com Imperatriz +Kirsten+Miller

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz Kirsten Miller "Se Harry Potter vivesse em Nova York, ficaria loucamente apaixonado por Kiki Strike." Vanity Fair. Contra-capa: Kiki Strike e as Irregulares salvaram o mundo ontem à noite. Talvez você queira agradecer. Bem-vindos ao mundo de Kiki Strike Kirsten Miller

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da ImperatrizKirsten Miller

"Se Harry Potter vivesse em Nova York, ficaria loucamente apaixonado por Kiki Strike." Vanity Fair.

Contra-capa:

Kiki Strike e as Irregulares salvaram o mundo ontem à noite.Talvez você queira agradecer.

Bem-vindos ao mundo de Kiki Strike

www.galerarecord.com.br

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Abas:

A mãe de Ananka está determinada a mandá-la para um colégio interno. As notas da menina estão baixas, ela dorme durante as aulas e as reclamações da diretora sobre suas faltas

viraram rotina. É claro que ela não sabe que, na verdade, Ananka passa as noites resolvendo mistérios e investigando o submundo de Nova York. Se soubesse que a filha é responsável pela

proteção de uma cidade secreta no subsolo de Manhattan, ela mudaria de idéia... ou não?.

Infelizmente Ananka não tem tempo nem de tentar convencer a mãe. Não quando um fugitivo muito interessante pode ter roubado o mapa secreto da Cidade das Sombras (e ele estasva sob

sua proteção) e segredos demais ameaçam a existência das Irregulares..

Para completar, a vida de Kiki está em perigo, Betty acredita ter encontrado o amor - pena que com a pessoa completamente errada - e Oona... bem, Oona é a mais encrencada de todas! Das ruas de Chinatown até a Quinta Avenida, as Irregulares colecionam confusões: pais mafiosos, esquilos gigantes e até uma múmia chinesa que estava destinada a repousar tranquilamente

em um museu estão na mira das garotas.

Kirsten Millervive em Nova York, onde passa o dia bebendo café, explorando a cidade e escrevendo.

Para SD, cujos segredos são a minha inspiração.

Prólogo

A Imperatriz traidora

Os cochichos começaram no dia em que ela chegou a cavalo aos portões do palácio do imperador. Eles sabiam que sua longa viagem começara para além da muralha que era construída a oeste. A princesa de Xiongnu, a tribo bárbara que travava uma batalha interminável com a China, viera se casar com o filho do imperador. Quando a viram, os membros da corte concordaram, pelo menos a maioria deles. A paz fora comprada a um preço alto demais.

Ninguém se atrevia a questionar a beleza da princesa, então zombavam de suas bochechas redondas, rosadas pelos ventos de sua terra natal. Eles não lhe negariam sua nobreza, mas desdenhavam de uma mulher que podia atirar uma flecha mais retilínea a uma distância maior do que faria qualquer homem. Até os criados do palácio encontraram algo de que debochar no

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fato de que sua serva fiel, uma amazona bárbara malnascida, sempre podia ser vista ao lado dela.

O filho do imperador desconsiderava essