008) e CANÇADO TRINDADE (1993) e em informativos e publicações de instituições que objetivam promover a educação ambiental como forma de proteção do meio ambiente.

A explosão industrial e tecnológica nos últimos tempos levou a natureza a uma depreciação, o homem passou a explorar ao máximo seus recursos naturais sem pensar nas consequências.

Com o passar do tempo, o uso irracional do meio ambiente ocasionou uma crise ambiental, diante da qual foram necessárias inúmeras consequências maléficas à vida humana para que se notasse que todas as questões ecológicas que eram tratadas com desprezo, estavam começando a repercutir no meio social, assim, o homem passou a buscar formas de apagar o seu rastro de devastação ambiental e tentar salvar o que foi objeto da destruição.

O início da democracia, marcado pela promulgação da Constituição da República chamou atenção à questão da proteção ambiental, dispondo um capítulo especial sobre o meio ambiente e sua proteção jurídica, social e econômica. Diante dessas premissas, as transformações das ações humanas, revestidas de consciência ambiental, passaram a ser imprescindíveis à proteção do meio ambiente.

Na Conferência de Tbilisi (1977), a EA foi definida como dimensão dada ao conteúdo e a prática da educação, orientada para a resolução dos problemas concretos do meio ambiente, através de um enfoque interdisciplinar e de uma participação ativa e responsável de cada indivíduo e da coletividade. (DIAS, 2004, p. 98)

Ser alfabetizado ecologicamente, para Fritjof Capra, significa entender os princípios para criar comunidades ecológicas (ecossistemas) e usar esses princípios para criar comunidades humanas sustentáveis (CAPRA, 2006, p. 231), o autor complementa ainda que os princípios da ecologia devem se propagar nas comunidades através de “princípios da educação, da administração e da política”. É necessário conhecer e entender por meio dessa alfabetização como viver de maneira sustentável.

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O princípio da educação ambiental advinda do Direito Ambiental teve suas primeiras indicações em 1981 com a promulgação da Lei n° 69382. A educação ambiental possui inúmeras definições, dentre elas a doutrina majoritária reúne o seguinte conceito: é uma educação para o exercício da cidadania em que o homem é parte do meio ambiente; é a conscientização a respeito de conservar o ecossistema e utilizar de forma sustentável seus recursos naturais.

O Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, construído no Fórum das ONGs, reunido durante a RIO-92, trouxe a educação ambiental como um caráter transformador que contribuiria para a paz sustentável como base da justiça social e saúde do planeta, o que acabou tornando-se um dos pilares para a elaboração da Lei da PNEA, a qual dita a Política Nacional da Educação Ambiental.

De acordo com o Tratado supracitado,

a educação ambiental é individual e coletiva. Tem o propósito de formar cidadãos com consciência local e planetária que respeitem a autodeterminação dos povos e a soberania das nações. A educação ambiental não é neutra, mas ideológica. É um ato político, baseado em valores para a transformação social [...] Deve estimular a solidariedade, a igualdade e o respeito aos direitos humanos, valendo-se de estratégias democráticas e da interação entre as culturas. (Ministério da Educação, p. 2, 1992)

No mesmo sentido, a Agenda 21 define a Educação Ambiental como um processo que busca:

“(...) desenvolver uma população que seja consciente e preocupada com o meio ambiente e com os problemas que lhes são associados. Uma população que tenha conhecimentos, habilidades, atitudes, motivações e compromissos para trabalhar, individual e coletivamente, na busca de soluções para os problemas existentes e para a prevenção dos novos (...)” (Fundação Estadual do Meio Ambiente)

Pode-se dizer que essa educação transformadora reflete no ser humano a capacidade de trabalhar a racionalidade com a sensibilidade visando a participação dos indivíduos nos assuntos sócioambientais, despertando o interesse, o engajamento individual e coletivo para gerar mudanças que se destinem a uma sociedade mais justa e sustentável.

A educação ambiental busca a transformação da sociedade na qual os homens devem ostentar seus direitos e deveres sociais através de uma conduta participativa em prol do “presente e futuro melhor” (LUZZI, 1992. p. 383).

2 Lei que traz as diretrizes da Política Nacional do Meio Ambiente.

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Segundo REIGOTA (2001, p. 125), a intensa resolução dos problemas ambientais mundiais não pode ser resolvida somente pela Educação Ambiental, contudo, ela deve influenciar para tanto, tornando os cidadãos conscientes de seus direitos e obrigações. Para o autor, a importância da educação ambiental deve estar pautada sob uma abordagem baseada no respeito aos princípios éticos, e ideário ecológico, na superação do antigo conceito de “res nullius”3 que era atribuído ao meio ambiente em favor do “res omnium”4.

A educação ambiental traz consigo aspectos imprescindíveis a respeito da relação homem-natureza, conscientizando a coletividade de que a boa qualidade da natureza é indispensável à sobrevivência do ser humano.

Pode-se afirmar que a alfabetização ambiental é um instrumento que facilita a compreensão de que os recursos naturais são finitos e que sua durabilidade depende dos impactos causados pelas atividades do homem, possibilitando além da tentativa de uma qualidade de vida melhor para as comunidades atuais, um mundo ambientalmente mais sustentável garantindo a sobrevivência e o desenvolvimento das próximas gerações.

A educação contribui para a construção de uma nova cultura de salvaguarda dos direitos humanos e do meio-ambiente, fundada em bases éticas e democráticas voltadas ao desenvolvimento humano integral, ao livre desenvolvimento de cada um e de todos os membros da sociedade civil. Em uma dimensão mais ampla e elevada, o que almejamos é em última análise a criação de uma cultura de observância dos direitos humanos assim como de conservação do meio-ambiente. Cada ser humano, como portador e criador de cultura, há de contribuir para transformar a realidade neste propósito. E esta cultura, a abrigar valores comuns superiores, compõe, a seu turno, o sunstratum do direito comum da humanidade que desponta neste limiar do novo século. (TRINDADE, 1993, p. 229)

No mesmo sentido, GALLI (2008, p. 128) destaca que,

o homem tem o direito de aprender a defender e respeitar valores como o meio ambiente equilibrado, a dignidade de todas as pessoas, e de preparar-se para participar do desenvolvimento social e econômico em harmonia com a natureza.Essa nova educação deve se tornar uma preocupação central em todos

os níveis de ensino e treinamento de políticos, empresários e profissionais de todos os ramos. O processo de alfabetização ecológica deve ser dinâmico e

3 Algo sem valor; pertencente a ninguém.4 Pertence a todas as pessoas em direitos e obrigações.

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participativo, modificando atitudes e comportamentos, possibilitando que qualquer pessoa possa aprender como proteger e preservar o meio em que vive e seus recursos naturais indispensáveis à sobrevivência humana.

3 O PROCESSO EDUCATIVO

3.1 EDUCAÇÃO AMBIENTAL FORMAL

O artigo 2º da Lei nº 9795/99 que trata da Política Nacional da Educação Ambiental, concede ao estudo da educação ambiental tanto um caráter formal5 como informal6, “a educação ambiental é um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal.” (BRASIL, p. 1, 1999)

A educação ambiental tanto no processo formal como informal proporciona uma dinamicidade sob uma visão da realidade na qual o homem e o meio ambiente são interdependentes, fazendo com que a teoria e a prática se unam como forma de solucionar ao menos parte da crise ambiental.

[...] tanto o ensino formal como o informal são indispensáveis para modificar a atitude das pessoas, para que estas tenham capacidade de avaliar os problemas do desenvolvimento sustentável e abordá-los. O ensino é também fundamental para conferir consciência ambiental e ética, valores e atitudes, técnicas e comportamentos em consonância com o desenvolvimento sustentável e que favoreçam a participação pública efetiva nas tomadas de decisão [...]” (AGENDA 21, p. 239).

Para MALHADAS (2000, p. 9):

a educação envolve a integração transversal de três abordagens para a educação ambiental: educação no ambiente, educação sobre o ambiente e educação para o ambiente, em síntese, educação no ambiente traduz-se como “educação para a conscientização ambiental e sua interpretação; educação sobre o ambiente traduz-se como “educação para o manejo ambiental” e, educação para o ambiente como “educação no ambiente”.

5 Educação organizada, proporcionada pelas escolas, atingindo a interdisciplinaridade, na qual a educação ambiental se relaciona com diversos conteúdos. 6 Práticas e ações, oriundas de um processo permanente, embora não organizado, voltadas a sensibilização da coletividade a respeito das questões ambientais

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A relação entre educação e meio ambiente assume um importante papel na busca de consolidar uma linguagem comum, sobre isso, MUCELLIN (2000, p.46) afirma que: “a conscientização viabilizada por meio da educação crítica e problematizadora auxilia na mudança de atitudes e procedimentos em prol da melhoria da qualidade de vida”. Ao tratar dessa interdisciplinaridade entre sociedade e natureza, LEFF (2008, p. 226) destaca:

O saber ambiental impulsionou novas abordagens holísticas e a busca de métodos interdisciplinar, capazes de integrar a percepção fragmentada da realidade que foi legada pelo desenvolvimento das ciências modernas (...).

A interdisciplinaridade proposta pelo saber ambiental implica a integração de processos naturais e sociais de diferentes ordens de materialidade e esferas da racionalidade (...)

O processo educativo ambiental de caráter formal tanto nas universidades como nas instituições de ensino, para REIGOTA (2001, p. 200) é efetivo desde que favoreça a criatividade, deve-se então agregar às atitudes, de alunos e profissionais, a formação de valores que gerem hábitos e comportamentos em prol do meio ambiente.

“[...] O novo da EA é que a mesma vai além das simples práticas utilizadas tradicionalmente na educação, ela revisita esse conjunto de atividades pedagógicas, reatualizando-as dentro de um novo horizonte epistemológico em que o ambiental é pensado como sistema complexo de relações e interações da base natural e social, definido pelos modos de sua apropriação pelos diversos grupos sociais, políticos e culturais que aí se estabelecem (CARVALHO, 2003, p. 56).

Observa-se que é comum nas escolas a implementação da educação ambiental e assuntos relacionados ao meio ambiente de forma isolada, na qual os recursos didáticos são mal aplicados, e os professores são desestimulados e por vezes mal remunerados, o que prejudica a formação e desenvolvimento dos alunos.

Sabe-se que inúmeros educadores ambientais tentaram, através dos movimentos sociais e políticos, inserir a educação ambiental na educação formal, sem pensar nas necessárias transformações da educação em si.

A exemplo disto, Daniel Luzzi (2005) indica o Pronunciamento Latino-Americano, um movimento livre de educadores de diversos países que, no Fórum Mundial de Educação, realizado em Dacar, em 2000, expôs a

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necessidade de procurar um processo educativo capaz de impulsionar os meios necessários a fim de que os alunos descubram um significado para a existência da vida humana em comunidade: “[...] saber conviver privilegiando o bem-estar coletivo, respeitar as diferenças contra as tendências de exclusão e o cuidado pelos mais fracos e desprotegidos” (LUZZI, 2005, p. 399).

A ação ambiental empreendida por educadores ambientais tem sido de natureza instrumental e raramente reflexiva (ZAKRZEVSKI, 2003, p. 79).

Segundo MININNI-MEDINA (2001, p. 68), a educação ambiental formal

oportuniza uma educação científica que dá aos alunos instrumentos de análise para a compreensão e busca de soluções dos problemas ambientais, uma vez que considera as características estruturais do nível de desenvolvimento cognitivo do aluno para a evolução e o alcance das estruturas hipotéticas-dedutivas.

Deve-se, portanto, integrar essa nova educação de forma multidisciplinar, “onde os campos do conhecimento, as noções e os conceitos podem ser originários de várias áreas do saber” (TRISTÃO, 2002, p. 98), desde os primeiros anos do ensino fundamental até os cursos superiores, possibilitando uma melhoria na qualidade de ensino do país e melhor capacitação de profissionais.

O meio ambiente na escola começa com o processo de reconstrução interna dos alunos a partir de uma proximidade com a natureza, assim, a educação ambiental assume “uma parte ativa de um processo intelectual, constantemente a serviço da comunicação, do entendimento e da solução dos problemas” (VIGOTSKY, 1991).

Trata-se de uma transformação na própria escola, de modo que o aluno passe a analisar de forma entrelaçada, dentro e fora da sala de aula, a natureza e suas próprias práticas sociais, a fim de recriar e reinterpretar informações.

Essa alfabetização ecológica permite que o processo educativo se estabeleça sob diferentes diretrizes que se completam umas com as outras, na medida em que possibilitam uma troca de conhecimento, formação de uma filosofia e de um saber, a remodelagem na interação entre ciência, cotidiano e meio ambiente, a participação dos cidadãos e dos governantes, estabelecendo uma dinâmica entre conhecimentos específicos a respeito da problemática ambiental.

A Educação Ambiental na rede formal de ensino deve estruturar um modelo pedagógico baseado na investigação educando/educador, no método científico a ser construído a partir das motivações dos educandos, dos seus contextos socioambiental e cultural e da apreensão do conhecimento, levando em conta, portanto, as necessidades, atitudes,

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e suas aspirações historicamente definidas; as suas estruturas essenciais cognitivas e afetivas; e os conteúdos fundamentais das diferentes disciplinas e suas inter-relações. (FREIRE et al, 2006, p. 59)

Assim, é imprescindível que as grades curriculares de licenciatura das universidades e das demais instituições de ensino, despertem a vontade de pesquisar e de trocar ideias proporcionando uma conciliação da base epistemológica das ciências naturais (natureza) com as ciências sociais (cultura), de modo que essa nova forma de educação possibilite transmitir aos alunos de maneira objetiva como os assuntos do cotidiano estão envolvidos com a proteção e preservação do ecossistema.

AB’ SABER (1991, p. 2), destaca que:

“[...] a Educação Ambiental é uma coisa mais séria do que geralmente tem sido apresentada, em nosso meio. É um apelo à seriedade do conhecimento e, uma busca de propostas corretas de aplicação das ciências. Uma ação, entre missionária e utópica, destinada a reformular comportamentos humanos e recriar valores perdidos e ou jamais alcançados. Um processo de educação que garante um compromisso com o futuro, envolvendo uma nova filosofia de vida e um novo ideário comportamental, tanto no âmbito individual, quanto no coletivo”.

Capítulo I, Art. 1º da Lei nº 9.795/99:

“Entendem-se por educação ambiental os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade”.

O objetivo é recuperar o dinamismo e analisar a estrutura da educação, da formação dos saberes e das práticas escolares, a fim de desenvolver e capacitar o corpo docente e discente, a entender o meio em que vivem e buscar, juntos, soluções aos problemas ambientais a partir de uma perspectiva histórica, social e cotidiana.

Para FREIRE et al (2006, p. 61) a educação ambiental é uma modalidade de processo educativo voltada à participação dos atores, educandos e educadores, que visam um novo paradigma, de modo que traga a discussão a respeito das questões ambientais e transformações éticas, de valores e comportamentos para construir uma nova realidade.

No tocante ao processo de formação dos educadores, é notado que a educação ambiental possui inúmeras especificidades para ser implementada

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nas escolas, tanto de caráter temático como metodológico que exigem certa capacitação dos professores. O artigo 11 da lei nº 9795/99, dispõe que “a dimensão ambiental deve constar dos currículos de formação de professores, em todos os níveis e em todas as disciplinas” (BRASIL, 1999, p. 4).

As diretrizes que orientam a formação dos educadores ambientais devem estar pautadas em um processo de construção e reinterpretação de conhecimentos e valores, tomando como eixo uma reflexão crítica da experiência pedagógica agrupada a valores éticos, sociais e ambientais.

Os processos que capacitam os educadores vem sendo desenvolvidos por entidades governamentais e não-governamentais, que por sua vez na maioria das vezes vêm acompanhado do COEA/MEC7, estabelecendo articulação com os sistemas visando além do processo de capacitação em si, gerar uma continuidade e um fortalecimento das bases educacionais em matéria ambiental aos professores.

Os processos de ensino e aprendizagem, de acordo com o Panorama da Educação Ambiental no Ensino Fundamental, promovido pelo MEC,

[...] implicam sempre mediações sociais, cognitivas e afetivas, que terão de ser trabalhadas na formação em Educação Ambiental, visando ao mesmo tempo a uma melhoria na qualidade do ensino, acrescentando-lhe novos conteúdos, estratégias, habilidades instrucionais e modelos de gestão da classe. O professor como sujeito que aprende em Educação Panorama da Educação Ambiental no Ensino Fundamental Ambiental, no exercício posterior, terá de envolver-se na melhoria qualitativa da instituição escolar, por meio de processos de aperfeiçoamento contínuo, trabalhos coletivos e propósitos compartilhados com os outros docentes, alunos, pais e comunidade. Para isso, deve ser informado em relação às metodologias de resolução de conflitos e motivado a exercer a liderança.

O artigo supracitado prevê também, àqueles que não tiveram a oportunidade ao longo da sua formação que: “(...) devem receber formação complementar em suas áreas de atuação, com o propósito de atender adequadamente ao cumprimento dos princípios e objetivos da PNEA8” (BRASIL, 1999, p. 4).

De acordo com Édis Milaré, a lei reflete através de suas diretrizes, os princípios do Direito Ambiental:

O ordenamento jurídico e o ordenamento social sustentam-se mutualmente, e com o reforço da Ética será possível reformular o relacionamento do ser humano com o mundo natural, com vistas a uma sociedade justa e um planeta dignificado. (MILARÉ, 2001, p. 415-417)

7 Coordenação-Geral de Educação Ambiental.8 Política Nacional da Educação Ambiental.

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O autor traz a questão de que a educação ambiental deve ir além do amparo legal, os princípios e valores éticos a serem incorporados pelos seres humanos são capazes de trazer uma transformação coletiva em prol do planeta e seus recursos naturais.

Para Paulo Freire, a ecologia é fundamental para a humanidade e deve estar presente nos processos educativos seja ele de caráter radical, crítico ou libertador (FREIRE, 2000, p. 31).

Os educadores ambientais devem integrar-se aos movimentos políticos e sociais que lutam por uma vida melhor para todos, contribuindo humildemente nesse processo de diálogo permanente, tentando gerar as bases de uma educação que se objetive na busca do outro, para a construção de uma pluralidade que fundamente o sentido ético da vida humana, e a presença constante da utopia e da sentença. (LUZZI, 2005, p. 399)

Os objetivos, os conteúdos e as avaliações nas escolas e instituições de ensino precisam ser contextualizados com as propostas de educação ambiental, devendo-se dar ênfase nas discussões de conceitos complexos buscando uma compreensão linear das questões ambientais ao longo da história para poder entender quais os instrumentos necessários e a forma de transformação de um mundo mais sustentável.

Como responsabilidade do Poder Público, a lei determina que os governos nos níveis federal, estadual e municipal incentivarão a ampla participação das empresas públicas e privadas em parcerias com a escola, bem como as organizações não-governamentais na formulação e execução de programas e atividades vinculadas à educação ambiental. (CASTRO; CANHEDO JR, 2005, p. 408)

A implementação do modelo de dimensão ambiental no ensino formal, exige uma reforma curricular, como dito anteriormente, uma transformação do corpo docente e a evolução de um processo de capacitação dos recursos humanos responsáveis pelo acompanhamento e interação durante as experiências nas escolas e demais instituições de ensino.

Diante dessas mudanças, foi criada uma Proposta de Participação-Ação para a Construção do Conhecimento (PROPACC) que por sua vez consiste em uma metodologia teórica e prática capaz de orientar a compreensão crítica e relacionada aos sistemas ambientais, e suas aplicações na educação ambiental. O objetivo da PROPACC é investir na propagação da metodologia da educação ambiental, visando a melhoria na qualidade educacional por meio do intercâmbio de conhecimento e pesquisas e construção de um trabalho interdisciplinar na

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qual a dimensão ambiental passa a integrar os currículos do ensino fundamental, médio e até mesmo influenciando fortemente o ensino superior.

Destaca-se que na I Conferência Nacional de Educação Ambiental, o Ministério da Educação – MEC e o Ministério do Meio Ambiente - MMA apresentaram um levantamento dos projetos referentes à educação ambiental no Brasil, apresentando os três temas mais tratados:

Problemas da realidade local: 47,2%; educação ambiental no contexto escolar: 45,1%; lixo/reciclagem: 32,6%. A orientação presente no processo educacional de ter como ponto de partida a busca da percepção da realidade mais próxima, relacionando-se com as preocupações comunitárias, é uma constante nos projetos que participam desta pesquisa. Do mesmo modo, a educação ambiental no contexto escolar reafirma os dados anteriores nas inter-relações que estabelecem, [... (MEC/MMA apud CASCINO et al, 1998, p.16). A educação ambiental é um processo que aposta na re-humanização, o

aprendizado incentiva no processo interno de cada indivíduo refletindo nas suas atitudes em respeito para com o meio ambiente.

O papel da escola consiste na formação e transformação de valores, atitudes e comportamentos, sensibilizando os alunos desde o ensino fundamental básico, preparando-os para um pensamento mais crítico e consciente desenvolvido no ensino médio até chegar à Universidade, em que o exercício da capacitação temática ambiental nas diversas áreas do conhecimento é praticado, buscando a efetividade da passagem da reflexão para a prática.

3.2 EDUCAÇÃO AMBIENTAL NÃO-FORMAL E O EXERCÍCIO DA CIDADANIA

Por outro lado, o trabalho da educação ambiental é reconhecer que o aprendizado não ocorre somente nas escolas.

O caráter informal dessa nova educação pretende aplicar novos valores e paradigmas às atitudes e comportamentos de cada indivíduo, possibilitando à coletividade, uma participação mais efetiva na busca pela vida sustentável e um meio ambiente equilibrado, assegurado pelo texto constitucional. “É preciso que os processos educativos atuem no centro da vontade, o conhecimento precisa se tornar consciente” (MENDONÇA, 2007, p. 125).

Para o autor, é importante que a transmissão dos conteúdos ambientais passe de meras informações para transformação de comportamentos humanos, na qual as pessoas possam se comprometer de maneira integral com o conteúdo apresentado. A educação ambiental, através de formas alternativas

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de aprendizagem, deve construir e desenvolver valores e princípios éticos capazes de orientar os indivíduos a uma participação mais ativa na busca pela preservação do meio ambiente.

O processo de educação informal objetiva a construção de um senso crítico mais reflexivo e sensível através de meios de comunicação em massa, capaz de proporcionar um saber coletivo e incentivar a participação na preservação do meio ambiente.

O objetivo do processo educativo de dimensão ambiental é fazer com que os indivíduos entendam a interdependência entre homem e natureza, contemplando a comunidade global como ator principal na busca pela solução dos problemas ambientais.

De acordo com Carvalho, a educação ambiental visa à criação de um “sujeito ecológico” construído a partir de valores éticos e atitudes pautadas no ideário ecológico.

O sujeito ecológico (...) é um sujeito ideal que sustenta a utopia dos que crêem nos valores ecológicos, tendo por isso, valor fundamental para animar a luta por um projeto de sociedade bem como a difusão desse projeto. Não se trata de imaginá-lo como uma pessoa ou grupo de pessoas completamente ecológicas em todas as esferas de sua vida ou ainda como um código normativo a ser seguido e praticado em sua totalidade por todos que nele se inspiram (CARVALHO, 2008, p. 67). A ampliação de iniciativas através de campanhas, projetos e movimentos

socioambientais são diretrizes para o projeto político-pedagógico sugeridas pelo autor. As parcerias entre instituições privadas, o Governo e as ONGs devem se fortalecer a fim de estimular o engajamento da sociedade nas questões ecológicas.

A capacidade de sensibilização e de motivação dos indivíduos alfabetizados ecologicamente representa a possibilidade de transformar diversas formas de dinamização da sociedade na fiscalização e controle dos agentes responsáveis pela degradação ambiental.

A educação ambiental não-formal tem a característica de desenvolver a educação de forma permanente envolvendo reflexões e ações individuais e coletivas. É uma educação de caráter transformador que enfatiza, através de diferentes patamares, a relação concreta entre o homem e a natureza.

Está focada nas pedagogias problematizadoras do concreto vivido, no reconhecimento das diferentes necessidades, interesses e modos de relações na natureza que definem os grupos sociais e o “lugar” ocupado por estes em sociedade, como meio para se buscar novas sínteses que indiquem caminhos democráticos, sustentáveis e justos para todos. (LOUREIRO, 2004, p.81)

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Contudo, a propagação da educação ambiental não é tão fácil quanto parece. A Constituição Brasileira de 1988 determinou ao poder público o papel de promover essa conscientização coletiva sobre o meio ambiente, porém, a carência no investimento de profissionais especializados e capacitados para preparar projetos e induzir a sociedade no auxilio de políticas públicas em prol do meio ambiente, é imensa, prejudicando a promoção da educação ambiental e a busca de uma sociedade mais sustentável.

Daniel Luzzi considera essa transformação da humanidade um desafio, apontando que:

Os educadores ambientais devem integrar-se aos movimentos políticos e sociais que lutam por uma vida melhor para todos, contribuindo humildemente nesse processo de diálogo permanente, tentando gerar as bases de uma educação que se objetive na busca do outro, para a construção de uma pluralidade que fundamente o sentido ético da vida humana, e a presença constante da utopia e da esperança. (LUZZI, 1992, p. 399)

Planejar ações pedagógicas de forma a trabalhar a razão (cognitivo) e a emoção (afetivo) aliadas ao ideário ecológico é a base de alguns projetos nas salas de aula e deve ser elaborada para a sociedade como um todo, viabilizando uma perspectiva crítica contextualizada da realidade socioambiental que vai além da mera transmissão de informações.

Segundo JACOBI (2003, p. 200), “A educação ambiental deve destacar os problemas ambientais que decorrem da desordem e degradação da qualidade de vida nas cidades e regiões.” E, é a partir deste processo pedagógico que surge a possibilidade da formação da cidadania preocupada com a construção de uma comunidade global ambientalmente sustentável.

Dessa forma, surge a relação entre meio ambiente e cidadania, na medida em que a cidadania envolve a organização da sociedade civil e a responsabilidade dos indivíduos, como atores das questões ambientais, na busca de novas práticas sociais que visem a melhor qualidade de vida.

Não obstante, seguem as palavras de Marcos Reigota, dispondo a respeito da importância da educação ambiental, sob uma abordagem baseada no respeito aos princípios éticos, e ao ideário ecológico:

A educação ambiental deve, portanto, capacitar ao pleno exercício da cidadania favorecendo a formação de uma base conceitual suficientemente diversificada técnica e culturalmente, de modo a permitir que sejam superados os obstáculos à utilização sustentável do meio.

Para que isso ocorra, é preciso formar pessoas conscientes, críticas, éticas, preparadas, portanto, para enfrentar esse novo paradigma. A educação ambiental

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nos níveis formais e informais tem procurado desempenhar esse difícil papel resgatando valores como o respeito à vida e à natureza, entre outros, de forma a tornar a sociedade mais justa e feliz. (REIGOTA, 1994, p. 10)

A preservação do meio ambiente deve estar aliada ao exercício da cidadania, uma vez que a busca de soluções para os problemas advindos da crise ambiental é ao mesmo tempo, segundo o artigo 4º da Lei 9795/99, responsabilidade e direito de todos os cidadãos.

[...] Exigir direitos é parte da cidadania, mas respeitar os contratos sociais é sua contrapartida. Talvez por não fazermos a nossa parte ou não termos a consciência se pertencer a um coletivo é que somos tão condescendentes com irregularidades que acabam prejudicando a todos. E o fato de mantermos a maioria da população sem os direitos básicos de cidadania nos impede de construir a Nação-cidadã que arrotamos desejar. Um dos maiores desafios para a mudança de comportamentos e de atitudes de uma sociedade está na consciência coletiva dos cidadãos. Uma das medidas mais desafiantes para o enfrentamento do atual sistema é a estruturação de novos padrões de comportamento, atitudes e valores que venham acompanhar as mudanças decorrentes do progresso cultural e político. E a escola tem um papel primordial na conquista destes valores. (PINSKY, 1998, p.19)

A educação ambiental não-formal tem a capacidade de fortalecer sujeitos cidadãos conscientes dos seus direitos e deveres, que possam exercer seu papel na participação da proteção e preservação ambiental. Cidadãos dotados de sensibilidade e uma posição mais crítica, na qual passam a formular uma relação de causa e consequência e uma integração do conhecimento que lhes é passado com novos valores éticos e os ideários ecológicos.

Quando nos referimos à educação ambiental, situamo-na em contexto mais amplo, o da educação para a cidadania, configurando-a como elemento determinante para a consolidação de sujeitos cidadãos. O desafio do fortalecimento da cidadania para a população como um todo, e não para um grupo restrito, concretiza-se pela possibilidade de cada pessoa ser portadora de direitos e deveres, e de se converter, portanto, em ator co-responsável na defesa da qualidade de vida.(JACOBI, 2003, p. 197)

Seguindo o mesmo entendimento LUZZI (2005, p. 399) afirma que:Cidadãos comprometidos na construção de uma sociedade multicultural

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e intercultural, pela abertura e valorização das diferentes formas de conhecimento, e pela aproximação à realidade, que transcende a racionalidade instrumental, entendendo-a como uma conquista sobre os próprios egoísmos, e os dos demais, como uma construção da autonomia da pessoa e de seu sentido de responsabilidade.

Assim surge a educação ambiental como instrumento que visa agregar aos indivíduos não apenas conhecimento em matéria ambiental, mas valores e princípios éticos “para transformar as diversas formas de participação em potenciais caminhos de dinamização da sociedade e de concretização de uma proposta de sociabilidade baseada na educação para a participação” (JACOBI, 2003, p. 199).

Para articular e organizar os conhecimentos e assim reconhecer e conhecer os problemas do mundo, é necessária a reforma do pensamento. Entretanto, esta reforma é paradigmática e, não, programática: é a questão fundamental da educação, já que se refere à nossa aptidão para organizar o conhecimento. A esse problema universal confronta-se a educação do futuro, pois existe inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre, de um lado, os saberes desunidos, divididos, compartimentados e, de outro, as realidades ou problemas cada vez mais multidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais e planetários (MORIN, 2000, p.p.35-36).

Portanto, o processo da educação não deve ser intensificado apenas sobre a órbita ambiental, mas no viés social e econômico também, uma vez que as três esferas fazem parte do tripé do desenvolvimento sustentável e equilíbrio ecológico.

Diante destas premissas, Fritjof Capra trouxe mediante uma visão holística, uma ideia diferenciada no tocante a educação ambiental, na qual o ensino deve ser voltado ao conhecimento dos princípios da ecologia e das chamadas comunidades sustentáveis, objetos do Tratado da Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, sendo imprescindível que os indivíduos de uma maneira coletiva pensem de forma sustentável, entendam a relação entre o homem e o meio em que vive e acreditem na conscientização ecológica como forma de resolução dos problemas da crise atual.

Para tanto entende-se que uma nova ética integrada com um ensino de ideário ecológico deve ser proporcionado e desenvolvido para a sociedade global, a fim de que seja efetivo o princípio da participação, oriundo do Direito Ambiental.

Existe um campo muito vasto de possibilidades e maneiras de a sociedade participar das instancias decisórias do poder no sentido de modificar tal situação. Seria desnecessário enumerá-los todos aqui. Um exemplo

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apenas pode ser tomado: o campo da questão ambiental. (CASTRO; CANHEDO JR, 2005, p. 404)

Os indivíduos dotados de uma consciência ambiental crítica e transformadora podem participar mesmo que de forma indireta nos meios de produção das empresas, hoje consideradas as principais causadoras dos danos ambientais, e de forma que haja uma cobrança maior em cima das ONGs e do Governo, participando em projetos, pesquisas, na tomada de decisões, na avaliação e organização de políticas públicas.

Atualmente existe a possibilidade do controle por parte da sociedade civil sobre as políticas públicas e outras atividades do governo relacionadas ao meio ambiente, isso ocorre devido à criação dos Conselhos de Meio Ambiente, que por sua vez constituem o fórum de participação. “É uma instância aberta à formulação e à proposição de diretrizes e estratégias [...]” (CASTRO; CANHEDO JR, 2005, p.p. 404-405) que visam suprir as necessidades e aspirações sociais.

Contudo, deve-se levar em conta que o controle da proteção sobre o meio ambiente e consequentemente da qualidade de vida, não configuram somente dever do Estado, mas é uma responsabilidade da comunidade na busca dos seus direitos.

Dessa forma, os membros do Conselho precisam estar ambientalmente e politicamente capacitados, para que as decisões sejam tomadas de forma consciente e transparente, enfrentando os desafios do cotidiano e desenvolvendo uma pedagogia de engajamento popular.

O ser humano está situado no mundo e com o mundo. Dispõe de inteligência e capacidade de refletir sobre ele, com o objetivo de transformá-lo, por meio do trabalho e das ações políticas. A participação do homem como sujeito na sociedade, na cultura e na historia se faz à medida que é educado para conscientizar-se e assumir suas responsabilidades de ser humano. (CASTRO; CANHEDO JR, 2005, p. 405)

A educação ambiental proporciona ao membro do Conselho do Meio Ambiente e à população em geral, habilidades, valores e conhecimentos a respeito da complexidade do meio ambiente, dessa forma, possibilita uma participação mais capacitada e organizada, preocupada não somente em resgatar o que foi destruído, mas a pensar em modos de prevenção e solução dos problemas ambientais, através de um planejamento e de uma gestão mais responsável.

A participação de atores e grupos sociais da população implica em que sejam capazes de perceber claramente os problemas existentes em determinada realidade, elucidar suas causas e determinar os meios de resolvê-los. Somente desse modo os representantes da sociedade

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estarão em condições de participar na definição coletiva de atividades e estratégias de melhoria da qualidade do meio ambiente. (CASTRO; CANHEDO JR, 2005, p. 407)

Portanto, entende-se necessário um investimento intensivo na educação ambiental não como a única forma de solução da crise ambiental, mas como uma forma de orientar e construir nos indivíduos ideias e posições pautadas na sensibilidade e racionalidade para intervir de forma participativa nos processos decisórios e alcançar a efetiva tutela do patrimônio ambiental.

4 ECONOMIA, MEIO AMBIENTE E EDUCAÇÃO

A vida capitalista e cada vez mais globalizada, desencadeada após a Revolução Industrial, tem como base um desenvolvimento intenso e predatório, gerando problemas no meio ambiente e consequentemente a vida humana.

Paul Hawken, alerta que “a natureza é cíclica enquanto nossos sistemas industriais são lineares. [...] Os padrões sustentáveis de produção e consumo precisam ser cíclicos, imitando a natureza.” (HAWKEN, apud CAPRA, 2006, p. 232).

Segundo o autor, as indústrias extraem recursos para elaboração dos produtos e consequentemente em resíduos ao ecossistema, depois vendem os produtos a consumidores que também transformarão em resíduos.

Dessa forma, é notável o choque entre a economia, o meio ambiente e a esfera social, embora a Lei 6938/81 – PNMA, na busca do equilíbrio ecológico já o tenha encarado em seus artigos 1º e 4º, faz com que ainda haja um atraso na eficácia do processo de desenvolvimento sustentável, causado pela falta de inter-relação entre as três esferas.

A conciliação dos dois valores, assim, nos termos deste dispositivo, na produção do chamado desenvolvimento sustentável que consiste na exploração equilibrada dos recursos naturais, nos limites da satisfação das necessidades e do bem-estar da presente geração, assim como a sua conservação no interesse das gerações futuras.Requer como requisito indispensável, um crescimento econômico que envolva equitativamente redistribuição de resultados do processo produtivo e a erradicação da pobreza, de forma a reduzir as disparidades nos padrões de vida e melhor atendimento da maioria da população, se o desenvolvimento não elimina a pobreza absoluta, não propicia um nível de vida que satisfaça as necessidades essenciais da população em geral, ele não poderá ser qualificado de sustentável. (SILVA, 2002, p. p. 27, 28)E é com isso que a relação entre economia, meio ambiente e a sociedade

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deve ser pautada em uma nova visão, baseada na conscientização ambiental plena, sem excluir o desenvolvimento econômico e tecnológico, mas de forma que haja a preocupação com o ecossistema e o caráter finito dos seus recursos naturais.

Dessa forma, além da implementação da educação ambiental como forma de conscientização coletiva, as empresas devem buscar uma melhor capacitação dos agentes envolvidos no processo de produção, tomando por base todo o aparato legal brasileiro, como a Lei 6938/81, já mencionada, alterada pela Lei 10.165/00 que disciplina formas de planejamento e implementação de novos projetos, juntamente com os princípios do Direito Ambiental e uma nova ética baseada numa perspectiva ecológica.

O problema é que muitas empresas que aparentemente buscam a sustentabilidade, tem a ideia de proteção ambiental apenas como uma “jogada de marketing” e seus membros não encontram-se realmente interessados nos problemas ambientais e nas consequências para a vida humana.

Prega-se, portanto, pela internalização de valores éticos e dos princípios ecológicos (Cooperação, Interdependência, Flexibilidade, Equilíbrio, entre outros) por parte dos agentes envolvidos no processo produtivo de uma empresa, frisa-se aqui que quando se fala nesses atores, envolve-se também o consumidor, uma vez que mesmo de forma indireta atua no processo de produção.

Partindo da mesma premissa, MUNHOZ (2004, p. 147) adverte que:

[...] muitas empresas gastam pequenas fortunas em máquinas para controle da poluição, colocam sua equipe continuamente sobre estresse para obterem certificações ambientais em prazos mínimos, insuficientes para mudanças consistentes nos hábitos humanos. Então, em minha concepção, é na dimensão do ambiente interno que começa o processo de Alfabetização Ecológica. Esse é o alicerce da minha metodologia de trabalho aplicada tanto com alunos jovens ou adultos quanto empresas: contribuir para que primeiro redescubram a sua dimensão viva, humana, olhem e aceitem suas próprias limitações. Reconheçam seus talentos, potencializem-se e empoderem-se. Assumam seu próprio poder de transformação, façam compromissos pessoais com a proteção da vida humana e não humana e, paralelamente, trabalhem para a aplicação dos princípios ecológicos em seus projetos, trabalhos, negócios.

As empresas, através da educação ambiental em seus sistemas, primeiramente precisam entender a necessidade de mudanças nos modelos de produção, na busca da sustentabilidade, visando deter o desperdício e a degradação ambiental, uma vez que se não estiverem conscientizadas ambientalmente e não tiverem como base metas de sustentabilidade, estarão de

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certo modo excluídas do mercado e consequentemente encontrarão dificuldades em conseguir apoios e estímulos financeiros.

Essa alfabetização ecológica torna-se inquestionável devendo alterar conceitos desde cada indivíduo na sociedade, tendo em vista seu caráter consumidor, até funcionários e administradores das empresas para que se conscientizem da problemática ambiental e possam influenciar no desenvolvimento das decisões a respeito do desempenho ambiental das empresas e que atendam de forma eficaz as normas e leis ambientais.

É neste patamar que surge o artigo 3º, inciso V, da Lei 9.795/99 – Política Nacional da Educação Ambiental, prevendo:

Art. 3º. Como parte do processo educativo mais amplo, todos têm direito à educação ambiental, incubindo:

[...]

V-. às empresas, entidades de classe, instituições públicas e provadas, promover programas destinados à capacitação dos trabalhadores, visando a melhoria e ao controle efetivo sobre o ambiente de trabalho, bem como sobre as repercussões do processo produtivo no meio ambiente. (BRASIL, 1999, p.1)

Portanto, é imprescindível a formação técnica e profissional de todos os atores envolvidos no processo gestacional, para que conheçam o sistema de normas que tratam da qualidade ambiental, e busquem de forma efetiva a melhora na qualidade de vida dos seus consumidores e da sociedade em geral.

E, foi pensando nisso que os instrutores do IBAMA criaram o projeto Educação no Processo de Gestão Ambiental ou Educação Ambiental na Gestão do Meio Ambiente, de forma a adaptar o desenvolvimento individual e coletivo.

O programa traz a educação como estratégia de gestão sustentável que vem se destacando nas empresas que buscam a sustentabilidade, exigindo profissionais altamente qualificados que adotem metodologias adequadas para a aprendizagem de cada membro da sociedade. É a chamada educação crítica, que segundo Philippe Pomier Layrargues, é um processo educativo de dimensão política que prevê a evolução dos educandos através de uma conscientização mais crítica a respeito das instituições, “fatores e atores sociais geradores de riscos e respectivos conflitos socioambientais” (LAYRARGUES, 2002, p. 189).

O desenvolvimento de um processo de educação ambiental implica em que se realize logo de inicio um diagnostico situacional, a partir do qual deverão ser estabelecidos os objetivos educativos a serem alcançados.

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Não se trata apenas de entender e atuar sobre a problemática ecológica e historicamente, até a década de 1970. Trata-se, isso sim de estabelecer relação de causa e efeito dos processos de degradação com a dinâmica dos sistemas sociais. (PELICIONI; PHILIPPI JR; ALVES, 2005, p. 4)

O foco de estudo das atividades empresariais deve se basear em medidas que abranjam a responsabilidade sócio-ambiental das empresas, o desenvolvimento econômico maximizado e a minimização dos impactos ambientais, o que tende apenas a beneficiá-las no mercado global.

A educação ambiental tem sido considerada imprescindível para a instituição de novas empresas, objetivando a produção e consumo sustentáveis, consumindo-se somente aquilo que é produzido e vice-versa, para barrar o desperdício e exploração intensa e inconsciente da natureza, e é partindo daí que surge a proposta trazida pela ISO – International Organization for Standardization.

A ISO 14.000 possui como objetivo predominante preservar a qualidade ambiental não apenas no manejo e desenvolvimento de produtos, mas também no modo da produção. O entrave que se estabelece aqui é o fato de que as normas da ISO não possuem efeitos jurídicos, entretanto, o seu poder autoritário na prática torna-se referência para muitas indústrias e diversas entidades.

Nesse patamar, é que se fundamenta o estudo das “Indústrias do futuro e tecnologias emergentes” providenciado pelo CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, o projeto trata de áreas de energia, biodiversidade, agroindústrias, os materiais, as construções e a saúde no ramo empresarial, relacionado com o impacto ao meio ambiente, as tecnologias e os potenciais riscos.

Estes estudos buscam eliminar definitivamente a ultrapassada ideia de que proteger o meio ambiente tinha um custo alto, na medida em que para isso havia a necessidade de se reduzir o lucro e aumentar o valor final aos seus consumidores, prejudicando o desenvolvimento econômico de determinada empresa.

Portanto, a educação ambiental no ramo empresarial e na sociedade como um todo deve ser considerada como um progresso social; uma evolução do ser humano baseada no respeito pelo meio em que vive, de forma que sejam resgatados e desenvolvidos valores e comportamentos éticos.

3 CONCLUSÃO

Sabe-se que a preocupação com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, direito difuso de terceira geração, teve início a partir do momento em que os impactos causados por atividades humanas passaram a refletir no meio social.

A educação ambiental deve ser considerada como uma das formas para orientar e construir nos indivíduos, tanto dentro e fora da escola, ideias e posições mais críticas e mais reflexivas para que seja efetiva a participação na defesa do patrimônio ambiental.

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Uma vez que as comunidades globais estejam conscientizadas ecolo-gicamente, a cobrança será maior sobre os trabalhos das ONGs, as politicas públicas do Governo e nos processos de planejamento e gestão das empresas, que hoje são as principais causadoras de danos ambientais.

Infelizmente o choque entre economia e meio ambiente ainda existe o que faz com que o princípio do desenvolvimento sustentável seja prejudicado.

Desta forma, o Direito Ambiental traz consigo a educação ambiental não apenas para mostrar a existência de leis e normas, mas para internalizar aos indivíduos que ambas as esferas devem caminhar juntas, sem deixar de lado também a órbita social, na maneira em que através de um processo de planejamento e gestão mais consciente, público ou privado, seja possível coordenar e conduzir para a diminuição das diferenças entre essas esferas, tornando possível a preservação do ecossistema em equilíbrio com a economia e a vida cotidiana.

Defende-se a ideia de que a implementação de uma política para a alfabetização ecológica não significa que deva ser baseada em questões que envolvam por si só a ecologia, mas que possa abranger uma nova ética, baseada na racionalidade e ao mesmo tempo na sensibilidade, capazes de modificar as estruturas do poder associado à ordem econômica visando uma forma racional alternativa – a sustentabilidade.

O processo educativo deve, portanto, se inter-relacionar ao estudo e desenvolvimento de uma ética que abrace a órbita política e social, excluindo a desigualdade, limitando de maneira correta a explosão da economia predatória e a propagação da participação de todos os cidadãos em busca da defesa dos seus direitos e de uma boa qualidade de vida que sem sombra de dúvidas está intimamente ligada ao meio ambiente e aos recursos naturais, que por sua vez, merecem ser respeitados.

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A ANTROPOLOGIA JURÍDICA DE ALAÍN SUPIOT ATRAVÉS DE UMA RESENHA CRÍTICA

cáSSio marcElo mochi

Mestre em Ciências Jurídicas pelo Centro Universitário de Maringá – CESUMAR; Especialista em Docência no Ensino Superior pelo Cen-tro Universitário de Maringá – CESUMAR; Especialista em Direito do Estado com Concentração em Direito Constitucional pela Universidade Estadual de Londrina, Docente e Chefe do Departamento de Prope-dêutica do Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA.

SUMÁRIO: Introdução; 2. O Homem e seu descobrimento; 2.1 O Homem que se desco-bre como um ser biológico e metafísico; 2.2 O Homem que se descobre como um ser de personalidade jurídica; 2.3 O Homem que se descobre como Imago Dei; 2.4 O Homem que se descobre como criador das leis e do poder das palavras: o imago legis?; 3. O Ho-mem e o descobrimento da técnica; 3.1 O Homem e a Lei: a necessidade da interpretação para o encontro da decisão; 3.2 O Homem, a Lei e o Mundo do Trabalho; 3.3 o Homem, a Lei, o mundo do Trabalho e a Globalização: homem universal ou uma incógnita univer-sal?; 4. O Homem e o descobrimento da humanidade: a possibilidade da salvação; 4.1 O Homo Juridicus: a união pelo mundo das leis econômicas; 4.2 O homem desesperado: os possíveis caminhos para a salvação; 5. Considerações finais; Referências.

RESUMO

O homem contemporâneo encontra-se diante de um dilema que o afasta de sua própria essência: não se reconhece mais como um ser composto de uma essência metafísica que mantém um vínculo com o sagrado, e de outra essência, que é a biológica, que o caracteriza como um ser constituído de matéria. Na passagem da medievalidade para a modernidade, o homem perde a sua relação com a construção metafísica, para caminhar em direção a uma solução técnica de seus problemas. O direito ao aderir a este tecnicismo, abandona a ordem lógica de sua própria existência, ou seja, que o direito é resultado de uma construção humana, e não algo que possui sua existência justificada pela autopoiésis. No entanto, quando o direito resgata sua função antropológica, ainda que atrelado às técnicas, através do processo realizado por uma nova técnica de interpretação, pode reassumir a sua nova função na sociedade. O homem então encontra o resgate de sua essência, dentro desta nova perspectiva de aplicação do direito.

Palavras-Chave: Homem; Personalidade; Técnica; Direito; Justiça

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INTRODUÇÃO

A busca pela justiça ao mesmo tempo em que é um tormento, também é um momento de alento e conforto para o espírito humano. Porque tanto procuramos este momento, talvez possa ser explicado por um elemento que os gregos já tinham descoberto antes mesmo da formação da cultura ocidental, mas que dado o seu contexto histórico e a peculiaridade de sua cultura, parece que não lhes chamou tanto a atenção, como será desenvolvido pelo mundo cristão: o homem é um ser constituído de corpo e alma. O homem acredita na existência de um ser superior e que transcende inclusive as suas próprias relações sociais. Vida e morte são aspectos antagônicos de sua existência, e o direito é um dos elementos e instrumentos necessários para intermediar os conflitos que se apresentam neste intervalo de tempo.

2 O HOMEM E SEU DESCOBRIMENTO

No momento histórico em que alguns cientistas chamam de contemporaneidade, pós-modernidade, ou outro nome qualquer, na realidade o homem não se descobre, mas é descoberto pela própria sociedade enquanto um sujeito que detém um potencial de consumo elevado e um potencial de fornecimento de trabalho suavizado pelas sucessivas flexibilizações do trabalho, norteado pela esperança de um empreendedorismo que irá lhe salvar o pouco do corpo que ainda lhe resta. Esperança esta que parece não mais estar disponível para aqueles que se alienaram definitivamente à doutrina salvadora do consumo irrestrito, inclusive do próprio corpo e da alma também.

Esta não é a vertente de pensamento utilizada por Alain Supiot, mas pode-se tomá-la como ponto de partida contra-referencial adotado pelo nosso autor, quando nos mostra o descobrimento do homem em algumas de suas dimensões, ou categorias, como nos diria Karl Marx e outros cientistas que adotam o método da teoria crítica.

Sendo assim, este homem agora descoberto por esta possibilidade quase que ilimitada de um consumo desenfreado, acaba se tornando um ser alienado por este sistema e afasta a possibilidade de ter contato com uma questão ontológico-cristã, ou seja, o homem é um ser detentor de algo que está antes, além e depois de sua condição material.

2.1 O HOMEM QUE SE DESCOBRE COMO UM “SER” BIOLÓGICO E METAFÍSICO

Para Alain Supiot o homem é um “animal metafísico”, embora se descubra primeiro como um ser biológico, dado que o nosso grau de consciência do mundo ocorre ao menos de forma evidente, com o “ser” que descobre o mundo, sua existência, seu espaço, através dos seus sentidos. Embora esta

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seja a primeira descoberta, a de que o mundo é real e existe, permanece até o momento em que a sociedade imprime nos homens os seus valores através da cultura construída no decorrer do tempo, o homem ainda não se descobriu como um “eu”, ou um ser ontológico.

Se o jusnaturalismo de vertente teológica diz que ao criar o homem, Deus o dotou de razão, e esta lhes permite conhecer a lei natural, divina e moral, conforme nos afirma Thomas Hobbes na obra Do Cidadão, o homem não nasce racional, “mas é o vínculo com os outros que nos torna assim” (SUPIOT, 2007, p. IX), e este vínculo não ocorre de qualquer forma, e nem com um instrumento diversificado para cada um, mas sim um elemento comum e que torna possível a vida em sociedade, que são as “palavras”.

O racional neste sentido, não é quanto à ausência da razão, algo que Deus dotou a todos, mas sim do uso ou não que fazemos dessa racionalidade.

Ao nascer o homem já encontra o mundo como ele é, contendo as palavras e seus significados, as leis, mas ainda não firmou o seu primeiro contrato. É uma teoria desenvolvida por Émile Durkheim em que o homem já encontra o mundo pronto, e pouco lhes resta, senão aceitar as condições já estabelecidas, não como um determinismo de vida, mas como parte de um contrato inicial. Numa linha de raciocínio próxima, Alain Supiot afirma que na língua francesa, a lei é o que está contido nos textos e o contrato é o que provém de um livre acordo. A primeira já está determinada, enquanto que a segunda ainda aguarda a nossa aprovação. Então se apresenta um problema: qual a possibilidade de realmente existir para casos onde as desigualdades materiais são acentuadas, a existência de um “livre acordo” na expressão ontológica de seu significado? E ainda poderíamos levantar outra questão: livre acordo para quem? Não é possível dizer que num mercado aonde as oportunidades de trabalho são escassas, o trabalhador é livre para escolher entre aceitar ou não, as condições impostas.

O fato de que o homem se descobre enquanto animal metafísico e um ser biológico dotado de peculiaridades, problemas e outros acidentes, para usar uma terminologia aristotélica, apenas afirma a sua existência de um “ser” diferente dos demais que compõe a natureza como um todo. É na perspectiva de compreender o homem além de sua pura existência metafísica, biológica e legal, negar a função antropológica do direito é dar início à morte do próprio homem (SUPIOT, 2007, p. XI). Ainda que o dogmatismo garanta ao homem uma personalidade jurídica, este é apenas mais um artefato da técnica jurídica, pois pouca coisa pode garantir ao homem sem antes compreendê-lo como um todo.

A antropologia tem áreas de especificidades de análise, mas o conceito geral fora elaborado depois de 1870, segundo André Lalande, e definida por Broca, então um médico ousado para a sua época, que a definiu como

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o estudo do grupo humano encarado no seu todo, nos seus pormenores e nas suas relações com o resto da natureza. [...] Neste sentido ela compreende a anatomia humana, a pré-história, a arqueologia, a etnografia e a etnologia no sentido mais amplo, o folclore, a lingüística (LALANDE, 1996).

Ainda que Alain Supiot pretenda levantar as suas questões tendo como ponto de partida o homem em toda a sua extensão, ele reduzirá a sua análise para compreender a estrutura sobre a qual deseja analisar a inserção do homem, ou seja, na dimensão jurídica, sem deixar de receber influências das demais dimensões. Quanto à antropologia no sentido de análise a partir das estruturas, Eliseo Verón ao refletir sobre a obra de Lévi-Strauss, nos ensina que

si la antropología se ocupa «del hombre y sus obras», la perspectiva estructuralista afirma la identidad del hombre y la diversidad de las obras, o si se prefiere, la antropología queda así definida como el estudio de La diversidad de las obras humanas a partir de la afirmación de la identidad de las operaciones9.

Se o homem se descobre como um ser biológico e metafísico, não somente através de sua própria existência, mas das relações com os outros e com a cultura da qual ele participa de forma ativa ou passiva, ele ainda não encontrou a estrutura que irá delimitar a sua existência dentro de outro mundo que é necessário e inevitável: a existência jurídica.

2.2 O HOMEM QUE SE DESCOBRE COMO UM SER DE PERSONALIDADE JURÍDICA

Tomando como ponto de partida que o sentido da vida “nos é dado por uma referência exterior e não por nós mesmos” (SUPIOT, 2007, p. XIV), pois na visão deste autor, o homem tem razão, mas a racionalidade é uma criação do grupo social em que ele está inserido. O nosso referencial de sentido encontra-se exterior ao nosso ser, que ao nascer não está de posse do conhecimento, e tão pouco da possibilidade de adquirir conhecimento, além daquele resultante de sua própria observação, numa relação de causa-efeito, o que nos dias atuais,

9 LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropología Estructural. Trad. Eliseo Véron. Prólogo a La Edicion Española. Barcelona (Espanha): Ediciones Paidos S.A., 1995, p. 14. Tradução livre: “se a antropologia se ocupa ‘do homem e suas obras’, a perspectiva estruturalista afirma a identidade do homem e a diversidade das obras, ou se preferem, a antropologia acaba assim definida como o estudo da diversidade das obras humanas a partir da definição da identidade das operações”.

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dado o avanço das ciências, é um conhecimento que praticamente isola este homem do mundo.

Para garantir a sua exterioridade e ter o seu sentido de vida reconhecido, o homem precisa de uma personalidade jurídica, que “é a representação do homem, que postula sua carne” (SUPIOT, 2007, p. XI), pois é a forma que a sociedade encontrou de dizer aos demais componentes: além de um ser biológico e metafísico, te reconheço como um sujeito de direito, ainda que na realidade esse direito seja garantido apenas na formalidade, e negado para uma parcela significativa da população a sua efetividade. No mundo moderno o fato de existir o direito não quer dizer que as pessoas tenham acesso a este direito, produzindo assim um vácuo entre o direito formal e o direito real.

Se existe um sujeito de direito, difícil é mencionar o direito sem a condição da igualdade, pois quem tem o direito só para si, o faz a exemplo dos regimes totalitários, mas se somente a vontade de um deve prevalecer, nem faz mais sentido em adentrar à seara do direito. O direito só tem razão de existir a partir de uma condição de alteridade, pois se o meu direito termina onde começa o do outro, porque continuar falando de direito, se ele não mais me pertence?

No entanto, é um equívoco “viver e pensar a igualdade sem negar as diferenças” (SUPIOT, 2007, p. XII). O homem é igual à mulher naquilo que lhe é possível ser, pois dizer que os dois têm a mesma consistência física e por conseqüência a mesma força é desconsiderar uma das belezas da criação, que é o de nos fazer iguais em qualidades, e não naqueles acidentes que denotam quantidade. Sendo assim, existem determinados elementos fundamentais do direito, que devem permanecer num patamar acima dos demais, pois nos tratam iguais de forma qualitativa, mas resguarda as questões quantitativas.

O direito à vida, por exemplo, não depende da condição do sexo, da etnia, da religião e outros fatores, mas é um direito fundamental para iniciar a discussão sobre a condição de ser humano. Nem mesmo a cultura pode suplantar este direito, pois o direito à vida é direito, não no sentido restrito, exclusivo, mas direito a que todos tenham vida. Mas também não é qualquer tipo de vida e sim uma vida com dignidade. E também não pode ser o direito que uma vida tenha sobre a outra, de decidir o seu futuro de forma fatídica.

O que mais aproxima o homem do campo metafísico, ontológico é a sua relação com a religião, que no mundo clássico era coletiva, mas que na medievalidade começa a assumir algumas características individuais, e o Estado Moderno termina por deslocar a religião do campo público para o campo privado, individual. Um direito pertinente a cada indivíduo, no entanto, essa liberdade acaba por produzir um dilema nos dias atuais: o que é a religião? Ou ainda, onde se encontra a verdade revelada, se cada um a interpreta de acordo com a sua leitura? Onde está a verdade? Qual o nosso referencial de

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verdade metafísica, se é ela que existe, segundo a visão pós-moderna? Todas estas são questões complexas, tanto no campo filosófico, quanto sociológico e mesmo jurídico, e ainda não realizamos um enfrentamento maduro sobre estas definições conceituais.

Esse grau de sacralidade que antes caracterizava a religião, agora é transferido para o Estado moderno, numa espécie de veneração, e “sustentados por um grau de certezas indemonstráveis” (SUPIOT, 2007, p. XII), como por exemplo, o dólar, a bandeira, alguns Hinos Nacionais. O Estado e toda a sua máquina é a religião pública a ser venerada, cultuada, pois foi o Estado que finalmente propiciou acesso a todo o progresso acumulado pela humanidade. Mas o homem se descobre enquanto personalidade jurídica, somente quando encontra o Estado para lhes garantir isso, através de um contrato, como nos diria Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau, Jean Bodin e outros.

Com essa “deificação” do Estado e a necessidade da crença no contrato, têm-se um problema: o contrato é o acordo entre duas ou mais partes que detém a vontade, disposição e acreditam que cada um irá cumprir o que lhe cabe. Nas palavras de Alain Supiot, a crença no contrato é uma crença na ficção científica de uma pessoa moral, que já não mais existe. Pois os próprios operadores do mercado começam a colocar em dúvida valores monetários estampados em papéis, cujo valor é simbólico, no entanto, o Estado garante o que está escrito, até porque, vários dos símbolos constantes nas moedas dos países do chamado “primeiro mundo”, estampam elementos de ordem religiosa, e que produz mudanças e crenças no inconsciente coletivo. O poder do Estado que não é simbólico, pois ele é efetivo e real, precisa se apoderar de um simbolismo que extrapole a sua própria existência, produzindo na população um sentimento de eternidade, de perenidade.

Dentro de uma série de perspectivas de mudanças das relações entre as diversas personalidades jurídicas que formam o Estado, e o simbolismo como uma entidade incorpórea, mas real, Alain Supiot nos mostra, por exemplo, que a doutrina Law and Economics reduziu o direito a uma relação individual (SUPIOT, 2007, p. XXV), assim como no sistema da Common Law é o juiz e não a coroa (Estado) quem encarna a fonte última da legitimidade, sendo assim, a crítica estabelecida pelo autor é que ao longo do tempo ocorreu uma laicização da palavra “direito”, sendo que o direito passa a ser apenas “uma técnica da proibição” (SUPIOT, 2007, p. XXIX), no entanto, existe uma corrente que aponta aspectos positivos na interpretação do direito como técnica, como por exemplo, Tércio Sampaio Ferraz (1998), para quem o direito e a dogmática jurídica, seriam uma técnica de decisão, e decidir nada mais é do que dizer o que e proibido e o permitido. Neste sentido, esta técnica que se apóia na

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dogmática jurídica, busca o auxílio de outra técnica, que é a hermenêutica e a interpretação das normas jurídicas.

2.3 O HOMEM QUE SE DESCOBRE COMO IMAGO DEI

O homem é um ser constituído por contradições, ora de origem da característica de sua própria precariedade frente aos obstáculos que o mundo lhes apresenta, como por exemplo, uma doença incurável; ou ainda, como afirma David Hume, na própria condição existencial do homem, quando a natureza foi cruel “nas inúmeras carências e necessidades com as quais ela o sobrecarregou, e nos escassos meios que lhe fornece para aliviar essas necessidades” (HUME, 2002, P. 192), e em outros momentos, como resultado de suas próprias palavras e ações. Mas existem limites que são transponíveis e outros intransponíveis, no tocante a vida terrena, esta “é a vida dos limites, pois é a morte que abole os limites” (SUPIOT, 2007, p. 4), o que não é uma novidade do mundo cristão, pois o orfismo praticado na Antiguidade Clássica Grega, já afirmava que o corpo é uma prisão da alma (REALE, 1994).

Diferente de outras espécies de animais colocados na natureza pelo Criador, para Alain Supiot o homem é um animal que dá e constrói sentido às coisas que o cercam. Ele se relaciona com o mundo através deste sentido e do nome que dá as coisas. É praticamente uma necessidade imperiosa da razão e natureza humana, nominar não somente as coisas, mas nominar os sentimentos, criar conceitos para expressá-los e assim, postar-se diante do mundo. É necessário criar o que o mundo grego chama de nómos que é a regra, lei, norma, “é o que é por convenção, por acordo e decisão dos humanos” (CHAUI, 2002, p. 506), mas como o homem é um ser constituído por contradições, temos que o oposto a nómos chama-se phýsis, cujo significado “é o que é por natureza, por si mesmo independente da decisão ou vontade dos homens” (CHAUI, 2002, p. 506).

Mas como Alain Supiot pretende demonstrar a descoberta do homem como imago dei? A construção racionalista e jurídica descobriu o homem apenas no campo em que lhe era conveniente: um sujeito de direito e com personalidade jurídica. Este já era o objetivo necessário para este momento histórico. A sua análise tem por objetivo não suplantar o puro dogmatismo jurídico, mas mantê-lo, e não analisar o homem, somente a partir da norma, mas inserindo outros componentes da matriz antropológica do direito, no sentido de que, “a língua, o costume, a religião, a lei, o rito, são todos eles normas fundadoras do ser humano que, assim seguro de uma ordem existente, poderá inserir nela sua ação, ainda que contestadora” (SUPIOT, 2007, p. 8).

O homem não é um mero espectador do universo, e não pertence simplesmente a uma ordem que lhe fora imposta pela criação do direito. Embora a ordem natural não tenha sido criada por ele, a ordem jurídica é uma criação

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resultante de sua necessidade de regular algumas ações, mas não sem antes ter a sua vontade como elemento de construção desta nova ordem. Ainda que nos dias atuais possa perguntar: onde se encontra o respeito por essa vontade?

Que Deus ao criar o homem o dotou de razão parece ser um elemento comum a quase todas as vertentes metodológicas jurídicas. Quando se propõe a estudar o Direito a partir de uma matriz antropológica do direito, além de admitir as questões formadoras do homem como a religião, a linguagem, a lei e outros, é preciso observar que

instituir a razão é, assim, permitir a todo ser humano combinar a finitude de sua existência com a infinitude de seu universo mental. Cada um de nós deve aprender a inserir no universo do sentido esse limite tríplice que circunscreve sua existência biológica: o nascimento, o sexo e a morte (SUPIOT, 2007, p. 9).

Não reconhecer estes três elementos é o mesmo que não dar sentido à vida, o nascimento é perspectiva de que cumprimos parte de nosso papel, que, aliás, fora concedido não pelos homens, mas por uma existência divina. O nascimento aponta a continuidade de nossa existência, pois a morte é inevitável. Compreendendo que parte de nossa vida constitui-se na diferença de sexo, pois o nascimento implica necessariamente, na necessidade da existência das diferenças que se encontram no todo. Não é abstrair a existência da concorrência, mas sim da complementação da vida. Individualmente somos seres insatisfeitos e limitados sempre pela precariedade da existência humana, na relação proximal com o outro sexo, o homem encontra quem lhe completa, suprindo as lacunas de seus defeitos. Conviver com a aceitação da morte, que é inevitável e todos nos iguala na quantidade e na qualidade de nossa existência e essência, é compreender a norma. Mas qual norma? A norma da própria existência humana. Não foi necessário que o Direito e nem os homens criassem uma norma imperativa de que em algum dia, os homens deveriam morrer, até para permitir a existência de outros e o planeta terra não fosse sendo acumulado pela materialidade precária que caracteriza o homem.

Na medievalidade, com o advento e expansão do cristianismo, “o corpo místico de cristo” (SUPIOT, 2007, p. 28) mantinha todos os homens numa única personalidade, não se pertencia a condição de homem, senão para aquele que se convertesse ao cristianismo. É o homem filho de Deus e irmão de Cristo e irmão em Cristo na sua relação com o próximo. Os homens iriam cumprir a palavra empenhada, não por causa da existência ou não de um contrato, mas simplesmente porque eram cristãos.

Para os medievais, fundamentados tanto na religião cristã, judaica ou islâmica, o “pacto pela palavra, ligava os homens ao sagrado” (SUPIOT, 2007,

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p. 115), e tal pacto seria cumprido não por uma necessidade de leis positivadas, mas por outro elemento valorativo, a questão da moral que advinha da formação ligada a fé. Juridicamente podemos indagar: mas quem garantia o cumprimento de tal contrato? O grande garantidor de que estes contratos seriam cumpridos era Deus. O homem ainda acreditava na sua ligação com o sagrado e também na dos demais. Contudo, o homem ainda precisa descobrir algo mais, ele não pode aceitar ser apenas mais um objeto a ser disposto na natureza, é necessário um élan maior.

O homem se descobre como imago dei, ou seja, de que é feito a imagem e semelhança de Deus, não nos seus aspectos acidentais, quantitativos e mesmo qualitativo, mas na sua essência ontológica. O corpo humano para a “igreja é o templo da alma imortal” (SUPIOT, 2007, p. 38), e deve se fazer respeitar não pela condição de redução de direitos de sua personalidade, mas porque sua personalidade está muito além destes conceitos jurídicos, ela transcende à sua própria existência. O corpo deve ser resguardado não porque o direito assim o determina, mas em função da ligação com o sagrado, com o divino, pois é nele que a alma manifesta as suas angústias, decepções, alegrias, as suas virtudes, e porque o criador tem uma missão para cada homem. O corpo é o templo da alma, e o responsável deve zelar por esse templo. A vinculação com o sagrado era uma forma necessária de ligar o homem a Deus, acompanhando também as suas ações e as virtudes construídas na sua formação, e na vida coletiva que a religião exigia de seus adeptos.

Foi a religião quem primeiro reconheceu no homem algo que antecede e transcende qualquer tipo de direito, no sentido dogmático e positivo, tal qual o conhecemos. A religião identificou o homem como um imago dei, a sua condição de hominidade, ainda que na medievalidade seja apontado como um “pecador inveterado”, conforme nos ensina Kantorowicz (1998). Mas um pecador que diante da redenção e da sua fé, pode se converter e se tornar um novo homem, ainda que tal compromisso tenha que ser renovado periodicamente, diante do simbolismo do sagrado, que para o cristianismo católico é a hóstia consagrada. Uma lembrança do nosso vínculo e débito para com Deus. Uma recordação de nosso contrato.

2.4 O HOMEM QUE SE DESCOBRE COMO CRIADOR DAS LEIS E O PODER DAS PALAVRAS: O IMAGO LEGIS?

O direito é uma criação humana e resultante da complexidade dessa relação do homem para consigo mesmo, para com os outros, e também para com a natureza. Na linha de raciocínio desenvolvida por Norberto Bobbio na obra A Era dos Direitos, a cada direito conquistado caminhamos sempre na conquista e obtenção de outro direito, uma jornada em que o mundo das leis passa a ser o ponto central da própria existência humana. Ainda que esta conquista nem

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sempre esteja disponível a todos, ao menos na formalidade somos todos iguais e temos os mesmos direitos, respeitado certas particularidades acidentais.

Sendo o direito uma obra humana “não é possível estudá-lo ou interpretá-lo sem os valores a ele vinculados” (SUPIOT, 2007, p. XXIV), linha de pensamento semelhante àquela já apresentada por Hobbes, Locke, ou seja, de que a finalidade do direito, e de forma mais específica das leis propriamente ditas, é estabelecer uma ordem, uma hierarquia, que possibilite aos homens viverem em harmonia, fugindo do caos e do estado de guerra, gerados pela inexistência de leis que limitam os desejos de alguns homens, assim como estabelece punições para aqueles que ousarem desobedecer a ordem estabelecida.

Os valores estabelecidos pelo mundo jurídico são aqueles que ao menos em tese deveriam corresponder aos anseios da maioria dos homens, e que desejam viver em paz, uma vez que o estado de guerra, para utilizar um conceito hobbesiano, traz uma série de desconforto para todos os homens, pois é o estado onde prevalece a força bruta, não existindo campo para o diálogo. Este homem que agora se reconhece como Imago Dei, não quer mais reduzir a sua existência simplesmente a esfera da força bruta, mas também reconhece que o Direito é uma criação das próprias necessidades dos homens.

Este mesmo homem que compreende o direito como uma criação humana reconhece ser ele “um ser bi-dimensional”, quando situa a sua existência dentro do campo jurídico, é o criador submetendo-se a estrutura de sua própria criação, pois ele “desenvolve-se ao mesmo tempo no campo do ser e do dever-ser” (SUPIOT, 2007, p. XXIII). É esta a estrutura dimensional do campo, quando o situamos no campo jurídico. No positivismo jurídico, se ele entende a funcionalidade desta estrutura e como se portar dentro da mesma, nada mais importa. Pronto. O equilíbrio e a segurança jurídica estão mantidos. Resolveu-se o problema do homem e do mundo. Mas não é esta estrutura simples que se propõe a analisar Supiot e tão pouco aderir de forma total a este posicionamento.

Quando da medievalidade o garante dos pactos era Deus, mas já na chamada baixa medievalidade, com a gestação do Estado Moderno, essas relações de garantia começam a ser alteradas e substituídas. O conflito entre leis divinas e leis dos homens é um problema antigo da humanidade, conforme nos expõe Sófocles na Trilogia Tebana composta das obras Édipo Rei, Antígona e Édipo em colona, Ésquilo nas Orestéias, anteriormente aos dois trágicômacos e poetas gregos, temos a figura de Homero com a Odisséia e a Ilíada, mas todos os problemas são apontados e as suas soluções encaminhadas dentro de uma perspectiva do homem como um todo. Na medievalidade este conflito aparentemente será superado pela figura do Rei e do Papa, e a criação do conceito de os “dois corpos do rei” (KANTOROWICZ, 1998).

Mas a modernidade traz problemas de outras categorias, pois o “estado assumiu as características proeminentes da religião” (SUPIOT, 2007, p. 34), e

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o homem já não passa mais a ser tratado como um todo, pois a idéia jurídica de homem, é um ser isolado e individual. Os homens são sujeitos de direito iguais, e “tendo cada um os mesmo direitos e deveres, somos todos idênticos, o que implica que um homem pode ser substituído por outro” (SUPIOT, 2007, p. 18). As nossas diferenças quantitativas e qualitativas foram positivadas e extirpadas do campo jurídico. É preciso uniformizar direitos e deveres, fruto de uma ideologia criada pelo Estado, como forma de reduzir o todo ao um. Sendo assim, todos são iguais perante a lei, não importando mais as condições históricas, culturais e materiais, que embora não possam ser tratadas de forma determinante, podem exercer influências significativas na formação de cada homem.

O Estado Moderno, resultante por referência à Revolução Francesa, traz consigo o fracionamento do homem em vários homens, resultante da influência cartesiana. O que antes era tratado no campo da essência da natureza humana, e a sua forma de ser estava ligada ao sagrado, portanto, não se prestava à discussão no campo jurídico, agora passa a ser discutido pelo Estado, como por exemplo, “ao reconhecer o sexo como ‘opção individual’, também condenou ao extermínio a relação afetiva e natural mãe-filho” (SUPIOT, 2007, p. 48). Parte desta responsabilidade está associada à própria biologia moderna que dividiu os homens em partes e procura estudar apenas as “relações físico-químicas” (SUPIOT, 2007, p. 43), a preocupação epistemológica não é mais estudar o homem como um todo e explicar o ser vivo. É a norma jurídica, a lei, dizendo como devemos ser e o que devemos esperar como retribuição de nosso comportamento. O homem não tem mais capacidade de guiar as suas próprias ações, e nem de cumprir os seus contratos, a não ser pela interferência direta do Estado. Retiramos da esfera do privado tal responsabilidade e passamos à esfera pública, não mais como uma representação do coletivo como necessidade de realização da própria essência humana, como era a pólis grega, mas como um Leviatã, para utilizar uma expressão hobbesiana, onde o grande monstro de muitas cabeças, chamado de Estado lança sobre todos os seus tentáculos.

Foi o iluminismo, também chamada Idade da Razão, que a partir de Galilei-Galileu, Descartes, Newton, Locke, Hume, Kant e outros pensadores, contribuíram de forma significativa para expor e colocar os princípios da razão em evidência. Para Oliver “o iluminismo estabeleceu um conflito entre a ciência e a religião” (OLIVER, 1998, p. 72), quando através de suas Teorias, começaram a expor a solução de problemas que antes se encontravam no campo do sagrado. E muitos nem necessitavam de investigação, pois pertencem aos mistérios divinos. O iluminismo retirou Deus do cenário e colocou o Estado, substituiu Deus como o criador e regulador da natureza, e “colocou o homem como senhor da natureza” (SUPIOT, 2007, p. 15), produzindo assim um distanciamento proposital entre Deus e o Homem. O Estado assume a função

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mística a ser adorada. Um ente abstrato que tem um representante, ou vários representantes, mas não aparece, pois é produto de uma abstração humana, no entanto, faz sentir a sua força todas as vezes que os homens contra ele movem ações para contrariar as suas normas.

O Estado Moderno é mais uma das criações do homem, tendo como um dos elementos fundantes a separação entre Igreja-Estado. No entanto, essa separação não produziu o efeito esperado que é a solução da controvérsia entre Lei Divina e Lei do Estado, pois “ficamos céticos em relação as duas” (SUPIOT, 2007, p. 74). O acentuamento de um possível conflito entre a Lei Natural e as Leis da Ciência, “apresenta-se a partir da distinção entre Estado e Igreja”, porque o Estado buscou na Ciência que se preocupa apenas com a relação de causa-efeito, respostas para esta nova forma de ser do homem, ou seja, o da submissão irrestrita ao campo normativo, o “ser” e o “dever-ser”.

Supiot nos diz que foi a ciência que forneceu os elementos teóricos e técnicos necessários a esta sustentação, principalmente através da genética e outros avanços tecnológicos, substituindo o dogma da Igreja. De uma forma geral, a Igreja tornou-se apenas um reduto de angústias, pois antes a sociedade acredita no Estado, depois na Ciência e quando se coloca em alerta a evidência do inevitável, recorre à religião. No tocante à Lei Divina, esta “dirige-se sempre ao homem como sujeito; confere-lhe sua identidade ao mesmo tempo em que postula sua liberdade e sua responsabilidade” (SUPIOT, 2007, p. 69). O homem mais do que um sujeito, possui junto de si uma alma, um elemento que transcende à sua própria materialidade, e que lhe garante a eternidade, ainda que não apresente detalhes sobre esta nova forma de ser, ou se apresenta, não existe a perspectiva de uma convergência entre as principais religiões. O homem que acredita nesta transcendência sabe que sua relação de crédito ou débito, seja para com o outro, ou para com Deus, não termina com a sua morte.

Já as Leis da Ciência, ao contrário das Leis Divinas, “encaram o homem como objeto; elas o explicam reportando o que ele é ou o que faz a determinações objetivas, que não comprometem, evidentemente, sua responsabilidade” (SUPIOT, 2007, p. 69), ela só conhece o encadeamento de causa e efeito.

Na sua construção histórica e jurídica o Estado Moderno precisa redefinir quem é o homem, pois as relações com o sagrado, se não foram abandonadas, ao menos produziram um afastamento suficiente para delimitar o campo de ação de cada uma das partes. Tem-se então o homem dividido em três estados, e que determinam a sua nova forma: o homem enquanto individualidade, aonde cada homem é único, mas semelhante ao outro; o homem enquanto sujeito, dotado de soberania, mas sujeito as leis comuns e o homem enquanto pessoa, que é espírito, mas também é matéria. Se estas são as algumas das contradições existentes como resultados da construção de um Estado Moderno, o Direito

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precisa compreender o próprio Direito a partir de sua função antropológica.Para realizar a análise sob o ponto de vista proposto por Alain Supiot é

necessário que a ordem jurídica assuma outra postura, porque

uma ordem jurídica só cumpre sua função antropológica se garante a todo recém-chegado à Terra, de um lado a preexistência de um mundo já presente, que o assegure no longo termo de sua identidade, e, do outro, a possibilidade de transformar esse mundo e de lhe imprimir sua marca própria (SUPIOT, 2007, p. 46).

Uma ordem jurídica dinâmica, não numa forma de autopoiéses, autônoma, mas numa forma dialética, de posição e contraposição, de ser crítica e admitir a própria crítica como forma de superação de seus obstáculos. Contrária às postulações de Comte que propõe a possibilidade de uma sociedade sem direito, substituindo “o governo dos homens pela administração das coisas” (SUPIOT, 2007, p. 68), na realidade substituindo uma ordem por outra, um poder pelo outro, até porque ao fugir do campo metafísico e trazer a ciência para ocupar o lugar central do desenvolvimento humano, Auguste Comte termina por dogmatizar a ciência, além de no final da sua vida, entrar em contradição com a sua própria teoria, quando cria a chamada Religião Positivista.

É preciso sair apenas do campo da discussão do justo e ideal que, por ser ideal, não pode ser realizado, portanto, falar da função antropológica da lei, “permite sair de intermináveis debates sobre o justo, trazendo à luz a necessidade a toda nova geração um ‘já aqui’” (SUPIOT, 2007, p. 72). Não é apenas esperar pela justiça, mas realizar o que já é possível. Os estudos antropológicos não visam construir uma sociedade ideal, mas estudar o que já existiu para compreender o porquê das mudanças e assim, poder posicionar o homem na situação em que se encontra.

Um dos problemas que Alain Supiot nos apresenta nesta busca desenfreada pela norma e sua existência está na razão de que hoje, “procuramos reduzir e explicar o mundo por um ‘sistema de regras’” (SUPIOT, 2007, p. 75), mas neste caso uma indagação é necessária: quem tem a legitimidade para a criação destas normas? Qual a real necessidade dessa criação? A sua existência é apenas formal, pois a sua eficácia é comprometida pela vontade política quanto ao seu cumprimento?

Para demonstrar que ideologicamente o Estado, a quem em tese, no positivismo jurídico deve ser o gerador das normas, é necessário compreender que as atividades jurídicas nos dias atuais, estão muito mais relacionadas com os campos ou mercados de ação, do que a busca da justiça propriamente dita. Temos então três capitais: o econômico, o cultural e o social; mas o Estado se situa no campo do metacapital (SUPIOT, 2007, p. 84). As atividades jurídicas

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se transformaram em mercadorias, que podem ser negociadas pelo peso e necessidade aparente, e não pela busca da essência de valores. O juiz precisa decidir e a sua capacidade passa a ser mensurada pela sua produtividade e não mais pelo justo e sua aplicação.

Com relação aos valores, a própria dogmática jurídica, se não procura excluir, ao menos procura minimizar ao máximo possível, quase ao ponto de neutralizar, a possibilidade de influência de valores nas decisões. A dogmática jurídica “traz contradições para a própria ciência do direito, pois rejeita a necessidade do conhecimento de valores” (SUPIOT, 2007, p. 88), o importante é o conhecimento da técnica, pois ela permite uma zona de conforto, pois quem cumpre a norma e toma a decisão em função da técnica, não é moralmente responsável pelas conseqüências das mesmas. Ele é apenas um burocrata obediente à norma. Justo ou injusto é a norma, e não mais aquele que interpreta e aplica a mesma.

A concentração apenas nos aspectos técnicos normativos, e sua estrutura jurídica interna, assim como a visão de que o Direito é autopoiético, produziu um afastamento da ciência do direito das demais ciências, sendo assim, Alan Supiot defende o posicionamento de que “as ciências do direito hoje deve buscar alguns de seus fundamentos em outras áreas” (2007, p. 89), não apenas compartilhando as suas angústias e desesperos, mas se inserindo dentro de uma dialética onde o que prevalece não é a ordem do discurso, para usar um conceito foucaultiano, mas sim a reflexão e todo o processo didático-pedagógico de sua construção. Não podemos nos esquecer que a própria sociedade pode produzir justiça como por exemplo, nas inúmeras instituições mantidas pelos mais diversos segmentos de grupos sociais muito bem definidos, tanto no aspecto social, ideológico, quanto jurídico.

O mundo ocidental retirou o poder e a confiança da palavra e as transformou em normas constantes no contrato, onde o Estado com todo o seu aparato institucional é o garante da execução deste contrato. Para Alain Supiot o contrato contrapõe a força da palavra, pois retira a possibilidade de uma existência metafísica e antropológica do homem. Reduz tudo e a todos a uma simples relação de prestação e contra-prestação. O que não ocorre na cultura oriental, porque a importância não se encontra nas palavras, mas nos atos, portanto, é a palavra dada e associada aos atos, que garante a harmonia, já preexistente ao contrato. Os homens têm a sua existência marcada muito antes da criação jurídica dos contratos. O contrato para os orientais incorporou-se na sua cultura, para que eles “negociassem com os bárbaros do oeste” (SUPIOT, 2007, p. 102), em outras palavras, com os Europeus. Neste sentido, o homem oriental cumpria o contrato em função das diversas relações que este deveria produzir, seja para com a sociedade, como para com os seus Deuses.

O homem contemporâneo, moderno, civilizado é aquele que vive no mundo dos contratos, que “agora visa delimitar um poder” (SUPIOT, 2007, p.

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130), pois as partes só podem ter a sua ambição controlada pelo peso da lei. O cumprimento ou não deste contrato, se estabelece pela análise de custo benefício e pelo novo valor de troca, pois às vezes, é melhor não cumprir o contrato e arcar com as suas multas, do que realizar aquilo que realmente fora contratado. Pois se o contrato prevê sanções pelo seu não cumprimento, ao resgatar estas penalidades, o homem se desvincula do contrato. Juridicamente, ao menos em tese, a situação está encerrada. Portanto, para Alain Supiot, a confiança na palavra foi substituída pela técnica contratual e pela relação custo/benefício do processualismo jurídico. É o homem imago legis sendo vítima de uma construção histórica e jurídica, resultante da incompreensão de sua própria existência.

A vida moderna trouxe ainda outras mudanças significativas no mundo jurídico, com a mundialização, entenda-se globalização não só da economia, mas do homem, “a ciência econômica conquistou a posição magistral de discurso fundador da ordem mundial, deixando ao direito exclusivamente a magra partidura dos direitos humanos” (SUPIOT, 2007, p. 107). Os direitos do homem como um todo, ficaram reduzidos aos direitos humanos, pode parecer muito e suficiente, dentro de uma teoria reducionista da relação entre o homem e a causas econômicas, mas é muito pobre em relação à própria natureza da essência ontológica do homem. O direito precisa resgatar esta questão antropológica, e que junto de si carrega a ontologia do “ser humano” e suas relações com o direito.

3 O HOMEM E O DESCOBRIMENTO DA TÉCNICA

Para Alain Supiot o direito tornou-se numa técnica, processo que é irreversível a médio prazo a não ser que a sociedade tenha a intenção de produzir uma ruptura, o que é pouco provável e nem é o campo abordado pelo autor.

A questão então se reduz no seguinte termo: como o direito que precisa recuperar sua função antropológica, ou seja, uma criação do homem e para o homem, dentro de parâmetros da realização concreta, com reflexos diretos na sociedade atual, utilizando a técnica como sua aliada neste processo. A construção histórica do direito mostra que em determinados momentos, a utilização deste recurso foi útil e produziu efeitos.

3.1 O HOMEM E A LEI: A NECESSIDADE DA INTERPRETAÇÃO PARA O EN-CONTRO DA DECISÃO

Alain Supiot depois de ter exposto que o direito se transformou numa técnica, quando abandonou a perspectiva antropológica, afirma que a técnica jurídica é composta dos recursos pertinentes a interpretação. É este o campo de redução da aplicabilidade do direito.

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No entanto, se por um lado essa tecnização reduziu o campo epistemológico e antropológico do direito e historicamente é possível constatar que o direito mesmo sendo uma técnica, “mostrou-nos ser um elemento importante de proteção ao homem, contra os excessos de um mundo ‘mecanicista’” (SUPIOT, 2007, p. 143), pois como resultado da Revolução Francesa, de caráter político; e a Revolução Industrial, de caráter econômico, o homem ficou reduzido a uma coisa, um objeto a ser utilizado pelo capitalismo.

Um dos elementos da grande engrenagem que move o mundo capitalista e que pode ser descartado a qualquer momento. Neste momento o direito intervém, mesmo que não na sua plenitude, reduz as conseqüências deste processo devastador do capital desenfreado, sobre o homem que exaurindo a sua força, torna-se um elemento inútil. Neste sentido, o direito “ocupa uma função dogmática: de interposição e de proibição. Essa função confere-lhe um lugar singular no mundo das técnicas: a de uma técnica de humanização da técnica” (SUPIOT, 2007, p. 144). É a perspectiva de usar a técnica como instrumento de amenização da frieza resultante da própria tecnização do direito.

O direito não se tornou uma técnica como resultado de uma vontade própria, mas como reflexos de um mundo que se transformou como um todo, principalmente, num primeiro momento com a segunda guerra mundial e o rápido desenvolvimento da tecnologia, e posteriormente, após a década de 1970 com o advento da internet, o que possibilitou as informações transitarem de um ponto a outro do mundo, num primeiro momento em questão de horas e depois, tudo ficou reduzido a segundos. Neste sentido, o direito acompanhou as demais áreas do conhecimento humano, e a própria sociedade que saiu do telex da década de 70, o que já era uma grande inovação, para o do celular multimídia e conectado diretamente com o mundo.

Uma sociedade que vigia, se autovigia, e termina por transformar as informações privadas em públicas, muitas vezes sem a autorização das partes envolvidas, e nem medindo as conseqüências dessa desregulamentação da chamada sociedade da informação.

No entanto, se o direito estava dentro desta corrente inevitável de profundas transformações, e participou para o desenvolvimento destas técnicas, “também serviu para deixá-las mais humanas” (SUPIOT, 2007, p. 162), quando vislumbrou a possibilidade de intervenção contra os abusos cometidos por uma técnica que cada vez mais, enfatiza ser o homem um objeto, uma coisa, a ser manipulada de acordo com interesses ideológicos de quem detém o poder naquele momento histórico.

Um dos artifícios usados pelo direito foi o da mudança da interpretação, pois se não se pode alterar a lei de acordo com os anseios da sociedade, e neste aspecto

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o direito pode tornar-se tão refém quanto a população, nas mãos de um legislativo e executivo que notoriamente, e mundialmente, torna-se cada vez mais suscetível de deterioração e corrupção, no que Hannah Arendt analisa em suas obras e no conjunto, nos apresenta como o “declínio da esfera pública” (CARDOSO JR, 2007), é necessário uma postura quanto à interpretação. Como por exemplo, uma releitura da Declaração Universal dos Direitos dos Homens, dentro de uma perspectiva de um pluralismo jurídico, coloca diversos artigos desta Declaração em conflito direto com algumas normas, que antes de ter a característica de ser geral e abstrata, recebem um cunho mais particular e concreto, uma vez que visam a beneficiar pequenos grupos socialmente bem posicionados.

Se o direito é uma técnica deve necessariamente ser levado a uma decisão, pois não existe técnica, no sentido restrito da palavra, que não conduza a um caminho final, e no mundo jurídico, este final está relacionado diretamente com a decisão. Para resolver este conflito o direito criou as técnicas de interpretação, mas que tanto podem produzir efeitos positivos sob a conquista de novos direitos, quanto efeitos negativos. O problema então não se encontra nem na técnica e nem especificamente no direito, mas do uso com que o Estado e uma classe dominante fazem desse direito, quanto ele abandona a sua perspectiva antropológica e se reduz à tecnicidade.

3.2 O HOMEM, A LEI, E O MUNDO DO TRABALHO

Historicamente o homem, a lei e o mundo do trabalho sempre estiveram relacionados, como por exemplo, nos alerta Hesíodo na obra Os Trabalhos e os Dias (HESÍODO, 1996) quando sendo usurpado pelo seu irmão diante de uma herança deixada pelo pai, o alerta de que as leis divinas e as dos homens, honram àqueles que obtém riqueza através de seu próprio esforço, ou seja, a energia resultante de seu trabalho. Mas não é qualquer trabalho, e sim o trabalho honesto. O homem que trabalha além de garantir o seu sustento e da sua família, engrandece a pólis, por isso encerra a sua obra nos dizendo trabalho sobre trabalho trabalha.

Para Alain Supiot, principalmente tomando como marco os momentos pós 1ª e 2ª Guerra Mundial, mudanças significativas ocorreram principalmente no mundo político, pois estas mudanças são acompanhadas “de um recuo da centralização do poder em proveito de uma distribuição de poderes” (SUPIOT, 2007, p. 187), como por exemplo, e cujo reflexo será quase que imediato no campo social e antropológico, a distribuição do poder familiar, pois a partir deste momento a mulher adentra de forma mais incisiva no mundo do trabalho, e as responsabilidades pela manutenção da família não encontra mais suficiência apenas na força de trabalho do homem, e mulher é um componente importante

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no orçamento familiar, mas surge um problema: o que fazer com os filhos, que dentro desta estrutura de poder, tem na sua existência, a supressão quase que total de uma autoridade familiar? Pai e mãe trabalham e o tempo para a família fica relegado a terceiro plano. Dividiram-se poderes e responsabilidades, mas não se planejou e nem se preocupou a sociedade, e nem o Estado, quais seriam as conseqüências.

Mudança semelhante aconteceu na administração das empresas, quando o modelo fordista “foi substituído pelo da ‘administração participativa’” (SUPIOT, 2007, p. 187), e isso comprometeu ainda mais o homem no campo do esforço produtivo, mas não amenizou as suas condições materiais. O capitalismo substituiu o termo empregado, funcionário, para dar a ele um nome mais glamoroso, o de colaborador, mas esqueceu de acrescentar o glamour ao seu salário.

Já na década de 70, com a propagação da internet, primeiramente nos Estados Unidos e depois da Europa, conjuntamente com outros fatores, temos a fragmentação do trabalho, e esse processo de flexibilização, dificultou a identificação empregador/empregado. De uma forma geral, se o trabalhador não se identificou, ou não se preparou para a passagem desse processo, é porque ele não foi competente para despertar o empreendedorismo que existe dentro dele. Certamente uma imensa massa de trabalhadores que vivem de subempregos, tem muita potencialidade para serem empreendedores, ainda que sejam empreendedores de suas desgraças e pobrezas.

No mundo antigo a técnica pertencia ao homem que a dominava, mas era resultante de uma construção histórica de um determinado povo. O homem tinha domínio sobre a técnica, pois era o seu segredo profissional. Ela lhe pertencia, mas só existia quando a sua realização se manifestava no coletivo. Michelangelo não pintou o teto da Capela Sistina para ser objeto apenas de sua veneração, ele tinha consciência que naquele momento a sua obra se abria como um leque, para ser perpetuada como uma criação estritamente humana. Mas no mundo do trabalho moderno, homem e técnica são coisas distintas, pois pertencem a mundos diferentes, mas concorrentes quanto a produtividade. O parâmetro do ritmo de produção humana agora tem como referência a máquina, portanto, é preciso dotar este homem de técnicas suficientes para que o mercado possa maximizar produção e minimizar custos, é a contabilidade capitalista.

Os contratos de hoje possuem um menor grau de subordinação, as empresas obtém dos “seres humanos um comportamento espontaneamente conforme as necessidades da ordem estabelecida” (SUPIOT, 2007, p. 209). O mundo jurídico diz que todo o contrato tem por característica fundamental a relação de dois ou mais sujeitos dotados de livre e espontânea vontade, para a celebração do mesmo. Na realidade o que existe é sujeição da parte mais fraca da relação jurídica, “com o enfraquecimento do critério da subordinação, inúmeros assalariados gozam de

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certa liberdade, mas de uma liberdade dirigida, sujeitada a objetivos subscritos em acordo com o dono da empresa” (SUPIOT, 2007, p. 209). Sendo assim o homem goza de liberdade para decidir se assina ou não o contrato. Por exemplo: um trabalhador que ganha salário mínimo tem liberdade sim quando assina um contrato de trabalho, pois pode escolher em morrer de fome sem trabalhar, ou ainda, em morrer trabalhando para receber um salário insuficiente para suas necessidades básicas. Eis a liberdade do mundo contemporâneo.

Na linha de análise de Alain Supiot, o processo de globalização reduziu o poder de soberania dos Estados, pois as mercadorias e os homens que detém o poder sob o capital precisam circular. Voltamos às relações reguladas pelas trocas de mercadorias, e o direito de concorrência ocupa o lugar do direito constitucional, e como conseqüência direta o poder do Estado é apenas local e no aspecto micro (SUPIOT, 2007, p. 192). Como falar em soberania de Estados, se as atividades são reguladas pela economia e pelo capitalismo?

Neste processo onde é a técnica e a produtividade quem domina e determina as ações humanas, tem-se como conseqüência a separação do homem de seu corpo biológico, mas o seu conhecimento continua vagando e sendo vigiado pelo mundo virtual. A noção de espaço-tempo se altera. O trabalhador foi objetivado, não importa mais a relação humana com o chefe e outros, pois o seu valor está em cumprir objetivos, metas, traçados por outros (SUPIOT, 2007, p. 212). É preciso expor a foto do trabalhador que cumpriu a meta, em diversos locais e informativos das empresas para que duas coisas fiquem claras: que alguém teve a audácia de ser competente para cumprir as metas, e em segundo lugar, os demais foram suficientemente passivos e incompetentes para não estarem na foto. A isso se chama de técnicas de motivação.

O trabalhador agora se submete a ser avaliado por normas da própria empresa, sem possibilidade de participação na elaboração da mesma (SUPIOT, 2007, p. 213), não é um contrato de livre vontade entre as partes, mas sim de sujeição do mais fraco ao mais forte, e com o amparo da técnica jurídica do contrato. Contrato, conforme nos alerta Cícero, Thomas Hobbes, John Locke, foi feito para ser cumprido. A grande ficção do trabalhador é o de “produzir o melhor de si mesmo” (SUPIOT, 2007, p. 214), sem a preocupação com o seu em estar pessoal e social, pois ele é um objeto que pode ser substituído por outro, tão logo esteja desgastado.

Se o capitalismo que tanto se preocupa com regras claras e segurança jurídica, direitos de propriedade, proteção ao capital e outros, para Alain Supiot, foi a partir do direito do trabalho, que o mundo jurídico se apoderou das técnicas e suas novas formas de interpretação, e “através da técnica, produziu formas para amenizar esses problemas” (SUPIOT, 2007, p. 164). Foi quando se apresentou o conceito de direito social, que surge da consciência do mundo

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jurídico, de “que um conflito social não pode depender dos métodos jurídicos habituais” (SUPIOT, 2007, p. 197), não se trata de romper com o antigo e instituir uma nova ordem jurídica, mas sim o de procurar espaços, lacunas, que permitam ao direito recuperar a sua condição antropológica de resgate da condição humano, não apenas de uma minoria favorecida, mas sim do homem em todas as suas dimensões históricas, sociais, culturais e jurídicas. É a busca de um Direito que se realize mundo contingente e presente, e não apenas como um ideal a ser buscado.

Um campo do direito teve participação importante segundo Supiot, para conquistas que amenizaram a relação desproporcional entre trabalho e capital, foi o direito do trabalho, que com a Constituição Francesa de 1946 e depois em 1958 introduziu um novo participante no processo legislativo, os sindicatos e outras representações de classe, quando expressa que “todo trabalhador participa, por intermédio de seus delegados, da determinação coletiva das condições de trabalho, assim como da gestão das empresas” (SUPIOT, 2007, p. 201). A colocação é incisiva “participa” e “determinação”, não deixando espaço para outras suposições, senão aquela que coloca o trabalhador como um sujeito ativo no processo de construção das condições de trabalho.

Esta participação é mais extensiva do que o texto da Constituição Francesa prevê, pois “a negociação coletiva pode participar acima de tudo da elaboração da lei. É o fenômeno da lei negociada, que não cessou de ganhar importância faz trinta anos” (SUPIOT, 2007, p. 201). Depois dos envolvidos diretamente pela lei acordam entre si, agora dentro de condições reais menos distantes, ou seja, negociam as vantagens e amenizam as desvantagens, é que a lei segue o seu caminho legislativo. Ainda que o legislador possa alterar e mesmo recusar a concluir este processo legislativo, perante a sociedade perde a legitimidade para tal fato, pois não exercem mais a sua função, dentro da correspondência da vontade coletiva. Na análise de Supiot a convenção coletiva, dentro do direito do trabalho francês, amparado pela constituição, e principalmente com as alterações em 1971, deixou de exigir apenas o corpo laborum para exigir “capacidade convencional” (SUPIOT, 2007, p. 226). Os trabalhadores não são meros coadjuvantes no processo, mas aqueles que pela capacidade convencional, no qual se estabelece um contrato de intenções, expressam as suas vontades e necessidades, que deverão ser levadas em conta no processo legislativo.

A técnica, associada à perspectiva de que determinados setores da coletividade podem agir como um corpo mais uníssono, e com objetivos mais específicos e menos heterogêneos, como é o caso de uma eleição qualquer, demonstrou que “a instrumentalização das fontes do Direito afeta também o poder legislativo ou regulamentar, quando dever exercer-se com o fito de realizar objetivos fixados por convenções às quais os Estados aderiram” (SUPIOT,

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2007, p. 227-228), não apenas no âmbito interno, como as convenções coletivas de trabalho, mas também no âmbito externo, através dos acordos comerciais, que na realidade movimentam o mundo globalizado, muito mais do que as intenções reais de se construir uma sociedade mais igualitária e pacífica.

3.3 O HOMEM, A LEI, O MUNDO DO TRABALHO E A GLOBALIZAÇÃO: HO-MEM UNIVERSAL OU UMA INCÓGNITA UNIVERSAL?

Embora o fenômeno da globalização possa ser notado já no século XIX, principalmente com o aumento do tráfego marítimo terrestre, é no século XX, após a 2ª Guerra Mundial que ele se intensifica, principalmente com a Conferência de Bretton Woods, ao qual Roberto Campos chamou de “a mais interessante das conferências dessa época” (CAMPOS, 1994, p. 62-63), quando em de 1 a 22 de julho de 1944 reuniram-se 44 países para estabelecer um projeto de recuperação dos países que sofreram conseqüências diretas ou indiretas da 2ª Guerra Mundial, e que resultou entre outras decisões, na adoção do dólar como moeda internacional a ser utilizada nas negociações, centralizando assim o poderio militar, e agora econômico sob a égide dos Estados Unidos da América.

A criação do Estado Moderno já traz consigo algumas indagações, pois: o que distingue um governo de uma quadrilha de ladrões? Não se questiona aqui os fatores axiológicos, pois a história recente nos mostra que ele pode não existir tanto em num, quanto no outro lado, mas também, “não é a força, mas legitimidade do poder, e a concordância espontânea de quem o aceita” (SUPIOT, 2007, p. 181), é a razão de poder, e todas as ações necessárias para a manutenção desse poder, Maquiavel nomina de razão de Estado. E quando essa razão extrapola esses limites, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, defende o direito de resistência. Para fazer uma rápida abordagem destas proposições.

No mundo onde a globalização colocou a mercadoria e o poder como a sua razão de ser, e de movimentar a esfera global, e o homem é apenas uma coisa que em alguns momentos pode ser útil, em outras palavras, quando a máquina não pode substituir a sua força e capacidade de raciocinar; e em outro momento, no qual ele exerce papel preponderante, que é o de sujeito de consumo, e este é o novo parâmetro axiológico introduzido pelo capitalismo, a questão da soberania tornou-se meramente um factóide, pois ela já não é mais um conceito absoluto, mas relativo aos interesses das forças políticas que compõe a estrutura lógica do poder.

A grande preocupação não é mais o governo soberano, pois de uma forma geral, os países estão vinculados primordialmente por relações comerciais e tecnológicas, e não por questões humanas, o problema agora se centra na busca da “governança eficaz” (SUPIOT, 2007, p. 184). Ser eficaz é maximizar a produção e minimizar a despesa. É exaltar os resultados econômicos, e realizar no campo social o que for possível, em outras palavras, a chamada reserva do possível.

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O homem se inseriu na globalização não como núcleo deste processo, mas como um meio para a sua realização, sendo assim, trocou o ideal de liberdade que sempre buscou até a Revolução Francesa, pelo objetivo a ser alcançado. Ele é avaliado como homem, pela sua capacidade de atingir ou não as metas exigidas pelo governo e pela empresa, ou ainda, por buscar alternativas, não importa os meios, para criar novas possibilidades.

Mudanças significativas ocorrem no campo da governabilidade, pois passamos do “governo dos homens” (SUPIOT, 2007, p. 210), onde a falibilidade e as virtudes podiam ser avaliadas pelo homem comum, para o conceito de “governança” (SUPIOT, 2007, p. 210), onde nem sempre exercer o governo significa realizar funções sociais, mas sim a “adesão espontânea a uma ordem” (SUPIOT, 2007, p. 210). Os Estados abrem mão de parte significativa de sua soberania para se inserirem dentro desta ordem mundial, onde os capitais são virtuais, as intenções não são claras, e as grandes bolsas de valores e commodities regulam a relação de produção.

Este fenômeno não surge propriamente dentro do Estado, mas de forma conjunta na iniciativa privada, pois

foi nas grandes empresas transnacionais que essa nova maneira de disciplinar os homens foi criada e experimentada. O fato novo na condução dessas empresas não é o lugar que as trocas internacionais ocupam nelas, mas a sua emancipação do âmbito institucional dos Estados. (SUPIOT, 2007, p. 210)

Algumas empresas transnacionais agem como se fossem estados dentro de um Estado, e alteram as suas relações de produção e mesmo com os seus funcionários, como se fossem estados independentes. Elas não querem e nem mais precisam da tutela do Estado, pois a nova ordem mundial lhes garante independência. Qualquer violação ao seu sistema de regras, as conseqüências não serão internas, mas serão respondidas pela ordem mundial. No entanto, essas empresas cumprem um papel importante, pois é nelas que se instalam “os laboratórios onde se inventam e se aperfeiçoam novas técnicas de poder, que emigram depois para a esfera pública. Essas técnicas dão, claro, um largo espaço à informação e à comunicação” (SUPIOT, 2007, p. 211). Uma questão elementar e de observação cotidiana pode ser realizada: de onde surgem os chamados grandes gurus, para não dizer marqueteiros das campanhas políticas?

A administração estatal também sofre influências diretas e indiretas, para reagirem com “elementos legais de superação das crises” (SUPIOT, 2007, p. 217-218), pois o mercado consumidor não pode parar de consumir. O problema não é apenas o de garantir ao homem uma condição de hominidade, mas antes o de garante de sua condição de consumidor. Para Alain Supiot (2007, p. 216), quando o

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Estado visa garantir o desempregado com uma renda mínima, também contratualiza com este sujeito de direito, uma obrigação de reinserção no mercado de trabalho. Este mecanismo tem se mostrado eficiente em alguns países, pois evita que um percentual significativo de trabalhadores desempregados, fique a deriva e com isso, aumentem os problemas sociais, cuja conseqüência principal seria o aumento da criminalidade e o decréscimo significativo do consumo, entre outros. Se o direito não procurar a sua perspectiva antropológica, e ficar apenas no campo normativo e da sua operação, “num sistema de normas que conta os homens sempre como custos e nunca como uma riqueza, o Direito de demissão é apenas o meio de limitar uma quebra social programada” (SUPIOT, 2007, p. 223).

A demissão assim demonstra apenas que o lado mais fraco da relação jurídica, que é o trabalhador, e que apenas cumpre ordens e determinações, pois não consta de suas funções as questões relacionadas à criatividade para superar as crises, está arcando com o custo maior, pois o importante é preservar o patrimônio da empresa, pois esta sim é quem detém a responsabilidade social de empregar. O homem é apenas uma coisa dentro do processo produtivo.

Retomando as questões sobre a importância do Direito do Trabalho, utilizando como instrumento as técnicas jurídicas para garantir, reconquistar e conquistar novos direitos, Alain Supiot nos diz que ao mesmo tempo em que as convenções coletivas de trabalho deixaram de ser um simples acordo de trabalho entre empregados e empregadores, sua negociação tornou-se um “instrumento de realização de objetivos que transcendem esses interesses. Essa evolução afeta ao mesmo tempo a identidade das partes contratadas e os objetos da negociação” (SUPIOT, 2007, p. 225). O resultado deste processo foi a mudança sistemática das exigências para que os trabalhadores participassem destas convenções, pois no decorrer do tempo “foi edificada ma condição de capacidade convencional cada vez mais restritiva” (SUPIOT, 2007, p. 225), em outras palavras, quando os trabalhadores perceberam o poder que adquiriram com as convenções coletivas, o Direito endureceu as regras e dificultou a forma de participação.

Sendo assim, o objetivo hoje dos contratos não é mais o de fixar regras, mas o de possibilitar implantação de meios de “governança”, e que extrapolam o simples objeto do contrato, pois criam vínculos “que direcionam o comportamento de cada sujeito de direito” (SUPIOT, 2007, p. 229). A governança traça objetivos que precisam ser alcançados de qualquer forma, ainda que estas estejam no campo da licitude, às vezes os homens precisam esquecer a sua própria condição de seres humanos, para exercerem outro possível status de sua existência, que é o de ser super-homem, dentro de uma visão muito próxima daquela contraposta por Nietzsche. Os objetivos intrinsecamente ligados à condição de governança acentuam diversos problemas no campo jurídico e social, pois “um dos aspectos mais inquietantes

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da ideologia da governança é que ela não concede nenhum espaço aos conflitos e à ação coletiva dos homens na marcha das sociedades” (SUPIOT, 2007, p. 230). É um sistema de controle e limitação do corpo coletivo, reduzindo-os a meros coadjuvantes no processo capitalista e jurídico.

O homem apresenta-se como um ser com direitos universais, um ser de produção e de consumo universal, um homem que vive na Era dos Direitos para parafrasear Norberto Bobbio, mas na realidade a sua existência é dizimada quando desvinculam o homem e sua técnica, seja ela qual for, pois por detrás de uma marca mundialmente conhecida, escondem-se inúmeros direitos universais que são usurpados, abandonados em nome de uma lei de mercado: produzir mais, com a maior escassez de recursos possíveis. O ser homem já não representa mais um investimento, mas um custo. Diante do Estado Moderno, cujo modelo de aposentadoria encontra-se esgotado em vários países, quando o homem se aposenta ele sai da linha de produção, para entrar numa cadeia de custos, ainda que tenha religiosamente contribuído com a previdência, durante grande parte de sua existência. O homem é uma incógnita universal, pois se encontra no meio de uma crise existencial e diante de incertezas tão grande, que talvez a luz que seja apontada no final do túnel, é a de um trem que vem numa velocidade elevada em direção a um minúsculo objeto em seu caminho.

4 O HOMEM E O DESCOBRIMENTO DA HUMANIDADE: A POSSIBILIDADE DA SALVAÇÃO

Embora o panorama possa ser apresentado de forma catastrófica, Alain Supiot ainda enxerga uma maneira de sair dessa crise, que é a ação de unir a humanidade através da crença nos direitos humanos. Mas toda crença implica na existência de um dogma, e é este dogma que ele discutirá no encerramento de sua obra.

4.1 O HOMO JURIDICUS: A UNIÃO PELO MUNDO DAS LEIS ECONÔMICAS

Na visão contemporânea do Direito, discutir o conceito de homem exige como parâmetro os direitos humanos. É inevitável dizer que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamado pela ONU, tem o sentido de tratar o homem como um ser universal, no entanto, o insere também num mundo globalizado, mas também, esses direitos são “oriundos dos valores da cristandade ocidental” (SUPIOT, 2007, p. 232). Universal mas nem tanto. Universal mas de cunho cristão. Universal mas construído sobre um modelo que interessava às potências exitosas após a 2ª Guerra Mundial.

Na linha de visada desenvolvida por Alain Supiot o dogmatismo antes de ser um problema, pode ser parte relativa de uma solução, “um dogma é também

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um recurso, talvez o mais indispensável à vida humana, já que a peculiaridade dessa vida é que os homens devem atribuir-lhe um sentido, mesmo quando ela não tenha nenhum sentido demonstrável” (SUPIOT, 2007, p. 238). O sentido da vida não está apenas no Direito, e nem tão pouco ele se esgota com o Direito, existe um homem metafísico que também procura o seu caminho, ainda que no momento atual o máximo que pode conseguir são os direitos humanos.

As sociedades mais desenvolvidas trazem a esperança de um messianismo, mas defendem uma igualdade fundamentada tão e somente no sentido restrito da letra da lei, não procuram romper a barreira do legalmente instituído, para o legal a ser instituído, pois não desejam ceder benefícios que conquistaram ao longo da história, com sacrifícios de outros povos, como por exemplo, a Europa em relação à África e sul da Ásia. Quando estas sociedades falam em comunitarismo, tratam os direitos humanos como exclusividade do ocidente, quando na sua essência não existe homem ocidental, nem oriental, nem acima da linha do equador e nem abaixo da linha do equador. Este já é um conceito antropológico superado, o que temos é apenas o homem e que precisa ser recuperado na sua essência. Estes direitos humanos, segundo Supiot, “fecha os homens no fatum de suas origens étnicas e religiosas” (SUPIOT, 2007, p. 246), criando subclasses de pertencimento, como o termo afro-americano.

Os organismos internacionais, normalmente gerenciados pelas grandes potências afirmar ser necessário que os países pobres e em desenvolvimento, criem programas para despertar o empreendedorismo da população e que procurem soluções dentro de seu próprio sistema, ou pior ainda, que importem soluções que confrontam seus valores culturais e históricos. Querem defender o direito de liberdade destes povos, mas “para se preocupar com a defesa da liberdade ou com o direito de propriedade, precisa-se primeiro estar seguro de um mínimo de segurança física e econômica e não estar às voltas com as agressões, com a fome, com o frio ou com a doença” (SUPIOT, 2007, p. 250). Liberdade sem ter o que comer é a liberdade de se morrer de fome, não pelo querer em si, mas porque não lhes resta alternativa. Diante desta questão, onde está a liberdade? Que valor a liberdade pode ter para este que a aceita? Ele realmente aceita esta liberdade, ou apenas se resigna diante do imutável em função de que suas forças estão exauridas?

A economia que já avançou sobre o direito, pois faz com que o mercado seja regido pelos seus princípios, ao estabelecer metas de governanças, de arrecadação, de investimento e outras formas de controle, ainda que fundamentados em fatos concretos, pois é possível ao Estado e a iniciativa privada ter noção destes valores, também contribuiu de forma significativa para exercer influência sobre as formas de investimentos em países subdesenvolvidos, aumentando a fome e a miséria, e

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uma das lições dos anos 1930 era que a miséria e o desemprego de massa arrumam a cama para as ditaduras e que não pode haver liberdade onde reina a insegurança física ou econômica, sendo essa a razão da proclamação dos direitos sociais após-guerra (SUPIOT, 2007, p. 250).

A história nos mostra que o mundo capitalista entende ser mais fácil conter e controlar as vontades de um ditador, do que despertar na população interesse por construir uma paz longa, justa e que satisfaça as necessidades básicas da população.

No entanto, para Supiot quando a crise foi apontada de forma mais incisiva após a 2ª Guerra Mundial, e fez surgir os direitos sociais, na realidade foi um avanço em relação a momentos anteriores. A técnica jurídica permitiu o desenvolvimento de novas interpretações e a busca de alternativas, dentro da própria dogmática, para garantir o mínimo de dignidade da pessoa humana, mas tendo como limite a possibilidade das realizações econômicas, pois os sistemas dogmáticos não dialogam entre si, mas apenas negociam (SUPIOT, 2007, p. 267), embora a modernidade disponha de meios eficientes, rápidos para tal processo pudesse ser compartilhado.

O homem é um ser globalizado no processo de produção e consumo, mas insignificante nas questões ontológicas e antropológicas, sendo tratado como um objeto de negociação entre os inúmeros atores que compõe a economia mundial.

4.2 O HOMEM DESESPERADO: OS POSSÍVEIS CAMINHOS PARA A SAL-VAÇÃO

O homem se encontra imerso num caos, onde o que predomina é o conhecimento da técnica, e não da essência das coisas. É o saber o que fazer, como fazer e para que fazer, sem levar em considerações fatores intrínsecos a ação humana, e tão pouco medir até que ponto o “fazer” é humanamente possível.

O Direito como criação humana, resultado da reflexão, da experiência social, das necessidades de encontrar soluções para os conflitos, nem sempre caminha pelo ideal de justiça, mas para a realização de interesses e do que se é possível fazer naquele momento. Embora a Declaração Universal dos Direitos dos Homens, condene a tortura, o fatídico e lamentável acontecimento de 11 de Setembro, deixou claro ao mundo que “se os valores em jogo são muito elevados, a tortura é admissível” (SUPIOT, 2007, p. 252), como de fato ocorreu com o posicionamento americano em Guantánamo e outras regiões do mundo. Outro exemplo de concessão de direitos, onde as questões antropológicas parecem não receber a devida atenção, é a adoção homoparental, pois nesta relação surge um problema, sob o qual as atenções não foram devidamente focadas: e os direitos da criança? (SUPIOT, 2007, p. 253)

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Dentro de um processo natural, a existência de pais de sexos diferentes, ainda prevalece em nossa cidade, e como explicar para a criança que, embora receba carinho e atenção, ela tem pessoas do mesmo sexo, cumprindo o papel de pai ou mãe?

Mas qual seria a solução apresentada por Alain Supiot, que conduziria a amenização das dicotomias entre os povos, ao mesmo tempo em que preservaria a suas condições antropológicas? Com relação aos direitos humanos é necessário “começar por abrir a porta da interpretação dos direitos humanos a todas as civilizações” (SUPIOT, 2007, p. 256), e não apenas aquelas que de forma direita ou indireta atenda aos interesses das grandes potências ocidentais. É preciso “aprender a respeitar” (SUPIOT, 2007, p. 259) a interpretação que cada povo confere aos direito humanos, e não impor valores que não pertencem às suas culturas, mas precisam ser impostos, em função de um processo de globalização, primeiramente econômica, depois cultural e finalmente, de uma ideologia que padronize o comportamento de todos os homens. Saímos do modelo eurocêntrico, para o modelo americano. Mudamos de uma classe dominante para a outra. Mas a finalidade continua a mesma: a prevalência dos interesses do capital sobre aquelas que efetivamente promovam a condição humana.

Quando na modernidade a solidariedade tornou-se anônima, pois ao pagar tributos ao Estado e este, tornou-se responsável pela distribuição de benefícios aos mais carentes, houve uma desestruturação das relações de beneficiado e beneficiário, pois ela afastou a possibilidade do contato face-a-face e aumentou o individualismo, assim como rompeu os vínculos afetivos, pois quem paga o tributo não conhece para quem foi destinado, e quem recebe, também não identifica de quem o recebeu. Todas as referências e responsabilidades passam a ser assumidas pelo Estado. No mundo clássico e mesmo na medievalidade, a solidariedade era caracterizada pela identificação dos envolvidos no processo, isso aumentava os laços afetivos, ao mesmo tempo em que acentuava as responsabilidades e referências de valores.

Finalizando, a sociedade que criou o Direito e inseriu a igualdade como uma das condições fundamentais para a sua existência, pois de que adianta o Direito numa sociedade onde a condição pessoal implica condição de poder e diferença efetivas de classes, só pode existir efetivamente quando compreendermos “os povos nos seus aspectos humanos e não apenas formais” (SUPIOT, 2007, p. 271).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se existe a necessidade de recuperar o homem como um todo, e de forma mais específica no campo do Direito, com a visão antropológica da função da lei e do direito, não é possível desconsiderar as transformações históricas e o desenvolvimento da ciência, principalmente no aspecto jurídico.

O Direito não caminha de forma alheia às demais mudanças ocorridas na história da humanidade, principalmente no tocante ao desenvolvimento da técnica, como elemento capaz de uniformizar procedimentos e aumentar o grau de estabilidade nas relações da sociedade como um todo. Técnica significa

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padronização metodológica, como forma de permitir a realização constante de determinados fatos, onde o efeito mantém-se o mesmo, independente de quem as realize. O processo de globalização exige que estas técnicas sejam apuradas e produzam o maior grau de satisfação possível, com o menor grau de perturbação da ordem.

Se não é mais possível desprezar as facilidades e a certeza que a técnica pode nos oferecer, o Direito deve procurar formas de tirar proveito do que está posto, utilizando uma nova técnica de interpretação. Neste sentido, o homem pode recuperar o seu conceito ontológico, e o Direito o seu papel, quando resgata a sua função antropológica, tirando proveito de situações criadas historicamente pela própria sociedade e de forma mais específica no Direito.

Das conseqüências funestas resultantes das duas guerras mundiais do início do século XX, e também de um capitalismo exacerbado, o Direito do Trabalho é o ramo do Direito que melhor tirou proveito da interpretação, como forma de proteger as relações de desigualdade, ainda que de forma minimizada.

A recuperação do homem como um todo, tanto do imago dei, sem deixar de lado o imago legis, associando o homem metafísico ao homem material, necessita a retomada de um referencial onde a solidariedade coletiva e identificada, substitua a solidariedade anônima, onde o Estado assume o papel de grande garante nas relações sociais. Sendo assim, o garante deve ser o homem pela sua própria essência, e não como resultado restrito de um sujeito de direito e deveres, ou seja, reflexo de uma relação jurídica.

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EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 66/2010 E SEUS EFEITOS: PERMANÊNCIA OU EXTINÇÃO DO INSTITUTO DA SEPARAÇÃO NO ORDENAMENTO

JURÍDICO BRASILEIRO

CONSTITUTIONAL AMENDMENTNUMBER66/2010 AND ITS EFFECTS: PERMANCENCE OR EXTINTIONOF THE INSTITUTE

OFSEPARATIONINBRAZILIANLAW

DaniEla Karina fEliPPE

Graduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba – UNI-CURITIBA e participante do Projeto de Pesquisa A Prestação do Ser-viço Público de Saúde e a Política Nacional de Relações de Consumo

luiz guStaVo DE anDraDE

Possui graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2002), pós-graduação pela Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro (2005) e Mestrado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (2008). Atualmente é professor da Faculdade de Direito de Curitiba do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e advoga-do militante no Paraná.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Separação antes do advento da EC 66/2010 3. Divórcio antes do advento da EC 66/2010 4. A Emenda Constitucional 66/2010: caminho percorrido e fatores ensejadores 5. Separação após o advento da EC 66/2010 6. Divórcio após o advento da EC 66/2010 7. Considerações Finais

RESUMO

A indissolubilidade do casamento esteve presente no Brasil até o advento da EC nº 9 de 1977, a qual alterou o artigo 175 e introduziu a possibilidade do divórcio, porém de forma muito restrita, condicionando o divórcio a separação judicial, que veio a substituir a figura do desquite, por mais de 3 anos ou a separação de fato por mais de 5 anos, prazo a ser cumprido antes do advento da emenda. Após, com as alterações introduzidas pela Constituição vigente, a dissolução do casamento era possível de duas formas, por meio do divórcio direto, no qual havia a necessidade de comprovar separação de fato há mais de dois anos e por meio do divórcio por conversão, no qual havia a necessidade de comprovar a separação judicial há mais de um ano, e, posteriormente, também poderia contar um ano da data que concedeu a liminar de corpos. Já

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a dissolução da sociedade conjugal era possível por meio da separação, que poderia ocorrer por meio da separação-sanção, na qual se imputava a culpa ao cônjuge, por acometimento de doença grave, ou pela ruptura da vida em comum. O advento da EC 66/2010 alterou essa realidade ao modificar o texto do §6º do art. 226, passando a constar “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Esse dispositivo, redigido de forma simples, gerou uma grande controvérsia acerca da permanência ou extinção do instituto da separação. Foi possível concluir, neste artigo, pela permanência do instituto da separação no ordenamento jurídico, a qual permanece sobre os mesmos moldes estabelecidos pelo Código Civil, e para melhor elucidar esta opinião, foi realizada análise dos argumentos de ambas as correntes formadas acerca do tema. Já no que diz respeito ao divórcio, é inconteste que a EC extinguiu a modalidade divórcio por conversão, apenas restando no âmbito judicial o divórcio direto, que não mais depende de qualquer requisito temporal, e o divórcio no âmbito extrajudicial.

Palavras-Chave: emenda constitucional, divórcio, separação, Constituição.

ABSTRACT

The indissolubility of marriage was present in Brazil until the advent of Amendment number 9 of 1977, which has altered the article 175 and introduced the possibility of divorce, but in a very limited way, conditioning the divorce and the legal separation, which came to replace the figure of desquite, for more than 3 years or a fact separation for more than five years, term to be fulfilled before the advent of the amendment. After, with the alterations introduced by the present Constitution, the dissolution of marriage was possible in two ways, through direct divorce, in which there was a need to establish de fact separation for more than two years and through the divorce by conversion, in which was necessary to prove the legal separation for more than one year, and after it was also possible to count one year from the date that granted the separating bodies injunction. However the dissolution of the conjugal society was possible through the separation, that could occur in three ways, through the separation-sanction, in which guilt was imputed the guilt to a spouse, for involvement in serious illness, or the disruption of life in common. The advent of the EC 66/2010 has changed this reality by modifying the text of § 6 of art. 226 for “civil marriage can be dissolved by divorce”. This redaction, drafted in a simple way, generated a great deal of controversy about the permanence or extinction of the institute of separation. It was possible to conclude, in this article, the permanence of the institute of legal separation, which remains the same manner established by the Civil Code , and to better elucidate this opinion, it was analyzed the

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arguments of both sides formed on the subject. In what concerns the divorce is uncontested that the EC abolished the conversion mode for divorce, leaving only the institute of direct judicial divorce, which no longer depends on any temporal requirement, and also leaving the divorce non-judicial.

Keywords: constitutional amendment, divorce, separation, Constitution.

1 INTRODUÇÃO

Em resposta às transformações sociais que ocorreram ao longo dos anos a EC 9/77 afastou o princípio da indissolubilidade do casamento, inserindo o divórcio no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto este divórcio possuía diversos requisitos para que fosse concedido. A Constituição vigente realizou algumas alterações, diminuindo as restrições, porém, para que fosse possível se divorciar, ainda havia a necessidade de comprovar separação judicial, ou de fato.

A EC 66/2010 veio para alterar essa realidade e facilitar a dissolução do casamento, alterando a redação do §6º do art. 226 no qual constava “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”, passando a constar “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”, porém esse dispositivo constitucional gerou grande controvérsia.

O presente artigo pretende realizar análise acerca desta emenda, bem como de seus efeitos nas formas de dissolução do casamento, principalmente em virtude da controvérsia instaurada a respeito da permanência ou extinção do instituto da separação. Para isto, foi realizado estudo a respeito das formas de dissolução antes e depois do advento da emenda, verificando as principais alterações decorrentes da emenda, e ainda, efetuando análise dos argumentos de ambas as correntes que se formaram acerca desta controvérsia, a fim de verificar se há a permanência do instituto da separação, ou sua extinção.

Tal estudo justifica-se, tendo em vista que as demandas de divórcio e separação estão presentes em grande número no Judiciário e existe uma incerteza acerca destas. Diante disto, faz-se mister discorrer sobre essas questões controvertidas, para que seja possível dirimir as dúvidas existentes.

2 SEPARAÇÃO ANTES DO ADVENTO DA EC 66/2010

A Emenda Constitucional nº 9 de 1977 aboliu a indissolubilidade do casamento introduzindo no direito Brasileiro duas figuras de dissolução da sociedade conjugal que vieram para substituir a figura do desquite, a qual era muito rodeada de preconceito, pois ainda predominada a ideia tradicional

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do casamento para a vida toda. Posteriormente foram reguladas pela lei do divórcio 6515/1977.

Eram elas: o divórcio e a separação judicial, sendo que apenas o divórcio dissolve o vínculo conjugal, mas para que isso fosse possível, previamente ao advento da Emenda Constitucional nº 66 de 13 de julho de 2010, alguns requisitos eram necessários.

A separação judicial era possível de duas formas, consensual ou litigiosa. A separação consensual apresentava como requisito que os cônjuges estivessem casados há mais de um ano, não sendo necessário demonstrar o motivo que levou a ocorrer a separação. A necessidade desse lapso temporal estava presente para que fosse possível tentar o reestabelecimento da sociedade conjugal.

O procedimento adotado era o previsto entre os artigos 1120 a 1124 do Código de Processo. É importante ressaltar a presença das tentativas de conciliação do casal antes da EC nº 66/2010. Hélio Borghi (BORGUI, 2005, p. 216) ressaltou essa característica:

A intenção do legislador é que o juiz, tomando conhecimento das causas da separação, possa aconselhar os cônjuges, e muitas vezes dissuadi-los da ideia de se separarem, ajudando-os a resolver certos problemas, impedindo, dessa forma, que o caso vá adiante e a sociedades conjugal se dissolva.

Já a separação litigiosa, aquela aforada por apenas um dos cônjuges, segue procedimento diferenciado. O pedido pode ser fundado na imputação de algum fato que demonstre haver por uma das partes grave violação dos deveres do casamento, tornando insuportável a vida em comum, na ruptura da vida em comum por mais de um ano, havendo a impossibilidade de reconstituição do vínculoe ainda no caso de acometimento de doença grave.

A separação por culpa ou “separação-sanção”, como já exposto, ocorre quando houver violação dos deveres do casamento, ou ainda quando ocorrer algum dos casos estabelecidos pelo artigo 1573 do CC, sendo eles: adultério; tentativa de morte; sevícia ou injúria grave; abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo; condenação por crime infamante; conduta desonrosa.

Nota-se que apenas o disposto no art. 1572 já seria suficiente para os juristas interpretarem quais seriam as causas que levariam a separação, haja vista que já existia jurisprudência e doutrina pacificada sobre o tema. Diante dessa análise é possível concluir que qualquer ação que viole a fidelidade, a mútua assistência e a convivência poderá acarretar a ação de separação, observando, portanto, a inutilidade do artigo supracitado.

Na modalidade de separação litigiosa pela ruptura da vida em comum não há a necessidade de imputar culpa ao cônjuge. Silvio Venosa (VENOSA,

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2007, p. 177) defende que foi aderida pelo legislador, nesse caso, a teoria do divórcio-remédio, na qual a separação é concedida como remédio para uma situação e não como uma punição.

Essa modalidade tem apenas como requisitos que a ruptura da vida em comum tenha ocorrido há mais de um ano e que haja a impossibilidade de reconstituição. Esse prazo deve ser ininterrupto, porém prazos pequenos de afastamento do lar não descaracterizam a ininterrupção. No que concerne a ruptura da vida em comum, deve-se analisar que embora ela seja em regra caracterizada pelo afastamento físico entre os cônjuges, existem casos em que os cônjuges ainda residam no mesmo local, mas que esteja presente a ruptura entre o casal.

Há, ainda, outra modalidade de separação que ocorre sem causa culposa, é a separação quando um dos cônjuges estiver acometido de grave doença mental. É exigido pela lei, neste caso, que a enfermidade seja superveniente ao casamento, que torne a vida em comum insustentável e que tenha sido reconhecida de cura improvável, perdurando por mais de dois anos.

Essa modalidade de separação era alvo de muitas críticas pelos doutrinadores, pois estes acreditavam estar afrontando diretamente o dever de mútua assistência disposto no art. 1566 do Código Civil, pois um cônjuge estaria abandonando o outro no momento em que um deles mais necessitasse de assistência. Porém, como discorreu Silvio Venosa, “quando rompida a afeição do casamento ou quando um dos cônjuges decide romper o vínculo em razão de moléstia mental de outro cônjuge, é da mais absoluta inconveniência que seja mantida coercitivamente a união” (VENOSA, 2007, p. 179).

A ação de separação judicial litigiosa não possui dispositivos específicos no Código Processual Civil, assim como a ação de separação consensual. O art. 34 da lei de divórcio indica que o procedimento a ser utilizado é o ordinário, o qual se mostra o mais adequado para que os cônjuges possam exercer seu direito de defesa. Para que fosse formulado o pedido de separação litigiosa não era necessário qualquer prazo mínimo como no pedido de separação consensual, porém havia a necessidade de adequar-se em alguma das três modalidades citadas anteriormente, contendo como causa legal alguma das hipóteses do artigo 1572 do Código Civil.

Discorria-se acerca da necessidade de o juiz tentar realizar uma conciliação previamente ao andamento do processo, na forma da Lei 968/49 com o intuito de impedir que ocorresse a separação. Ficou contraditória a aplicabilidade dessa lei diante do advento do Código de Processo Civil em 1973, porém, muitos doutrinadores ainda defendiam a necessidade da audiência.

A sentença que homologa a separação, tanto a consensual quando a litigiosa, não põe fim ao casamento, apenas a sociedade conjugal. Ela produz os

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efeitos da separação de corpos dos cônjuges, e o fim do dever dos cônjuges de fidelidade recíproca e coabitação, a partir da data do trânsito em julgado. Após, será realizada a averbação da separação na certidão de casamento.

3 DIVÓRCIO ANTES DO ADVENTO DA EC 66/2010

A vantagem da separação sob o divórcio é a possibilidade do restabelecimento do vínculo conjugal, o que era muito recorrente. Diferentemente do que ocorre na separação, o divórcio, além de encerrar a sociedade conjugal, encerra o vínculo conjugal, sem possibilidade de seu restabelecimento. Para que seja possível restabelecer o vínculo entre duas pessoas que se divorciaram é necessário que elas se casem novamente.

Embora não haja a possibilidade de reconciliação após o divórcio, o legislador não deixou totalmente de lado a forte característica reconciliatória ao estipular as duas formas de divórcio, já que ambas necessitavam de prévia separação, seja ela de fato ou judicial. Havia duas modalidades de divórcio, quais sejam: divórcio por conversão e o divórcio direto.

O divórcio direto passou a ser possível a partir da Emenda Constitucional nº 9 de 1977. Porém, mesmo sendo possível, ele tinha aplicação muito restrita, visto que ficou estabelecido que apenas seria possível se o casal comprovasse em juízo que estava separado de fato há mais de cinco anos.

A restrição ao divórcio direto diminui com o advento da Constituição de 1988, que passou a dispor em seu art. 226, §6º que “o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio, após comprovada separação de fato por mais de dois anos”, havendo ainda a necessidade de comprovação do lapso de dois anos consecutivos.

Diante deste contexto, Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona Filho (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 82) afirmaram em sua obra:

O divórcio direto representaria inegável avanço no tratamento jurídico das relações afetivas casamentárias, pois permitiu que os integrantes de núcleos matrimoniais desfeitos pudessem mais rapidamente realizar seus novos projetos pessoas, junto a outros companheiros de vida. Com o advento da Constituição de 1988, os únicos requisitos presentes

para a possibilidade da propositura desta ação era que o casamento fosse válido e que fosse comprovado o lapso temporal de dois anos consecutivos.

A controvérsia se estabelecia para definir o que seria considerada separação de fato. Esse conceito não foi definido pelo Código Brasileiro, porém é possível localizar algumas definições no Direito Alienígena. Pablo Stolze trouxe algumas delas, citando as estabelecidas pela Alemanha e Portugal,

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sendo que ambos os países possuíam definições similares, estabelecendo que a separação de fato, ou vidas separadas estava presente quando não mais houvesse comunhão de vida entre os cônjuges, não havendo a vontade de restituí-la ou mantê-la, ou ainda, quando eles não vivessem mais em mesmo domicílio (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 85).

Dessa forma, diante da indefinição de um conceito para separação de fato, foram dadas interpretações diversas pela doutrina e pela jurisprudência acerca de como deveria ocorrer a separação das partes, para que fosse possível reconhecê-la como separação de fato. Uma das interpretações existentes enquanto ainda era vigente esse requisito temporal era a da não necessidade das partes coabitarem pra que fosse possível reconhecer a separação de fato. Para os adeptos desta corrente apenas era necessário que o casal demonstrasse que não possuía mais vida em comum, muito embora habitasse sob o mesmo teto. Ademais, encontros eventuais íntimos que as partes vierem a realizar também não descaracterizaria a separação de fato se desses encontros não sobreviesse a reconciliação.

Pablo StolzeGagliano e Rodolfo Pamplona Filho são defensores dessa tese. Discorreram que “breves encontros ou períodos em que o casal permaneceu junto ao longo desse prazo não são suficientes para impedir o reconhecimento da separação de fato e a falência da vida conjugal se não tiver havido conciliação” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2010, p. 87).

Entretanto outros autores possuíam outro posicionamento acerca do que seria necessário para que houvesse a separação de fato. Estes alegavam que era necessário que as partes não residissem mais no mesmo domicílio. Inácio de Carvalho Neto era um dos defensores desse posicionamento. Para ele não bastava os cônjuges apenas utilizassem cômodos diferentes na mesma residência. Ademais, em sua opinião, não é possível que as partes realizem encontros íntimos eventuais, pois isso descaracterizaria a continuidade dos dois anos de separação. Em suas palavras, “não se pode aceitar que no período que se pretende contar como de separação de fato tenham ocorrido encontros eventuais ou relações íntimas esporádicas” (CARVALHO NETO, 2008, p. 338).

Esses foram os dois posicionamentos que se formaram e que continuaram até a superveniência da emenda. Embora os defensores do segundo posicionamento supracitado possuíssem argumentos plausíveis, não há como ignorar o fato de que para algumas pessoas residirem em domicílios diferentes representa um custo elevado, o qual elas não podiam arcar, visto que deveriam responsabilizar-se pelas despesas de dois domicílios. Como foi possível verificar, muitos dos casais que pleiteavam o divórcio direto diante da separação de fato há mais de dois anos permaneceram residindo sob mesmo teto, para que fosse possível manter a condição social em que viviam. Não foram raras as vezes em que isto ocorria, sendo que muitas vezes as partes apenas passavam a morar em residências separadas quando encontravam outros companheiros.

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Assim como na separação, o divórcio direto poderia ser consensual ou litigioso. O procedimento observado na ação de divórcio direto consensual era o mesmo observado na separação judicial consensual, previsto nos artigos 1120 a 1124 do CPC. Havia aqui também a necessidade de duas audiências, a de apresentação dos cônjuges com o intuito de reconciliação e a de ratificação, quando frustrada a conciliação. Percebe-se aqui, mais uma vez a forte característica do sistema brasileiro de intervenção estatal com o intuito da manutenção dos casamentos.

Já o divórcio litigioso seguia o procedimento ordinário, assim como estabelecido no art. 40, §3º da Lei 6515/77, não havendo aqui as duas audiências supracitadas, visto que não seguia o disposto nos arts. 1120 a 1124 do CPC, mas sim a audiência de conciliação prevista art. 331 do CPC, bem como a audiência de instrução e julgamento, exatamente por se tratar de procedimento ordinário. Conquanto a audiência de conciliação não fosse obrigatória, era recorrente nas ações de divórcio litigioso e até hoje o é, no intuito de encerrar o litígio de forma mais satisfatória para ambas as partes. Como já citado anteriormente, apenas seria necessária a prova da separação de fato há mais de dois anos e, exatamente por isso Inácio Carvalho defendia a não possibilidade do julgamento antecipado da lide: “deve a prova ser produzida por documentos, testemunhas ou qualquer outro meio. Impossível, assim, o julgamento antecipado da lide, salvo, naturalmente, se a inicial já estiver instruída com prova absoluta da separação de fato” (CARVALHO NETO, 2008, p. 339).

A sentença para Hélio Borgui poderia ser de natureza constitutiva nos casos de divórcio litigioso ou declaratória nos casos de divórcio consensual (BORGUI, 2005, p. 310), porém para Yussef possuía natureza constitutiva (CAHALI, 2011, p. 963), independente de tratar-se de divórcio litigioso ou consensual. Com o trânsito em julgado, os ex-cônjuges deveriam averbar a sentença no Registro Público para que esta produzisse efeitos.

O divórcio por conversão era aquele em que se convertia a separação judicial transitada em julgado em divórcio. Para que ele ocorresse era necessário que tivesse decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença da separação ou da decisão que tivesse concedido medida cautelar de separação de corpos e também poderia ocorrer tanto de forma consensual quando litigiosa.Mesmo que a separação fosse consensual a conversão poderia ser litigiosa e isso se aplicava também ao inverso. Inácio de Carvalho Neto discordou da possibilidade de haver conversão da separação em divórcio decorrido um ano da decisão concessiva de medida cautelar de separação de fato quando a ação principal de separação ainda não tivesse sido encerrada diante da alegação de que a Lei de Divórcio em seu art. 31 proibia a decretação do divórcio se na separação judicial ainda não houvesse sentença definitiva, bem como diante do argumento

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que o próprio §6º do art. 226 da CF exige a prévia separação judicial por mais de um ano (CARVALHO NETO, 2008, p. 302-303).

Em caso de conversão litigiosa, o réu não poderia apresentar reconvenção e na sua contestação apenas poderia conter como fundamento a falta do decurso do tempo de um ano ou o descumprimento de obrigações assumidas pelo requerente na separação, de acordo com o art. 36 da Lei 6515/77. O impedimento da conversão neste segundo caso, na opinião de Inácio Carvalho Neto, tinha como intuito impedir que o cônjuge requerente descumpridor de suas obrigações constituísse nova família e continuasse a descumprir suas obrigações (CARVALHO NETO, 2008, p. 315). A sentença se limitaria a decretar a separação em divórcio que apenas não seria decretado se restasse comprovada alguma das situações alegadas pelo réu.

Se a conversão fosse consensual, seria adotado o previsto nos arts. 1120 a 1124 do Código de Processo Civil, assim como nos casos de separação consensual e de divórcio direto consensual. A petição deveria discorrer acerca da continuidade da guarda e das visitas dos filhos bem como da pensão alimentícia paga a eles ou ao cônjuge que necessitasse e da partilha de bens nos casos de não ter sido feita na ação de separação (BORGUI, 2005, p. 304). A sentença, em ambos os casos, deveria ser registrada em cartório para que produzisse seus efeitos.

4 A EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010: CAMINHO PERCORRIDO E FATORES ENSEJADORES

O casamento apresenta longa evolução ao longo dos anos, de puramente patrimonialista, com ideais patriarcais ou até da perpetuação da espécie, o caminho percorrido até que se chegasse à concepção do casamento como união de duas pessoas pelo afeto foi extremamente longo. Superada todas essas visões, que hoje são tidas como ultrapassadas, é de entendimento pacificado que duas pessoas que não mais desejam manter uma vida em comum não possuem motivo algum para permanecerem juntas.

Embora o divórcio e a separação tenham sido inseridos no ordenamento jurídico brasileiro em 1977, e que tenham passado por transformações importantes com o advento da Constituição Federal de 1988, o Estado não deixou de lado sua característica antidivorcista e especificou em lei vários obstáculos para a realização da separação e do divórcio, inserindo, ainda, várias formas de tentativa de reconciliação do casal.

Porém, em 2010, a dissolubilidade do casamento teve sua mais profunda alteração com a promulgação da Emenda Constitucional nº 66 de 2010, a qual alterou o conteúdo do §6º art. 226 da Constituição da República, no qual constava que “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por de um ano nos casos expressos em lei, ou

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comprovada separação de fato por mais de dois anos”, passando a constar “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”. Esta Emenda foi fruto das PEC’s nº 413/2005 e 33/2007 propostas pelos Deputados Antonio Carlos Biscaia e Sérgio Barradas Carneiro, respectivamente, até que se tornasse a PEC 28/2009 e, posteriormente a emenda 66/2010. Fruto das constantes mudanças da sociedade, ela foi apresentada primeiramente pelo IBDFAM ao então Deputado Antonio Carlos Biscaia para que fosse possível atender as necessidades sociais, que há muito haviam mudado, visto que estes institutos tiveram sua última alteração significativa em 1988.

As PEC’s 413/2005 e 33/2007, precursoras da PEC 28/2009, expuseram como motivos da emenda a inutilidade do instituto da separação judicial que fazia com que as partes passassem por dois processos judiciais, o que acarretaria um aumento das despesas e o prolongamento do sofrimento do casal. Ademais, utilizou-se do argumento de que essa providência evitaria com que os casais tivessem sua intimidade e vida privada trazida ao espaço público, o que segundo o Deputado Sérgio Barradas Carneiro, agravaria ainda mais as crises já existentes, dificultando o entendimento entre as partes.

Asseverou o Deputado, ainda, que não mais se justifica a duplicidade entre a dissolução da sociedade conjugal e a dissolução do vínculo conjugal que há época foi criada com o intuito de resolver o conflito existente entre os anti-divorcistas e os divorcistas. Alegou que não deve ser interesse do Estado verificar as causas que levaram a separação do casal, vez que o importa realmente é que se reguleos efeitos da separação, no caso de litígio, como as questões referente a alimentos, guarda dos filhos e partilha de bens, não sendo necessário para isso dois processos judiciais. Pleiteava-se, portanto, que houvesse a unificação dos dois institutos, para que restasse apenas o divórcio, fosse ele consensual ou litigioso.

Já o parecer da PEC 28/2009, de relatoria do então Senador Demóstenes Torres, possui argumentos diferenciados das PEC’s anteriores. Em sua análise, restringiu seus argumentos para a necessidade de abolir a imposição de prazos ou prévia separação para que seja possível a concessão do divórcio. Alegou que a possibilidade da retroatividade da data em que foi concedida a cautelar de separação de corpos para que a partir dela pudesse contar o prazo exigido para o pleito de divórcio e, ainda, a facilitação para dissolver a união estáveis já eram sinais que demonstravam que a lei não era tão rígida. Ademais, afirmou que a dilação do prazo para o requerimento do divórcio não faria com que as partes resolvessem os conflitos referentes aos alimentos, patrimônio ou em relação aos filhos. Discorreu que as mudanças da sociedade ao longo dos mais de 30 anos que se passaram desde o surgimento do divórcio modificaram a visão do casamento e também os anseios da sociedade, que não mais temiam que a possibilidade do divórcio acabasse com todos os casamentos e que a

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sociedade não permanecerá casada, apenas diante da existência dos prazos ou da existência do instituto do divórcio. Finalizou seu parecer argumentando que a manutenção dos prazos e condições para a concessão do divórcio afronta o princípio da proporcionalidade, pois acarreta ônus as partes, aduzindo que ao se retirar esses prazos não haveria prejuízo a ordem jurídica.

5 SEPARAÇÃO JUDICIAL APÓS O ADVENTO DA EC 66/2010

Diante da alteração ocasionada pela EC 66/2010, que há algum tempo já vinha sendo discutida, tendo em vista que a primeira PEC sobre o assunto datava de 2005, criou-se uma incerteza acerca da continuidade ou da extinção do instituto da separação. Doutrina e jurisprudência formaram duas correntes acerca do tema sendo que uma delas é seguida por Paulo Lôbo, Pablo Stolze e Maria Berenice Dias e muitos outros juristas, os quais defendem a extinção da separação no ordenamento jurídico brasileiro e a outra seguida por Yussef Cahali, Regina Beatriz Tavares da Silva e Arnaldo Rizzardo, os quais defendem a permanência do instituto da separação, porém com a supressão dos requisitos temporais do divórcio.

Discute-se a necessidade de analisar o mens legislatoris e o mens legis para que seja possível encontrar a melhor forma de interpretação para a aplicação de novo texto de lei. Diversos autores discorreram acerca dessas duas formas de interpretação.

Regina Beatriz Tavares da Silva (2011, p. 66), em análise ao parecer da PEC 28/2009 afirmou que os argumentos do Senador Demóstenes Torres estavam relacionados apenas aos prazos requeridos para o divórcio, indicando vários momentos em que ele apenas se referiu ao divórcio e não a separação:

Em suma, é dito e reiterado várias vezes no referido “parecer” que a emenda constitucional elimina os requisitos temporais do divórcio, sendo esta a única modificação que a EC n. 66/2010 operou, inclusive diante da mens legis (vontade da lei), regida por valores e princípios em interpretação sistemática, que sempre a mens legislatoris (vontade do legislador), por ser esta última munida de desconsiderável subjetivismo.

Yussef Cahali, apesar de criticar a interpretação segundo a mens legislatoris, manifesta-se neste mesmo sentido, o de que diante dos fundamentos da PEC é possível averiguar que eles diziam respeito a abolir do sistema a necessidade de prévia separação judicial para a posterior obtenção do divórcio, afirmando ser esta uma questão da qual não resta dúvidas ou controvérsias. Em suas palavras: “Não obstante a promiscuidade dos fundamentos pretendidos,

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substancialmente acenava-se com a desnecessidade da separação judicial para a obtenção do divórcio- questão a respeito da qual não remanesce qualquer dúvida” (CAHALI, 2011, p. 72).

Diante da redação do mencionado artigo que nada dispõe acerca da separação, completou ainda que:

A disposição constitucional em sua nova versão continua não tendo nenhuma pertinência com a separação legal, à qual agora nem ao menos faz referência, prevista aquela, como sempre esteve, a respectiva disciplina, de forma autônoma e exclusiva regulada na legislação ordinária. (CAHALI, 2011, p. 72)

Outrossim, afirmou que se a intenção dos legisladores era a de extinguir a separação e não apenas o divórcio-conversão, eles erraram ao justificar o Projeto, visto que o próprio relator informou que a finalidade da PEC seria a de “suprimir o requisito da separação como condição para o divórcio”(CAHALI, 2011, p. 72), sendo que esta e outras afirmações já mencionadas demonstram que “a supressão dos prazos feita pela EC não interfere em nada com a prerrogativa de um dos consortes de aforar ação de separação judicial contra o outro” (CAHALI, 2011, p. 73).

Cahali ainda discorreu acerca da impossibilidade da separação ser assunto tratado pela Constituição, defendendo a necessidade de ser tratada na Legislação Ordinária, e que diante disto não há que se falar em omissão do legislador constitucional, por nada ter dito acerca da separação, visto que a ele não o competia dizer, contrariamente ao divórcio, que necessitou de previsão constitucional para que fosse liberada a possibilidade da dissolução do vínculo conjugal, vez que a época predominava a indissolubilidade do casamento. Concluiu argumentando que as partes não podem deixar de ter o direito de opção pelo instituto da separação para dissolverem a sociedade conjugal, instituto o qual possui características próprias dispostas no Código Civil, diante da alegação da revogação tácita ou não receptividade, mesmo que o divórcio se mostre mais vantajoso para as partes. Vale ressaltar que “assim como ninguém está impedido de se divorciar, da mesma forma ninguém deve estar impedido de se separar apenas de fato ou judicialmente, se se considera como motivos para tanto” (CAHALI, 2011, p. 73).

Partícipe desta corrente doutrinária, Arnaldo Rizzardo (2011, p. 213)também disserta em sua obra acerca da permanência da separação judicial:

Embora seja contrário ao bom senso e se evidencie desarrazoada a opção pela separação judicial, prevalece o entendimento de sua permanência em nosso ordenamento, tanto na forma consensual como na litigiosa.

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Acontece que os institutos ‘separação judicial’ e ‘divórcio geram efeitos diferentes e encerram tipicidade própria.

Afirmou que a EC apenas aboliu a separação como requisito de divórcio, rechaçando o argumento utilizado pela corrente contrária de que a separação não está mais presente no ordenamento jurídico, pois não mais se encontra na Constituição da República. Na sua concepção, a qual se aproxima de Cahali, a separação nunca foi tratada pela Constituição e lá só esteve como prazo de referência para o divórcio.

Ademais, sustentou ser direito dos cônjuges poder escolher entre dissolver apenas a sociedade conjugal ou o vínculo conjugal, visto que a separação é o instituto que oferece a possibilidade de posterior reestabelecimento do vínculo conjugal, dando para as partes possibilidade de reconciliação, afirmando que a Constituição não obriga os cônjuges ao divórcio, visto que seu texto estabelece a possibilidade do mesmo (RIZZARDO, 2011, p. 213). Esta também é a opinião de Regina Beatriz Tavares da Silva (2011, p. 16) que defendeu:

Mas deve ser observado que a EC n. 66/2010 estabelece que o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio e não que deva ser desfeito somente por essa espécie dissolutória, mantendo-se, portanto, as demais espécies dissolutórias no ordenamento jurídico infraconstitucional.

Arnaldo Rizzardo discorreu ainda acerca da impossibilidade de um juízo se recusar a julgar o feito, exigindo que o mesmo seja convertido em divórcio, entretanto, salientou que se um dos cônjuges propuser uma ação de separação imputando-lhe culpa, este cônjuge a quem a culpa foi imputada poderá pleitear a conversão em divórcio, o que ocorrerá por ser este mais abrangente, não sendo possível a coexistência dessas duas ações (RIZZARDO, 2011, p. 213-214). Concluiu dispondo que “em suma não parece apropriado a tese que defende o afastamento da separação judicial no vigente sistema jurídico civil” (RIZZARDO, 2011, p. 212).

Defendem também a manutenção da separação no ordenamento jurídico brasileiro Pedro Paulo Filho e Guiomar A. de Castro Rangel Paulo. Discorrem que a redação do §6º do art. 226, ao constar a expressão “pode ser dissolvido pelo divórcio” possibilita escolha, pois, caso não fosse essa a intenção, deveria constar a expressão “o casamento será dissolvido pelo divórcio”, tendo este parágrafo, ainda, deixado de dispor acerca da extinção da separação. Alegam que o legislador buscou com a EC 66/2010 abolir os prazos para que fosse possível pleitear o divórcio, fazendo-o de forma errônea, sendo que o que ocorreu foi a desvinculação do divórcio da separação, porém permanecendo a

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coexistência entre ambos, já que um extingue o vinculo conjugal e o outro apenas a sociedade conjugal. Ademais, aduziram que “ao eliminar apenas o aspecto condicional para o divórcio, a Constituição Federal garantiu às pessoas naturais o direito de optar, apenas, pelo fim da sociedade conjugal ou o rompimento absoluto do casamento” (PAULO FILHO; RANGEL PAULO, 2011, p. 176). Por derradeiro, afirmaram que “considerar que a separação foi extinta seria impor ao cidadão o rompimento absoluto do vínculo matrimonial, cerceando o direito de reconciliação e de manter a situação jurídica de casado, conforme previsto no Código Civil” (PAULO FILHO; RANGEL PAULO, 2011, p. 176).

Esta é também a opinião de Luis Felipe Brasil. Para sustentar sua opinião traz os conceitos de constitucionalidade formal e material, declarando ser esse o caso do texto alterado pela EC 66, realizando uma retrospectiva histórica para comprovar o alegado, salientando o fato de que o desquite foi instituído pelo Código Civil de 1916, porém, não passou a ser assunto tratado pela Constituição até que fosse promulgada a Constituição de 1934 quando inseriu o princípio da indissolubilidade do vinculo matrimonial, acrescentando um parágrafo acerca do desquite e que nas Constituições posteriores, de 1937, 1946, 1967, deixou de ser tratada novamente, permanecendo, entretanto, na legislação ordinária. Alegou que o desquite ao deixar de ser tratado pelas Constituições posteriores a de 1934 não foi considerado abolido do ordenamento jurídico, e isso pelo motivo dele permanecer na legislação ordinária. Destacou que apenas com a EC nº 09/77 foi afastado o princípio da indissolubilidade da Constituição e inserido o divórcio, sendo, porém, estabelecido o requisito de prévia separação judicial para que pudesse ser concedido o divórcio, o que ocorreu de forma a solucionar o conflito entre divorcistas e anti-divorcistas. Salientou que esse foi o único motivo para a separação ter sido reintroduzida na Constituição. Concluiu, afirmando que diante do exposto é possível verificar que a simples retirada do texto da Constituição das condições para a concessão do divórcio não significam que tenham sido automaticamente abolidas, apenas que se abriu a porta para que ocorram mudanças e que “tal modificação é imprescindível e, enquanto não ocorrer, o instituto da separação judicial continua existente” (BRASIL, 2010).

Entretanto, como já exposto, essa não é a única interpretação dada aos efeitos da EC. Outra parcela da doutrina e da jurisprudência possui o entendimento de que a EC trouxe dois efeitos principais: extinção da separação e extinção da exigência de prévia separação, sendo ela judicial ou de fato para o pedido de divórcio.

Paulo Lôbo, adepto desta corrente, discorda da interpretação literal da norma, sendo defensor de uma interpretação “histórica, sistemática e teleológica da norma” (LÔBO, 2011, p. 150). Alega que se fosse feita a interpretação literal

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da norma, seria possível aceitar o argumento de que a separação ainda é possível, diante da não revogação dos artigos a ela dedicados presente no Código Civil, visto que a Constituição não a revogou expressamente. Todavia, ensina que quando se está diante de duas interpretações possíveis, a interpretação correta a ser feita é aquela que dê mais efetividade a norma.

Argumenta que a Constituição deixou de tutelar a separação e que, portanto, não pode permanecer norma infraconstitucional que legisle sobre ela, diante da incompatibilidade que isso representaria perante a Constituição que hoje apenas permite a dissolubilidade do vínculo conjugal, ocasionando consequentemente a impossibilidade de se dissolver apenas a sociedade conjugal, visto que isso apenas era possível através da separação judicial. Afirma não ser possível realizar interpretação de forma extensiva para algo que a própria Constituição restringiu muito menos que possa a norma infraconstitucional prevalecer sobre a norma constitucional, a qual previa algo sobre determinado assunto, e que posteriormente tenha sido excluído pela mesma.

Em relação à interpretação teleológica da norma, que ao seu ver deve ser realizada em consonância com o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, alega que a norma tem como fim social: “permitir, sem empeços e sem intervenção estatal na intimidade dos cônjuges, que estes possam exercer com liberdade seu direito de dissolver a sociedade conjugal, a qualquer tempo e sem precisar declinar os motivos” (LÔBO, 2011, p. 151), alegando ainda que a separação não teria fim social por não poder ser convertida em divórcio, bem como por não poder alcançar a dissolução do vínculo conjugal.

Paulo Lôbo também argumenta a favor da extinção da separação afirmando que não se deve pensar no interesse individual de cada cônjuge, que queira usar da separação com o intuito de punição, imputando culpa ao outro cônjuge, pois deve-se intentar o bem comum disposto também no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, e a imputação de culpa pode resultar em ressentimentos e complicar o relacionamento pós-conjugal, o que consequentemente atingiria aos filhos. A discussão da culpa poderia acarretar, ainda, a violação dos princípios constitucionais da intimidade e da vida privada e ir contra a evolução do direito brasileiro que quer demonstrar que a culpa foi aos poucos perdendo as consequências jurídicas antes existentes para basear decisões acerca do não deferimento de guarda ao cônjuge culpado, partilha de bens e cálculo para pensão alimentícia (LÔBO, 2011, p. 151-154). Argumento o qual é completamente contrário ao de Regina Beatriz Tavares da Silva (2011, p. 63), que acredita não poder ser extinto o modelo se separação baseada na culpa defendendo que:

Nenhum membro da sociedade brasileira, em sã consciência, pode considerar justa e adequada a eliminação da espécie dissolutória culposa, que se baseia no grave descumprimento de dever conjugal (Código Civil, art. 1.572, caput).

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A eliminação da espécie culposa levaria à atribuição de pensão alimentícia plena a quem tivesse descumprido gravemente os deveres conjugais, pensão esta que compreenderia não somente os alimentos indispensáveis ou mínimos previstos (...)

Pablo StolzeGagliano coaduna com o pensamento de Paulo Lôbo e expõe como ponto fundamental da Emenda Constitucional a extinção da separação judicial, já que para ele, o divórcio se apresenta muito mais vantajoso, tanto do ponto de vista jurídico, psicológico e econômico, afastando o argumento favorável de que a separação admite a reconciliação, sob alegação de que se as partes assim quiserem, podem se casar novamente, e que mesmo assim, o divórcio apresenta-se muito mais vantajoso que a separação judicial. Justifica que as reconciliações não são muito recorrentes e que a quantidade de reconciliações nem se aproxima do número de conversões de separações em divórcio.

Defende que houve a revogação da separação pela não recepção da mesma com a consequente revogação dos arts. 1.572 a 1.578, “perdendo sentido também” os arts. 1571 e 1580 e ainda, informa sua concordância em relação à alegação de que ocorreu uma inconstitucionalidade superveniente das normas ordinárias referentes à separação judicial. Dispõe que:

Em síntese, com a nova disciplina normativa do divórcio, encetada pela Emenda Constitucional, perdem força jurídica as regras legais sobre separação judicial, instituto que passa a ser extinto do ordenamento brasileiro, seja pela revogação tácita (entendimento consolidado pelo STF), seja pela inconstitucionalidade superveniente com a perda da norma validante (...) Pensar em sentido contrário seria prestigiar a legislação infraconstitucional, em detrimento da nova visão constitucional, bem como da própria reconstrução principiológica das relações privadas (GAGLIANO; PAMPOLHA, 2011, p. 59).

Maria Berenice Dias também segue esse posicionamento, utilizando de argumentação que se aproxima dos autores já mencionados. Defende que alteração superveniente de texto da Constituição “enseja a automática revogação da legislação infraconstitucional incompatível” (DIAS, 2010, p. 30). Ressalta que não é possível defender a manutenção do instituto pelo simples fato de constar do dispositivo constitucional a expressão “pode”, sob o argumento de que ainda existem dispositivos na legislação infraconstitucional que dispõe acerca da separação, citando como exemplos as ocasiões em que a CF consagrou o princípio da igualdade entre homem e mulher e quando vedou discriminação relativa à filiação, ocasiões nas quais foram derrogadas as leis infraconstitucionais que

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discorriam acerca disso, porém, permanecendo no Código Civil sem qualquer eficácia. Asseverou que não é possível permanecer o instituto da separação para que se mantenha a imputação de culpa a um dos cônjuges, sob o argumento de que a fixação de alimentos está atrelada a ela, tendo em vista que isto diz respeito exclusivamente ao âmbito dos alimentos, não podendo impedir a decretação do divórcio. Discorreu, ainda, que no caso de haver duvidas acerca do divórcio “tanto a separação de fato como a separação de corpos preservam o interesse do casal” (DIAS, 2010, p. 31), bem como que a extinção da separação traz “economia de tempo, dinheiro e desgaste emocional não só dos cônjuges, mas principalmente de sua prole” (DIAS, 2010, p. 33), e que, desta forma, extinguir a imposição de culpa resguarda a relação entre pais e filhos, diminuindo a interferência estatal e respeitando a autonomia e o princípio da liberdade.

Rodrigo de Cunha Pereira também faz parte desta corrente. Afirma que não há razão pela permanência do instituto da separação, pois este gera mais despesas, problemas emocionais aos cônjuges e congestionamento no judiciário. Em sua opinião, a mudança do texto constitucional que supriu a separação como requisito para o divórcio, fez com que ela fosse extinta do ordenamento jurídico, alegando que não é possível sua permanência, pois “a legislação infraconstitucional não pode ter uma força normativa maior que a própria Constituição” (PEREIRA, 2011, p. 29) e que, portanto, diante da saída da separação do dispositivo constitucional não há como esta continuar a ser aplicada pelo simples fato de permanecer na legislação infraconstitucional, vez que ocorreu uma não recepção. Defende que a interpretação da nova redação do dispositivo constitucional deve ser feita de forma contextualizada, bem como finalista, asseverando que, neste caso, não se vê razão para a manutenção da separação já que ela não pode ser convertida em divórcio, perdendo sua função e seu fim social. Discorre, ainda, acerca da necessidade de se analisar o mens legislatoris da PEC, sendo possível encontrá-lo em sua exposição de motivos, de forma a chegar a conclusão de que se objetivava exatamente extinguir a separação.

Apesar de boa parte da doutrina e jurisprudência defender a extinção da separação, entende-se pela permanência desta no ordenamento jurídico brasileiro. A EC 66/2010 representa inegável avanço no direito brasileiro ao extinguir a modalidade divórcio por conversão e suprimir os prazos para o divórcio direto, possibilitando aos cônjuges que pleiteiam o divórcio, uma forma mais simples e célere de dissolver o casamento, sem que para isso precisem passar por prévio processo judicial, declinar motivos, ou comprovar que estão separados de fato. Porém, esses são os únicos efeitos possíveis decorrentes da emenda, não sendo possível alegar a extinção da separação judicial, entretanto diversos são os argumentos para defender essa tese, assim como já exposto.

Sabe-se que a separação, apesar de ter surgido com apenas em 1977, era instituto já presente no ordenamento jurídico desde 1916, com o advento do

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Código Civil, todavia utilizava-se da denominação desquite. Este, que tinha como objetivo a dissolução da sociedade conjugal, foi criado e regulamentado pela legislação infraconstitucional e assim permaneceu, sem qualquer menção na Carta Magna. Já o divórcio foi regulamentado pela Constituição de 1934, de forma a impedi-lo, instituindo o princípio da indissolubilidade do casamento. E assim permaneceu por muitos anos até o advento da EC 9/77 que afastou o princípio da indissolubilidade do casamento, introduzindo sua possibilidade após prévia separação judicial ou se comprovada separação de fato pelo prazo de cinco anos anterior a data da emenda. Diante disto é possível averiguar que o divórcio possui natureza constitucional, diferentemente da separação, que possui natureza infraconstitucional, vez que esta, apenas passou a fazer parte da Constituição para servir como prazo de referência para a concessão do divórcio, o que não mudou com o advento da Constituição vigente, tendo em vista que, novamente, lá apenas permaneceu para servir de prazo de referência ao divórcio. Esta a razão pela qual não se pode concordar com o argumento de que ao sair da Constituição a separação foi extinta, vez que ela não é, e nunca foi assunto tratado pela Constituição, não sendo possível admitir o argumento de que houve uma revogação ou até inconstitucionalidade superveniente do instituto. Não mais sendo necessária como requisito ao divórcio, não mais fazia sentido sua permanência no texto constitucional, haja vista que foi suprimida a razão pela qual lá foi inserida.

Ademais, não é possível prosperar a alegação de que a separação perdeu sua finalidade, assim como alega Rodrigo da Cunha Pereira, qual seja; a conversão em divórcio. A finalidade da separação, diferentemente do que defende o autor, não é ser convertida em divórcio, mas sim dissolver a sociedade conjugal. Ela é instituto próprio e produz efeitos distintos do divórcio, sendo o único instituto que possibilita o reestabelecimento da sociedade conjugal. Além disso, deve ser levado em consideração que é direito das partes a escolha entre dissolver o vínculo conjugal ou apenas a sociedade conjugal, exatamente por produzirem efeitos distintos. Embora possa parecer mais vantajoso o divórcio aos olhos de muitos, esta é uma escolha que cabe às partes, já que estas podem possuir os mais diversos motivos para preferir a utilização deste instituto. Outrossim, ao constar no §6º do art. 226 “o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio” dá-se às partes a possibilidade de dissolvê-lo desta forma, não obrigando-as a utilizar deste instituto.

Por derradeiro, no que tange a mens legislatoris, em análise as duas PEC’s anteriores as que deram ensejo a PEC 28/2009 é possível perceber que a mens legislatoris era eliminar a necessidade de separação prévia para que fosse possível a concessão do divórcio, e ainda, unificar os dois institutos em um só, para que dessa forma os cônjuges não precisassem mais passar por dois processos judiciais. A PEC 28/2009 não se afastou do ideal de eliminar

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os requisitos para a concessão do divórcio, porém, o Senador falhou em mencionar o que deveria ocorrer com o instituto da separação, discorrendo sobre ela apenas para o caso de eliminar a obrigatoriedade de antes ocorrer a separação e apenas posteriormente fosse possível pleitear o divórcio, de forma a demonstrar que sua intenção era apenas a de retirar os prazos do divórcio do nosso ordenamento jurídico e não a separação.

Portanto, conclui-se pela permanência do instituto da separação no ordenamento jurídico brasileiro em suas três espécies, separação judicial com causa culposa, por acometimento de doença grave ou por ruptura da vida em comum, sendo que todas continuarão seguindo o mesmo procedimento, sobre o qual se discorreu no capítulo 2. Entende-se estar derrogado apenas o art. 1580 do Código Civil.

Diante da redação atribuída pela EC, no que tange as ações de separação em andamento, a elas devem ser dado regular prosseguimento ao feito, vez que se concluiu neste trabalho pela permanência do instituto da separação. Entretanto, poderá ser convertida em divórcio a demanda quando o autor pleitear e se for também interesse do réu.

No que diz respeito ao reestabelecimento da sociedade conjugal de cônjuges já separados, entende-se que é possível, isto inclusive para aqueles que para aqueles que defendem a extinção do instituto da separação, vez que o que o casal mantém a qualquer tempo o direito de buscar o reestabelecimento da sociedade conjugal, assim como estipulado no artigo 1.577 do Código Civil. Está é a opinião de Maria Berenice Dias que asseverou “como persiste na íntegra a sociedade conjugal de quem está separado judicialmente, nada impede a reconciliação, com o retorno ao estado de casado” (DIAS, 2010, p. 133).

6 DIVÓRCIO APÓS O ADVENTO DA EC 66/2010

Em contraposição a divergência que a EC 66 criou em relação à separação, em relação ao divórcio ela não deixou dúvidas. É de entendimento pacificado que a EC extinguiu a modalidade de divórcio-conversão, porém aqueles já separados poderão realizar a conversão em divórcio?

As partes já devidamente separadas judicialmente mantêm seu status jurídico, porém não será possível utilizar-se do modelo de conversão de separação em divórcio. Esta é a opinião de Cahali, que bem asseverou que isto ocorre diante da impossibilidade de postular “ad aeternum a conversão da separação em divórcio” (CAHALI, 2011, p. 911), pois “seria o mesmo que reconhecer a existência de um direito adquirido (direito à conversão) contra a Constituição” (CAHALI, 2011, p. 911), logo, querendo as partes separadas judicialmente se divorciar, devem utilizar-se do divórcio direto. Paulo Lôbo

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possui o mesmo posicionamento, afirmando que se as partes quiserem o posterior divórcio, também não poderão se utilizar da conversão, pleiteando o divórcio com a necessidade de trazer a tona todas as cláusulas já discutidas em sede de separação, como se ainda não tivessem sido discutidas.

Restou, portanto, apenas a modalidade de divórcio direto no ordenamento jurídico brasileiro para se obter a extinção do vínculo conjugal judicialmente, a qual apresenta como único requisito a comprovação de casamento válido para que possa ser pleiteado. Já em 2002, com advento do Código Civil, que estabeleceu em seu art. 1580, §2º que o divórcio poderia ser requerido se comprovada separação de fato por mais de dois anos ou comprovação de prévia separação, deixou de ser necessária a demonstração de violação dos deveres de casamento e com a referida emenda foram extintos os requisitos de prévia separação de fato ou separação judicial. O divórcio passou a depender apenas da vontade das partes em não mais dividirem uma vida juntos. Assim, o divórcio passou a ser um instituto muito mais simples almejando a possibilidade de maior celeridade, já que não há a necessidade de comprovação de lapso temporal e nem a necessidade de se encontrar o culpado pelo divórcio.

Permanecem as duas formas de divórcio direto existentes, a consensual e a litigiosa, pois, mesmo que não possa ser discutida a possibilidade do divórcio, no que tange os efeitos do divórcio como a guarda dos filhos, alimentos e partilha de bens, muitas vezes as partes não chegam num consenso, justificando-se aí o divórcio litigioso.

O divórcio consensual continuou seguindo o disposto nos artigos 1120 a 1124 no que não conflitar com o novo texto constitucional. Extinguiu-se a necessidade da audiência presente no artigo 1122 do CPC, não sendo mais necessária a comprovação do lapso temporal de separação de fato. No que tange o procedimento, após a análise da petição inicial os autos serão enviados ao Ministério Público para emissão de parecer, o que não será necessário no caso de não haverem filhos menores, e posteriormente ao juiz para proferir decisão, seguindo, após, o que também já foi disposto.

O divórcio litigioso deve seguir o procedimento ordinário, assim como estabelecido pelo art. 40, §3º da Lei do Divórcio. Independente de qualquer causa e de lapso de tempo, deixou de ser necessária a produção de prova testemunhal para a comprovação da separação de fato. Após o recebimento da ação de divórcio litigioso o réu será citado e o prosseguimento do feito ocorrerá assim como estabelecido no CPC entre os artigos 282 e 475-R. A prolatação da sentença e seus efeitos não foram alterados com o advento da EC.

Existe ainda a possibilidade de divórcio e separação ocorrerem pela forma extrajudicial. Isto foi possível diante da promulgação da Lei 11.441/2007 que introduziu no Código de Processo Civil o art. 1124-A, e com ele a possibilidade da separação e o divórcio consensual ocorrerem extrajudicialmente, por meio de

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escritura. Isso é possível no caso do divórcio ou da separação serem consensuais, sendo que as partes não podem ter filhos menores de idade ou incapazes.

Ambos são realizados por meio de escritura pública, na qual devem constar questões concernentes à partilha dos bens, dos alimentos a serem pagos, bem como disposição acerca do uso do nome estabelecendo se quem aderiu ao sobrenome do cônjuge voltará a utilizar o nome de solteiro ou manteria o nome de casado.

É possível verificar, portanto, que a alteração mais profunda e importante advinda da EC 66/2010 foi a eliminação de prévia separação judicial, extinguindo a modalidade de divórcio por conversão, ou da prévia separação de fato por mais de dois anos, fazendo com que o divórcio direto, hoje a única forma possível de dissolução de vínculo conjugal pela forma judicial, seja de mais fácil aplicação e cause menos danos pelas partes, seja pelo decurso do tempo para que possa ser pleiteado, ou pelo decurso do tempo para que seja concedido, vez que havia a necessidade de comprovar a separação de fato.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo abordou as formas de dissolução do casamento,

analisando-as antes e depois do advento da EC 66/2010, a qual foi promulgada para facilitar a dissolução do casamento, entretanto acabou criando grande divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da permanência ou extinção do instituto da separação, formando duas correntes acerca do tema.

Concluiu-se, neste artigo, que a dissolução do casamento pode ocorrer apenas em relação à sociedade conjugal, no caso da separação, ou de forma a dissolver vínculo conjugal, no caso do divórcio. Porém, este não é entendimento pacificado, já que parte da doutrina e jurisprudência defende não mais existir a possibilidade da dissolução apenas da sociedade conjugal devido a extinção do instituto da separação. Apesar de expressivos os argumentos dos defensores da extinção da separação após a EC 66/2010, entende-se que não ocorreu esta extinção, ainda havendo a possibilidade das partes optarem pelo divórcio ou pela separação, tanto diante da mens legis, da mens legislatoris, quanto diante de análise da natureza de ambos os institutos, compactuando-se do pensamento de que não se mostra razoável não possuírem as partes direito a escolher entre esses dois institutos.

Ademais, no que diz respeito ao divórcio, é fato incontroverso que a Emenda extinguiu a modalidade divórcio por conversão, passando a existir apenas a possibilidade do divórcio direto, sem a necessidade de comprovar prévia separação judicial ou separação de fato, facilitando sobremaneira a concessão do divórcio para aqueles que não mais possuem vontade de terem uma vida em comum. Há ainda a possibilidade de se utilizar do divórcio extrajudicial, no caso de comum acordo entre as partes e da inexistência de filhos menores.

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RESPONSABILIDADE CIVIL NO TRÂNSITO

LIABILITY IN TRAFFIC

DaniEllE ElEutérioGraduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

joSé mário tafuriPossui graduação em Direito pela Universidade São Francisco (1986), especialização em Direito Tributário e Processual Tributário pela Pon-tifícia Universidade Católica do Paraná (1997) e mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003). Tem experiên-cia na área de Direito, com ênfase em Direito Civil

RESUMO

O presente trabalho busca demonstrar que a Responsabilidade Civil constitui um dos campos de grande incidência no direito, cujo desenvolvimento amadureceu e trouxe rica literatura. A responsabilidade civil está presente em todos os acontecimentos e fatos do cotidiano. Trata do responsável na situação de quem, por ter violado determinada norma, vê-se exposto a conseqüências não desejadas decorrentes de sua conduta danosa, podendo ser compelido a restaurar o status quo ante. Com o crescimento das cidades e a complexização da sociedade, uma das áreas em que a casuística da responsabilidade civil assumiu grandes proporções foi no campo automobilístico. Aumentou consideravelmente o número de litígios, e com isso, a necessidade de se encontrar soluções e teorias mais específicas. Quando se trata de acidentes de trânsito, acontecem tanto danos patrimoniais, como morais, físicos, estéticos, e às vezes por morte. A restauração do dano pressupõe uma recomposição ao seu estado de origem, em decorrência da perda do valor econômico do bem que sofreu violação. Não sendo admissível a reconstituição parcial do patrimônio violado, a vítima fará jus a uma compensação com o propósito de restabelecer o status quo ante ou, ainda, recompor equitativamente o que se perdeu.

Palavras chave: Responsabilidade Civil, culpa, dano, prejuízo, restituição, acidente, trânsito.

ABSTRACT

This paper seeks to demonstrate that the Liability is one of the major fields affect the right, whose development has matured and brought rich literature. The

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liability is present in all the events and facts of everyday life. It’s the situation of those responsible for having violated certain norm, we see exposed to unintended consequences arising from their misconduct and may be compelled to restore the status quo ante. With the growth of cities and complexização society, one of the areas where the casuistry of liability was assumed large proportions in the automotive field. Greatly increased the number of disputes, and with it, the need to find solutions and more specific theories. When it comes to traffic accidents, property damage occur both as moral, physical, aesthetic, and sometimes death. The restoration of the damage requires a restoration to its original state, due to the loss of the economic value of the good that has suffered violation. Not being admissible partial reconstitution heritage violated, the victim will be entitled to compensation for the purpose of restoring the status quo ante, or even rebuild what was lost fairly.

Keywords: Liability, blame, hurt, injury, recovery, accident, traffic.

1 INTRODUÇÃO

Na vida corrida que temos atualmente, a utilização dos veículos automotores se faz quase que obrigatória, para os que financeiramente podem arcar. Ocorre que, com o aumento descontrolado de veículos trafegando, a falta de estrutura para receber esses veículos e de informação da população a respeito das leis de trânsito tornam maiores os números de acidentes e problemas oriundos desse crescimento urbanístico exacerbado.

Desta forma, onde a casuística da responsabilidade civil assumiu grandes proporções foi no campo automobilístico.

O trânsito possui escopo legislativo em Lei Especial, Lei n° 9.503 de 23 de setembro de 1997, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, onde se localizam as diretrizes e normas.

A dicotomia entre as leis e a realidade jurisprudencial no que tange a responsabilidade civil no trânsito dá origem a divergências doutrinárias e jurisprudenciais.

O instituto responsabilidade Civil está previsto no Código Civil, Lei n° 10.406 de 10 de janeiro de 2002, na Parte especial, Livro I, do Direito das Obrigações, no Título IX, da Responsabilidade Civil, mais precisamente nos artigos 927 a 954. Também é acolhido pelo Código de Defesa do Consumidor, pelo Código de Trânsito Brasileiro e outras legislações competentes.

Trata-se de uma garantia aos cidadãos serem indenizados pelos danos, prejuízos, lucros cessantes e indenização moral, a favor de quem foi prejudicado, contra quem objetivamente ou subjetivamente responde.

Entende-se que todas as vezes que o Estado deixa de cumprir suas obrigações com relação ao trânsito, como na manutenção das vias de tráfego, na

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atualização da sinalização, na falta de fiscalização e educação no transito, tem o dever de reparar os danos sofridos pelo particular. Em muitos casos o Estado se omite e não assume a responsabilidade de indenizar o lesado. A inércia do lesado em procurar solução e a imensa dificuldade de se provar culpa do Estado são alguns dos fatores que contribuem para a não reparação do dano causado.

Umas das soluções seria a inversão do ônus da prova, ou seja, fazer com que o Estado prove que não tenha culpa. O cidadão, na maioria das vezes, é hipossuficiente em relação ao Estado. lsto posto, analisaremos o referido tema a fim de descobrir qual é a forma mais célere, justa e legal de garantir a indenização devida, se é que ela existe.

2 DA RESPONSABILIDADE CIVIL

A palavra responsabilidade se origina da raiz latina spondeo, através da qual se vinculava o devedor, solenemente, nos contratos verbais do direito romano.

O instituto da responsabilidade civil está inserido no direito das obrigações, pois se o agente infrator praticar um ato ilícito acarretará uma obrigação de reparar o dano, dever de natureza pessoal, resolvida em perdas e danos.

Sempre que se praticar um ato ou omissão em que o resultado seja um dano, o agente infrator deve suportar as consequências. Trata-se de um regramento fundamental para haver equilíbrio social. A responsabilidade é, portanto, um fenômeno social.

A norma jurídica regula as ações humanas não no sentido individualista, mas de modo geral, impondo-a a todos os membros da sociedade.

Maria Helena Diniz (1992, p.29) traduz responsabilidade civil como sendo “a aplicação de medidas que obriguem uma pessoa a reparar algum dano moral ou patrimonial ocasionado por terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem responde, por algo que lhe pertença ou por simples imposição legal”.

A regra básica está prevista no artigo 186 do Código Civil brasileiro, que reza: “aquele que por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem”, ou seja, aquele que causar qualquer tipo de prejuízo a outra pessoa tem a obrigação de ressarcir o prejuízo causado.

A responsabilidade Civil está prevista no Código Civil, Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na Parte especial, Livro I, do Direito das Obrigações, no Titulo IX, da Responsabilidade Civil, Artigos 927 a 954. Também está abrigado pelo Código de Defesa do Consumidor e outras legislações competentes.

Trata-se de uma garantia aos cidadãos, pessoas jurídicas, inclusive o Estado, para receber indenizações pelos prejuízos, lucros cessantes e indenização moral, a favor de quem foi prejudicado, contra quem objetivamente ou subjetivamente responde.

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Veja-se, a propósito, o magistério de Carlos Roberto Gonçalves (2011. p. 27):

[...] A responsabilidade civil decorre de uma conduta voluntária violadora de um dever jurídico, isto é, da prática de uma to jurídico, que pode ser lícito ou ilícito. Ato jurídico é espécie de fato jurídico. Fato jurídico, em sentido amplo, é todo acontecimento da vida que o ordenamento jurídico considera relevante no campo do direito. Os que não tem repercussão no mundo jurídico são apenas “fatos”, dos quais não se ocupa o direito, por não serem “fatos jurídicos”.

O artigo 186 do Código Civil Brasileiro dispõe a regra fundamental da responsabilidade civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Em nossa vida social, a responsabilidade civil está em tudo que fazemos, seguimos o tempo todo regras impostas pela própria sociedade com a finalidade de manter a paz e a ordem social. E quando um membro desta sociedade descumpre um regramento, e lesiona material ou imaterialmente a outrem, a ele será imposta uma penalidade.

Não se pode discutir que o princípio da responsabilidade por si só já é uma conquista para o ordenamento jurídico. Mas é insuficiente. A vida social encontra-se cada vez mais complexa, onde o anseio de uma justiça ideal não satisfaz proclamar apenas que o sujeito responde pelo dano que causa a outrem, ou pela indenização que deve pagar, como no caso em que a extensão da responsabilidade vai além da pessoa do ofensor, seja juntamente com este, seja independentemente dele, é o caso da responsabilidade indireta, quando se responde pelas consequências do ato alheio.

Nosso Código de Trânsito Brasileiro, Lei número 9.602 de 21.01.1998, reza em seu artigo 10, parágrafo 2°: “O trânsito, em condições seguras, é um direito de todos e dever dos órgãos e entidades componentes do Sistema Nacional de Trânsito, cabendo, nas respectivas competências, adotar as medidas destinadas a assegurar esse direito”.

A ordem jurídica normatiza direitos e deveres que devem ser cumpridos por toda a sociedade. Quando uma norma é descumprida, pode-se dizer que se está ao violando um direito, tendo o autor da infração a obrigação de reparar todo e qualquer dano produzido por decorrência da inobservância do dispositivo legal. Ou seja, toda vez que um membro da sociedade descumpre uma regra anteriormente estipulada, está cometendo uma infração. Essa idéia de que um regulamento foi violado é a noção de antijuricidade. Importante se faz verificar se há excludente que justifica a antijuricidade.

Podemos citar como exemplo o motorista, que, mesmo conhecendo a lei de trânsito, avança o semáforo vermelho. Se esta infração ocasionar um

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prejuízo a alguém, além do ato infracional, existe também, nessa situação o dever de indenizar.

Há a antijuridicidade objetiva, que se refere àquela que independe da vontade do agente, há prejuízo, mas sem culpa do indivíduo.

Quando se trata de um ato ilícito subjetivo, pode-se dizer que sempre é consequência de um ato voluntário, quando o indivíduo quebra alguma regra pré-estabelecida pela ordem social.

A ação que viola um regramento pode ser com dolo, quando há intenção de prejudicar alguém, de cometer um ato infracional ou com culpa, situação em que não há vontade do agente.

A conduta antijurídica se realiza com o comportamento contrário ao direito, provocando o dano. A formação do nexo causal entre aquela conduta e a lesão provocada enseja a responsabilidade.

Imputabilidade do Agente é o conjunto de condições pessoais que tornam o agente capaz e consciente para responder pelas consequências de um ato infracional.

Para se caracterizar a imputabilidade não basta a conduta do agente, mas se faz necessário também que o ato comissivo ou omissivo sejam frutos da vontade livre e capaz. Dessa forma, diz-se imputável a pessoa com capacidade natural para prever os efeitos e medir o valor dos atos que pratica e para se determinar de acordo com o juízo que se faca deles.

Pela teoria da responsabilidade subjetiva, apenas é imputável, a título de culpa aquele que praticou o fato culposo possível de ser evitado. Não existe responsabilidade nos casos em que o indivíduo não tinha a intenção nem podia prever, se agiu, claro, com a devida cautela.

A imputabilidade se concretiza quando o comportamento do sujeito se exterioriza com a transgressão deliberada das regras impostas pelo regramento social e jurídico. Comportamento esse que pode acontecer voluntariamente, com dolo, ou culposamente, com negligência ou imprudência, ou seja, é necessário que o fato lesivo seja voluntário, que se impute ao agente por meio de uma ação ou omissão voluntária, ou então aja com negligência ou imprudência.

Segundo a teoria clássica, a responsabilidade civil possui três pressupostos: dano, culpa e a relação causal entre o fato culposo e esse dano. Mas nos primórdios da humanidade não se cogitava do fator “culpa”. O dano provocava uma reação instantânea, instintiva e violenta do ofendido. O direito não existia, o que havia era uma vingança pessoal e sem limitações. Logo resultou na pena de talião, do “olho por olho, dente por dente”.

Posteriormente tem-se o período da composição, o prejudicado passa a notar as vantagens e conveniências da vindita pela compensação econômica.

Tempos depois, quando já existe uma autoridade soberana, o legislador proíbe à vítima fazer justiça com as próprias mãos, a composição econômica, então voluntária, passa a ser obrigatória e tarifada.

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Direito romano refere-se, originalmente, ao conjunto de regras jurídicas observadas na cidade de Roma e, mais tarde, ao corpo de direito aplicado ao território do Império Romano e, após a queda do lmpério Romano do Ocidente em 476 d.C., ao território do Império Romano do Oriente. Mesmo após 476, o direito romano continuou a influenciar a produção jurídica dos reinos ocidentais resultantes das invasões bárbaras.

Os romanos desenvolveram a idéia de responsabilidade ligada ao comportamento da pessoa humana na ordem social, desde 16 os fatos jurídicos são posteriores aos fatos sociais.

Na civilização helênica se encontra o conceito de reparação do dano causado, com a idéia estritamente objetiva. Mas, foi o direito romano que, conferiu-nos conceitos mais precisos sobre os fundamentos primários da responsabilidade civil: Código de Justiniano e Lei das XII Tábuas.

O Código de Hamurabi, no final do seu texto proclamava: “Nos dias a virem por todo tempo futuro, possa o rei que estiver no trono observar as palavras de justiça que eu tracei em meu monumento”.

A evolução da responsabilidade civil no Direito Romano culmina justamente na célebre Lei Aquília. Essa lei foi responsável por uma aparente transformação na responsabilidade civil. Com ela, iniciou-se a introdução do elemento subjetivo para a reparação.

Quando o estado assumiu a função de punir surgiu a ação de indenização, e a responsabilidade civil passou a existir ao lado da responsabilidade penal.

“Desaparece o orgulho primeiro do homem, seu sentido brutal de honra se suaviza; a vítima pensa que, em lugar de vingar-se na pessoa de seu adversário, será mais proveitoso cobrar parte de seu patrimônio: é o ouro substituindo o sangue” — frase que se tornou célebre e que, se iniciou na Lei das XII Tábuas (Lax Duodecim Tabularum, em latim, 449 a.C).

“Aí se apresenta uma composição voluntária inserida na solução transacional. A vítima, ao invés de imposição de igual sofrimento ao agente, recebia, a título de pena, uma importância em dinheiro ou outros bens” (PEREIRA, 2009. p. 491).

Foi, então, com base na interpretação e aplicação cada vez mais extensiva da Lex Aquilia pelos jurisconsultos que o Código Napoleônico adotou uma teoria geral de responsabilidade civil fundada na culpa. Posteriormente essa teoria foi adotada pela maioria dos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro.

Já, o direito francês estabeleceu um princípio geral da responsabilidade civil, baseado nas ideias românicas, abandonando o critério de enumerar os casos de composição obrigatória. Separavam a responsabilidade civil da responsabilidade penal.

Para eles existia uma culpa contratual, que não se vincula nem a crime e nem a delito, mas se origina da negligência ou da imprudência. A culpa, ainda que branda, obriga a indenizar.

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A responsabilidade civil foi introduzida, no Brasil, por José de Aguiar Dias (1997. p. 3), que asseverava que “toda manifestação humana traz em si o problema da responsabilidade”.

No direito brasileiro, o surgimento da responsabilidade civil dá-se em três fases distintas, todas com sua singular importância para a época:

A 1ª fase se dá com as Ordenações do Reino — Lei datada de 18 de agosto de 1769, onde o artigo 2° explicitava: “que o direito romano servisse de subsidio, nos casos omissos, não por autoridade própria, que não tinha, mas por serem muitas as suas disposições fundadas na boa razão”.

Surgiu então a 2ª fase, conforme bem explica Carlos Roberto Gonçalves (2011, p. 27), onde o Código Criminal de 1830, atendendo as determinações da Constituição do Império, transformou-se em um Código Civil e Criminal fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade”.

Na 3ª fase tem-se que Teixeira de Freitas não concordava com a ideia de que a responsabilidade civil estivesse vinculada à criminal. Suas ideias foram extremamente influenciadas pelo Código Civil de 1804, e que estão atualmente em nosso Código Civil brasileiro.

O Código de 1916 filiou-se à teoria subjetiva, que exige prova de culpa ou dolo do causador do dano para que seja obrigado a repará-lo.

Com o passar dos anos, o desenvolvimento industrial e da própria sociedade, houve um aumento dos danos, ocasionando o surgimento de novas teorias, que propiciavam maior proteção às vítimas.

Passou-se a dar importância à chamada Teoria do risco, que, sem substituir a teoria da culpa, resolvia muitos casos em que as concepções tradicionais eram insuficientes para a tutela das vítimas.

Para a teoria do risco, quando o exercício da atividade que porventura ofereça algum tipo de perigo, assume esse risco o agente, de ressarcir quaisquer danos que possam resultar a outros.

A responsabilidade objetiva funda-se num princípio de equidade, originária do direito romano, aquele lucrar deve responder pelos riscos desse lucro. No direito contemporâneo a teoria da responsabilidade objetiva apresenta-se de duas maneiras: a teoria do risco e a teoria do dano objetivo.

Para a teoria do dano objetivo, se existir um dano, esse deve ser ressarcido independentemente de culpa, consagrando a responsabilidade sem culpa.

Na realidade, tem-se procurado ligar a responsabilidade com a culpa. O direito brasileiro se manteve fiel à teoria subjetiva nos artigos 186 e 927 do Código Civil, para que exista responsabilidade, é necessária a culpa. Sem prova de culpa não se tem a obrigação de reparar o prejuízo.

A doutrina francesa influenciou muito a teoria da responsabilidade civil nos Códigos modernos, vide o artigo 1.382, que teve sua origem no Código de

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Napoleão de 1804: “Todo fato de qualquer pessoa, que causa a outro um dano, obriga-o pela falta cometida decorrente desse ato, a repará-lo”.

São quatro os elementos essenciais da responsabilidade, segundo Carlos Roberto Gonçalves: a) ação ou omissão; b) culpa ou dolo do agente; c) relação de causalidade e d) o dano experimentado pela vítima.

Grandes doutrinadores temem conceituar a culpa. Os franceses partem da ideia do dever para caracterizá-la. No francês ”faute” quer dizer “falta”, como bem explica Arnaldo Rizzardo10.

Erro de conduta ocorre toda vez que nos afastamos do procedimento dito como padrão. Diante de circunstâncias externas que envolvem o fato, incorre o agente em culpa. O erro de conduta não aconteceria se traçássemos o procedimento de acordo com as regras jurídicas.

O legislador brasileiro no texto do artigo 186 do atual código civil vislumbra as duas espécies: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.”

Ao mencionar ação ou omissão voluntária, traz o conceito de dolo; quando fala em negligência ou imprudência, classifica a culpa.

Ação ou Omissão, são também pressupostos da responsabilidade civil, o ato ilícito pode advir não só de uma ação, mas também de omissão do agente. A lei se refere no artigo 186 a qualquer pessoa que, por ação ou omissão, venha a causar dano a outrem. A responsabilidade pode resultar de ato pessoal próprio, de ato de terceiro ou de danos causados por coisas ou animais que estejam sob sua guarda ou lhe pertençam.

O Código prevê a responsabilidade por ato próprio, dentre outros, nos casos de calúnia, difamação e injúria; de demanda de pagamento de dívida não vencida ou já paga; e de abuso de direito.

Pode ocorrer responsabilidade por atos de terceiros, onde os pais, tutores e curadores respondem pelos filhos, curatelados e tutelados. Da mesma forma respondem os proprietários de hotéis, educadores pelos seus hóspedes e educandos. Também responde o empregador pelos atos infracionais de seus empregados.

A responsabilidade por danos causados por animais e coisas que estejam sob a responsabilidade do agente é, em regra objetiva, não depende de se provar a culpa, está subentendido.

É o que se recolhe da lição de Silvio Rodrigues (1975. p. 20): “a ação

10 [...] é a inexecução de um dever que o agente podia conhecer e observar. Se efetivamente o conhecia e deliberadamente o violou, ocorre o delito civil ou, em matéria de contrato, dolo contratual. Se a violação do dever, podendo ser conhecida e violada, é involuntária, constitui a culpa simples, chamada, fora da matéria contratual, de quase-delito (RIZZARDO, 2009. p.02).

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ou omissão do agente, que dá origem à indenização, geralmente decorre de um dever, que pode ser legal (disparo de arma em local proibido), contratual (venda de mercadoria defeituosa, no prazo de garantia) e social (com abuso de direito: denunciação caluniosa)”.

A responsabilidade por omissão é caracterizada pelo dever jurídico de praticar determinado fato (de não se omitir) e que se digne demonstrar que, se não houvesse se omitido, o dano (prejuízo) poderia ter sido evitado. O dever jurídico de não se omitir é regulamentado por lei, como por exemplo, o dever de prestar socorro em um acidente de trânsito, previsto no artigo 176 inciso I do Código de Trânsito Brasileiro, ou resultar de convenção, como o dever de vigilância ou custódia.

Entre a ação do agente e o dano causado tem que haver um nexo de causalidade, mais um pressuposto fundamental da responsabilidade civil, pois é possível que tenha havido um ato ilícito e tenha havido dano, sem que um seja causa do outro.

Um dos pressupostos para que exista o dever de indenizar é que exista um dano (seja moral ou material), pois para que haja uma indenização deve ter existido um prejuízo. Envolve um comportamento oposto ao jurídico. Sem o dano não existiria a responsabilidade civil, seja qual for a espécie de responsabilidade: contratual ou extracontratual, objetiva ou subjetiva.

Arnaldo Rizzardo (2009, p.15) afirma categoricamente que: “Não haverá ato punível, para efeitos da responsabilidade civil, sem o dano causado”.

Nessa linha de raciocínio, o dano pode ser conceituado como: “a lesão a um interesse jurídico tutelado – patrimonial ou não – causado por ação ou omissão do sujeito infrator” (GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, 2009, p. 36).

Também o prejuízo pode ser dar da agressão a direitos personalíssimos, como por exemplo, os que infringem os direitos da personalidade, como o dano moral. Veja-se a propósito, o magistério de Clayton Reis (2010. p. 2)

[...] a concepção normalmente aceita a respeito do dano na teoria da responsabilidade civil envolve uma diminuição do patrimônio de alguém, em decorrência de ato ilícito praticado por outrem. A conceituação prevista no Código Civil, nesse particular, é genérica. O Estatuto Civil não se refere, como é notório, a qual patrimônio atingido, se material ou imaterial, em que se consumou a ofensa ao bem jurídico violado”. Muitas vezes, não se consegue reparar o dano de maneira que volte ao

seu estado anterior (status quo ante), apenas se indeniza.No caso de responsabilidade contratual há um contrato entre as partes

e uma presunção de dano e de culpa. Aqui o agente descumpre o avençado,

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tornando-o inadimplente. O descumprimento de um dever contratual é o fator humano mais decisivo na provocação de danos. É a obrigação o liame entre dois ou mais sujeitos, que tem por objeto uma prestação determinada.

Na responsabilidade contratual a vítima tem maiores chances de obter a reparação e o pagamento de indenização, porque não é necessário provar a culpa, basta apenas provar que o contrato não foi cumprido e que como consequência houve o prejuízo (dano).

Na quebra do contrato, que pode ser de um negócio jurídico bilateral ou unilateral, resulta, portanto, o ilícito contratual, ou seja, a falta de adimplemento ou da mora no cumprimento de alguma obrigação. É o descumprimento de um dever específico estabelecido voluntariamente pelos contratantes. Trata-se de uma relação obrigacional preexistente, onde os contratantes devem possuir capacidade para contratar. A responsabilidade contratual resulta da quebra de uma obrigação preexistente.

Quando a responsabilidade não derivar de contrato, diz-se que é extracontratual ou também chamada de aquiliana. Todo aquele que causa dano a outrem, por culpa em sentido estrito ou dolo, fica obrigado a repará-lo.

Na responsabilidade aquiliana deve-se provar o dano. O princípio que rege essa responsabilidade é denominado princípio do neminem laedere, não causar dano a ninguém, fundamentado no artigo 186 do Código Civil Brasileiro.

Na responsabilidade extracontratual, para que a vítima possa obter reparação, é fundamental que prove que o agente infrator agiu com imprudência, imperícia ou negligência. Existe também a possibilidade de responsabilidade sem culpa, que é aquela baseada no risco.

São duas as tipificações de responsabilidade civil extracontratual quanto ao fundamento: a subjetiva, quando fundada na culpa, e a objetiva, quando baseada no risco.

O termo “faute”, termo em francês e que inspirou nosso legislador a elaborar os artigos 159 e 1528 do Código Civil de 1916, e que correspondem aos artigos 186 e 942 do nosso atual Código Civil, gerou muita discussão entre os franceses.

Alguns autores inspiram-se numa concepção moral de culpabilidade, para definir a culpa. Consideram somente o aspecto subjetivo: se o agente poderia ter, se quisesse, prevenido e evitado o dano.

Sobre o exposto, bem observou Aguiar Dias (1997, p. 21):

[...] Parece-nos sem sentido, em nosso direito, qualquer discussão semelhante à que lavrou ardente na França, sobre o seu texto indicado, exigia ou não a culpa para o estabelecimento da responsabilidade. E isto se deve à que o nosso legislador, em lugar de usar de palavra

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vaga, como é, em francês, a expressão faute, foi suficientemente preciso ao subordinar o dever de reparar a ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência.

O legislador brasileiro utilizou a noção de ilícito (no lugar da faute) como causa da Responsabilidade Civil, assim, o artigo 186 do nosso Código Civil expressa o que se compreende por ação culposa do agente causador do dano: ação ou omissão voluntária, negligência ou imperícia”, e como consequência, fica o agente obrigado a reparar o dano que causou.

Quando conceituamos culpa, não se pode deixar de lado os elementos “previsibilidade” e comportamento daquele que se denomina homo medius.

A palavra guarda nos remete à ideia de poder de vigilância, direção e controle, daí nascendo o dever de obstar a que o bem, sob custódia, produza danos em relação à estranhos.

O proprietário ou quem está com a guarda, para livrar-se da responsabilidade precisa provar a ocorrência de caso fortuito, ou força maior, como fator causal do dano. Agora, se não está na guarda da res, por inúmeras razões jurídicas, não se invoca a sua responsabilidade desde que não tenha agido com culpa na devolução da coisa.

Há uma corrente, apoiada pelo ex-Ministro Aguiar Dias, que discorda desse pensamento, justificando a obrigação de reparar através de uma distinção que fazem sobre a guarda, classificando-a em guarda material e guarda jurídica. Argumentam que o detentor de má-fé, aquele que subtraiu o veículo, exerce a guarda apenas material. O proprietário, apesar do ato ilícito daquele que subtraiu, conserva a guarda jurídica. Nasce então, a responsabilidade pelos danos emergentes, independentemente da causa que os originou.

Essa doutrina foi bastante contestada por muitos autores e jurisprudências, pois sendo a guarda e o controle ou o poder de vigilância sobre a coisa, não se entende como possa ser mantida, quando o exercício do controle não existe. Desde o instante em que o proprietário do veículo já não mais possui a posse, logicamente deixa de ser o guardião. A posse é um título jurídico que transfere direitos ao possuidor, mesmo havendo má-fé. A posse está no poder físico. Se o proprietário de um automóvel furtado não dispõe dessa faculdade, fere o mais elementar princípio de justiça destinar a ele a responsabilidade pelos danos causados pelo ladrão.

Claro que, se o furto ou roubo acontece por culpa do guarda ou proprietário, no entanto, é inafastável a responsabilidade, como por exemplo, se o proprietário estaciona o veículo em local isolado e desprovido de vigilância, ou o trafega em regiões perigosas e com altos índices de assaltos em horários noturnos.

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Deve-se deixar claro, que não é necessário que o proprietário ou condutor do automóvel esqueça as chaves na ignição, ou que deixem abertas as portas para se referendar a culpa. Somente o fato de deixar o veículo em local perigoso ou apenas passar por ele, é sinal de imprevidência, ou seja, de conduta irresponsável, que enseja responsabilidade por eventuais danos a terceiros causados pelos meliantes.

Quando o proprietário entregar seu automóvel a terceiros, como em postos de lavagens, oficinas mecânicas, concessionárias, garagens e outros estabelecimentos similares a esses, estará confiando-o a estes profissionais que dirijam seu carro, que o manobrem, inclusive em face das peculiaridades do estabelecimento, com entrada e saídas distintas, por ruas diferentes, e por isso, obviando esse inconveniente, deveria ter escolhido com melhor critério.

Deve-se também considerar, a responsabilidade pelo fato da coisa, decorrente da responsabilidade do proprietário que empresta o veículo a terceiro, ou, que permite que dele se utilize, criando riscos para as outras pessoas.

Nestes casos as legislações tendem a aplicar a responsabilidade objetiva em favor da vítima, limitando as possibilidades de defesa do proprietário do animal que ensejou o acidente.

O direito alemão tem bastante presente a Teoria do Risco, atribuindo ao proprietário do animal a obrigação de reparar nas situações em que o animal provoca a morte de uma pessoa, dano físico, à saúde, ou algum prejuízo.

Nosso Código Civil atual segue o mesmo raciocínio com relação à presunção da responsabilidade do proprietário ou do detentor, mas não manteve a especificação de hipóteses detalhadas de exclusão de responsabilidade constante no antigo Código. Resumiu a exclusão a conseguir provar a culpa da vítima ou a existência de força maior. Reza o art. 936: “O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar a culpa da vítima ou força maior”.

Frequentemente ouvimos nos noticiários que veículos foram furtados nos estacionamentos de shoppings, supermercados, farmácias, colégios, universidades, parques de diversão, etc.

Há tempos as decisões nos tribunais se dividem, uns entendendo que os estabelecimentos que exploram atividades econômicas, e colocam como vantagem ao consumidor o estacionamento, devem arcar com a indenização, no caso de furtos ou acidentes; e outros tentando justificar a inexistência do contrato de depósito ou guarda, e não havendo pagamento pela estadia, não incide responsabilidade.

O veículo tornou-se de suma importância na vida das pessoas, é considerado necessidade, importando em custos para o Poder Público, para os particulares e para todos que exploram algum tipo de atividade.

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Quando se coloca um veículo em um estacionamento, é vista de duas maneiras na jurisprudência: gratuitamente, nesse caso não há contrato de depósito do veículo, ou mediante pagamento, com contrato de guarda e depósito.

3 A REPARAÇÃO

Desde que provado o dano, cabe a ação de reparação. Tem direito de pedir reparação todo aquele que demonstrar o prejuízo. Há dois modos de se reparar um dano, de um lado está o ressarcimento, que subsiste na recomposição da situação anterior, mediante a compensação de um valor que corresponda ao dano, de outro, está a reparação específica, ou a integração, pela qual o cumprimento da obrigação se dá com a restituição ao estado anterior ao dano (status quo ante). Mesmo não extinguindo o dano, cria-se um estado correspondente àquele que existia antes do dano.

Pode-se então dizer que o instituto reparação civil apresenta três funções: compensatória do dano à vítima, punitiva do ofensor e desmotivação social da conduta lesiva.

O ressarcimento reconstrói uma situação econômica equivalente à anterior que foi comprometida com o prejuízo, através de uma indenização em dinheiro. Está prevista nos artigos 944 ao 954, e nos artigos 1533 a 1553 do Código Civil Brasileiro.

O prejuízo que deverá ser indenizado terá de ser atual e certo, sendo inadmissível a reparação de danos hipotéticos, abstratos ou remotos; mas abarcam aquilo que o prejudicado deixou “razoavelmente” de lucrar, como bem institui o artigo 402 do atual Código Civil: “Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar.”

Para Serpa Lopes (1962. p. 423), o prejudicado tem direito de exigir um valor para reequilibrar sua posição jurídica: “de modo a tanto quanto possível retornar ao estado em que se encontraria, se o devedor houvesse realizado a prestação no tempo e forma devidos”.

Além da reparação por perdas e danos, e específica e compulsória, há uma terceira, a sub-rogatória da vontade do devedor. Ocorre em situações em que o o devedor não quer, voluntariamente, prestar declaração de vontade. Condenado a emitir um ato jurídico, e negando-se, a sentença substitui sua vontade e dá o ato por declarado.

O artigo 947 do atual Código civil apresenta as duas espécies, o ressarcimento e o retorno ao status quo ante, ou a reparação específica: “Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente”.

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Fundamentalmente são duas as causas que geram direito à indenização. A primeira é a reparação por dano contratual, origina-se do inadimplemento de um dever de dar, fazer ou não fazer. A lei obriga o devedor a satisfazer o que prometeu, protegendo, dessa maneira, o credor. Como assinala o artigo 389 do atual Código Civil: “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

Em segundo lugar, a prática de um ato infracional gera o direito ao ressarcimento de danos ao lesado, o que se verifica com o retorno das coisas ao seu status quo ante. Se há impossibilidade para o ressarcimento, ao lesado resta a opção da indenização em dinheiro por perdas e danos.

Tem-se a reparação por perdas e danos, onde, depois de provado o dano, o usual é que se tenha por objeto a reposição das coisas ao seu status quo ante. As perdas e danos são a forma da reparação para os casos em que não seja possível a reparação in specie, ou não se processa in natura.

A indenização através do pagamento das perdas e danos é representada por uma soma em dinheiro no valor da prestação descumprida e aos juízos e aos prejuízos sofridos com o inadimplemento. Não se trata de uma reparação perfeita, mas substitutiva do bem ou do valor que o prejudicado perdeu.

É efetivada com a composição dos danos, ou por meio do pagamento de uma soma pecuniária, repondo-se o credor num estado de maior equilíbrio possível. Computa-se então, tudo que ele efetivamente perdeu (dano emergente) e o que deixou de ganhar (lucro cessante), como institui o artigo 402 do Código Civil: “Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.

Em muitos casos, especialmente quando se trata de acidentes de trânsito, os prejuízos acontecem apenas no patrimônio, sem danos físicos para as pessoas envolvidas. Por isso, a maior parte dos litígios pendentes na justiça se refere a prejuízos materiais. Quando ocorre algum dano ao bem, o que se espera é a restituição desse bem no estado em que se encontrava antes do acidente.

Nos danos materiais, em geral, a solução consiste na recomposição da coisa. Substituir a coisa por outra só é viável na impossibilidade da reposição e da recuperação de peças estragadas. A maneira mais utilizada no direito brasileiro é fazer uma avaliação dos estragos após o fato ocorrido, antes de se entrar com a ação de indenização. Essa avaliação tem o objetivo final de apurar a quantia de dinheiro a título de danos ou prejuízos. Ela determina a indenização calculada em função do valor do dano.

Uma presunção em favor da seriedade dos dados técnicos, significativos dos gastos nos serviços de recuperação, diz respeito à empresa que forneceu os orçamentos. Se forem elaborados por estabelecimentos especializados,

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preparados para restabelecer o bem nas condições em que estavam antes do acidente, são preferidos, ao invés de empresas não categorizadas.

A parte não está obrigada a fornecer três orçamentos, um apenas já é suficiente, desde que o litigante contrário aceite. Em geral, vem sendo admitida a apresentação de duas cotações de valores, mas, seja qual for a quantidade de orçamentos, estes devem conter minuciosa descrição dos serviços a serem prestados. Normalmente sendo escolhido o de menor valor.

O artigo 949 do atual Código Civil trata da ofensa à saúde: “No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.”

Analisando a expressão “ofensa à saúde”, compreendemos cabível a indenização por lesões corporais e por doenças, pois essa expressão abarca quaisquer alterações orgânicas e distúrbios que exigem tratamento para recuperação da saúde.

A esse respeito preleciona Maria Helena Diniz (2002. p. 125) que: “na hipótese de lesão corporal, como já afirmamos, o ofensor deverá indenizar o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até o fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido”.

Em relação ao que a vítima deixou de lucrar, conforme doutrina e jurisprudência, incide a condenação com a simples dificuldade do ofendido em se locomover, se estiver doente em casa, e não puder desenvolver suas atividades normalmente. É válida também a indenização para os serviços caseiros, desde que haja substituição por uma outra pessoa remunerada.

A indenização pelos lucros cessantes, ou seja, pelos lucros que razoavelmente a vítima deixou de obter durante todo o período de tratamento, terá duração máxima até que a vítima possa retornar às suas atividades normais.

Muitas vezes as consequências dos acidentes trazem prejuízos duradouros à capacidade laboral da vítima, em muitos casos são até consequências permanentes. Nesses casos, a indenização será mensurada pelo grau de limitação a que a vítima foi imposta. Mesmo se a atividade desempenhada na prática não sofrer redução de empenho e qualidade, o dano precisa ser reparado, visto que não se discute a limitação imposta pelo acidente.

Agora, se a pessoa antes do acidente não trabalhava, já era incapaz de realizar alguma atividade profissional, obviamente que nenhum prejuízo lhe trouxe no que diz respeito a lucros cessantes. Nestes casos limita-se a indenização às despesas que se faz necessário para a recuperação do ofendido. A jurisprudência nega indenização àquele que antes do fato não exercia qualquer atividade que gerasse renda. A indenização alcança apenas e tão somente as atividades que o lesionado deixou de cumprir por consequência do acidente.

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O dano estético é aquele que atinge a aparência física da pessoa, que causa defeito em seu aspecto físico, um desequilíbrio na disposição do corpo humano, prejudicando sua integridade, e afetando muitas vezes a auto-estima do lesionado.

O dano estético não deve ser confundido com o chamado dano moral, faz-se necessário ser avaliado de maneira singular, visto que, resultam de situações diversas.

Mas a questão do dano estético no meio jurídico é complexa. Recentemente houve mudanças no entendimento do STJ, de que o dano moral envolvia também o estético. Todavia, esse entendimento sofreu substancial mutação. A jurisprudência brasileira tem admitido a cumulação de dano estético com dano moral quando possam ser averiguados isoladamente, ainda que resultantes do mesmo fato.

Duas características definem o dano, conforme Rizzardo: “a deformidade física e o lado moral do indivíduo, que se sente diminuído na integridade corporal e na estética de sua imagem externa. É integrado por elementos do dano moral e do dano patrimonial. Vai além de uma lesão meramente corporal, para atingir o íntimo moral do ser humano” (2009, p.167).

A deformidade física com prejuízos materiais, além de danos físicos e estéticos, também constitui um prejuízo patrimonial. Torna-se um dano patrimonial a partir do momento que a pessoa lesada já não mais consegue recolocação no mercado de trabalho. Gera, a partir de então, a indenização.

Os artigos que tutelam o assunto em questão são o 949 e 950, ambos do atual Código Civil Brasileiro. Caso a deformidade física seja um obstáculo para o exercício de alguma atividade, o assunto será regulado pelos mesmos princípios que disciplinam a reparação por dano físico comum.

Busca-se, com a indenização, satisfazer o sofrimento moral ocasionado pela lesão física permanente, desfiguração ou carência de um membro, resultado de um acidente. Por isso, a reparação não será somente patrimonial, mas também será moral.

O nosso Código Civil, em seu artigo 948 reza: “Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: I - no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família; II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima”.

Indenizam-se as despesas com tratamentos para recuperação do lesado, caso tenha sofrido danos físicos, incluindo hospital, medicações, UTI, internação, exames de laboratório, enfim, tudo que a vítima precisar. Mas, caso o pior aconteça, que é o falecimento da vítima, indenizam-se todas as despesas com o funeral.

Os bens não patrimoniais também são suscetíveis de reparação, não somente os bens patrimoniais. Bens que na verdade não podem ser medidos, mensurados, recompostos e aferidos pelos meios tradicionais de medição, são

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bens extrapatrimoniais. Mas isto não quer dizer que não possam ser indenizados.A diferença entre o dano material e o dano moral reside, principalmente

na maneira que se executa sua reparação. Nos danos materiais a reparação tem como finalidade repor os bens danificados ao seu status quo ante, ou possibilitar à vítima a aquisição de outro bem semelhante ao destruído. Quanto aos danos morais, é praticamente impossível reconstituir as lesões ao seu estado primeiro. A indenização, nesses casos, se faz a partir do pagamento de uma quantia pecuniária, estabelecida em face do arbitrium boni iuris do magistrado, de forma a possibilitar ao lesionado uma relativa compensação em decorrência da dor ocasionada.

Perfeitamente cabível se faz, a indenização pelos danos morais, visto que o ser humano em sua essência precisa ter tutelado o seu verdadeiro valor, a sua existência, sua integralidade em todas as dimensões. As pessoas que tem sua honra, dignidade ou personalidade lesada, materializam ofensa aos direitos da vítima capaz de ensejar responsabilidade civil ao ofensor.

O excessivo número de ações de indenização por danos morais que tramitam perante os nossos tribunais demonstra, de forma inequívoca, a crescente utilização desse instituto jurídico pelas pessoas que tem seus direitos fundamentais lesados.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos V e X, introduziu uma nova realidade jurídica no país, no que concerne aos danos extrapatrimoniais. Foi nesse momento que ocorreu a constitucionalização dos danos morais no ordenamento jurídico brasileiro. Podemos perceber a importância desse dispositivo nas decisões que tiveram indenizações por danos morais nos nossos tribunais.

O dano moral, prescrito no dispositivo constitucional, ampliou a tutela dos direitos fundamentais da pessoa.

Quase todo ato lesivo ocasiona um resultado psicológico, que poderá interferir na vida da vítima, de modo especial em seu íntimo, por ferir, em muitos casos, algo que não pode ser restituído de maneira integral, podendo lhe causar dores, sofrimentos, mágoas, desgostos, tristezas, revoltas consigo mesma, que podem, em alguns casos, fazer com que o lesado perca a vontade de viver, interrompendo seu equilíbrio emocional, social e pessoal. O resultado visível é o dano extrapatrimonial, que gera obrigação de indenizar, em face da violação aos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana.

Muitas vezes a responsabilidade por um fato surge de uma atitude alheia à vontade do civilmente responsável, por ato lesivo causado por terceiro, real autor do feito.

Pode haver dois agentes responsáveis perante o fato: de um lado o agente autor real do evento material, e, de outro, os civilmente responsáveis pelas

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consequências do ato do autor do dano, nos casos previstos em lei.Há a responsabilidade dos genitores, tutores, mestres, curadores, diretores

de colégio, etc., que respondem civilmente pelas consequências dos atos do autor material do feito danoso, onde há, logicamente, uma responsabilidade pelo fato material, em virtude de culpa própria presumida júris tantum.

O civilmente responsável pelo fato de outrem, em face de uma presunção incontestável de culpa, conforme doutrina majoritária, que é a responsabilidade dos patrões, comitentes, etc., pelos atos lesivos de seus funcionários, cometidos, prepostos, desde que existam os requisitos legais daqueles atos infracionais.

O terceiro autor da lesão, e o proprietário do bem, ou o patrão, ou o comitente, respondem solidariamente perante à vítima.

Situação muito comum é quando o (a) filho (a) do proprietário (a) sai com seu veículo com ou sem sua autorização. A jurisprudência é taxativa ao entender que o proprietário do veículo que o empresta a terceiro maior e habilitado, ainda que seja seu filho, responde pelos danos causados pelo uso culposo do veículo, não sendo possível reconhecer sua irresponsabilidade na ação de indenização movida pela vítima.

Importante se faz dizer que, nem sempre nos deparamos com um procedimento culposo do proprietário pelo fato de permitir que terceiro habilitado e plenamente capaz guie o seu veículo. Superada encontra-se a justificação com base na culpa, disseminada pela jurisprudência, para fundamentar a condenação em indenizar. Pode, o dono do automóvel, ter tido todos os cuidados e cautelas na entrega do carro, e ser, esse terceiro, pessoa de boa índole, cautelosa, prudente. Mesmo nessas circunstâncias, a segurança e a tranquilidade social reclamam a sua responsabilidade na reparação de uma possível lesão advinda com o uso do veículo emprestado.

O motivo para responsabilizar o proprietário está baseado em valor de justiça. Normalmente é quem é possuidor de condições financeiras para arcar com os prejuízos, aplica-se aqui perfeitamente a Teoria da Responsabilidade Objetiva.

Com relação aos acidentes causados pelos filhos menores, o STJ revelou uma posição avançada, não atribuindo aos pais a responsabilidade, se emprestado o veículo por um terceiro. Considera-se a habilitação ou o exercício da direção por força da lei. Incidindo, neste caso, a responsabilidade unicamente ao terceiro que permitiu a utilização (ou não teve o devido cuidado) é que pode ser chamado à responsabilidade.

Nesse sentido, dispõe a jurisprudência: “Acidente de trânsito causado por menor de idade, habilitado legalmente como motorista, dirigindo veículo de terceiro. Exclusão da responsabilidade do pai pela indenização dos danos resultantes11”.

11 TJ-RS – APELAÇÃO. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21905638/

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estudado com excelência e profundidade em muitas civilizações, a Responsabilidade Civil constitui um dos campos de grande incidência no direito, cujo desenvolvimento amadureceu e trouxe rica literatura. Fartas decisões jurisprudenciais tem, ao longo dos últimos anos, enriquecido o direito brasileiro, atacando os mais variados aspectos da matéria.

Os conflitos que, diuturnamente emergem na sociedade precisam de soluções pacíficas, e para isso, trabalham em conjunto os tribunais, os operadores do direito e a própria sociedade.

Toda atividade que acarreta prejuízo traz em seu bojo, como fato social, o problema da responsabilidade. Destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano.

Com a crescente utilização dos veículos como meios de transporte, surgiu a necessidade de se normatizarem dispositivos para tutelar os direitos e deveres pertinentes aos motoristas, pedestres, terceiros e o trânsito em geral. A responsabilidade civil no direito de trânsito está em crescente aprimoramento, diariamente novas decisões enriquecem nossos ordenamentos.

Há ainda divergências no que tange os danos morais sem reflexos na lesão patrimonial, e também com relação aos danos estéticos. Importante se faz observar cada caso concreto, para corretamente aplicar a lei.

Com relação aos acidentes em que se resultam morte, não se encontram bem definidas as decisões, principalmente sobre a pensão, no que concerne ao seu início e seu fim, havendo uma corrente que defende que deve se estender até o momento em que a vítima complete vinte e cinco anos, idade em que se casaria; e outra sustentando que se reduz porque passaria a despender maior soma da renda com os gastos pessoais, justamente por ser o momento em que a pessoa casa ou constitui uma união estável.

Outro aspecto importante é o direito à indenização patrimonial em favor dos parentes, mesmo em caso em que a vítima não desempenhe atividade lucrativa, ou apenas seja estudante ou dona de casa. Argumenta-se, para justificar a prerrogativa, que ninguém pode afirmar como será o futuro, de modo que o filho é um fator de segurança, uma expectativa de socorro às necessidades do amanhã. Daí não se afigurar justo condicionar o direito à indenização a um limite de idade ou à condição financeira. A ocasião de uma necessidade pode estar presente em inúmeras situações.

Umas questões estão sendo aos poucos pacificadas pelos tribunais, já outras despontam de relativa complexidade, como a que envolve a responsabilidade objetiva nos acidentes de trânsito, amparado pelo parágrafo único do artigo 927

apelacao-civel-ac-70046987871-rs-tjrs/inteiro-teor. Acesso em 17 set. 2012.

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do Código de Trânsito Brasileiro, já que dirigir implica, por sua natureza, risco para si e para os outros.

Não é por acaso que o disciplinamento para regras de trânsito tem se tornado cada vez mais rígido. Existe, a propósito, uma tendência de obrigar a indenizar quando o dano decorre de causa estranha ao veículo, como por exemplo, um derramamento de óleo na pista por terceiros, porquanto este caso fortuito é interno ao trânsito. Enfim, se a causa está em fato de terceiro, ou mesmo acontecimentos da natureza, como um desmoronamento, terceiros prejudicados não podem ser prejudicados, ficando livres de responsabilização os condutores e proprietários.

Muito ainda se discute acerca da problemática da reparação dos danos causados em acidentes de trânsito com suporte na responsabilidade objetiva, embora forte ainda, a responsabilização pela culpa.

A responsabilidade civil está se desenvolvendo cada dia mais, muitos temas ainda estão em discussão, e novos surgem na medida em que as cidades crescem, aumentam o número de veículos em circulação e as relações sociais se tornam mais complexas, sem o acompanhamento da estrutura viária adequada e dos meios de controle e disciplina.

A ideia é que a normatização acompanhe o crescimento e a complexização da sociedade, porquanto isto não ocorra, as regras sempre estarão atrás dos acontecimentos sociais.

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REFERÊNCIAS

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DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 10ª Ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1997.

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. 6° Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 1.992.

______. Curso de direito civil brasileiro: direito de família. 17ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

GONÇAVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Volume 4. 6ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva. 2011.

LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. Volume V. 2ª ed. São Paulo: Editora Freitas Bastos, 1962.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Volume III. 13ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

REIS, Clayton. Dano Moral. 5ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Forense: 2010.

RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade Civil. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 4. São Paulo: Editora Saraiva, 1975. p. 20.

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TUTELA JURÍDICA DO CORPO HUMANO MORTO E A DISPONIBILIDADE DA FAMÍLIA EM DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

LEGAL PROTECTION OF HUMAN BODY AND AVAILABILITY OF FAMILY KILLED IN ORGAN DONATION

DianDra alinE rEinEr bErgaminAcadêmica do 9° período do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba. Integrante do Grupo de Pesquisa Jus Vitae

maria Da glória colucciAdvogada. Possui graduação em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil (1968). Especialização em Filosofia do Direito pela Puc-Pr (1984). Mestrado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (1990). Profª. adjunta 04, aposentada da Universidade Federal do Paraná. Profª. titular do Centro Universitário Curitiba - UNI-CURITIBA. Membro da Sociedade Brasileira de Curitiba. Membro da Sociedade Brasileira de Bioética, Brasília. Membro do Instituto dos Ad-vogados do Paraná (1989). Membro do CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito. Profª. Emérita do UNICURI-TIBA, conforme título conferido pela Instituição em 21/04/2010

RESUMO

O presente artigo pretendeu demonstrar de que modo o corpo humano morto é tutelado pelo ordenamento jurídico nacional e estrangeiro, atualmente e ao longo da história, através da constatação de quais atos podem ser considerados legítimos e quais não podem. Tratou-se do tema “doação de órgãos”, através da análise da atual conjuntura do sistema legal que rege o assunto, questionando-se se a família do morto poderá dispor dos órgãos daquele individuo inerte, agredindo direitos personalíssimos e, eventualmente, negando o direito à vida àquele que aguarda transplante de determinado órgão. Verificou-se a existência de legitimidade na outorga à família do morto do poder de decisão acerca de eventuais atos praticados sobre o cadáver do sujeito.

Palavras-chave: corpo humano morto, tutela jurídica, doação de órgãos, família, legitimidade.

ABSTRACT

This article aims to demonstrate how the human body is slain overseen by the national legal system and abroad, now and throughout history, through

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evidence of acts which may be considered legitimate and which can not. This was the theme of “organ donation” through an analysis of the current situation of the legal system that governs the issue, questioning whether the family of the deceased may have organs that individual inert attacking personal rights and possibly negating right to life to him who waits for certain organ transplants. It was found that there is legitimacy in the grant to the family of the deceased the power to decide on possible acts performed on the body of the subject.

Keywords: dead human body, legal guardianship, organ donation, family, legitimacy.

SUMÁRIO: 1 Tutela Jurídica do Corpo Humano Morto. 2 Conceitos de Morte. 3 Atenta-dos Ao Corpo Humano Morto. 4 Princípios da Bioética. 5 Conceito de Doação de Órgãos. 6 Evolução Histórica no Direito Pátrio. 7 Aspectos Polêmicos da Lei N. 9.434/1997. 8 Direito Subjetivo de Disposição Cadavérica. 9 Eficácia do Consentimento Post Mortem. 10 Procedimentos Metodológicos. 11 Conclusão. 12 Referências.

INTRODUÇÃO

A morte sempre despertou curiosidade e medo no imaginário popular, havendo, ainda, divergências quanto à importância do cadáver do sujeito, bem como quanto à criação de conceitos e valores destinados à proteção do corpo e memória do falecido.

Considerando a magnitude que a ocorrência da morte tem na sociedade contemporânea, a Artigo analisará qual a tutela jurídica que o corpo morto do sujeito recebe atualmente e em outras épocas da história em outras civilizações.

Analisar-se-á, ainda, qual o conceito de morte atualmente empregado pelos profissionais da área médica, abrangendo as divergências conceituais sobre o tema, bem como os principais critérios imprescindíveis para a declaração de morte.

O papel da família do falecido terá fundamental importância na pesquisa, tendo em vista que a interferência dos familiares terá sua legitimidade questionada, a partir da análise do conceito de doação de órgãos e dos requisitos para a realização dos procedimentos necessários.

A suposta existência de um direito subjetivo de disposição cadavérica será abordada, bem como a eventual eficácia do consentimento do sujeito post mortem.

1 TUTELA JURÍDICA DO CORPO HUMANO MORTO

A proteção aos direitos dos indivíduos não se encerra com a morte, tendo o ordenamento jurídico regras específicas que regulam o tratamento a ser dispensado ao corpo humano morto.

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Entende-se que a dignidade da pessoa humana não é retirada do indivíduo após o seu falecimento, continuando a coletividade vinculada a disposições normativas que protegem a memória do falecido, bem como a integridade do seu corpo.

Grandes repercussões são advindas do evento morte, considerando que esse é o episódio que põe fim à existência física do indivíduo, bem como à sua personalidade: encerra-se a sociedade conjugal (art. 1.571, inc. I, do Código Civil Brasileiro), o poder familiar (art. 1.635, inc. I, do Código Civil Brasileiro), o dever de pagar alimentos (art. 1.700 do Código Civil Brasileiro), o usufruto (art. 1.410, inc. I, do Código Civil Brasileiro), contratos personalíssimos, condenação criminal, dentre outras (BRASIL, 2002).

Em que pese, porém, a existência de legislação que regula condutas praticadas sobre o corpo fúnebre, que possuem ou não potencialidade lesiva, vale lembrar que nem sempre foi assim: as sociedades primitivas enfrentavam a morte de modo banal, tendo em vista que o indivíduo pertencia a uma totalidade e, após a morte, passaria a pertencer à outra comunidade: dos mortos (ARANHA, 1993, p. 333).

Nesse contexto acima exposto, a existência de uma legislação protetiva não teria sentido, considerando que na sociedade da época não havia um clamor pelo resguardo do corpo morto. Comandos normativos construídos com a finalidade de proteger o corpo do sujeito foram inseridos no ordenamento a partir do reconhecimento de determinados princípios e valores capazes de transformar a concepção do indivíduo acerca do próprio significado do evento morte dentro do ciclo vital.

Entretanto, em que pese a ausência de textos normativos positivamente construídos, os mortos sempre foram objeto de cultos em todas as épocas, variando a forma com que a religiosidade era manifestada, bem como a forma com que o próprio corpo era visto, ora com horror, ora com piedade.

Esse cenário sofreu mudanças a partir de meados do século XX, quando os Estados passaram a construir sistemas normativos que impedissem abusos cometidos contra a integridade do indivíduo sob o fundamento de um suposto bem comum alcançável a partir de experimentos científicos, considerando o ocorrido, principalmente, na Alemanha nazista nos anos de 1939 a 1945, durante a Segunda Grande Guerra.

Conforme assevera José Gediel (2000, p. 121):

No Brasil, após a promulgação da Constituição de 1988, o principal desafio a ser enfrentado pela legislação brasileira seria a construção de um modelo legislativo que permitisse o aumento da liberdade nas disposições corporais, sem incorrer na violação de direitos fundamentais.

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Assim, não obstante a Constituição da República Federativa do Brasil possibilitar o reconhecimento da autonomia corporal ao afirmar, em seu artigo 199, § 4º, que os cidadãos poderão permitir a remoção de elementos corporais destinados a objetivos socialmente relevantes, tais como transfusões, tratamentos, transplantes e pesquisa, o indivíduo não possui poder absoluto sobre seu próprio corpo, ficando sua conduta condicionada à relevância social que essa eventualmente venha a ter, bem como à possibilidade de atendimento de interesses alheios aos do próprio indivíduo.

Daí o fundamento para a proibição da comercialização de órgãos, tendo em vista que envolve objeto ilícito, contraria interesses Ético-Sociais e confronta o Princípio da Gratuidade esculpido pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Na esfera do Direito Penal brasileiro, o legislador optou por tutelar não somente o corpo morto do indivíduo, mas a sepultura e o sepultamento do cadáver.

Nesses termos, tendo o Direito Penal a necessidade de identificação de um bem jurídico, construção da norma e inversão do comando normativo, busca-se a finalidade da norma contida no capítulo destinado aos crimes contra o sentimento religioso a partir dessa etapa do estudo.

Inicialmente, entre os romanos, conforme afirma Pierangeli (2007, p. 448), “[...] o cemitério era considerado locus sacratus e, sagrado que era, todos deveriam respeitá-lo.”

Assim sendo, com a influência do Direito Romano, o artigo 209 do Código Penal Brasileiro imputa àquele que impede ou perturba enterro ou cerimônia funerária pena restritiva de liberdade ou multa. O artigo mencionado demonstra claramente que o respeito aos mortos e o sentimento religioso são valores presentes na sociedade brasileira. Não se tutela apenas o corpo do indivíduo, mas a vida que aquele indivíduo viveu e aquilo que deixou (memória) como legado, exigindo-se da coletividade consideração e apreço por aquele que se foi.

Além disso, o cadáver tem conotação claramente sagrada, sendo sujeitos passivos nos crimes contra o respeito aos mortos não apenas uma coletividade limitada de pessoas, mas o próprio Estado ou qualquer um que tenha sofrido eventual ofensa com a conduta praticada.

Entende-se, ainda, de acordo com Pierangeli, que o que se pretende tutelar com o artigo 209 do Código Penal Brasileiro não é a paz dos mortos, mas o respeito que se deve a eles (PIERANGELI, 2007, p. 449).

Já no artigo 210 do mesmo Codex (BRASIL, 1940), o tipo penal que se encontra é “Violar ou profanar sepultura ou funerária.” O bem jurídico protegido nesse tipo penal, de acordo com a doutrina majoritária, é o sentimento de respeito aos mortos. Entretanto, alguns dizem ser a saúde pública o bem jurídico protegido; outros, o sentimento religioso ou mesmo a própria urna funerária (PIERANGELI, 2007, p. 451).

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O tipo penal delimitado no artigo 211 do Código Penal Brasileiro tutela o corpo morto, prevendo punição à destruição, subtração ou ocultação de cadáver. Define-se destruição como o ato de destroçar, aniquilar, extinguir.

Não é necessária a destruição total do corpo, incorrendo no tipo penal aquele que destruiu apenas parte do cadáver. Por subtração entende-se a retirada do cadáver da esfera de vigilância dos entes que detém o corpo. O termo ocultação é definido como o ato de esconder temporariamente o corpo, antes do sepultamento, sem haver destruição, possibilitando sua recuperação. Nas palavras de Pierangeli (2007, p. 453).

Desde os tempos imemoriais o ser humano tem se preocupado com os seus mortos. No direito germânico imperial e no Código toscano, o delito era conhecido como subtração de cadáver, e em Roma eram punidos aqueles que subtraíam cadáveres.

O bem jurídico protegido nesse tipo penal é o respeito aos mortos. Para o indivíduo incorrer no precitado tipo é necessário que o ato seja praticado sobre um cadáver humano, excluindo-se, portanto, os atos incidentes sobre as cinzas de um corpo já cremado.

O artigo 212 tipifica a conduta de vilipendiar cadáver ou suas cinzas, considerando-se vilipendiar o mesmo que desprezar ou aviltar. O bem jurídico protegido no tipo é o sentimento de piedade em relação aos mortos.

A dignidade post mortem é, sem dúvida, relevante fundamento presente em todos os tipos penais que compõem o capítulo do Código Penal Brasileiro destinado aos crimes contra o respeito aos mortos, tendo em vista que mesmo a morte não retira do indivíduo todos os direitos inerentes a sua pessoa.

Não obstante, tutela-se também a religião como valor socialmente relevante, cuja preservação o Estado tem interesse especial, tendo em vista a possibilidade de utilização desse mecanismo como componente de domínio social.

A Lei n. 9.434/1997, alterada pela Lei n. 10.211/2001, regula o ato de disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano em vida ou post mortem, que será analisada com a devida atenção ao longo do presente estudo (BRASIL, 1997).

Antes da colocação do problema da definição do que se considera morte, realizar-se-á a exposição das fases da vida humana, a fim de possibilitar uma compreensão abrangente do tema, a começar dos primeiros dias de vida.

2 CONCEITOS DE MORTE

A morte está presente na consciência do indivíduo desde o momento do seu nascimento. Conforme Maria Lúcia de Arruda Aranha (1993, 331), “[...] o próprio nascimento é a primeira morte, no sentido de ser a primeira perda,

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a primeira separação.” A tentativa de negar ou esquecer a existência da morte gera a negação de uma parte fundamental da própria existência humana.

O ser humano tem consciência, desde o momento em que adquire capacidade intelectual para tanto, que sua estadia nesse mundo é passageira e que, em determinado momento, seu corpo sucumbirá frente ao evento morte, seja por ocorrência que se prolongue no tempo, seja por episódio imediato que se colocará frente o sujeito sem que ele nada possa fazer para evitar as conseqüências.

Considerando a complexidade e as indagações que norteiam o conceito de morte, iniciar-se-á a presente etapa definindo-se aquilo que se considera “vida”. No entendimento de Odon Ramos Maranhão (1996, p. 247):

A vida se expressa por um complexo e dinâmico conjunto de fenômenos bioquímicos regidos por leis fixas, cujo funcionamento normal se traduz num equilíbrio biológico e físico-químico, bem como em valores orgânicos constantes.

A morte não pode ser considerada como um fato instantâneo que afeta o indivíduo de forma imediata, sem haver um intervalo de tempo entre sua instalação e a consumação. A morte deve ser vista como um fenômeno gradual resultante de uma sequência de fatores inevitáveis, sem os quais não poderia haver vida, considerando que vida e morte fazem parte do processo evolutivo humano. Importante ressaltar, ainda, que não há consenso acerca do que de fato é a morte e se há continuidade depois de sua ocorrência.

Entretanto, é possível garantir que a ocorrência dos eventos vida e morte refletem consequências em todas as esferas sociais do indivíduo.

Para se afirmar que um indivíduo está morto é necessário levar em consideração qual o conceito de morte adotado por aquele que vai constatar tal fenômeno: se o conceito muda, necessariamente a constatação será baseada em diferentes critérios.

Não obstante, o conceito do que se considera vida não é uníssono, havendo divergências quanto à limitação do início e do fim da existência humana. As normas existentes que tutelam o corpo do indivíduo muitas vezes deixam de ser aplicados, tendo em vista a falta de homogeneidade conceitual quanto à definição de cadáver.

A morte deve ser entendida, portanto, como um conjunto de fatores que afetam o indivíduo transformando-o em cadáver: “Órgãos, sistemas, tecidos etc. não morrem ao mesmo tempo: há graus de vida e há graus de morte. Assim, a morte há de ser entendida mais como “processo”, do que como “fato instantâneo”” (MARANHÃO, 1996, p. 247).

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Atualmente, o conceito de morte mais aceito no mundo é a morte neurológica. Entretanto, os critérios para a constatação se alteram com o tempo e ainda provocam debate (PENNA, 2005). No Brasil, o termo morte encefálica foi oficialmente aceito a partir da publicação da Resolução n. 1.346/1991, do Conselho Federal de Medicina, atualizada pela Resolução n. 1.480/1997, que propõe uma combinação de protocolos para a constatação da morte, destacando-se: coma profundo arreativo, apneia, midríase paralítica bilateral e reflexo óculo-motor ausente, durante um período mínimo de 6 (seis) horas, além de testes laboratoriais confirmatórios (PESSALACIA, 2011, p. 671-682).

O funcionamento do cérebro foi radicado como critério fundamental para a determinação do óbito de determinado sujeito. A morte, assim, pode ser determinada (reconhecida) como “inatividade encefálica irreversível” (MARANHÃO, 1996, p. 248), tendo como premissa a ausência de atividade nos hemisférios cerebrais e tronco cerebral, havendo causa conhecida e inequívoca, bem como diagnóstico preciso (PESSALACIA, 2011, p. 671-682).

É evidente que um conceito confiável para definição de morte traz inúmeros benefícios para o campo de transplantes de órgãos, uma vez que se evita a deterioração do material passível de ser transplantado através de uma rápida identificação da ocorrência da morte (SILVEIRA, 2009, p. 61-73).

Estima-se que aproximadamente 100 pacientes em cada bilhão apresentem, por ano, diagnóstico de morte encefálica, devido, principalmente, a acidentes e hemorragia intracerebral (PESSALACIA, 2011, p. 678).

3 ATENTADOS AO CORPO HUMANO MORTO

O corpo humano é o instrumento através do qual se realiza, concretamente, o direito fundamental à vida. Os direitos fundamentais do homem não podem ser vistos isoladamente, tendo em vista que sua disposição, pelo sujeito, depende de determinadas posturas adotadas pelo Estado, sem as quais o indivíduo não poderia exercer de modo efetivo as garantias outorgadas a ele pelo texto legal ou por diplomas normativos integrados ao ordenamento jurídico nacional.

Assim, busca-se no aparato estatal a amenização dos riscos à integridade física do sujeito, bem como o respeito à saúde do indivíduo através de intervenções públicas positivas, a fim de garantir a satisfação das necessidades básicas da população e o afastamento de condutas que possibilitem a afetação da integridade daqueles que necessitam da atuação do poder público.

No que se refere ao direito à integridade física, entende-se que pode ser violada apenas se houver interesse público legítimo, de modo a impedir que prevaleçam interesses individuais puramente lucrativos.

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Ainda, entende-se que a integridade humana não se limita apenas à perspectiva física, mas aos aspectos econômicos e sociais que operam na sociedade contemporânea (BRANDÃO, 2002, p. 98).

Dessa forma, os valores econômicos que tanto imperam na modernidade não devem ser aplicados nas relações que envolvam questões sobre a disposição corporal, sob pena do indivíduo ser considerado “coisa” frente aos valores econômicos já enraizados na sociedade.

4 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA

Dentre os principais podem-se citar os princípios da Beneficência, Não–Maleficência, Autonomia e Justiça. Define-se o princípio da Beneficência como a “obrigatoriedade do profissional da saúde e do investigador, de promover primeiramente o bem do paciente e se baseia na regra da confiabilidade” (SANTOS, 1998, p. 42).

Nesse contexto deve-se evitar quaisquer danos ao paciente, na medida do possível, atendendo aos interesses dos envolvidos, não se olvidando de buscar através das práticas disponíveis o bem-estar daquele sujeito de direitos. O tratamento aplicável ao paciente nunca deve buscar o mal, existindo o dever moral de agir em prol do paciente, na tentativa de maximização dos benefícios e minoração dos riscos. Encontra-se correspondência a tal pensamento na teoria clássica de John Rawls e sua reflexão sobre justiça como equidade (SANTOS, 1998, p. 40).

De acordo com o princípio da autonomia o profissional médico deve levar em consideração os valores morais, crenças e vontades do paciente, tendo em vista a possibilidade do indivíduo de autogovernar-se agindo de acordo com suas convicções. É evidente que a autonomia do paciente entra em conflito com as obrigações do médico, quando se coloca frente a frente o princípio da beneficência com o da autonomia. As crenças religiosas de pacientes, muitas vezes, tendem a afastar a possibilidade do médico de agir em conformidade com as técnicas aptas a produzirem efeitos benéficos no paciente, existindo um inequívoco choque de interesses entre as ações possíveis a serem dirigidas no caso concreto.

O princípio da não-maleficência é um desdobramento do da beneficência, configurando-se como uma advertência ou alerta, por conter a obrigação de não acarretar dano intencional ao paciente (DINIZ, 2001, p. 16).

O princípio da justiça estabelece que os riscos e benefícios devem ser distribuídos de forma equitativa, consagrando a igualdade entre aqueles que se encontram em situação igual. “Esse princípio, expressão da justiça distributiva, exige uma relação equânime nos benefícios, riscos e encargos, proporcionados pelos serviços de saúde ao paciente” (DINIZ, 2001, p. 17). Sobre o critério do justo e sua aplicação, Maria Celeste Cordeiro dos Santos (1998, p. 45) pronuncia-se da seguinte forma:

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Aquilo que, sob certo respeito, se aceita como critério do justo e do injusto pode por seu turno – desde que apareça como puro fato de ordem empírica – ser sotoposto a um juízo de igual espécie; postulando-se em nome da própria justiça, um mais elevado critério ideal, que transcenda todas as determinações jurídicas pontuais e assente noutro domínio, que não nestas, o seu fundamento.

A morte com dignidade suscita questões ético-jurídicas relevantes ao estudo, merecendo considerações específicas no que tange às percepções da Bioética sobre o fenômeno da dignidade no processo de morrer.

A dignidade da pessoa humana como convenção passível de legitimar eventual ato praticado merece especial reflexão, na medida em que os compromissos das ciências biomédicas e os avanços pretendidos por elas devem ter como fundamento norteador a dignidade humana, sendo inafastável sua relevância no campo técnico-científico, bem como nas situações específicas do dia-a-dia que necessitem de atuação de profissional médico.

Há que se esclarecer, ainda, se há um direito outorgado ao médico de prolongar a vida do paciente quando esse se encontra em fase terminal ou se o profissional da Medicina tem o dever de aplicar todas as terapias disponíveis ou utilizar qualquer mecanismo capaz de manter a vida do indivíduo. O que se tem nessa situação é que paira certa incerteza sobre a derradeira fase da doença que atinge o paciente, ou se esse tem chance efetiva de recuperação. Dessa forma, não há como admitir que um indivíduo determine o fim da existência de outrem, mesmo havendo a concordância do representante legal do enfermo ou de ente familiar, tendo em vista que conceder à família do paciente a decisão acerca da vida e da morte desse mostra-se, evidentemente, contrário aos princípios fundamentais da Bioética.

Ainda, é evidente que a fase final da vida de uma pessoa provoca inúmeras questões éticas e dúvidas de natureza existencial, sobretudo quando existe a possibilidade de intervir medicamente para aliviar a dor e o sofrimento (NUNES, 2009, p. 29-39). Não há como negar, contudo, que a problemática que envolve a discussão acerca de eventual suspensão de tratamentos médicos aplicáveis a pacientes em fase consideradas terminais está intrinsecamente relacionada com o estabelecimento de critérios aceitáveis por, pelo menos, boa parte dos profissionais médicos.

Ainda, não há como negar que a ciência está à disposição da pessoa, e o direito deve aceitar as inovações e intervenções se essas ocasionarem melhoras nas condições de vida do sujeito. O professor Rui Nunes (2009, p. 29-39) discorre sobre o tema da seguinte forma:

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Em síntese, a suspensão ou abstenção de meios desproporcionados de tratamento – incluindo a reanimação cárdio – pulmonar e as ordens de não-reanimar – são hoje prática corrente em todo o mundo ocidental, cristalizando a noção de que vida humana merece ser sempre respeitada na sua dignidade, sobretudo no final da existência.

A criação de normas diretivas a fim de unificar o comportamento dos profissionais da saúde frente a situações semelhantes, que envolvam conflitos acerca da aplicação ou não de tratamentos médicos a pacientes em supostos estados terminais, torna-se cada vez mais necessária, considerando a discrepância de condutas verificadas frente a situações ditas análogas.

A decisão de suspensão ou de abstenção de tratamento num doente capaz deve ser efetuada envolvendo ativamente o paciente no processo de decisão, meio da obtenção de consentimento informado, livre e esclarecido (NUNES, 2009, p. 29-39). Doente capaz deve ser entendido como aquele apto a compreender a informação levada até ele, bem como suscetível de integralizar os valores compreendidos nas noções informativas.

Quando a análise volta-se aos pacientes ditos incapazes, os quais se encontram impossibilitados de compreender aquilo que se passa a sua volta, o profissional médico deverá invocar a família do doente, a fim de que essa possa revelar quais as preferências de tratamento devem ser aplicadas àquele paciente. Não obstante, os valores éticos e morais prezados pelo paciente devem ser levados intrinsecamente em consideração, a fim de não afastar o princípio da beneficência, acarretando a primazia do melhor interesse do paciente.

Entretanto, não se olvida que a questão acerca da disponibilidade da família em decidir acerca da prestação de tratamento médico, quando o paciente encontra-se em estado no qual não há a possibilidade de expressar sua vontade, é no mínimo duvidosa, no que tange às disposições expressamente estabelecidas pelo ordenamento pátrio. Assim, a questão acerca da conduta ética na aplicação de determinadas práticas científicas no indivíduo a fim de afirmar apontada teoria ou refutá-la, é constantemente debatida, tendo em vista a inegável necessidade de a ciência servir ao homem, e não ao contrário.

Contudo, a elevada outorga de liberdade ao sujeito não é questionada, considerando que o indivíduo buscou por séculos a possibilidade de autodeterminar-se conforme seus princípios e valores. Ora, a corroboração dos valores que imperam na sociedade atual é mais do que clara. Nesse contexto obscuro que prevalece, não é idônea a premissa que estabeleça a possibilidade do indivíduo autodeterminar-se tão longinquamente a ponto de limitar a vida de outrem, mesmo que seja membro da própria família. Questiona-se até a possibilidade do indivíduo dispor da própria vida, quando recusa um tratamento necessário à manutenção da sua própria vida.

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Esclarecedor é o exemplo do praticante de determinada “religião”, na qual não é permitida adoção de definidas práticas médicas. Nesse contexto, não há como aceitar que o profissional médico deva adequar-se aos valores do paciente, deixando de adotar tratamentos necessários, a fim de evitar conflitos com as diretivas adotadas pelo paciente.

Nesse sentido, o Código de Ética Médica assim dispõe: “Art. 22: Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte” (BRASIL, 2009). Resta evidenciado que havendo risco de morte, não poderá o médico, atuante naquela situação, deixar de adotar procedimentos que visem a manutenção da vida do paciente, mesmo que tais práticas colidam com valores morais ou religiosos do paciente.

Independentemente do caso concreto em foco, a perspectiva que deve prevalecer é aquela que visa o melhor interesse do paciente, gerando a consequente preservação da vida desse. Nesse sentido tem-se a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos humanos, editada pelo Unesco no ano 2005, que dispõe expressamente em seu prefácio (UNESCO, 2005):

Ao tratar das questões éticas suscitadas pela medicina, ciências da vida e tecnologias associadas na sua aplicação aos seres humanos, a Declaração, tal como o seu título indica, incorpora os princípios que enuncia nas regras que norteiam o respeito pela dignidade humana, pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ao consagrar a bioética entre os direitos humanos internacionais e ao garantir o respeito pela vida dos seres humanos, a Declaração reconhece a interligação que existe entre ética e direitos humanos no domínio específico da bioética. Analisando as disposições constantes no Documento citado precitado,

tem-se que a mencionada Declaração foi elaborada a partir de determinadas observações, quais sejam a capacidade do indivíduo de observar a si próprio e as condições do ambiente e sociedade que o norteiam. Dessa forma, encontra-se, ainda, apontamentos no tocante à necessidade de respeito à dignidade da pessoa humana e às liberdades fundamentais, considerando o surgimento de dilemas a partir dos progressos da ciência e tecnologia.

É indispensável a citação dos princípios que norteiam a Declaração da Unesco sobre Bioética e Direitos humanos (UNESCO, 2005) sejam:

(a) proporcionar um enquadramento universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados na formulação da sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética;

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(b) orientar as acções de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas; (c) contribuir para o respeito pela dignidade humana e proteger os direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais, de modo compatível com o direito internacional relativo aos direitos humanos; (d) reconhecer a importância da liberdade de investigação científica e dos benefícios decorrentes dos progressos da ciência e da tecnologia, salientando ao mesmo tempo a necessidade de que essa investigação e os consequentes progressos se insiram no quadro dos princípios éticos enunciados na presente Declaração e respeitem a dignidade humana, os direitos humanos e as liberdades fundamentais; (e) fomentar um diálogo multidisciplinar e pluralista sobre as questões da bioética entre todas as partes interessadas e no seio da sociedade em geral; (f) promover um acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia, bem como a mais ampla circulação possível e uma partilha rápida dos conhecimentos relativos a tais progressos e o acesso partilhado aos benefícios deles decorrentes, prestando uma atenção particular às necessidades dos países em desenvolvimento; (g) salvaguardar e defender os interesses das gerações presentes e futuras; (h) sublinhar a importância da biodiversidade e da sua preservação enquanto preocupação comum à humanidade.

Tais princípios visam à preservação da integridade do indivíduo, através da afirmação dos valores individuais de cada pessoa, desde que não entrem em conflito com bens jurídicos superiores, bem como a afirmação da supremacia do indivíduo sobre o progresso pretendido pela ciência, tendo em vista a observação da dignidade humana e das liberdades fundamentais.

É importante, ainda, a análise do processo de terminalidade da vida a partir da perspectiva do paciente que se encontra em fase terminal. A partir da pesquisa realizada por José Ricardo de Oliveira, que buscou em pacientes sem esperança de cura dados para a elaboração de seu estudo, pode-se realizar algumas considerações sobre o tema. De acordo com o pesquisador, “[...] a intenção que determinou essa escolha foi registrar a voz desses entrevistados e extrair, por meio dela, sentidos e significados da existência humana” (OLIVEIRA, 2009, p. 77-94).

Através da pesquisa, nota-se, ainda, que objetivos e valores que antes eram considerados essenciais em si mesmos, tornam-se dispensáveis frente à situação enfrentada pelos pacientes pesquisados. Nesse sentido, encontra-se a seguinte afirmativa no corpo expositivo da pesquisa:

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Ao longo da existência busca-se a felicidade em torno de fatos positivos, conquistam-se espaços, trabalho, família, ascensão social, cultura, ganhos materiais etc. Em dado momento, entretanto, a felicidade vai ter que ser procurada onde sub(existe) o sofrimento. Troca-se o fascínio do mundo contemporâneo, globalizado, tecnológico, individualizado pelo encantamento de outro mundo, o do cuidado, não especial e inusitado, mas impregnado de amor, afeição, cumplicidade, carinho, solidariedade, com o desejo transparente de receber atenção, dedicação, proteção, potentes analgésicos e outras técnicas para o alívio de sintomas (OLIVEIRA, 2009, p. 77-94).

Quando o indivíduo enfrenta situação em que sua vida, certamente, tem prazo para terminar, é evidente que inúmeros questionamentos surgem: Como será a morte? Haverá dor? Como seus familiares suportarão a dor da perda? Assim, não há como asseverar que o indivíduo que passa por tal situação terá a capacidade de discernir acerca da continuidade ou não de determinado tratamento terapêutico.

A morte, como processo necessário à complementação do ciclo da vida que, deve ser vista com naturalidade, não devendo sua ocorrência ser prolongada, nem tão pouco antecipada. Ao profissional médico cabe propiciar o alívio da dor que impera em pacientes em fase terminal, através da adequada aplicação de cuidado paliativos, bem como possibilitar que a família e o paciente consigam superar as dificuldades ocasionadas pela doença.

Resta, então, a realização de um levantamento geral acerca daquilo que já se abordou ao longo da pesquisa, a fim de que os apontamentos necessários quanto à edição de atos normativos que envolvam questões bioéticas sejam devidamente realizados com base em dados concretamente existentes.

5 CONCEITO DE DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

Doar pode ser definido como o ato de “transmitir gratuitamente a outrem bem, quantia ou objeto que constituía propriedade”. Transportando esse simples conceito para a área médica, tem-se que a principal característica que prevalece é a gratuidade e a disponibilidade que o pretenso doador tem de praticar ou não o ato, à luz do que estabelece o art. 199, § 4º, da Constituição Federativa do Brasil.

Nesse sentido, tem-se ainda que “o direito às partes separadas do corpo vivo ou morto integra a personalidade humana” (DINIZ, 2001, p. 242). Não obstante, sendo elas bens (res) extra commercium, não podem ser comercializadas nem cedidas a título oneroso (DINIZ, 2001, p. 242).

A idéia de doar órgãos a fim de concretizar um transplante não é recente. Há relatos da mencionada prática 300 anos antes de Cristo na China, bem como no Egito, Grécia e América. No entanto, as mencionadas práticas na época eram rudimentares, não passando de transplantes de dentes ou a tentativa de implantar pernas (DINIZ, 2001, p. 245).

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De acordo com Maria Helena Diniz, transplante “é a amputação ou ablação de órgão, com função própria, de um organismo para ser instalado em outro e exercer as mesmas funções” (DINIZ, 2001, p. 261). Dentro dessa classificação, ainda tem-se o seguinte desdobramento, de acordo com os ensinamentos de Diniz (2001, p. 262):

[...] autotransplante ou auto-enxerto, no qual há transferência de órgão ou tecido de uma parte do organismo para outra, sendo doador e receptor a mesma pessoa, por exemplo, quando se transferem pele, ossos, veias etc.

Isso é muito comum nas operações de “ponte de safena [...]”. Ainda, há o que se denomina isotransplante, “[...] que se dá em caso de

transplante de tecidos ou órgãos em gêmeos univitelinos, ou seja, em pessoas que possuem os mesmos caracteres genéticos” (DINIZ, 2001, p. 262).

Alotransplante ocorre quando o doador e receptor não possuem características genéticas idênticas (DINIZ, 2001, p. 263). Por fim, existe o conceito de xenotransplante, “que ocorre com a transferência de órgãos ou tecidos de animal para um ser humano” (DINIZ, 2001, p. 263).

Em 1984, na Califórnia, EUA, foi realizado transplante de um coração de babuíno para um bebê humano, que faleceu após 20 dias. Em 1995, na Carolina do Norte, EUA, realizou-se um teste pré-transplante, na tentativa de interligar o sistema circulatório de babuínos ao de porcos, sendo que esses haviam recebido genes humanos. A experiência foi considerada um sucesso, gerando expectativa quanto à possibilidade da realização de transplantes interespécies, em um futuro próximo (ALMEIDA, 2000, p. 81).

Entretanto, a utilização de animais em pesquisas científicas não deve ser tolerada em todas as ocasiões, mas apenas quando for imprescindível ao avanço tecnológico, o qual poderá trazer efetivos benefícios à humanidade (ALMEIDA, 2000, p. 81).

6 EVOLUÇÃO HISTÓRICA NO DIREITO PÁTRIO O primeiro diploma legal a vigorar no Brasil trazendo disposições

específicas acerca do procedimento de transplantes de órgãos foi a Lei n. 4.280/1963, que foi elaborada a fim de regular a “utilização científica e terapêutica do corpo humano” (GEDIEL, 2000, p. 109).

Referida Lei “regulou apenas a extirpação de órgãos ou tecidos de pessoas falecidas, mediante autorização, em vida e por escrito, do titular do

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direito à disposição corporal e não oposição do cônjuge e parentes nominados no texto” (GEDIEL, 2000, p. 109). Conforme observa-se, a Lei de 1963 deixou de abranger os eventuais casos de transplantes inter vivos, bem como estabeleceu a possibilidade de integrantes de grupos religiosos dos quais o propenso doador pertencia pudessem impedir a realização de procedimento transplantatório, tendo como fundamento suas crenças e valores.

Sobre o assunto, José Antonio Peres Gediel (2000, p. 110) manifesta-se da seguinte forma:

Ao atribuir legitimidade a esses ente sociais para se manifestarem sobre os destinos do cadáver, a Lei revelava uma exagerada ampliação de titularidade de interesses, destacando, inclusive, os aspectos imateriais da personalidade do falecido, tais como sua posição social e convicções éticas e religiosas.

A Lei n. 4.280/1963 foi revogada pela edição da Lei n. 5.479/1968, que expandiu o campo de atuação da Lei anterior, passando a regular o procedimento de retirada de órgãos também entre pessoas vivas. Não obstante, a nova Lei deixou de regular em seu texto critérios para a verificação do momento da morte, bem como limites à atuação sobre o cadáver (GEDIEL, 2000, p. 111).

A partir da edição de diplomas legais superados, que não atendiam às necessidades da sociedade da época de modo efetivo, a demanda por órgãos cresceu consideravelmente, abrindo espaço para a comercialização de órgãos e tecidos, frente à escassez de material para a realização de procedimentos transplantatórios (GEDIEL, 2000, p. 112).

Em 1992 foram publicadas duas Leis acerca do tema, quais sejam as Leis n. 8.489 e 8.501, dispondo, esta última, sobre o emprego de cadáveres não reclamados para fins de pesquisas científicas, que poderiam ser utilizados sem a necessidade de qualquer autorização (GEDIEL, 2000, p. 116). O Decreto n. 879/1993 regulamentou a Lei n. 8.489/1992, estabelecendo a possibilidade de a família autorizar verbalmente o transplante, ao médico, se não houvesse manifestação em vida do falecido (MALUF, 2010, p. 207).

Na tentativa de superar o déficit de órgãos disponíveis no Brasil para transplantes, o Congresso Nacional editou a Lei n. 9. 434/1997, que consagrava em seu artigo 4º a presunção de autorização para a retirada de órgãos, transformando todos os maiores e capazes, desde que brasileiros, em doadores de órgãos, consagrando o chamado “sistema de consentimento presumido” (GEDIEL, 2000, p. 188).

A Lei n. 9. 434/1997 foi alterada pela Lei n. 10.211/2001, que suprimiu a necessidade de indicação expressa do termo “não doador” para aquele que

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não gostaria de se submeter ao procedimento após a morte, tendo em vista que a autorização presumida para a realização de transplantes foi abolida do ordenamento jurídico (MALUF, 2010, p. 209).

Não obstante, após a análise da evolução histórica da legislação pertinente ao tema, opta-se pela apreciação pormenorizada da atual legislação que regem os procedimentos transplantatórios no Brasil, com a respectiva análise da Lei n. 9.434/1997 e suas posteriores alterações.

7 ASPECTOS POLÊMICOS DA LEI N. 9.434/1997

Alguns estudiosos consideraram a Lei n. 9.434/1997 inconstitucional, tendo em vista que o mencionado diploma legal outorgou ao Estado a disponibilidade de direito de personalidade, suprimindo liberdade individual através da presunção de doação de órgãos e tecidos, bem como desrespeitou a integridade física e dignidade do sujeito (DINIZ, 2001, p. 289).

Ainda, tem-se que o termo “não doador de órgãos” constante em documento de identificação, poderia ocasionar discriminação contra aquele que não queria dispor de seus órgãos, sendo reprovado socialmente por supostamente não se comover com aqueles que aguardam sua vez em lista de espera, bem como sofrer atentado contra sua intimidade e privacidade (DINIZ, 2001, p. 292).

Até mesmo a natureza jurídica do ato de doação foi questionada, considerando que a imposição legal para a prática do ato poderia retirar seu caráter volitivo, desconstituindo a verdadeira natureza da doação (DINIZ, 2001, p. 290).

A ausência de esclarecimentos da população em geral no tocante às consequências da Lei n. 9.434/1997 poderiam ocasionar, também, de acordo com alguns doutrinadores, induzimento à opção de doação de órgãos, tendo em vista a falta de interesse de órgãos públicos em divulgar a possibilidade de manifestação negativa, em documento de identificação, acerca da doação de órgãos.

Outrossim, alguns estudiosos temiam, ainda, que a demasiada ânsia de se obter órgãos poderia ocasionar o induzimento de morte em pacientes terminais. Ainda, deve-se considerar a ausência de critérios objetivos para a realização da distribuição de órgãos dentre aqueles que compunham fila de espera por transplante (DINIZ, 2001, p. 295).

O que se observa ao analisar a Lei n. 9.439/1997, antes das alterações trazidas pela Lei n. 10.211/2001, é uma evidente falta de planejamento, aliada a uma imprudente medida rigorosa de caráter social, que tinha a finalidade de afastar a iminente necessidade de órgãos para a realização de transplantes.

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8 DIREITO SUBJETIVO DE DISPOSIÇÃO CADAVÉRICA

Muito se tem falado acerca da natureza do direito à disposição cadavérica, sobretudo quando é exercido pelos familiares, para saber se se trata de direito subjetivo propriamente dito (GEDIEL, 2000, p. 189).

Esse questionamento adquire potencial importância quando se parte da premissa de que os direitos subjetivos personalíssimos extinguem-se com a morte, sendo insuscetíveis de transmissão aos herdeiros (GEDIEL, 2000, p. 189). Ainda, tem-se um problema ainda maior quando a análise é voltada para a ocorrência de eventual conflito de direitos fundamentais entre o paciente que aguarda a doação de órgão ou tecido para procedimento transplantatório e a família do falecido que eventualmente usurpa direito personalíssimo. Entretanto, a maioria dos ordenamentos jurídicos atribui legitimidade à família para desempenharem direito alheio, a fim de suprimirem eventual silêncio do falecido acerca da utilização de órgãos ou tecidos (GEDIEL, 2000, p. 189).

É incontestável que o consentimento da família do paciente considerado como potencial doador é, atualmente, o maior limitador do sucesso de transplantes de órgãos no Brasil, considerando que a legislação atual requer o consentimento da família para a remoção de órgãos ou tecidos para transplante (PESSALACIA, 2011, p. 671-682).

Assim sendo, diante da intransmissibilidade dos direitos de personalidade, não haveria como admitir-se a existência de direito a ser transmitido aos familiares, tendo em vista a impossibilidade de repersonalização do cadáver, a despeito do que estabelece o Código Civil acerca do termo final da personalidade jurídica (GEDIEL, 2000, p. 190).

Quando se volta à análise do artigo 6º da Lei n. 9.434/1997, o qual veda a possibilidade de remoção de órgãos, tecidos ou partes do corpo de pessoas não identificadas, a princípio poder-se-ia chegar à conclusão de que o mencionado dispositivo legal protege os sentimentos dos familiares em relação àquele ente falecido. Entretanto, é evidente que o texto da Lei foi elaborado para evitar que cadáveres restem insepultos, permanecendo como meros objetos da ciência (GEDIEL, 2000, p. 191).

A problemática adquire contornos ainda mais acentuados quando o possível doador de órgãos ou tecidos manifestou-se em vida pela aceitação do procedimento de doação, mas a família manifesta-se contrariamente ao procedimento. Nesse caso, frente ao que preconiza a Lei n. 9.434/1997, o profissional médico não poderia realizar o procedimento de retirada de órgãos ou tecidos, pela ausência de autorização de familiar.

Ora, como poderia um familiar usurpar o direito personalíssimo de disposição do próprio corpo de outro ente familiar? Qual a justificativa para

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tal assertiva? Não há. O que se vê no caso em comento é uma clara violação ao direito do paciente em exercer plenamente sua saúde, bem como uma afronta à dignidade da pessoa humana, tendo em vista que a recusa da família em autorizar a doação de órgãos ou tecidos atinge tanto o direito personalíssimo do falecido em dispor do próprio corpo, como o direito do paciente em receber tratamento digno e satisfatório dos órgãos públicos de saúde.

9 EFICÁCIA DO CONSENTIMENTO POST MORTEM

Os atos de disposição corporal com eficácia post mortem podem destinar-se para fins terapêuticos ou para experimentação científica. O regime jurídico que rege as disposições cadavéricas diferencia-se do regime que regula as disposições sobre o corpo com finalidades semelhantes, mas em situação diferenciada, tendo em vista que a vontade do sujeito que se projeta para além de sua morte pode exigir manifestação de terceiros para completá-la ou suprimi-la (GEDIEL, 2000, p. 187).

O direito à disposição cadavérica pode ser exercido com a finalidade de determinação da forma e circunstância da cerimônia fúnebre, ou para permitir a utilização do cadáver ou de seus elementos em favor de terceiros, com finalidades terapêuticas ou científicas (GEDIEL, 2000, p. 187).

Quando os atos de disposição são exercidos pelo próprio sujeito, através de documento com previsão para produzir efeitos após a morte do emissor, configura-se exercício de direito subjetivo propriamente dito. Se o ato de disposição for emitido dentro de padrões jurídicos aceitáveis e com os requisitos de validade necessários a um ato jurídico, como capacidade do sujeito e forma adequada da manifestação de vontade, além da ausência de coação ou erro, deve prevalecer sob qualquer que seja a vontade de terceiros, tendo em vista que se trata de exercício de direito de personalidade inafastável.

Quando se admitem hipóteses em que terceiros podem decidir acerca do destino do cadáver do falecido, fala-se em um direito subsidiário, geralmente reconhecido aos familiares do falecido (GEDIEL, 2000, p. 188). Entretanto, no caso do ordenamento jurídico nacional, não há o que se falar em direito subsidiário, tendo em vista que a vontade dos familiares pode suprimir a vontade do falecido manifestada em vida.

O consentimento e a autonomia corporal como fatores elementares constituintes dos atos de disposição corporal decorrem, principalmente, do “[...] direito fundamental e irrenunciável de cada pessoa autodeterminar-se em relação ao seu corpo e a sua saúde” (GEDIEL, 2000, p, 140). Nesse diapasão, é incontestável que a manifestação de vontade válida é requisito que se impõe quando a liberdade de disposição corporal é considerada, sendo elemento essencial tanto para a doação de órgãos, quanto para a realização de autotransplantes.

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10 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente estudo foi realizado com base em livros relacionados, leis regulamentadoras, decisões administrativas e análise de estatísticas relacionadas.

11 CONCLUSÃO

É possível verificar que a proposta inicial de análise da evolução da tutela jurídica do corpo morto com a finalidade de se chegar à atual conjuntura do sistema legal que rege a disposição de órgãos, procurou ser pertinente e foi cumprida na medida das fontes existentes consultadas.

Entende-se, com as deduções decorrentes da pesquisa, que a dignidade da pessoa humana não é retirada do indivíduo após o seu falecimento, devendo a coletividade cumprir preceitos normativos que visem à proteção da memória do falecido e de sua integridade física. Verificou-se, ainda, que o indivíduo não detém poder absoluto sobre seu próprio corpo, devendo sua conduta atender a interesses sociais, bem como interesses Ético-Sociais.

Verificou-se que o conceito de morte mais aceito no mundo, hoje, é a morte neurológica, havendo critérios específicos para sua constatação, de acordo com a regulamentação estabelecida pelo Conselho Federal de Medicina. Ainda, constatou-se quais são os sinais corpóreos perceptíveis imediatamente após a morte do indivíduo, bem como quais são os critérios para se declarar a morte de alguém.

Observou-se que o prolongamento da vida do ser humano com a utilização de meios passíveis, apenas, de prorrogar o sofrimento do paciente, sem a possibilidade de cura ou de amenização da dor provocada pela doença não é atitude aconselhável frente aos princípios da Bioética.

Concluiu-se que as principais características do ato de doação de órgãos são a gratuidade e a disponibilidade, configurando-se os transplantes como instrumento através dos qual o indivíduo vê realizada sua dignidade.

Observou-se a intransmissibilidade dos direitos de personalidade aos familiares, tendo em vista a impossibilidade de repersonalização do cadáver, configurando a recusa da família em autorizar a doação de órgãos ou tecidos uma afronta ao direito do paciente em receber tratamento digno e satisfatório dos órgãos públicos de saúde.

Por fim, concluiu-se que o consentimento e a autonomia corporal são fatores elementares constituintes dos atos de disposição corporal, não havendo a possibilidade de se admitir que a família do falecido usurpe um direito personalíssimo de autodeterminação, ainda mais quando a recusa da família em autorizar a retirada de órgãos afronta diretamente o direito à saúde daqueles

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que necessitam de um transplante para continuar vivendo. Se o Estado não é legítimo para figurar como proprietário dos cadáveres dos indivíduos, não há como admitir-se que a família do falecido possa dispor do cadáver de acordo com sua vontade e seus valores.

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DEMOCRACIA PARTICIPATIVA E FRATERNIDADE:A IMPORTÂNCIA DA RELAÇÃO ENTRE AS ASSOCIAÇÕES CIVIS E AS AGÊNCIAS REGULADORAS NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO

PARTICIPATORY DEMOCRACY AND FRATERNITY:THE IMPORTANCE OF THE RELATIONS BETWEEN CIVIL ASSOCIATIONS

AND REGULATORY AGENCIES IN PUBLIC SERVICES

érico PraDo KlEin

Graduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba – UNI-CURITIBA

ana luiza chaluSnhaK

Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996) e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (2004). Foi assessora jurídica do Tribunal de Justiça do Paraná por dez anos. Atualmente é advogada - atuando na área de Direito Público. . Professora de Direito Administrativo no Centro Universitário Curitiba e orientadora em Trabalhos de Conclusão de Curso.

RESUMO

Este artigo tem por foco a construção de uma sociedade em que se valorize a dignidade do homem, como indivíduo e nas relações sociais. São defendidos, como fatores que impulsionam a nação em direção a este objetivo, a ampliação da participação popular nas decisões do governo e o fomento às relações que valorizem os laços entre os indivíduos. Quer-se, neste sentido, demonstrar a necessidade da participação das associações civis na formação dos atos de governo, aliando-se às agências reguladoras independentes para a formação de uma ponte entre a sociedade e o Estado, no contexto da prestação de serviços públicos. Privilegiou-se a pesquisa bibliográfica tomando-se, então, como referenciais teóricos, a doutrina de John Rawls quanto à noção da justa cooperação social, aliada aos estudos de Gunnar Myrdal e de Paulo Bonavides, dando assentamento à ideia de que a fraternidade é pedra basilar do desenvolvimento socioeconômico, guiado pela busca da valorização da dignidade imanente ao ser humano inserido na sociedade contemporânea. Assim também é para a construção de uma democracia participativa em que o povo é soberano e realiza sua vontade em relações que privilegiam a conciliação e a comunhão de valores (idem sentire). A respeito das associações, serviu como fundamento a teoria de Habermas que explica a criação, por estas instituições,

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de esferas públicas que qualificam e transmitem a vontade pública às esferas de poder político, assim, além de legitimar a atuação do Estado, fomentam relações saudáveis entre os homens e a iniciativa para atribuir eficácia aos seus direitos. Tais questões encontram respaldo na teoria poliárquica de Robert Dahl, segundo a qual, aproxima-se do conceito de democracia ao abrir espaço para diversos grupos de influência na Administração Pública.

Palavras-chave: democracia participativa, fraternidade, associações civis, agências reguladoras independentes, serviço público.

ABSTRACT

This article aims at the construction of a society in which human dignity, of individuals and in social relationships, is the greatest value. The extension of popular participation in governmental acts and the promotion of relationships that enrich our social bonds are defended as values that propel our society towards this goal. Consequently, to enable civil associations participation in governmental acts, regulatory agencies should approach these associations in a way to build a bridge between people and the government. This article was based mainly in bibliographic research, through the doctrine of John Rawls involving the notion of fair social cooperation, as well as the studies of Gunnar Myrdal and Paulo Bonavides, which explain how fraternity can work as the main concept to lead socioeconomic development, attributing value to the dignity of individuals in the context of the contemporary society. So it works for the construction of a participatory democracy, in which the people are sovereign, translating its will into relations that privilege conciliation and sharing values (idem sentire). Regarding civil associations, this article has its basis on Habermas’s theory concerning the formation of public spheres that qualify and convey public will to the Public Administration, therefore making the State’s acts legitimate, besides promoting healthy relationships in society and making the individuals seek for their rights. These matters find support on Robert Dahl’s Polyarchy, to which our society can converge to a democracy by opening space for associations to influence on Public Administration.

Keywords: participatory democracy, fraternity, civil associations, independent regulatory agencies, public service.

INTRODUÇÃO

O contexto deste artigo é o Estado Democrático de Direito. Busca-se compreender o Direito, como fenômeno histórico-cultural e realidade ordenada,

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e a forma de organização e atuação do Estado, visando entender como deverá ocorrer a gestão dos serviços públicos e sua possível concessão. Essa sistemática ocorre sob a luz do Direito Constitucional, regente do Estado e das normas inferiores, e suas decorrências lógicas, que neste artigo serão vistas sob duas principais bandeiras: a democratização do Estado e a fraternidade no Estado atual, sem prejuízo da inter-relação que ocorre entre os conceitos e que será apontada (DA SILVA, 1992, p. 35/36).

A organização política do Estado deverá adquirir contornos que denotem seu amadurecimento histórico, regendo a sociedade que o legitima sob princípios constitucionais de harmonização social e “transformação do status quo” (DA SILVA, 1992, p.102). As águas do Estado Democrático de Direito, que têm seu nascedouro na Constituição da República – cujos princípios guiam o Estado como o fluxo de uma corrente – trazem à ponderação ideológica os braços da liberdade e da igualdade, de forma a proteger, não apenas a liberdade individual, mas também o seu viés substancial, do indivíduo inserido na sociedade. Tais afluentes só podem se reunir e tomar o curso do rio principal com sustentação na fraternidade entre os homens. Este rio, perene, caudaloso e resoluto, toma um curso único, dados os valores e objetivos comuns desta sociedade fraterna e harmônica, unida pela missão de realização da dignidade da pessoa humana no seio social, deixando-se navegar por todos: todos os indivíduos, todas as famílias, todos os setores da sociedade e, finalmente, todos os povos. Tais povos são os seus Estados na medida em que os tornam legítimos pela expressão constante e incansável de sua vontade “no processo político, nas decisões de governo, [e] no controle da Administração Pública” (DI PIETRO, 2009, p. 14), sempre nos moldes democráticos.

Neste contexto, deve-se ver a importância da realização adequada do serviço público e como se pode alcançar tal objetivo. Aqui se propõe uma análise da importância da atuação das agências reguladoras e das associações nessa prestação, mas, sobretudo, da atuação conjunta destes entes e os benefícios que esse agir em colaboração pode promover. Com este fim, se buscaram fontes a respeito da realização da democracia, como as obras de Habermas e Robert Dahl, que encaminharam uma pesquisa de viés sociológico passando por Adrián Gurza Lavalle e em defesa dos valores da fraternidade para o desenvolvimento socioeconômico, encontrando respaldo em John Rawls e Gunnar Myrdal. Toda a pesquisa foi guiada, pela leitura de autores como Paulo Bonavides, José Afonso da Silva e Dalmo de Abreu Dallari. As questões a respeito das agências reguladoras no Brasil são trazidas, principalmente, de um cotejo do estudo das lições de Marçal Justen Filho e Alexandre Santos de Aragão.

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REVISÃO DA LITERATURA

As bases do Estado Social foram conquistadas por acirradas lutas sociais, fundando-se na construção de capital humano de qualidade, a ser realizado por meio da valorização da dignidade humana, com fulcro principalmente na “[...] educação, pesquisa e serviços públicos eficientes [...]”, de modo a gerar desenvolvimento econômico sustentável, alicerçando a própria continuidade desse modelo de Estado, preocupado com a redução das desigualdades e com a promoção de condições para que cada cidadão desenvolva plenamente a sua humanidade (CASTELLS, 2012). Percebe-se que os valores do Estado Social devem ser mantidos, procurando-se apenas alcançá-los de forma diversa.

Um aspecto fundamental neste contexto é a dita constitucionalização do Estado, com a necessária escolha das liberdades essenciais (RAWLS, 2000, p.145/146) a serem promovidas, ou seja, os direitos que a Constituição Federal, por meio do legislador constituinte originário e alterações posteriores, decide positivar, com base principalmente nos direitos que tiveram efetividade em outros Estados e são capazes de servir de estrutura para a construção de “condições sociais essenciais que permitem o desenvolvimento adequado e o pleno exercício das duas faculdades da personalidade moral [senso de justiça e concepção do bem] ao longo de uma vida completa” (RAWLS, 2000, p. 144/147 e 216/217). Ver-se-ia, então, a sustentação dessas liberdades em ordem de prioridade estabelecida sob o foco da teoria de justiça como equidade, formando um conjunto de liberdades essenciais, que apenas poderiam ser mitigadas em face de outras liberdades de mesmo caráter (RAWLS, 2000, p.148/152).

A Carta Magna de um país deve se calcar na situação fática amplamente analisada da sociedade e do Estado que procura reger, adaptando-se a esta situação e tendo em vista, ainda, os fins principais dessa sociedade, já que a força vital da Constituição situa-se na sua coerência com os valores de um país em determinado momento histórico. Quando abrange os objetivos de diversos grupos com interesses heterogêneos, porém legítimos, tendo em vista o pluralismo que vige no país, e estabelecendo alguns princípios fundamentais perenes e de possível cumprimento, a Constituição é merecedora do “apoio e defesa da consciência geral”, gerando a vontade de se reger segundo os ditames constitucionais (HESSE, 1991).

A tridimensionalidade do Direito professada por Miguel Reale (1979, p.14/21) torna claro que a harmonização da incidência da norma no meio social depende, além do aspecto formal da vigência, e do elemento empírico de eficácia, do fundamento por detrás das normas, ou seja, de sua legitimidade, segundo padrões éticos e de justiça, para possuir efeitos sociais, o que depende da inserção do povo no processo deliberativo político, o que se propõe por meio das associações.

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É desta forma que o Documento Fundador do nosso Estado concretiza um feixe de princípios que permeiam a sua própria interpretação e alteração, além de dar linhas mais claras a todo o arcabouço legal do país. Paulo Bonavides chama a atenção para a correta interpretação e aplicação das leis, que se submetem à Constituição e seus princípios, tendo como chave a dignidade da pessoa humana e a realização progressiva da democracia participativa (BONAVIDES, 2008, p. 28/29 e p. 230/234; DE MELLO, 2011).

Já é consagrada e antiga a percepção de que os “[...] princípios determinam a correlação entre as leis dos diferentes tempos e lugares [...]”, de forma que podem ser percebidos como força motriz do sistema dinâmico, porém coerente, de leis, sendo a substância da própria sistematicidade e coerência do corpo de leis de uma nação. O legislador deve estabelecer as diretrizes do conjunto normativo, entretanto não poderá imaginar a possibilidade de abdicar da atividade do hermeneuta, a quem caberá verificar o objetivo da incidência da norma na estrutura social e o contexto histórico e socioeconômico de sua aplicação, para determinar o alcance e aplicação das normas, de forma responsável sociologicamente e preocupada em “[...] promover o progresso, dentro da ordem [...]” (MAXIMILIANO, 1991). A atividade técnica e hermenêutica no caso do serviço público conta com a atuação das agências reguladoras, que buscam conformar a prestação do serviço às necessidades sociais, atentando-se às especificidades do mercado (Cf. DE ARAGÃO, 2004, p. 06).

Defende-se, neste contexto, que a natureza da atuação do Estado no mercado deve ser no sentido de auxiliar, não apenas na prosperidade das empresas, mas também de forma a integrar as empresas brasileiras no cenário internacional e nacional, promovendo com isso o uso da “[...] soberania econômica nacional como instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna [...]” (GRAU, 2008, p.33).

As definições aqui apontadas dirigem-se a um Estado que busca o bem-estar e a liberdade, alertando para a necessidade de restrições aos modos de atuação capitalistas, com estabelecimento de princípios de força normativa, para a formação de um capitalismo mais “[...] calmo, disciplinado, razoável [...]” almejando-se uma conciliação entre os direitos relacionados à liberdade e aqueles ligados à igualdade, gerando uma democracia popular, afirmando a possibilidade de convivência entre estes conceitos e aceitando a influência de um pensamento preocupado com a integração social no âmago da democracia, como sustentação para a liberdade substancial (FERREIRA, 1975, p. 966/968 e p. 384/388).

A análise que se está a fazer é a de como o Estado pode, em linhas gerais, enfrentar os problemas apresentados por uma conjuntura atual de globalização, tendo em vista alguns de seus fins principais, como o “crescimento econômico (criação de riqueza), sociedade civil (coesão social) e liberdade política”,

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percebendo ainda, que a globalização vem causando, em geral, exclusão social em razão da procedência do indivíduo, crescente competição e deterioração do conceito de serviço público (GRAU, 2008, p. 48/49).

A manutenção de certa pureza de tal conceito é essencial, e é por todo o já dito, que se percebe a relação direta entre a participação do usuário na Administração Pública e sua fiscalização e controle da prestação do serviço público, até por que esta deve ser a maneira mais eficaz de garantir a realização dos outros princípios deste serviço (GROTTI, 2000, p. 58/60). Explica-se, neste sentido, que os serviços públicos, ou seja, os serviços a serem prestados pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes, no regime jurídico de direito público, são aqueles ligados diretamente à satisfação de necessidade inerente à dignidade da pessoa humana, assim não se pode admitir que tais serviços desrespeitem certas balizas estabelecidas, tendo em vista sobretudo a continuidade, igualdade e mutabilidade da prestação, de modo a prestar serviço que respectivamente: não seja interrompido, por ser necessário à satisfação de necessidade cotidiana dos usuários; seja prestado igualmente a todos, sem prejuízo de tratamento diferenciado em razão da aplicação da igualdade material e no qual sejam promovidas atualizações para que se atue em compasso com “as modificações técnicas, jurídicas e econômicas supervenientes” (JUSTEN FILHO, 2003, p. 30/31).

Ressalta-se a importância do serviço público como prestação estatal que representa as funções do Estado face ao cidadão e como representação da própria solidariedade que forma a sociedade como tida hodiernamente (JUSTEN FILHO, 2003, p. 23). Reconhece-se, por outro lado, que deve ser levado em consideração o princípio da subsidiariedade, segundo o qual o Estado atuaria junto à iniciativa privada, buscando auxiliar na obtenção de sucesso do empreendimento, apenas quando necessário, seja para regular, fomentar, fiscalizar ou até em “parceria entre público e privado [...]” (DI PIETRO, 2009, p. 15/16).

É neste sentido, também, o fenômeno da desregulação, pelo qual se passaria a regular de forma a favorecer o bom andamento do mercado e à própria realização da liberdade nesse âmbito, expurgando as práticas prejudiciais ao mercado, principalmente quando se tratar de serviços públicos sob permissão ou concessão (DI PIETRO, 2009, p. 20/21). É no contexto da “desregulação” que vem à tona a ideia de que os serviços tenham sua boa prestação conduzida pela iniciativa privada, trazendo, por meio da concorrência, frutos como a qualidade da prestação e as tarifas módicas. Tal prestação, porém, não deixaria que a função do Estado se reduzisse ao fomento da atividade. A Administração Pública, por meio das agências reguladoras, deveria se incumbir, principalmente, de assegurar a verdadeira concorrência e os benefícios dela advindos, sem os quais a delegação de serviço público a um particular perde boa parte de seus atrativos (COELHO, 2002, p. 194/199).

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A subsidiariedade do Estado e a noção de desregulação contribuem para este estudo, mesmo que não possam ser tomadas por absolutas.

Com a ampliação das necessidades e a verificação da heterogeneidade do interesse público, viu-se que não cabia ao Estado suprir diretamente todas essas necessidades, mas sim fomentar o desenvolvimento das diversas parcelas da população e seus interesses, ou seja, “o incentivo à iniciativa privada de interesse público [...] para que os vários grupos de interesses, representados por entidades particulares, partam à busca de seus próprios objetivos.” (DI PIETRO, 2009, p. 19). Tal ação se dará de forma gradual e com regulação responsável socialmente, com participação ativa das associações e das agências reguladoras.

Sabe-se que a distribuição de renda deve se dar pela própria sociedade, nos meios de produção, com a justa remuneração do trabalhador. Sabe-se, ainda, que a empresa é, ou ao menos deveria ser, uma representação da união dos homens e da fraternidade entre eles, regulando-se a partir das leis naturais do mercado, que, em congruência com a noção de regulação que aqui se defenderá, trazem diversos benefícios ao desenvolvimento das atividades econômicas em sentido amplo (JUSTEN FILHO, 2002, p. 13). O que se vê ao fim é que, a questão relativa aos serviços públicos não deve girar em torno de se ele é prestado pelo Estado ou não, mas sim sobre como conduzir a sua melhor prestação, que realize com a maior plenitude os interesses públicos heterogêneos (MARQUES NETO, 2002a, p. 76). Neste sentido parece proceder a crítica neoliberal à atuação do Estado em atividades econômicas, que acaba por, além de ser ineficiente, gerar prejuízo, o que culmina com a oneração dos cidadãos pela cobrança progressiva de impostos para financiar uma atividade que, se estivesse sendo realizada pela iniciativa privada, poderia ser gerida com lucro e eficiência (MISES, 1986, p. 36/37).

Saiba-se que a noção de serviço público atualmente não se dissocia da atuação das agências reguladoras independentes, como professa Adelaide Musetti Grotti. Diz-se que tais agências devem ter atuação independente em relação ao Estado, para adequar a prestação do serviço à realidade social que se apresenta, promovendo a concorrência, almejando a universalidade, impondo a prestação adequada dos serviços, compondo os conflitos entre concessionários e principalmente quando houver envolvimento do usuário ou de seus interesses, implementando a participação dos usuários para a satisfação de seu interesse (GROTTI, 2000, p. 44/45 e 59). Percebe-se que uma das vias mais importantes de ligação entre a Administração e os usuários são as agências reguladoras, que buscarão a garantia da qualidade da prestação, a defesa do usuário e, sob moldes promotores de justiça social, a universalização do serviço (SUNDFELD, 2000, p. 34/35).

Lembra-se então da razão para o surgimento das agências reguladoras independentes, no qual a intenção que deve prevalecer é a utilização do

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suporte concedido pela iniciativa privada para obter eficiência e atendimento do interesse público na realização dos direitos fundamentais realizados pelo serviço público. Deve-se levar em conta que prevalece na iniciativa privada a busca pelo lucro, de forma que as agências devem ter papel central corrigindo os desvios no longo percurso de realização do interesse público. Tenha-se por base que: a eficiência, a agilidade, a concorrência, e outros benefícios da realização do serviço pela iniciativa privada devem ser revertidos para o bem da satisfação do interesse público, já que esta é a única justificativa para as concessões. (CUÉLLAR, 2001, p.128).

As agências reguladoras são, portanto, responsáveis pelo exercício de uma das funções principais do Estado Contemporâneo: a regulação de atividades econômicas. Elas se caracterizam por ter atuação que dá moldes a certos setores da economia, principalmente naqueles em que particulares atuem em serviços públicos, assim buscando dar efetividade a direitos fundamentais, que não deixaram de ser responsabilidade do Estado após a superação de um conceito puro de Estado Social. É necessário então apresentar as origens e o regime jurídico característico das agências reguladoras, para que se entenda o seu modo peculiar de operar, que busca garantir, como fim principal, a realização do serviço público adequado, por meio de seu poder de controle, com o objetivo mais amplamente visto de “[...] propiciar o desenvolvimento harmônico e integrado da sociedade preconizado pelos arts. 1º, 3º e 170 da Constituição Federal” (DE ARAGÃO, 2004, p. 115).

As agências reguladoras brasileiras são autarquias dotadas de personalidade jurídica própria, regidas nos termos da respectiva lei instituidora. É de se salientar que o caráter autárquico é especial, assim sendo, as agências dispõe de independência, ou seja, têm autonomia decisória, não precisando para tal de autorização, nem se submetendo a revisão, sendo apenas controladas administrativamente pelo Ministério ao qual pertencem (JUSTEN FILHO, 2002, p. 390/391).

A autonomia das agências reguladoras estende-se ainda “à composição de sua direção e à obtenção e gestão de recursos”, ambas especificadas em sua lei instituidora. Toda a autonomia garantida às agências se explica no fato de serem entendidas como independentes, assim sendo, apresentam-se menos sujeitas aos arbítrios da Administração Pública. Elas possuem independência administrativa, proteção ao mandato de seus dirigentes contra pressões políticas e particulares, além de autonomia financeira, a última garantida pela taxa de regulação paga pelo concessionário ou permissionário (SOUTO, 2002, p. 226 e 229).

As agências – embora possam e devam, em conjunto com entidades representativas da sociedade e conselhos consultivos, colaborar na formação das políticas para o setor de sua competência – não elaboram suas políticas “ou exercem o planejamento do setor regulado” (SOUTO, 2002, p. 228).

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Essas autarquias especiais realizam, porém, a implementação das políticas de governo ao setor regulado, por meio de suas normas reguladoras, que se restringem a implementar a decisão política constante de lei (SOUTO, 2002, p. 230/233). Adiciona-se que o bom funcionamento das leis que dão base à atuação das agências condiciona-se à expressão de um conteúdo geral a ser realizado pelas agências, que assim poderão moldar corretamente os objetivos da política pública ao funcionamento da economia, isto é, permite-se, por meio de normas de conteúdo aberto, a inserção e adaptação do direito à economia (DE ARAGÃO, 2004, p. 93/95).

Procurou-se traçar os contornos da atuação das agências reguladoras por meio do Projeto de Lei 3.337 de 2004, que buscava estabelecer o controle social das agências – com a criação de ouvidorias e ênfase às consultas populares, acompanhadas por representantes das associações em defesa do usuário – bem como estabelecer maior transparência de gastos e de atividades anuais, de forma a dar resultados mais condizentes com a vontade popular a tais autarquias de regime especial. A lei viria a ser uma espécie de lei geral das agências reguladoras. Visava, para não deixar as agências vulneráveis ao mercado, alinhar a sua atuação com as políticas ministeriais, não as desprovendo de autonomia, contudo esclarecendo que competem às agências as funções de regulação e fiscalização, sendo que o “planejamento e formulação de políticas setoriais cabem aos órgãos da administração direta”.

Tal Projeto de Lei não chegou a ser aprovado, embora pudesse ser interessante para o regramento das agências sob o ponto de vista de uma parte da doutrina, que possui a moderada posição de que a independência das agências é expressa pelas características dantes pontuadas, que as diferem das autarquias comuns, não excluindo coordenação da Administração (DE ARAGÃO, 2004, p. 9/10). O projeto ainda sugere, como prevê este artigo, uma maior participação social nas decisões das agências reguladoras, o que dá abertura a inserção das associações civis no processo de estabelecimento do marco regulatório de determinado setor.

Nesta concatenação de ideias percebe-se que a recente profusão de leis para a realização de normas programáticas constitucionais é, de fato, benéfica, já que tais leis, na medida em que também propõe conteúdo amplo, principiológico e estabelecedor de objetivos, deixam abertura para a implementação iluminada pela técnica, por parte do órgão executor das medidas (DE ARAGÃO, 2004, p. 85/87). O procedimento assim ocorre para as agências reguladoras, que possuem leis regentes de sua atuação, fixando seus objetivos gerais, deixando para os dirigentes e órgãos colegiados as decisões finais de como traduzir tais diretrizes na regulação do setor. Com dirigentes imunes a pressões políticas e órgãos colegiados que devem representar interesses heterogêneos, as agências

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reguladoras apresentam um contrapeso ao sistema de representação majoritária, podendo exprimir, em seus setores de regulação, direitos das minorias, respeitando assim o princípio do pluralismo no qual se funda o Estado atual (DE ARAGÃO, 2004, p. 87/89).

A ANAC é a agência responsável pela fiscalização e regulação do setor analisado neste artigo: as infraestruturas aeroportuária, aeronáutica e da aviação civil. A agência demonstra, em seu Relatório de Gestão de 2010, que teria recebido recomendações do Tribunal de Contas da União (ANAC, 2011, p. 122/123), órgão de grande importância na fiscalização e construção de uma administração pública melhor, que sugeriam medidas para dar plena informação e resposta efetiva e tempestiva às demandas dos usuários, além de buscar aperfeiçoar a fiscalização e regulação do setor a partir de relatórios que analisem as solicitações dos usuários perante a ouvidoria. Quanto à pesquisa de satisfação dos cidadãos com seus serviços, a agência informou que está procurando programar medidas para passar a realizá-la (ANAC, 2011, p. 32), já desenvolvendo, no mesmo sentido, mecanismos de prestação de contas a respeito de suas atividades, no intuito de legitimá-las perante a sociedade e iniciando atendimento pela internet (ANAC, 2011, 52).

A forma de atuação das agências e seus objetivos clamam pela participação social. Com a inserção de toda a sociedade no processo de democracia e desenvolvimento socioeconômico, inclusive por meio do serviço público, que se propõe um Estado fundado na valorização do desenvolvimento: um pacto desenvolvimentista ou progressista. Uma integração dos trabalhadores e da classe média com o empresariado que produz e que gera riquezas, em contraposição com a luta de classes e a especulação financeira irresponsável, reforçados pelo neoliberalismo (PEREIRA, 2012). Tal pacto propõe ampla inclusão e semelhança de objetivos para alcançar o desenvolvimento econômico e social, proposições integralmente coincidentes com o que se procura consolidar neste estudo.

É da Ordem Constitucional que deriva o espírito democrático que necessita impregnar todas as engrenagens do Estado contemporâneo, fazendo-o funcionar segundo os propósitos da Sociedade governada. Lembra José Afonso da Silva (1992, p.106/107), com auxílio da lição de Emílio Crosa (apud, 1946, p. 45), que a realização plena da democracia, tendo o “princípio democrático como garantia geral dos direitos fundamentais da pessoa humana”, depende da participação direta, efetiva e constante do povo nas situações que envolvam a coisa pública.

O pluralismo é fruto de uma abordagem que leva em conta as relações de convivência social, com a formação de associações para moldar o interesse dos grupos, de modo que o respeito e tolerância na sociedade se tornam indispensáveis (DA SILVA, 1992, p.114/115). Isso ocorre pois a democracia

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só pode vingar com a participação de uma população mais provida de cultura, educação e instruída sobre seus direitos e deveres políticos, bem como com a universalização das prestações estatais básicas que envolvem direitos sociais. A democracia deve ser vista como um processo que tem os conceitos acima descritos como objetivos e não como pressupostos elitizantes da participação (DA SILVA, 1992, p.116/117).

Mereceria capítulo a parte a influência de setores da mídia que se aliam a determinados grupos de interesses, abstendo-se criminosamente de sua função precípua: a de informar aos cidadãos, mantendo-os atentos a situações de subversão da Ordem Constitucional e insuflando-os à busca da realização de seus direitos. Em oposição a seu dever, que é essencial à concretização da democracia participativa, a mídia corrói qualquer forma de democracia ao se submeter a financiamentos da “propaganda oficial”, sustentando toda e qualquer medida de seus aliados na Administração Pública e manipulando a massa por meio da alta difusão de informações (BONAVIDES, 2008, p. 47/49). Perceba-se que o direito à informação é diretamente relacionado à realização da democracia, sendo tal direito também de responsabilidade do Estado, por meio das agências reguladoras, que poderão servir com canal de comunicação entre o Estado e a sociedade, representada pelas associações civis.

A democracia participativa ainda não se realiza perfeitamente sem a democratização geral das instituições do Estado. Não basta que se facilite o acesso no âmbito da criação de leis, é necessário que o objetivo geral das instituições seja a aproximação com os cidadãos, a transparência, a prestação de informações, a oitiva das necessidades e, em determinados casos, o apelo ao Poder Judiciário. Nossa Carta Magna estabelece com este último propósito o Ministério Público, que é importante canal de comunicação entre os indivíduos e o Estado. Parece, porém necessário que se analise a forma de comunicação mais recente e que pode vir a ser ainda mais efetiva, entre o Estado e os interesses heterogêneos dos administrados. Tal forma de comunicação se dará por meio das agências reguladoras e das associações civis.

O pluralismo permite a ampla difusão de diferentes ideologias e a associação das pessoas, dentro da lei, tendo em vista legitimar o arcabouço ideológico por elas defendido, assim realizando a principal função democrática do princípio da fraternidade, que une os seres humanos não apenas em associações que valorizem seus interesses, mas principalmente em um contexto geral, tendo em vista a harmonização dos interesses para formar uma “unidade de fundamento da ordem jurídica”, conduzindo à busca incessante e reiterada de conciliação (BONAVIDES, 2008, p.130/131).

Interessante ponderar a teoria pela qual os interesses de grupos intra-estatais possuem certa parcela da soberania, que deve ser reconhecida pelo

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Estado. Daí se compreende que a consubstanciação da soberania interna do Estado, ou seja, sua legitimidade perante os cidadãos depende da consideração, coordenação e conciliação dos diversos interesses setoriais que se manifestam no interior do corpo social e que formam, em última instância, uma vontade que pode ser considerada geral, já que advinda de processo maximamente democrático, processo este que é assim percebido pelos cidadãos. É com estes objetivos que o Estado deixa de ser instrumento de opressão nas mãos de alguma oligarquia, passando a realizar uma democracia que, com o desenrolar, pode até transcender os limites nacionais, criando a cooperação entre nações sobre as bases sólidas do solidarismo (FERREIRA, 1975, 326/335).

Percebe-se que a existência de interesses heterogêneos é irrefutável por qualquer teoria, visto que são perceptíveis do exame fático da sociedade, sendo necessário conciliá-los. O que se procura deixar claro é que o equilíbrio e consenso, em um contexto pluralista, dependem da aproximação das condições em que vivem as pessoas, assim reduzindo a margem de variação dos interesses, na busca de realização destes, tendo como fim maior a liberdade real. Em oposição ao individualismo liberalista, que visa afastar o individuo do convívio social, assim entendendo garantir a liberdade, é por meio do pluralismo que se oferece a liberdade real, no convívio social, único contexto em que o cidadão pode se inserir nas comunidades que o cercam e que lhe propiciam o desenvolvimento pleno de suas faculdades como ser humano (DA SILVA, 1992, p.130/131; BONAVIDES, 2008, p. 39/40; Cf. Preâmbulo da Constituição da República de 1988).

É neste contexto que se inserem as associações civis e as agências reguladoras. Devem estas instituições compreender sua função na construção desta ponte entre o Estado e a sociedade: o Estado se aproxima da sociedade por meio das agências reguladoras independentes e a sociedade se organiza, aproximando-se do Estado, com a formação das associações civis. Este envolvimento da sociedade nas atividades dantes vistas como exclusivas do Estado faz com que a democracia se realize, no momento em que as agências reguladoras se encontram, a meio desta ponte de comunicação, com as associações civis, que levam a vontade da sociedade. Estas instituições são responsáveis pela realização da democracia no âmbito da prestação de serviço público.

Essencial para concretizar esta ideia é a valorização da fraternidade entre os homens. A fraternidade aparece como um dos pontos principais da obra de Rousseau na própria formação do contrato social e do Estado, em que se enfatiza a necessidade de associação entre os homens, de forma que cada um deve ceder sua liberdade natural em prol da liberdade em sociedade (civil), limitada pela vontade geral, não estando assim sujeito à imposição do direito do mais forte. O Estado republicano se forma como um contrato

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e, também, uma grande associação, e se legitima ao reger-se por leis que expressam a vontade soberana do povo. Assim, o Estado e os cidadãos que o formam passam a defender-se reciprocamente, não se admitindo ofensas, nem ao corpo, nem a seus membros. Elemento precípuo do contrato é que a sociedade deve, de forma fraterna, criar condições para que se reduzam as diferenças naturais, geradas pelas distorções da economia de mercado, por meio do direito e de convenções, de forma a favorecer a harmonização do sistema social (ROUSSEAU, 1987, p. 32/39). Esta harmonização se dá no seio da democracia, que alimenta as esperanças de um povo que anseia por ver no Estado a expressão de sua própria vontade, uma imagem que lhe conduza a sentir que pertence àquela nação e que queira ver o desenvolvimento humano dos indivíduos pertencentes àquela sociedade, como quereria a um irmão.

Há os que chamam a teoria aqui apresentada de teoria solidarista, o que implica nos mesmos valores, ou seja: a valorização dos indivíduos nas relações que exprimam a fraternidade entre eles, buscando, por meio da associação com outros homens, legitimar seus interesses dentro de uma sociedade pluralista, de forma que os indivíduos possuam, em uma situação ideal, “igualdade [...] nas condições iniciais da vida social” o que gerará maior congruência nos interesses sociais e maior coesão social, no sentido de que os interesses positivados e aplicados pela Administração Pública representarão a vontade soberana do povo, sendo, em decorrência disto, pelo povo respeitados e tornados eficazes (DALLARI, 1981, p. 93/94).

Alude-se a esta forma de Estado em referência à doutrina do jurista italiano Alexandre Groppali (1962, p.144/146), que preconiza a necessidade de Estado baseado no solidarismo. Tal estudo procura conciliar a manifestação da individualidade com a cooperação social, como representações da liberdade e solidariedade. O Estado imbuído do solidarismo teria como funções principais: a) o fornecimento de instrução e cultura aos cidadãos de forma igualitária; b) auxílio material aos que não têm condições para o trabalho e; “c) garantia contra todos os riscos a que a natureza e a sociedade expõem os indivíduos”.

A democracia, no seu mais pleno conceito, ou seja, a gradual e decidida aproximação entre o Estado e a sociedade, depende da percepção da função de cada individuo como uma engrenagem no funcionamento perfeito da sociedade, onde a atuação de cada um é indispensável. Assim explica-se a justiça como equidade no Estado Contemporâneo, esta que se dá por meio da realização da cooperação social, tendo cada indivíduo a noção de justiça, antes mencionada, no sentido de compreender e agir segundo a ideia de cooperação equitativa, de modo que, em suma, dentro da razoabilidade e em justa comparação, imponham-se a todos ônus e vantagens comuns. É necessário, ainda, que se perceba a concepção de bem na cooperação social, tendo como fim principal a

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relação com as pessoas, formação de laços e inserção em grupos e associações, gerando afeição e comprometimento com os fins gerais da sociedade e dos grupos em que se está inserido, permitindo ao indivíduo que realize reflexão sobre “o valor e a importância dos nossos fins e dos nossos laços com outrem” (RAWLS, 2000, p.155/159 e 216/217).

Percebe-se assim que a facilitação da defesa dos direitos individuais se dá pelas associações, com inserção do individuo num contexto de demandas similares as suas, gerando comprometimento e legitimação na realização dos direitos dos cidadãos naquele âmbito, de modo a atribuir eficácia às leis (RAWLS, 2000; IHERING, 2009; e DINIZ, 1992). É assim que se dá a ação das associações de usuários e de órgãos estatais, tais quais as agências reguladoras, que reúnem as demandas dos usuários buscando tutelá-las por meio de ações coletivas, punições aos prestadores de serviço, respectivamente, entre outras medidas. Tais instituições, às quais se passa cada vez mais a dar valor, são a representação da fraternidade, vindo em resgate da sociedade capitalista atual, procurando integrar os conceitos da liberdade e da igualdade, para alguns inconciliáveis (Cf. GRAU, 2008, p.23), por meio da citada cooperação social, conceituada por vezes como fraternidade ou solidariedade.

Pode-se concluir que o estreitamento dos laços entre os homens, buscando maior comunhão entre eles a respeito da realização de certos fins, bem como a respeito dos meios para tal, consubstancia a fraternidade. Este sentimento de pertencimento a uma nação, a um objetivo, a um processo de desenvolvimento é conquistado por meio da redução das desigualdades e aumento da participação nas decisões, que faça o povo verdadeiramente sentir que é o Estado, que deu legitimação à sua atuação, e não que se encontra oprimido por um governo que está alheio à sua vontade. Neste ímpeto, com o desaparecimento da luta de classes, haverá um verdadeiro acordo social, com objetivos a serem perseguidos pela coletividade, num contexto de generosidade mútua e construção de vida digna a todos (MYRDAL, 1956, p. 44/46). Assim, o elemento humano, o único que possibilita a realização de qualquer Teoria do Estado, pode ser compreendido e estimulado à realização do desenvolvimento social e econômico, por meio da realização de sua própria dignidade e da fraternidade com seus pares.

Neste contexto, buscar-se-á explicar como as associações de pessoas dão vazão aos princípios democráticos e da fraternidade no Estado atual. Aqui elas serão percebidas principalmente em sua relação com as agências reguladoras.

As associações, no seio da democracia, demonstram a união para a busca da concretização de direitos individuais, coletivos e transindividuais. A legitimação das associações pelo Estado é passo essencial para a realização da democracia participativa, tal qual preconizada constitucionalmente, além de outros direitos fundamentais, tendo sempre por norte a dignidade da pessoa humana. A realização de tais preceitos se dá apenas com a otimização da participação social e da comunicação entre a sociedade e o Estado, buscando

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compreender a atuação necessária da Administração Pública e das associações com este intuito. Procura-se, em suma, a inserção política da população, impedindo a opressão do povo por uma minoria, com mecanismos pluralistas que criem um ambiente favorável para o surgimento de associações e consequente contestação do sistema posto (DAHL, 1997, p. 45/48).

Por esta razão buscar-se-á neste trabalho defender a comunicação entre associações e agências reguladoras de modo a realizar a vontade da sociedade, sem negar completamente a autonomia dos diretores nas agências, porém garantindo – de forma análoga à representação política e em decorrência desta – o que a doutrina classifica como núcleo normativo mínimo da representação, que se realiza com a atuação em favor do interesse do representado. Haja vista que, sem este conteúdo normativo mínimo, a legitimação do Estado passa a se basear em mera legitimidade formal da atuação, desprovendo-a de compatibilidade entre tais atos e a vontade do povo, anulando assim o conteúdo material da representação (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 56/58 e 63/66). Compreenda-se que os funcionários públicos em geral atuam em favor da sociedade, havendo caráter proporcionalmente mais direto e responsivo em tal atuação, na medida em que ela é essencial para a realização de alguma necessidade relacionada à concretização da dignidade da pessoa humana.

Formam-se associações na sociedade civil com o propósito de afinar as necessidades das massas e fazer reverberar as questões levantadas por certos grupos, repercutindo na esfera pública e tornando se questões de interesse geral. Tais discursos abertos e igualitários poderão adquirir continuidade e influência eficaz, e é desejoso que assim seja. (HABERMAS, 2003, p. 106/108).

É então proposta, uma reforma da democracia como se tem atualmente, com o fim de implementar maior controle social das deliberações políticas e de sua execução, tornando-a mais responsiva e procurando progredir em direção à soberania da vontade do povo, tendo a “[...] convicção normativa do valor da democracia como marco institucional para processar a mudança social” (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 51/52 e 76). Ressalva a doutrina, que o aprofundamento dos preceitos democráticos deve se dar colocando em paralelo, participação popular e princípios éticos, racionais e jurídicos, de modo a não tomar a participação social geral e extremada como legitima de per si (FERREIRA, 1975, p. 551/552).

Expõe Habermas (2003, p. 91/93), que a sociedade civil deve ter a possibilidade de criar um canal de comunicação com o Poder Público, conceituado com esfera pública, na qual os atores, pessoas da sociedade civil dotadas de legitimidade para atuar junto à Administração, buscam a realização de direitos dos cidadãos. Nas palavras do autor, é na esfera pública que se deve “[em relação aos problemas] percebê-los e identificá-los, devendo, além disso,

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tematizá-los, problematizá-los e dramatizá-los de modo convincente e eficaz, a ponto de serem assumidos e elaborados pelo complexo parlamentar”.

O estabelecimento de alguns pressupostos necessários ao aprofundamento da democracia se faz necessário neste ponto. Com base na doutrina de Robert Dahl (2001, p. 49/50) se percebe que a democracia plena envolve a participação igualitária e efetiva na expressão das opiniões dos membros; atribuição a todos do poder de voto, com peso igual; oportunidade a todos de conhecer amplamente as políticas a serem escolhidas e as consequências de sua implementação; a possibilidade de decidir o que será posto no planejamento e para deliberação; bem como a igualdade política, com inclusão de todos os adultos. A teoria funcionaria principalmente dentro de uma associação civil pequena, mas também no contexto do próprio Estado (DAHL, 2001, p. 47/53). Propor-se-á a aplicação da teoria nas associações pequenas que posteriormente influenciarão saudavelmente os diretores das agências reguladoras, buscando concretizar os pilares do templo da democracia no nível do Estado nacional, ou seja, este estudo procurará provar que as pequenas associações democráticas, na medida em que influenciam as decisões nas agências, podem tornar o próprio Estado mais democrático.

A esfera pública deve ser alimentada por informações de qualidade e ampla divulgação, de modo a formar opiniões de qualidade, garantindo discussões fecundas e possibilitando uma influência legítima aos atores. Aqui se vê uma função das agências reguladoras, no início do processo de discussão nas associações, mantendo-as informadas sobre o setor, de modo a garantir a qualidade na formação de opiniões. Tal qualidade de opiniões, que propicia a legitimidade na influência, decorre também da pureza procedimental da formação destas opiniões, que devem ser formadas espontaneamente, sem intervenção (manipulação) por parte do Poder Público (Cf. MALUF, 1998, p. 335), mas apenas no interior da associação de pessoas, por meio da discussão dos assuntos concernentes aos direitos comuns que aquela comunidade quer ver realizados (HABERMAS, 2003, p. 94/95). Com a liberdade de expressão, consubstanciada na possibilidade de expressar, ouvir e construir uma opinião de qualidade e que possa produzir influência política, cria-se um solo fértil para a democracia, já que cidadãos calados, mal informados e desunidos fornecem as armas para a opressão estatal (DAHL, 2001, p. 110).

Esta teoria, que envolve a expressão de interesses heterogêneos e a valorização do pluralismo político, traz em si a questão de que tais interesses serão representados por diversos atores, que – em oposição aos representantes políticos, que visam representar sempre um interesse geral, amplo e vago demais para ser representado com exatidão – representam pequenos interesses excluídos, que passarão a ter representação em consonância com sua vontade, e que formam, como que no costurar de uma colcha de retalhos, a materialização

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do soberano interesse público (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 87; Cf. AZAMBUJA, 2001, p. 382). Assim clama-se pela republicização do Estado, que envolve a democratização da esfera pública, pela mediação ativa de interesses e atendimento de interesses públicos difusos, a integração social, com redução das carências sociais e correta regulação econômica (MARQUES NETO, 2002b, p. 174/178), que preze pelo contato entre estado e sociedade realizado pelas agências reguladoras e as associações civis.

Essencial ver os atores, representantes dos membros de uma associação, como surgidos de uma disfunção imanente à democracia representativa, que gera subrepresentação de certos setores, gerando “reivindicações de representação”. Neste contexto, os atores representam esses interesses, se alternando na função de comunicação pela esfera pública, reduzindo assim o prejuízo da ganância por poder gerada nas disputas eleitorais, e representando um interesse “dinâmico e criativo” – ao qual eles estão intimamente e genuinamente ligados – gerado pela contraposição de opiniões no interior da associação, sendo a representação constantemente posta a prova pelos próprios representados, como instrumento de controle e responsividade (LÜCHMANN, 2011, p.156/159). Enfim, a atuação do ator perante o Estado é vista como auto-apresentação, ou seja, é forma de participação direta (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 80/81). No conceito de representação virtual de Edmund Burke é importante haver um idem sentire, consubstanciado pela maneira como os atores se comportam. Tendo tal compromisso e comunhão de valores, a representação dos interesses coletivos é expressa de maneira mais próxima de sua forma pura (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, 88/89).

Viu-se, ainda, por algumas vezes que a mídia pode ter papel deteriorador das esferas públicas e gerar influências ilegítimas e viciadas por grupos dominantes ou pelo próprio governo (DAHL, 2001, p. 111). Por outro lado, a mídia, quando cumpre seu dever, geralmente atuando de forma independente, pode ser benéfica às associações e esferas públicas, incentivando e informando amplamente a população (HABERMAS, 2003, p. 109/111; DAHL, 2001, p. 111). Neste diapasão, a mídia pode servir como canal de comunicação entre a sociedade e o Estado, de forma a construir uma “[...] auto-representação simbólica da sociedade [...]”, levando seus anseios às esferas de atuação política (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 70/71).

Esses movimentos sociais devem procurar garantir suas duas funções, quais sejam a atuação defensiva e ofensiva. A atuação ofensiva se dá pela formação de discussões produtivas, por meio do fornecimento de informações, problematização de questões na sociedade e filtragem dos argumentos produzidos para produzir influência no Estado. Já a defensiva se dá na preservação das associações e de suas estruturas comunicativas com o Estado (esfera pública)

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(HABERMAS, 2003, p. 103). Ressalta-se que, se por um lado as associações realizam diversas funções altamente benéficas à democracia – tais quais a representação de interesses de excluídos, a educação cívica, a informação, a fiscalização e contestação das relações de poder, a construção de ideias nas formas democráticas (DAHL, 2001, p. 112), entre outras funções – por outro se vê que em dado momento as associações encontram-se sobrecarregadas com uma gama tão variada e pesada de atividades, o que pode prejudicar a plena realização dos direitos dos usuários (LÜCHMANN, 2011, p.142/144), e que poderia ser amenizado por parcerias, sobretudo com as agências reguladoras.

A proposição de participação social e aprofundamento democrático não pretendem se mostrar como solução infalível, porém percebe-se que sua implementação pode auxiliar na inclusão de setores da sociedade, bem como no aperfeiçoamento da realização da vontade popular e na fiscalização da ação política (LAVALLE; HOUTZAGER; CASTELLO, 2006, p. 93/94), promovendo a coesão social e auxilio recíproco na forma da cooperação social. O êxito da teoria depende certamente de sua realização pelos homens, que é uma variável imprevisível da equação. Entretanto, se procura demonstrar neste estudo, não apenas que há maior propensão para a realização dos princípios democráticos por meio da teoria exposta, mas, ainda, que os seres humanos envolvidos se sentiriam mais compelidos e empenhados em realizá-la.

Para que se garanta a pureza de tal interação se estabelece como pressuposto a racionalização das associações num contexto de liberdade política e evitando-se o controle do Estado. Deve então, ser gerada a influência legítima, com a discussão, deliberação e comunicação por meio da esfera pública, podendo haver a transformação em poder político, pela iniciativa externa e influência indireta ao modo de governo (HABERMAS, 2003, p. 104/105). Assim, para evitar a influência direta da Administração nas associações, e a preservação da pureza dos interesses por elas expressos, se procura formar uma respeitosa e bem delimitada ligação com as agências reguladoras. Essa ligação, com ênfase no início e no fim do processo de deliberação nas associações – com o fornecimento de informações e a oitiva da vontade formada por elas – pode ser altamente benéfico para a realização da democracia neste contexto, tornando-se um repertório característico a ambas as instituições, no intento de realização dos interesses setoriais.

Tomada por exemplo, a Associação Nacional em Defesa dos Passageiros de Transportes Aéreos – ANDEP se responsabiliza pela defesa desses usuários de serviço público no país. Fundada por Claudio Candiota, que reuniu outros advogados e formadores de opinião com saber na área, a associação possui atualmente por volta de dez mil associados a nível nacional. Antevendo a necessidade da criação de instituição que representasse os usuários frente aos problemas que surgiam na aviação civil brasileira, em 2003 criou-se a ANDEP,

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que constitui pessoa jurídica, com o respectivo estatuto, estando legitimada para defender os interesses dos usuários nos limites das cláusulas estabelecidas por tal estatuto como finalidades e objetivos da sociedade (SANTINI, 2012).

A intenção da associação é clara e alinha-se com perfeição, tanto à função de uma associação no modelo previsto por Habermas (2003), quanto à noção de luta pelo direito como dever do individuo para com a sociedade, proposta por Ihering (2009, p. 19/33). Expressa o Vice-Presidente da instituição, que a mesma tem as funções principais de defesa dos direitos dos usuários, tendo em vista a harmonização das relações de consumo; pressão aos prestadores de serviço, buscando a correção de imperfeições da prestação; além de proposições ao Poder Público, tendo em vista a melhora das políticas para o setor. Tais objetivos explicitam a formação organizada de uma associação de atuação plena, que, além de promover as medidas já explicitadas, preocupa-se com a educação e informação do usuário e com o intercâmbio com outras associações nacionais e internacionais do setor, tudo num contexto de realização de solidariedade e colaboração. Percebe-se, com isso, a necessidade de que os usuários tragam suas reclamações à tona, concretizando assim a ideia da luta pelo direito como passo essencial à atribuição de eficácia ao mesmo (SANTINI, 2012).

A associação vem obtendo eficiência em sua atuação, dando respaldo às necessidades dos usuários principalmente com a resolução de conflitos, por meio de consultas, ações ou orientações. Frente ao Poder Público a instituição obteve respeitabilidade por demonstrar atuação efetiva no seu campo de ação. Chama atenção, ainda, por vir adotando medidas preventivas, como por exemplo, ações civis públicas e representações perante o Ministério Público, inclusive certas ações que tinham em vista melhorar a segurança de voo e evitar o colapso no transporte aéreo brasileiro que viria a ocorrer nos anos subsequentes (SANTINI, 2012).

O foco é dado à relação desta associação com à agência reguladora do setor. Percebe-se que a agência deveria possuir um papel de aliada das associações, o que, para o representante da ANDEP, encontra óbice na ineficiência da ANAC, que deixa de exercer plenamente seu papel, omitindo-se de sua função precípua de harmonização das relações que envolvam usuários e prestadores no contexto da aviação civil. As principais críticas à agência são com relação à ausência de postos de atendimento nos maiores aeroportos brasileiros, além do uso das funções públicas da agência “[...] para loteamento de cargos, com exceção de alguns casos” (SANTINI, 2012).

As palavras de ordem no setor seriam: controle da atividade, – por estabelecimento de diretrizes de atuação, fiscalização da prestação e punição – planejamento e vontade de levar a frente às medidas corretas para o setor. A ausência de um forte marco regulatório no setor parece ser uma das principais razões de inadequação do serviço. O estabelecimento de tal marco nos serviços públicos é passo essencial para que se atinja a adequação do serviço (SANTINI,

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2012). A aparência de demasiada frouxidão da regulação e a insatisfação da associação com a atuação da agência demonstra, antes de qualquer coisa, a distância indesejável entre as instituições, já que, onde mais deveria a ANAC garantir a legitimidade de sua atuação buscando compreender a vontade dos usuários, senão na associação que os representa há algum tempo, com considerável participação deles?

PROCEDIMENTO METODOLÓGICO

A principal fonte de consulta foi a bibliografia já apontada nas referências e na introdução deste artigo. Realizou-se, porém, uma entrevista com o Vice-presidente de uma associação de usuários de âmbito nacional, bem como consulta a algumas fontes da internet, inclusive para enriquecer a pesquisa no que concerne a agência reguladora do setor selecionado na análise feita por este artigo.

A área de estudos em que este artigo se insere é a do Direito Administrativo, envolvendo Teorias do Estado e Direito Econômico.

CONCLUSÕES

Vê-se que é realmente sobre esses aspectos que este artigo vem alarmar: a necessidade de prestação clara de informações sobre o setor e posterior oitiva das necessidades que se salientarem como demanda geral. Acrescenta-se que, para qualificar a expressão dessas necessidades surgem as associações civis, que devem ter sua vontade ouvida e considerada pelas agências, neste intuito, sempre renovado, de integração entre Estado e sociedade, buscando a plena realização da democracia, vista como direito social. Como se exteriorizou neste trabalho, devem haver órgãos do Estado que se responsabilizem pela comunicação com a sociedade e pela percepção de seus anseios, um forte papel das agências independentes, que deveriam conduzir grande diálogo e consideração dos interesses dos usuários, externalizados pelas associações por eles formadas, sem, para isso, deixar de lado seu viés técnico, que também possui importância capital.

Com isso, o que se prega é a verdadeira inserção das associações no complexo processo de prestação do serviço, com participação na fiscalização periódica do serviço, recebendo diversas informações sobre o modo de prestação do serviço pelo concessionário e suas alterações, bem como a respeito dos marcos regulatórios estabelecidos pelas agências reguladoras. De tal forma se propicia posterior influência qualificada e legitima pelas associações, que deverá ser atentamente ouvida pelas agências, que farão uso de sua autonomia e da estabilidade de seus diretores para regular o serviço público de determinado

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setor com responsabilidade social e com a técnica própria para adaptar-se ao mercado, sem sucumbir a pressões e influências que os desviem de suas funções. Leva-se em consideração, ainda neste viés, o respeito ao pluralismo, o que se dá pela oitiva de representantes de associações representativas de interesses heterogêneos no setor, o que envolveria, no caso, representantes de usuários, de empresas de aviação e dos concessionários.

A captação da voz das associações, reprimida, porém portadora da suprema vontade do povo, é a difícil tarefa da Administração Pública, que, contudo, não se poderá legitimar sem que ouça a esse brado que é por vezes abafado por vozes ilegítimas. Assim o Poder Público deve perceber as diferenças na incidência de direitos em cada setor da sociedade, buscando promover a integração social, que se dá pela realização dos direitos fundamentais (HABERMAS, 2003, p. 119/121). Desta forma a Administração Pública daria vazão a uma ampla gama de direitos capitais da concepção de Estado que ora se preconiza, sob o prisma da dignidade da pessoa humana, fazendo jorrar da fonte da democracia, o pluralismo, a formação de uma sociedade fraterna, composta por diversos grupos sociais que tem sua vontade conciliada pelo Estado, progredindo em direção à soberania da vontade do povo, para conferir verdade às proposições do contrato social e legitimidade à atuação do Estado, inclusive com a prestação adequada do serviço público.

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DANOS AMBIENTAIS DECORRENTES DO USO DE AGROTÓXICOS: RESPONSABILIDADE CIVIL, ADMINISTRATIVA E PENAL

ENVIRONMENTAL DAMAGE ARISING FROM THE USE OF PESTICIDES: LIABILITY, ADMINISTRATIVE AND CRIMINAL

hérica Paula SKrzEK Acadêmica de Direito do Centro Universitário Curitiba- UNICURITIBA

rEgina maria buEno bacEllar

Possui graduação em direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1985), mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002) e especialização em Ecologia e Direito Ambien-tal. Atualmente leciona em cursos de graduação e Pós Graduação no Centro Universitário Curitiba - UNICURITIBA e em Cursos de Pós Graduação na UNIFAE, UNIBRASIL, FEMPAR. Tem experiência nas áreas de Direito Civil, Administrativo, Ambiental, Urbanístico e Direi-to de Energia/Regulatório

RESUMO

As questões ambientais tornaram-se tema importante em todas as sociedades nos presentes dias devido a sua importância e a preocupação com um desenvolvimento social sustentável. A questão dos agrotóxicos torna-se, portanto, tema merecedor de relevante reflexão e estudo. A agricultura utiliza-se de insumos agrícolas com a pretensão de garantir qualidade e quantidade de alimentos para abastecer a população. Porém, o uso de tais substâncias tóxicas prejudica o meio ambiente, contaminando-o, trazendo degradação ambiental e riscos à saúde humana. A legislação brasileira possui leis específicas que dão suporte à regulamentação do tema, contudo, questiona-se a eficácia da aplicação e fiscalização dessas disposições legais. Aqueles que estejam envolvidos com a experimentação, produção, embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, ao infringirem as regras estabelecidas na legislação pertinente, respondem civil, administrativa e penalmente pelos danos ambientais que resultarem de suas condutas lesivas.

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Palavras-chave: Agrotóxicos; Danos Ambientais; Responsabilidade.

ABSTRACT

Environmental issues have become important theme in all societies in these days due to its importance and concern for sustainable social development. The pesticides issue becomes, therefore, relevant topic worthy of study and reflection. Agriculture uses of agricultural inputs with the intention of ensuring quality and amount of food to feed the population. It happens that the use of such toxic substances harmful to the environment, contaminating it, bringing environmental degradation and human health risks. Brazilian law has specific laws that support the theme of the regulation, however, questions the effectiveness of the implementation and enforcement of those laws. Those who are involved with the experimentation, production, packaging and labeling, transportation, storage, marketing, commercial advertisement, use, import, export, waste disposal and packaging, registration, classification, control, inspection and surveillance of pesticides, to infringe the rules laid down in the relevant legislation, civil, administrative and criminal penalties for environmental damage that result from their conduct detrimental

Keywords: Pesticides; Environmental Damage; Responsibility.

INTRODUÇÃO

O anseio da população atual é a conquista de um desenvolvimento sustentável que preserve recursos naturais às presentes e futuras gerações, pretensão que se contrapõe à realidade dos agrotóxicos.

A utilização de insumos agrícolas na agricultura pretende garantir a produção efetiva de alimentos, contudo, traz consigo a degradação ambiental poluindo a água, o solo e o ar, chegando tais contaminações até o ser humano através da cadeia trófica.

Apoiando-se na prevenção e na precaução, as medidas legais de proteção ao meio ambiente quando se fala de agrotóxicos, vem previstas na Lei 7.802/89, que além de regular o tema, estabelece as sanções civis, administrativas e penais que hão de ser impostas aos infratores.

METODOLOGIA

Para a realização da pesquisa deste artigo, será adotada a pesquisa bibliográfica, doutrinária e de legislação.

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AGROTÓXICOS E SEU HISTÓRICO

Inicialmente utilizado por gregos e romanos, o enxofre e o arsênio eram os elementos químicos que protegiam o plantio, logo mais os chineses passaram a utilizar a piretrina, um elemento orgânico natural que possuía ação inseticida. (ALVES FILHO, 2002, p. 20.).

O controle de pragas pode ser dividido em períodos. O primeiro é anterior ao ano de 1867, momento em que foram utilizados excrementos, cinzas, enxofre, rotenona, piretro, nicotina e outros óleos animais e de petróleo. O segundo período se dá entre os anos de 1867 a 1939, no qual se descobriu uma mistura chamada Bordeaux, uma mistura de sulfato de cobre e cal que combatia fungos. Também se descobriu neste período, mais especificamente em 1885, uma nova técnica, a Calda Bordalesa, composta por sulfato de cobre e eficaz contra os fungos. Em 1939 inicia-se um terceiro período no qual surgem os organossintéticos que são biocidas sintetizados. (CHAIM, 2012, p. 2-3)

O marco do uso de elementos químicos se deu com a 2º Guerra Mundial, onde surgiu o Agente Laranja, um herbicida que agia como desfolhante. Os vietnamitas formavam tocaias e esconderijos na floresta da região de combate, sabendo disso o exército americano passou a lançar esse elemento sobre a vegetação, que por possuir ação desfolhante acabava destruindo as tocaias e esconderijos do oponente. A operação foi vista como bem sucedida, mas trouxe graves consequências ambientais, pois a dioxina, elemento do agente laranja, permanecia no solo e na água por mais de um ano, contaminando assim tudo que proviesse desses meios.

Somente em 1960 se iniciou uma corrente preocupada com os malefícios do agrotóxico, contudo, este movimento ainda era fraco, haja vista, que se acreditava que o uso do agrotóxico seria um aliado ao combate a fome. Entendimento notoriamente equivocado já que a questão da fome esta relacionada com questões sociais, culturais e econômicas, e não com qualidade e quantidade de produção de alimentos.

Em 1990 ocorreu um avanço nas técnicas biológicas, juntamente surgiram os transgênicos que produzem suas próprias defesas, proporcionando aprimoramento dos métodos de desenvolvimento e aplicação de agrotóxicos. A cada dia surgem novos produtos, tendendo à melhoria quanto ao modo de ação, de aplicação e com a o objetivo de se reduzir danos. (ALVES FILHO, 2002, p. 29)

Inicialmente os agrotóxicos eram chamados de defensivos agrícolas, entretanto, a partir dos anos 50 o desenvolvimento de novos compostos avançou ganhando uma nova nomenclatura: Agrotóxico. A finalidade é o extermínio de pragas e doenças que atacam as plantações reduzindo a qualidade dos produtos que são plantados.

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A legislação brasileira com o advento da Lei 7.802 de 11 de julho de 1989 adequou o termo de defensivo agrícola para agrotóxico seguindo os padrões internacionais que adotaram essa nomenclatura devido à periculosidade de tais substâncias. O artigo 2º da referida lei trouxe a conceituação do termo agrotóxico.

Art. 2º Para os efeitos desta lei consideram-se:I – Agrotóxicos e afins:a) os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos;b) substâncias e produtos, empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento.II – Componentes: os princípios ativos, os produtos técnicos, suas matérias-primas, os ingredientes inertes e aditivos usados na fabricação de agrotóxicos e afins.

Esta lei é norteada pelos princípios da prevenção e da precaução. O primeiro visa evitar que venha ocorrer um dano tendo em vista a certeza de que tal atividade irá prejudicar o meio. O segundo apoia-se no in dúbio pro natura pois não há a certeza de riscos concretos, logo, adotam-se medidas protetivas para evitar a degradação ambiental.

A Lei 9.985/2000 – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza - traz a definição dos termos Conservação da Natureza e Preservação.

Art. 2º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:II – Conservação da natureza: O manejo do uso humano da natureza, compreendendo a preservação, a manutenção, a utilização sustentável, a restauração e a recuperação do ambiente natural, para que possa produzir o maior benefício, em bases sustentáveis, às atuais gerações, mantendo seu potencial de satisfazer as necessidades e aspirações das gerações futuras, e garantindo a sobrevivência dos seres vivos em geral;

[...]

V – Preservação: Conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além

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da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais.

Na Declaração de Estocolmo de 1972, o Princípio da Prevenção teve forte defesa, refletindo na ECO– 92.

Princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992):

“Para proteger o meio ambiente medidas de precaução devem ser largamente aplicadas pelos Estados segundo suas capacidades”. Em caso de risco de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto pra procrastinar a adoção de medidas efetivas visando a prevenir a degradação do meio ambiente. (FIORILLO, 2005, p. 39.)

O uso de agrotóxicos traz consigo muitos aspectos negativos, ameaçando a vida silvestre, atingindo direta e indiretamente os animais, a flora e a fauna, chegando até o ser humano através da cadeia trófica e ameaçando sua saúde.

MEIO AMBIENTE E SUA RELAÇÃO COM OS AGROTÓXICOS

Meio ambiente para a legislação brasileira é o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas (art. 3º, I, Lei 6.938 de 31 de agosto de 1981 – Lei de Política Nacional do Meio Ambiente). Ou seja, o meio ambiente é composto de todas as formas vivas e não vivas, pelo conjunto de componentes físicos, químicos, biológicos e sociais que podem gerar consequências diretas ou indiretas a longo ou curto prazo, sobre todos os seres vivos, conforme se extrai da Conferência das Nações Unidas, realizada em 1972 em Estocolmo, sobre o meio ambiente.

Por sua importância o meio ambiente é tutelado pela Constituição Federal e considerado um patrimônio público por pertencer a todos os cidadãos.

O artigo 225 da Magna Carta traz essa proteção.

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial á sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:I – preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o

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manejo ecológico das espécies e ecossistemas;

(...)

VII – proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade.

E a Lei 6.938/81 em seu artigo 2º, inciso I, garante o meio ambiente ecologicamente equilibrado para todos, pois se trata de um patrimônio público.

Art. 2º A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios.

I – ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido, tendo em vista o uso coletivo.

A utilização de agrotóxicos atinge todo o meio ambiente, em todas as suas formas (natural, artificial, do trabalho, cultural), devido às contaminações que acarreta. Por esse e outros motivos é que há a busca por novas alternativas para a agricultura, a fim de garantir um meio ecologicamente equilibrado e sadia qualidade de vida a todas as formas de existência.

A problemática se dá ao fato de que as populações crescem em medida exponencial, sendo maior a necessidade de produção de alimentos em larga escala para que seja possível garantir alimentos aos cidadãos. Para que haja essa produção ligeira e qualificada é que os agricultores utilizam-se de agrotóxicos para eliminar as pragas que invadem as plantações prejudicando a quantidade e qualidade da colheita.

Contudo esse uso indiscriminado de técnicas tóxicas tem gerado danos ambientais.

Por dano entende-se que é um prejuízo causado a alguém por um terceiro que se vê obrigado ao ressarcimento (ANTUNES, 2011, p. 286). Esse dano deve estar ligado a uma ação ou omissão praticada por um sujeito, e em se tratando de meio ambiente este dano deve ser perigoso, alterando sua qualidade e características naturais (VITTA, 2008, p. 78).

Para a legislação o dano ambiental é aquele que altera as características naturais do meio, degradando, prejudicando a saúde, a segurança e o bem-estar

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da população, criando condições adversas às atividades sociais e econômicas, afetando desfavoravelmente a biota, as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, lançando matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos. (art. 3º, II, III, a, b, c, d, e – Lei 6.938/81). Ou seja, há uma alteração in pejus do equilíbrio ecológico e da qualidade ambiental.

O conflito no que tange ao dano ambiental é a dificuldade de mensurá-lo, até mesmo pelo fato de que algumas condutas presentes só terão suas consequências no futuro.

Existe concomitantemente a dificuldade de reparar esse dano. Primeiramente pela extensão do mesmo, por vezes incalculável, e após, há uma amplitude de vítimas que são indeterminadas. Além do mais, em se tratando de bens ambientais difícil também é a valoração desses bens, pois não se pode valorar a água que foi contaminada, a floresta que foi devastada, o ar que foi poluído, tampouco as espécies que entraram em extinção, dentre tantos outros danos.

Dessa forma é que a questão dos agrotóxicos é tema de urgente intervenção estatal. Os danos gerados pelo uso dos defensivos agrícolas são extensos e muitos irreversíveis, deteriorando o solo, poluindo os lençóis freáticos, prejudicando a qualidade do ar, tornando os alimentos verdadeiras “bombas tóxicas”, trazendo diversos danos diretos e indiretos ao ser humano.

A biotecnologia aparece como uma ferramenta importante para o avanço das técnicas de agricultura e para a criação de estratégias não poluentes, contudo, por não haver incentivo suficiente do Estado, este desenvolvimento ocorre de forma lenta. Além do mais, faz-se necessária a conscientização dos profissionais da área agronômica, produtores, consumidores, indústrias e autoridades governamentais (MAIRESSE, p. 3).

DEGRADAÇÃO AMBIENTAL: ÁGUA, SOLO E AR

O uso desmedido de agrotóxicos, visando potencializar o cultivo, causa diversos danos ambientais irreversíveis acarretando em graves consequências ao meio ambiente.

A degradação causada por agrotóxicos ocorre de forma discreta, não perceptível a um primeiro momento, atingindo a água, o solo e o ar, causando a mortandade de peixes e animais silvestres, além de tornar a terra improdutiva. A saúde humana, qualquer que seja a maneira de contaminação do meio ambiente, pode ser atingida, quando não diretamente, por seu desgaste gradativo, ocasionado por frequentes exposições a agrotóxicos. (MARQUES, 2007, p. 2.).

A água é elemento essencial para haja vida, por isso deve ser tutelada pelo ordenamento jurídico visando assegurar a atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água (TRENNEPOHL, 2009, p. 285). Desta

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forma, institui-se em 1997 a Política Nacional de Recursos Hídricos com a Lei 9.433/1997, que dispõe que a água é um recurso natural limitado e dotado de valor econômico.

A poluição da água foi definida no artigo 13, § 1º do Decreto 73.030/1973 como sendo qualquer alteração das propriedades físicas, químicas ou biológicas, que possa importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações, causando dano à flora e à fauna, ou comprometer o seu uso para fins sociais e econômicos. Logo, a poluição das águas se dá pelo lançamento de substâncias nocivas, geralmente causadas pelas atividades industriais, mineradoras, por esgoto, e principalmente pelas atividades agrícolas.

Os agrotóxicos são elementos não biodegradáveis, e contaminam a água através do escoamento gerado pelas chuvas que leva as substâncias até os rios, e principalmente pela infiltração no solo atingindo os lençóis freáticos.

A Constituição Federal traz em seu artigo 22 a competência para legislar sobre águas, que é única e exclusivamente da União, contudo é admitido que através de lei complementar os Estados sejam autorizados a legislar sobre o tema. Ademais, o artigo 23 deste mesmo diploma legal, estabelece que é competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas, agindo de maneira cooperada para tutelar o meio ambiente.

Diante disto, é inaceitável que o Brasil esteja inerte, nada fazendo para frear o uso de agrotóxicos, diante de tantas constatações de poluição geradas por estas substâncias. Havendo intervenção efetiva do Estado nas relações do homem com o meio ambiente será possível alcançar a redução dos danos ambientais.

Os agrotóxicos também contaminam o solo, um recurso ambiental essencial para a manutenção da vida.

Segundo o Decreto nº 28.887/1982 a poluição do solo e do subsolo consiste na deposição, disposição, descarga, infiltração, acumulação, injeção ou enterramento no solo ou no subsolo de substâncias ou produtos poluentes, em estado sólido, líquido ou gasoso. A degradação do solo pode se dar por: desertificação, utilização de tecnologias inadequadas, falta de práticas na conservação de água no solo, destruição da cobertura vegetal. Já a contaminação do solo se dá principalmente por resíduos sólidos e líquidos, águas contaminadas, efluentes provenientes de atividades agrícolas (RIBEIRO DOS SANTOS, FREITAS MARTINS, 2002, p. 100).

As quantias de agrotóxicos utilizadas na agricultura são excessivas, e o que não escorre até o leito dos rios, sedimenta-se no solo, contaminando-o, causando desequilíbrio da flora e da fauna. O solo também é um dos meios através dos quais os resíduos de agrotóxicos chegam até a atmosfera. Isso ocorre por intermédio da dispersão na aplicação foliar que somente chega ao

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solo após a disseminação dos elementos. Há portanto, grande quantidade de elementos que evaporam, atingindo assim a atmosfera.

A poluição do ar também tem como vilão o agrotóxico, que através da pulverização dissemina partículas no ar no momento da aplicação. A problemática desta forma de poluição se dá pelo fato de que é um modo invisível de contaminação, dificultando a constatação das quantidades emitidas e o respectivo controle.

Muitas doenças são resultado da inalação de substâncias agrícolas tóxicas dispersas no ar, contudo, não são de constatação imediata e por vezes não é possível diagnosticar corretamente a patologia.

Pelo exposto, fica evidente a necessidade de intervenção do poder público, aplicando efetivamente medidas coercitivas aos infratores, e incentivando à produção de novas técnicas que se ajustem ao ideal de sustentabilidade, sob pena de a sociedade encontrar-se em um caos de contaminações sem rota de fuga, haja vista, a escassez dos recursos naturais.

A LEI 7.802 DE 11 DE JULHO DE 1989

A Constituição Federal contém algumas normas referentes aos agrotóxicos, tais como a do artigo 220, § 4º no qual são impostas restrições à propaganda comercial desses produtos, e o artigo 224 regulamentado pela Lei 8.389/1991 que instituiu o Conselho de Comunicação Social responsável por realizar estudos, pareceres e recomendações no que tange à propaganda comercial de agrotóxico e de produtos afins.

Em sede de Constituição Estadual há a previsão do artigo 193, inciso XI, que dispõe que o Estado criará um sistema que administre a qualidade ambiental, tendo por finalidade o controle e a fiscalização da produção, do armazenamento, do transporte, da comercialização, da utilização e da destinação final de tais substâncias que comportam riscos para a qualidade de vida e do meio ambiente.

Na legislação ambiental não são encontradas normas relativas ao tema, contudo a própria Lei 7.802/89 no artigo 11 estabelece que “cabe ao Município legislar supletivamente sobre o uso e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins”.

Contudo, tais artigos não são suficientes para disciplinar a matéria. Por tal razão em 1989 foi aprovada a Lei Federal 7.802, que orienta a questão dos insumos agrícolas de forma a proteger o meio ambiente.

O conteúdo tutelado pela lei está descrito no artigo 1º.

Art. 1º - A pesquisa, a experimentação, a produção, a embalagem e rotulagem, o transporte, o armazenamento, a comercialização, a

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propaganda comercial, a utilização, a importação, a exportação, o destino final dos resíduos e embalagens, o registro, a classificação, o controle, a inspeção e a fiscalização de agrotóxicos, seus componentes e afins, serão regidos por esta lei.

Conceitualmente, os agrotóxicos e afins são os produtos e os agentes de processos físicos, químicos ou biológicos, destinados ao uso nos setores de produção, no armazenamento e beneficiamento de produtos agrícolas, nas pastagens, na proteção de florestas, nativas ou implantadas, e de outros ecossistemas e também de ambientes urbanos, hídricos e industriais, cuja finalidade seja alterar a composição da flora ou da fauna, a fim de preservá-las da ação danosa de seres vivos considerados nocivos, ainda, substâncias e produtos empregados como desfolhantes, dessecantes, estimuladores e inibidores de crescimento, (Artigo 2º, inciso I, alíneas “a” e “b”). E os componentes são os principais ativos, os produtos técnicos, suas matérias-primas, os ingredientes inertes e aditivos utilizados na fabricação de agrotóxicos e afins, (Artigo 2º, inciso II).

Para que esses produtos, acima disciplinados, possam ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, a Lei prevê que devem ser primeiramente registrados em órgãos federais responsáveis pelos setores de saúde, de meio ambiente e da agricultura, e as autoridades competentes estarão obrigadas a tomar as medidas cabíveis nos casos em que houver informações de riscos na utilização dos agrotóxicos, ou seja, desaconselhável o seu uso.

As alíneas do § 6º do artigo 3º dispõem sobre os agrotóxicos cujo registro é vedado:

Art. 3º - (...)§ 6º - Fica proibido o registro de agrotóxicos, seus componentes e afins:a) Para os quais o Brasil não disponha de métodos para desativação de seus componentes, de modo a impedir que os seus resíduos remanescentes provoquem riscos ao meio ambiente e à saúde pública;b) Para os quais não haja antídoto ou tratamento eficaz no Brasil;c) Que revelem características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas, de acordo com os resultados atualizados de experiências da comunidade científica;d) Que provoquem distúrbios hormonais, danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica;e) Que se revelem mais perigosos para o homem do que os testes de laboratório, com animais, tenham podido demonstrar, segundo critérios técnicos e científicos atualizados;f) Cujas características causem danos ao meio ambiente.

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As pessoas física e jurídica que prestem serviços na aplicação, produzam, importem, exportem ou comercializem agrotóxicos, conforme preceituação do artigo 4º, devem obrigatoriamente registrar os produtos nos órgãos Estaduais ou Municipais competentes, atendendo as normas dos órgãos federais responsáveis pelas áreas da saúde, do meio ambiente e da agricultura.

Esse registro pode ser cancelado ou impugnado sob a arguição de prejuízos ao meio ambiente. Os legitimados para esses pedidos estão previstos nos incisos do artigo 5º.

Art. 5º - (...)I – entidades de classe, representativas de profissões ligadas ao setor;II – partidos políticos, com representação no Congresso Nacional;III – entidades legalmente constituídas para defesa dos interesses difusos relacionados à proteção do consumidor, do meio ambiente e dos recursos naturais.

As embalagens que são utilizadas para o armazenamento dos agrotóxicos também possuem normas a serem seguidas. Elas devem ser fabricadas de forma que não ocorra nenhum vazamento, evaporação, perda ou alteração de seu conteúdo, e ainda que facilitem a lavagem, classificação, reutilização e reciclagem. Além disso, os materiais que forem utilizados para a fabricação dessas embalagens, não podem reagir com o produto armazenado, formando com ele combinações perigosas ou nocivas. Devem também ser resistentes para que não sofram enfraquecimento e assim estejam adequados às exigências feitas para a sua correta armazenagem e conservação. É necessário também que possuam um lacre que ao ser aberto seja totalmente destruído, (artigo 6º, incisos I, II, III e IV).

A finalidade de tais regras jurídicas é evitar a contaminação que ocorre no solo e nos rios decorrentes do mau armazenamento de tais substâncias. Em 2000 a Lei 9.974 estabeleceu que os usuários de agrotóxicos devem, após uma tríplice lavagem dos recipientes, devolvê-los aos estabelecimentos onde adquiriram os mesmos, e aos fabricantes a obrigação de no rótulo e na bula identificar quais os locais cuja devolução pode ser feita.

Os § 2º e 4º do artigo 6º, também disciplinam tal conteúdo:

Art. 6º (...)§ 2º - Os usuários de agrotóxicos, seus componentes e afins deverão efetuar a devolução das embalagens vazias dos produtos aos estabelecimentos comerciais em que foram adquiridos, de acordo com as instruções previstas nas respectivas bulas, no prazo de até um ano, contado data de comprar, ou prazo superior se autorizado pelo órgão registrante, podendo

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a devolução ser intermediada por postos ou centros de recolhimento, desde que autorizados e fiscalizados pelo órgão competente.

§ 4º - As embalagens rígidas que contiverem formulações miscíveis ou dispersíveis em água deverão ser submetidas pelo usuário à operação de tríplice lavagem, ou tecnologia equivalente, conforme normas técnicas oriundas dos órgãos competentes e orientação constante de seus rótulos e bulas.

Após a devolução feita pelos usuários, as empresas produtoras e comercializadoras desses produtos tornam-se responsáveis pelo destino dado às embalagens.

Para serem postos à venda, os agrotóxicos e produtos afins devem conter em seus rótulos a identificação, as instruções de usos, as informações sobre os riscos possíveis e a recomendação para que o usuário leia as instruções antes do manejo do produto, como se vê a seguir.

Art. 7o Para serem vendidos ou expostos à venda em todo o território nacional, os agrotóxicos e afins são obrigados a exibir rótulos próprios e bulas, redigidos em português, que contenham, entre outros, os seguintes dados:

I - indicações para a identificação do produto, compreendendo:a) o nome do produto;b) o nome e a percentagem de cada princípio ativo e a percentagem total dos ingredientes inertes que contém;c) a quantidade de agrotóxicos, componentes ou afins, que a embalagem contém, expressa em unidades de peso ou volume, conforme o caso;d) o nome e o endereço do fabricante e do importador;e) os números de registro do produto e do estabelecimento fabricante ou importador;f) o número do lote ou da partida;g) um resumo dos principais usos do produto;h) a classificação toxicológica do produto;

II - instruções para utilização, que compreendam:

a) a data de fabricação e de vencimento;b) o intervalo de segurança, assim entendido o tempo que deverá transcorrer entre a aplicação e a colheita, uso ou consumo, a semeadura ou plantação, e a semeadura ou plantação do cultivo seguinte, conforme o caso;c) informações sobre o modo de utilização, incluídas, entre outras: a

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indicação de onde ou sobre o que deve ser aplicado; o nome comum da praga ou enfermidade que se pode com ele combater ou os efeitos que se pode obter; a época em que a aplicação deve ser feita; o número de aplicações e o espaçamento entre elas se for o caso; as doses e os limites de sua utilização;d) informações sobre os equipamentos a serem usados e a descrição dos processos de tríplice lavagem ou tecnologia equivalente, procedimentos para a devolução, destinação, transporte, reciclagem, reutilização e inutilização das embalagens vazias e efeitos sobre o meio ambiente decorrentes da destinação inadequada dos recipientes;

III - informações relativas aos perigos potenciais, compreendidos:

a) os possíveis efeitos prejudiciais sobre a saúde do homem, dos animais e sobre o meio ambiente; b) precauções para evitar danos a pessoas que os aplicam ou manipulam e a terceiros, aos animais domésticos, fauna, flora e meio ambiente; c) símbolos de perigo e frases de advertência padronizados, de acordo com a classificação toxicológica do produto; d) instruções para o caso de acidente, incluindo sintomas de alarme, primeiros socorros, antídotos e recomendações para os médicos; IV - recomendação para que o usuário leia o rótulo antes de utilizar o produto.

Os textos e símbolos que estivem contidos nos rótulos deverão ser claros e precisos, de modo que qualquer pessoa possa ver e entender o que está impresso. Ainda, os fabricantes podem inserir outras informações e símbolos nos rótulos, sob a condição de que não dificultem a visibilidade e a compreensão das informações obrigatórias.

As propagandas comerciais sobre agrotóxicos em qualquer meio de comunicação, deverá conter obrigatoriamente informações e advertências sobre os potenciais riscos.

A União tem competência para adotar as medidas cabíveis em relação a determinados assuntos, conforme preceitua o artigo 9º:

Art. 9º No exercício de sua competência, a União adotará as seguintes providências:I - legislar sobre a produção, registro, comércio interestadual, exportação, importação, transporte, classificação e controle tecnológico e toxicológico;

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II - controlar e fiscalizar os estabelecimentos de produção, importação e exportação;III - analisar os produtos agrotóxicos, seus componentes e afins, nacionais e importados;IV - controlar e fiscalizar a produção, a exportação e a importação.

Os Estados e o Distrito Federal também possuem competências relativas aos agrotóxicos. Podem legislar sobre o uso, a produção, o consumo, o comércio e o armazenamento dos agrotóxicos, seus componentes e afins, e fiscalizar o uso, o consumo, o armazenamento e o transporte interno. Os Municípios também podem, supletivamente, legislar sobre o uso e o armazenamento dos agrotóxicos.

O Poder Público dotado do dever de atuar na defesa do meio ambiente, é competente para fiscalizar a devolução e a destinação das embalagens vazias de agrotóxicos, e também a fiscalização dos produtos apreendidos pela ação fiscalizatória e daqueles que são impróprios para a utilização ou não sejam mais utilizados. Ainda, fiscalizará o armazenamento, o transporte, a reciclagem, a reutilização e a inutilização das embalagens vazias de tais produtos.

A venda desses produtos só pode ser realizada através de receituário que deverá ser prescrito por profissionais habilitados para isto, podendo haver disposições contrárias na lei.

O Poder Executivo deverá desenvolver ações de instrução, divulgação e esclarecimentos que estimulem o uso seguro e eficaz dos agrotóxicos, tendo por objetivo a redução dos prejuízos causados aos seres humanos e ao meio ambiente, além de prevenir acidentes decorrentes da utilização imprópria, devendo as empresas produtoras e comercializadoras desses produtos atuarem conjuntamente com o Poder Público na criação de programas educativos e mecanismos de controle e estímulo à devolução das embalagens vazias. (Artigo 19, caput, e § único).

RESPONSABILIDADES IMPUTADAS AO INFRATOR

A responsabilidade em matéria ambiental é de cunho objetivo, ou seja. Independe da culpa do agente infrator, devendo aquele que causou o dano repará-lo e indenizar aqueles que se encontram atingidos pela conduta prejudicial.

O artigo 225, § 3º da Constituição Federal estabelece a tríplice esfera de responsabilidade, afirmando que as “condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, as sanções penais e administrativas independentemente da obrigação de reparar os danos causados.”

Da mesma forma o Código Civil prescreve que o individuo que causar dano a outrem, por ato ilícito, terá o dever de repará-lo, independentemente

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de culpa, ou quando a atividade exercida pelo autor do dano, por sua natureza implicar riscos para os direitos de outrem. (Art. 927, CC)

A finalidade é fazer com que se retorne ao status quo ante, mesmo que por vezes não seja possível pela gravidade do dano ou características peculiares do meio.

Quanto aos agrotóxicos a Lei 7.802/1989 disciplina a responsabilidade civil, administrativa e penal, impostas aos infratores das regras nela contida.

A responsabilidade civil é pautada no Princípio da Neminem Laedere, ou seja, a ninguém se deve lesar, e ocorrendo a infração o agente causador deverá repará-lo. É necessário haver uma conduta omissiva ou comissiva e também o nexo de causalidade, independendo a culpa.

O nexo de causalidade é a relação existente entre a conduta e o resultado danoso por ela causado. Havendo o dano haverá o dever de indenizar e reparar.

O que se pretende é garantir que nenhum dano fique sem reparação e proporcionar a sensação de justiça àqueles que foram direta e indiretamente lesados.

O Estado através do seu Poder de Polícia é responsável pela apuração do ilícito administrativo-ambiental, impondo as penalidades cabíveis. É a responsabilidade administrativa.

O artigo 17 da Lei 7.802/89 traz o rol de sanções administrativas imputadas ao infrator das normas contidas nesta lei.

Art. 17 – Sem prejuízo das responsabilidades civil e penal cabíveis, a infração de disposições desta Lei acarretará isolada ou cumulativamente, nos termos previstos em regulamento, independente das medidas cautelares de estabelecimento a apreensão do produto ou alimentos contaminados, a aplicação das seguintes sanções:I – advertência;II – multa de até 1000 (mil) vezes Maior Valor de Referência – MVR, aplicável em dobro em caso de reincidência;III – condenação do produto;IV – inutilização do produto;V – suspensão de autorização, registro ou licença;VI – cancelamento de autorização, registro ou licença;VII – interdição temporária o definitiva de estabelecimento;VIII – destruição de vegetais partes de vegetais e alimentos, nos quais tenha havido, aplicação de agrotóxicos de uso não autorizado, a critério do órgão competente.Parágrafo único. A autoridade fiscalizadora fará a divulgação das sanções impostas aos infratores desta Lei.

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Para a apuração da infração o poder público produz despesas, que segundo o artigo 18, caput, e parágrafo único, deveram ser pagas pelo infrator.

Qualquer que tenha cometido a infração, incentivado ou se beneficiado através da prática da mesma, responderá pela infração.

A lei 9.605 de 12 de fevereiro de 1998 traz no artigo 70 a conceituação das infrações administrativas como toda ação e omissão que viole regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente, sendo o SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente - o órgão competente para lavrar o auto de infração ambiental e instaurar o processo administrativo, assim também os agentes das Capitanias dos Portos e do Ministério da Marinha, podendo qualquer pessoa que verificar uma ilicitude comunicar o SISNAMA para que este, através de seu poder de policia, faça a apuração imediata da conduta ilícita, sob pena de tornar-se responsável pela infração.

O artigo 72 da referida lei, traz em seus incisos as sanções que poderão ser impostas ao infrator.

Art. 72 – As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:I – advertência;II – multa simples;III – multa diária;IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;V – destruição ou inutilização do produto;VI – suspensão de venda e fabricação do produto;VII – embargo de obra ou atividade;VIII – demolição de obras;IX – suspensão parcial ou total de atividades;X – VETADO;XI – restritiva de direitos;

Essas sanções podem ser aplicadas cumulativamente, e havendo aplicação da advertência, essa será feita sem prejuízo das demais sanções estabelecidas. (§§ 1º e 2º)

O parágrafo 8º da Lei ainda, prevê a restrição de direitos como medida sancionadora.

§8º As sanções restritivas de direito são: I – suspensão de registro, licença ou autorização;

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II – cancelamento de registro, licença ou autorização;III – perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais;IV - perda ou suspensão da participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;V – proibição de contratar com a Administração Pública, pelo período de até 3 (três) anos.

A penalidade poderá ser agravada, observando-se para isto os motivos da infração e suas consequências para a saúde pública e para o meio ambiente, os antecedentes do infrator quanto ao cumprimento da legislação de interesse ambiental, e ainda no caso de multa verificar-se-á a situação econômica do infrator. (Art. 72).

A precípua finalidade da aplicação de tais medidas é minorar as ilicitudes praticadas que causam danos ao meio ambiente. Dessa forma, há ainda a responsabilização penal. Mais um meio para a proteção ambiental.

Havendo uma ação ou omissão, através da qual o sujeito viola uma norma penal de modo a ofender bens e interesses jurídicos, haverá responsabilização.

No que tange ao meio ambiente, essas infrações atingem uma coletividade, por isso cabível a responsabilização penal para evitar a violação ao bem jurídico coletivo e prevenir a ocorrência de futuras infrações.

Ao contrário da responsabilidade civil, a penal é de cunho subjetivo, ou seja, faz-se necessária a presença do dolo ou culpa por parte do agente infrator, tendo a acusação o ônus de provar a autoria e a materialidade do crime.

As penalidades aplicáveis aos infratores das normas relativas aos agrotóxicos estão contidas nos artigo 15 e 16 da Lei 7.802/89.

Art. 15 – Aquele que produzir, comercializar, transportar, aplicar, prestar serviço, der destinação a resíduos e embalagens vazias de agrotóxicos, seus componentes e afins, em descumprimento às exigências estabelecidas na legislação pertinente, estará sujeito à pena de reclusão, de dois a quatro anos, além de multa.

Art. 16 – O empregador, profissional responsável ou o prestador de serviço que deixar de promover as medidas necessárias de proteção à saúde e ao meio ambiente, estará sujeito à pena de reclusão de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, além de multa de 100 (cem) a 1.000 (mil) MVR. Em caso de culpa, será punido com pena de reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos, além de multa de 50 (cinquenta) a 500 (quinhentos) MVR.

Os danos ambientais causados pela poluição por agrotóxicos afetam a todas as formas de vida, por isso a importância da existência de regras que disciplinem as condutas e responsabilize aqueles que infrinjam tais normas.

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A responsabilização penal ambiental é medida efetiva contra os danos ambientais, pois pune não só as condutas que geram resultados, mas também as condutas que possam vir a ensejar um dano ambiental, sendo assim, uma medida preventiva também.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema tratado é atual e de muita importância, merecendo maior atenção do poder público, haja vista, os danos ambientais que tal atividade agrícola causa, atingindo todos os seres vivos, direta ou indiretamente.

A contaminação por agrotóxicos tem atingido a flora, a fauna, o solo, a água, o ar, e através da cadeia trófica afeta todos os seres vivos, culminando em doenças. Através dos alimentos que ingerimos, da água que bebemos e do ar que respiramos a contaminação por esses elementos então contaminando-nos sem que percebamos há primeiro instante.

Por tais razões, é válida a crítica aos dispositivos legais hoje existentes sobre o tema, questionando-se a aplicação e a eficácia dos mesmos. Mesmo havendo a tríplice responsabilização, esta por vezes de faz de forma morosa, ou nem mesmo é realizada, até mesmo pelo fato de que muitos dos danos gerados são de difícil reparação e mensuração, ficando a lei prejudicada em sua eficácia.

O tema é presente na vida de todos os cidadãos, independente de sua classe social, atingindo a todos indistintamente. Por isso a relevância de se dar maior atenção ao assunto.

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REFERÊNCIAS

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SEGURANÇA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO NO COMÉRCIO ELETRÔNICOSECURITY IN E-BUSINESS CONSUMER

jailSon bErnarDo DE lEmoS

Acadêmico do curso de Direito do Centro Universitário Curitiba – UNICURITIBA

luciana carnEiro DE lara

Possui graduação em direito pela PUC/PR (2004). É pós-graduada em Direito Processual Civil pela PUC/PR (2005) e em Direito Civil e Empresarial pela PUC/PR (2009). É mestra em Direito Econô-mico e Socioambiental pela PUC/PR (2011). Atualmente é sócia do escritório Peregrino Neto e Beltrami Advogados e professora de Direito Civil do UNICURITIBA. É membro da Comissão de Direi-to Processual Civil e da 3a Comissão de Fiscalização do Exercício Profissional da OAB/PR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Civil e Processual Civil.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Segurança no comércio eletrônico; 3. Dados na internet; 4. Selos de segurança; 5. Orientações Gerais; 6. Conclusão; 7. Bibliografia.

RESUMO

Atualmente a sociedade está inserida num cenário de avanços tecnológicos, que tem como a internet uma das principais difusoras desses avanços. A internet proporcionou além da possibilidade de comunicação entre pessoas de todo o mundo, o consumo de produtos e serviços através da transmissão de dados, possibilitando assim uma nova vertente nas relações de consumo. Ocorre também que paralelo a tais avanços as compras no comércio eletrônico trouxeram consumo também a possibilidade de praticas de ilicitudes por meio da captura de dados de seus usuários por meio da expressão emprestada da medicina, que são chamados “vírus”, além disso, há também a simulação de transações licitas, mas que na verdade são paginas virtuais criadas no intuito de ludibriar quem as busca. Apesar de avanços significativos quanto a proteção do consumidor nas relações de consumo no comercio eletrônico, faz-se necessário que este mesmo consumidor atente-se para as medidas que pode tomar para não ser enganado e tenha suas informações violadas ou ainda que acarretem prejuízos financeiros.

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SUMARY

Today society is embedded in a scenario of technological advances, such as the internet that has major broadcasters such advances. The internet has provided beyond the possibility of communication between people all over the world, consumption of products and services through the transmission of data, thus enabling a new dimension in consumer relations. It also happens that parallel to these advances in commerce purchases also brought the possibility of consumption practices of illegal activity by capturing data from your users through the expression borrowed from medicine, which are called “virus”, in addition there are also the simulation licit transactions, but which are actually virtual pages created in order to deceive those who search. Despite significant improvements as consumer protection in consumer relations in electronic commerce, it is necessary that this same consumer to watch the steps you can take to avoid being scammed and your information has violated or that entail financial losses.

Palavras-chave: Internet; Comércio eletrônico; Segurança; Proteção do consumidor; Transmissão de dados.

1 INTRODUÇÃO

A Internet tornou-se um dos meios mais importantes de comunicação no mundo, e sua expansão é exponencial. Cresceu progressivamente o acesso da população à Internet. Cada vez mais, as pessoas têm acesso à Internet, seja através de computadores convencionais ou outros dispositivos. Pode-se dizer que a Internet está disseminada na sociedade e seu território é crescente e permanente.

Não é uma realidade tão distante, quando produtos e serviços só poderiam ser obtidos através de loja física. Era necessário um grande capital, para tornar o local onde o consumidor encontraria o produto atrativo, de modo que fosse estimulado à compra. Hoje a realidade é outra, as aquisições podem ser virtuais, com custo menor para o fornecedor, pois em uma “loja virtual”, os gastos para atrair o consumidor limitam-se apenas à página onde encontrará o produto.

É necessário destacar que a internet é formada, não por apenas computadores que estão conectados, mas por pessoas que se relacionam, e isto ocorre de diversas formas, seja para a diversão, informação e também para o consumo.

Essas relações não se limitam apenas às pessoas, mas também a uma coletividade, sejam empresas, governos e outros grupos. Todos estes grupos utilizam desta ferramenta, e sua utilização traz consigo várias conseqüências, que não se restringe apenas às facilidades que a internet proporciona,

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principalmente no que diz respeito ao comércio eletrônico, mas também quanto às ilicitudes que são praticadas no mundo virtual, trazendo a necessidade de se precaver, tomando medidas de segurança, para não ser alvo desses meios fraudulentos e assim não ser prejudicado.

Estes meios fraudulentos na grande maioria dos casos estão associados à obtenção de dados do usuário, no intuito de utilizá-los para obtenção de vantagem ilícita, mesmo que não acarrete prejuízo financeiro à obtenção de dados sem a conivência do usuário está sujeita a prejuízos de outra natureza, como, por exemplo, à utilização de dados do usuário para mascarar a pratica de algo que não tenha feito, como o envio de um e-mail que o mesmo não tenha enviado.

O avanço da internet alterou significamente o modo de vida das pessoas e os negócios. A Internet colocou ao alcance de qualquer pessoa a possibilidade de visualizar ou até adquirir quaisquer produtos ou serviços que antes eram impossíveis. Contribuído com o aumento do poder de compra ou de crédito, a aquisição tornou-se possível com apenas um “click”. O problema desta possibilidade de consumo está na insegurança que pode ocorrer nas relações de consumo do comércio eletrônico.

O conceito de comércio eletrônico é aparentemente novo, e está associado ao desenvolvimento tecnológico ocorrido nos últimos anos. A internet esta diretamente associada ao comércio eletrônico, pois é o meio pelo qual se realizam essas relações negociais. Desse modo faz-se necessário entender como ocorreu o desenvolvimento da internet no Brasil, o avanço do comércio eletrônico e os problemas de segurança que surgiram.

No Brasil o primeiro contato ocorreu em 1988, através de institutos de pesquisas e universidades. Em 1992 houve um grande estimulo oriundo do governo federal, através da instalação de cabos, necessários para a expansão da internet, nas principais cidades brasileiras, dando assim o pontapé inicial para o desenvolvimento da internet no país.

Porém, foi apenas em 1995, com a criação do site de buscas Yahoo e da livraria virtual Amazon.com que a expansão significativa e progressiva da internet seja no Brasil e no Mundo ocorreram 12.

Não demorou muito para que se visualizasse o potencial comercial que a internet trazia consigo. Em pouco tempo criou-se a definição de comércio eletrônico, que diz respeito à compra e venda de mercadorias, através da internet, porém muitos autores entendem que para melhor definir o comércio eletrônico a expressão inglesa e-business ou e-biz, pois considera não apenas a compra e venda como também o consumo de serviços 13.

12 VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da internet no Brasil. Barueri, SP: Manole, 2003. p. 8-9.13 TURBAN, Ephraim Mclean e James Wetherbe. Tecnologia da informação para gestão: Transformando os negócios na economia digital. Trad. - Porto Alegre: Bookman, 2002..p. 158.

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Fica claro que a internet possui vertentes bem definidas, em uma ponta está toda facilidade e agilidade que ela proporciona, e do outro, os problemas gerados nas relações de consumo. É evidente que tais problemas viriam à tona, pois é natural que um meio de comunicação que tem um alcance tão gigantesco, resulte, além de benefícios, em problemas que precisam ser solucionados.

A relação negocial através da internet abriu inúmeras possibilidades de comércio, e isso fez com que fossem criadas inúmeras páginas virtuais, oferecendo produtos e serviços para consumidores, sejam pessoas físicas, empresas e governo.

Sem dúvida, a internet não só facilita o acesso às compras, como em especial, amplia este acesso, levando o consumidor a comprar sem sair de onde está e em qualquer lugar do mundo. O consumidor, agora, é um visitante virtual que analisa rapidamente todos os itens e as possibilidades oferecidas pelas empresas.

Desse modo faz-se necessário que o consumidor utilize-se de meios de segurança para não tornar a aquisição de um produto ou serviço uma dor de cabeça, mas sim, usufruir as vantagens que o comércio eletrônico proporciona.

2 SEGURANÇA NO COMÉRCIO ELETRÔNICO

As relações de consumo na internet, nos últimos anos, passaram por grandes transformações. É possível destacar que uma grande mudança diz respeito à massificação do consumo. A cultura de consumo está constantemente criando novos espaços para os consumidores, fazendo com que o consumo através da internet torne-se um sistema global, que transformou significativamente as relações dos indivíduos, por tecnologias variadas, e cada vez mais avançadas, determinando padrões a serem seguidos.

Percebe-se que, nos últimos anos, ocorreu um aumento da oferta de produtos e serviços na internet, fazendo com que houvesse um anonimato dos sujeitos nas relações de consumo, ao invés de ser o próprio fabricante quem distribuía seus produtos, a distribuição também foi massificada. Paulo Morais já falava da massificação do consumo em 1999 e que hoje é bem aplicada as relações de consumo na internet:

Com o advento da produção em massa para um mercado que já principiava a superar a fase de consumir apenas o essencial, viram-se os industriais forçados a encontrar meios rápidos de escoar o excesso de produção de máquinas cada vez mais aperfeiçoadas e velozes... Só a propaganda, com suas técnicas aprimoradas de persuasão, poderiam induzir as grandes massas consumidoras a aceitar novos produtos, saídos das fábricas, mesmo que não correspondessem à satisfação de suas necessidades básicas: comer, vestir, morar, tratar da saúde.14

14 MORAES, Paulo Valério dal Pai. Código de Defesa do Consumidor: no contrato, na publicidade,

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O aperfeiçoamento dos meios de comunicação também atingiu diretamente as relações de consumo. É possível perceber que o comportamento de compra dos consumidores passou por uma radical mudança, que segundo Kotler, a instalação de equipamentos (computadores) nas residências e nas empresas tem-lhes possibilitado o acesso rápido e preciso aos fornecedores de bens, produtos e serviços. Estes fornecedores, por sua vez, têm acesso às informações das preferências e comportamentos de compra e uso de cada um dos seus consumidores e podem disponibilizar itens personalizados a cada cliente. Com a rapidez do acesso às compras e listas personalizadas, disponíveis em seus equipamentos, os consumidores podem utilizar, de maneira muito mais abrangente, os serviços virtuais.15

Joan Robinson observa que o consumo de massa afigura-se fenômeno relativamente recente, sendo que alguns historiadores chegam a dividir a história humana apenas em dois períodos: do neolítico ao século XVIII, e da Revolução Industrial até o presente. Isso porque o industrialismo foi determinante para que a humanidade adotasse o comportamento consumista hodiernamente observado.16

Fábio de Sá e Beltrame falam sobre a relação da sociedade de consumo e a globalização, que diz:

Seguindo sobre a análise dos efeitos da desterritorialização, ela também faz dissolver a segurança local, rincão de proteção de um grupo social, quando se abre a interferências simbólicas alienígenas, ao mesmo tempo que fornece novos entendimentos da experiência amplificada - global em última análise. Para Milton Santos, a idéia de encurtamento de distâncias é um mito gerado por uma ideologia que nos tenta convencer de que o mundo está ao alcance de todos e, segundo essa idéia, quem não se faz reconhecer no cenário mundial não o faz por falta de competência. A presença no cenário mundial, por sua vez, pressupõe uma participação do indivíduo da sociedade de consumo, baseada no sonho de aquisição sem limites, transfronteiriça, veiculando fortemente os emblemas da racionalidade hegemônica dos nossos tempos. Essa hegemonia, sopesada em seus contornos conforme veremos adiante, é outro lado da moeda da globalização, que atinge de forma importante os fenômenos relacionados à cultura.17

nas demais práticas comerciais. p. 246. Porto Alegre: Síntese, 1999.15 KOTLER, Philip. Marketing para o século XXI: como criar, conquistar e dominar mercados. p. 251. São Paulo: Futura, 1999.16 ROBINSON, Joan. Liberdade e Necessidade. p.61. Rio de Janeiro: Zahar Editores: 1971.17 CESNIK, Fábio de Sá; BELTRAME, Priscila Akemi. Globalização da Cultura. p.12. Barueri, SP: Manole, 2005.

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Hoje é possível perceber que o consumo, na grande maioria das vezes, está mais associado ao desejo de compra do que a real necessidade de aquisição de determinado produto ou serviço. Compreendendo isto, os que representam a outra ponta, ou a outra parte desta relação de consumo, impulsionam este desejo por determinado produto e fazem com que através de uma boa divulgação, fazê-lo parecer necessário ou essencial. E na internet isso fica mais evidente pois através do computador é possível visualizar uma grande quantidade de páginas oferecendo uma diversidade imensa de produtos e serviços oriundos de qualquer parte do mundo.

Bauman Zygmunt descreve este comportamento, percebido na sociedade atual, e como tal comportamento está associado a uma separação de grupos e do poder que determinado grupo tem, em relação ao outro:

O mesmo pode ser dito dos bem-sucedidos em secessão dos dias de hoje. As “comunidades cercadas” pesadamente guardadas e eletronicamente controladas que eles compram no momento em que têm dinheiro ou crédito suficiente para manter distância da “confusa intimidade” da vida comum da cidade são “comunidades” só no nome. O que seus moradores estão dispostos a comprar ao preço de um braço ou uma perna é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos. “Intrusos” são todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e viver suas vidas do modo como querem. A proximidade de outras agendas e de modos de vida alternativos solapa o conforto de “acabar rapidamente e começar do começo”, e por isso os “intrusos”são objeto de ressentimento porque visíveis e embaraçosos.

Desse modo é possível perceber que o poder de compra está associado a um evento social, muito mais do que uma real necessidade do que foi adquirido.

Até este ponto não cabe a discussão, porém a problemática está quando não se observa medidas de segurança, necessárias para adquirir qualquer produto na internet.

Observados aspectos significativos da chamada “sociedade de consumo” é possível analisar também os aspectos das relações de consumo na internet, no que diz respeito à segurança do consumidor. Diante deste cenário percebe-se que cada vez mais o consumidor necessita estar atento, para que ao adquirir um produto na internet não tenha seus dados violados e seja prejudicado.

Nos últimos anos o poder de compra da população aumentou, o que não acompanhou este crescimento foi o acesso à informação. Muitas vezes o desejo de adquirir determinado produto não acompanha uma busca por informações que poderá dar segurança, caso haja algum litígio futuro, fruto desta aquisição. Muitas vezes este impulso acompanha o fato de que na grande maioria das

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vezes o preço baixo e as diversas facilidades, para muitos, compensa a falta de informação. O problema de tal comportamento é que as conseqüências vêm posteriormente, o que em muitos casos torna-se inviável o saneamento.

John Lane faz uma crítica a esse consumismo, segundo ele,

As pessoas estão ligadas a metas de vida inalcançáveis. Os anúncios estão sempre nos dizendo que seremos mais felizes se escolhermos esse carro, essa nova cozinha. Dizem até que ficaremos mais atraentes se usarmos este xampu ou aquele desodorante. O consumismo e a pressão pelo sucesso estão criando uma epidemia de infelicidade para pessoas que não conseguem alcançar as metas colocadas à sua frente.18

John Lane deixa claro que o consumo hoje, está associado a esta busca pelo que é divulgado como essencial, mas que em sua grande maioria é formada por produtos de necessidade acessória que, quando se fala de um determinado produto, é superado por versões melhores ou com mais recursos, deixando os anteriores obsoletos, alimentando cada vez mais o consumo massificado.

É possível perceber a massificação do consumo, no caso da aquisição de celulares. Quando foram originalmente criados, eram apenas meios para fazer ligações e hoje apresentam diversos recursos, que se superam a cada ano, fazendo com que as pessoas queiram sempre adquirir as versões mais atualizadas.

A problemática não se deve apenas ao consumismo em si, mas ao seu crescimento sem limites e os reflexos desse crescimento. Pois como foi exemplificado sobre os celulares, pelo desejo de adquirir os que são divulgados no mercado como os mais modernos, o consumidor busca através dos diversos meios de comunicação tal produto, desconhecendo sua procedência. Esta atitude faz com que o consumidor seja enganado e não pense na cautela que deve haver ao adquirir um produto na internet.

Apesar do consumidor não possuir, em sua grande maioria, conhecimento para discernir sobre esta questão, e nem deveria, pois como foi dito inicialmente, com o aumento dos meios de comunicação tornou-se quase impossível discernir se a aquisição será segura ou não, percebe-se claramente que antes da aquisição o consumidor deve ser prudente e analisar se a página apresenta recursos mínimos de segurança e também se buscou as informações necessárias antes de adquirir para que a compra não seja algo frustrante no futuro, caso haja algum problema.

Segundo Higor Jorge, aproveitando-se da falta de limites claros nas relações de consumo na internet, muitos fornecedores preocupam-se principalmente na fabricação em grande escala dos produtos, sem se preocupar em muitos casos, com a qualidade ou com a segurança. Os produtos são

18 Revista Vida Simples. p. 54. Março de 2005, ed. nº 26.

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colocados no mercado e o consumidor muitas vezes nem sabe sua procedência ou onde recorrer caso haja algum problema.19

Um ponto de relevante análise é que, no Brasil é possível perceber uma grande falta de informação da população, não havendo, de um modo geral, a preocupação com a procedência do produto, atraindo-se pelo anúncio e desejo de compra, esquecendo-se dos outros aspectos.20

Quando se fala em segurança no mundo virtual é importante dizer que não se trata apenas dos recursos eletrônicos, para se proteger de possíveis invasores de informações, é bem mais amplo que isso, trata-se também das medidas ou procedimentos adotados pelo usuário antes, durante e depois do acesso à internet.

A idéia de segurança estende-se para tudo que envolve o acesso ao mundo virtual. Os procedimentos iniciais dizem respeito à verificação da veracidade do conteúdo acessado. Durante o acesso é importante estar atento para os meios fraudulentos para se obter informações, seja por meio da página em que se estar acessando, como também para outros conteúdos, alheios a página principal. Na seqüência é importante ter-se em mente quais as medidas de proteção na relação de consumo, sejam procedimentais como também legais, ou que tenham amparo legal.

Entretanto, o mundo virtual é complexo e cheio de vertentes, de modo que também é difícil se falar em 100% de segurança ou em um meio que seja mais eficaz que outro. Apesar disso a busca por proteção necessita ser constante. Todos os dias crescem o numero de ilicitudes praticadas pela internet, e do mesmo modo que cresce a proteção contra a prática de crimes virtuais, cresce também os meios para burlá-las.

Desse modo faz-se necessário entender como ocorrem as violações de informações na internet e como se proteger quando realizar transações comerciais. Como foi dito anteriormente não é possível se falar em segurança absoluta, pois a internet é usada por pessoas, pessoas estas sujeitas a falhas, e as medidas de proteção dizem respeito não apenas aos recursos virtuais, no uso da internet, mas também como são acessadas as informações. A cautela em tudo que é acessado é característica importante na busca pela segurança no mundo virtual. Agindo desta maneira é possível prevenir, como também diagnosticar tais violações.

Constantemente programadores buscam criar meios para tornar o acesso à internet mais seguro, porém é importante ter em mente que tais meios podem ser burlados, se as medidas de segurança não forem corretamente realizadas. Desse modo a segurança no mundo virtual esta relacionada tanto aos recursos

19 Blog Higor Jorge. Segurança da Informação e Crimes Cibernéticos. Acesso em 08 de junho de 2012. Disponível em: http://www.crimesciberneticos.net/2011/01/entrevista-os-perigos-das-compras-pela.html.20 BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. [Tradução: Artur Mourão, Título original: Societe de consommation, LA]. São Paulo: 2ª ed. Edições 70. Coleção Arte e comunicação, 2009.

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virtuais utilizados para impedir violação, exemplo disso o chamado “antivírus”, expressão utilizada para definir o programa de computador que detecta possíveis tentativas de acesso não autorizado, como também as medidas de acesso. Apesar do “antivírus” auxiliar na segurança das informações na internet, não é possível imaginar que seu controle é totalmente eficaz:

Algumas ferramentas de antivírus são atualizadas diariamente e passam por testes de detecção de ameaças, desempenho e facilidade de uso. É importante compreender as mensagens que o seu antivírus informa ao encontrar uma ameaça, solicitar uma ação do usuário e outras informações e alertas. NENHUM antivírus detecta todos os vírus existentes. Podemos considerar isso como jogada de marketing, pois se um antivírus foi atualizado nesse momento, e foi lançado um vírus novo pouco mais de 20 minutos após a última atualização, como ele poderá detectar? Alguns antivírus usam técnicas de heurística (analise de comportamento) para detectar ameaças que ainda não estão catalogadas em seu banco de vacinas, mas esse tipo de detecção não é muito confiável. Outro mito é achar que usamos mais de um antivírus estamos mais seguros. Acredite isso é puro engano. Um antivírus pode atrapalhar o outro, gerando conflitos de detecção e em alguns casos travando o computador.21

Cheswick trata a respeito da importância de se analisar o risco que se quer assumir. Quanto maior o risco do negócio maior deve ser o investimento em segurança, para assim evitar que ocorram perdas significativas. A relação risco/investimento não diz respeito apenas a empresas, o usuário doméstico também se enquadra perfeitamente nesta relação. Alguém que faz a compra de produtos e serviços pela internet, especialmente de valores significativos, deve ter em mente que ao acessar a internet no intuito de realizar tais transações assume um risco, caso incorra em fraude, perdendo assim o que gastou para a aquisição do produto. Em muitos casos a perda pode ser maior do que foi investido, caso as informações pessoais do consumidor sejam violadas, como contas bancárias, utilização do limite do cartão de crédito, as perdas podem gerar danos catastróficos. Desse modo a relação risco/investimento é abrangente, empresas e usuários. 22

Assim, a idéia de segurança na internet está associada a todas as medidas adotadas pelo usuário para proteger suas informações pessoais e financeiras, que podem ser usadas para praticar ilicitudes.

21 MORAES, Paulo. Mente anti-hacker: proteja-se. Rio de Janeiro: Brasport, 2011. p. 33.22 CHESWICK, William; Steven M Bellovin; Aviel D. Rubin. Firewalls e Segurança na Internet: Repelindo o hacker ardiloso. Trad. Edson Furmankiewicz. - 2 ed. - Porto Alegre: Bookman, 2005. p. 23-25.

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3 DADOS NA INTERNET

Quando se fala em acesso à internet se fala em acesso de dados, acesso de informações e repasse de informações, a rede mundial de computadores é uma rede mundial de informação, onde se transita de maneira rápida uma infinidade de informações por páginas virtuais em diversas partes do planeta. É importante entender como os dados são transmitidos e como é possível proteger tais dados, principalmente quando realizado o comércio eletrônico.

É possível visualizar a imensa quantidade de meios fraudulentos para enganar o consumidor. Muitas vezes empresas virtuais são criadas apenas com o intuito de enganar o consumidor. Em alguns casos se passam até por empresas conhecidas pelo consumidor, no intuito de atraí-lo para a compra, por confiar na empresa que imagina estar comprando. Em muitos casos tais páginas têm o intuito apenas de obter os dados do consumidor para usos fraudulentos e existem páginas que são bem criadas e passam realmente a sensação de segurança ao utilizá-las, porem o consumidor deve estar atento a pequenos detalhes antes de fornecer seus dados.

Para coibir tal ilicitude, e evitar fraude quanto ao pagamento do produto, criou-se à chamada “assinatura digital”. Esta assinatura é distinta e se diferencia da tradicional. Ela identifica o usuário ou empresa oferecedora de produtos e serviços através do comércio eletrônico.

Rafael Gazzarrini explica como funciona a assinatura digital:

Para conseguir uma assinatura digital, qualquer pessoa ou empresa deve ir até uma entidade autorizada pelo Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (TI) — chamadas de Autoridades Certificadoras (AC) — e requisitar uma chave privada.As chaves são um conjunto de bits criptografados usados para habilitar apenas algumas pessoas para emitir e receber certos arquivos. Se você for detentor de uma chave privada, vai ser possível emitir dados com uma identidade própria, sem haver a chance de alguém se passar por você.Caso você tenha uma chave pública, vai haver apenas a possibilidade de acessar um documento recebido e repassar essa informação. No entanto, o nome do emissor original vai estar sempre atrelado ao arquivo ou serviço, de modo que não haja dúvidas de quem o produziu, ou seja, o verdadeiro responsável por ele.Contudo, a assinatura digital ainda não está completa. Para repassar as informações de maneira completamente segura, é necessário obter um hash, que é o resultado de uma função responsável por criptografar e dar “identidade” única para os dados usados.

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Com tudo isso feito, um certificado é emitido e é possível estabelecer comunicação entre duas ou mais pessoas, desde que pelo menos uma delas tenha a chave simétrica (privada) e as outras tenham as assimétricas (públicas). 23

Assim, é possível citar as três funções, das assinaturas digitais:

- Autenticidade: confirmar a identidade das partes que participaram da transação;- Integridade: proteger a integridade da mensagem, possibilitando o conhecimento por parte do destinatário de casual adulteração do conteúdo.- Não-repúdio: permitir que se prove posteriormente quem participou da transação eletrônica.24

A segurança no comércio eletrônico pode ser obtida através da “certificação eletrônica e “assinatura digital”. As duas utilizam um sistema de segurança de criptografia assimétrica”.

Para entender como funciona a criptografia assimétrica faz-se necessário entender como funciona a criptografia simétrica:

Na criptografia simétrica, Alice e Bob precisam acordar uma chave secreta que irá proteger as mensagens trocadas entre eles. Pode-se comparar a criptografia secreta a um cadeado com senha: Devido às técnicas matemáticas e computacionais envolvidas, considera-se inviável tentar descobrir a chave secreta correta.25

A criptografia simétrica consiste em uma senha secreta para comunicação, sendo que esta senha é de conhecimento apenas do envolvidos. Dito isto, é possível conceituar a criptografia assimétrica:

A criptografia assimétrica difere da criptografia simétrica pela utilização de um par de chaves no lugar de uma única chave secreta. Este par é composto por uma chave pública, de conhecimento geral, e uma chave privada, de posse exclusiva da pessoa que a gerou.

23 GAZZARRINI, Rafael. O que é assinatura digital? Acesso em 19 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.tecmundo.com.br/web/941-o-que-e-assinatura-digital-.htm.24 ROCHA FILHO, Valdir de Oliveira; BARRETO, Ana Carolina Horta. O Direito e a Internet. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.25 KAMINSKI, Omar (organizador). Internet legal: o Direito na tecnologia da informação. p. 204. 1ª ed. (ano 2003), 5ª tir. Curitiba: Juruá, 2007.

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O autor diz que cada sujeito, pessoa e computador, precisam gerar um par de chaves, pública e privada. Entendido isto, poderá compreender a assinatura digital:

Outra forma de utilização da criptografia assimétrica é a assinatura digital. Para assinar uma informação, Alice encripta-a com sua chave privada. Qualquer pessoa pode decriptar essa informação usando a chave pública de Alice, posto que ela é de conhecimento geral. A consideração importante é que, se a informação pôde ser decriptada com a chave pública de Alice, isto significa que apenas Alice pôde ter gerado a informação, uma vez que somente ela detém a chave privada equivalente.

Desse modo, a assinatura digital oferece proteção para o consumidor no comércio eletrônico, pois por meio dela é possível saber a origem da página virtual e se prevenir contra ilicitudes.

É possível obter segurança quanto à chave privada, o problema está na confiabilidade da chave pública, isto é, ter a certeza de sua origem. Em virtude disto é possível encontrar um recurso de segurança do consumidor através dos selos de segurança, que podem ajudar prevenir o consumidor quanto a páginas onde a confiabilidade é duvidosa.

4 SELOS DE SEGURANÇA

Como foi dito anteriormente, existe uma dificuldade para se assegurar quanto à confiabilidade da chave pública. Desse modo faz-se necessário que um órgão idôneo ateste que se detém certo par de chaves. Tal entidade emite um certificado, que contém a assinatura da autoridade certificadora e a sua validade. Na internet essas autoridades certificadoras são empresas privadas.

Quando o consumidor buscar um produto em qualquer página virtual é necessário que observe se a página possui o “selo digital” emitido por entidades certificadoras, para assim, buscar obter mais segurança no comércio eletrônico.

Existem entidades certificadoras que possuem um reconhecimento maior quanto sua lisura e está presente em uma quantidade significativa de páginas virtuais. Por tratar-se de empresas privadas é importante para o consumidor verificar o “selo digital” que está presente nas páginas que para ele lhe passa maior confiabilidade.

É evidente que tal precaução não garante total segurança na aquisição de um produto através da internet, mas é uma ferramenta útil para se proteger contra páginas virtuais que se utilizam negócios fraudulentos.

Como foi dito o “selo digital” é obtido através de empresas privadas, e também para atestam a veracidade do certificado digital, outras empresas

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privadas assumem esta responsabilidade, e caso se descubra que a chave pública de um certificado não é mais segura, ele pode ser revogado por estas empresas. Todos os certificados digitais possuem uma validade e precisam ser verificados quando acessados na página virtual. Revogado o certificado não é possível mais assegurar que a chave pública da página virtual seja segura. Para conferir se um determinado certificado foi revogado é possível consultar listas de certificados revogados, que pode ser obtido na página virtual das empresas que atestam a confiabilidade dos certificados digitais.26

Quando o consumidor entra na página virtual o “selo digital” normalmente encontra-se na parte inferior direta da página. Utilizando como exemplo é possível visualizar o selo de segurança na pagina virtual da empresa SUBMARINO.COM, que nesta página o selo encontra-se na parte inferior direita da página.27

Ao acessar o “link” para o “selo digital” o consumidor pode verificar a validade do selo e também para algumas empresas existe a opção de verificar a autenticidade do selo de uma determinada página, através de um sistema de busca fornecido pela própria página. É possível verificar tal característica na pagina virtual da empresa AMERICANAS.COM.28

No que diz respeito aos aspectos jurídicos dos selos de segurança existe a iniciativa da ICP-Brasil, porém a autenticidade do selo pode ser atestada também por autoridades que não estejam cadastradas no ICP-Brasil.

Sobre o IPC-Brasil Kaminski descreve:

O Brasil possui uma iniciativa denominada ICP-Brasil, regulamentada pela MP-2.200-2, de 24.08.2001. A ICP-Brasil procura definir os padrões necessários à instituição de autoridades certificadoras no território brasileiro e prover validade legal à assinatura digital. Complementa esta medida provisória uma série de resoluções, portarias e decretos. A ICP-Brasil possui origens na ICP-Gov, uma ICP do poder executivo Federal, instituída pelo Decreto 3.587, de 05.09.2000, e revogada pelo Decreto 3.996, de 31.10.2001.

A MP 2.200-2/01 prevê as regras básicas para o credenciamento das Autoridades Certificadoras (AC).29

26 COSTA, Daniel Gouveia. Java em rede: recursos avançados de programação. Rio de Janeiro: Brasport, 2008. p. 144.27 SUBMARINO.COM. Acesso em 11 de novembro de 2012, em: http://www.submarino.com.br. 28 AMERICANAS.COM. Acesso em 11 de novembro de 2012, em: https://selo.siteblindado.com.br/ verificar? url=http://www.americanas.com.br. 29 KAMINSKI, Omar (organizador). Internet legal: o Direito na tecnologia da informação. p. 206. 1ª ed. (ano 2003), 5ª tir. Curitiba: Juruá, 2007.

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Enquanto não há uma legislação especifica quanto à regulamentação e fiscalização das páginas virtuais, principalmente no que diz respeito à chave publica, os “selos digitais” tornam-se um meio eficaz de proteção nas relações de consumo na internet, pois de maneira abstrata é possível comparar os “selos digitais” ao órgão governamental em que as empresas buscam quando são criadas, para que assim fiquem em situação regular, principalmente quanto a questão tributária.

É possível criar um negocio de qualquer modo, em situação irregular, porem para o consumidor não há segurança alguma quanto à compra de produtos por meio dessas empresas, pois não podem fornecer nota fiscal e desse modo caso haja algum problema na aquisição não é possível exigir a reparação, cabendo apenas a denuncia aos órgãos governamentais de que a empresa encontra-se em situação irregular, porem seu problema poderá ter uma resolução morosa e de difícil reparação, pois existe a dificuldade de meios de prova.

É possível também comparar os selos digitais aos selos de produtos, que atestam que o produto passou por testes antes de ser colocada a venda e que não apresenta perigo ao consumidor.

A verificação do selo digital deve se tornar algo rotineiro na vida do consumidor, da mesma forma como observa a validade de um produto quando realiza compras no supermercado.

5 ORIENTAÇÕES GERAIS

A internet facilita consideravelmente a vida das pessoas e é um meio rápido de buscar produtos e serviços, realizar transações comerciais de maneira especifica na necessidade daquele que busca e associar pessoas/empresas com interesses comuns. Pode-se dizer que é uma grande vitrine onde tudo está à mostra, cabendo ao consumidor apenas escolher aquele que mais convém.

Existem páginas virtuais oferecendo uma gama imensa de produtos, e é até difícil de falar em quantidade, pois diariamente tais páginas são criadas. O que atrai consideravelmente os consumidores é o preço, que em muitos casos são bem mais atrativos do que se comprado em uma loja física. Apesar disso, faz-se necessário observar a procedência da página, esta procedência diz respeito ao histórico de compras realizadas anteriormente, é importante buscar informações adicionais sobre a página, existem muitas outras páginas virtuais dedicadas apenas a relatar histórico de compras e depoimento de consumidores sobre determinada página. É evidente que a opinião de um usuário não pode representar unilateralmente a lisura de uma empresa, mas é importante ser observado caso a página possua um grande numero de reclamações de seu serviço, pois caso isso ocorra à cautela deve ser redobrada.

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A página do PROCON/PR oferece dicas importantes sobre as informações fornecidas:

É preciso ficar atento às medidas adotadas pelo fornecedor para garantir a privacidade dos dados, principalmente no caso do RG e CPF e se a página exibida apresenta um cadeado. Outra recomendação é usar uma senha difícil de descobrir, mesmo que seja preciso anotá-la, e não a repassar a outras pessoas.

Guarde todos os dados das compras: número do protocolo, confirmação do pedido, todas as mensagens trocadas com o fornecedor, e outras informações que comprovem a compra e suas condições. Isso facilitará o processo de reclamação, caso ocorra algum imprevisto.

Como a rede é mundial, as páginas hospedadas fora do Brasil seguem as normas de seus países de origem. Se o consumidor tiver problemas ao comprar produtos em sites internacionais, terá de resolvê-los diretamente com o fornecedor, porque, nesse caso, ele é o próprio importador.30

Hoje em dia as pessoas precisam memorizar senhas de banco, de segurança eletrônica residencial e de diversas páginas virtuais, seja e-mail’s, de redes sociais e acesso a informações financeiras. Em virtude disso é importante destacar além do que já foi mencionada a necessidade de mudar com periodicidade as senhas, não usar combinações de fácil memorização e que tenham uma ligação afetiva com a pessoa, como por exemplo, datas de aniversários, apelidos ou de locais. Uma combinação usual e que dificulta a violação são aquelas que combinam letras maiúsculas, minúsculas e números. Também é importante não optar para a memorização de senha na página, pois caso haja violação do computador tal atitude facilita o invasor no acesso a informações pessoais.

Muitas páginas virtuais acessadas por usuários no Brasil podem ser de origem estrangeira, e a busca por tais páginas diz respeito na grande maioria das vezes por atraírem com preços de produtos menores do que praticados no Brasil. Nestas páginas a cautela precisa ser redobrada, pois são páginas onde o domínio está em outro país.

Fernando Peres trata desta questão:

As compras realizadas em Lojas Virtuais do Brasil são regulamentadas pelas Leis Brasileiras, e os seus consumidores pelo Código de Defesa do

30 PROCON-PR. Compras pela internet. Acesso em 26 de agosto de 2012. disponível em: http://www. procon.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=524.

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Consumidor, podendo assim resolver eventuais dúvidas ou conflitos, tanto judicialmente quando realizando tentativas extrajudiciais, utilizando-se ainda do Juizado Especial Cível, em causas menos complexas e de valor não elevado. As Lojas Virtuais com a terminação “.com.br”, em regra estão registradas por uma empresa brasileira, o que pode facilitar ao tentar localizar o seu responsável ou o seu representante. Porém, as compras realizadas em sites estrangeiros podem não ser protegida pela legislação nacional, caso a Loja Virtual não possua filial legalmente constituída no Brasil. Desse modo, as regras seriam de Direito Internacional, fazendo com que os custos de uma demanda processual sejam altamente elevados, havendo inclusive a necessidade de ser realizada no país da Loja Virtual. Não se pode dizer que comprar em uma Loja Virtual Estrangeira é perigoso, porém devemos saber que se por algum infortúnio formos prejudicados durante a transação, poderemos não ser amparados pela legislação nacional.31

Desse modo é importante estar atento para a compra de produtos em paginas virtuais de origem estrangeira, pois como foi dito, seu alcance quanto à proteção do consumidor pode ser limitado. É importante ao buscar um produto em uma página virtual verificar a origem da página, se nacional, verificar endereço, razão social da empresa e se está em situação regular junto ao Estado.32

No caso de página virtual de origem estrangeira, como foi dito pelo autor, se possui filial no país e se caso não possua verificar as regras da compra, principalmente no que diz respeito às situações de litígio.

Outra orientação importante sobre o acesso de páginas virtuais diz respeito quanto ao endereço da página, quando digitado o endereço da página e logo em seguida que ela aparece é importante observar se o mesmo endereço aparece na parte inferior esquerda da página. Também quando acessar um link da página é importante observar se este link segue o mesmo caminho da página com a divisão de uma barra, pois em páginas fraudulentas esses caminhos não são encontrados e muitas vezes os “link’s” levam para paginas desconhecidas no intuito de obter os dados do usuário.33

Sendo o consumidor a parte mais vulnerável da relação de consumo, deve o mesmo se assegurar quanto à procedência da página virtual, e caso o

31 PERES, Fernando. Você sabe seus direitos ao fazer compras na internet ? Acesso em 19 de agosto de 2012. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/blog/direito-tecnologia/?ed=2270&tit=direito. 32 RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Acesso em 11 de novembro de 2012, em: http://www. receita.fazenda.gov.br/pessoajuridica/cnpj/cnpjreva/cnpjreva_solicitacao.asp.33 AMERICANAS.COM. Acesso em 11 de novembro de 2012, em: http://www.americanas.com.br/ loja/228926/perfumaria?WT.mc_id=menuLateral-perfumaria.

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litígio ocorra é importante o consumidor saber quem são os responsáveis pelo dano, e assim, respondam pelos prejuízos causados ao consumidor.34

Observado a procedência da página virtual, devem-se levar em consideração as informações sobre o produto, tanto no que diz respeito as suas características, formas de pagamento e de envio, como prevê o texto:

3.3.5 Os fornecedores, considerando as especificidades dos produtos e serviços, devem prestar as seguintes informações:i) a descrição detalhada de todos os custos cobrados pelo fornecedor;ii) a indicação da existência de custos adicionais inerentes à transação;iii) as condições de entrega e/ou execução;iv) as modalidades e condições de pagamento no financiamento e na venda a prazo, nos termos do Decreto 5.903/2006;v) as restrições, limitações ou condições associadas à compra, tal como eventuais restrições legais, geográficas ou temporais;vi) o modo de utilização e advertências relativas à segurança e saúde, se houver;vii) as informações relativas ao serviço de pós-venda;viii) os detalhes e procedimentos quanto à revogação, resolução, reenvio, troca, anulação e/ou reembolso; eix) as disposições quanto à existência de eventuais garantias comerciais;3.3.6 Todas as informações que façam referência a custos devem indicar a moeda utilizada e o respectivo valor em moeda corrente nacional.35

Estas são medidas que aparentemente parecem simples, mas podem evitar prejuízos significativos. O consumidor precisa estar atento para todo o processo da compra, desde o interesse inicial em adquirir um produto ou serviço até o recebimento e conclusão compra.

6 CONCLUSÃO

Quando se trata de internet não é possível estabelecer um rol detalhado de medidas que precisam ser adotadas na compra de produtos em páginas virtuais, desse modo é extremante importante que o usuário esteja sempre

34 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Manole LTDA. 2006.35 Escola Nacional de Defesa do Consumidor. Oficina “Desafios da Sociedade da Informação: comércio eletrônico e proteção de dados pessoais”. 30 de junho e 1º de julho de 2010. Acesso em 08 de setembro de 2012. Disponível em: http://www.procon.pr.gov.br/arquivos/File/diretrizes_comércio_eletrônico.pdf.

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em busca de novas informações, e de procedimentos que lhe ajudaram a tornar a compra mais segura.

Esta é uma busca constante, pois na mesma velocidade em que a tecnologia avança e os recursos para utilizar meios tecnológicos são aperfeiçoados, existe também, infelizmente, um crescimento constante de ilicitudes e meios fraudulentos de enganar o consumidor no comercio eletrônico, e a maneira de combatê-los é a busca pela informação e a constate vigilância e cautela quanto ao consumo virtual.

O uso da internet para relações de comércio já está inserido permanentemente na sociedade e não é mais possível dizer que é algo novo e que é necessária adaptação para utilizá-los. Cada vez mais as empresas utilizam da internet como um meio de negociação e em muitos casos as compras pela internet representam muito mais em faturamento do que em uma loja física que a empresa venha a ter. Desse modo é importante que a busca pela proteção do usuário seja uma prioridade, não apenas para as empresas idôneas, pois se beneficiam com isso, como também os representantes governamentais, através de medidas legais que protejam o consumidor nas relações de consumo no comércio eletrônico.

Apesar da morosidade para se discutir medidas legais de proteção ao usuário da internet, no ano de 2012 houve um avanço expressivo, com a aprovação, pela Câmara dos deputados do Marco cível da internet, que em especial propõe a garantia da liberdade de expressão, a proteção da privacidade e dos dados pessoais e a neutralidade da rede. Caso haja a aprovação e torne-se lei será um marco importante quanto a proteção dos usuários da internet e conseqüentemente afeta diretamente as relações de consumo no comercio eletrônico. 36

Enquanto a proteção do consumidor na esfera legal não Todas estas medidas, no intuito de coibir ilicitudes no mundo virtual produzem um efeito significativo, pois faz com que esta pratica torne-se mais difícil de ser realizada, e também é importante destacar que um preço vantajoso não pode ser a única razão por uma determinada página, pois se o consumidor incorrer em erro, a aparente vantagem financeira se tornará um prejuízo que em muitos casos gera danos significativos e permanentes.

É possível perceber que o consumidor tornou-se alvo dos fornecedores de produtos e serviços na internet. A enganosidade tornou-se constante, a falsa idéia que tal produto ou serviço são necessários. Isto fez com que o consumidor

36 CAMARA DOS DEPUTADOS DO BRASIL. Marco civil da internet estabelece direitos dos usuários. Acesso em 13 de novembro de 2012, em: http://www2.camara.leg.br/agencia/noticias/COMUNICACAO/201709-MARCO-CIVIL-DA-INTERNET-ESTABELECE-DIREITOS-DOS-USUARIOS.html.

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acredite que é parte totalmente ativa deste processo, que na grande maioria dos casos, não passa apenas de coadjuvante, pois é alvo, em muitos casos, da manipulação de páginas fraudulentas, que as usam como um meio fácil de prejudicar os que à buscam.

O mundo está interligado eletronicamente por meio da internet, as informações estão ao alcance de todos, e não apenas informações, mas a possibilidade de se adquirir qualquer bem ou produto, e em virtude da falsa idéia de anonimato se usa também a internet como um meio de se cometer ilicitudes. Neste ponto é muito importante ter ciência que é possível encontrar limite, para que pelo menos na relação de consumo se possa ter segurança e coibir atos fraudulentos.

Cabe ao consumidor atentar sempre para a procedência das informações que acessa, pois apesar de ser coadjuvante no que diz respeito às informações que lhe são apresentadas, é peça ativa na escolha do que aceita ou adquire, sendo peça fundamental na fiscalização.

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PROPAGANDAS DESTINADAS AO PÚBLICO INFANTIL: A INCAPACIDADE DE DISCERNIMENTO DA CRIANÇA FRENTE

AO APELO DA INDÚSTRIA DE CONSUMO

ADVERTISEMENTS TO CHILDREN: CHILD’S INABILITY TO ASSIMILATE THE CONSUMING INDUSTRY

joSé carloS hornung

Graduando do curso de direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

lucimar DE Paula

Possui mestrado em DIREITO pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2005). É professora do Centro Universitário Curitiba-UNICU-RITIBA, instrutora da Escola de Governo do Estado do Paraná e advo-gada militante nas áreas de Direito Administrativo, Empresarial e Civil

RESUMO

Por ocuparem uma posição de destaque na sociedade contemporânea, principalmente no que tange à grande força da mídia e o valor imposto por uma sociedade de consumo, a publicidade e a propaganda merecem relevante tratamento jurídico. Tal tratamento é confrontado, por vezes, com outros âmbitos de interesse da sociedade, como ocorre com a proteção e os direitos das crianças e dos adolescentes. O entrecruzamento de interesses, em que por um lado regem as regras de mercado e os princípios econômicos, como a livre iniciativa, e por outro lado rege a preocupação para com a formação dos indivíduos e, portanto, a proteção das crianças e adolescentes, tal entrecruzamento produz debate dentro do judiciário. O presente trabalho pretende compreender de que modo o conflito de interesses alcança um nível que gera conflito normativo e, por esse viés, quais são os dispositivos legais existentes pertinentes à limitação da atividade de publicidade e propaganda perante a proteção das crianças e dos adolescentes.

Palavras-chave: ECA, CONAR, Publicidade, Regulamentação publicitária.

ABSTRACT

Due to the current highlighted position in the society, advertising and publicity deserve relevant juridical account, mainly because of the great media empowerment and the imposed value from the consuming mass. Such account

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is opposed, many times, by other areas taken as relevant by the society, like child and teenager legal protection. The interests crisscross, one side ruled by the market and economy principles like free enterprise, otherwise opposed by the ones ruled by the concerns with the individual formations and, therefore, child and teenager protection. Such crisscrossing is a recurring subject in the judiciary. The current paperwork intends on comprehending in which way the conflict of interest leads to a level that tends to norm conflict and, therefore, which is the current law that limits the advertising and publicity act regarding to children and teenager protection.

Keywords: ECA (Brazilian Children and Teenager Statute), CONAR (Brazilian Advertising and Publicity Code), Publicity, Advertising regulations.

1 INTRODUÇÃO

A alteração das determinantes sociais forçam mudanças drásticas em todos os âmbitos da sociedade, de modo que o aumento da complexidade presente nas estruturas sociais se apresenta por uma conjunção de fatores, tal como a alteração da cultura, dos entendimentos e dos valores sobre temas específicos, com suficiente relevo e importância para algumas instituições, como a religião, o Direito e o Estado. A perspectiva própria do Ocidente nos últimos duzentos anos acabou por produzir, com maior ênfase em meados do século XX em diante, uma percepção social de que as instituições presentes na sociedade deveriam servir a uma função que trouxesse uma espécie de benefício para à sociedade. Assim, o Estado Democrático de Direito surge não como uma forma manifesta de um pensamento liberal-parlamentar, mas é antes a expressão da possibilidade de conversão do Estado, uma figura político-jurídica, em um instrumento de realizações de valores e interesses sociais, ou seja, o Estado, como o Direito, a economia, a religião e outras instituições, devem encontrar sua finalidade na própria sociedade. Essa alteração na complexidade social, alteração que advém de uma nova perspectiva na compreensão sobre alguns valores, encontrou reflexo na forma com que o Estado e o Direito eram estruturados. Nesse sentido, alterou as bases de formulação da estrutura normativo-jurídica de uma nação e, por essa razão, alterou, sobretudo, as Constituições.

Os valores defendidos pela sociedade passaram a encontrar acolhimento legislativo com grande participação constitucional, em que valores de real importância são considerados sob a égide da consideração axiomática ou principiológica. No Brasil, essa alteração encontra maior presença e realização com o advento da Constituição da República de 1988, em que valores sociais

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foram afirmados e pontuados como jamais havia ocorrido na história do país. As preocupações sociais deixaram de ser mera intenção da sociedade e alcançaram o posto de projeto de Estado, determinando, portanto, a aplicação governamental, ou seja, de todos os três poderes: legislativo, judiciário e executivo. Valores como a função social da propriedade, a democracia, a liberdade de expressão, dentre outros tantos, foram elencados e apresentados pela Constituição de 1988 não como uma cartilha de Estado, mas como uma determinante que deveria ser almejada, buscada e efetivada tanto pelo Estado quanto pela sociedade. Além desses fatores, parcelas da população que foram negligenciadas por muito tempo conseguiram visibilidade e atingiram o posto de sujeitos de direito, passando a suscitar o interesse da sociedade e o dever do Estado. Um ponto que conseguiu um enfoque nunca antes alcançado foi a preocupação para com as crianças e os adolescentes, que embora possuíssem uma participação legislativa em outros dispositivos legais anteriores, e até mesmo em outras Constituições, sofreram diversos reveses que não apresentavam o avanço alcançado pela Constituição de 1988. Foi com a última Constituição que o Brasil conseguiu efetivar e realizar verdadeiros progressos na área da proteção e no direito às crianças e aos adolescentes.

A preocupação com as crianças e os adolescentes encontrou respaldo em um trabalho longamente desenvolvido por especialistas, estudiosos e juristas, em que a pedagogia foi reforçando pontos de formação, enquanto as pesquisas doutrinárias e teóricas feitas por juristas determinaram o que foi postulado pela Constituição da República de 1988 e, posteriormente, alcançou a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, a proteção à criança e ao adolescente foi apresentada de forma bastante genérica, tanto na Constituição quanto no Estatuto, de modo que restavam pontos específicos para serem determinados e melhor trabalhados, pontos esses que condiziam com a complexidade da sociedade e com as alterações em diversos campos das estruturas sociais. Um campo que cresceu consideravelmente e que, em sua apresentação, tem relação direta com a proteção e os direitos das crianças e dos adolescentes, sobretudo no quesito da formação, é o campo da publicidade e propaganda, principalmente quando considerado o crescimento alarmante dos meios midiáticos e das tecnológicas, com destaque para a televisão e para as mídias desenvolvidas em internet.

Embora a Constituição e o ECA apresentem bases fundamentais para a proteção à criança e ao adolescente, não parece haver suficiente especificidade para o caso da proteção em casos de publicidade e propaganda. Por outro lado, o próprio exercício da publicidade e da propaganda encontra certa restrição e certa regulamentação, seja feita de forma autônoma pela classe dos publicitários, seja feita de forma legislativa, por aplicação de leis específicas. O presente trabalho busca averiguar qual a maneira que vem incidindo à aplicação da proteção das crianças e dos adolescentes frente à publicidade e a propaganda e, com isso,

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identificar se há ocorrência de leis suficientes para o caso ou se, pelo contrário, as leis existentes são incapazes para lidar com a questão.

2 CONCEITO DE INFÂNCIA E CRIANÇA

Antes de alcançar a resolução conceitual que se concebeu juridicamente pela Constituição da República e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, o entendimento que se tinha sobre infância e criança perpassou uma formação histórica que, embora não seja pertinente apresentá-la de forma detalhada, é necessário fazer alguns pequenos apontamentos. Inicialmente deve ser apontado que a criança, enquanto ser humano, é compreendida como “incompleta”, como partícipe de um processo de formação que se alonga por toda a vida e que, no entanto, para as crianças, em função da infância, há uma eminência de formação mais nítida de que para os adultos, ou seja, as crianças estão em um pleno e constante processo de formação, uma vez que grande parte de suas considerações são novas e seus valores e aprendizados não encontram resistência perante outros valores já existentes, como ocorre com os adultos. Esse entendimento é bastante evidente e se manifesta na própria formação etimológica da palavra “infância”, em que se pontua:

Criança é o menino, o infante. Este último vocábulo é expressivo na sua derivação etimológica: do latim, infans, infantis, de in, partícula negativa, mais fon: falar: a que ainda não fala. Por extensão, o dispositivo dá o conceito comum de criança, após cujo período de vida entra para a adolescência37

É necessário ressalvar que, nessa perspectiva de formação a infância passa a ser compreendida como uma fase que necessita ser tutelada, ou seja, a formação das crianças e dos adolescentes depende de uma participação ativa por parte dos adultos, sendo que tal participação se manifesta tanto em âmbitos pedagógicos e educacionais quanto em âmbitos jurídicos. Contudo, o Estado e o Direito não poderiam buscar definir tanto a infância quanto a conceituação de criança e adolescente de forma semelhante à pedagogia, ou seja, em uma permissibilidade por entendimentos abstratos e demasiado amplos. Em sede jurídica, se se pretende garantir direito e resguardar uma verdadeira tutela para as crianças e os adolescentes, é preciso, então, encontrar uma definição suficientemente precisa sobre o que se compreende como sendo tanto a infância quanto a criança e o adolescente, uma vez que o direito precisa de uma precisão conceitual mínima

37 CHAVES, Antonio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: LTr, 1997. p. 53.

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para os casos práticos em que se aplicam as leis de forma pontual.Dessa forma, o Brasil, após uma série de ensaios e tentativas de

regulamentação do conceito e da proteção inicial à criança e ao adolescente, apresentando progressos e retrocessos nas Constituições anteriores à Constituição da República de 1988, encontra, por fim, com a Constituição Cidadão, um ambiente propício à definição desses conceitos. A retomada da democracia em 1988 trouxe consigo a retomada de discussões e debates que antes, em função da ditadura, não se faziam possíveis. O debate sobre a proteção e a formação das crianças e dos adolescentes é um desses conceitos que, após uma longa definição formulada por pedagogos e estudiosos da área, encontra-se, com a constituinte, um movimento em prol da garantia e dos direitos das crianças no seio da Constituição. Assim é que compreende também a doutrina:

Consolidando dispositivos esparsos do anteprojeto em apenas dois artigos, emenda que todos os Constituintes presentes em Brasília acorreram em assinar, proposta, assim, da Nação inteira, para resgatar a “infância à beira do abismo, sem voz, sem grito, ou com o choro sufocado de quem caminha inexoravelmente para as sepulturas sem cruzes ou para os braços da violência e da brutalização”, foi ela integralmente aproveitada, com emendas de redação, constando dos arts. 227-229 do texto em vigor38

Contudo, há que se pontuar que a Constituição fornece um parâmetro bastante amplo para a proteção da infância e da adolescência, uma vez que os artigos 227, 228 e 229, embora possuam uma carga axiomática e principiológica de grande valor, não especificam casos e não determinam entendimentos práticos para a efetiva e concreta aplicação da proteção e dos direitos das crianças. Em outras palavras, a Constituição enumera as diretrizes, mas lega a necessidade de especificação à legislação posterior39.

Muito acertadamente a legislação posterior estabeleceu pontos complementares e mais específicos à Constituição, buscando ampliar não só

38 CHAVES, Antonio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: LTr, 1997. p. 44.39 Essa posição sobre a Constituição não é de todo problemática, em que se entende, com a doutrina, que a Carta Magna busca antes definir um rumo do que alongar-se com detalhes: “A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a Constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado” SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 37-38.

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o entendimento sobre os princípios, axiomas e conceitos apresentados pela Constituição, mas ampliando também a possibilidade de aplicação prática dos casos em que fosse necessária a proteção das crianças e dos adolescentes e em que fosse encargo do Estado consolidar os direitos dessa parcela da população. Criou-se, então, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que seguindo os preceitos constitucionais buscou definir com mais precisão e clareza aquilo que possibilitaria a concretização de uma preocupação para com a formação das crianças e dos adolescentes:

Com o advento da Lei Federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente – estabeleceu-se, no Brasil, uma nova deontologia jurídica de matiz eminentemente protetivo, isto é, a partir de então, todas as pessoas que se encontrem na peculiar condição de desenvolvimento de suas personalidades – ou seja, com idade inferior a 18 (dezoito) anos de idade – são detentoras de direitos individuais e garantias fundamentais constitucionalmente assegurados e instrumentalmente operacionalizados através da mencionada codificação especial que deve ser implementada a partir da interpretação orientada pela doutrina da proteção integral, enquanto opção política adotada e (re)alinhamento com a diretriz internacional dos direitos humanos da criança e do adolescente40.

A perspectiva tomada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente não só estendeu o que já estava positivado pela Constituição da República como também determinou uma nova conceituação sobre o que se entendia por proteção às crianças e aos adolescentes, uma vez que, no artigo 1º do ECA, se encontra prescrito que “esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. O ECA, então, inova sobre a noção de “proteção integral”, determinando um ponto fundamental na nova compreensão sobre os direitos das crianças e dos adolescentes:

O que significa “proteção integral”? Quer dizer amparo completo, não só da criança e do adolescente, sob o ponto de vista material e espiritual, como também a sua salvaguarda desde o momento da concepção, zelando pela assistência à saúde e bem-estar da gestante e da família, natural ou substituta da qual irá fazer parte. Mas tem também outro sentido do ponto de vista estritamente legal: é que toda a matéria passará a fica subordinada aos dispositivos do Estatuto, como de resto se deduz do último dos seus artigos, o de n. 26741.

40 RAMIDOFF, Mário Luiz. Direito da Criança e do Adolescente. Curitiba: Vicentina, 2008. p. 41.41 CHAVES, Antonio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo:

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A preocupação para com a formação das crianças e dos adolescentes é a tônica principal destacada tanto pela Constituição da República quanto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. A formação, enquanto uma perspectiva ampla e suficientemente abrangente, deve compreender não apenas os fatores educacionais mais eminentes, como a alfabetização ou a matrícula em escolas, mas a formação se dá em todos os âmbitos da vida das crianças e dos adolescentes. Por essa razão, toda a sociedade que cerca às crianças as forma e, por conseguinte, tal formação é de responsabilidade social e não foge a nenhuma perspectiva que, de alguma forma, chegue a tangenciar as crianças. O caso da publicidade e da propaganda parece ser, evidentemente, um caso em que há contato eminente das mídias e da sociedade na formação das crianças, ponto em que, justificadamente, cabe o questionamento sobre a “proteção integral”.

3 FORMAS DE REGULAMENTAÇÃO PUBLICITÁRIA

Os tempos modernos exigem uma participação perante o mercado de forma mais incisiva e presente por parte do comércio e da indústria, de tal forma que a abstenção de tal participação tem por consequência o desaparecimento ou, em termos jurídico-econômicos, a falência. O caso é que, em um mundo acelerado que determina uma constante regra de consumo e de produção de mercadorias para o consumo imediato, a participação, ou seja, o aparecimento não apenas das empresas, mas sobretudo de seus produtos, é um fator de suma importância para a sobrevivência dentro do mercado. Assim sendo, é suficientemente relevante o fato de que a publicidade e a propagando não apenas correspondem perfeitamente bem às mudanças da sociedade capitalista contemporânea, como também são parte essencial no desenvolvimento dessa lógica de mercado, em que os produtos existem com presença perante o mercado quando são evidenciados pela publicidade e pela propaganda. Contudo, há que se ponderar que o exercício da publicidade e da propaganda deve ser regulamentado, ou seja, que a publicidade e propaganda, embora importantes para o funcionamento do mercado financeiro, não devem sobrepujar outras partes sensíveis à sociedade e não devem, principalmente, prejudicar e confrontar outros valores que são tão ou mais caros do que a própria manutenção da lógica do mercado. Portanto, é necessário analisar, mesmo que brevemente, a questão da regulamentação feita à publicidade e à propaganda para, então, conferir de que maneira ocorre o confronto com a ideia de direito das crianças e dos adolescentes.

Em uma primeira observação o que se apreende é que a publicidade e a propaganda não encontram propriamente uma regulamentação hermética e prontamente determinada, mas que são exercícios que transitam entre uma

LTr, 1997. p. 51.

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intenção de auto-regulamentação e a imperatividade da regulação estatal. Assim, de início surgem como documentos de regulação desse exercício a Constituição da República e o Código de Defesa do Consumidor, em sede de regulamentação estatal, e o CONAR, em sede de auto-regulamentação. É pertinente, para seguir com a ordem jurídica estabelecida no Brasil, averiguar, antes de tudo, a constitucionalidade do exercício da publicidade e da propaganda.

É suficientemente conhecido o fato de que a Constituição da República é disposta de tal maneira que os princípios e os axiomas determinam a normatividade que se segue tanto no próprio âmbito constitucional quanto em âmbito infraconstitucional. Nesse sentido, a publicidade e a propaganda, ainda que pertencentes aos ditames do interesse de mercado e da lógica financeira, estão subordinadas a princípios que regem o mercado e as disposições econômicas. Dessa maneira, a publicidade e a propaganda apreendem sua constitucionalidade de uma compreensão conjunta de princípios, em que por um lado se aplica a questão da liberdade de expressão e, portanto, o direito de comunicação, presente nos incisos XI, XIV, XXXIII e XXXIV do artigo 5º, e o direito à livre iniciativa, presente no inciso IV do artigo 1º. Enquanto, por um lado, o artigo 5º, inciso XI faz permite uma abordagem sociocultural da publicidade e da propaganda, afirmando que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, por outro lado o artigo 1º, inciso IV, permite a abordagem no âmbito econômico, fornecendo constitucionalidade ao exercício da publicidade e propaganda enquanto parte da lógica de mercado e, portanto, enquanto concretização do direito à livre iniciativa e participação no mercado. Vale mencionar ainda, em sede de constitucionalidade, os artigos 220 e 221, que embora tenham uma abrangência maior, versando sobre a regulamentação da liberdade de expressão, acabam impondo limites e regulando o exercício da publicidade e da propaganda, como é possível notar com o § 4º do artigo 220, em que se limita à publicidade e a propaganda nos casos de “comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias”, ou ainda o inciso IV do artigo 221, em que se pontua que a programação de rádio e televisão deve ser pautada por princípios éticos, com respeito aos valores sociais da pessoa e da família e, portanto abrangendo a publicidade e a propaganda.

Faz-se notar, então, que a constitucionalidade do exercício da publicidade e da propaganda não depende da própria função, ou seja, da matéria em sua essência, mas é antes uma constitucionalidade derivada de âmbitos maiores, como a participação na economia e o direito de expressão e comunicação. A publicidade e a propaganda são atividades inseridas em uma noção marcadamente firmada pelo capital, ou seja, pelo comércio e pela indústria. A expressão e a comunicação são direcionadas para a instigação à venda, razão pela qual se pode definir a publicidade e a propaganda tal como se compreende o “marketing”:

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A tarefa do marketing é criar, promover e fornecer bens e serviços de qualidade a clientes, sejam eles pessoas físicas, sejam pessoas jurídicas. Os profissionais de marketing possuem técnicas que visam estimular a demanda por aquilo que é produzido ou oferecido pelas organizações. Sua função social é definida como um processo que possibilita a pessoas e grupos obterem o que necessitam e o que desejam por meio da criação, oferta e livre negociação de produtos e serviços de valor com outros. Então, a administração de marketing visa planejar e executar a concepção e a determinação de preço, a promoção e a distribuição de idéias, bens e serviços para satisfazer metas individuais e organizacionais42.

Contudo, a interconexão entre comunicação, ou expressão, e o exercício da publicidade e da propaganda, tem íntima relação com dois pontos próprios dos tempos modernos, ou seja, os meios midiáticos e a noção de consumo. Alguns autores podem afirmar, sobre a questão dos meio midiáticos, que “na verdade, somente se pode falar de publicidade comercial propriamente dita após o surgimento da imprensa”43. O outro lado de destaque por parte da publicidade e da propaganda é, sem dúvida, a questão do consumo, uma vez que o mote, ou seja, o interesse fundante e o principal destaque por parte da publicidade e da propaganda é, sem sombra de dúvidas, o incentivo ao consumo, a instigação à compra e à procura de determinados produtos. É certo que a publicidade e a propaganda se encontram em uma seara que não se limita à apresentação de produtos, mas opera em um âmbito mais sutil e com mais meandros do que normalmente se pode notar44. De forma muito evidente, a publicidade e a

42 GOVATTO, Ana Claudia Marques. Propaganda responsável. São Paulo: Editora SENAC, 2007. p. 70.43 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 21. Sobre o papel do jornal ainda afirma o autor: “O certo, porém, é que a publicidade comercial é uma conseqüência da Revolução Industrial e da formação dos chamados mercados de massa. Se o jornal foi o primeiro meio de comunicação de massa, não poderia deixar de ser, também, a primeira mídia utilizada em larga escala pelos comerciantes, prestadores de serviços, produtores, enfim, todos os que precisavam colocar no mercado seus produtos, manufaturados de forma cada vez mais acelerada pelas técnicas de produção em escala”. Ibid., 1996. p. 22.44 Afirma a doutrina: “Obviamente reduzir o objetivo da propaganda ao simples papel de motivar consumidores a adquirir produtos e serviços seria, no mínimo, negar que sua função também é criar preferências e agregar valores às marcas disponíveis no mercado. Mais do que isso, valer-se do aspecto reducionista de venda daria à menor importância do que ela realmente tem nos dias atuais. Há evidências de que a propaganda vai muito além dos impactos físicos que provoca – portanto tangíveis –, como proporcionar o giro rápido dos estoques de revendedores, criar modismos ou referências e hábitos de vida. Seus aspectos mais intensos – e por isso mesmo tão estudados e contestados – estão no campo do intangível, no nível da psique humana, e muitas vezes só são comprovados quando ganham forma nas atitudes das pessoas. Alguns críticos

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propaganda estão hoje interligadas com a questão de consumo da mesma forma com que o consumo pressupõe, quase em sua totalidade, a lógica de mercado em que se confirma e se postula a apresentação dos produtos. Consumo, publicidade e propaganda parecem ser termos de uma mesma expressão.

Por essa razão é que se pode pontuar que a regulamentação da publicidade e da propaganda, em conformidade com a Constituição de República, acontece tendo em vista o Código de Defesa do Consumidor, uma vez que é essa a legislação infraconstitucional pertinente para abordar o assunto naquilo que lhe é peculiar. Reconhece-se o fato de que o CDC absorve a temática da publicidade e da propaganda pela pertinência do assunto e pela extrema proximidade entre publicidade e propaganda e a proteção aos consumidores, mas também é preciso reconhecer que o exercício da publicidade e da propaganda não obtém grande repercussão legislativa45. Por essa razão, o CDC cumpre uma função de preenchimento de lacuna, tal como posteriormente poderá ser notado com a regulamentação da publicidade e da propaganda para o público infantil, que embora abarque a questão do consumo, transcende o CDC e não extingue a necessidade de regulamentação da publicidade e da propaganda.

O CDC fez a regulamentação da publicidade e da propaganda tendo em vista a pertinência de seu tema, ou seja, a proteção ao consumidor e, nesse sentido, a regulamentação ocorre de forma esparsa dentro do próprio Código. O que ocorre é uma tentativa de, por meio da determinação de princípios para a proteção dos consumidores, faça-se a extensão na aplicação dos casos de regulamentação da publicidade e da propaganda. O artigo 4º do CDC apresenta princípios que servem como molde de aplicação e interpretação ao longo de todo o CDC. Dentre tais princípios consta, de relevante importância para a publicidade e propaganda, o inciso III do artigo 4º, em que a boa-fé é interpretada de modo específico para o direito do consumidor e, nesse sentido, atinge também a publicidade e a propaganda46. Contudo, é nos artigos 36 e 37 em

sociais apontam a propaganda como um incentivo exacerbado ao consumismo.” GOVATTO, Ana Claudia Marques. Propaganda responsável. São Paulo: Editora SENAC, 2007. p. 73-74.45 Pontua a doutrina: “Não obstante ser evidente o fato de que a propaganda, dentre os fenômenos sociais do mundo moderno, detém uma posição de escol, o interesse jurídico pela matéria, não só no Brasil como nos outros sistemas jurídicos ocidentais, é recente e incipiente. Em especial no sistema brasileiro, a regulamentação é fragmentária, incompleta e confusa, e não vinha despertando convenientemente a atenção dos doutrinadores. De forma geral, os cientistas do Direito, no Brasil, ainda estão debruçados sobre os grandes temas oitocentistas, pandectistas, tradicionais, refletindo, no seu pensar, um conservadorismo que tem sido a nota distintiva desse ramo do conhecimento.” JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 4.46 Conforme a doutrina: “O conteúdo desse princípio é duplo. Por um lado, visa a repelir o exagerado formalismo romanístico dos contratos, determinando que a literalidade da linguagem não deva se sobrepor à intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela inferível. (...) O

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que aparece com mais evidência a proteção que o CDC destina ao consumidor ao buscar regulamentar os limites da publicidade e da propaganda:

O princípio da veracidade, positivado no artigo 37, § 1º, do CDC, diz respeito à adequação entre aquilo que se afirma sobre o produto ou serviço e aquilo que ele realmente é. Os dados veiculados pela publicidade não devem ser capazes de induzir o consumidor a erro sobre as verdadeiras características do produto ou serviço47.

A veracidade cumpre com uma aplicação específica do princípio da boa-fé, contudo encontra maior aplicabilidade e especificidade para o caso do consumo e, sobretudo, para o caso da publicidade e da propaganda. O complemento da veracidade é, indubitavelmente, a clareza, ponderada pela doutrina:

O princípio da clareza, também denominado princípio da ostentação por Fábio Ulhoa Coelho, ou princípio da autenticidade por Bando-Casado, ou ainda princípio da identificação por Carlos Ferreira de Almeida e por Antônio Herman de Vasconcelos e Benjamin, está positivado nos arts. 36 e art. 4, VI; esse princípio possui duas facetas – quanto à primeira, diz respeito à publicidade dissimulada em forma de merchandising em filmes ou novelas, ou mesmo travestida de reportagens ou afins. (...) A segunda faceta é aquela que diz respeito à identificação do produto ou serviço com relação a seus similares. Veda o art. 4º, VI, que a publicidade contenha uma carga de concorrência desleal, ou de uso indevido de sinais ou marcas de propaganda, de tal forma que prejudique o consumidor48.

A junção entre veracidade e clareza determina, ainda que de forma abstrata, a aplicação, a limitação e o próprio exercício da publicidade e da propaganda. Contudo, há que se ponderar, com pertinência ao tema abordado pelo presente trabalho, que a clareza exige uma publicidade e uma

devedor deve cumprir a prestação em conformidade aos usos do tráfico jurídico, com exatidão e boa-fé. O segundo sentido é o chamado princípio da boa-fé: colaboração. (...) O certo é que as partes devem, mutuamente, manter o mínimo de confiança e lealdade, durante todo o processo obrigacional; o seu comportamento deve ser coerente com a intenção manifestada. (...) Essa boa-fé, revelada pelo comportamento de lealdade e confiança, exterioriza-se pela atenção aos deveres de veracidade, correção, informação e clareza, que constituem os princípios diretores da publicidade comercial” JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 65-66.47 Ibid., 1996. p. 67.48 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 67-68.

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propaganda que não gere surpresas para o consumidor, ou seja, que determine com suficiente evidência aquilo que se anuncia, e, no caso da publicidade e da propaganda destinada ao público infantil, que não induza à erro ou afete na formação. Quanto à questão da proteção às crianças e adolescentes, um último princípio de aplicação é bastante esclarecedor em sede de defesa do consumidor, princípio esse que se soma à veracidade e à clareza:

Além de clara e veraz, deve a publicidade ser correta, isto é, não deve conter mensagens que venham a agredir os valores sociais, sejam aqueles elencados expressamente pela lei como relevantes, sejam aqueloutros que, num dado momento histórico, mostrem-se importante passíveis de preservação. Assim, não basta vincular os dados verdadeiros sobre o produto ou serviço; necessário fazê-lo através de mensagens corretas, ou seja, compatíveis com os valores sociais. Esse princípio é ainda designado como princípio da legalidade, princípio da não-abusividade, ou da ordem pública49.

Com esses preceitos o CDC fornece uma regulamentação ao exercício da publicidade e da propaganda impondo limites e determinando exigências principiológicas a serem cumpridas. Algumas dessas exigências e desses limites podem ser pertinentes aos casos de proteção às crianças e aos adolescentes, contudo, de forma bastante notória, o CDC está interessado em desenvolver uma proteção ao consumidor e não às crianças e adolescentes e, nesse sentido, a publicidade e a propaganda regulamentada pelo CDC, mesmo quando em sede de proteção às crianças e adolescentes só é assim regulamentada tendo em vista que tais crianças e adolescentes se enquadrem no conceito de consumidores, caso contrário, não há previsão de limites ou regulamentação.

Resta, então, fazer uma breve apresentação e análise sobre a auto-regulamentação, uma vez que a regulamentação estatal é marcada pela Constituição da República e pelo CDC, sendo que o ECA, quando busca tal regulamentação, faz de forma específica que será abordada mais adiante. Assim, há que se mencionar o CONAR, sigla que significa Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, e que foi um esforço de regulamentação que ocorria antes da Constituição da República de 1988 e permaneceu existindo após o advento da Constituição:

O Conar é uma entidade civil sem fins lucrativos, com sede em São Paulo e autorização estatutária para manter representações em todas as unidades da Federação. Os seus objetivos sociais estão delineados no art.

49 Ibid., 1996. p. 68.

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5º dos Estatutos Sociais, e não se limitam às atividades de arbitragem e julgamento ético – sendo esta, no entanto, a atividade principal. O Conar possui em sua estrutura interna cinco órgãos: a Assembléia Geral, que tem funções deliberativas, a Diretoria Executiva, com funções administrativas, Conselho Fiscal, órgão de controle interno, o Conselho Superior, consultivo e com funções executivas das decisões do órgão, e o Conselho de Ética, sobre o qual cabe uma palavra mais demorada. O Conselho de Ética é o órgão central, onde estão concentradas as atividades-fins da entidade. Ele é o responsável pela efetiva aplicação do CBAR50.

A entidade do CONAR representa um esforço da classe dos publicitários em regulamentar sua própria profissão e, portanto, é tomada como auto-regulamentação. Nesse sentido, o que se pretendia desenvolver não era uma necessariamente uma jurisdição da forma com que o Estado desenvolve, mas antes apresentar parâmetros e permissibilidades que deveriam ser respeitadas pelos publicitários e, caso não fossem, pudessem incorrer em certas sanções. A aplicação do CONAR se deu sobre o CBAR, Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária:

Não é descabido fazer algumas considerações sobre o Código Brasileiro de Auto-Regulamentação Publicitária. Trata-se, senão de norma jurídica, ao menos de importante fonte subsidiária de interpretação para o direito estatal – ou seja, é o que os próprios destinatários da norma reconhecem e admitem, espontaneamente, como mínimo ético necessário para reger a atividade. Aliás, o próprio Código de Auto-Regulamentação esclarece que, embora seja essencialmente um diploma de disciplina ética da conduta, é também destinado ao uso das autoridades e tribunais como documento de referência e fonte subsidiária no contexto da legislação da propaganda e de outras leis, decretos, portarias, normas ou instruções que direta ou indiretamente afetem ou sejam afetados pelo anúncio51.A iniciativa privada, deve ser pontuado, teve grande importância na

regulamentação e na limitação do exercício da publicidade e da propaganda, sobretudo porque ocorreu antes da Constituição da República de 1988 e condicionou uma discussão e considerações sobre um tema que era iminentemente recente e de difícil abordagem. A ideia do CONAR era regulamentar o exercício da publicidade e da propaganda não por normas fechadas, mas por preceitos éticos, ainda que esses não tivessem força jurídica, modelando, pelos costumes e pelos usos, os limites que deveriam ser impostos:

50 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 35-36.51 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 31.

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Os precedentes negativos da propaganda funcionam como limitadores e direcionadores de novas condutas das empresas, das agências e dos profissionais de propaganda. O grau de credibilidade que a propaganda poderá agregar à imagem empresarial é fator relevante e de sustentação da própria atividade na sociedade. E isso parece de importância ainda reduzida para o código de ética da propaganda, que não define com exatidão conceitos como abusividade, desrespeito, desonestidade e veracidade52.

O que, no entanto, foi um ponto de enfraquecimento para o CONAR e para toda a prática da auto-regulamentação foi a ausência de força jurídica capaz de impor, sob sanção, a determinação de práticas e limites. O CONAR buscava a regulamentação por sanções que, de certa forma, deveriam ser aderidas pelos sancionados e que, portanto, dependiam de um grande acordo tácito de aplicação e enquadramento ético. A imperatividade jurídica era a grande crítica à auto-regulamentação que, afirmava-se, em casos de extrema relevância, o CONAR não teria poder suficiente para impor os limites:

De nossa parte, entendemos que a auto-regulamentação é importantíssima, e uma iniciativa louvável, bem como, reconhecidamente, uma tendência internacional. Não se pode esquecer, porém, de que é uma instância ética, subsidiária e interpretativa, e não substitui a regulamentação legal – aliás, também uma tendência mundial53.

Deve ser frisado que o CONAR ainda existe e atua de forma bastante participativa na formação de limites e na regulamentação do exercício da publicidade e da propaganda, contudo, o CONAR atualmente conta auxílio de instâncias jurídicas que podem corroborar ou até mesmo complementar a auto-regulamentação, por vezes sanando o problema de ausência de poder impositivo, como também considerando as formulações éticas apontadas pelo desempenho do CONAR.

4 A RELAÇÃO ENTRE PUBLICIDADE E PROPAGANDA E A PROTEÇÃO ÀS CRIAN-ÇAS E ADOLESCENTES

Inegável o fato de que uma Constituição, ou melhor dizendo, um ordenamento jurídico, deva buscar a consonância entre diversos pontos que, originalmente, são

52 GOVATTO, Ana Claudia Marques. Propaganda responsável. São Paulo: Editora SENAC, 2007. p. 92-93.53 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 30.

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divergentes. Os interesses presentes na sociedade sob forma de tradição, cultura, costumes, políticas, entre tantos outros vieses, alcançam a estruturação de um ordenamento jurídico de modo que, caso se pretenda estabelecer um Estado Democrático de Direito, o que deve haver é um convívio entre divergências e não a supressão de certos aspectos em detrimento de outros. Nesse sentido, como o presente trabalho busca apresentar, a necessidade surge não pelo fator de sempiterna prioridade do princípio de proteção às crianças e adolescentes, mas se dá, pelo contrário, pelo imperativo que requisita uma aplicação conjunta da liberdade de iniciativa privada e de inserção no mercado e, conjuntamente, a necessidade de proteção das crianças e dos adolescentes. Tendo isso em vista, é preciso ponderar o âmbito em que tal aplicação conjunta deve acontecer e, sem dúvida, a contemporaneidade lega marcas extremamente profundas à sociedade, tais como a celeridade, a globalidade e, sobretudo, o consumo. O primeiro tópico, e também o mais evidente, entre publicidade e propaganda e proteção às crianças e adolescentes se dá pela questão do consumo, em que se pretende proteger as crianças e adolescentes de uma inserção muito precoce à lógica de consumo. Publicidade e propaganda não são meros instrumentos de apresentação de produtos, são em verdade técnicas de sedução, sendo que tais técnicas parecem afetar mais fortemente as crianças e adolescentes, que ainda não possuem uma formação sólida para fazer juízos e proteger-se dessa “sedução”54. Esse fator é facilmente identificado por diversos autores:

Obviamente reduzir o objetivo da propaganda ao simples papel de motivar consumidores a adquirir produtos e serviços seria, no mínimo, negar que sua função também é criar preferências e agregar valores às marcas disponíveis no mercado. Mais do que isso, valer-se do aspecto reducionista de venda daria à propaganda menor importância do que ela realmente tem nos dias atuais. Há evidências que a propaganda vai muito além dos impactos físicos que provoca – portanto tangíveis –, como proporcionar o giro rápido dos estoques de revendedores, criar modismos ou referências e hábitos de vida. Seus aspectos mais intensos – e por isso mesmo tão estudados e contestados – estão no campo do intangível, no nível da psique humana, e muitas vezes só são comprovados quando

54 Pontua a doutrina “A sedução é bastante utilizada na publicidade, a qual busca seduzir o consumidor em prol do objetivo aquisição. (...) Ora, é muito mais fácil seduzir por meio da publicidade do que prestar informação. A sedução busca a mente sob uma recepção irracional e coração. Não se tem um mínimo de resistência quando se trabalha com a sedução, já com a informação não se pode afirmar. Há certeza em se afirmar mesmo que a informação é tudo nas relações de consumo, não uma simples informação, mas uma informação como o Código de Proteção e Defesa do Consumidor exige.” SILVA, Marcus Vinicius Fernandes Andrade da. O direito do consumidor e a publicidade. São Paulo: MP Ed., 2008. p. 101-102.

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ganham forma nas atitudes das pessoas. Alguns críticos sociais apontam a propaganda como um incentivo exacerbado ao consumismo55.

Se a preocupação é, nesse sentido, para com as influências que a sociedade de consumo pode exercer sobre as crianças, então é esperado que se encontre uma legislação protetiva nesse sentido. O que se preceitua, nesse caso, é, principalmente, que se desenvolva uma estrutura de proteção à formação das crianças e adolescentes contra um ponto específico, ou seja, contra a influência do consumo exercida pela publicidade e propaganda que, como se sabe, funcionam em prol do incentivo ao consumo. Para tanto, pode ser arguido que a Constituição da República lança luzes que são mantidas pelo Código de Defesa do Consumidor e que, de certa forma, o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente defende. Trata-se, de qualquer maneira, de uma proteção específica, em que se faz uma extensão de princípios que inclusive já existem no direito do consumidor, onde se busca expressar que a publicidade e a propaganda desenvolvida não pode ser feita de forma agressiva, sempre respeitando o público que busca atingir. Sendo esse público as crianças e adolescentes, a consequência é bastante simples: apenas aplicar o princípio de forma mais restrita e específica:

Os princípios que regem o direito do consumidor estão positivados no art. 4º do CDC, em suas diversas alíneas: I – O reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo – É a razão de ser do próprio microssistema de direito do consumidor. De fato, numa economia de postulados liberalistas, onde se pregasse a igualdade formal dos contratantes, tal reconhecimento seria uma excrescência. Importante corolário desse princípio é a inversão do ônus da prova em favor do consumidor, elencado como direito básico seu na alínea VIII do art. 6º do CDC, e como princípio específico, em matéria publicitária, no art. 38. É de anotar, porém, que, enquanto princípio genérico, a inversão do ônus da prova subordina-se aos requisitos da verossimilhança das alegações ou da hipossuficiência do consumidor; mas enquanto princípio específico em matéria publicitária ele é absoluto, ao menos nos processos não-criminais.56

A aplicação do CDC é bastante evidente, uma vez que, se tratando de consumo e, nesse caso, estando a publicidade e a propaganda vinculadas

55 GOVATTO, Ana Claudia Marques. Propaganda responsável. São Paulo: Editora SENAC, 2007. p. 73-74.56 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996. p. 62-63.

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exclusivamente com questões de consumo57, o aporte legislativo mais pertinente para abordar o assunto é, sem dúvidas, o CDC. Por certo que tal aplicação não poderá ser feita de forma isolada, uma vez que o próprio CDC não possui princípios pertinentes à proteção exclusiva da infância e da juventude e, quando for necessário fazer essa aplicação específica, não raras vezes o CDC terá que buscar respaldo no ECA e na Constituição da República.

A questão de aplicação conjunta, no entanto, se intensifica em casos em que a publicidade e propaganda não ofendem somente uma questão de “sedução para o consumo”, mas afetam na formação das crianças e adolescentes de forma mais sensível e profunda. Pela relação com a cotidianidade, ou seja, por estarem inseridas na vida das crianças e adolescentes através da intensa presença midiática, a publicidade e propaganda transcendem a mera apresentação de produtos, mas trazem, em suas extensões, valores e conteúdos que são lançados para as crianças e adolescentes. A preocupação tanto da Constituição da República quanto do ECA para com as crianças se dá em diversos âmbitos, mas, como já foi pontuado, o principal tópico é a formação e, nesse sentido, qualquer conteúdo que seja apresentado às crianças pode ser compreendido como passível de influenciar na formação. É com base nessa perspectiva que o ECA buscou desenvolver sua preocupação, porém, a proteção feita às crianças e adolescentes feita pelo ECA não parece vislumbrar a necessidade de atenção para com a publicidade e a propaganda. O artigo 76 do ECA, por exemplo, prevê que “as emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto-juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”. Nota-se, então, que não há atenção para com a publicidade e propaganda que, muito possivelmente, ocorrerá nos intervalos desses programas. O que se faria, no entanto, para que a se aplicasse o mesmo preceito para a publicidade e para a propaganda, seria uma interpretação extensiva, como já vendo sendo feito:

57 A presença das crianças e adolescentes no consumo é objeto de estudo em diversos países: “Dados revelam que as crianças possuem dentro de seu núcleo familiar 70% das decisões de compra, e representam para as empresas fidelização de consumo para o futuro, tornando-as dependentes do produto. Houve a constatação de grande influência das crianças na compra de diversos produtos, especialmente alimentos 92%, brinquedos 86% e roupas 57%. No ano de 2000, 71% dos pais afirmavam sofrer a influência dos filhos na hora das compras. No ano de 2003, o índice subiu para 80% nesta pesquisa, com 38% influenciando fortemente na decisão. Na escolha da marca, 63% deles influenciam nas compras, sendo que metade das crianças com idade entre 07 e 13 anos influencia de maneira exagerada.” CAZZAROLI, Aline Raquel. Publicidade infantil: o estímulo ao consumo excessivo de alimentos. Disponível em <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link= revista_artigos_leitura&artigo_id=10235> Acesso em 19 de agosto de 2012.

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O artigo 76 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) preceitua que “As emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas.” Seu parágrafo único impõe, ainda, a necessidade de classificação desses programas. Se as emissoras de televisão devem por lei apenas exibir programas educativos, culturais e artísticos naqueles horários, sendo que todos têm de, previamente, passar pelo crivo do Ministério da Justiça para sua classificação, deve também a publicidade televisiva, veiculada nos intervalos desses programas, respeitar a mesma imposição legal. Ou seja, veda-se a propaganda de produtos infantis, uma vez que a função informativa da publicidade, que existe com relação ao público adulto, não se verifica com o público infante em razão de sua limitada capacidade de compreender o que é informação e o que é sugestão. Logo, a publicidade voltada à criança, visando a sugestão de consumo, é imprópria para tais horários, não ocorrendo o mesmo com aquela voltada para o público adulto, que pode diferenciar a parte sugestiva da informativa.58

O que aparentemente está em jogo é uma disputa de competência para a aplicação tanto da proteção das crianças e dos adolescentes quanto na regulamentação do exercício da publicidade e da propaganda. Por um lado o Estatuto da Criança e do Adolescente, seguido por seus defensores e mais árduos aplicadores, acredita que o parágrafo primeiro do artigo 76 deve ser aplicado de forma bastante extremista, proibindo totalmente qualquer publicidade e propaganda em horário destinado às crianças e adolescentes, por outro lado o CONAR, representando o interesse dos publicitários, afirma que deve haver o direito de propaganda e publicidade e que o próprio CONAR, enquanto órgão de auto-regulamentação, controlaria os excessos. Uma corrente mais amena busca conciliar a aplicação de forma que o ECA esteja ao lado do CDC e da Constituição da República, permitindo a existência de publicidade e propaganda destinada ao público infantil, mas sob uma ótica de limites e restrições bastante delimitados, sendo que tal delimitação ocorreria pelo advento da aplicação desses três dispositivos legais, legando o CONAR para uma instância inferior. Esse debate é bastante conhecido pelos estudiosos do assunto:

Há no país atualmente ao menos três correntes envolvidas nesse debate. A mais radical defende a proibição de qualquer propaganda infantil.

58 VALENTE, Sergio Ruy David Polimeno. O lobo perde o pêlo?. Disponível em: <http:// www.valente.adv.br/index.php?option=com_content&task=view&id=64&Itemid=30>. Acesso em 13 de agosto de 2012.

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Outra apóia uma legislação que determine regras para evitar abusos. Por fim, há o grupo formado pelas principais TVs, anunciantes e agências de publicidade, contrário a uma imposição por lei e a favor da auto-regulamentação. Não caberia ao governo, mas sim ao Conar (Conselho Nacional de Auto-Regulamentação Publicitária), ligado aos publicitários, decidir que propaganda é inadequada.59

Em suma, a relação entre publicidade e propaganda e a proteção às crianças e adolescentes se dá uma intersecção entre diversos campos normativos e campos de interesses divergentes. A chamada de responsabilidade do CONAR, em representação aos interesses dos publicitários, serve ao interesse dessa classe em permanecer exercendo sua profissão sem restrições estatais fortes. Por outro lado, pedagogos, psicólogos e alguns juristas de cunho mais extremista pendem a balança para o lado da proibição e da limitação total. O meio-termo surge não apenas como uma solução, mas como o caminho onde a plausibilidade é mais recorrente, sobretudo porque o que ocorre é uma lacuna legislativa em função da demasiada especificação do assunto, que transita em mais de uma área e, nesse sentido, requisita de todas as áreas pelas quais transita que essas forneçam um mínimo de princípios, axiomas e normas para uma aplicação que sirva ao interesse da maioria de forma democrática e igualitária.

5 CONCLUSÃO

Ao deparar-se com a questão da regulamentação da publicidade e da propaganda em face da proteção às crianças e adolescentes os juristas, magistrados e estudiosos encontram não apenas um assunto de difícil apreensão, mas encontram uma urgência por parte da sociedade. É evidente o fato de que o avanço de tecnologias acarretou no avanço da mídia, ou ao menos da força midiática, de modo que, conjuntamente com esses avanços, adveio o crescimento do potencial presente no mercado, que foi tomando corpo e condensando partes da sociedade que antes não se subjugavam ao capital e, mais recentemente, passaram a estar sob o mesmo ditame das regras de mercado.

A totalização do mundo por parte do capitalismo é um movimento próprio da era moderna e que acarreta em uma modificação na forma de vida e na formação dos seres humanos, uma vez que isso se trata de um fenômeno cultural e não natural. Assim, a formação das crianças e dos adolescentes se dá em uma via dupla: por um lado existe a forte pressão de uma sociedade de

59 MATTOS, Laura. MP e Congresso discutem restrições a comerciais para crianças. Disponível em < http://www.eticanatv.org.br/pagina_new.php?id_new=189&first=0&idioma=0>. Acesso em 19 de agosto de 2012.

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consumo, onde se pretende, desde muito cedo, inserir as crianças e adolescentes em uma lógica de mercado, ou seja, em uma lógica de consumo; por outro lado existe a preocupação genuína para com as crianças e adolescentes, em que se acredita que a formação deva ocorrer de maneira a permitir que as crianças protejam-se de engodos, enganos e “seduções” e que possam discernir com suficiente clareza sobre aquilo que desejam e aquilo que lhes é imposto. Essa, infelizmente, não é uma questão exclusiva do Brasil, uma vez que o movimento de avanço do consumo é uma constante globalizada60.

O que é próprio do Brasil, entretanto, é a existência de diversas legislações e interesses que, no entanto, não se entrecruzam nesse tema em particular, ou seja, existe legislações pertinentes à proteção dos consumidores frente à publicidade e propaganda e há legislação pertinente à proteção das crianças e adolescentes frente à formação, porém não há legislação que aborde a questão da proteção da criança e do adolescente da publicidade e da propaganda. Nesse caso em específico, a aplicação legislativa parece ser bastante conturbada e surge como um problema espinhoso para o judiciário, que se vê confrontado com a necessidade de efetivar tanto a proteção das crianças e dos adolescentes quanto o direito de livre iniciativa e participação no mercado por parte dos publicitários. Há um evidente conflito de interesses, princípios e valores que poderia ser facilmente sanado fosse o caso de haver uma legislação pertinente ao tema. A ausência de dispositivos legais incita, pelo contrário, a mobilização de diferentes extratos da sociedade, ao ponto de haver uma corrente que afirma ser possível um autocontrole, ou seja, uma auto-regulamentação, como pontua o CONAR.

Sobremaneira importante é essa questão para que houvesse possibilidade de esgotamento do tema. O presente trabalho identifica a problemática e a dificuldade legislativa que se está enfrentando, porém não tem possibilidade de desenvolver considerações mais pormenorizadas. Um trabalho empírico poderia gerar resultados mais aparentes e, nesse caso, seria do interesse de alguns órgãos, como ONGs e do Ministério Público desenvolver considerações não apenas sobre a lacuna legislativa, mas principalmente sobre a forma com que a legislação existente vem sendo aplicada nos casos já suscitados.

60 Sobre esse ponto: “A influência do marketing na formação de valores e no comportamento das crianças, que constituem hoje importante público alvo da publicidade, vem provocando atualmente grandes debates em países desenvolvidos. Na Suécia a legislação proíbe a veiculação de qualquer propaganda para crianças menores de dez anos de idade. É preciso considerar que companhias americanas gastam, anualmente, 15 bilhões de dólares em marketing e propaganda dirigidas a crianças de menos 12 anos de idade – o dobro da quantia investida há 10 anos. Por ano, cada criança norte-americana assiste, em média, a 40.000 anúncios na televisão e os consumidores infantis são responsáveis por um gasto anual de 500 bilhões de dólares em fast food, guloseimas, brinquedos e outros produtos anunciados”. Ação Civil Pública 1733/07 Vara da Infância e Juventude da Comarca de São Paulo. Disponível em: <http://www.criancaeconsumo.org.br/downloads/peticao_inicial_nestle_chokito.pdf> Acesso em 19 de agosto de 2012.

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BIBLIOGRAFIA

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CHAVES, Antonio. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 2. ed. São Paulo: LTr, 1997.

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JACOBINA, Paulo Vasconcelos. A Publicidade no Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 1996.

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A INCONSTITUCIONALIDADE DO FATOR PREVIDENCIÁRIO

lorEnSSa milanEzi DE SiquEira

Graduanda do curso de direito do Centro Universitário Curitiba UNICURITIBA

iVan furmann

Cursando Doutorado em Direito pela UFPR (2009-) com o texto de tese qualificado e com previsão de defesa até Agosto de 2013. Possui Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2003) e Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Paraná (2006). Atualmente é professor Assistente II no Unicuritiba (Centro Universi-tário Curitiba) lecionando para alunos de graduação e especialização. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em História do Direito, Sociologia Jurídica e Metodologia científica atuando principalmente nos seguintes temas: História do direito, Cidadania, ensino de História, Educação e Extensão universitária.

RESUMO

O fator previdenciário instituiu a utilização de uma expectativa de vida única, para ambos os sexos e para todo o Brasil, no cálculo do valor da aposentadoria. Consequentemente, criou uma, ainda maior, desigualdade social entre as regiões brasileiras. Além disso, o fator previdenciário causou uma diminuição no valor das aposentadorias por tempo de contribuição, pois uma de suas variáveis é a idade do contribuinte ao se aposentar.

Dessa maneira, o fator previdenciário é inconstitucional por atentar contra, principalmente, os princípios da isonomia e o da irretroatividade dos direitos sociais, além de ser prejudicial aos trabalhadores brasileiros.

Palavras-chave: aposentadoria, fator previdenciário, inconstitucionalidade, expectativa vida.

ABSTRACT

The Social Security factor established only one life expectancy, for both genders and all over Brazil, for the calculus of retirement benefits. Therefore creating an even bigger social inequality among Brazilian regions. Beyond that, the Social Security factor caused a reduction on the value of the benefit for retirements by contribution time, because one of its variables is the age of the contributors at the retiring time.

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Thus, the Social Security factor is unconstitutional for the sake of attempting against, mainly, the isonomy principles and the irretroactivity of social rights, besides being prejudicial to brazilian workers.

1 INTRODUÇÃO

A aposentadoria, no Brasil, tem uma grande importância para a economia, pois ela é responsável por até 80% do sustento das famílias (IEPREV, 2012). Contudo, apesar dessa importância, há uma clara afronta à Constituição Federal no cálculo desse benefício: o fator previdenciário.

O fator previdenciário é uma fórmula utilizada no cálculo do valor da aposentadoria por tempo de contribuição e na aposentadoria por idade, caso o contribuinte deseje. Ela leva em consideração a idade do contribuinte ao se aposentar, apesar da Constituição Federal de 88 não prever esse requisito.

A expectativa de sobrevida, utilizada no cálculo do fator previdenciário, é calculada pelo IBGE (Instituto brasileiro de geografia e estatística). Este órgão, disponibiliza anualmente uma tábua de mortalidade em que constam os anos que uma pessoa tem para viver, de acordo com sua idade. Contudo, essa tábua é única para ambos os sexos e para todo o Brasil, ou seja, apesar de haver diferenças entre a expectativa de vida de uma mulher cearense e de um homem paranaense, por exemplo, a mesma tábua é utilizada para calcular o benefício previdenciário.

Um direito social, que é a previdência social, ao invés de ajudar a diminuir as desigualdades sociais vem aumento as diferenças sociais, prejudicando a população das regiões brasileiras mais pobres, logo desrespeitando o princípio da isonomia. Além de prejudicar, também, as pessoas mais carentes, pelo fato dessa classe começar a trabalhar mais cedo.

O fator previdenciário fez com que a RMI da aposentadoria por tempo de contribuição diminuísse consideravelmente, comparado com o cálculo feito antes do fator. Dessa maneira, essa fórmula também vai de encontro ao princípio da irretroatividade dos direitos sociais.

A lei previdenciária, no Brasil, surgiu em 1929, com o objetivo principal de garantir uma aposentadoria aos trabalhadores durante a velhice. A Constituição Federal de 88 também inaugurou diversos direitos sociais aos obreiros, como a possibilidade de concessão de pensões aos homens e a extensão do direito à previdência aos rurais. Apesar dessa evolução, hoje, a aposentadoria concedida aos idosos, os prejudicam, não sendo um valor proporcional a tudo que esses anciões já contribuíram para os cofres da previdência social. Principalmente se forem de uma classe mais pobre e se residirem nas regiões mais pobres do Brasil.

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2 O FATOR PREVIDENCIÁRIO

A Constituição Federal de 88 estabelece, hoje, três tipos de aposentadorias: por tempo de contribuição, por idade e por invalidez. Sendo que, o fator previdenciário deve ser usado no cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição e facultativamente na aposentadoria por idade.

O cálculo da RMI da aposentadoria por tempo de contribuição está previsto no artigo 29 da Lei nº 8.213/91, que consiste em 100% do salário de benefício multiplicado pelo fator previdenciário. Sendo que, salário de benefício é a média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo. O cálculo da aposentadoria por idade é igual ao da por tempo de contribuição, caso o segurado escolha por utilizar o fator previdenciário.

O fator previdenciário é uma fórmula baseada em três variáveis: idade, tempo de contribuição e a expectativa de sobrevida, que é o prazo médio que o contribuinte tem para viver na época do pedido de aposentadoria. A expectativa de sobrevida é obtida através de uma tabela única para ambos os sexos e para todo o Brasil, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

A fórmula do fator previdenciário é a seguinte:

Sendo que, “f” é o fator previdenciário, “Tc” é o tempo de contribuição, “a” é a alíquota de contribuição do segurado equivalente a 0,31, “Es” é a expectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria e “Id” é a idade do aposentado também na data da aposentadoria.

O fator previdenciário é criticado pela minoria, porém renomados autores, como a Dra. Cláudia Salles Vilela Vianna e o Ministro do STF Marco Aurélio. Esses estudiosos defendem, principalmente, que o fator criou de uma maneira disfarçada, um requisito a mais para a aposentadoria por tempo de contribuição, a idade. Para o Ministro do STF Marco Aurélio, no julgamento da liminar da Adin 2.111-7:

Com esse critério, com esse malabarismo todo, com essa equação tão bela, em que se utiliza todo o alfabeto na fórmula encontrada para definir-se o fator previdenciário, não teríamos aí um drible ao que foi rejeitado pelo Congresso, na apreciação da PEC que resultou na Emenda Constitucional nº20? Esse fator previdenciário, para mim, é sinônimo de idade. (BRASIL, 2000).Originariamente, a Constituição Federal de 88 previa a aposentadoria

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por tempo de serviço, ao invés da aposentadoria por tempo de contribuição. Em 1995, o ex Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, elaborou um projeto de emenda à Constituição, a PEC 33/95, que criou a aposentadoria por tempo de contribuição.

A PEC 33/95 instituía a idade como um dos requisitos para a concessão da aposentadoria, porém esse novo requisito foi vetado pelos parlamentares. Sendo aprovada a emenda constitucional 20/98.

Em 1999, é criada a Lei n° 9.876 que altera o cálculo da aposentadoria por tempo de contribuição, obrigatoriamente, e por idade, facultativamente. É então, instituído o fator previdenciário, que estabelece o requisito idade na aposentadoria por tempo de contribuição, de maneira disfarçada.

O STF através das Adin´s 2.111-7 - proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores- em sede de liminar, decidiu por manter o fator previdenciário. Contudo, não foi discutido o mérito da questão.

Na adin 2.111-7 foi citada na inicial às palavras do Deputado Federal Arnaldo Faria de Sá no momento em que a Lei nº 9.876/99 estava sendo votada:

Esta é a razão pela qual gostaria que o projeto fosse votado na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação: provar que é eivado de inconstitucionalidade. A maior delas que ninguém vai corrigir e o Plenário não pode capitular, é o limite de idade. Não há limite de idade na PEC n. 20, originária da PEC n. 33. Este Plenário derrubou. E volta, de forma mascarada, no Projeto de Lei 2.527, de 1999, conjugando limite de idade, tempo de contribuição e expectativa de vida numa tabela que não está clara, é um anexo, uma tabela do IBGE.(BRASIL, 2000).

O Deputado se refere ao fato de que através da PEC nº 33/95 (BRASIL, 1996) tentou-se alterar a Constituição para incluir como requisito para a aposentadoria por tempo de contribuição, a idade. Contudo, essa parte do projeto foi rejeitada pelo Congresso Nacional. Aprovaram a PEC nº 33/95, sem o requisito idade para a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição, passando a vigorar a EC 20/98. Porém, não satisfeitos com a falta de idade mínima, criaram o projeto de Lei nº 1.327/99 instituindo o fator previdenciário, que de maneira obscura estabeleceu uma idade mínima para a concessão da aposentadoria por tempo de contribuição, desrespeitando o princípio da isonomia e da vedação do retrocesso social. Para a doutrinadora Cláudia Salles Vilela Vianna:

Da fórmula de cálculo do fator previdenciário podemos observar que o legislador ordinário utilizou dois critérios distintos em um único cálculo, quais sejam: idade (e consequentemente sobrevida) e tempo de

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contribuição. Não se trata de afirmar que o legislador impôs idade mínima para a aposentadoria por tempo de contribuição, mas de exigir uma idade mínima, sim, para que esta aposentadoria corresponda ao valor integral. (VIANNA, p. 388, 2008).Ou seja, o legislador infraconstitucional estabeleceu uma idade mínima para

a concessão do benefício previdenciário, pois na prática a diminuição do valor do benefício faz com que o contribuinte não se aposente na idade em que desejar. Apesar de o contribuinte poder se aposentar em qualquer idade, se verá obrigado a se aposentar após os 65 anos, em geral. Pois caso se aposente mais cedo, o valor de sua aposentadoria será um valor baixo. Nas palavras de Cláudia Vianna:

Exigir tais requisitos cumulativamente, ainda que no cálculo do benefício, é impor ao segurado que possui o tempo de contribuição já completo também o implemento da idade mínima, sob pena de, se não o fizer, ter seu benefício reduzido na renda pela mensal (VIANNA, p. 389, 2008).

O principal argumento do Ministro Marco Aurélio, em relação ao fator, é o de que tal fórmula ter estabelecido o requisito da idade de maneira transversa, requisito este não previsto na Constituição de 88. O fator previdenciário viola a característica rígida da Constituição Federal, pois uma lei ordinária instituiu um requisito além do previsto na Constituição . Para o Ministro Marco Aurélio:

[...] fator previdenciário não é nada mais, nada menos, do que fator idade, que foi refutado quando da apreciação da proposta de emenda constitucional que resultou na Emenda nº 20. [ ] Creio que continuamos diante de uma Carta rígida, e não de uma Carta flexível, passível de ser modificada pelo legislador ordinário. (BRASIL, 2000).

O já citado ministro do STF justifica a sua critica ao fator previdenciário, principalmente, pelo motivo desse cálculo prejudica demasiadamente os mais desfavorecidos economicamente, pois lesa aqueles que começam a trabalhar mais cedo, ou seja, as classes mais baixas.

Pelo fato do fórmula em questão instituir a idade como um dos requisitos para a concessão do benefício, aqueles que se aposentam com uma idade mais avançada tem uma RMI maior do que aqueles que se aposentam mais cedo, mesmo que tenham contribuído com os mesmos valores e pelo mesmo tempo, para a previdência. Será observado mais adiante, no capítulo 3. Caso concreto, exemplos com valores sobre a diferenciação.

Sendo assim, as pessoas que estudam após o ensino médio e que demoram para entrar no mercado de trabalho são beneficiadas.

Em 2009, foi elaborada a medida provisória 475/09, que acabava com o fator previdenciário. Esta MP foi aprovada pelo Congresso Nacional, porém em

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outubro de 2010, o ex Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, não aprovou a medida provisória.

Hoje, está pronto para ser votado em plenário o Projeto de Lei n° 3299/2008 que acaba com o fator previdenciário.

2.1 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL

Além de o fator previdenciário ter sido criado contrariando dispositivo da Constituição Federal, a fórmula em análise também vai de encontro ao princípio da vedação do retrocesso social, que consiste no fato do legislador ordinário não poder diminuir os efeitos dos direitos sociais já postulados pela Constituição, ou seja, o legislador infraconstitucional não tem a faculdade de abrandar os direitos sociais previstos na Carta de 88. Esse princípio também versa sobre a impossibilidade do legislador mudar uma lei, que regula um direito social, para pior.

O princípio da vedação do retrocesso social, para Ingo Wolfgang Sarlet (SARLET, p. 37, 2001), está implícito no ordenamento jurídico brasileiro e decorre dos princípios da segurança jurídica, do da dignidade da pessoa humana e da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais.

A Constituição Federal de 88 incumbiu ao Estado o dever de realizar a justiça social através dos Direitos Sociais, por esse motivo o legislador ordinário não pode mitigar os Direitos Sociais.

Antes da Lei n° 9.876/99 ser promulgada a aposentadoria por tempo de contribuição tinha como requisito apenas o tempo que o sujeito contribuiu para a previdência social, como prevê a Constituição Federal. Após, passou-se a exigir, também, por vias transversas, uma idade mínima.

A mudança que a Lei n° 9.876/99 trouxe, foi na perspectiva de que hoje o contribuinte recebe sua aposentadoria com base no período que tem para viver e não apenas no que contribuiu durante sua vida laboral.

Além do fato de que os indivíduos que começaram a trabalhar cedo terão uma aposentadoria menor do que aqueles que começaram a laborar tarde. O homem receberá o mesmo valor que a mulher, por menos tempo, e a população das regiões pobres – em que a expectativa de vida é menor - receberão aposentadorias por menos tempo do que a população das regiões ricas em que a expectativa de vida é maior.

Sendo assim, o fator previdenciário retrocedeu os direitos daqueles que começaram a trabalhar cedo e dos indivíduos que moram nas regiões mais pobres do Brasil. Desrespeitando um princípio constitucional que tem como base o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais.

Segundo o juiz federal Marcus Orione, em sentença proferida em 30 de novembro de 2010:

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Ressalte-se, também, que não há elementos suficientes para se ter como conclusivo que o fator previdenciário garanta o “equilíbrio financeiro e atuarial” do sistema. Trata-se, isto sim, de elemento que consubstancia intolerável “retrocesso social”, afastado em vários momentos pela melhor doutrina (CANOTINHO e FLÁVIA PIOVESAN, dentre outros). (BRASIL, 2010).

O fator previdenciário desrespeita o princípio da vedação do retrocesso social, pois fez mudanças no cálculo do valor da aposentadoria por tempo de contribuição passando a prejudicar várias partes da sociedade. O que não ocorria antes da instituição do fator.

2.2 PRINCÍPIO DA ISONOMIA

O caput do artigo 5º da Constituição Federal prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...” (BRASIL, 1988). Sendo assim, o legislador não deve criar uma lei que trate de forma desigual situações iguais. Ou seja, pessoas em circunstâncias diferentes, devem ser tratadas de forma diferente e pessoas em circunstâncias iguais, devem ser tratadas de forma igual.

Para Sergio Pinto Martins “Deverá haver igualdade tanto no pagamento de contribuições, como na concessão de benefícios em relação a pessoas que estejam nas mesmas condições” (MARTINS, p. 47, 2009). Para o autor, um beneficiário não deve ser diferenciado de outro se os dois estão na mesma condição. O que pretende se evitar, com esse princípio, é o tratamento igual de pessoas desiguais.

No caso de duas pessoas pagarem a previdência social por 30 anos, sobre o mesmo salário de contribuição, as duas pessoas devem receber o mesmo valor de aposentadoria. Considerando que a Constituição Federal elegeu somente o tempo de contribuição como requisito para a aposentadoria por tempo de contribuição, bem como vedou, em seu §1º artigo 201, a adoção de outros critérios, para a concessão de benefícios:

§ 1º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar (BRASIL, 1988).

A própria Constituição definiu diferenciações que devem ser respeitadas pelo legislador ordinário como, por exemplo, o tempo de contribuição dos rurícolas que

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são cinco anos menores do que o dos trabalhadores urbanos e a idade mínima para um professor se aposentar por idade. Essas diferenças ocorrem, pois há desigualdades fáticas no desenvolvimento de seus respectivos trabalhos, por exemplo, o trabalho de um rurícola é mais desgastante do que de outras profissões.

Deve haver diferenciação entre as pessoas apenas nos casos em que elas não estejam em situação de igualdade. A disparidade que a Lei n° 9.876/99 trouxe não é explicada por algum motivo de distinção entre os sujeitos tutelados, o que ocorre com o fator previdenciário é a diferenciação de duas pessoas em situações iguais. Ou seja, duas pessoas cumprem igualmente todos os requisitos para a aposentadoria por tempo de contribuição previstos na Constituição – 35 anos de contribuição para o homem e 30 para a mulher – e não recebem o mesmo salário de contribuição, pois uma lei infraconstitucional criou um requisito além do previsto, que é o da idade ao se aposentar.

O desrespeito ao princípio da isonomia também ocorre na medida em que se considera uma única expectativa de sobrevida para homens e mulheres, pois o homem vive menos do que a mulher, porém se tiver a mesma idade e tempo de contribuição que a mulher receberá a mesma RMI, mas por um período menor. Sendo assim, a utilização do fator previdenciário causa um tratamento igual – mesmo salário de benefício- para pessoas em situações desiguais – o homem vive menos do que a mulher- causando uma afronta direta ao princípio da isonomia.

O princípio da igualdade é dirigido tanto para o legislador quanto para o magistrado, segundo José Afonso da Silva. Sendo que, no caso do legislador não respeitar tal princípio a norma será inconstitucional: “... o princípio da igualdade consubstancia uma limitação ao legislador, que, sendo violada, importa na inconstitucionalidade da lei” (SILVA, 2010, p. 218).

Além do princípio da isonomia ser previsto no artigo 5º da Constituição, ele também é um dos objetivos da República, em se tratando de desigualdades regionais:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (BRASIL, 1988).Ou seja, o fator previdenciário desrespeita precipuamente o inciso III

do artigo 3º da Constituição Federal, tendo em vista que a fórmula utiliza uma única tábua de expectativa de sobrevida para todas as regiões do Brasil. Não levando em consideração que os moradores do sul têm uma expectativa de vida maior do que os moradores do norte, por exemplo.

Dessa maneira, o fator previdenciário desrespeita o princípio da isonomia por dois motivos principais: haver uma única tabela para ambos os sexos e para o Brasil inteiro

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3 CASO CONCRETO

O fator previdenciário utiliza como fonte para a fixação da expectativa de sobrevida do segurado uma tábua elaborada pelo IBGE (Instituto brasileiro de geografia e estatística). Essa tabela de mortalidade é única para ambos e sexos e para todo o Brasil, causando uma grande desigualdade entre regiões e entre os sexos, pois a expectativa de uma mulher e de um homem de diferentes regiões do Brasil é diferente. Por exemplo, em 2009 um homem alagoano tinha 63,7 anos de expectativa de vida ao nasce, já uma mulher do Distrito Federal 79,6 anos.

O fator previdenciário brasileiro, em 2000, para um homem de 65 anos de idade e com 35 anos de contribuição era de 2,255. Logo, caso o salário de benefício desse sujeito fosse de R$ 2.000,00 a RMI de sua aposentadoria por tempo de contribuição seria de R$ 4.510,00. Contudo, caso a previdência social utilizasse tábuas diferentes para os Estados da federação, um homem de Alagoas teria um fator previdenciário de 2.736, com o mesmo salário de benefício que o caso anterior – R$ 2.000,00 – a RMI de sua aposentadoria seria de R$ 5.472,00. Logo, um homem alagoano em 2000 recebeu R$962,00 a menos por mês por causa do fator previdenciário. Essa diferença é inaceitável perante um Estado que ser diz igualitário, que tem como um dos objetivos da República é reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Imaginemos que no caso de ser utilizada uma tábua de mortalidade diferente para homens e mulheres, um homem com 35 anos de contribuição e 60 anos de idade, teria um fator previdenciário de 0,950. Sendo assim, caso tivesse como, média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo, o valor de R$3.000,00 a sua aposentadoria seria de R$2.850,00.

Contudo, o fator previdenciário utiliza uma única tábua de mortalidade para ambos os sexos, sendo o valor da aposentadoria de uma pessoa com as mesmas características do exemplo passado – 35 anos de contribuição, 60 anos de idade e a média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo de R$3.000,00 – de R$ 2.610,00.

A diferença que a utilização de uma expectativa de vida única causa para um homem aposentado é de R$240,00. Ou seja, por causa de um requisito não previsto pela Constituição, um homem –com as características do caso- recebe R$240,00 por mês, a menos do que deveria.

O fator previdenciário também, como já dito, desestimula o trabalhador começar a contribuir cedo, fazendo crescer a economia informal, pois se dois homens contribuírem por 35 anos, porém um deles tiver começado a contribuir aos 18 anos e o outro aos 30. Aquele terá como fator previdenciário o valor

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de 0,665 e este no valor de 1,068. Considerando que os dois tenham como a média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a 80% de todo o período contributivo o valor de R$2.000,00. O homem mais jovem terá como salário de benefício a importância de R$1.330,00 e o mais velho a importância de R$2.136,00. Ou seja, apesar dos dois homens terem contribuído da mesma forma, terem respeitado a Constituição, há uma diferença de R$806,00 ao mês no valor de suas aposentadorias. Isso pelo fato de uma norma ordinária estabelecer um requisito além do que a Constituição permite.

4 CONCLUSÃO

O presente trabalho de conclusão de curso apresentou os motivos pelos quais o fator previdenciário deve ser tido como inconstitucional.

O fator previdenciário desrespeita um dos princípios mais basilares do direito, o princípio da isonomia, na medida em que trata pessoas desiguais de maneira igual – ao utilizar uma tábua para o Brasil inteiro, desconsiderando as diferenças regionais.

O instituto em questão também ignora o princípio da vedação do retrocesso social, pois antes da criação do fator os contribuintes tinham um acesso mais simples a aposentadoria, com vantagens - levando em consideração com o que ocorre hoje. Além disso, o fator previdenciário também instituiu um critério além do proposto pela Constituição de 88, ferindo a hierarquia de normas.

O STF (Supremo Tribunal Federal) julgou uma cautelar e uma liminar relacionadas ao fator previdenciário. Contudo, nos dois casos não proveram as medidas. Todavia, na época do julgamento não haviam editado a lei de acesso a informação, Lei n°12.527/2011. Essa lei prevê que o Estado deverá garantir à população o acesso amplo e irrestrito as informações, porém o cálculo do valor do benefício de aposentadoria não é prestigiado por tal direito, pois a fórmula do fator contem quatro variáveis.

Apesar do STF ser a corte suprema do Brasil, ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário, pode rever as suas decisões e alterar entendimentos. Por esse motivo, a discussão sobre a constitucionalidade do fator previdenciário é valida. Deve-se somar essa questão ao fato de que há uma nova lei garantindo o acesso à informação, o que não ocorre com a fórmula do fator previdenciário.

O direito à previdência social é um direito fundamental de 2ª geração e deve ser tratado com tal importância. Contudo, não é isso o que acontece hoje, ao invés de um direito social garantir os direitos dos mais carentes, ele aumenta as diferenças entre os ricos e os pobres. Com a desculpa de que há um déficit previdenciário.

O déficit previdenciário para alguns doutrinadores não existe, o que há é a falta de repasse de valores dos cofres da União para o da seguridade social,

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como a Constituição prevê. Além disso, também há a questão da utilização de verbas da previdência social para outros investimentos além da seguridade social. Sendo assim, dinheiro arrecadado pelos contribuintes, sem a ajuda da união, foi retirado dos cofres da previdência para outras finalidades além da seguridade social.

Por fim, deve-se atentar para essas diversas constatações sobre a inconstitucionalidade do fator previdenciário e constatar que os maiores prejudicados é a população mais pobre, que começa a trabalhar cedo que contribui sobre um valor pequeno, para previdência.

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BRASIL. PEC – Proposta de Emenda a Constituição, nº 33 de 1996. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=18494>. Acesso em: 26 jul. 2012.

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 218.

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RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR EM DECORRÊNCIA DO DESEQUILÍBRIO NO MEIO

AMBIENTE DE TRABALHO

luciana loPES fontana

Formanda em Direito pelo Centro Universitário Curitiba.

miriam ciPriani gomES

Possui Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Uni-versitário Curitiba (2008). Atualmente é professor de Direito do Traba-lho e Direito Processual do Trabalho da UNICURITIBA

SUMÁRIO: Introdução. 1. Meio ambiente – definição, classificação, proteção jurídica e princípios. 2. Meio ambiente do trabalho equilibrado como direito fundamental do tra-balhador, assim considerado por meio do princípio da dignidade humana. 3. Responsabi-lidade civil do empregador. 4. Enfermidades decorrentes do meio ambiente do trabalho desequilibrado. 5. Responsabilidade civil por danos à saúde do trabalhador em decorrência da poluição do meio ambiente do trabalho. 6. Conclusões.

RESUMO O brasileiro, via de regra, passa um terço de seu dia trabalhando, o que

demonstra a necessidade de conservação harmoniosa de seu ambiente de trabalho, para o bom desempenho de suas atividades laborais. O presente estudo destina-se a avaliar a responsabilidade civil do empregador por danos à saúde mental do trabalhador (cujas enfermidades são menos perceptíveis que as físicas), em decorrência do desequilíbrio ou poluição do meio ambiente do trabalho. Sendo o equilíbrio deste um direito fundamental do trabalhador, ao lado de outros, como o direito ao trabalho e à saúde, sua inobservância implica afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, passível de responsabilização.

Palavras-chave: meio ambiente de trabalho equilibrado, direitos fundamentais, responsabilidade civil, danos à saúde psíquica.

ABSTRACT

The Brazilian, usually, spend a third of their day at work, which demonstrates the need for conservation of harmonious work environment for the good performance of their activities. This study is intended to assess the civil responsibility of the employer for damages for mental health worker

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(whose illnesses are less noticeable than the physical) as a result of imbalance or pollution of the environment work. Being balance a fundamental right of the worker, alongside others like the right to work and health, failure implies affront to the principle of human dignity, open to responsibility.

Keywords: healthy work environment, fundamental rights, civil responsibility, damage to mental health.

INTRODUÇÃO De acordo com a Constituição Federal e a Consolidação das Leis do

Trabalho, a jornada de trabalho do brasileiro é de oito horas diárias, podendo ser acrescida de duas horas suplementares. O trabalhador permanece, pois, ao menos um terço do seu dia no ambiente de trabalho.

O presente estudo tem por escopo evidenciar o meio ambiente de trabalho equilibrado como direito fundamental do trabalhador, que lhe assegure ambiente físico e emocionalmente saudável para o desempenho de suas atividades. Como tal, sua inobservância constitui afronta à dignidade da pessoa humana.

Ao se refletir sobre a influência do meio ambiente de trabalho na saúde dos trabalhadores, imediatamente vêm à memória os acidentes de trabalho. Raramente cogitam-se as enfermidades mentais, pois não são facilmente perceptíveis. Todavia, a saúde psíquica é tão importante quanto a física, pois afeta a convivência familiar e social dos trabalhadores.

Diante disso, indaga-se sobre a possibilidade de responsabilizar o empregador pelos danos à saúde mental dos trabalhadores decorrentes do desequilíbrio do meio ambiente de trabalho.

Para chegar a uma resposta satisfatória, este estudo analisa, prefacialmente, o meio ambiente geral e o meio ambiente do trabalho, este de forma minuciosa, destacando sua proteção legal, os princípios ambientais constitucionais aplicados a ele e seu panorama atual no Brasil.

Em seguida aborda o meio ambiente de trabalho como direito fundamental do trabalhador, bem como sua efetivação por meio do princípio da dignidade da pessoa humana.

Sobre a responsabilidade civil são explorados conceito, finalidade, natureza jurídica e modalidades, com o intuito de determinar em qual das modalidades enquadra-se a responsabilidade do empregador por danos causados à saúde mental do trabalhador, decorrentes do desequilíbrio do meio ambiente de trabalho.

Por fim, são examinadas algumas situações que causam poluição ao meio ambiente de trabalho, bem como determinadas enfermidades psíquicas dela decorrentes.

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1 MEIO AMBIENTE – DEFINIÇÃO, CLASSIFICAÇÃO, PROTEÇÃO JURÍDICA E PRINCÍPIOS.

A preocupação com o meio ambiente é questão recente, com menos

de meio século de discussões. Segundo Grott (2003, p. 73), as civilizações conquistaram e dominaram espaços sem se preocuparem com a adequada preservação do meio ambiente. Demorou para o homem perceber que habita um planeta frágil, degradado por gerações ambiciosas que interagiram com o meio para satisfazer propósitos de alimentação, conforto e consumo.

A constatação de que os recursos ambientais não são infindáveis, como se presumia, levou o ser humano a reavaliar suas convicções. A preocupação incitou debates e encontros mundiais, com o objetivo de buscar alternativas para proteger o meio ambiente.

A Conferência das Nações Unidas, realizada em 1972, resultou na Declaração de Estocolmo, que foi fundamental para a redação do artigo 225 da Constituição Federal brasileira de 1988. Segundo Milaré (1991, p. 3), a disposição desse artigo é marco histórico de indiscutível valor, visto que as Constituições que precederam a de 1988 não se preocuparam com a proteção do meio ambiente. O artigo dispõe:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012, p. 127).

A definição de meio ambiente é encontrada na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) que, em seu artigo 3º, inciso I, o conceitua como “conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”.

Tal conceituação é unitária, porém a doutrina busca dividi-la em aspectos para facilitar a identificação da atividade degradante e do bem imediatamente agredido, como defende Fiorillo (2008, p. 20).

Acompanhando o raciocínio de Silva (2003, p. 21-23), são quatro os aspectos do meio ambiente: natural, artificial, cultural e do trabalho. O natural ou físico é constituído pelo solo, água, ar atmosférico, flora, interação dos seres vivos e seu meio. O meio ambiente artificial é compreendido pelo espaço urbano construído, constituído por edificações, e pelo espaço urbano público, englobando ruas, praças, áreas verdes e espaços livres em geral. O cultural é integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e turístico. O meio ambiente de trabalho merece, neste artigo, atenção específica, a partir de sua definição e natureza jurídica. Fiorillo (2008, p. 22-23) declara que meio ambiente do trabalho é

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[...] o local onde as pessoas desempenham suas atividades laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentem [...] Caracteriza-se pelo complexo de bens imóveis e móveis de uma sociedade, objeto de direitos subjetivos privados e invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que a frequentam.

Melo (2010, p. 31) ensina que meio ambiente de trabalho abarca, além do local de trabalho, os instrumentos, o modo da execução das tarefas e o modo como o trabalhador é tratado pelo empregador – ou tomador de serviços – e pelos colegas de trabalho. Em outras palavras, o conceito deve levar em conta a pessoa do trabalhador e tudo o que o cerca.

Quanto à sua natureza jurídica, trata-se de direito difuso, baseado no conceito apresentado pelo artigo 81, parágrafo único, I, da Lei 8.078/90, também conhecida como Código de Defesa do Consumidor:

Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; [...] (FUNDAÇÃO PROCON SP, 2010, p.18)

Direitos transindividuais, segundo Fiorillo (2008, p. 4-5), são os que transcendem o indivíduo, ultrapassando o limite da esfera de direitos e obrigações de cunho individual. Um bem indivisível pertence a todos, mas ninguém em específico o possui, como exemplifica, ao citar o ar atmosférico. Se o ar for poluído, não há como precisar quais os indivíduos afetados por tal poluição. Logo, teremos titulares indeterminados interligados pela poluição, que é circunstância fática.

O direito a um meio ambiente de trabalho sadio é indivisível, cujos titulares são indeterminados. Procura-se, pois, proteger o trabalhador das formas de poluição e degradação do meio ambiente onde exerce suas atividades, sendo essencial à sua qualidade de vida (FIORILLO, 2008, p. 22-23).

A estrutura da proteção do meio ambiente do trabalho encontra-se, adicionalmente, em convenções coletivas de trabalho, sentenças normativas proferidas pela Justiça do Trabalho nos Dissídios Coletivos e nas Convenções da Organização Internacional do Trabalho – OIT.

Dentre os direitos fundamentais do homem, o direito à vida é o mais relevante, o alicerce para existência e gozo dos demais direitos. A Carta Magna,

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no artigo 225, caput, assegura vida com qualidade e, para tanto, é essencial que sejam assegurados o trabalho decente e em condições seguras e salubres, como ensina Melo (2010, p. 37). Para essa segurança, o artigo 1º da Constituição Federal assegura como fundamentos da República Federativa do Brasil e do Estado Democrático de Direito, entre outros, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho.

O direito ao trabalho é direito social, conferido pela Constituição Federal em seu artigo 6º. Em relação ao meio ambiente, de forma geral, o artigo 225 assegura que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Ao Poder Público e à coletividade é imposto o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Para assegurar a efetividade desse direito, são impostas ao Poder Público diversas obrigações, listadas no parágrafo 1º, bem como a disposição de que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independente da obrigação de reparar os danos causados.

Em relação ao meio ambiente do trabalho, o art. 7º da Constituição Federal revela a preocupação do legislador constitucional com a saúde do trabalhador, se analisados os incisos XIV e XXII. Este artigo estabelece, dentre outros direitos, jornada de seis horas para o trabalho realizado em turnos ininterruptos de revezamento, bem como redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

O artigo 170 da Constituição Federal dispõe que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado, entre outros, o princípio da defesa do meio ambiente. Desta forma, incentivou-se a livre iniciativa econômica, desde que respeitado o meio ambiente do trabalho.

A combinação dos artigos 196 e 200, incisos II e VIII, garante a proteção da saúde do trabalhador, pois saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos, competindo ao Sistema Único de Saúde – SUS, além de outras atribuições, nos termos da lei, executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador, e colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.

Dentre as normas infraconstitucionais, destaca-se a chamada Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938, de 31 de agosto de 1981), fundamentada nos incisos VI e VII do artigo 23 e no artigo 225 da Constituição Federal, definindo escopos e mecanismos de formulação e aplicação. Esta lei traz, em seu artigo 3º, III, a definição de poluição como sendo a degradação da qualidade

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ambiental resultante de atividades que prejudiquem a saúde, criem condições adversas às atividades sociais e econômicas e afetem desfavoravelmente a biota.

Define, também, poluidor como sendo a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável por atividade causadora de degradação ambiental (art. 3º, IV). Embora não consigne expressamente proteção ao meio ambiente de trabalho, é incontestável que a degradação deste, que prejudique ou coloque em risco a saúde, a vida e a integridade física dos trabalhadores condiz com o conceito de degradação do meio ambiente.

A Consolidação das Leis do Trabalho traz dispositivos importantes para a prevenção de acidentes e doenças ocupacionais. Dentre eles, destaca-se o artigo 156, que trata da competência das Superintendências Regionais do Trabalho para fiscalizar o cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, determinar a adoção de obras e reparos que se façam necessários e aplicar penalidades no caso de descumprimento das respectivas normas. O artigo 157 determina às empresas a obrigação de cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho, instruir os empregados quanto às precauções aptas a evitar acidentes de trabalho e doenças ocupacionais, adotar medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão competente, bem como facilitar o exercício da fiscalização. CLT veda o início das atividades de um estabelecimento sem prévia inspeção e aprovação das respectivas instalações por autoridade regional competente em matéria de segurança e medicina do trabalho (art. 160).

A Organização Internacional do Trabalho, visando atingir o seu objetivo de elevar os níveis de vida e de proteger adequadamente a vida e a saúde dos trabalhadores em todas as ocupações, possui Código Internacional do Trabalho, composto por recomendações e convenções. As convenções são procedimentos passíveis de serem objetos de ratificação e de criar uma rede de obrigações internacionais, seguidas de medidas de controle, ou seja, possuem caráter vinculativo (MINARDI, 2010, p. 27). Com relação ao meio ambiente de trabalho, destacam-se as Convenções 148, 161 e 155, cuja análise será mais minuciosa em razão do tema deste estudo.

A Convenção 148 é conhecida como Convenção sobre o Meio Ambiente de Trabalho – Contaminação do Ar, Ruído e Vibrações. Segundo Minardi (2010, p. 26), dentre seus princípios, destaca-se o que consagra a eliminação do risco, ao invés de sua neutralização, devendo os equipamentos de proteção individual ser utilizados somente na impossibilidade de eliminação técnica do risco.

A Convenção 161 trata da segurança e saúde dos trabalhadores, centrando a regulamentação nos Serviços de Saúde no Trabalho. Os serviços de saúde no trabalho, conforme Oliveira (1996, p. 86), deverão agir em funções preventivas, aconselhando empregados e empregadores para alcançar ambiente de trabalho seguro e salubre, favorecendo saúde física e mental adequada em relação ao trabalho e adaptando-o às capacidades físicas e mentais dos trabalhadores.

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A Convenção 155 trata da Segurança e Saúde dos Trabalhadores, estipulando ao país signatário formular uma política nacional com o objetivo de prevenir acidentes e danos à saúde consequentes do trabalho, reduzindo ao mínimo as causas dos riscos existentes no meio ambiente de trabalho. Desta Convenção, sobre o tema desenvolvido neste estudo, destacam-se os artigos 3º, e, 4º e 11. O artigo 3º, alínea e, para seus efeitos, estipula que o termo saúde, em relação com o trabalho, abrange, além da ausência de afecções ou doenças, os elementos físicos e mentais que afetam a integridade do trabalhador e estão diretamente relacionados com a segurança e higiene no trabalho. O artigo 4º estabelece que os Estados, mediante consulta a representantes dos empregadores e dos trabalhadores, formulem, ponham em prática e reexaminem periodicamente uma política nacional em matéria de segurança e saúde dos trabalhadores e meio ambiente de trabalho, que terá por objetivo prevenir acidentes e danos à saúde decorrentes do trabalho. O artigo 11, alínea e, dispõe que, para que a política prevista no artigo 4º se efetive, a autoridade deve publicar anualmente informações sobre as medidas tomadas para sua aplicação, sobre os acidentes e doenças profissionais.

A Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98) estabelece, em seu artigo 3º, que as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. O parágrafo único dispõe que a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, coautoras ou partícipes do mesmo fato, em total consonância com o previsto no artigo 225, § 3º da Constituição Federal. A disposição tem plena aplicação ao meio ambiente de trabalho.

Passamos a discorrer sobre os princípios ambientais da Constituição e sua aplicação ao meio ambiente do trabalho. Destacam-se os que seguem.

Princípio da precaução. Melo (2010, p. 53-54) entende que precaução, no Direito Ambiental, tem a ver com risco, prejuízo, irreversibilidade e incerteza, ou seja, mesmo na incerteza do risco – por desconhecimento de sua intensidade – mas diante da irreversibilidade dos eventuais danos ao meio ambiente, devem ser adotadas medidas acautelatórias, preventivas. Nery Junior e Nery (2009, p.689-690) ressaltam que a política do ambiente não se limita à eliminação ou redução da poluição já existente, mas garante, também, que a poluição seja combatida na sua origem.

Princípio da prevenção. Previsto no caput do artigo 225 da Constituição Federal. Conforme ensinamentos de Nery Junior e Nery (2009, p.689), o princípio da prevenção tem por escopo evitar a ocorrência de danos ambientais irreversíveis, cientificamente comprovados. Ante a possibilidade de irreversibilidade em determinados casos e da impotência do sistema

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jurídico em restabelecer uma situação idêntica a anterior, Fiorillo (2008, p. 49) entende que este princípio deve ser adotado como objetivo fundamental do direito ambiental. No meio ambiente do trabalho, o princípio da prevenção encontra previsão no art. 7º, XXII, da Constituição Federal, ao assegurar como direito do trabalhador urbano e rural a redução dos riscos inerentes ao trabalho por meio de normas de saúde, higiene e segurança. Segundo Fernandes (2009, p. 107), uma política de redução de riscos depende da prática de medidas preventivas, de informação e educação ambientais.

Princípio do desenvolvimento sustentável. Busca compatibilizar a atuação do desenvolvimento econômico com a preservação e equilíbrio do meio ambiente em todos os seus aspectos, segundo Melo (2010, p. 58). No âmbito laboral, o princípio é amplamente aplicado na proteção dos recursos naturais e do próprio ambiente de trabalho, visto que a degradação ambiental atinge diretamente a saúde humana.

Princípio do poluidor-pagador. Previsto no artigo 225, § 3º, da Constituição Federal, merece destaque nesse estudo. Conforme entendimento de Nery Junior e Nery (2009, p. 691), esse princípio significa que os custos incorridos na prevenção, eliminação ou compensação dos efeitos adversos no ambiente têm de ser suportados pelo poluidor. Ou seja, aquele que atua de qualquer modo no meio ambiente tem o dever de arcar com os custos de prevenção para que os danos sejam evitados. Ocorrendo o dano, o poluidor deve arcar com os custos de reparação e reabilitação ambiental. Depreende-se, pois, que o princípio tem por escopo encarecer os custos ao poluidor, de modo que este prefira adotar medidas preventivas a compensar os prejuízos.

Com relação ao meio ambiente de trabalho, Minardi (2010, p. 48) defende que o princípio do poluidor-pagador determina que o agente do dano, no caso o empregador, terá que arcar com os prejuízos morais, estéticos ou materiais ocasionados ao trabalhador, pois, ao assumir os riscos da atividade econômica, deve responder pelas desvantagens dela resultantes.

Princípio da participação. Previsto no caput do artigo 225 da Constituição Federal. Com relação ao meio ambiente de trabalho, Melo (2010, p.61) aduz que cabe ao Estado, por meio do Ministério do Trabalho e Emprego, elaborar normas de prevenção e melhorias do ambiente de trabalho, conforme artigo 156 da CLT, bem como orientar trabalhadores e empregadores quanto ao cumprimento dessas normas e fiscalizá-las, impondo sanções administrativas pelo seu descumprimento. União, Estados, Distrito Federal, Municípios e demais órgãos públicos da Administração Direta, Ministério Público e sociedades civis têm legitimidade para a defesa dos interesses metaindividuais, entre eles o meio ambiente do trabalho, com fulcro no artigo 5º da Lei 7.347/84. Com relação à participação popular, percebe-se sua atuação na elaboração de legislação

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ambiental, inclusive trabalhista, por projeto de lei de iniciativa popular (previsto no art. 61, caput e § 2º da CF); na presença de representantes da sociedade civil no Conselho Nacional do Meio Ambiente e na presença em audiências públicas ambientais, conforme exemplifica Fernandes (2009, p. 73 e 86). Decorrem deste princípio a informação e educação ambiental, como dispõe o artigo 225, §1º, VI, ao prever que incumbe ao Poder Público promover a educação ambiental e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente.

Princípio da ubiquidade. O vocábulo ubiquidade remete à onipresença, ou seja, a circunstância de algo estar presente em toda parte ao mesmo tempo. De acordo com Nery Junior e Nery (2009, p. 691), este princípio evidencia que o objeto de proteção do meio ambiente, localizado no epicentro dos direitos humanos, deve ser levado em consideração toda vez que uma atuação, política, atividade, obra ou legislação tiver que ser criada e desenvolvida. No âmbito laboral, o princípio refere-se não só ao local de trabalho em si, mas às condições de trabalho e de vida fora do trabalho como consequência de sadia qualidade de vida que se aspira ao ser humano, bem como incita a análise das consequências financeiras, sociais e humanas de um acidente ou doença laboral, como alerta Melo (2010, p. 62).

Minardi (2010, p. 34) ressalta que o estudo do meio ambiente do trabalho é recente, evidenciando duas tendências modernas: a preocupação com o meio ambiente vital e a busca da qualidade de vida no sentido amplo, compreendendo-se o meio ambiente do trabalho. Essa busca gerou o incentivo da proteção legal do meio ambiente do trabalho (MINARDI, 2010, p. 36-37), evitando o contato do trabalhador com agentes físicos, químicos ou biológicos nocivos à sua saúde, destacando ainda que, historicamente, na era taylorismo-fordismo, a preocupação do Estado na saúde do trabalhador se restringia à elaboração de normas que visassem à integridade física. Com a nova concepção do capitalismo pós-industrial, na qual há valoração do trabalho intelectual e imaterial, a sanidade mental do trabalhador ganha reconhecimento, embora carente de regulamentação. Rocha (1997, p. 19) aduz ser importante a análise dos elementos psicológicos, como a pressão para desempenho da atividade, que pode desencadear depressão e distúrbios emocionais.

2 MEIO AMBIENTE DO TRABALHO EQUILIBRADO COMO DIREITO FUNDA-MENTAL DO TRABALHADOR, ASSIM CONSIDERADO POR MEIO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Com relação a direitos fundamentais, Minardi (2010, p. 80) entende que “decorrem de um processo legislativo interno de determinado país, que eleva à positivação, sendo então, um direito outorgado e/ou reconhecido”. Quanto

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aos direitos humanos, afirma possuírem ”caráter supralegal, desvinculados de legislação escrita ou tratado internacional, pois preexiste a ele”. Seguindo seu raciocínio, Minardi (2010, p. 81) declara que a positivação dos direitos humanos, originando os direitos fundamentais, é prova de consciência coletiva da relevância de certos direitos, sem os quais a existência do Estado estaria inviabilizada.

Alguns direitos fundamentais encontram-se no Título II e outros se encontram esparsos na Constituição Federal, como o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, no art. 225. São considerados cláusulas pétreas, ou seja, qualquer proposta que deseje aboli-los é considerada ilegal (art. 60, § 4º, IV). Os direitos fundamentais têm aplicação imediata – eficácia plena, conforme disposição do art. 5º, § 1º da Lei Maior.

Segundo Minardi (2010, p. 84), os direitos fundamentais concretizam os valores máximos do ordenamento jurídico propostos pela Constituição Federal, razão pela qual devem subordinar toda a sociedade, nela incluídos o Estado e os particulares, pessoas físicas ou jurídicas. Fernandes (2009, p. 34) ressalta que, para que se torne efetivo o direito fundamental à vida, assegurado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, deve-se assegurar e proporcionar o exercício dos direitos ao trabalho e à saúde, pressupostos de sua existência, sob pena de inviabilizar-se o direito à vida. E, para que haja vida saudável e produtiva, torna-se necessária a proteção do meio ambiente de trabalho equilibrado, onde o trabalhador passa a maior parte de sua vida útil.

Um dos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal é o direito ao trabalho. A valoração do trabalho como objeto de tutela jurídica, segundo Oliveira (1996, p. 103), é fundamental para compreender e avaliar a extensão do direito à saúde do trabalhador. O trabalho é considerado um valor social, ao lado da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana e do pluralismo político – todos fundamentos da República Federativa do Brasil. O artigo 6º da Constituição Federal consagrou-o como direito social. Devido a sua importância, o caput do artigo 170 estabeleceu que a ordem econômica deverá estar apoiada na valorização do trabalho e que a ordem social terá como base o primado do trabalho.

Outro direito fundamental é o direito à saúde. Pela definição da Organização Mundial de Saúde – OMS, saúde é o completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou enfermidades.

Para a efetivação do disposto no artigo 193 da Constituição Federal, que estabelece que “a ordem social tem como base o primado do trabalho”, o direito à saúde foi inserido como um dos vértices da Seguridade Social, cujos preceitos são apresentados nos artigos 196 a 200, conforme destaca Minardi (2010, p. 86). O artigo 196 estabeleceu que a saúde é direito de todos e dever do Estado.

O artigo 2º da Lei 8.080/90 destaca que a saúde é direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno

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exercício, bem como estabelecer condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Sublinha, ainda, que o dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. Daí deduz-se a responsabilidade do empregador proteger e salvaguardar seus trabalhadores no meio ambiente do trabalho.

Minardi (2010, p. 92) evidencia a importância em delimitar o significado do termo saúde mental, também objeto de proteção jurídica do direito à saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a saúde mental é “um estado de bem-estar, no qual o indivíduo tem percepção do seu potencial, consegue lidar com o stress normal da vida, trabalhar de forma produtiva e frutífera, sendo capaz de contribuir para sua comunidade” (tradução nossa).

Assim é definida saúde mental pela Secretaria de Estado da Saúde do Paraná (SPP/DVSAM, 2012):

É o equilíbrio emocional entre o patrimônio interno e as exigências ou vivências externas. É a capacidade de administrar a própria vida e as suas emoções dentro de um amplo espectro de variações sem, contudo perder o valor do real e do precioso. É ser capaz de ser sujeito de suas próprias ações sem perder a noção de tempo e espaço. É buscar viver a vida na sua plenitude máxima, respeitando o legal e o outro. Saúde mental é estar de bem consigo e com os outros. Aceitar as exigências da vida. Saber lidar com as boas emoções e também com as desagradáveis. [...]

Com toda a proteção ao direito à saúde prevista no ordenamento jurídico, o trabalhador encontra respaldo para tutela de sua saúde física e mental em seu ambiente de trabalho. E o empregador encontra-se obrigado a proporcionar essa proteção jurídica, tendo em vista que a proteção à saúde é dever do Estado e de toda coletividade. Temos que a proteção ao meio ambiente de trabalho é importante, como destaca Oliveira (1996, p. 104-105), pois é no posto de trabalho que ocorre a confluência de riscos e agressões à saúde psicofísica do trabalhador.

Cumpre discorrer sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas e, para tanto, necessário se faz expor as correntes doutrinárias sobre o tema, o que passamos a fazer.

Apesar de a Constituição Federal estabelecer que as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, a mesma não dispõe expressamente sobre a vinculação dessas normas a terceiros, gerando dúvidas sobre a possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, como na relação de emprego, por exemplo, como observa Minardi (2010, p. 92).

Sarlet (2010, p. 282) defende que as normas de direitos e garantias fundamentais conferem vinculação a elas de todos os órgãos públicos e

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particulares, de modo que os primeiros estão obrigados a aplicá-los e, os segundos, a cumpri-los, independente de qualquer ato legislativo ou administrativo.

O Brasil adota a corrente da eficácia direta ou imediata nas relações privadas, que reconhece a ampla oponibilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas, eis que não é apenas o Estado o agente capaz de violar tais direitos. Deste modo, para que os direitos fundamentais sejam aplicados em sua plenitude, é imprescindível que vinculem as relações privadas.

Na visão de Sarmento (2006, p. 245), é necessário expandir a incidência dos direitos fundamentais para todas as esferas da vida humana. Caso contrário, a proteção à dignidade da pessoa humana permaneceria incompleta.

Tendo em vista a corrente adotada pelo Brasil, o empregador, como particular, também tem obrigação de respeitar e fazer valer os direitos fundamentais de seus empregados, dentre eles, o direito a um meio ambiente de trabalho equilibrado e sadio, eis que decorrem do princípio da dignidade da pessoa humana.

3 RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR

A responsabilidade civil é base fundamental do Direito como regulação das relações entre os homens. (MELO, 2010, p. 239). No Brasil, a responsabilidade civil essencialmente funda-se na culpa. Ou seja, o agente só será responsabilizado se agir com culpa (em sentido amplo), devendo esta ser comprovada pela vítima. Porém, ante a dificuldade da comprovação da culpa do autor do dano, tornou-se comum que vítimas não alcançassem judicialmente indenização pelas lesões sofridas, fazendo surgir novas teorias que buscassem dar maior proteção aos ofendidos.

A principal delas é a teoria do risco, que tem por escopo atender situações em que a aplicação da teoria tradicional revela-se insuficiente para assegurar justa reparação às vítimas. É, pois, a denominada teoria objetiva, que teve como primeiros beneficiários as vítimas de acidentes de trabalho. O patrão passa a indenizar o empregado não em razão de ato culposo, mas sim, por ser dono de um negócio, assumindo todos os seus riscos.

A responsabilidade civil objetiva funda-se nos princípios de equidade, justiça e moralidade, razão pela qual aquele que obtém lucro ou visa à sua obtenção com determinada atividade, deve responder pelos riscos dela advindos.

Diniz (2011, p. 50) conceitua responsabilidade civil como

[...] a aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros, em razão de ato por ela mesma praticado, por pessoa por quem ela responde, por alguma coisa a ela pertencente ou de simples imposição legal. Definição esta que guarda,

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em sua estrutura, a ideia de culpa quando se cogita da existência de ilícito (responsabilidade subjetiva) e a do risco, da responsabilidade sem culpa (responsabilidade objetiva).

Quanto à finalidade, de acordo com Diniz (2011, p. 19), cada atentado sofrido pelo homem quanto à sua pessoa ou seu patrimônio, constitui desequilíbrio de ordem moral ou patrimonial que necessita solução, pois o direito não tolera que ofensas fiquem sem reparação.

Melo (2010, p. 235) entende que a finalidade da responsabilidade civil é dupla: de sanção e reparação. Visa castigar o ofensor por não ter evitado a lesão e desmotivá-lo a repetir a conduta lesiva. Preferencialmente, a reparação do dano deve ocorrer mediante o retorno das coisas ao estado anterior ao evento danoso. Não sendo possível, a reparação deve consistir no pagamento de indenização em valor equivalente ao bem material. No caso de dano não patrimonial, impõe-se valor compensatório do bem violado, como o dano moral.

Para Melo (2010, p. 236), o objetivo da responsabilidade civil é obrigar o causador do dano a prevenir a ocorrência de atos prejudiciais aos direitos de outrem, dado o alto custo que será arcado com sua reparação. Para o meio ambiente do trabalho e a saúde do trabalhador, a prevenção de danos é muito mais importante que a sua reparação, visto que, tratando-se de saúde, muitas vezes os danos podem ser irreparáveis.

A responsabilidade civil brasileira possui duas modalidades: a subjetiva, baseada na culpa do agente, e a objetiva, que independe de culpa.

Na modalidade subjetiva, o fundamento da obrigação de reparar é a culpa do agente. Assim sendo, não havendo culpa – ou se essa não for demonstrada – afasta-se a ideia de responsabilidade, ficando a vítima com os prejuízos decorrentes do ato, de acordo com Melo (2010, p. 240). “Dentro desta concepção, a responsabilidade do causador do dano só se configura se agiu com dolo ou culpa” (GONÇALVES, 2009, p. 30).

O Código Civil brasileiro, em seu artigo 186, instituiu o dolo e a culpa como fundamentos para a obrigação de reparar o dano, declarando que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.

Melo (2010, p. 234-244) destaca quatro pressupostos da responsabilidade civil subjetiva: a) ação ou omissão do agente; b) culpa ou dolo do agente; c) relação de causalidade entre ato e dano; e d) o dano experimentado pela vítima. Tais pressupostos são acolhidos pela combinação dos artigos 186 e 927 do Código Civil.

Cumpre ressaltar que nas hipóteses de reconhecimento da responsabilidade objetiva, o segundo elemento – culpa ou dolo – não existe, restando como pressupostos: a) ação ou omissão; b) nexo de causalidade; e c) dano. A culpa é presumida pela lei, de acordo com Melo (2010, p. 244).

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Cumpre delimitar: ação constitui ato positivo do agente; omissão consiste na ausência de ato que incumbia a alguém praticar. De acordo com Diniz (2011, p. 56-57), a ação, fato gerador da responsabilidade, poderá ser ilícita ou lícita. A responsabilidade decorrente de ato ilícito baseia-se na ideia de culpa, e a responsabilidade sem culpa (objetiva) funda-se no risco.

A questão da culpa do agente é de debate obrigatório.Para Melo (2010, p. 245), como regra geral da modalidade subjetiva,

“só há falar em reparação do dano causado quando o ato do agente tenha sido praticado mediante dolo ou culpa, devidamente comprovado pela vítima”. No trilho de seus ensinamentos, explica que a culpa no sentido estrito consiste em ação não deliberada do agente que não visa causar prejuízo à vítima, porém, pela sua atitude negligente, de imprudência ou de imperícia, resulta em dano. Em outras palavras, a culpa é a inexecução de um dever que o agente podia prever e evitar, mas não o fez, motivando indenizar a vítima.

Quanto ao dolo, o mesmo jurista dispõe que ele ocorre quando o agente pratica ato com intenção deliberada de cometer certa infração, constituindo-se em violação consciente e intencional do dever legal ou contratual (MELO, 2010, p. 245).

Rizzardo (2009, p. 2-3) destaca que dolo é a voluntariedade da conduta e ocorre nos casos em que o agente deseja o resultado ou assume os riscos de produzi-lo, nutrindo a consciência de antijuridicidade. Destaca que a ação humana eivada de culpa ou dolo denomina-se ato ilícito, pois afronta a ordem jurídica, gerando a obrigação de responsabilização para quem o causou (RIZZARDO, 2009, p. 28).

Gonçalves (2009, p. 296) dispõe que a obrigação de indenizar não existe, em regra, só porque o agente causador do dano procedeu objetivamente mal; é essencial que ele tenha agido com culpa, como dispõe o artigo 186 do Código Civil.

Necessário, por igual, a análise da relação de causalidade.Na acepção de Melo (2010, p. 246), causalidade “é a relação de causa e

efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano resultante. Sem ela não existe a obrigação de indenizar”. É o vínculo existente entre o ato ou fato ilícito e o dano, cuja demonstração deve ser realizada pela vítima, sob pena de não ser indenizada.

Segundo Diniz (2011, p. 127), a relação de causalidade, também chamada de nexo causal, é o vínculo entre o dano e a ação lesiva, de modo que o fato lesivo deverá ser oriundo da ação, diretamente ou como sua consequência previsível.

Para Melo (2010, p. 246), a causalidade diz respeito ao comportamento do agente como causa do dano. Logo, há ausência de liame entre o ato e dano nas hipóteses de caso fortuito, força maior ou culpa exclusiva da vítima, o que afasta a obrigação de indenizar. Com relação a casos fortuitos ou por força maior, não há que se falar em responsabilidade em razão desses fatos eliminarem a culpabilidade, por serem inevitáveis.

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Outra reflexão necessária é relativa ao dano.Reis (2002, p. 6-7) entende que nas relações sociais, o respeito ao próximo

e ao seu patrimônio propicia uma convivência harmônica entre as pessoas. Este respeito deve se basear no dever de observância aos direitos de cada um, a fim de evitar a ocorrência de danos.

Diniz (2011, p. 80) define dano como a “lesão (diminuição ou destruição) que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral”.

Casillo (1994, p. 50-51) entende que o dano é o “resultado da ofensa feita por terceiro a um direito, patrimonial ou não, que confere ao ofendido, como consequência, a pretensão a uma indenização”. Dispõe, ainda, que a abrangência do conceito de dano toma maior importância se a lesão for contra a pessoa humana.

Dallegrave Neto (2005, p. 102, 146) entende que o dano é patrimonial ou material se reflete sobre o patrimônio da vítima, exigindo prova concreta do prejuízo; o dano é extrapatrimonial se implica violação de direito geral de personalidade, não exigindo prova do prejuízo moral, que é presumido pela violação em si.

O dano patrimonial deve ser indenizado para recompor o patrimônio perdido ou desfalcado da vítima. Já o dano moral é indenizável não com uma quantificação patrimonial, que é impossível, mas com o objetivo duplo de impor sanção ao agressor para que não repita determinado ato e de provocar na vítima uma sensação de prazer para compensar a dor provocada pelo ato danoso, conforme Melo (2010, p. 247).

Com relação a dano moral, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu que “basta a perturbação feita pelo ato ilícito nas relações psíquicas, na tranquilidade, nos sentimentos, nos afetos de uma pessoa, para produzir uma diminuição no gozo do respectivo direito” (REsp nº 608.918-RS, da 1ª Turma, j. em 20.05.2004).

Casillo (1994, p. 67-69) identifica dano patrimonial como aquele que reflete no patrimônio da vítima, mesmo sem repercussão positiva no patrimônio do agente causador.

Quanto a dano extrapatrimonial, referido autor avalia que

[...] identifica-se como sendo aquela ofensa a um direito, uma lesão que não traz uma repercussão no patrimônio da vítima, no sentido clássico de material, podendo ou não repercutir no do ofensor. [...] O dano extrapatrimonial pode revelar-se sob diversas formas, como, por exemplo, o dano moral, através da ofensa à honra da vítima; o dano físico, que pode exteriorizar-se ou por uma ofensa ao corpo, atingindo membros,

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órgãos, função, sentido etc, ou simplesmente pela dor; dano psíquico, que pode revelar-se através de uma depressão, de um constrangimento, de um abalo nas atividades mentais etc.

Cumpre destacar o conceito de dano coletivo proposto por Rizzardo (2009, p. 24), como aquele que prejudica várias pessoas, havendo vínculo de interesses ou de proximidade de classes, como nas profissões, associações e vizinhanças. Este tipo de dano pode ocorrer no ambiente de trabalho, se afetar diversos trabalhadores.

O dano à saúde mental do trabalhador decorrente do desequilíbrio do meio ambiente de trabalho é extrapatrimonial, pois atinge a integridade psíquica.

A modalidade objetiva da responsabilidade civil funda-se em um princípio de equidade, existente desde o direito romano: “aquele que lucra com uma situação deve responder pelo risco ou pelas desvantagens dela resultantes” (DINIZ, 2011, p. 68).

A responsabilidade objetiva, como sublinha Melo (2010, p. 240-241), independe da comprovação de culpa (em sentido amplo) pelo agente. Basta que se demonstre o dano causado e a relação de causa e efeito entre este e o ato praticado pelo agente. Baseia-se no risco da atividade e fundamenta-se na teoria do risco, nas modalidades risco integral, risco profissional, risco proveito e risco criado.

A teoria do risco está prevista no parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, justificando a responsabilidade do agente sem aferição de dolo ou culpa. Segundo Melo (2010, p. 241), a disposição deste artigo está causando discussões sobre o alcance da expressão “atividade de risco”, visto que a lei não lista quais são essas atividades.

Gonçalves (2009, p. 10) entende que na teoria do risco se subsume a ideia do exercício da atividade perigosa como fundamento da responsabilidade civil, o exercício de atividade que possa oferecer algum perigo representa um risco, que o agente assume, de ser obrigado a ressarcir os danos que venham resultar a terceiros dessa atividade.

Melo (2010, p. 236) explica que, via de regra, a responsabilidade civil decorre da prática de um ato ilícito mediante a violação da ordem jurídica constituída, com consequências sociais. Mas existem casos em que a responsabilidade civil ocorre diante de atos considerados juridicamente lícitos, porém, tem como fundamento o dano decorrente do risco criado com determinada atividade.

De acordo com Gonçalves (2009, p. 30), a modalidade objetiva tem como postulado que todo dano é indenizável e deve ser reparado por quem a ele

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se liga por nexo de causalidade, independentemente de culpa, a qual, em alguns casos, é presumida pela lei. Quando presumida, inverte-se o ônus da prova e o autor da ação só precisa provar a ação ou omissão e o dano daí resultante.

De acordo com Melo (2010, p. 249), a teoria do risco representou o mais importante avanço da modalidade objetiva. O direito brasileiro baseia-se na teoria do risco na modalidade risco criado, que preconiza que quem empreende alguma atividade – lucrativa ou não – assume os riscos dela decorrentes, respondendo pelos danos causados a outrem, salvo as excludentes previstas em lei, como culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou de força maior.

Essa teoria procura colocar a vítima em igualdade de condições em que se encontram os novos empreendimentos, fundamentando-se nos princípios de justiça, igualdade, solidariedade e socialização do Direito, segundo Melo (2010, p. 249-251).

A CLT consagra, em seu artigo 2º, a responsabilidade objetiva do empregador, baseado na hipossuficiência do trabalhador. “Trata-se da teoria do risco de quem busca um proveito da atividade empreendida, mesmo que no final não alcance resultados positivos desejados”. (MELO, 2010, p. 247). Baseando-se neste artigo, Melo (2010, p. 264-265), defende que o empregador tem a obrigação de manter incólume a integridade física e psíquica dos trabalhadores a ele ligados. Afinal, assume os riscos de sua atividade econômica.

Acerca de fundamentos e critérios, necessário expor que, segundo Melo (2010, p. 257-258), a imputação objetiva amplia a área de abrangência das reparações porque propicia indenização tanto àqueles que têm condições de provar a culpa do agente, quanto àqueles que não têm condições de fazê-lo por insuficiência de meios ou por terem sido prejudicados em razão das inúmeras atividades perigosas originadas pelo desenvolvimento industrial e tecnológico.

A responsabilidade civil objetiva não se presume; decorre de textos expressos de lei ou de atividades de risco desenvolvida normalmente pelo agente do dano, explana Melo (2010, p. 258). Logo, seus critérios são a lei e as atividades de risco.

Quanto à lei, cabe ao aplicador do Direito analisar o dispositivo legal que impõe responsabilidade pela reparação. De acordo com Melo (2010, p. 258), o critério para identificação da modalidade de responsabilidade reside na identificação no texto legal do termo “culpa”. Se este não consta da norma como fundamento de reparar, a responsabilidade é objetiva. Como exemplo, cita-se o § 3º do artigo 225 da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade objetiva do poluidor, sem se referir à culpa ou dolo como fundamento do dever de reparação.

Há situações em que o legislador faz questão de mencionar a expressão “sem culpa”, ao estabelecer a responsabilização do agente. Como exemplo, cita-se o § 1º do artigo 14 da Lei 6.938/81, que trata da responsabilidade por

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danos ambientais, “independentemente da existência de culpa”. O legislador deixa evidente que a conduta do agente é irrelevante para caracterizar a responsabilidade.

Para delimitar o que seja um meio ambiente desequilibrado, necessário conhecer o que narra Cataldi (2002, p. 21-22), de forma concisa, sobre as mudanças que ocorreram na economia nas últimas décadas e suas consequências no mercado de trabalho, destacando a globalização como sua principal causa.

A globalização incentivou a liberalização de políticas de comércio e investimento em diversos países; permitiu uma mobilidade grande de bens, serviços e fluxos de capital entre os países; deu início a uma importante intensificação da competição internacional; desencadeou uma busca da eficiência máxima por parte das empresas, deixando-as expostas a uma pressão competitiva muito mais forte. Consequentemente, os trabalhadores se submeteram a essa nova realidade, em razão da exigência de maior produtividade e da necessidade de manter o emprego, passando por um aumento de sua carga de trabalho e adaptando-se a fazer mais com um custo menor.

As adaptações suportadas pelos trabalhadores repercutiram, e ainda repercutem, em sua saúde. Segundo Cataldi (2002, p. 22), trabalhadores estressados têm maiores dificuldades em se integrar ao mercado de trabalho, por vezes até renunciando a seus direitos, dentre eles o direito a saúde. Nesse cenário, para o aumento da produção, as empresas estão utilizando inescrupulosamente o assédio moral organizacional e outras técnicas de coação de seus empregados.

O assédio moral faz parte das relações humanas desde os primórdios da história, como destaca Silva (2007, p. 83), por ser uma forma de coação sustentada em desigualdade social ou poder autoritário.

Nesse tipo de relação enquadram-se as relações de trabalho, ambiente propício para a prática de assédio moral. Para Silva (2002, p. 83), tal situação ocorre devido à competitividade desenfreada no mercado de trabalho e, principalmente, à exigência de cumprimento de metas sem critério de bom senso ou razoabilidade, que desencadeia, como consequência, um processo de desajuste na vida dos trabalhadores, que repercute na sua saúde física e mental.

Cataldi (2002, p. 84) conceitua assédio moral como a exposição dos trabalhadores à situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.

Araújo (2007, 213-214) explana que assédio moral organizacional – também denominado straining ou gestão por stress – é a prática sistemática, reiterada e frequente de variadas condutas abusivas, sutis ou explícitas, contra vítimas dentro do ambiente de trabalho, que, por meio de constrangimento e humilhação, visa controlar a subjetividade dos trabalhadores.

Romano (2012) descreve que assédio moral organizacional é uma

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técnica gerencial por meio da qual os empregados são levados ao limite de sua produtividade, em virtude de ameaças, humilhações e ridicularização em público. Trata-se de prática que objetiva incrementar lucros às custas da dignidade dos trabalhadores.

Guedes (2007) expõe que, em casos de gestão por metas, um grupo de trabalhadores ou todos os trabalhadores de uma organização, indistintamente, são pressionados para produzir, atingir metas e bater recordes, sob intensa ameaça de perder o emprego ou de sofrer um castigo humilhante.

Outra prática realizada pelas empresas é a denominada gestão por injúria, semelhante à gestão por stress, que é descrita por Marie-France Hirigoyen, citada por Rebouças (2006, p. 182) como “o tipo de comportamento despótico de certos administradores, despreparados, que submetem os empregados a uma pressão terrível ou os tratam com violência, injuriando-os e insultando-os, com total falta de respeito”.

Cumpre enfatizar que tanto a gestão por stress quanto a gestão por injúria impõem aos trabalhadores o estabelecimento de metas a serem cumpridas. O estabelecimento de metas é assunto que merece destaque.

No artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho encontra-se previsto o poder de direção do empregador, entendido por Cataldi (2002, p. 20) como a “forma como o empregador define como serão desenvolvidas as atividades do empregado, decorrentes do contrato de trabalho”. Compreende o poder de organizar as atividades, controlar e disciplinar o trabalho, de acordo com os fins do empreendimento. Ressalta-se que esse poder não é ilimitado; a lei o limita. Logo, dentro do poder diretivo do empregador encontra-se a possibilidade de imposição de metas a serem cumpridas pelos trabalhadores. Porém, essas metas devem se fundamentar no bom senso e na possibilidade de serem realizadas, respeitando-se os limites físicos e psíquicos dos trabalhadores.

Metas impossíveis de serem cumpridas afrontam a dignidade da pessoa humana e, muitas vezes, ocasionam um desgaste psicológico intenso nos trabalhadores, que, por receio de represálias, esforçam-se ao máximo para cumpri-las. Tais metas podem, inclusive, gerar frustação ao trabalhador ao verificar que não as atingiu, apesar de todo o esforço a que se submeteu para alcançá-las.

A prática de assédio moral organizacional e de outros métodos degradantes resultam em afronta aos direitos fundamentais dos trabalhadores, bem como em um ambiente de trabalho desequilibrado, gerando danos à saúde mental do trabalhador, que fica exposto, vulnerável aos constrangimentos realizados pelo empregador ou seu preposto. Esse ambiente desestabiliza a saúde física e mental do trabalhador, comprometendo sua qualidade de vida dentro e fora da empresa.

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4 ENFERMIDADES DECORRENTES DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DESE-QUILIBRADO

Cumpre ressaltar que cada pessoa apresenta uma reação diferente às influências externas; algumas adoecem enquanto outras não têm sua saúde afetada. O presente trabalho destina-se a analisar somente os trabalhadores que adoecem em decorrência do ambiente de trabalho não sadio, bem como apenas aqueles que apresentam distúrbios psíquicos.

A legislação brasileira dispõe que as doenças ocupacionais são divididas em doenças profissionais e doenças do trabalho, ambas equiparadas a acidentes de trabalho, para fins de concessão de benefícios previdenciários.

De acordo com o artigo 20, inciso I, da Lei 8.231/91, entende-se por doença profissional a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social.

O inciso II do artigo 20 da referida Lei define doença do trabalho a doença adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da aludida relação.

Segundo Melo (2010, p. 330), as principais causas das doenças ocupacionais são o desequilíbrio e a degradação do meio ambiente do trabalho, que crescem diariamente devido às mudanças no mundo do trabalho decorrentes do avanço tecnológico e econômico.

A respeito das relações humanas no meio ambiente de trabalho, também afetadas pelas mudanças, Rocha (2002, p. 138) defende a importância de se analisar elementos psicológicos como a pressão para desempenho da atividade, que desencadeia a depressão e distúrbios emocionais.

A seguir, serão analisadas de forma sucinta algumas enfermidades psíquicas decorrentes do desequilíbrio do meio ambiente de trabalho.

StressO avanço tecnológico e a era digital trouxeram consequências negativas para

a saúde dos trabalhadores, que tiveram que adaptar os seus ritmos biológicos à rapidez dos computadores, bem como a um novo ritmo de produção. Essa adaptação resultou em desequilíbrio em sua saúde física e mental (CATALDI, 2002, p. 28).

De acordo com Cataldi (2002, p. 47-48), stress pode ser entendido como o processo de tensão diante de uma situação de desafio por ameaça ou conquista. Tudo o que gera stress é chamado de fenômenos estressores, que são capazes de disparar no organismo uma série de reações por meio do sistema nervoso.

Cataldi (2002, p. 48) cita o conceito de stress elaborado pelo Professor Hans Seyle, diretor do Instituto de Medicina Experimental e Cirurgia da

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Universidade de Montreal – Canadá: “é o conjunto de reações que um organismo desenvolve ao ser submetido a uma situação que exige esforço de adaptação”.

Segundo Rossi (2005, p. XVII), “mais do que um estado de espírito, o stress é a reação do indivíduo a uma adaptação e pode causar um conjunto de sintomas – físicos, psicológicos e comportamentais”, sendo necessário para mobilizar as pessoas, um estímulo para alcançar os objetivos. Todavia, seu excesso mina as defesas do corpo e afeta a saúde.

Cataldi (2002, p. 43) defende que o meio ambiente de trabalho deve garantir o direto à saúde, sendo imprescindível a observância de normas de higiene, segurança e medicina do trabalho. Para a referida autora, o desgaste a que as pessoas são submetidas nos ambientes e nas relações de trabalho é um dos fatores determinantes nas doenças adquiridas pelos trabalhadores (CATALDI, 2002, p. 49-50).

Rossi (2005, p. 9-10) dispõe que estudos realizados até 2005 indicaram que o ambiente de trabalho, a estrutura corporativa e diversas outras interações entre emprego e empregado contribuiram para os casos individuais de tensão e stress. Os efeitos do stress ocupacional, dentre eles a ansiedade, a depressão e a baixa autoestima, são consequências de uma sobrecarga ambiental que impõe uma demanda sobre o indivíduo, muitas vezes insuportável.

Para França e Rodrigues (2002, p. 34, 41), o stress relacionado ao trabalho é definido como

[...] situações em que a pessoa percebe seu ambiente de trabalho como ameaçador e suas necessidades de realização pessoal e profissional e/ou sua saúde física ou mental, prejudicando a interação desta com o trabalho e com o ambiente de trabalho, à medida que esse ambiente contém demandas excessivas a ela, ou que ela não contém recursos adequados para enfrentar tais situações. [...] O stress consta do Anexo II do Decreto 3.048/99, caracterizado como

doença ocupacional, garantido a ele equiparação a acidente de trabalho.

Síndrome de BurnoutA Síndrome de Burnout é um tipo de stress profissional, no sentido

de “preço que o profissional paga por sua dedicação ao cuidar de outras pessoas ou de sua luta para alcançar uma grande realização”, conforme define Cataldi (2002, p. 50). Esta síndrome é caracterizada pela: a) exaustão emocional, quando o trabalhador se sente esgotado, com pouca energia para a realização do trabalho; b) despersonalização, através do desenvolvimento do distanciamento emocional, em que o trabalhador torna-se uma pessoa

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fria, insensível e perde a empatia com os outros; e c) redução da realização pessoal e profissional, podendo acarretar queda da autoestima e depressão. Indiscutível, pois, que a Síndrome de Burnout acarreta redução na qualidade de trabalho e na vida social do indivíduo.

Maslach (2005, p. 41) entende que o Burnout “é uma síndrome psicológica que envolve uma reação prolongada aos estressores interpessoais crônicos”, cujas dimensões são exaustão avassaladora (física e mental), sensações de ceticismo e desligamento do trabalho, bem como sensação de ineficácia e falta de realização.

Para Maslach (2005, p. 42-45), “ao contrário das reações agudas ao stress, que se desenvolvem em resposta a incidentes críticos específicos, o Burnout é uma reação cumulativa a estressores ocupacionais contínuos”. É um fator de risco para problemas de saúde mental, podendo ter um impacto significativo no trabalho e na vida familiar do trabalhador afetado.

A Síndrome de Burnout pode ser desencadeada pela aceleração do ritmo de produção, maior carga de trabalho, uso de coação e intimidação pelo empregador para que o trabalhador se submeta às práticas estressantes de produção, segundo Cataldi (2002, p. 50).

Maslach (2005, p. 53-54) explica que o Burnout não é um problema das pessoas, mas do meio ambiente de trabalho. A estrutura e o funcionamento do local de trabalho moldam a forma pela qual as pessoas interagem entre si e como realizam suas atividades.

A síndrome de Burnout está prevista no Anexo II do Decreto 3.048/99, ou seja, é considerada doença ocupacional.

DepressãoA definição de depressão, de acordo com o Dicionário Priberam da

Língua Portuguesa, é o estado patológico de sofrimento psíquico assinalado por um abaixamento do sentimento de valor pessoal, por pessimismo e por uma inapetência face à vida; perturbação mental caracterizada pela ansiedade e pela melancolia.

Garcia (2005, p. 86) aduz que a depressão, considerada um estado psicológico negativo, está cada vez mais atingindo as pessoas em razão das crescentes dificuldades sócio-econômicas e da complexidade do convívio social.

Teixeira (2009, p. 527) alega que estudos da psicologia no campo da saúde mental do trabalhador resultaram no consenso de que as condições e o meio ambiente do trabalho podem ser responsáveis pelo aparecimento da depressão.

Conforme Teixeira (2009, p. 530), a depressão pode evoluir de um estado de stress, de fatores genéticos, biológicos e psicossociais. Destaca que o ambiente de trabalho, dependendo de suas condições, pode contribuir para o desencadeamento ou agravamento da doença. Continua (TEIXEIRA, 2009, p. 534-536):

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As decepções sucessivas em situações de trabalho, geradas pelo excesso de competição, implicando ameaça permanente de perda de função, perda do posto de trabalho e demissão pode determinar o acometimento da enfermidade, apontando ainda como principais fatores de risco: ausência de pausas de trabalho; tarefas repetitivas; pressão das chefias e clientes; falta de perspectiva de ascensão. [...] Vivemos numa época em que a tecnologia e a automação criam uma verdadeira revolução no mercado de trabalho. Exatamente, neste contexto, a reestruturação produtiva traz no seu bojo, entre outros efeitos, crescente competitividade e ansiedade entre os trabalhadores, emergindo um intenso sofrimento psíquico que pode ter como consequência o acometimento da depressão.

Como se denota da leitura do Anexo II do Decreto 3.048/99, a depressão descrita decorre da exposição a algumas substâncias tóxicas. Todavia, podemos enquadrá-la também como doença ocupacional resultante “das condições especiais em que o trabalho é executado e com ele se relaciona diretamente”, conforme artigo 20 § 2º da Lei 8.213/81.

Segundo Garcia (2005, p. 89), a doença ocupacional equiparada a acidente de trabalho também deve ter como característica o nexo causal entre a enfermidade e o trabalho. Porém, a demonstração de que a doença – no caso, a depressão – decorreu das condições especiais em que o trabalho foi desenvolvido é difícil, pois nem mesmo a psicologia, a medicina e a psiquiatria conseguem encontrar razões específicas para o desenvolvimento da depressão.

A demonstração do nexo causal é possível e necessária por meio da realização de perícia médica. Caso comprovado o nexo causal, a depressão será considerada doença ocupacional, tendo a vítima o direito de reparação do dano sofrido. E o empregador será responsabilizado por ter criado e mantido um ambiente de trabalho desequilibrado, que compromete a qualidade de vida dos trabalhadores.

5 RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS À SAÚDE DO TRABALHADOR EM DECORRÊNCIA DA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

Para Melo (2010, p. 273), dano significa um mal ou ofensa que uma pessoa causa a outrem, resultando em uma deterioração da coisa ou prejuízo do patrimônio.

De acordo com Leite (2002, p. 108):

Dano ambiental deve ser compreendido como toda lesão intolerável causada por qualquer ação humana – culposa ou não – ao meio ambiente, diretamente, como macrobem de interesse da coletividade, em uma

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concepção totalizante, e indiretamente, a terceiros, tendo e vista interesses próprios e individualizações e que refletem no macrobem.

As ofensas ao meio ambiente provocam danos patrimoniais e extrapatrimoniais, coletivos e individuais, como dispõe Melo (2010, p. 273). Os danos patrimoniais são de fácil valoração econômica. No Direito Ambiental, correspondem à recuperação do ambiente agredido ou, não sendo possível, correspondem a uma reparação pecuniária.

Com relação ao meio ambiente do trabalho, Melo (2010, p. 273) expõe que: [...] busca-se a adequação dos locais de trabalho mediante a eliminação dos riscos à saúde e integridade física e psíquica dos trabalhadores, o que, em regra, é possível ex nunc, mediante adoção de medidas coletivas e individuais. Quanto aos prejuízos ex tunc, especialmente em relação à saúde do trabalhador, não há, regra geral, possibilidade de reconstituição, uma vez que já ocorreu o acidente ou a doença ocupacional, ou, então, esta se encontra incubada no organismo da pessoa, somente aguardando o momento da eclosão, na hipótese vertente, busca-se a reparação por meio de uma indenização de cunho individual por danos emergentes (material, moral e estético) e lucros cessantes (aquilo que deixou ou deixará o trabalhador de auferir em razão da lesão à saúde e integridade física e psíquica).Melo (2010, p. 273) entende que a natureza da reparação patrimonial do

dano ambiental é coletiva, pois atinge uma determinada parcela da população. Porém, de forma reflexa, pode resultar em reparação individual, como é o caso de agressão à saúde do trabalhador decorrente do dano ao meio ambiente do trabalho. O referido autor dispõe que o dano também pode ser de ordem imaterial, moral.

O dano moral ambiental, segundo Melo (2010, p. 273)

[...] é a injusta lesão a interesses metaindividuais ambientais socialmente relevantes para a coletividade (grupos, classes, categorias ou a coletividade difusamente considerada), cuja degradação atinge a esfera moral dessa coletividade de pessoas, causando danos diretos ao meio ambiente ou indiretamente às pessoas, mediante sentimento de angústia, repúdio, vergonha, insatisfação, ou outro sofrimento psíquico ou mesmo físico, como nas lesões à saúde.

Melo (2010, p. 271) entende que o dano ambiental é diferente do dano clássico, pois, para sua caracterização, independe do elemento anímico da

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conduta, ou seja, independe de culpa ou dolo. Não importa se a conduta é lícita ou ilícita; a responsabilidade será objetiva, fundada no risco da atividade, conforme artigo 225, § 3º da Constituição Federal e artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81.

Diante das exposições até aqui realizadas, com relação ao dano ambiental genericamente considerado, observa-se que a responsabilidade civil é de natureza objetiva. Para que exista a obrigação de reparar os danos causados ao meio ambiente, não se exige qualquer elemento subjetivo; basta que se configure a ação ou omissão do agente, o dano e a relação de causalidade.

De acordo com o artigo 225, § 3º da Constituição Federal e artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81, a responsabilidade objetiva decorre da existência de ato comissivo ou omissivo causador de danos ao meio ambiente e a terceiros, embora lícito ou legal.

Os prejuízos causados pelos danos ao meio ambiente de trabalho atingem a integridade física, a saúde e a vida dos trabalhadores, justificando, por meio de interpretação teleológica e sistemática, o reconhecimento da responsabilidade objetiva. Não somente por esse motivo, mas também em respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (MELO, 2010, p. 332).

Como se depreende das exposições acima, as condutas de humilhação, repreensão e exigência de metas difíceis ou impossíveis de serem cumpridas, acompanhadas de coação e terror psicológico, são práticas que degradam o meio ambiente do trabalho, tornando-o intolerável. Este meio é propício para a manifestação de doenças psíquicas e consequente adoecimento de trabalhadores, caracterizando poluição do meio ambiente do trabalho.

Nesta esteira de raciocínio, Rocha (1997, p. 67) dispõe que, ocorrendo doença ocupacional decorrente de poluição no ambiente de trabalho, a regra aplicada deve ser da responsabilidade objetiva, condizente com a sistemática ambiental, pois se enquadra na hipótese do artigo 225, § 3º da Constituição Federal, que não exige qualquer conduta do agente na responsabilização, por tratar-se de violação ao direito a meio ambiente de trabalho ecologicamente equilibrado e sadio.

O mesmo entendimento tem Melo (2010, p. 333), considerando que nos casos de doenças ocupacionais – profissionais ou do trabalho – decorrentes dos danos ao meio ambiente do trabalho, a responsabilidade pelos prejuízos à saúde do trabalhador é objetiva, pois o meio ambiente do trabalho integra o meio ambiente geral. Daí decorre que toda e qualquer lesão decorrente dos desequilíbrios ambientais atraem a aplicação do artigo 225, § 3º, da Constituição Federal e do artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81.

6 CONCLUSÕES

O meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, possui amparo constitucional,

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devendo ser protegido e preservado não só pelo Poder Público, mas também pela coletividade.

No conceito de meio ambiente, inclui-se o meio ambiente de trabalho, local em que os trabalhadores permanecem grande parte de suas vidas, criando vínculos de amizade e convivência. Por este motivo, o ambiente de trabalho deve ser sadio, de modo a resguardar a saúde física e mental dos trabalhadores. Cabe ao empregador a manutenção desse equilíbrio.

O direito ao trabalho, à saúde e a um meio ambiente de trabalho equilibrado, corolários do direito à vida, são direitos fundamentais, que impõem certas prestações ao Estado. Todavia, o respeito a esses direitos não vincula somente o Estado, podendo ser estendido aos particulares, pessoas físicas ou jurídicas.

Quanto às condições indispensáveis ao pleno exercício do direito à saúde, nota-se que o ordenamento jurídico dispõe que o dever do Estado em resguardá-lo não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade.

A efetivação dos direitos fundamentais ocorre por meio do princípio da dignidade da pessoa humana, considerado o princípio primordial do ordenamento jurídico. Este princípio reconhece a ampla oponibilidade dos direitos fundamentais nas relações privadas – dentre elas, as relações de trabalho. Logo, cabe ao empregador proteger os direitos fundamentais de seus empregados no meio ambiente de trabalho.

O ideal seria que o meio ambiente do trabalho fosse saudável para os trabalhadores. Porém, como nem sempre isso é possível, o ordenamento jurídico prevê a responsabilização do agente que causa danos a este ambiente.

O princípio do poluidor-pagador, previsto no § 3º do artigo 225 da Constituição Federal, é o princípio ambiental que melhor se encaixa à responsabilização do empregador pelos danos ocorridos ao meio ambiente de trabalho. Referido princípio determina que aquele que atua de qualquer modo no meio ambiente, tem o dever de arcar com os custos de prevenção para que os danos sejam evitados. Ocorrendo o dano, o poluidor deve arcar com os custos de sua reparação.

Após analisar as modalidades de responsabilidade civil e suas características, bem como as enfermidades psíquicas que decorrem de um meio ambiente de trabalho desequilibrado – atingindo a integridade mental do trabalhador –, evidencia-se que a responsabilidade aplicada ao empregador em caso de poluição ao meio ambiente de trabalho é a responsabilidade objetiva ou sem culpa.

Essa afirmação encontra respaldo no artigo 225, § 3º da Constituição Federal c/c artigo 14, § 1º da Lei 6.938/81 – artigos citados no corpo deste artigo. Trata-se, pois, de poluição causada ao meio ambiente de trabalho, que se inclui no conceito de meio ambiente geral, recebendo as proteções constitucional e legal supracitadas.

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A desconsideração e a falta de proteção a um meio ambiente de trabalho sadio constituem-se afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, normas que deveriam ser respeitadas não somente pelo seu valor legal, mas também pelo seu valor moral.

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A APLICABILIDADE DA RETALIAÇÃO CRUZADA NO SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL

DO COMÉRCIO

THE APPLICABILITY OF THE CROSS RETALIATION IN DISPUTE SETTLEMENT SYSTEM OF THE WORLD TRADE ORGANIZATION

michEl abDo zEghbi

Acadêmico do curso de direito do Centro Universitário Curitiba – UNI-CURITIBA e de Ciência Econômicas na Universidade Federal do Paraná

SanDro manSur gibran

Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996), Mes-tre em Direito Social e Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2003) e é Doutor em Direito Econômico e Socioambiental pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2009). Atualmente é professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba, também de Direito Empresarial e de Direito do Consumidor da Faculdade de Direito do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba -, de Direito Empresarial junto ao Centro de Estudos Jurí-dicos do Paraná e junto à Escola da Magistratura Federal do Paraná, além de coordenador do Curso de Pós-Graduação em Direito Empresarial do Centro Universitário Curitiba - UniCuritiba - e advogado - Roberto Fer-raz Advogados. Tem experiência na área de Direito Empresarial

RESUMO

O presente trabalho tem por escopo demonstrar qual a real efetividade do Sistema de Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio. O instituto da retaliação cruzada, como método de responsabilização internacional, será analisado à luz da disputa DS 267, conhecida como o contencioso do algodão. Sob a perspectiva brasileira, serão apresentadas as etapas do procedimento adotado na disputa. Inicialmente, será demonstrado aos leitores que a Organização Mundial do Comércio ajuda a manter o equilíbrio do sistema econômico. Para perfeito entendimento acerca do procedimento relatado, será necessário discorrer sobre características da referida instituição. Foi no decorrer das negociações, chamadas de rodadas que se desenvolveu a legislação pertinente, estrutura institucional do órgão julgador. O estudo irá situar o Brasil em um quadro econômico/político internacional.

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Palavras-Chave: Organização Mundial do Comércio; Órgão de Solução de Controvérsias; Retaliação Cruzada; método de responsabilização internacional.

ABSTRACT

The scope of this search is to demonstrate the real effectiveness of the Dispute Settlement System of the World Trade Organization. The institute’s cross-retaliation, as a method of international accountability, will be analyzed in sight of the dispute DS 267, known as the cotton dispute. Under the Brazilian perspective, will be present the steps of the procedure adopted in the dispute. Initially, it will be demonstrated that the World Trade Organization helps to keep the balance of the economic system. To perfect understanding of the reported procedure, will be necessary to discuss characteristics of that Institution. It was during negotiations, called “comerce rounds” that the legislation and institutional structure of the judging body were developed. The study will place Brazil on a international economic / political framework.

Keywords: World Trade Organization, Dispute Settlement Body; Retaliation Crusade; method of international accountability.

1 INTRODUÇÃO

Com a tendência de crescimento contínuo do comércio mundial, aumentam também as chances do surgimento das temidas crises econômicas e das disputas comerciais e políticas entre as nações.

Há pouco tempo, a maneira mais utilizada para resolver conflitos políticos entre países era a força imposta pela guerra. Um exemplo recente é a guerra comercial dos anos 30, em que muitos países adotaram medidas protecionistas para resguardar suas respectivas indústrias nacionais. Este conflito influenciou na eclosão da segunda guerra mundial.

A partir da criação do GATT61, que posteriormente redundou na criação da OMC62, o mundo passou a contar com um sistema de resolução de conflitos que ajuda a diminuir em muito, as disputas militares. A OMC ajuda a garantir um comércio livre, contribuindo assim, para a paz mundial.

Muitos países têm a equivocada visão de, que se adotarem políticas protecionistas, estariam protegendo setores de sua economia. Contudo, deve-se levar em conta, como os outros países irão reagir às tais medidas. No longo

61 “General Agreement on Tarifs and Trade” é a consolidação de acordos que normatizam o comércio mundial. 62 Organização Mundial do Comércio

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prazo, a consequência pode facilmente chegar à retaliação geral de todos, contra todos. Gerando inúmeros problemas econômicos, inclusive para o setor que inicialmente seria beneficiado. A melhor maneira de evitar esse quadro caótico é a confiança de que outros países não irão levantar suas barreiras comerciais, garantindo a essencial previsibilidade e confiança no sistema.

Os países membros da OMC são obrigados a resolver seus litígios através desta organização e não unilateralmente. Os acordos internacionais que foram assinados por todos, são ratificados em sua legislação interna.

As negociações são feitas simultaneamente com vários parceiros comerciais, sempre seguindo regras que estabelecem as políticas comerciais aceitáveis. Devido ao princípio da não discriminação, todos os membros estarão sujeitos às mesmas taxas de importações e exportações, o que torna o sistema muito mais simplificado. Se cada país fosse livre para pactuar diferentes condições para cada um de seus parceiros comerciais o processo para completar a linha de produção de uma empresa seria complicado, demorado e oneroso.

Com o princípio da não discriminação, exigido para os membros da OMC, não importa de onde vem cada um dos componentes. O procedimento é simplificado e tem seu custo reduzido, ou seja, é eficaz.

As vantagens do sistema multilateral de comércio da OMC não param por aí. A regulação efetuada por este Órgão também ajuda a diminuir o custo de vida. Com o protecionismo, as importações ficam mais caras, já que, grande parte dos bens produzidos utilizam componentes importados, o resultado é um produto final mais custoso. Quem perde é sempre o consumidor. O mesmo ocorre com o setor dos alimentos. A concessão de insumos para a agricultura eleva em muito, o preço dos alimentos. Como veremos mais adiante neste artigo, a posição de alguns países com relação aos insumos ainda não está compatível com o almejado pela OMC. A negociação nesta questão é muito complexa e atualmente ainda é alvo de debate na rodada de Doha.

Como já disposto, o livre comércio permite o aumento da troca de mercadorias. Desta forma, aumenta-se também a gama de produtos disponíveis no mercado e como consequência o rendimento proveniente deles. Com maior diversidade de produtos importados, ocorre o desenvolvimento da concorrência interna. O sucesso de um produto importado pode incentivar os produtores internos a nacionalizar a produção. Todo este crescimento gera renda, empregos e oportunidades, que melhoram o nível de vida da população.

Assim, pode-se dizer que a OMC é uma organização para a abertura do comércio. Um fórum onde os governos negociam acordos comerciais e resolvem disputas comerciais. Nesta organização os governos membros tentam resolver os problemas comerciais que enfrentam entre si. A OMC opera um sistema de regras comerciais.

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Contudo, antes de se tornar a OMC, esta organização era conhecida por GATT. Embora criado em caráter provisório, o GATT foi o único instrumento que regulou o comércio mundial de 1948 até 1995, quando a OMC foi criada. Durante esses anos os termos do acordo sofreram algumas modificações. Elas aconteceram no decorrer de oito encontros internacionais que recebem o nome de “rodadas comerciais”. Nas rodadas são apontados temas a serem discutidos no intuito de firmar acordos.

Foi a Rodada do Uruguai que oficializou criação da OMC. Após anos de intenso esforço nas negociações, finalmente, em Marrakesh, no Marrocos, foi assinado o acordo. Ele amplamente regula grande parte das demandas comerciais do mundo. Destaca-se a criação do Acordo sobre a Agricultura.

Apesar de significar um grande avanço no desenvolvimento do sistema, os acordos assinados na Rodada do Uruguai são insuficientes para resolver todas as questões. Por este motivo, eles preveem a reabertura de negociações, contudo não mais no âmbito do GATT. As questões pendentes foram incluídas na agenda de negociações da primeira rodada no âmbito da OMC, a Rodada de Doha.

2 A RODADA DE DOHA E SUAS PERSPECTIVAS

A agenda de desenvolvimento de Doha (ADD) foi lançada pelos Ministros de Comércio em Doha, capital do Catar, em novembro de 2001, quando aconteceu a primeira das conferências ministeriais. O termo final desta rodada estava previsto para 2006, contudo as negociações perduram até hoje. Após Doha, os encontros se sucederam em Cancun (México, 2003); Genebra (Suíça, 2004); Hong Kong (China, 2005); Genebra (Suíça, 2009) e, novamente, Genebra (Suíça, 2011). O próximo encontro está previsto para a primeira semana de 2013, em Bali, na Indonésia. (WORLD TRADE ORGANIZATION)

O comprometimento inicial é de dar ênfase às necessidades dos países em desenvolvimento no decorrer da busca pelo objetivo principal: a liberalização do comércio e o crescimento econômico. Este compromisso se encontra estabelecido na Declaração Ministerial, aprovada em 14 de novembro de 2001. Assim esclarece um trecho do item 3 (três) extraído do referido documento:

3.Nós reconhecemos a especial vulnerabilidade dos países menos desenvolvidos e as dificuldades estruturais especiais que enfrentam na economia global. Estamos empenhados em resolver a marginalização dos países menos desenvolvidos no comércio internacional e para melhorar a sua efetiva participação no sistema de comércio multilateral. (...)“(tradução nossa)63

63 3. We recognize the particular vulnerability of the least-developed countries and the special structural

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O mesmo documento também organiza como as negociações devem acontecer. Estabelece prazos e indica um comitê responsável por dar andamento nas discussões em cada assunto do programa de trabalho.

A OMC esta dividida em Comissões e Comitês, cada qual, para um ramo específico do comércio. Assim, a Comissão da Agricultura, em âmbito de sessões extraordinárias, deverá presidir as negociações relacionadas à agricultura, o mesmo vale para a Comissão de Comercio e Meio Ambiente, que deverá dar local às negociações pertinentes a sustentabilidade, e assim por diante.

Entretanto, por mais que divididos por área específica, os itens a serem debatidos devem ser vistos como um grupo indivisível, não sendo possível o acordo em separado, como prevê o princípio do Compromisso Único.

Demonstradas as características e objetivos da Rodada de Doha, analisa-se os progressos e as dificuldades encontradas nas negociações até o presente.

O fracasso das negociações ficou evidente no encontro de 2009, em Genebra. Os interesses antagônicos entre os países ricos e os em desenvolvimento, naturalmente, são o principal motivo. Quando o assunto é a redução dos subsídios na agricultura ou a abertura dos mercados para bens e serviços surgem as principais divergências.

O subsídio é o apoio monetário fornecido pelo governo no intuito de reduzir o preço final de um produto. Neste caso, o elevado valor concedido aos agricultores norte americanos e europeus por seus governos, provoca uma queda drástica no preço internacional dos produtos neste setor. O resultado é a concorrência esmagadora que o restante dos agricultores do mundo tem que enfrentar. Conforme estimativa do banco mundial, que foi publicada na revista veja on-line em agosto de 2008, se os subsídios e outras barreiras do setor agrícola fossem eliminados por todos os 153 membros da OMC, 140 milhões de pessoas poderiam sair da linha da pobreza até 2015. (VEJA, 2008)

Devido ao grande interesse no sucesso do acordo, o Brasil vem desempenhando excepcional liderança nesta negociação. Como o quarto maior exportador agrícola do mundo, as exportações brasileiras poderiam se beneficiar em 20 bilhões de dólares com o sucesso do acordo. Esses fatores levaram nosso país a agir em nome do grupo econômico dos países em desenvolvimento, o G-20.

O Governo Americano tem uma forte cultura de conceder insumos. Com a quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, foi implementado o plano New Deal. O intuito foi de reduzir os efeitos da recessão econômica através do aumento dos impostos de importação e concessão de insumos para melhorar a competitividade internacional dos produtos americanos. O lobby agrícola

difficulties they face in the global economy. We are committed to addressing the marginalization of least-developed countries in international trade and to improving their effective participation in the multilateral trading system.

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Americano é extremamente influente, ambos os partidos políticos, Republicano e Democrata, são defensores desta prática. Em contrapartida para eliminar os subsídios, os países ricos exigem redução das taxas de importação que os países em desenvolvimento cobram sobre os produtos industrializados. As indústrias brasileiras teriam de enfrentar forte concorrência do mercado estrangeiro, mais competitivo no setor dos manufaturados. Os setores mais prejudicados no Brasil seriam o automotivo, informática e eletroeletrônico. (VEJA, 2008)

A publicação eletrônica multimídia, Carta Maior, demonstra quais são os termos da proposta americana e as razões pelas quais ela não foi considerada vantajosa:

No pacote apresentado aos países emergentes, os EUA, entre outras coisas, se comprometem a estabelecer um limite de US$ 14,5 bilhões por ano para o subsídio doméstico a seus agricultores. Atualmente, esse limite é de US$ 40 bilhões, mas a redução teria pouco valor prático, pois, para se ter uma ideia, o valor total do subsídio pago nos EUA no ano passado foi de US$ 8 bilhões. A União Europeia, por sua vez, aceitou reduzir 80% de seus subsídios domésticos para um limite máximo de US$ 36 bilhões por ano. Os países ricos, por fim, aceitaram fazer um corte médio de 54% em suas tarifas agrícolas. Em contrapartida, os países ricos pedem uma maior abertura dos mercados emergentes para seus produtos industrializados (com corte médio de tarifas também de 54%) e para os setores de bens e serviços públicos. A troca, no entanto, não foi considerada vantajosa pela maioria dos países que compõem o G-20, uma vez que não se garantiu a competitividade de seus produtos nos mercados dos países ricos: “Não existe acordo se não pudermos proteger nossos milhões de pequenos agricultores”, resumiu o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath. (CARTA MAIOR, 2008)

Assim, restam definidas as principais divergências de interesses que impedem o fechamento do acordo. Não obstante, já houve algum progresso com as negociações, frente às grandes dificuldades apresentadas, desde 2001. Foi o que ocorreu com a quebra da patente de medicamentos. O acordo conseguiu reduzir em um terço o preço dos remédios para AIDS, o que significa, um grande avanço na luta contra a doença na África.

3 O ENTENDIMENTO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

O Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio de 1947 evoluiu no decorrer dos anos GATT. Com a criação da OMC, em 1995, alguns dos termos foram transferidos e formalizados no Anexo 02 do Acordo Constitutivo da

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Organização Mundial do Comércio. Esta norma, conhecida como Entendimento Relativo a Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC) passou a regular o procedimento da solução de litígios.(WORLD TRADE ORGANIZATION).

Qualquer espécie de controvérsia, que decorra de um acordo firmado pela OMC, inclusive de seu acordo constitutivo, deverá ser julgado segundo as disposições deste acordo, assim determina o art. 1.1 do ESC.

O Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) é composto por todos os membros da OMC, e geralmente reúne-se uma vez por mês. Conforme art. 2.1 do ESC, sua prerrogativa é estabelecer grupos especiais para examinar casos em litígio; nomear os membros do Órgão de Apelação; controlar a aplicação de resoluções e autorizar a imposição de sanções ou de medidas de retaliação.

O procedimento de solução de controvérsias inicia-se com um pedido de consulta, feito por parte de um país membro, que tenha sido prejudicado pelo descumprimento de algum acordo da pela OMC ( art. 4° da do ESC). O objetivo é resolver o conflito já nesta fase. Ambas as partes devem tentar chegar a uma solução através da negociação. A conciliação ou mediação é vista como uma faculdade das partes conflitantes, no intuito de evitar que um procedimento judicial seja instalado.

Decorrido o prazo estabelecido para a fase de consulta (60 dias), sem acordo entre as partes litigantes, ocorrerá a interferência do Órgão de Solução de Conflitos (OSC), que é formado por integrantes de todos os Membros.

Será estabelecido um Grupo Especial, o qual também pode ser chamado de painel. Neste momento, é aberta a possibilidade para outros países, que também se sentem prejudicados pela conduta comercial do país respondente, para atuar como terceiros no processo.

Este órgão semi-judicial irá examinar provas, realizar audiências e decidir qual a substância do argumento em pauta, sempre conforme o acordo que rege o procedimento de solução de controvérsias (ESC). Ao final, o painel deverá publicar um relatório acerca de seu entendimento, verificando, ou não, a procedência de tal ilegalidade. Tal relatório é acatado pelo OSC, a não ser que por unanimidade de votos, todos os membros integrantes do painel decidam vetá-lo. O procedimento acima resumido é estabelecido pelos artigos 7, 8, 12 e 16 do ESC.

As medidas de relatório deverão ser aplicadas pelo país demandado, desta forma, pondo um fim ao conflito. Contudo, no caso de discordância do sentido de interpretação da legislação poderão dar origem a um recurso direcionado ao Órgão de Apelação (AO). A resolução, alvo do recurso, poderá ser mantida, modificada ou revogada, entretanto não será possível reexaminar provas existentes ou trazer novas questões. Somente o reclamante e reclamado pode apelar para este Órgão, terceiros interessados não tem este direito.

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O Órgão de Apelação é composto por 7 (sete) membros, com mandatos de 4 (quatro) anos, sendo que apenas 3 (três) participam do julgamento de cada disputa.(MOREIRA E ORNELAS, 2008, p. 265-284).

As resoluções do Grupo especial ou do Órgão de Apelação, caso julguem pela violação de algum tratado, devem ser aplicadas dentro de um prazo, que geralmente, é de 15 meses. A aplicação se dá pela alteração da legislação interna do país, para que fique adequada aos acordos internacionais (art. 19.1 do ESC). É prevista a possibilidade das partes acordarem uma prorrogação do prazo, de acordo com a dificuldade de implementação das medidas.

Presente o final do termo estabelecido, se descumpridas as determinações do OSC, a parte perdedora pode oferecer uma redução de tarifas sobre as importações do país reclamante, monetariamente equivalente ao prejuízo sofrido.

Se alguma das partes ainda se sentir prejudicada, para garantir que a aplicação da lei prevaleça sobre o poder econômico, ou seja, garantir o efetivo cumprimento da determinação do órgão julgador é prevista uma sanção, chamada de retaliação. Esta consiste na retirada de concessão de um estado membro em relação a outro.

O artigo 22.3 do mesmo diploma, estabelece que, preferencialmente a retaliação deve ocorrer no mesmo setor sobre o qual versa a controvérsia, uma segunda possibilidade em um setor do mesmo acordo que foi violado e somente em último caso, a retaliação deve ser feita em setores protegidos por acordos diferentes. Somente esta última, pode ser chamada de Retaliação Cruzada.

O valor da retaliação é sugerido pelo próprio demandante, e posteriormente um arbitro decide qual será o valor efetivamente aplicado, sem direito a apelação. (MOREIRA E ORNELAS, 2008, p. 265-284).

A retaliação cruzada é o mais importante instrumento que impede o abuso de práticas comercias ilegais por parte de um país, já que permite a suspensão temporária de direitos já anteriormente consagrados pela OMC. É um mecanismo que pressiona o governo demandado a tomar as medidas necessárias para manter o sistema multilateral de comércio equilibrado. No caso de falha de tal instrumento, o sistema comercial mundial estará mais vulnerável a crises econômicas.

4 ANÁLISE DE CASO PRÁTICO

Para facilitar a compreensão do procedimento descrito, utiliza-se de um conflito real que foi levado ao Orgão de Solução de Controvérsias.

O caso escolhido para análise é a consulta realizada, em 27 de setembro de 2002, pelo Brasil contra os Estados Unidos. Visava apurar a ilegalidade dos subsídios, incentivos ou qualquer tipo de assistência concedido pelo Governo

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Norte Americano aos produtores de algodão herbáceo. Esta disputa ficou conhecida como DS 267.

A polêmica gerada pela iniciativa brasileira justifica a escolha deste caso. Conforme exposto anteriormente nesta dissertação, a redução dos subsídios à agricultura é um dos assuntos mais controversos na Rodada de Doha. O ganho da causa, ou seja, o fato de o Brasil ter recebido o direito de aplicar a retaliação cruzada contra o reclamado, representa um grande avanço na luta contra a política de dominação econômica imposta pelos países desenvolvidos.

Ademais, o caso do algodão também recebeu atenção de todo o mundo, pois foi ele que questionou a Cláusula de Paz. Tal instituto legal faz parte do Acordo sobre a Agricultura, e foi criada durante a rodada do Uruguai. O objetivo era conceder algum tempo para os países desenvolvidos se adequarem as novas regras sobre os subsídios. Assim, por força da Cláusula de Paz, os países prejudicados com medidas de tal natureza ficam impedidos de recorrer ao OSC para serem compensados pelo prazo de nove anos (1995 a 2003). (MACHADO, 2009).

O Brasil acusa os EUA pela violação dos dispositivos constantes nos artigos 5 (c), 6.3 (b), (c) e (d), 3.1 (a), (incluindo o item (j) da Lista Ilustrativa de Subsídios à Exportação no Anexo I), 3.2 (b) do Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM), a sigla segue a tradução da língua inglesa de Subsidies and Countervailing Measures. Prevê o texto legal, com o original em inglês:

Artigo 5: Nenhum Membro deverá causar, através do uso de qualquer subsídio referido no parágrafo 1º e 2º do artigo 1º, efeitos adversos aos interesses de outros membros, ou seja:(A) Prejuízo grave aos interesses de outro Membro. Artigo 6.3: Prejuízo grave, na acepção do parágrafo (c) do artigo 5 º pode surgir em qualquer caso em que um ou mais dos seguintes casos:(B) o efeito do subsídio é para desviar ou dificultar as exportações de um produto similar de outro Membro ao mercado de um terceiro país;(C) o efeito do subsídio é uma subcotação significativa do produto subsidiado, em comparação com o preço de um produto similar de outro Membro no mesmo mercado ou supressão significativa de preços, a depressão de preços ou perda de vendas no mesmo mercado; (D) o efeito do subsídio é um aumento na participação no mercado mundial do Membro subsidiar em um determinado produto subvencionado, primário ou de base. Em comparação com a taxa média teve durante o período anterior de três anos e este aumento segue uma tendência consistente ao longo de um período quando os subsídios foram concedidos. (tradução nossa) 64.

64 Article 5: No Member should cause, through the use of any subsidy referred to in paragraphs 1

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Além destes, a conduta em questão viola, ainda, os artigos 3.3, 7.1, 8, 9.1 e 10.1 do Acordo sobre Agricultura e o artigo III: 4 do GATT 1994. Assim dispõe o Acordo sobre Agricultura, com o original em inglês:

Artigo 8: Cada Membro se compromete a não fornecer subsídios à exportação que em conformidade com este acordo e com os compromissos especificados no Anexo do Membro.

Artigo 9.1: Os seguintes subsídios à exportação estão sujeitos a compro-missos de redução ao abrigo deste Acordo: (A) a prestação por governos ou as suas agências de subsí-dios diretos, incluindo os pagamentos em espécie, a uma em-presa, a uma indústria, aos produtores de um produto agríco-la, a uma cooperativa ou outra associação de tais produtores, ou a um marketing bordo, subordinada aos resultados da exportação; (B) a venda ou escoamento para exportação, pelos governos ou por órgãos não comerciais de produtos agrícolas a preço inferior ao preço compará-vel cobrado, por produto similar aos compradores no mercado interno; (C) pagamentos à exportação de um produto agrícola financiados em virtude da ação governamental, seja ou não um encargo para o erário público, incluindo os pagamentos que são financiados pelas receitas provenientes de uma taxa imposta ao produto agrícola em causa ou em um produto agrícola a partir da qual o produto exportado é derivado; (D) o fornecimento de subsídios para reduzir os custos da exporta-ção de comercialização de produtos agrícolas (com exceção de pro-moção das exportações amplamente disponíveis e serviços de con-sultoria), incluindo tratamento, readaptação e outros custos de processamento e dos custos de transporte e frete internacionais; (E) o transporte interno e de frete para embarques de expor-tação, estabelecidas ou impostas pelos governos, em con-

and 2 of Article 1, adverse effects to the interests of other Members, i.e.: (c) serious prejudice to the interests of another Member.Article 6.3: Serious prejudice in the sense of paragraph (c) of Article 5 may arise in any case where one or several of the following apply: (b) the effect of the subsidy is to displace or impede the exports of a like product of another Member from a third country market; (c) the effect of the subsidy is a significant price undercutting by the subsidized product as compared with the price of a like product of another Member in the same market or significant price suppression, price depression or lost sales in the same market; (d)    the effect of the subsidy is an increase in the world market share of the subsidizing Member in a particular subsidized primary product or commodity as compared to the average share it had during the previous period of three years and this increase follows a consistent trend over a period when subsidies have been granted.

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dições mais favoráveis do que para embarques domésticos; (F) subsídios aos produtos agrícolas subordinados à sua incorporação em produtos exportados.”65 (tradução nossa)

Em 18 de março de 2003, o OSC criou um painel para apuração das alegadas violações. Diversos membros reservaram seus direitos como terceiro, dentre eles: Argentina; Austrália; Canadá; Chade China; China Tapei; Comunidades Europeias; Índia; Nova Zelândia; Paquistão; Paraguai; Venezuela; República Bolivariana; Japão e Tailândia.(WORLD TRADE ORGANIZATION).

O relatório do painel, com o julgamento acerca das supostas ilegalidades, foi publicado em 08 de setembro de 2004. Nele ficou decido que alguns programas de incentivos à exportação de produtos agrícolas Norte Americanos são proibidos (GSM 102, GSM 103 e SCGP e STEP 2). Além destes, os EUA concedem diversas formas de apoio interno ao algodão (Marketing Loan, Counter-Cycllical Payments), chamadas medidas acionáveis, também proibidas.

O relatório conclui que tais práticas prejudicam gravemente o Brasil através da redução dos preços internacionais do produto sob litígio, e o mais importante, que tais medidas não estão protegidas pela Cláusula de Paz.

Em 18 de outubro de 2004, os Estados Unidos notificaram a intenção de apelar do relatório. Foi somente em 03 de março de 2005 que o Órgão de Apelação emitiu seu parecer confirmando as conclusões do Painel, alterando apenas questões de baixa relevância.

O prazo para os EUA retirarem os programas de subsídios à exportação considerados ilegais expirou em 01 de julho de 2005. Para eliminar as outras formas de subsídio outro prazo foi estabelecido (21 de setembro de 2005).

65 Article 8: Each Member undertakes not to provide export subsidies otherwise than in conformity with this Agreement and with the commitments as specified in that Member’s Schedule.Article 9.1: The following export subsidies are subject to reduction commitments under this Agreement: (a)  the provision by governments or their agencies of direct subsidies, including payments-in-kind, to a firm, to an industry, to producers of an agricultural product, to a cooperative or other association of such producers, or to a marketing board, contingent on export performance;  (b)  the sale or disposal for export by governments or their agencies of non-commercial stocks of agricultural products at a price lower than the comparable price charged for the like product to buyers in the domestic market; (c)  payments on the export of an agricultural product that are financed by virtue of governmental action, whether or not a charge on the public account is involved, including payments that are financed from the proceeds of a levy imposed on the gricultural product concerned or on an agricultural product from which the exported product is derived; (d)    the provision of subsidies to reduce the costs of marketing exports of agricultural products (other than widely available export promotion and advisory services) including handling, upgrading and other processing costs, and the costs of international transport and freight; (e)  internal transport and freight charges on export shipments, provided or mandated by governments, on terms more favourable than for domestic shipments; (f) subsidies on agricultural products contingent on their incorporation in exported products. 

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O departamento de agricultura americano (USDA) comunicou algumas alterações, em 30 de junho de 2005. Elas foram realizadas facilmente, já que foram executadas administrativamente pelo poder executivo.

Contudo, outras medidas dependiam de aprovação no congresso para serem adequadas às recomendações, o que dificultou a implementação. Dentre os óbices para a regularização, aponta-se o lobby dos cotonicultores, que é muito forte e organizado.

Através de dois pedidos, em julho e outubro de 2005, respectivamente, o Brasil requisitou autorização para retaliação no valor de U$ 4 bilhões. Contudo, devido aos indícios de implementação das recomendações pelos EUA, o Brasil decidiu suspender o procedimento arbitral para apuração de valores.(TORRES, 2010).

Passado um ano do prazo final para implementação, as adequações efetivadas pelos Estados Unidos continuaram insuficientes. Os programas Marketing Loan, Counter-Cycllical Payments sequer foram alvo de modificação. (FERREIRA, 2011, p. 30-35).

Em 18 de setembro de 2007, o painel de implementação confirmou a insuficiência das medidas adotas, confirmando que o programa GSM 102 também não havia sido adequado. Os EUA apelaram novamente, e em 02 de junho de 2008, as decisões foram confirmadas. Foi somente em 25 de agosto de 2008 que o Brasil decidiu protocolar o pedido de retaliação. Para chegar a um valor que correspondesse ao prejuízo sofrido, foi necessário passar por um processo arbitral. Normalmente, esta fase leva até 60 dias, contudo, neste caso, foram necessários onze meses para liquidar a dívida, tamanha a complexidade do caso.

Em 31 de agosto de 2009, os árbitros autorizaram o Brasil a efetuar a retaliação. Conforme explica Edgard Marcelo Torres, procurador da Fazenda Nacional de Belo Horizonte (MG), em artigo veiculado na publicação online Clube Jurídico do Brasil, “o Brasil foi autorizado a retaliar anualmente os Estados Unidos na quantia fixa de U$ 147,3 milhões.” Esse valor é referente apenas aos programas de apoio doméstico ao algodão, ou seja, subsídios acionáveis.

Para a indenização decorrente do prejuízo do programa GSM 102, os árbitros apuraram para o ano fiscal de 2006 o valor de U$ 147,4 milhões. Uma formula pré definida pode ser utilizada para chegar ao valor de outros anos. (TORRES, 2010). Desta forma, U$ 147,3 milhões referente ao valor fixo, somado a U$ 147,4 milhões relativo ao valor variável, resulta no valor total autorizado pela OMC para retaliação referente ao ano fiscal de 2006 (U$ 294,7 milhões).

Numa análise geral a respeito do julgamento, verifica-se o cuidado extremo dos árbitros no momento de estabelecer o valor das contra medidas a serem autorizadas. O valor final da condenação é ínfimo se comparado ao inicialmente proposto pelo Brasil (U$ 4 bilhões). Conforme comenta Torres:

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As determinações das decisões foram tão cautelosas e modestas que o estabelecimento do “gatilho” para se poder começar a retaliar de forma cruzada entre acordos, bem como o baixo valor das contramedidas estabelecido como adequado (menos de 10% do pedido inicial brasileiro), levaram os advogados americanos a declarem vitória sobre o caso.

(TORRES, 2010)

Conforme exposto, a retaliação apenas pode ocorrer em outro âmbito, que não o do acordo violado, quando for inviável praticá-lo no mesmo âmbito do comércio. O Brasil tentou demonstrar que a simples retaliação não seria efetiva devido às características econômicas da relação entre as duas partes, a qual exigia a retaliação cruzada.

O autor explica que após a elaboração de diversos cálculos matemáticos, os árbitros chegaram a um valor que recebe o nome de “gatilho”. Ele representa o valor limite da efetividade da retaliação no mesmo âmbito do comércio em que ocorreu a violação. Desta forma, a retaliação deve ser aplicada na sua forma simples até que seja atingido o valor do “gatilho”. Todo excedente poderá ser retaliado na forma cruzada.

O procurador informa que para o ano fiscal de 2006 o “gatilho” ficou em U$ 409,7 milhões, ou seja, valor superior aos U$ 294,7 milhões autorizados para aquele ano fiscal. Assim, a retaliação teria de ser simples para 2006. Contudo, para o ano fiscal de 2008, o gatilho ficou em U$ 561,0 milhões, e o valor da retaliação em U$ 829,3 milhões, situação que permite a retaliação cruzada. Ou seja, a diferença entre tais valores pode ser retaliada no âmbito do comercio de serviços (GATS) e de direitos autorais (TRIPS).(TORRES, 2010).

4.1 A EFETIVAÇÃO DA RETALIAÇÃO

Por mais que tivesse medo de sofrer contra medidas por parte dos EUA pela aplicação da retaliação, o Brasil, desde o início, tomou atitudes para demonstrar interesse em aplicá-la. Entretanto, também abriu margem para negociar. Conforme explica Torres, o medo em questão decorre da inexistência de histórico de retaliações aplicadas. Em toda a sua história, a OMC permitiu a retaliação cruzada por apenas três vezes, incluindo o caso do algodão. Sendo que em nenhum dos outros dois casos ela foi aplicada.

A aplicação da retaliação tem por escopo, indenizar o prejuízo sofrido pelo país prejudicado com o descumprimento dos acordos. Contudo, dela também podem advir efeitos negativos. Além do desgaste político gerado entre países que são importantes parceiros comerciais, a aplicação da retaliação pode resultar no desabastecimento interno, porque encarece os produtos importados.

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Apesar das possibilidades negativas, o Brasil deu continuidade ao seu objetivo de pressionar o Governo Americano a tomar, por si só, atitudes para regularizar suas políticas de apoio aos agricultores na forma da recomendação da OMC.

Através de um Órgão do Poder Executivo, a CAMEX (Câmara de Comércio Exterior), foram editadas diversas resoluções que visavam organizar a maneira como seria aplicada a retaliação. Dentre as iniciativas, foram realizadas consultas públicas com os setores que poderiam ser prejudicados com eventual taxação sobre a importação de produtos americanos. O resultado foi uma lista com cento e dois produtos que teriam o imposto de importação elevado entre 12% e 100%.(TORRES, 2010). Também, por meio da medida provisória número 482, editou-se uma legislação que permitiria a retaliação no âmbito do TRIPS. Tais condutas foram suficientes para compelir os EUA a negociar para que a retaliação não fosse levada a cabo. Em 20 de abril de 2010, foi acordado que o setor de algodão brasileiro receberia uma transferência anual fixa de U$ 147,3 milhões. Essa verba seria administrada pelo Instituto Brasileiro do Algodão.

Ademais, firmou-se um compromisso de negociar as medidas fitossanitárias que impedem a exportação de carne brasileira ao EUA. Em troca o Brasil concordou em adiar a retaliação até que fosse encontrada uma solução definitiva.

Em 17 de junho de 2010, mais um acordo foi fechado. O Itamaraty publicou uma nota à imprensa com o ”Acordo - Quadro para uma Solução Mutuamente Acordada para o Contencioso do Algodão na Organização Mundial do Comércio”. Nele, contrai-se o compromisso de não aplicar as contra medidas autorizadas pela OMC enquanto o Acordo-Quadro estiver em vigor. Estipula-se tal data para o final de 2012, ocasião em a Farm Bill66 passará por nova votação no Congresso.

As principais obrigações para os EUA podem ser verificadas em trecho de tal documento, conforme segue:

1. No que diz respeito aos programas de apoio doméstico:- a base das discussões será o estabelecimento de um limite anual para os programas de apoio que distorcem o comércio, em patamar significativamente inferior à média dos anos 1999-2005 (período examinado pelo mecanismo de solução de controvérsias da OMC);- previsão de consultas trimestrais, que se estenderão até a finalização dos termos da lei agrícola norte-americana de 2012, para determinar como os programas daquela nova lei serão contabilizados contra o limite anual.2. No que concerne o programa de Garantias de Crédito à Exportação (GSM-102):

66 Farm Bill é o nome popular dado à legislação americana, que consolida em um único documento os programas de política agrícola do Departamento de Agricultura dos EUA.

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- além das consultas trimestrais regulares, haverá processo com revisões semestrais da operação do programa (“Revisões Operacionais”), com especial foco nas duas características centrais das garantias de crédito: prazo de pagamento e prêmios de risco;- a primeira revisão ocorrerá antes que sejam anunciadas as condições vigentes para o programa no primeiro semestre do próximo ano fiscal norte-americano (que terá início em outubro de 2010);- o programa sofrerá alterações com vistas a reduzir o prazo de pagamento médio ponderado para não mais que 16 meses até o final do período transitório que termina em 2012;- sempre que o valor das garantias concedidas ultrapassarem o patamar de US$1,3 bilhão, o que representa 48% do orçamento semestral do programa, os EUA aumentarão o valor dos prêmios de risco cobrados em pelo menos 11%;- em determinadas circunstâncias, quando a utilização do programa superar US$ 1,5 bilhão, cerca de 55% do orçamento semestral, o reajuste mínimo será de 15%. 3. Os termos do Acordo Quadro não afetam os direitos das duas Partes no que se refere ao contencioso sobre o algodão na OMC e não prejulgam os termos do que possa vir a constituir uma solução negociada e mutuamente satisfatória para aquela disputa. (MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES, 2010)

Desta forma, restam apresentados os principais desdobramentos advindos do conflito DS 267 até a atualidade. A disputa ainda não chegou ao fim, já que a retaliação não foi aplicada e nem todas as recomendações da OMC foram implementadas pelos EUA.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido a necessidade de garantir maior estabilidade à economia mundial sob a perspectiva comercial foi elaborada regulamentação através de negociações entre as nações, com o decorrer dos anos. Muitos avanços foram concretizados, principalmente nos aspectos legislativo e institucional. Contudo, apesar do esforço, as nações que figuram como grandes potências continuam exercendo forte dominação econômica sobre os países periféricos.

Tal assertiva pode ser claramente deduzida em análise das discussões verificadas na Rodada de Doha. Neste contexto, os julgamentos realizados pelo Órgão de Solução de Controvérsias servem como fonte para apontar o desequilíbrio das relações comerciais.

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O Sistema de Solução de Controvérsias da OMC é o instrumento mais eficaz para assegurar os direitos decorrentes dos acordos comerciais. Entretanto, restou claro que uma sentença judicial não é suficiente para garantir a eficácia do sistema abordado. A determinante continua sendo orientada pelo poder econômico das partes.

O caso do contencioso do algodão é um exemplo. Do ponto de vista formal, a vitória brasileira é inegável, já que foram sucessivos ganhos de causa em cada uma das instâncias. Contudo do ponto de vista prático, ainda não se pode fazer tal afirmação. Shaffer comenta: “Para medir a eficiência de um sistema, deveria ser levado em conta o impacto que a lei exerce sobre o comportamento da parte e não quantas vitórias ela obteve nos Tribunais.” (SHAFFER, 2007, p. 181-182).

No que tange a influência das recomendações da OMC no comportamento estadunidense, cabe salientar que a ameaça de aplicação da retaliação cruzada surtiu efeitos e compeliu o país a realizar concessões para amenizar o prejuízo brasileiro. Contudo, passados três anos da autorização para retaliar, de forma global, as modificações realizadas ainda são insuficientes. Além disso, por mais uma ocasião, os efeitos da retaliação cruzada (jamais aplicada) não foram testados.

Tendo em vista que o conflito ainda não teve um desfecho definitivo, espera-se pelo seu deslinde. Ele irá confirmar a efetividade do Sistema de Solução de Controvérsias. Se o conflito for solucionado através de um acordo entre as partes, a comunidade internacional continuará com dúvidas quanto aos resultados da dificultosa fase de implementação. Caso a retaliação seja imposta e garanta integralmente a indenização ao prejuízo sofrido pelo Brasil, este julgado servirá como incentivo aos demais países em desenvolvimento a utilizarem deste sistema de solução para buscarem os seus direitos quanto às políticas de dominação impostas pelos países ricos.

Conclui-se pela limitada efetividade da aplicação da retaliação cruzada como sanção pelo descumprimento das recomendações da OMC. O principal motivo são os seus reflexos negativos no campo econômico e político. Um novo método deve ser implementado, considerando outras formas de imposição da medida, além da retaliação cruzada. Uma sugestão é a obrigatoriedade de uma retaliação conjunta imposta por todos os membros que compõe a OMC. Desta forma, o a posição econômica dominante do país infrator poderia seria coibida pela unidade das contramedidas sancionadas por todos os membros obrigatoriamente.

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REFERÊNCIAS

FERREIRA, Márcia Costa. Eficácia do sistema de solução de controvérsias da OMC: Análise do Contencioso do Algodão Brasil-Estados Unidos. Disponível em: <http://bdm.bce.unb.br/bitstream/10483/2445/1/2011_Marcia CostaFerreira.pdf>

MACHADO, Mario. Acordo sobre agricultura – V. Disponível em: <http:// www.coisasinternacionais.com/2009/03/acordo-sobre-agricultura-v.html>. Acesso em: 16 set. De 2012.

MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES. Decisão da CAMEX sobre o contencioso do algodão. Disponível em: <http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/decisao-da-camex-sobre-o-contencioso-do-algodao>.

RODADA DOHA DE COMÉRCIO. Perguntas e Respostas. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/idade/exclusivo/perguntas_respostas/doha/index.shtml>. Acesso em: 12 nov. 2011.

SHAFFER, Gregory. O Sistema de Solução de Disputas da OMC, seus pontos fracos e propostas para aperfeiçoamento: uma visão econômica e de mercado In: BAPTISTA, Luiz Olavo, CELLI JUNIOR, Umberto, YANOVICH, Alan (org.). 10 anos de OMC. Uma análise do Sistema de Solução de Controvérsias e Perspectivas. São Paulo: Aduaneiras, 2007.THE WORLD TRADE ORGANIZATION - WTO. Disponível em: <http://www.wto.org>. Acesso em: 08 out. 2011.

TORRES, Edgard Marcelo Rocha. O caso dos subsídios do algodão entre Brasil e EUA: o uso efetivo da retaliação cruzada como prova final da eficácia do sistema de solução de controvérsias da OMC. Redenção ou ruína? Disponível em: <http://www.clubjus.com.br/?artigos&ver=2.30916>. Acesso em: 18 set. 2012.

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OS SERVIÇOS PÚBLICOS, O USUÁRIO E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

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ViVianE coêlho DE SélloS KnoErr

SUMÁRIO: 1- Introdução. 2- Os Serviços Públicos. 2.1 Princípios do serviço público 3- O Usuário dos Serviços Públicos. 4 - O princípio da dignidade da pessoa humana- Os direitos fundamentais. 5 – Os ser-viços públicos, os direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana. 5.1 O serviço público e o princípio da continuidade da prestação. 6. Conclusão. Referencias Bibliográficas.

RESUMO

Os serviços públicos primam pela execução de atividades que buscam a satisfação de interesses estatais e coletivos relevantes, que, embora de titularidade estatal, podem ser prestados pela iniciativa privada em algumas hipóteses. Visa a prestação do serviço público, a promoção de uma vida digna ao usuário, destinatário final, configurando-se a finalidade do serviço público, promovendo o bem-estar social e permitindo que a pessoa possa atingir a efetividade dos direitos fundamentais, atrelando-se ao respeito da dignidade do cidadão. Os serviços públicos constituem-se um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais, primando pela consecução de atividades que visem o bem-estar social, oferendo condições para uma vida digna. O Estado (ou o prestador) deve atender o usuário, a sociedade, prestando serviços públicos, com eficiência, conciliando os anseios da população com a destinação dos recursos econômicos, buscando a efetividade dos direitos fundamentais, com destaque para a dignidade da pessoa humana.

Palavras-chaves: serviço público, Estado, princípios, usuário, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais.

ABSTRACT

The public services excel for the execution of activities searching for the satisfaction of state interests and collective relevants, which, although of state ownership, can be provided by the private initiative in some hypothesis. Aims for the provision of an activity connected to the promotion of a dignified life for the citizen, final receiver, setting up the public services’ finality, promoting social

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welfare e allowing the person to achieve the effectiveness of the fundamental rights, attaching themselves to the respect for the citizens’ dignity. The public services constitute a tool for effectiveness of the fundamental rights, excelling for the attainment of activities that aim social welfare, offering conditions for a dignified life. The State (or the provider) must answer the user, the society, providing public services, efficiently, reconciling the population’s expectations with the destination of the economic resources, seeking for the fundamental rights effectiveness, especially for the dignity of the human person.

Key-words: Public service, State, principles, user, dignity of the human person, fundamental rights.

1 INTRODUÇÃO

O homem necessita viver em sociedade, trata-se de uma característica intrínseca a própria essência da natureza humana, vez que para ter condições para alcançar os seus objetivos necessita da força que a ação conjunta da coletividade oferece. Contudo, há necessidade de existir regras, a fim de ordenar e possibilitar esta convivência. Desta forma, tem o Estado papel relevante no sentido de editar regras e fiscalizá-las, para que a vida caminhe de forma ordenada. O Estado tem ainda papel fundamental na consecução das atividades que visam o atingimento das questões que estão relacionadas com o bem-estar do cidadão.

Tal constatação pode ser confirmada quando observado o texto constitucional brasileiro, logo no seu artigo 1º e seguintes quando afirma que a República Federativa do Brasil tem como fundamentos princípios que estão vinculados a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, apresentando, ainda, como objetivos da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que visa garantir o desenvolvimento nacional, visando promover o bem de todos.

A par do estímulo proporcionado pelo legislador constituinte à livre iniciativa para a prática da atividade econômica, conforme consta no artigo 170 e seguintes da Constituição Federal, o Estado Brasileiro chama para si a responsabilidade de realizar a prestação de serviços ditos públicos, com o intuito de satisfazer necessidades da comunidade. A previsão está contida no artigo 175 da Constituição Federal que enuncia que cabe ao Poder Público, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, a prestação de serviços públicos, nos termos da lei.

Disso decorre que a atividade administrativa de prestação de serviços públicos está relacionada com a efetividade dos direitos fundamentais, ademais, a própria noção de interesse público está associada aos valores propostos pela dignidade da pessoa humana.

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Os serviços públicos, de várias definições na doutrina (como se verá adiante), prima pela execução de atividades que buscam a satisfação de interesses públicos e coletivos relevantes, que, embora de titularidade estatal, podem ser prestados pela iniciativa privada em algumas hipóteses. A prestação do serviço público visa atender às necessidades do seu destinatário final, que é o usuário, contudo, beneficia toda a sociedade.

Paralelamente e atenta a preocupações acerca do desenvolvimento das atividades (mas não apenas por isso), a Constituição Federal consagra a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, devendo ser respeitada em todos os aspectos.

Pois bem, o objetivo do serviço público é gerar bem-estar à sociedade, no entanto, cabe ao Estado ou ao prestador aglutinar interesses diversos, podendo surgir dificuldades de várias espécies, que podem ser de ordem financeira e econômica, subjetivas diante da diversidade de necessidades existentes, enfim, não é uma tarefa de singela concretização.

Da imensidão das atividades a serem prestadas e da grandiosidade territorial do país, podem escapar do Estado questões que se revelam importantíssimas para o desenvolvimento da sociedade, do indivíduo, que podem afetar o seu dia-a-dia nos seus aspectos mais essenciais. Destaca-se aqui a necessidade de se atender aos direitos fundamentais do indivíduo, onde está inserida a dignidade da pessoa humana.

Dentro de tal ótica, a prestação dos serviços públicos é imposição constitucional que deve ser cumprida nos termos da lei, a fim de atender as expectativas e necessidades do cidadão, oferecendo às pessoas um mínimo para o desenvolvimento digno de suas vidas. Assim, diante do quadro apresentado, será abordado neste artigo o tema da prestação dos serviços públicos, em seus diversos aspectos, analisando-se suas definições e singularidades, passando-se a figura do usuário do serviço público, dando enfoque ao princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento da Constituição, atentando-se aos direitos fundamentais, nos termos da previsão constitucional a respeito.

Visa-se traçar uma relação entre tais figuras e princípios de modo a destacar a importância da atuação estatal realizada por meio do serviço público, que possui, inegável viés social, principalmente quando se observa que se tratam de relevante instrumento para garantir o respeito à dignidade da pessoa humana. Assim, serão abordados assuntos que rodeiam a questão e estão instrinsecamente relacionados com o fornecimento de serviços públicos diretamente relacionados a figura do usuário.

O tema será abordado através da análise da doutrina, legislação e também da pesquisa de jurisprudência existente acerca da matéria, até porque envolve questões que estão relacionadas com o cotidiano dos cidadãos e refere-se às bases da existência do Estado Democrático do Direito.

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2 OS SERVIÇOS PÚBLICOS

Para tratar do tema, é necessário estabelecer inicialmente a definição de serviço público, analisando alguns conceitos na doutrina. A Constituição Federal de 1988 não define expressamente o que significa serviço público, mas em seu texto elenca algumas atividades que assim se enquadram. Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt define da seguinte forma67:

A doutrina é divergente na sua conceituação. Isso ocorre, tendo em vista que, dependendo da época e do lugar; se altera a noção de serviço público. Compreende-se serviço público como a prestação positiva, prevista em lei, para satisfazer necessidades ou fornecer utilidades para a comunidade, mediante um regime jurídico especial, predominantemente de Direito Público.

O autor afirma que existe certo grau de dificuldade em se saber qual atividade pode configurar serviço público, concluindo que será serviço público “toda atividade que o ordenamento jurídico determinar que assim o seja, conforme o entendimento social, econômico, cultural de uma sociedade num determinado tempo”68.

Para Celso Ribeiro Bastos69:

Serviço público é uma atividade prestada pela Administração, que se vale do seu regime próprio de direito administrativo, com vistas ao atingimento de uma necessidade coletiva que pode ser fruida uti singuli ou uti universi pelos administrados.

Do conceito do autor, extrai-se que o seviço público visa atender as necessidades que nascem em decorrência da vida social, mas que também atende interesses individuais.

A noção de serviços públicos está relacionada a idéia de serviços essenciais, indispensáveis para atender as necessidades das vidas das pessoas.

Conforme aponta Odete Medauar, um dos elementos comuns às atividades definidas como serviço público é o vínculo com a Administração, afirmando a presunção de se tratar de serviço público a atividade prestacional exercida pelo poder público, havendo uma relação de dependência entre a atividade e a Administração.70

67 BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Manual de direito administrativo. 3º edição. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 223-224.68 BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Obra citada, p. 224.69 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 167.70 MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno, Revista dos Tribunais, 2008, p. 369-370.

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Dinorá Adelaide Musetti Grotti, acrescenta que71:

O serviço público é sempre incumbência do Estado e depende, em última instância, do poder público: a sua criação corresponde a uma opção do Estado e supõe necessariamente uma decisão da autoridade pública; a sua gestão também incumbe ao Estado, que pode fazê-la direta ou indiretamente, por meio de concessão ou permissão, ou de pessoas jurídicas criadas pelo Estado com essa finalidade.

Celso Antônio Bandeira de Mello assim define serviços públicos72:

Serviço público é a atividade material que o Estado assume como pertinente a seus deveres em face da coletividade para satisfação de necessidades ou utilidades públicas singularmente fruíveis pelos administrados cujo desempenho entende que deva se efetuar sob a égide de um regime jurídico outorgador de prerrogativas capazes de assegurar a preponderância do interesse residente no serviço e de imposições necessárias para protegê-lo contra condutas comissivas ou omissivas de terceiros ou dele próprio gravosas a direitos ou interesses dos administrados em geral e dos usuários do serviço em particular.

Acrescenta o autor que pela importância das atividades o Estado assume o compromisso de prestá-las. Para identificar a atividade como serviço público, o autor afirma a necessidade de estarem presentes alguns requisitos, quais sejam: tratar-se de uma prestação de atividade singularmente fruível pelos usuários, consistir em atividade material, destinar-se à satisfação da coletividade em geral, ser considerada pelo Estado importante para a satisfação dos interesses da sociedade, ter sido havida como insuscetível de ser relegada a livre iniciativa privada, assumindo o compromisso de prestar a atividade (salientando que nem sempre com exclusividade). Estes, segundo o autor, se constituem no substrato material da noção de serviço público73.

Apresenta outro requisito que seria o elemento formal, que significa aquele que confere caráter jurídico à noção de serviço público. Afirma o autor:74

71 GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti Grotti. O serviço público e a constituição brasileira de 1988. São Paulo, 2003. p. 49.72 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Serviço público e sua feição constitucional no Brasil. In: Grandes temas de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 282.73 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, obra citada, p. 275.74 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, obra citada, p. 275-276.

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Estas acotações já estão a ressaltar que a noção de “serviço público” depende inteiramente da qualificação que o Estado (nos termos da Constituição e da leis) atribui a um tipo de atividade: aquelas que reputou não devem ficar entregues simplesmente aos empenhos da livre iniciativa e que, por isto mesmo- e só por isto-, entendeu de assumir e colocar sob a égide do regime jurídico típico instrumentador e defensor dos interesses públicos: o regime peculiar ao Estado.

Pois bem, observados alguns conceitos e após estabelecidos alguns critérios para que uma atividade seja considerada como serviço público, há ainda que se atentar para uma série de fatores, dentre elas a relevância, o interesse público, a utilidade, o regime jurídico, enfim, aspectos que vão de encontro a própria definição. A doutrina apresenta alguns princípios que são inerentes ao serviço público, e dada a importância do tema se faz necessário trazer a lume, até porque se encontram instrinsecamente relacionados ao conceito de serviço público.

2.1 PRINCÍPIOS DO SERVIÇO PÚBLICO

Celso Antônio Bandeira de Melo75, afirma existirem alguns princípios como básicos para a estruturação do conceito e do regime jurídico dos serviços públicos que serão prestados pelo Estado.

Dentre eles, destacam-se: o princípio da obrigatoriedade do Estado de prestar o serviço público, segundo o qual é uma atribuição inescusável que deve ser prestada pelo Estado (seja direta, ou indiretamente); o princípio da supremacia do interesse público, os serviços devem atender, seja com relação à sua organização, seja quanto ao seu funcionamento, às necessidades da coletividade; princípio da adaptabilidade, onde o Estado deve adequar os serviços públicos à modernização e atualização das necessidades dos administrados, isto dentro das possibilidades econômicas do Poder Público; princípio da universalidade, os serviços devem estar disponíveis a todos, abertos a generalidade do público; princípio da impessoalidade, que não pode haver discriminação entre os usuários dos serviços públicos, que possuem o direito da prestação sem que haja qualquer forma de distinção de caráter pessoal; o princípio da continuidade consiste na impossibilidade de interrupção do regular desempenho do serviço público, os serviços não devem ser suspensos ou interrompidos afetando o direito dos usuários; princípio da transparência, onde o Estado deve trazer ao conhecimento público e geral dos administrados todas as informações referentes ao serviço e a sua prestação (gastos e a disponibilidade de atendimento); princípio da motivação que consiste que o Estado tem que

75 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, obra citada, p. 282-283.

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fundamentar todas as decisões atinentes aos serviços públicos; o princípio da modicidade das tarifas, que significa que as tarifas devem ser cobradas em valores que facilitem o acesso ao serviço posto a disposição do usuário; e o princípio do controle, que enuncia que deve haver um controle rígido e eficaz sobre a correta prestação dos serviços públicos.

Celso Ribeiro Bastos ensina que pela importância da prestação do serviço público, deve ser colocado à disposição do usuário com qualidade e regularidade, assim como com eficiência e oportunidade76.

Como se verifica, os princípios que regem os serviços públicos tem, em síntese, o escopo de fazer com que as atividades se desenvolvam dentro de um contexto de transparência e harmonia esperados das condutas da Administração Pública, se complementando entre si, com o intuito de atingir um objetivo, a prestação do serviço com ampla eficiência.

Constata-se que vários fatores são necessários para que uma atividade seja considerada como serviço público, e ainda que sejam atendidos uma série de princípios que no seu conjunto buscam a satisfação plena da execução do serviço. Ainda que numa análise superficial, o serviço público deve atender as necessidades da sociedade, e numa ótica menos ampla do indivíduo em si.

Por isso, em seguida será tratada a figura do usuário, que, como destinatário final da prestação do serviço, possui fundamental relevância.

3 O USUÁRIO DO SERVIÇO PÚBLICO

Das definições e conceitos acima apresentados, toma relevo a posição do destinatário final do serviço público, pois a prestação da atividade atingirá a sua finalidade por meio da satisfação da sociedade, numa visão ampla e geral, que poderá ser identificada através da figura do usuário, numa visão mais singular.

A este respeito, Cesar A. Guimarães Pereira aponta a prevalência e observância da dignidade da pessoa humana como fundamento da ação do Poder Público, o que conduz à valorização do indivíduo como finalidade da atuação do Estado77:

O serviço público, visto como prestações públicas de que cada indivíduo pode desfrutar sigularmente, é o campo adequado para a implementação desse enfoque. Sobre o tema, são precisas as lições de Marçal Justen Filho. A partir do reconhecimento do caráter transcedental do princípio da dignidade da pessoa humana, o autor aponta o especial relevo que merece “o exame das competências estatais quanto ao atendimento a

76 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 171.77 PEREIRA, César A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo, Saraiva, 2006. p. 1-2.

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necessidades individuais”, frisando que algumas pessoas necessitam receber atenção especial por parte do Estado, “precisamente aqueles cuja dignidade não pode ser protegida ou realizada por seus próprios esforços e com seus recuros individuais isolados”.

O autor coloca o usuário como a figura central do serviço público78:

A eleição de um conceito restrito de serviço público põe o foco no usuário. Só haverá serviço público na medida em que seja possível identificar um usuário que possa fruí-lo de modo singular e individual. Além disso, ao mesmo tempo em que se afirma o caráter coletivo do serviço público (que torna instrumental a posição do usuário), destaca-se o papel individual do usuário na relação concreta de serviço. Essa afirmação não nega que o serviço público seja dirigido ao público em geral, a uma pluralidade indeterminada de usuários em potencial. Mas se baseia em que o usuário efetivo é determinado e integra um relação jurídica concreta. Por isso é que somente os serviços fruíveis singularmente é que podem ser caracterizados como serviços públicos.

Sem a pretensão de adentrar a fundo na questão, mas diante da importância do tema neste ponto do estudo, convém esclarecer o significado de serviço público uti universi e serviço público uti singuli. Como visto, os serviços públicos podem possuir destinatários determináveis na população, ainda que tenha por objetivo um fim coletivo, ou podem ter destinatários indetermináveis.

Exemplificando, nas palavras de Celso Ribeiro Bastos79:

Para aqueles que consideram a garantia da segurança nacional um serviço público, este seria o melhor exemplo de prestação uti universi. Outro exemplo é a iluminação das praças públicas, uma vez que é algo voltado a uma pluralidade de pessoas, que não se pode absolutamente determinar qual seria mais diretamente aquinhoada.

Os denominados uti singuli são os destinados a indivíduos determinados ou determináveis, para quem a utilidade do serviço é concreta e particular, sem, por isso, perder a qualidade própria do serviço público, que é a de satisfazer um interesse público. São exemplos os serviços atrelados aos transportes, às telecomunicações de modo geral, e outros.

78 PEREIRA, César A. Guimarães, obra citada, p. 34.79 BASTOS, Celso Ribeiro, obra citada, p. 169.

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Cesar A. Guimarães Pereira afirma que a Constituição Federal refere-se aos serviços públicos em sentido estrito, sendo caracterizado por uma relação jurídica entre usuário e prestador, o que não poderia ocorrer nos serviços uti universi.

Para justificar a asssertiva, o autor apresenta alguns exemplos80:

Ao se realizar uma obra pública ou um serviço dito uti universi, a finalidade da atividade se exaure nela própria. A varrição de lobradouros públicos não pressupõe alguma satisfação individual para completar sua finalidade. O mesmo se diga quanto à iluminação pública desses memos locais. ... O serviço público em sentido estrito, ao contrário, não existe nem tem sentido sem o uso pelos seus destinatários. De nada adianta haver uma rede de coleta e tratamento de esgotos, colocada à disposição dos usuários e com serviços remunerados por taxa por uso potencial, se os usuários recusarem-se a se conectar à rede. A finalidade da atividade somente será atingida se houver o uso efetivo.

Entende que81:O serviço público atende ao interesse público através do oferecimento de utilidades que cada indivíduo possa fruir de modo singular. Caso contrário, não se estará diante de serviço público (no sentido estrito aqui defendido), mas de atividade administrativa de outra natureza.

O autor destaca a posição do usuário na definição de serviço público, referindo-se que a eleição de um conceito restrito põe o foco no usuário, e que colocar o usuário no centro das considerações acerca do serviço público é coerente com a evolução do pensamento sobre a atuação administrativa.

A Constituição Federal preocupou-se em tutelar os direitos dos usuários, no entanto, deixando que tal o fizesse a lei. O artigo 175 da Constituição Federal82 prevê que “Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”, e no inciso II do parágrafo único, prevê que a lei disporá sobre “os direitos dos usuários”.

Diante da definição de serviço público, e focando-se a prestação da atividade na figura do seu destinatário final, propondo-se a satisfazer as suas necessidades, Celso Ribeiro Bastos acrescenta que83:

80 PEREIRA, César A. Guimarães, obra citada, p. 5.81 PEREIRA, César A. Guimarães, obra citada, p. 38.82 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.83 BASTOS, Celso Ribeiro, obra citada, p. 173.

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A própria evolução do conceito de cidadania, que englobou não apenas a fruição dos direitos individuais clássicos, mas uma série de participações da própria vida do Estado, levou a uma mudança do posicionamento do usuário à frente do serviço público. Antigamente a doutrina era mais avara ao reconhecimento, sobretudo, da possibilidade de se exigir a prestação do serviço público quando esta indvidamente fosse negada. Hoje isto é plenamente reconhecido, obviamente, para os serviços públicos fruíveis uti singuli.

Desta forma, considerando a finalidade almejada pela prestação do serviço público, tendo como foco a figura do seu destinatário final, alguns aspectos tornam-se relevantes para que seja efetivamente alcançada de maneira satisfatória o objetivo traçado pelo Poder Público, ou seja, atender ao interesse público visando a satisfação do usuário, devendo-se levar em consideração questões básicas para tal, assim, atentando-se, neste particular, aos direitos fundamentais inserindo-se o princípio da dignidade da pessoa humana, que deve ser respeitado pelo Poder Público ao instituir ou oferecer os serviços públicos.

A par da amplitude da discussão acerca da criação dos serviços públicos, parte-se da premissa que devem atender o usuário com a intenção de realizar uma atividade que atenda os seus interesses, satisfaça suas pretensões, promovendo o bem-estar social e permitindo que a pessoa possa atingir a efetividade dos direitos fundamentais, atrelando-se ao respeito da dignidade do cidadão. Desta forma, o serviço público visa a prestação de uma atividade vinculada a promoção de uma vida digna ao cidadão, a fim de viabilizar condições para o desenvolvimento social da população. O tema será tratado a seguir, iniciando-se com uma abordagem acerca dos direitos fundamentais e o princípio da dignidade da pessoa humana.

4 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA- OS DIREITOS FUN-TAMENTAIS

A expressão dignidade da pessoa humana está relacionada com valores humanos, que levam em consideração um tratamento humanitário, de igualdade, visando a erradicação de desigualdades sociais. Nos dizeres de Luiz Roberto Barroso, no prefácio da obra de Ana Paula de Barcellos84:

A dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independente da crença que se professe quanto à

84 BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. São Paulo: Editora Renovar, 2002, prefácio.

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sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. O desrespeito a este princípio terá sido um dos estigmas do século que se encerrou e a luta por sua afirmação um símbolo do novo tempo. Ela representa a superação da intolerância, da discriminação, da exclusão social, da violência, da incapacidade de aceitar o outro, o diferente, na plenitude de sua liberdade de ser, pensar e criar.

Ensina Maria Celina Bodin de Moraes85:

(...) será desumano, isto é, contrário à dignidade da pessoa humana, tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos) à condição de objeto.” Por sua vez, o princípio da dignidade da pessoa humana situa o homem como ponto central do ordenamento jurídico, o que por si afasta a possibilidade de qualquer tratamento atentatório à sua dignidade por parte de outras pessoas e em qualquer situação.

A previsão está no artigo 1º da Constituição Federal86 que prevê que a República Federativa do Brasil, “constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana.” A disposição é expressa e efetivamente demonstra a preocupação do legislador em cuidar da matéria, colocando a questão como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, sem se olvidar que quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 o país passava a respirar ares democráticos após mais de duas décadas vivendo sob a égide do regime ditatorial.

O reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio que deve ser observado para que se estabeleçam condições mínimas para a vida do indivíduo e para a vida em sociedade é fruto de estudos muito antigos. Ana Paula de Barcellos87, analisando as obras de John Rawls e Michael Walzer que tratam da questão teórica-filosófica que envolve o direito a prestações materiais relacionadas com a dignidade da pessoa humana, afirma que:

Assim é que, para Rawls, sem o mínimo social (a situação equitativa de oportunidades), não há a fruição efetiva dos direitos da liberdade, bem como se inviabiliza ab initio qualquer justiça distributiva. O mínimo existencial ou social, portanto, constitui uma verdadeira condição da liberdade. Para Walzer, diferentemente, a garantia do mínimo existencial,

85 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. p. 85.86 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.87 BARCELLOS, Ana Paula de, obra citada, p. 139.

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além de um valor das sociedades liberais ocidentais, é também uma imposição da moralidade mínimia, vale dizer: da própria natureza humana, aspecto universal do indivíduo, funcionando como pressuposto básico de sua participação democrátia em qualquer comunidade.

O seu conteúdo jurídico está relacionado com os direitos fundamentais, o que já se observa com a preocupação do legislador em situá-lo logo no artigo primeiro da Constituição Federal de 1988, conferindo a condição de fundamento da República Federativa do Brasil. Considerando a relevância dada ao princípio da dignidade da pessoa humana, pode-se dizer que se encontra na base dos direitos constitucionais, impondo-se, de pronto, que sejam respeitados a identidade e a integridade de todo o ser humano.

Assim, a dignidade da pessoa humana é considerada base de nosso regime jurídico, tendo o legislador constitucional conferido o “status” de fundamento do Estado brasileiro. Disso decorre que a sua observância deve ser geral e irrestrita. Associada à dignidade da pessoa humana está o respeito aos direitos subjetivos do indivíduo, que permeia valores que representam os sentimentos mais internos, os direitos fundamentais, direitos estes que se espalham em nossa legislação. A própria Constituição Federal tutela diversos direitos, com princípios que devem ser observados.

Neste aspecto, pode-se dizer que o Estado ao oferecer a prestação de um serviço público, o faz com a intenção de garantir aos cidadãos bem-estar, com a preocupação de atender as necessidades das pessoas. Vivian Lima López Valle, bem se manifestou quanto ao tema88:

Os serviços públicos são meio de desenvolvimento social e instrumento de materialização da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais. Nessa perspectiva é importante inserir a prestação de serviços públicos no contexto da nova contratualização administrativa com bases sólidas e permeadas pelo regime de direito público.Ingo Wolfgang Sarlet entende que89:

Em outras palavras- aqui considerando a dignidade como tarefa- o princípio da dignidade da pessoa humana impõe ao Estado, além do

88 VALLE, Vivian Lima López. Serviço Público, desenvolvimento econômico e a nova contratualização da administração pública: o desafio na satisfação dos direitos fundamentais, in Globalização, direitos fundamentais e direito administrativo, Romeu Felipe Bacellar Filho, Emerson Gabardo, Daniel Wunder Hachem (coordenadores), p. 282.89 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2010.

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dever de respeito e proteção, a obrigação de promover as condições que viabilizem e removam toda sorte de obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.

Quando se fala acerca da efetividade dos direitos e garantias constitucionais, não pode escapar a análise da prestação dos serviços públicos sobre tal enfoque, particularmente quando dotado o Estado da responsabilidade de “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, conforme expresso no artigo 3º da Constituição Federal90.

Surge a necessária proteção aos direitos fundamentais, com destaque à dignidade da pessoa humana que deve ser preservada em toda a prestação de serviço, atentando-se que a própria finalidade deve ser previamente analisada sob seu enfoque. A necessidade de se proteger os direitos da personalidade nasce da própria condição da vida em sociedade e das constantes mutações a que estamos sujeitos hodiernamente. Trata-se de uma espécie de direitos fundamentais que consistem na proteção dos atributos da pessoa.

Quando ao respeito aos direitos fundamentais como forma de concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, merece destaque a posição de Ingo Wolfgang Sarlet91:

Neste contexto, verifica-se ser de tal forma indissociável a relação entre a dignidade da pessoa e os direitos fundamentais que mesmo nas ordens normativas onde a dignidade ainda não mereceu referência expressa, não se poderá- apenas a partir deste dado- concluir que não se faça presente, na condição de valor informador de toda a ordem jurídica, desde que nesta estejam reconhecidos e assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

Desta forma, não por acaso a Constituição Federal de 1988 estabelece o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Brasileiro, e como tal deve ser respeitado. A seguir será abordado o tema e analisados alguns casos onde pode haver conflitos que envolvam os serviços públicos e os direitos fundamentais, estes associados a dignidade da pessoa humana.

90 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.91 SARLET, Ingo Wolfgang, obra citada, p. 96.

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5 OS SERVIÇOS PÚBLICOS, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Segundo Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt, a atividade qualificada como serviço público se caracteriza pela satisfação de necessidades inerentes à dignidade da pessoa humana92.

Para Cesar A. Guimarães Pereira93:

A idéia de serviço público relaciona-se diretamente com a de solidariedade social. Alude-se, especialmente no direito europeu, ao serviço público como instrumento para a construção da coesão social e territorial. Vincula-se o serviço público à realização material da dignidade da pessoa humana. Atribui-se ao serviço público o caráter de garantia constitucional material de direitos fundamentais, de modo que a sua supressão equivaleria a tornar materialmente inexistentes esses direitos.

E continua o autor:

O Estado tem o dever de perseguir a realização da dignidade humana, dos direitos e valores fundamentais da Constituição. Assim, a criação de ao menos uma parcela dos possíveis serviços públicos é objeto de um dever de legislar. Isso tem direta conexão com a finalidade de concretização de direitos fundamentais que se pode vislumbrar nos seviços públicos.

Desta forma, pode-se vincular o conceito de serviço público à realização dos direitos fundamentais e de outros valores constitucionais, mas nos dizeres de Marçal Justen Filho isso não significa afirmar que o único modo de satisfazer tais direitos seja por meio da prestação dos serviços públicos94.

Romeu Felipe Bacellar Filho propõe a prestação de serviços essenciais para a proteção dos direitos fundamentais e a instrumentalidade do serviço público em relação aos direitos fundamentais, afirmando haver um direito fundamental ao serviço público adequado, conforme assegura o artigo 175, parágrafo único, IV, da Constituição Federal95.

Mais uma vez citando Ingo Wolfgang Sarlet, que com propriedade discorre acerca dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, ressaltando a sua importância, referido autor afirma que96:

92 BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa, obra citada, p. 223-224.93 PEREIRA, César A. Guimarães, obra citada, p. 7-8.94 MARÇAL Justen Filho. Curso de Direito Administrativo, p. 489.95 FILHO, Romeu Felipe Bacellar. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva. 2005. p. 152.96 SARLET, Ingo Wolfgang, obra citada, p. 164.

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Cuidando-se a dignidade- e aqui tomamos emprestadas as expressivas palavras de Cármen Lúcia Antunes Rocha- do que se poderia denominar de “coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana”, é imprescindível que se outorgue ao princípio fundamental da digndade da pessoa humana, em todas as suas manifestações e aplicações, a máxima eficácia e efetividade possível, em suma, que se guarde e proteja com todo o zelo e carinho este coração de toda sorte de moléstias e agressões, evitando ao máximo o recurso a cirurgias invasivas e, quando estas se fizerem inadiáveis, que tenham por escopo viabilizar que este coração (ético-jurídico) efetivamente esteja (ou, pelo menos, que venha a estar) a bater para todas as pessoas com a mesma identidade.

É dever do Estado a intervenção na sociedade para que garanta aos indivíduos uma existência digna e respeitável, vinculando-se a finalidade da prestação dos serviços públicos à promoção da dignidade da pessoa humana bem como aos demais direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.

Adriana da Costa Ricardo Schier ensina que97:

A constitucionalização dos direitos sociais traz consigo o instituto do serviço público como o objeto de intervenção estatal pelo qual será assegurada a efetividade desses direitos, diretamente ligados à concretização da dignidade de todas as pessoas. Essa concepção informa a Constituição Federal de 1988, que assegura o direito fundamental ao serviço publico adequado.

Alexandre Santos de Aragão, citando Élie Cohen e Claude Henry, afirma que não há um direito fundamental de acesso aos serviços públicos, mas sim que os serviços públicos são indispensáveis ao exercício de alguns direitos fundamentais98. Entende que os serviços públicos não se configuram um direito fundamental, mas sim um meio de realização de direitos fundamentais autonomamente considerados.

Considerando-se o vínculo existente entre a prestação dos serviços públicos e os direitos fundamentais, o autor suscita problema relacionado a eventual prioridade da oferta de um ou de outro serviço, para atender esta ou aquela finalidade. Para atender tantas necessidades básicas, afirma que devem ser observadas escolhas orçamentárias, dentro do poder do Estado, não sendo conferido ao Poder Judiciário a interferência99:

97 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo. Globalização, direitos fundamentais e direito administrativo, Romeu Felipe Bacellar Filho, Emerson Gabardo, Daniel Wunder Hachem (coordenadores), p. 290.98 ARAGÃO, Alexandre Santos de. Direito dos serviços públicos, p. 532-533.99 ARAGÃO, Alexandre Santos de, obra citada, p. 535.

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(...) em seara que aumenta as despesas do Poder Executivo: se não é permitido o aumento de despesas em processos legislativos deflagrados pelo Poder Executivo (art. 63, I, CF), a fortiori não o será a criação originária de despesas mediante decisões judiciais, nas quais diuturnamente a Administração Pública se depara com as chamadas “escolhas trágicas”, submetidas à reserva do possível.

Afirma que o Poder Judiciário pode, em casos excepcionais, quando ameaçado o núcleo essencial de direitos, e atendimento à reserva do possível, determinar ao Estado ou ao poder concedente que de alguma forma supra aquela necessidade, sem predeterminar o meio a ser para tanto adotado100, entendendo que:

Não que deva ser descartada de forma absoluta a imosição judicial de prestações de serviço público para assegurar direitos fundamentais, o que só é admissível, contudo, nos casos concretos excepcionais em que a omissão estatal estiver atingindo a dignidade da pessoa humana, o que não se dá simplesmente quando a pessoa não tem como usufruir uma prestação relevante, mas sim quando a ausência desta colocar em risco o mínimo existencial ou o núcleo essencial do direito fundamental em questão.

Por sua vez, Celso Ribeiro Bastos destaca que havendo recusa por parte do Estado na prestação de um serviço público, pode o usuário utilizar-se de ação judicial a fim de obrigar o Estado a realizar a prestação101. Para Cesar A. Guimarães Pereira102:

A intervenção direta do Poder Judiciário, com fundamento em um direito fundamental a uma prestação estatal, é reservada para os casos anormais, de omissão estatal apta a sacrificar ou afetar gravemente esse direito fundamental. Nesses casos, os usuários hipotéticos são investidos no direito subjetivo de obter coativamente do Estado o serviço público ou uma providência que o substitua de modo eficaz.Destarte, cumpre ressaltar que para a efetivação dos direitos

fundamentais, aqui falando-se na dignidade do ser humano, ainda que se considerem as peculiaridades inerentes aos serviços públicos, não se pode afastar a possibilidade de discussão judicial acerca da matéria.

Pois bem, como visto os serviços públicos constituem-se um instrumento de efetivação dos direitos fundamentais. Devem primar para a consecução de

100 ARAGÃO, Alexandre Santos de, obra citada, p. 548.101 BASTOS, Celso Ribeiro, obra citada, p. 173.102 PEREIRA, César A. Guimarães. Usuários de serviços públicos: usuários, consumidores e os aspectos econômicos dos serviços públicos. São Paulo, Saraiva, 2006.

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atividades que visem o bem-estar social, oferecendo condições para uma vida digna.Segundo Ana Cláudia Finger103:

Analisando as formulações acima expendidas, fácil perceber que o serviço público exerce uma função instrumental em relação aos direitos fundamentais. Em verdade, revela-se um instrumento que possibilita a efetiva concretização dos direitos fundamentais e, em última medida, a concretização do valor máximo do sistema jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana.

A busca da efetivação dos direitos fundamentais é, então, uma das finalidades dos serviços públicos, porém, não é o que se verifica na realidade social na qual vivemos, pois todos os dias temos notícias de desvios praticados pelo Poder Público que não cumprem o seu papel maior previsto na Constituição Federal, o que sem dúvida acarreta em danos à população. Neste sentido, propõe Ana Cláudia Finger104:

A consagração dos direitos fundamentais na ordem constitucional foi uma grande conquista da humanidade. Mas conquista maior será conseguir ultrapassar a distância que separa a norma (dever-ser) da realidade social (ser). Daí a necessidade de uma dogmática constitucional emancipatória, pós-positivista e principiológica, que tenha como centro o ser humano e onde a lei é feita para assegurar os direitos fundamentais. Uma dogmática que se apresenta para a construção de um mundo novo, mais ético, justo e solidário.

A prestação de serviços públicos deve atender aos interesses públicos, da sociedade, sempre atento aos princípios antes enunciados, observada ainda a continuidade da prestação, para que o usuário não sofra as consequências na ausência daquele serviço. Disso resulta o entendimento de que os serviços públicos essenciais podem ser considerados como indispensáveis à manutenção da vida das pessoas, o que sugere que sua interrupção violaria, num primeiro momento, garantias fundamentais dos usuários, assentados que estão na dignidade da pessoa humana.

Neste aspecto, pela pertinência e importância da questão, passa-se a analisar a questão, sob o enfoque do entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da matéria, particularmente no que se refere a possível interrupção no fornecimento do serviço ao cidadão.

103 FINGER, Ana Cláudia. Serviço Público: Um instrumento de concretização de direitos fundamentais, in Revista de direito administrativo, n. 232, 2003, p. 80.104 FINGER, Ana Cláudia, obra citada, p. 82.

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5.1 O SERVIÇO PÚBLICO E O PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA PRESTAÇÃO

Partindo-se do pressuposto que os serviços públicos são essenciais, alguns tidos como indispensáveis à vida das pessoas, sendo os serviços públicos um instrumento para a efetivação dos direitos fundamentais com respeito a dignidade da pessoa humana, tendo como foco o seu destinatário final, que é o usuário do serviço, num primeiro momento, inconcebível se apresenta a interrupção do seu fornecimento. Pode-se, até mesmo afirmar, que a paralisação indevida da prestação do serviço público fere direito fundamental do usuário, vez que possui direito às condições mínimas de existência, ou seja, a uma vida digna.

Mas, por exemplo, referindo-se às atividades prestadas não diretamente pelo Estado, como fornecimento de energia elétrica, água, quando ocorre a inadimplência por parte do usuário, a suspensão do serviço é consequência contratual.

É vasto o campo e muitas são as discussões a respeito do corte do fornecimento de serviços essenciais, tais como água e energia elétrica, de forma a constranger o usuário ao pagamento, ultrapassando os limites da legalidade, em visível afronta e desrespeito à dignidade da pessoa humana, haja vista o cidadão utilizar tais serviços públicos para sua sobrevivência. Afora a interrupção no fornecimento dos serviços, a empresa fornecedora do serviço dispõe de mecanismos legais pelas vias judiciais, para o ressarcimento dos valores não pagos, utilizando-se do princípio do contraditório e da ampla defesa para demonstrar o seu direito.

A jurisprudência pátria já se manifestou firmemente no sentido de reconhecer a impossibilidade de interrupção do fornecimento de serviço público essencial quando constatada a inadimplência por parte do usuário. No julgamento da apelação cível n° 94.883-2, Relator o Juiz Convocado Lauro Laertes de Oliveira, o Tribunal de Justiça do Paraná entendeu que105:

ENERGIA ELÉTRICA - SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO, ATRAVÉS DE ATO DA CONCESSIONÁRIA DO SERVIÇO PÚBLICO, POR ATRASO NO PAGAMENTO DA FATURA ILEGALIDADE MANDADO DE SEGURANÇA CONCESSÃO - RECURSO PROVIDO. O fornecimento de energia elétrica constitui serviço público essencial, devendo ser prestado continuamente (artigo 22, Lei 8.078/90), não sendo admissível a suspensão com fundamento no atraso quanto ao pagamento da fatura, uma vez que o fornecedor pode se utilizar dos meios de cobrança que o sistema jurídico lhe proporciona.

105 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível n° 94.883-2.

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Contudo, a interrupção do fornecimento de serviços públicos essenciais em virtude da inadimplência do usuário é uma questão muito controvertida na doutrina e na jurisprudência. Os que são favoráveis à suspensão do serviço sustentam que a inadimplência do usuário causa prejuízos ao prestador de serviços, o qual não é obrigado a prestar o serviço gratuitamente.

De um lado a questão social, dignidade da pessoa humana, cobrança expondo o usuário a vexame e de outro a questão econômica acerca do custo do serviço e queda de qualidade do serviço.

O Ministro Luiz Fux, quando ainda compunha o Superior Tribunal Justiça, em diversas oportunidades deixou assente o seu entendimento de que106:

2. Não obstante, ressalvo o entendimento de que o corte do fornecimento de serviços essenciais - água e energia elétrica – como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e afronta a cláusula pétrea de respeito à dignidade humana, porquanto o cidadão se utiliza dos serviços públicos, posto essenciais para a sua vida. Curvo-me, todavia, ao posicionamento majoritário da Seção.3. Hodiernamente, inviabiliza-se a aplicação da legislação infraconstitucional impermeável aos princípios constitucionais, dentre os quais sobressai o da dignidade da pessoa humana, que é um dos fundamentos da República, por conseguinte, inaugurando o texto constitucional, que revela o nosso ideário como nação.4. A Lei de Concessões estabelece que é possível o corte, considerado o interesse da coletividade, que significa interditar o corte de energia de um hospital ou de uma universidade, bem como o de uma pessoa que não possui condições financeiras para pagar conta de luz de valor módico, máxime quando a concessionária tem os meios jurídicos legais da ação de cobrança. A responsabilidade patrimonial, no direito brasileiro, incide sobre o patrimônio do devedor e, neste caso, estaria incidindo sobre a própria pessoa.

No entanto, o entendimento jurisprudencial majoritário acerca da matéria é no sentido de aplicar o inciso II, do parágrafo 3º, da lei nº 8.987/95, que não considera descontinuidade na prestação do serviço a interrupção por inadimplemento do usuário, ainda que estabeleça que deve ser considerado o interesse da coletividade107:

106 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 873174/RS.107 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 800.586/RS.

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PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. ENERGIA ELÉTRICA. CORTE NO FORNECIMENTO. CONSUMI-DOR INADIMPLENTE POSSIBILIDADE. ESSENCIALIDADE DO SERVIÇO. NÃO-CARACTERIZAÇÃO.1. A Jurisprudência assente deste Tribunal entende pela possibilidade de corte no fornecimento de energia elétrica desde que, após aviso prévio, o consumidor permaneça em situação de inadimplência com relação ao res-pectivo débito, nos termos do estatuído no art. 6º, § 3º, da Lei 8.987/95. Precedentes: Recursos especiais n. 363.943/MG e 963.990/SC.2. In casu, o Tribunal de origem entendeu que a mera inadimplência do consumidor não constituía motivação suficiente a ensejar o corte no fornecimento de energia elétrica por resultar em ofensa ao princípio da continuidade do serviço. Tal posicionamento contraria a jurisprudência do STJ, haja vista que não foi comprovada a essencialidade do serviço prestado, nem tampouco ficou evidenciado tratar-se de débito pretérito, hipóteses essas que impedem a suspensão do serviço.3. Recurso especial parcialmente conhecido, e, nessa parte, provido.

O tema é polêmico e é trazido ao estudo justamente para se constatar se no caso de interrupção no fornecimento de serviços públicos essenciais à vida das pessoas, há violação ao princípio da dignidade da pessoa humana, atingindo direito fundamental do cidadão.

É certo que os serviços de fornecimento de energia elétrica e de abastecimento de água são essenciais, básicos, não concebendo que uma família seja desprovida de água ou de energia elétrica, sendo que a falta de tais bens ofende direitos básicos de todo cidadão, consagrados pela Constituição Federal, sendo certo também que não se pode olvidar que a inadimplência dos usuários pode gerar para o prestador do serviço greve desequilíbrio, o que pode acarretar conseqüências na qualidade da prestação. Mas, por outro lado, imaginar uma vida digna a uma pessoa sem que possa utilizar energia elétrica, água, é praticamente impossível, ou mesmo a interrupção no fornecimento dos serviços em hospitais, ou escolas.

Ao que se verifica, embora a grande controvérsia sobre o tema, a solução mais acertada seria a análise ponderada de cada caso concreto antes de promover a interrupção do serviço. É que na verdade, no sistema jurídico brasileiro, tem-se que a cobrança de valores se resolve na responsabilidade patrimonial, e não incidindo sobre direitos inerentes à própria dignidade da pessoa. Mas não se pode olvidar o teor da lei que cuida da concessão e permissão dos serviços públicos, e a necessidade da mantença dos contratos, o que enseja a garantia da remuneração do mesmo, que é realizada, na grande maioria das vezes, por meio do pagamento das tarifas realizadas pelos usuários.

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Enfim, como dito, o tema é controverso e não se tem aqui a pretensão de dar uma resposta definitiva ao tema. O que se constata é que existem entendimentos jurisprudenciais que concluem pela impossibilidade da interrupção justamente por malferir a dignidade da pessoa humana.

6 CONCLUSÃO

O Estado (direta ou indiretamente) está incumbido de proporcionar à sociedade como um todo, e aos indivíduos que a compõem, atividades realizadas através da prestação de serviços que visem, em última análise, o atingimento dos interesses públicos, culminando com o bem-estar das pessoas.

Para atingir tal objetivo, o caminho não é fácil, eis que deve atentar-se às efetivas necessidades da população, aquelas mais básicas, focando o desenvolvimento social e a satisfação das pessoas. Os serviços públicos devem fornecer aos cidadãos condições que permitam a efetivação dos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal. Devem estar relacionados ao bem-estar das pessoas e sempre atentos ao respeito à dignidade da pessoa humana.

No Brasil, há que se reconhecer grandes avanços do Poder Público no sentido de oferecer à população serviços públicos com tais perspectivas. Mas não se pode acobertar as mazelas que ainda existem, condições sub-humanas de vida relegadas àqueles que dependem do Estado e apenas do Estado para as suas sobreviências. Atitudes que infelizmente estão associadas à má administração que possui no seu bojo o que seja talvez um dos piores males que acompanham a administração pública nesta tarefa: a corrupção. O brasileiro convive com notícas diárias, seja através de desvios de dinheiro, a aplicação indevida de verbas públicas, entre outras tantas que os jornais divulgam Brasil afora.

De qualquer forma, o Estado possui o dever de prestar os serviços públicos, seja por si mesmo, ou por meio de concessão, permissão ou autorização, sempre ao mesmo resguardada a titularidade de prestação do serviço. Tal fato ocorre em virtude da necessidade de se propiciar aos indivíduos condições adequadas de vida, um mínimo existencial para a consecução de suas atividades, como dito, voltadas ao bem-estar do cidadão e primando pela dignidade das pessoas.

Enfim, uma coisa é certa, quando se está falando em prestação de serviços que irão interferir no dia-a-dia das pessoas, que se destinam a conferir o bem-estar numa visão ampla, um bem-estar que acomode não apenas detalhes, mas sim que satisfaçam os interesses sociais mais importantes da sociedade, que se relacione com os direitos fundamentais, tendo no âmago a dignidade das pessoas, o papel do Estado (ou do prestador do serviço público) torna-se imperiosa para tal desiderato, urgindo a necessidade da implantação de atividades ou serviços que atendam com adequação e eficiência aos anseios da comunidade. O foco é o usuário, e dele o serviço público e o Estado não podem se dissociar. Questões econômicas certamente influirão, mas o interesse do indivíduo, a dignidade da pessoa há que ser respeitada.

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Quando existe a omissão da prestação, levar a questão ao judiciário para solucionar o impasse, parece ser a opção acertada. Embora existam entendimentos diversos, nos parece que a Constituição Federal é clara quando prevê no seu artigo 5º, inciso XXXV, que nenhuma lesão ou ameaça a direito poderá ser excluída da apreciação do Poder Judiciário. É verdade que devem ser analisadas as peculiaridades que envolvem a situação (como orçamento, interferência entre os poderes, ...), mas o usuário tem a possibilidade de optar entre o ingresso do pedido em juízo ou não, a fim de buscar a efetividade de seus direitos.

E aqui está se falando em direitos maiores, direitos fundamentais que estão relacionados com a diginidade da pessoa, aqueles que a própria Constituição Federal cuidou de tratar logo nos primeiros artigos, para que deixasse claro no ordenamento a sua importância.

Correta a visão de Adriana da Costa Ricardo Schier, quando associa a adequada prestação dos serviços públicos ao aumento dos níveis de desenvolvimento da sociedade, em níveis muito mais abrangentes do que a simples diminuição da pobreza, o que representa a garantia de niveis de bem-estar mais elevados108. Com uma prestação de serviços públicos eficiente e adequada, afastando-se os interesses excusos, a má-administração, a corrupção, focando-se a prestação no usuário, na sociedade, no seu destinatário final, presente o interesse social, com respeito aos direitos fundamentais e ao princípio da dignidade da pessoa humana, os resultados serão maiores, a prestação do serviço será tida como um mecanismo de integração social109, reduzindo-se a exclusão de alguns, permitindo aos cidadãos o acesso a serviços que ainda que sejam básicos, mas que lhes garantirão uma existência digna.

O Estado há que atender o usuário, a sociedade, prestando serviços ditos públicos, com a eficiência máxima, sempre no intuito de respeitar, ao mesmo tempo, a individualidade da coletividade, e os intersses públicos, conciliar os anseios da população com a destinação dos recursos econômicos, atendendo estas questões tão básicas que circulam nossas vidas, até porque, buscar a efetividade dos direitos fundamentais, com destaque para a dignidade da pessoa humana é a finalidade do Estado, e acima de tudo, é o que se denota da leitura da Constituição Federal.

108 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo, obra citada, p. 293.109 SCHIER, Adriana da Costa Ricardo, obra citada, p. 292.

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A TUTELA DA LIBERDADE DO TRABALHADOR PELO DIREITO PENAL BRASILEIRO NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA

joSé carloS PortElla junior110

fábio anDré guaragni111

RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de analisar a legitimidade da intervenção penal nas relações de trabalho, especificamente no que toca à prática do trabalho escravo. Este trabalho também pretende verificar, no atual contexto de desregulamentação dos mercados mundiais e de flexibilização das leis trabalhistas, incentivadas pela globalização econômica, o fundamento da função do Direito Penal na preservação da liberdade do trabalhador.

Palavras-chave: Globalização econômica. Trabalho escravo. Direito Penal. Subsidiariedade.

ABSTRACT

The present article aims to analyze the legitimacy of criminal intervention in labor relations, specifically with regard to the slave labor. This work also intends to investigate in the current context of deregulation of global markets and the flexibilization of labor laws, encouraged by economic globalization, the basis of the function of criminal law in the preservation of freedom of the worker.

Keywords: Economic globalization. Slave labor. Criminal Law. Subsidiarity.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o objetivo analisar a legitimidade da intervenção penal na tutela nas relações de trabalho (especificamente no que concerne à prática do trabalho escravo) ante o que dispõem a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.

Busca-se verificar, no atual contexto de desregulamentação dos mercados mundiais, que é incentivada pela globalização econômica e que impõe a flexibilização dos direitos sociais, se se encontram fundamentos jurídicos legitimadores da tutela penal da liberdade do trabalhador.

110 Advogado, Professor de Direito do Centro Universitário Curitiba e mestrando vinculado ao programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania da mesma instituição de ensino.111 Promotor de Justiça, Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais (UFPR). Professor de Direito Penal Econômico do Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do UNICURITIBA. Professor de Direito Penal do UNICURITIBA, FEMPAR, ESMAE, CEJUR e LFG.

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Para a realização da pesquisa será utilizado o método teórico-bibliográfico, pelo qual serão aplicados textos constantes de livros, artigos e publicações jurídicas no geral. Abordar-se-á o tema de maneira dedutiva e dialética, partindo-se da análise de dispositivos legais do direito brasileiro e do Direito Internacional que impõem a obrigação do Estado e de toda a sociedade de proteger a dignidade do trabalhador, seguido da verificação do impacto do discurso neoliberal que vem no bojo da globalização econômica na função do Direito Penal no que toca à proteção do trabalhador.

Espera-se com esta pesquisa revelar os fundamentos da intervenção do Direito Penal no campo das relações de trabalho num cenário de economia globalizada e de enfraquecimento do poder de regulação estatal.

A ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO

A Constituição Federal de 1988, embora reconheça a livre iniciativa e a propriedade privada como fundamentos da ordem econômica (art. 170), dá ao Estado brasileiro um perfil nitidamente social.112 Se de um lado o modelo econômico adotado pelo Brasil é o capitalista, de outro lado têm-se como princípios fundamentais da República a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho (art. 1°, III e IV).

Em seu artigo 5º, a Constituição erigiu à condição de direitos fundamentais de todos os cidadãos a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade e a segurança, entre outros. Da mesma forma, nos arts. 6º a 11, a Constituição prevê como direitos fundamentais os direitos sociais e econômicos. Aliás, diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, e que passaram a fazer parte do rol dos direitos fundamentais (conforme o art. 5º, par. 2º, da Constituição de 1988), promovem a proteção desses direitos, como o Pacto de São José da Costa Rica de 1969 (ratificado pelo Brasil em 1992), e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da Organização das Nações Unidas (ONU), ambos de 1966 (ratificados também em 1992).

112 Há autores que defendem que a Constituição de 1988 dá à república brasileira o perfil de Estado Social-Fraternal, que seria um passo à frente do Estado Social, tendo em vista a inserção expressa do princípio da solidariedade no art. 3º, I, além da previsão constitucional de direitos difusos e coletivos, como é o caso da proteção do meio ambiente sadio e equilibrado (art. 225 da CF/88) e do patrimônio cultural nacional (art. 216 da CF/88). Ver MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A fraternidade como categoria constitucional. Revista Eletrônica sobre a reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n° 23, setembro, outubro, novembro, 2010. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com/revista/RERE-23-SETEMBRO-2010-CARLOS-AUGUSTO-MACHADO.pdf. Acesso em: 16 de julho de 2012.

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Ainda que a Constituição de 1988 tenha reconhecido o modelo capitalista de produção de riqueza, haja vista que estabeleceu como princípios da ordem econômica nacional a propriedade privada e a livre concorrência (art. 170, II e IV), o Estado brasileiro não está assentado no modelo liberal clássico, que remonta ao século XVIII e cujo modelo está baseado em dois princípios: “liberdade de empresa e liberdade de concorrência, reconduzindo-se ambos a uma idéia geral de liberdade individual e do valor supremo da iniciativa privada para a ordem económica e social” (MOREIRA, 1978, p. 38).

O individualismo típico do modelo liberal de organização político-social foi superado pela Constituição de 1988 (BONAVIDES, 2009), que claramente vai a outra direção ao determinar em seu art. 3º que são fundamentos da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), a erradicação da pobreza, da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III) e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (inciso IV).

No que se refere à propriedade privada, ainda que considerada pela Constituição de 1988 como direito fundamental (art. 5º, caput, e inciso XXII) e tida como princípio da ordem econômica (art. 170), a Carta Maior determina que apenas a propriedade que cumpra sua função social é reconhecida pela ordem jurídica como legítima (artigos 5º, XXIII, 153, par. 4º, 170, III, 182, par. 2º, 183, 186, 184, par. 1º a 5º, 191 e 243), de modo que a ideia de propriedade como um fim em si mesmo, típico do modelo liberal, é substituído pelo paradigma da dimensão social da propriedade, transcendente ao seu mero valor econômico.

O art. 170 da CF/88 determina que a valorização do trabalho humano é um dos fundamentos da ordem econômica brasileira, ao mesmo tempo que, segundo o art. 193 da CF/88, o primado do trabalho é a base da ordem social. Isso demonstra que o trabalho humano, segundo a Constituição, deve ser visto para além de sua importância meramente econômica (como fator de produção). O trabalho humano é expressão da dignidade humana, visto que por meio do trabalho o homem pode garantir a sua subsistência e a realização de sua vocação como homem (PETTER, 2008).

Em que pese o discurso neoliberal que contamina a economia e que pretende transformar o trabalho humano em mera mercadoria e que, como tal, deve estar sujeita às leis do mercado (da maximização dos lucros e da redução dos custos da produção), a Constituição de 1988 o coloca como eixo central da ordem econômica nacional, impondo ao Estado e à sociedade (incluem-se, nesse caso, os agentes econômicos), o dever de valorizar o trabalho humano, o que significa que não basta atender ao critério quantitativo (mais trabalho), mas também ao critério qualitativo (melhor trabalho), isto é, é dever de todos garantir condições dignas de trabalho aos indivíduos, principalmente àqueles

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mais vulneráveis do ponto de vista social (com baixa escolaridade e pertencente a grupos raciais discriminados, por exemplo) e econômico (oriundos das classes mais desfavorecidas), em razão do princípio da solidariedade emanado do art. 3º, I, da CF/88.

Segundo Lafayete Josué Petter, o fim da ordem econômica, segundo a Constituição de 1988, é dar efetiva garantia à existência digna dos cidadãos, conforme os ditames da justiça social, na expressão do próprio art. 170 da CF/88. Sendo o princípio que confere unidade e legitimidade à ordem constitucional, a dignidade da pessoa humana constitui o fim último da ordem econômica nacional, razão pela qual se pode afirmar que é dever de todos, solidariamente, Estado e sociedade (e também do mercado, em virtude das obrigações impostas pela Constituição Federal, notadamente pelos artigos 3º e 170), promover a proteção dos direitos fundamentais e, aqui em destaque, a proteção do trabalho humano (PETTER, 2008, p. 181-197).

Certo é que a valorização do trabalho humano é um dos fatores que contribuem para se alcançar o desenvolvimento nacional. Ao garantir as condições dignas de trabalho aos indivíduos113, a ordem constitucional brasileira exige que o incremento da produção e o acréscimo de capital não sejam atingidos à custa dos trabalhadores, mas sim também para os trabalhadores.

Tendo em vista que o desenvolvimento econômico é um dos fins almejados pela ordem econômica brasileira (vide art. 170, VII, da CF/88), o individualismo típico do modelo econômico liberal do século XVII não encontra mais guarida perante o direito brasileiro. Significa dizer que a busca pelo lucro a qualquer custo e, consequentemente, o acréscimo de riqueza individual, por si mesmo, não é suficiente para atingir o desenvolvimento nacional. É preciso mais: que essa riqueza gerada pelos agentes econômicos seja transformada em ganhos socializáveis, com a necessária contribuição para a redução das desigualdades sociais e para aumento de bem-estar da coletividade. Nesse aspecto, a intervenção do Estado na economia, através, por exemplo, da regulação do mercado e planejamento de políticas públicas, deve garantir que o crescimento econômico venha acompanhado das transformações das estruturas sociais que visem à erradicação da miséria e das desigualdades regionais (BERCOVICI, 2003; BERCOVICI, 2005).

Em outros tempos, em que o modelo liberal de organização social era o espelho do modelo liberal capitalista de produção, o crescimento econômico era medido pelo acúmulo de riqueza e pelo sucesso individual. Todavia, para o

113 A garantia de condições dignas de trabalho significa também a não-submissão ao trabalho escravo, porque, do contrário, se violaria o preceito constitucional inserto no art. 5º, inciso III, da Constituição de 1988 (“ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”).

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Estado Social, a noção de desenvolvimento nacional vai muito além do mero acúmulo de capital (crescimento econômico): exige-se que esse incremento de riqueza se transmute em necessária elevação do bem-estar social e na redução das desigualdades sociais (imperativo da ideia de justiça redistributiva).

Mais do que um princípio regedor da ordem econômica brasileira, a busca pelo desenvolvimento nacional é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, consoante se vê do art. 3º, da CF/88. Ora, o art. 3º, da CF/88, elenca como objetivos da República, a par do desenvolvimento nacional (inciso II), a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I), a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), bem como a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Em outras palavras, para a ordem constitucional pátria, o desenvolvimento econômico significa muito mais que o incremento da produção e da riqueza (aspecto quantitativo, ou crescimento econômico), porque exige que o acréscimo de capital seja acompanhado do atendimento aos objetivos estampados no art. 3º da Carta Maior (aspecto qualitativo, ou desenvolvimento) (GRAU, 2003, p. 197).

A ideia de desenvolvimento nacional, baseado na redistribuição da riqueza, tem como fim último garantir a efetividade do meta-princípio da ordem constitucional brasileira: a dignidade da pessoa humana. Nessa perspectiva, o respeito aos direitos sociais e econômicos, entendidos como emanações do princípio da dignidade humana, garante que o desenvolvimento econômico seja atingido. Em outras palavras: não existe desenvolvimento econômico sem respeito à dignidade humana.

Além de contemplada na Constituição Federal de 1988, a dignidade da pessoa humana, valor reitor da ordem econômica e, claro, de todo o ordenamento jurídico nacional, tem sido referendada por diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, entre os quais aqueles que tratam especificamente da proteção ao trabalho.

A ORDEM JURÍDICA INTERNACIONAL E A PROTEÇÃO DO TRABALHO HUMANO:

A proteção ao trabalho humano também encontra guarida no Direito Internacional. Numerosos tratados, muitos deles ratificados pelo Brasil, versam sobre direitos humanos econômicos e sociais e especialmente sobre a vedação ao trabalho escravo, e impõem que os seus signatários adequem suas práticas às suas normas de aplicação universal.

Segundo José Augusto Lindgren Alves (2003, p. 5), os direitos humanos são limitadores da soberania estatal. Em outras palavras, o conceito setecentista de soberania, segundo o qual o Estado poderia fazer tudo para preservar a

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“razão de Estado” (ou “os interesses nacionais”), sem qualquer limite externo a sua atuação, deixou de existir com a emergência do paradigma da proteção aos direitos humanos surgido no pós-Segunda Guerra Mundial.

Diz Antonio Augusto Cançado Trindade (2006, p. 142) que o Estado existe para o homem, e não o contrário. Se o Estado existe para o homem, isto é, um meio para que ele alcance a sua felicidade, a proteção dos direitos humanos é a garantia de que o homem será o fim de todas as coisas. O princípio pro homine determina que se deve dar a esses direitos a interpretação que mais amplifique os direitos do homem, aplicando-a com máxima efetividade, e adequando o seu texto às exigências de uma determinada realidade social, sem que isso leve à mitigação da própria ideia de dignidade da pessoa humana.

São exemplos de tratados internacionais, ratificados pelo Brasil, e que põem a salvo a dignidade da pessoa humana: os Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU (anteriormente citados) e o Pacto de San José da Costa Rica de 1969 (também já referido). A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, adotada através de resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, impõe no artigo IV que “Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.

A Convenção Suplementar sobre Práticas Análogas à Escravatura de 1956114, adotada no âmbito do sistema internacional de proteção aos direitos humanos da ONU, propugna pelo banimento da escravidão em suas formas contemporâneas.

No âmbito da Organização Internacional do Trabalho, organismo multilateral vinculado à ONU e que tem como tarefa a proteção internacional do trabalho humano, a Convenção n° 29 sobre Trabalho Forçado ou Obrigatório de 1930, ratificada pelo Brasil em 1957, impõe a abolição do trabalho forçado ou obrigatório. Em seu art. 2º, determina que, para os fins da convenção, a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade.115

Outros tratados alçam o direito ao desenvolvimento à condição de direito humano internacional. Em 1993, a Assembleia Geral da ONU adotou a Declaração e o Programa de Ação de Viena, que estabeleceu em seu art. 10 que o direito ao desenvolvimento é um direito universal e inalienável, parte integrante dos direitos humanos. Esse mesmo documento destaca que a pessoa humana será sempre o sujeito central do desenvolvimento. E, nessa perspectiva, a proibição à prática do trabalho escravo é um dos aspectos que compõem o

114 Convenção ratificada pelo Brasil em 1966.115 No mesmo sentido é a Convenção n° 105 da OIT, de 1957, ratificada pelo Brasil em 1965.

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conceito qualitativo de desenvolvimento, isto é, a valorização do trabalho humano é indissociável da concepção de desenvolvimento econômico.

Portanto, a concepção de desenvolvimento que deve prevalecer, porque mais harmônica com a dignidade humana, é aquela referendada por Amartya Sen (2000), segundo a qual o desenvolvimento econômico serve para ampliação e efetivação da liberdade humana em geral. O acréscimo de riqueza pode ensejar a expansão da liberdade dos indivíduos de uma sociedade, pois traz mais oportunidades e perspectivas econômicas, políticas e sociais. Mas por si só ele não é suficiente para tanto. Para que o crescimento econômico se converta em desenvolvimento, faz-se necessário que venha acompanhado de implementação de oportunidade sociais (na forma de educação, saúde e habitação, por exemplo), de liberdades políticas e civis (liberdade de expressão e eleições livres), de facilidades econômicas (possibilidade de participação no comércio e produção), garantias de transparência (ausência de corrupção e transações ilícitas) e segurança protetora (direitos trabalhistas, previdência social e assistência social). São liberdades instrumentais que juntas contribuem para o aumento da liberdade substantiva dos cidadãos, isto é, a liberdade de escolher seu próprio destino e moldar sua própria vida (auto-realização).

Nesse contexto, o desenvolvimento econômico depende da efetivação dos direitos econômicos e sociais por parte do Estado e da sociedade civil (e, por extensão, dos agentes econômicos), de sorte a permitir que os indivíduos consigam contornar da melhor maneira possível os efeitos negativos da globalização econômica, sem que sacrifiquem a liberdade de escolha de seu próprio modus vivendi.

Na mesma esteira, a Declaração de Viena de 1993 reforça o contido na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1986, a partir da qual a matéria passou a ser o leitmotiv de outros documentos internacionais, como o Tratado de Assunção de 1991 (que criou o MERCOSUL), a Declaração sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1992, após a Conferência do Rio de Janeiro), Declaração de Beijing sobre os Direitos da Mulher (adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1995), Declaração contra a Pobreza (assinada por 184 países ao final da Conferência da Cúpula Mundial pelo Desenvolvimento, em 1995).

No cenário mundial atual, em que a globalização econômica impõe a desregulamentação e privatização dos mercados globais, a proteção do trabalho humano passa a ser tarefa árdua, mas prioritária para evitar que o acréscimo de capital não se reverta em ganhos sociais.

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OS EFEITOS DA GLOBALIZAÇÃO ECONÔMICA SOBRE O TRABALHO E A TUTELA PENAL DA LIBERDADE DO TRABALHADOR

Sob a insígnia da globalização econômica, o Estado-nação tem assistido ao desmantelamento de seu poder soberano, haja vista que, para atrair investimento estrangeiro, necessário para dinamizar sua economia e aumentar sua riqueza que poderá promover o desenvolvimento nacional, tem servido como fiador da auto-regulação do mercado a partir, por exemplo, da eliminação de barreiras de entrada e saída de dinheiro, da remoção de medidas que protejam ou fomentem os produtos nacionais e da mitigação de direitos econômicos e sociais de seus cidadãos (imposta pelo imperativo de “redução custos” do Estado, tido a priori como ineficiente e dispendioso).

A cartilha neoliberal116, de que é expoente o Consenso de Washington,117 foi levada aos quatro cantos do planeta pelo fenômeno da globalização econômica, para a qual o Estado passa a ser mero garantidor do livre mercado e da competitividade econômica internacional. A partir do desenvolvimento de novas tecnologias de informação capazes de reduzir as “distâncias do mundo”, o esmorecimento da regulação do mercado deixou de ser uma condição local do Estado e passou a ser uma realidade global. Com uma simples operação pela internet, é possível transferir milhares de dólares de um canto do globo terrestre para outro, desestabilizando a economia de um país inteiro.

A abertura dos mercados nacionais e o livre trânsito de capitais permitiram que o mercado globalizado se autodeterminasse, o que fez com que o Estado não tivesse ou tivesse pouco poder de intervenção sobre ele. Dessa maneira, o mercado global se privatizou e passou a produzir suas próprias regras, as quais os Estados acabam se submetendo para formular políticas econômicas mais eficazes no intuito de não perder receitas preciosas para gerir sua própria economia e promover os serviços básicos que efetivam os direitos econômicos e sociais, principalmente da parcela mais pobre da população.

Alerta Anthony Giddens (2000, p. 27) que a globalização econômica traz em seu bojo o asseveramento da vulnerabilidade social dos indivíduos mais pobres e que estão à margem dos canais institucionais de participação política e de acesso à riqueza.

116 O neoliberalismo, surgido nos anos 1970, é a renovação da doutrina econômica liberal nascida no século XVI, mas que contempla os imperativos do mercado globalizado. 117 Denomina-se de “Consenso de Washington” um conjunto de medidas econômicas radicalmente neoliberais, apoiadas no ideário de Friedrich Hayek e Milton Friedman e endossadas pelo Fundo Monetário Internacional e países desenvolvidos, como os Estados Unidos, e em desenvolvimento como Rússia, China e Índia.

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A abertura econômica de um país, ou de uma região de um país, ao livre comércio pode solapar uma economia local de subsistência. Uma área que se torna dependente de um pequeno número de produtos vendidos em mercados mundiais fica muito vulnerável tanto a alterações nos preços quanto à mudança tecnológica.

Assim, a vulnerabilidade criada pela abertura dos mercados, quando inexistentes políticas públicas que garantam o sucesso dessa transação, pode submeter os pobres à tirania do mercado autorregulado, pois eles muitas vezes não estão cobertos pelos serviços básicos ofertados pelo Estado, como educação, saúde, previdência social e habitação. Essa insegurança socioeconômica torna esses indivíduos mais expostos aos riscos como doença, fome, desastres ambientais, migração ilegal e desemprego, e, portanto, menos capazes de lidar com as adversidades trazidas pela globalização econômica.

Como não contam com a atuação de políticas econômicas e sociais efetivas para compensar as perdas trazidas pela globalização, os indivíduos estão mais suscetíveis a práticas abusivas por parte dos que detêm o poder econômico. Entre essas práticas, está a exploração do trabalho escravo notadamente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.118

A partir da perspectiva do mercado global autorregulado, o trabalho humano passa a ser tratado como mera mercadoria (uma commodity passível, portanto, de variação de “preço” dependendo das necessidades do mercado) e como um custo da atividade empresarial que precisa ser aplacado. Daí a pressão do mercado sobre as legislações nacionais para mitigar a rede de proteção aos trabalhadores (“flexibilização”), com o intuito de “reduzir os custos operacionais” e aumentar o lucro (BAUMAN, 1999 e 2001).

Segundo François Chesnais (1996), a mobilidade do capital também é expressão do modelo atual, a qual foi alavancada pelo movimento de desregulamentação do mercado a partir dos anos 70 (em razão, sobretudo, da crise do petróleo, bem como da recessão econômica e da onda inflacionária que seguiram a ela), pelo progresso tecnológico e pela transformação da organização do trabalho operada pela tecnologia. Dessa maneira, o capital está apto a mover-se rapidamente de uma parte do mundo a outro, onde a mão-de-obra é barata ou onde o investimento será mais rentável.

Assim, a mundialização do capital decorre de dois fatores: do acúmulo intenso de capital ocorrido desde 1914 e das políticas liberais dos anos 1980

118 Acerca da situação do trabalho escravo no Brasil, ver o recente relatório “Perfil do trabalho decente no Brasil: um olhar sobre as unidades da federação”, da Organização Internacional do Trabalho. GUIMARÃES, José Ribeiro Soares. Perfil do trabalho decente no Brasil: um olhar sobre as Unidades da Federação. Brasília: OIT, 2012. Disponível em: http://www.oit.org.br/sites/default/files/topic/ gender/doc/relatoriotdvers%C3%A3oweb_ 876.pdf. Acesso: em 20 de julho de 2012

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(eras Reagan e Thatcher), baseadas na desregulamentação, na liberação do comércio, nas privatizações e no desmantelamento do Estado Social. Essas políticas deram às empresas meios para explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais em qualquer região do globo terrestre. A especialização da produção (cada etapa do processo produtivo fica a cargo da empresa filiada, para quem os custos são terceirizados) e a proximidade com o consumidor também são fatores que levam à “deslocalização” da empresa, isto é, a empresa se transnacionaliza e transfere para regiões diversas parcela de sua atividade. Tudo isso leva à racionalização dos custos, o que implica corte de empregos e aumento dos lucros nas regiões onde os salários são baixos e a proteção social do trabalhador é mínima.

Essa facilidade de deslocamento do capital no cenário dos mercados autorregulados traz um novo paradigma nas relações de emprego. O avanço da tecnologia reduziu os postos de trabalho e levou à flexibilização das relações trabalhistas, o que permitiu maior mobilidade do capital internacional, que não tem comprometimento com a economia local.

Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2002) identifica as características do paradigma hegemônico da globalização econômica, entre elas: a prevalência do princípio do mercado sobre o princípio do Estado; a total subordinação dos interesses do trabalho aos interesses do capital; o protagonismo incondicional das empresas transnacionais; e o enfraquecimento dos Estados nacionais.

Nesse cenário, o Estado-nação tem o desafio de, ao mesmo tempo preservar sua participação na economia global, garantir que a liberdade substantiva de seus cidadãos seja alcançada para que o desenvolvimento seja de fato uma realidade tangível. De um lado, o poder econômico pressiona por mais desregulamentação dos mercados, mais liberalização nas transações econômicas e flexibilização das leis do Estado, de outro, o Estado-nação se vê emparedado pelas ameaças especulativas de retaliação dos mercados mundiais caso não siga a cartilha neoliberal propagada pela globalização econômica.

No caso brasileiro, considerando o que determina a Constituição de 1988 acerca da ordem econômica brasileira e diante da imperiosidade de efetivação dos direitos fundamentais econômicos e sociais, bem como dos direitos humanos encartados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, deve o Poder Público, indo contra a pressão dos mercados, intervir na economia para corrigir práticas lesivas à sociedade, fazer valer o imperativo da proteção do trabalho e alcançar os objetivos traçados no art. 3º da CF/88.

Essa intervenção é amiúde feita pela drástica via do Direito Penal, como revelam os tipos penais previstos, por exemplo, na Lei n° 8.137/90 (crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo), na Lei n° 9.605/98 (crimes ambientais), no Título IV do Código Penal (crimes contra a organização do

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trabalho) e no art. 149 do Código Penal (previsto no Capítulo dos crimes contra a liberdade individual), que tipifica o delito de “redução a condição análoga à de escravo” (chamado, neste trabalho, de “crime de trabalho escravo”).

Todavia, não se pode desconsiderar o impacto da tendência de flexibilização das leis trabalhistas que vem carreada pela globalização econômica. É possível, portanto, questionar se a intervenção do Direito Penal nas relações de trabalho, no atual contexto de flexibilização, poderia desestimular a atuação das empresas e, assim, colocar em risco postos de trabalho. Em outras palavras, pode-se especular se o Direito Penal, nesse contexto, também não escaparia da onda “flexibilizante”.

Para Antonio Baylos e Juan Terradillos (1997, p. 34-35), a necessidade e a oportunidade da intervenção penal nas relações de trabalho não seriam afetadas pela flexibilização. Isso porque ela não significa o desaparecimento da tutela legal dos direitos laborais. É claro que a ordenação das fontes e as funções normativas do Direito do Trabalho pode se modificar para atender às exigências da economia globalizada, o que levaria à discussão, à luz da fragmentariedade do Direito Penal, acerca da criação de novas técnicas de controle pelas instituições jurídico-laborais. No entanto, a precarização do trabalho faz com que, em muitos casos, a intervenção penal se justifique, porquanto coloca em xeque a liberdade, a segurança e a saúde do trabalhador, além de violar o preceito constitucional da proteção do valor social do trabalho.

Com efeito, o Direito Penal, seguindo os valores constitucionais da ordem jurídica, tem como função dar efetividade às normas declaratórias e ordenadoras destinadas a tutelar os interesses dos trabalhadores e à proteção geral do trabalho enquanto princípio-reitor do Estado democrático e da ordem econômica.119 Ao proteger os trabalhadores de práticas como as descritas no art. 149 do Código Penal, o Direito Penal cumpre com sua obrigação constitucional de tutelar direitos individuais dos trabalhadores (como sua liberdade e saúde) e de proteger o valor social do trabalho.

É claro que a tutela penal pode ser considerada ineficiente ante os desafios da realidade. A suposta falta de eficiência do Direito Penal tem levado à discussão acerca da despenalização de condutas de gravidade reduzida ou à busca por sanções extrapenais (como as sanções pecuniárias) mais eficazes e que transcendam o marco clássico sancionatório. Todavia, o que se deve avaliar talvez não seja a oportunidade e necessidade da intervenção penal, mas sim a idoneidade dos instrumentos empregados para a efetivação da tutela do bem jurídico. Baylos e Terradillos (1997, p. 38-39) indicam que os defensores

119 Segundo decisão do Supremo Tribunal Federal (RE 398041/PA), o crime de trabalho escravo, além de ofender direitos individuais do trabalhador, também viola o bem jurídico supra-individual denominado de ”organização do trabalho”.

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da intervenção penal no campo do trabalho sustentam que a criminalização contribui para criar uma consciência social contrária às atitudes antijurídicas no mundo do trabalho e ressalta deveres objetivos que vinculam os empregadores com seus empregados, ou pode ser útil para expressar que os delitos de colarinho branco são excepcionalmente graves no marco do Estado Social e Democrático de Direito.120 Reforça-se, assim, a ideia de prevenção geral positiva fundamentadora da intervenção penal (FELICIANO, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise da bibliografia consultada e dos dispositivos legais da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil permite constatar que, apesar do enfraquecimento do poder estatal de regulação da economia e da onda “flexibilizante” que atinge o Direito do Trabalho, corolários da globalização econômica, a tutela penal na proteção da liberdade do trabalhador, entre outros direitos individuais, além de respeitar a subsidiariedade e a proporcionalidade, se justifica a partir da ideia da função social do Direito Penal vinculada à proteção de bens jurídicos, com o fim de “garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando essas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos” (ROXIN, 2009, p. 16).

120 No entanto, Baylos e Terradillos chamam a atenção para o fato de que o Direito Penal sozinho não atingirá os objetivos do Estado Social. Alguns aspectos que levam à inoperância do sistema jurídico de proteção ao trabalho devem ser enfrentados, como a obsolescência de normas penais substantivas e processuais ante as novas formas delitivas e a fraqueza do aparato de controle e vigilância. Os autores também enfrentam os fatores criminógenos que colocam em xeque a eficácia da tutela penal do trabalho. Segundo eles, são fatores que facilitam a prática de crimes contra os interesses dos trabalhadores: a) a posição do trabalhador, que o coloca em dupla condição de subordinação (de natureza econômica e de natureza institucional); b) a superioridade do chefe ou empregador (a questão da hierarquia), a divisão do trabalho, e a estrutura empresarial cuja dinâmica responde a leis próprias; c) a organização do trabalho através de prêmios (promoção) e punição (demissão); d) a descentralização das decisões. A insuficiência dos processos criminalizadores diante desses fatores criminógenos também pode contribuir para a ineficácia do Direito Penal. Eles indicam que fatores “internos” (que ocorrem dentro do próprio sistema penal), como a construção de alguns tipos penais genéricos e abstratos que colocam em xeque o princípio da legalidade e impedem o Poder Judiciário de aplicá-los e a falta de uma comunicação entre o Direito Penal e o Direito Administrativo nesse campo, têm minado a eficácia da intervenção penal. Além disso, os autores apontam fatores “externos” (que se situam no campo da atuação dos órgãos de repressão) que impedem a realização da função do Direito Penal do trabalho, como, por exemplo, a mentalidade dos magistrados de leniência com os delitos de empresa ao subvalorizar a gravidade dessas condutas, o desprezo dos sindicatos pela via penal para a tutela dos interesses dos trabalhadores e a dificuldade da vítima-trabalhador de levar as acusações à Justiça Penal receio de represálias ou para preservar benefícios econômicos (1997, p. 36-45).

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O preâmbulo da Constituição deixa claro que no Brasil foi instituído um Estado Democrático de Direito de perfil social, fundado na proteção dos direitos individuais e sociais, para assegurar o bem-estar de todos, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e harmônica. Do texto constitucional, bem como dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, se depreende que impende a todos, Estado e sociedade civil em cooperação (é o vetor solidariedade que emana do preâmbulo e do art. 3º, I), agir para, em qualquer domínio da vida social, inclusive na esfera econômica, evitar a vulnerabilidade do trabalhador aos riscos advindos da desregulamentação dos mercados, asseverados pela globalização econômica, entre eles a prática do trabalho escravo.

Nesse sentido, a incriminação da prática do trabalho escravo está em consonância com a função do Direito Penal em um Estado democrático: “a tutela equilibrada de todos os bens fundamentais, individuais e coletivos” (FRANCO, 2000, p. 268). E por “tutela equilibrada” deve-se entender como a intervenção penal justificada ante a insuficiência dos outros mecanismos não-penais menos dispendiosos socialmente, considerando que o Direito Penal é sempre uma intervenção drástica na esfera de liberdade dos cidadãos.

Ademais, não se pode esquecer que o Direito Penal não realizará sozinho a difícil tarefa de por a salvo os direitos do trabalhador, mas pode, respeitada a proporcionalidade da intervenção penal (subsidiariedade), reforçar a tutela dos bens jurídicos socioeconômicos que se encontram vulnerados na era da globalização econômica (PÉREZ, 1998, p. 63).

Segundo Francesco C. Palazzo (1989) e Luigi Ferrajoli (2010), o Direito Penal só será considerado democrático se estiver permeado pelos valores constitucionais da ordem jurídica em que está inserido. Diante disso, é possível afirmar que a norma incriminadora albergada no tipo penal do artigo 149 do Código Penal não refoge às balizas constitucionais e se dirige à salvaguarda fragmentária (proporcional) da dignidade do trabalhador.

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O JUIZ E A GESTÃO DA PROVA: A VERDADE MATERIAL E SUA BUSCA NO PROCESSO CIVIL MODERNO

EmanuEl fErnanDo caStElli ribaS121

fErnanDo guStaVo KnoErr

RESUMO

Este trabalho possui como objetivo a análise da atuação do Juiz diante dos desafios da manutenção da necessária imparcialidade, diante da busca do “processo justo”, em contraposição ao termo “processo legal”. Constata-se que o primeiro – processo justo – tem se revelado como tendência emergente do processo civil moderno, autorizando o magistrado a promover atos processuais almejando a verdade real, enquanto que no segundo, o processo legal – aqui entendido como procedimento que está visceralmente atrelado ao princípio da estrita legalidade – o julgador deve manter-se eqüidistante das partes e das provas, mesmo que estas sejam produzidas de maneira ineficaz ou ainda, desproporcionalmente entre as partes.

Palavras-chave: Jurisdição; Prova; Ônus da Prova; Atos das Partes; Processo Civil; Inversão do Ônus da Prova; Verdade Material.

Keywords: Jurisdiction; Proof, Burden of Proof, Acts of the Parties, Civil Procedure, Reversal of Burden of Proof; Material Truth.

SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A Prova; 3. Princípio Dispositivo x Princípio Inquisitório; 4. O Ônus da Prova no processo Civil; 5. A gestão da Prova no Moderno Processo Civil; 6. Conclusão; 7. Referências Bibliográficas

1 INTRODUÇÃO

A verdade material tem causado verdadeiros embates na doutrina afeta ao processo civil brasileiro, uma vez que há espaço para sua busca nos feitos cíveis, pois, aparentemente, introduz no cenário dos direitos disponíveis algo que tende a aproximar o sentimento de justiça ao Direito.

121 Advogado inscrito na OAB/PR sob o nº. 33.431, Sócio do Escritório Martins & Castelli Ribas Advogados, com sede em Curitiba, especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito de Curitiba (2001), Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania no UNICURITIBA, Professor do INESUL.

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Entretanto, como deve ser a postura do magistrado nesta nova conjuntura de “processo justo”, considerando seu dever de imparcialidade e eqüidistância das partes, e ao mesmo tempo gerir a instrução processual de modo que não haja prejuízo para as partes litigantes, e mais, sem que se ofendam os dispositivos do Código Adjetivo Civil? Tais questionamentos são o mote deste breve estudo sobre a matéria.

Por sua vez, a prova processual civil é instituto deveras instigante e que deve ser inicialmente avaliado, como parâmetro seguro para o desenvolvimento do processo judicial considerando a atuação da tríade envolvida no litígio e o papel de cada um como agente independente capaz de influenciar no objeto da prestação jurisdicional.

Questiona-se no presente trabalho se o juiz, tido preponderante e tradicionalmente como o destinatário da prova, cabe agora atuar de maneira ativa/positiva para que não se encerre o processo judicial sem que se tenha produzido nos autos, elementos suficientes para embasar qualquer conclusão final, ou mais, capaz de levá-lo a formar o seu juízo de convicção, já que por imposição legal, não lhe é permitido proferir decisão non liquet.

A busca pela verdade material poderia também ser objeto de busca no processo civil? O tema que se pretende discutir passa pela verificação da compatibilidade do conjunto processual civil com esta nova tendência de processo, onde mesmo nas questões envolvendo direitos disponíveis, o magistrado, enquanto representante do Estado, poderia, ou melhor, deveria agir de modo a privilegiar uma das partes litigantes. Essa é a questão que se pretende verificar

2 A PROVA

Ao iniciar o presente estudo, nada mais adequado do que partir, desde já, para a definição legal e doutrinária do instituto da prova para o Direito Processual Civil (CPC). O artigo 332 do CPC122 é expresso ao conceituar:

Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.

Interessante destacar que o conceito legal, de início, veda a utilização de provas que se diriam não ilegais, mas sim, obtidas por meios ilícitos, uma vez que não se pode determinar ou classificar quais são as provas legais e ilegais, mas sim, diferenciá-las pelo modo em que são produzidas. O conceito abarca, ainda, meios moralmente legítimos como hábeis para serem utilizados

122 THEODORO JUNIOR, Humberto. Código de Processo Civil Anotado. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. P.324

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no processo civil, mesmo que tal limitação moral seja de difícil configuração diante da volatilidade do termo filosófico envolvido.123

Contudo, o que mais interessa na definição codificada é a expressão “a verdade dos fatos”, pois representa verdadeiro desafio às partes litigantes. Prova e verdade, a priori não são conceitos de fácil relacionamento em termos de processo civil, como adiante será demonstrado. Interessa aqui aprofundar um pouco mais o estudo sobre a prova e sua noção.

Todo elemento que pode levar ao conhecimento de um fato a alguém, portanto, pode ser designado de prova. No processo, a prova é todo meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato. A palavra prova é de origem latina, derivada de probatio, que, por sua vez, emana do verbo probare, com o significado de examinar, persuadir, demonstrar124.

A prova no Processo Civil é considerada aquela atividade desenvolvida nos autos judiciais com a finalidade de fornecer ao magistrado o retrato documental, testemunhal ou pericial, de fatos pretéritos, possibilitando a construção mental dos elementos relevantes para o julgamento da lide. Pode-se assim afirmar que a finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é seu destinatário. No processo civil, portanto, a prova não tem um fim em si mesma, sua finalidade é eminentemente prática. Não se busca a certeza absoluta, a qual, aliás, é sempre impossível, mas a certeza relativa suficiente na convicção do magistrado125.

Comumente a palavra prova é empregada como sinônimo de verdade, entretanto, para que assim se conclua, larga interpretação jurídica deve ser feita, como ensina Francesco Carnelutti126:

Somente se fala de prova a propósito de alguma coisa que foi afirmada e cuja exatidão se trata de comprovar; não pertence á prova o procedimento mediante o qual se descobre a verdade não afirmada senão, pelo contrário, aquele mediante o qual se demonstra ou se encontra uma verdade afirmada.

{...}

Efetivamente, na linguagem usual, provar significa demonstrar a verdade de uma proposição afirmada. Sendo assim, no campo jurídico, a

123 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 2000. P188.124 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 2000. p.180125 ARAUJO CINTRA, Antonio Carlos de. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p.2126 CARNELUTTI, Francesco. A prova Civil. Campinas: Bookseller, 2002. p.67-72/73.

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comprovação de fatos controvertidos por parte do juiz pode não derivar da busca da verdade, senão dos processos de determinação formal.

{...}

Dizer, portanto, que prova em sentido jurídico é a demonstração da verdade formal ou judicial, ou dizer, entretanto, que é a determinação formal dos fatos discutidos, é, no fundo, a mesma coisa: aquela é somente uma expressão figurada e esta uma expressão direta de um conceito essencialmente idêntico.

Veja-se que se retornou facilmente, ainda no conceito de prova, à questão dicotômica de prova/verdade. Da citação acima, verifica-se que prova e verdade possuem conceitos “essencialmente idênticos”, passando a doutrina a distinguir não a prova como formal ou real/substancial, mas sim, a verdade.

A verdade formal, ao contrário da substancial, é aquela refletida nos autos, e juridicamente capaz de sustentar uma decisão judicial. Diferentemente da noção de verdade substancial, aqui não há aquela necessidade de identificação absoluta do conceito extraído com a essência do objeto. A verdade formal aproxima-se muito mais com uma “ficção” da verdade.127

Para justificar tal diferenciação os argumentos mais utilizados são de que o processo civil (verdade formal, corolário do princípio dispositivo) lida com bens menos relevantes em relação ao processo penal (verdade substancial), e assim, por se tratar em sua grande maioria dos casos, de direitos disponíveis, aquela parte que conseguir provar melhor, ou ainda, que produzir melhor contraprova, mesmo que os elementos probantes estejam distanciados da verdade real dos fatos ali discutidos e base da lide, terá reconhecida pelo Estado a sua verdade.

Todavia, a doutrina processual128 mais atualizada vem rechaçando esta distinção entre as “verdades”, pois considera que é interesse da jurisdição, também no processo civil, que a verdade real seja objeto de busca não só das partes, mas também do juiz, que deve deixar a sua cômoda situação de inércia e atuar na reconstrução dos fatos, aproximando a prova processual da verdade substancial. Deste modo, a diferenciação entre verdade formal e substancial está em desuso, e o reflexo desta nova situação do processo civil diante da figura do juiz é fato relevante ao Direito.

127 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 5. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000. p. 35.128 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 5. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000. p. 38.

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Cabe ainda destacar, pois oportuna mesmo que ligeiramente, a vigência do princípio dispositivo que rege o processo civil.

3 O PRINCÍPIO DISPOSITIVO X PRINCÍPIO INQUISITIVO

Também conhecido como princípio da inércia de jurisdição, o princípio dispositivo possui como baluarte a posição estaque, eqüidistante e de observação que o juiz deve manter na condução do processo, especialmente na gestão da prova durante a sua produção.

Deste modo, o magistrado, ao exercer a jurisdição em processos cíveis, especialmente naquele que tratam diretamente dos chamados direitos disponíveis, deve adotar apenas observar e aguardar que as partes, por seus advogados, procedam à discussão da matéria e requeiram a produção das provas livremente, exercendo o seu direito de prova com base nas limitações do instituto do ônus da prova, e ao final, diante da recriação dos fatos perpetrada nos autos, sentenciar, entregando efetivamente a jurisdição129.

Pelo sistema brasileiro o juiz está vinculado às alegações de fato das partes, pois os limites da controvérsia são estabelecidos pelas partes, devendo o julgador adstringir-se ao pedido.

Assim o art. 128 do Código de Processo Civil:

O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa das partes.

O art. 131, CPC, estabelece que o juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes.

No direito brasileiro pode-se dizer que ainda vigora o princípio dispositivo (exposição de motivos, item 18) como regra fundamental, ou como simples princípio diretivo, sujeito, porém, a severas limitações previstas pelo legislador em inúmeros dispositivos legais que o abrandam, sensivelmente, outorgando ao juiz uma apreciável faculdade de iniciativa probatória.130

Para contrapor-se ao princípio da inércia, surge com força o princípio inquisitivo no processo civil, atendendo ao chamado da sociedade em busca

129 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 5. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000. p. 37130  MARQUES, José Fedrerico. Instituições de Direito Processual Civil. Vol. II, 3º ed., Forense, rio de Janeiro, nota 122, pág. 100

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de um processo mais real, onde o Estado deve ter interesse na solução justa e legal para o conflito. Cândido Dinamarco131 discorre sobre o chamado Direito Processual Constitucional:

Também é de tempos modernos a ênfase do estudo da ordem processual a partir dos princípios, garantias e disposições de diversas naturezas que sobre ela projeta a Constituição. Tal método é o que se chama direito processual constitucional e leva em conta as recíprocas influências existentes entre a Constituição e a ordem pessoal. O direito processual constitucional exterioriza-se mediante a tutela constitucional do processo, que é o conjunto de princípios e garantias vindos da Constituição (garantias de tutela jurisdicional, do devido processo legal, do contraditório, do juiz natural, exigência de motivação dos atos judiciais etc); e a chamada jurisdição constitucional das liberdades, composta pelo arsenal de meios predispostos pela Constituição para maior efetividade do processo e dos direitos individuais grupais.

Destarte, o moderno processo civil está caminhando como instituto fundamental do direito processual para atender o interesse da coletividade, já que sua finalidade é a realização do direito e da paz social.132

O processo, entendido como relação processual mais procedimento, ou como procedimento realizado em contraditório, tem, para José Roberto dos Santos Bedaque133, sempre a mesma finalidade a ser alcançada: a manutenção do ordenamento jurídico, do que advém a afirmação da autoridade do Estado e a paz social. A relação processual é, portanto, completamente independente da de Direito Material. O que existe é uma relação de instrumentalidade entre o processo e o Direito Objetivo Material, pois aquele visa à atuação deste. E essa finalidade satisfaz não apenas o interesse das partes cujas relações são reguladas pelas normas de Direito Material, mas, principalmente, o interesse público na obediência à ordem jurídica estabelecida.134

Assim, considerando a existência desta nova percepção do processo civil, não há como manter a passividade do juiz. O direito processual moderno deve procurar equilibrar a aplicação do princípio inquisitivo na instrução processual, realizando justiça. Defende o princípio inquisitivo que o juiz precisa abandonar o comportamento desinteressado, fato que será observado na parte final deste artigo.

131 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Vol 1. 5ª Ed., São Paulo: Malheiros, 2005. p. 71132 SOUZA, Gelson de. Direitos Fundamentais e Processo. Disponível em: http://www.lex.com.br/doutrina 23369022_DIREITOS_FUNDAMENTAIS_E_PROCESSO.aspx, acesso em 11/06/2012.133 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Poderes Instrutórios do Juiz, 2º ed., RT, 1974.p. 52134 Idem

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Destarte, antes de se passar para a verificação da gestão da prova pelo juiz, se faz necessário verificar a essência do ônus da prova, conceituando-o legal e doutrinariamente, de modo a permitir o avanço da análise.

4 ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO CIVIL

A questão do ônus da prova é basilar para o processo civil. Quem deve provar o quê? Em qual momento a prova deve ser produzida? Qual a conseqüência da não produção ou da produção probatória insuficiente? Em tais questões tem se desenvolvido o tema.

Para Vicente Greco Filho, o instituto do ônus da prova decorre de três princípios prévios: 1º) o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, segundo o qual o juiz brasileiro não pode como podia o romano, esquivar-se de proferir uma decisão de mérito a favor ou contra uma parte porque a matéria é muito complexa; 2º) o princípio dispositivo, segundo o qual cabe às partes cabe a iniciativa da ação e das provas, restando ao juiz apenas a atividade de complementação, a elas incumbindo o encargo de produzir as provas destinadas a formar a convicção do juiz; 3º) o princípio de persuasão racional na apreciação da prova, segundo o qual o juiz deve decidir segundo o alegado e provado nos autos e não segundo sua convicção íntima135.

Importante ressaltar que o conceito de ônus em processo civil não se assemelha ao de obrigação. No ônus, o sujeito é livre para adotar a conduta prescrita pela norma, não havendo vinculo jurídico em favor do outro, como ocorre na relação obrigacional.

O não exercício de um ônus não configura ato ilícito e não é sancionado, enquanto a violação de uma obrigação é ilícita e sancionada. A norma instituidora do ônus tutela interesse do próprio onerado, ao que a norma portadora de uma obrigação tutela o interesse do titular do direito subjetivo correspondente, que pode exigir o seu cumprimento. A obrigação é uma situação jurídica passiva, enquanto o ônus é uma situação jurídica ativa, manifestação do poder no qual se traduz a liberdade de agir do sujeito onerado136.

Carnelutti, apud 137 Luiz Guilherme Marinoni, foi novamente preciso ao distinguir entre ônus e obrigação:

Obrigação é o lado passivo a que corresponde do lado ativo um direito subjetivo. Pode dizer-se que o sujeito subjetivo é um interesse protegido

135 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. Vol. 2. São Paulo: Saraiva. 2000. p.184136 PACÍFICO, Luiz Eduardo Boaventura. O ônus da prova no direito processual civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p.37137 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. 5. São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000. p. 64.

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mediante um poder da vontade ou um poder da vontade concedido para a tutela de um interesse. Obtêm-se a noção de obrigação invertendo simplesmente a de direito subjetivo. É a obrigação um interesse subordinado mediante um vínculo; ou, em outros termos, um vínculo da vontade imposto ela subordinação de um interesse.

Portanto, ônus é uma faculdade legal que não se pode impor a terceiros, e o seu não exercício geralmente causa danos ao interessado, sem, contudo haver imputação de penalidade. O artigo 333 do CPC é explicativo e não conceitua:

O ônus da prova incumbe:I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor;Parágrafo único: É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:I – recair sobre direito indisponível da parte;II – tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito

Deste modo o conceito de ônus da prova é unicamente doutrinário, cabendo à norma processual apenas distribuí-lo as partes, e ordenar o momento apropriado para sua ocorrência. Sobre o momento da prova, é licito apresentar a lição de Eduardo Cambi138:

No momento da proposição da prova, cabe à parte eleger quais os fatos que pretende provar e quais os meios de prova de que deseja valer-se para demonstrar esses fatos; afinal, um mesmo fato pode ser provado mediante diferentes meios de provas e a parte, por ter geralmente vivenciado o evento passado que vai retratar no curso do processo, melhor do que outrem, deve saber, auxiliada pelo seu advogado, qual é a maneira mais adequada de provar os fatos alegados, que servem de suporte à pretensão do direito material reclamado em juízo.

Cabe argumentar que o sistema processual civil em vigência, tido como um complexo de normas interligadas alimentadas pela jurisprudência e doutrina, bem como o aparato judicial do Estado, estão está programados para que o ônus da prova seja desenvolvido por incumbência das partes, havendo inclusive previsão legal de distribuição do ônus conforme a prova a ser produzida, além

138 GAMBI, Eduardo. A prova Civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.20.

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do instituto da inversão, que não será aqui avaliado.139

A parte demandante que postula em juízo, ao defender determinado fato ou ato jurídico, deve, por obrigação processual – e não por ônus da prova – demonstrar a existência deste fato ou ato que fará a balança da justiça pender a seu favor, mediante o convencimento do juiz, que está desenvolvendo atividade estatal tipicamente impessoal, imparcial e eqüidistante de ambas as partes.

Por sua vez, o demandado tem conforme a legislação processual, construída sob os princípios gerais e específicos como o princípio dispositivo, ao contrário do autor da lide, não a obrigação, mas o ônus da contraprova, a fim de produzir elementos nos autos com o objetivo de desconstituir, modificar ou extinguir o direito apresentado ao qual se contrapõe, sob pena de não o fazendo de maneira satisfatória ou convincente, sucumbir ao pedido do demandante.

5 A GESTÃO DA PROVA NO MODERNO PROCESSO CIVIL

Como demonstrado, a questão da prova no processo civil é central e determinante para o resultado da lide. Entretanto, tem se manifestado na doutrina processualista, como já se deixou escapar no bojo deste, corrente que defende que o Estado, representado pelo juiz, diante de uma instrução processual deficiente ou não satisfatória, assuma a produção das provas, considerando, repita-se, que a decisão judicial não pode ser non liquet.

A questão é tormentosa e não encontra ressonância, mesmo porque trata-se de tentativa de modificação de todo o sistema processual, que como afirmado alhures, foi construído sob outra perspectiva, além do risco de julgamentos imparciais diante da interferência do juízo em ato processual de exclusiva responsabilidade dos litigantes.

Em defesa da modificação da atitude do magistrado, que deixaria a postura de inércia e assumiria poderes inquisitórios, o processo civil também deve buscar a verdade material, não podendo satisfazer-se com apenas os fatos limitados e intencionais que são levados aos autos pelas partes, porque tal conduta não estaria em conformidade com os objetivos do processo, que são em última análise a restauração da paz social e a busca de uma solução não apenas jurídica, mas também justa.

O juiz é o destinatário da prova, contudo, o titular do direito à prova é toda pessoa que é parte do processo, desde o seu início ou posteriormente (sucessor e interveniente processual), lembre-se que parte são todos os sujeitos, com exceção do juiz, os quais, realizando os atos que integram o procedimento são destinatários dos efeitos dos provimentos judiciais. O juiz, deste modo, não é titular do direito a prova, e, juridicamente argumentando, não possui

139 GAMBI, Eduardo. A prova Civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.25

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legitimidade para tanto. Não obstante o magistrado seja um sujeito processual, coloca-se em situação de superioridade entre as partes. Essa posição confere ao juiz a autoridade e a imparcialidade indispensáveis para o julgamento da causa. Assim argumenta Eduardo Cambi:140

O Código de Processo Civil atribui, ao juiz, poderes processuais para que tenha condições de exercer adequadamente a função jurisdicional. No entanto, como o magistrado exerce função estatal, esses poderes lhe são atribuídos para a realização do interesse público na obtenção da justiça das decisões. Logo, os poderes processuais não são absolutos, mas limitados pelos deveres impostos pelo ordenamento jurídico, que determinam que o juiz deva conduzir o processo com observância das garantias constitucionais as quais lhe obrigam a respeitar a seqüência de atos legalmente previstos (devido processo legal), bem como oportunizar a participação e o diálogo entre todos os sujeitos processuais submetidos ao poder jurisdicional (garantia do contraditório).

O juiz não tem direito à prova, o que não significa que não possa participar da instrução processual. Contudo, não é aceitável o argumento de que o juiz tem obrigação (dever) de produzir prova, mesmo porque sua atividade deve ser exercida apenas em caráter complementar.

Posição semelhante é defendida por Luiz Guilherme Marinoni141, que partindo da premissa segundo a qual o magistrado não pode negar-se a decidir, alerta que existe uma tendência da moderna doutrina, no sentido de permitir ao juiz uma posição ativa na colheita da prova. A ampliação dos poderes do juiz na instrução da causa, sob a bandeira de que o processo é instrumento público e que deve buscar a verdade sobre os fatos investigados. Ao se autorizar que o juiz possa determinar, de ofício, a produção de provas – suprimindo, pois, a atividade que competiria primariamente às partes – novamente pretende-se dar ênfase à busca da verdade substancial, trazida como verdadeiro dogma para o direito processual. Ressalta o processualista que tal visão, com efeito, é ainda mais salientada no direito penal e conclui:

A par disso, apenas o juiz tem o poder de dizer qual seja a “verdade”, pressuposto para aplicação do direito ao caso; a colaboração que recebe das partes e, como já salientado, tendenciosa e divergente (mas mesmo assim, o juiz é obrigado a entregar apenas uma verdade sobre o ocorrido).

140 GAMBI, Eduardo. A prova Civil: admissibilidade e relevância. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.21141 Ob. Ci. p.34

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E, para finalizar, a verdade, por si só, é algo impossível de se atingir.

Contudo, ainda com todos estes elementos óbvios, o juiz é obrigado a decidir e a estabelecer a verdade.

Por todo visto, conclui-se que o mito da diferenciação entre verdade substancial e verdade material tem servido apenas para atarracar o processo, alongando-o em nome de reconstrução de fatos que é, em verdade, impossível. Por mais laborioso que tenha sido o trabalho e o empenho do juiz no processo, o resultado nunca será mais que um juízo de verossimilhança, que jamais se confunde com a essência da verdade sobre os fatos (se é que podemos afirmar que existe uma verdade sobre um fato pretérito).

Ora, pela narrativa acima, o princípio inquisitório e o princípio dispositivo, bem como a distinção entre a verdade penal e a cível para fins processuais não passam de discussões acadêmicas, pois a verdade real não é possível de ser recriada nos autos, nem mesmo com a instrução processual levada a efeito com a participação ativa do magistrado. Em síntese a verdade à qual se chega no processo é sempre formal.

Antonio Carlos Araujo Cintra142 é categórico ao afirmar que a atividade do juiz na instrução do feito deve ser supletiva à iniciativa das partes, dado que, na fluência do procedimento, há lugar para o exercício daquele poder depois de superado o momento próprio para a manifestação das partes. Portanto, só haverá iniciativa judicial em relação às provas a respeito das quais as partes não se adiantaram. Contudo, o artigo 130143 do CPC, consagra a regra de que ao juízo são outorgados poderes para determinar todas as provas necessárias à instrução do processo, ressalvados apenas os casos para os quais a lei expressamente exija a iniciativa das partes. Todavia, adverte o autor:

Essa orientação adotada pelo Código de Processo Civil, com relação aos poderes instrutórios do juiz, envolve, sem dúvida, um risco para a imparcialidade do juiz, que é essencial ao processo e que, por isso mesmo, deve ser rigorosamente preservada. Tal risco se reduz de maneira significativa na medida em que se observar o contraditório e a exigência da motivação das decisões judiciais. Isso não obstante, como adverte Cappelletti, “é preciso avaliar realisticamente até que ponto um juiz ativo pode ou deve ir sem corromper sua posição de imparcialidade e o direito das partes em serem ouvidas em contraditório”.

142 Ob. Cit. Pag. 4143 Art. 130 - Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias.

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A interpretação mais conservadora do artigo 130 é de que o juiz deve determinar as provas necessárias à instrução do processo, desde que requeridas pelas partes, e com base no mesmo dispositivo, deve negá-las quando entender impertinentes. Agirá sim de ofício, em caráter suplementar, mas não ativamente, e quando agir, deve ter como limite absoluto, a manutenção da imparcialidade.

Contudo, a melhor lição vem da doutrina mais autorizada, da lavra de Arruda Alvim144, que diz que o artigo 130 somente poderá ser corretamente aplicado pelo juiz às hipóteses em que não opere a teoria do ônus da prova e desde que haja um fato incerto, mas incerteza emergente da prova já anteriormente produzida. O art. 130, pois, aplicar-se-á como um posterius à insuficiência da prova já produzida, e não tem lugar na teoria do ônus da prova. Nunca deverá o juiz sub-rogar-se no ônus subjetivo da parte inerte ou omissa, sob pena de ser parcial em seu julgamento.

Por outro lado, a corrente doutrinária modernista defende que não há perda da imparcialidade do juiz quando este atua de maneira inquisitória no processo civil. Barbosa Moreira145 é contundente ao defender que o juiz ao requisitar a produção de determinada prova, não sabe qual será o resultado e qual das partes poderá dela se beneficiar, lecionando:

Ao juiz não deve importar quem vença o litígio, quem saia vitorioso, o individuo x ou y, considerados nas suas características de indivíduos. Mas deve importar, sem sombra de dúvida, que saia vitorioso quem tem razão. A este ângulo não há neutralidade possível. Ao juiz, como órgão do Estado, interessa, e diria que a ninguém mais interessa mais do que a ele, que se faça justiça, isto é, que vença aquele que efetivamente tenha razão. Ora, a este é que vai beneficiar a diligência ordenada pelo juiz. Logo, a iniciativa de determiná-la não significa em absoluto, quebra do dever de imparcialidade.

O risco de parcialidade ronda o juiz a cada momento de sua atividade, ao longo do processo. E se ele quiser ser parcial, não por tal forma que se vai poder impedir este lamentabilíssimo resultado.Portanto, diante do demonstrado, vê-se que o debate está instalado e

os argumentos são bons para ambas as partes. A defesa, da atividade do juiz na produção de provas, mesmo segundo os modernos doutrinadores que defendem tal legitimidade, depende de ponto crucial, qual seja, a existência do

144 ARRUDA, José Manoel Alvim. Manual de Direito Processual Civil. Vol. 2. 5ª ed. São Paulo: revista dos Tribunais, 1996. p.431145 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Juiz e a Prova. RePro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984. p.180

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contraditório entre as partes, inclusive sobre a prova inserida nos autos por ato do magistrado ex officio.

A defesa da mais ampla aplicação do artigo 130 somado ao artigo 333 ambos do CPC, é feita por Luiz Eduardo Boaventura Pacífico146 que entende que se o juiz possui poder suplementar para produzir provas, também o possui para determinar a sua realização. Em suma, a menos que se rejeite inteiramente a possibilidade de o juiz determinar, de oficio, a realização de provas – de formas principais ou subsidiária, pouco importa -, o perfil subjetivo do ônus da prova se revela insuficiente para explicar o fenômeno em sua integralidade.

O Superior Tribunal de Justiça tem admitido a larga interpretação do artigo 130 CPC. Abaixo ementa do julgamento do Recurso Especial 17.591/SP147, cujo voto foi da lavra do Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, já nos idos de 1994:

Processo civil, venda de “pacote de viagem”. Inadimplemento contratual da empresa turística. Atraso no envio do dinheiro necessário ao custeio de uma das excursões programadas. Pagamento realizado por um dos excursionistas. Ação via da qual se pretende o reembolso. Legitimidade ativa ad causam. Conversão do julgamento em diligencia para oitiva de testemunhas arroladas pelo autor e de cuja oitiva ele prescindira. Presença de circunstancias justificadoras da atitude do juiz. Ausência de ofensa ao principio dispositivo ou igualitário (arts. 125, i, e 130, cpc). Precedentes (REsp 12.223-o-ba). Recurso inacolhido. I – {...}. II – {...}. III - O Código de 1973 acolheu o principio dispositivo, de acordo com o qual o juiz deve julgar segundo o alegado pelas partes (iudex secundum allegata et probata partium iudicare debet). Mas o abrandou, tendo em vista as cada vez mais acentuadas publicação do processo e socialização do direito, que recomendam, como imperativo de justiça, a busca da verdade real. O juiz, portanto, não e mero assistente inerte da batalha judicial, ocupando posição ativa, que lhe permite, dentre outras prerrogativas, determinar a produção de provas, desde que o faça com imparcialidade, sem ensejar injustificado favorecimento a litigante que haja descurado ou negligenciado em diligenciar as providencias probatorias de seu interesse.

Sandra Aparecida Sá dos Santos148 busca amparo na Constituição para defender que o juízo não se furte à necessidade e a atividade de produzir provas, argumentando que no amplo rol de direitos e garantias expressas no artigo 5º da CF, inexiste discriminação quanto à natureza dos direitos, por isso que o constituinte colocou, no caput daquele artigo, o direito à vida, à liberdade, e à segurança ao lado do direito à propriedade. Assim sendo, as normas infraconstitucionais que discriminam a natureza dos direitos não

146 Ob. Cit. P.152147 STJ, 4ª Turma, REsp 17.591/SP, Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, 07/06/1994, DJ 27/06/1994, p. 16.982148 SANTOS, Sandra Aparecida Sá dos. A Inversão do Ônus da Prova: como garantia do devido processo legal. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p.88

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estão recepcionadas pela Carta Política, principalmente quando prestigiam a forma em detrimento do escopo da jurisdição, consistente na função social do processo, meio pelo qual se deve garantir à ordem jurídica justa.

Expôs-se, acima, o embate entre ambos os lados, evidenciando recentemente afastamento das posturas tradicionais no que se refere à atuação probatória do juiz no processo civil e a aproximação deste do princípio do inquisitório, típico do processo penal, entretanto, o sistema processual cível, visto como estrutura única, complexa e concebida sob o princípio da inércia do magistrado, necessitará certamente de profundas alterações para que possa evoluir neste caminho.

6 CONCLUSÃO

Pelo exposto, fica claro que para a aplicação da tese extensiva e ampla das disposições do artigo 130 do Código de Processo Civil, se faz necessária ampla reforma de toda a legislação processual civil. Isto porque o referido artigo não pode ser considerado isoladamente e, tão pouco, a interpretação que se quer atribuí-lo, pois afetarão todo o sistema processual, uma vez que a produção de provas nas ações cíveis é assunto primordial para todas as ações, e mais, afeta não apenas o direito processual, mas sim tema de direito material.

O entendimento que prevalece ainda é aquele de que o juiz não é titular de direito à prova, mas sim o seu destinatário devendo agir com distanciamento das partes, a fim de manter a sua autoridade, podendo atuar, subsidiariamente, no sentido de complementar uma prova já requerida.

Ainda que se alegue que o processo é instrumento público, o direito discutido é o particular, e por vezes a causa da lide é resultado de comportamentos do próprio autor, sendo que a cada um cabe a defesa dos seus direitos, e quando em juízo, deverão ter o acompanhamento de advogado para auxiliá-los.

Estando as partes representadas em juízo por seus advogados, não há que se falar em produção de prova pelo juízo, por diversas razões, as mais proeminentes são de cunho geral, envolvendo a imparcialidade do juiz, manutenção da autoridade entre outros. A situação de juiz inquisitório nos processos cíveis não é confortável a ninguém. Se o magistrado, de ofício, determina a realização de uma prova, a quem o prejudicado dirigirá a sua impugnação? Haverá direito a impugnação? O juiz estará defendendo a própria prova?

Por outro lado, também não serve de justificativa a busca pela verdade real, pois, como bem anotou Marinoni, nem mesmo com a participação do juiz na produção das provas será possível alcançar tal “verdade”, que sempre estará contaminada com algum relevo ou marca inserida pela própria reprodução desta nos autos, ou ainda, por atividade de alguma parte.

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Finalmente, a questão do excesso de discricionariedade do juiz para agir nestas situações, diante da completa falta de limites para tanto, pode ser causa de nulidades absolutas. Vejam o exemplo do Direito Alternativo nascido no Rio Grande do Sul. Deste modo, não há espaço para atuação do juiz como sujeito ativo na produção de provas nos processos cíveis, seja pela insuficiência de legislação regulatória, seja pela insuficiência material para que tal se concretize, seja por ofensa aos princípios fundamentais do processo cível ou tantos outros motivos que ainda podem ser enumerados.

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BIBLIOGRAFIA

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TÓPICOS CONCLUSIVOS

Após a leitura da presente coletânea “Dignidade humana e organização social”, foi possível concluir que:

• Os direitos e garantias fundamentais, ao invés de constituir empecilho a um processo penal eficiente, representam um dos próprios fins do processo e que se faz necessária uma mudança de perspectiva em relação ao processo penal, redefinindo seus objetivos, para somente então determinar o que é um processo eficiente. (TANIGUTI e KNOPFHOLZ).

• O Direito Ambiental traz consigo a educação ambiental não apenas para mostrar a existência de leis e normas, mas para internalizar aos indivíduos que ambas as esferas devem caminhar juntas; e que a ideia de que a implementação de uma política para a alfabetização ecológica não significa que deva ser baseada em questões que envolvam por si só a ecologia, mas que possa abranger uma nova ética. (MAIA e BACELLAR).

• A recuperação do homem como um todo necessita a retomada de um referencial onde a solidariedade coletiva e identificada, substitua a solidariedade anônima, onde o Estado assume o papel de grande garante nas relações sociais. Sendo assim, o garante deve ser o homem pela sua própria essência, e não como resultado restrito de um sujeito de direito e deveres, ou seja, reflexo de uma relação jurídica. (MOCHI).

• A dissolução do casamento pode ocorrer apenas em relação à sociedade conjugalou de forma a dissolver vínculo conjugal, porém este não é entendimento pacificado, já que parte da doutrina e jurisprudência defende não mais existir a possibilidade da dissolução apenas da sociedade conjugal devido a extinção do instituto da separação. (FELIPPE e ANDRADE).

• Muito se discute sobre a problemática da reparação dos danos causados em acidentes de trânsito com suporte na responsabilidade objetiva, embora forte ainda, a responsabilização pela culpa; a responsabilidade civil está se desenvolvendo cada dia mais, muitos temas ainda estão em discussão, e novos surgem; e o desejo é que a normatização acompanhe o crescimento e a complexização da sociedade. (ELEUTERIO e TAFURI).

• As principais características do ato de doação de órgãos são a gratuidade e a disponibilidade, configurando-se os transplantes como instrumento através dos qual o indivíduo vê realizada sua dignidade; E que o consentimento e a autonomia corporal são fatores elementares constituintes dos atos de disposição corporal, não havendo a possibilidade de se admitir que a família do falecido usurpe um direito personalíssimo de autodeterminação. (BERGAMIN e COLUCCI).

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• É necessário que ocorra uma verdadeira inserção das associações no complexo processo de prestação do serviço, com participação na fiscalização periódica do serviço, recebendo diversas informações sobre o modo de prestação do serviço pelo concessionário e suas alterações, bem como a respeito dos marcos regulatórios estabelecidos pelas agências reguladoras; e que o Poder Público deve perceber as diferenças na incidência de direitos em cada setor da sociedade, buscando promover a integração social. (KLEIN e CHALUSNHAK).

• É válida a crítica aos dispositivos legais hoje existentes sobre os danos ambientais decorrentes do uso de agrotóxicos, questionando-se a aplicação e a eficácia dos mesmos. Mesmo havendo a tríplice responsabilização, esta por vezes de faz de forma morosa, ou nem mesmo é realizada, fica a lei prejudicada em sua eficácia; e que este tema é presente na vida de todos os cidadãos, independente de sua classe social, atingindo a todos indistintamente. (SKRZEK e BACELLAR)

• O consumidor tornou-se alvo dos fornecedores de produtos e serviços na internet. A enganosidade tornou-se constante, a falsa idéia que tal produto ou serviço são necessários. Isto fez com que o consumidor acredite que é parte totalmente ativa deste processo, que na grande maioria dos casos, não passa apenas de coadjuvante. (LEMOS e LARA)

• No Brasil há a existência de diversas legislações e interesses que, no entanto, não se entrecruzam abordando a questão da proteção da criança e do adolescente da publicidade e da propaganda. Nesse caso em específico, a aplicação legislativa parece ser bastante conturbada e surge como um problema espinhoso para o judiciário. Há um evidente conflito de interesses, princípios e valores que poderia ser facilmente sanado fosse o caso de haver uma legislação pertinente ao tema. (HORNUNG e PAULA)

• O fator previdenciário desrespeita o princípio da isonomia (na medida em que trata pessoas desiguais de maneira igual), ignora o princípio da vedação do retrocesso social e que ele também instituiu um critério além do proposto pela Constituição de 88, ferindo a hierarquia de normas. (SIQUEIRA e FURMANN)

• A responsabilidade aplicada ao empregador em caso de poluição ao meio ambiente de trabalho é a responsabilidade objetiva ou sem culpa e que a desconsideração e a falta de proteção a um meio ambiente de trabalho sadio constituem-se afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho. (FONTANA e GOMES)

• A posição econômica dominante do país infrator poderia seria coibida pela unidade das contramedidas sancionadas por todos os membros que compõe a OMC obrigatoriamente. (ZEGHBI e GIBRAN)

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• O Estado possui o dever de prestar os serviços públicos, seja por si mesmo, ou por meio de concessão, permissão ou autorização, sempre ao mesmo resguardada a titularidade de prestação do serviço. Tal fato ocorre em virtude da necessidade de se propiciar aos indivíduos condições adequadas de vida, um mínimo existencial para a consecução de suas atividades, voltadas ao bem-estar do cidadão e primando pela dignidade das pessoas. (FRAGA e SÉLLOS-KNOERR)

• O Direito Penal só será considerado democrático se estiver permeado pelos valores constitucionais da ordem jurídica em que está inserido e que a norma incriminadora albergada no tipo penal do artigo 149 do Código Penal não refoge às balizas constitucionais e se dirige à salvaguarda fragmentária (proporcional) da dignidade do trabalhador. (PORTELLA JUNIOR e GUARAGNI)

• Para a aplicação da tese extensiva e ampla das disposições do artigo 130 do Código de Processo Civil, se faz necessária ampla reforma de toda a legislação processual civil. Isto pelo fato que o referido artigo não pode ser considerado isoladamente e, tão pouco, a interpretação que se quer atribuí-lo, pois afetarão todo o sistema processual. (RIBAS e KNOERR).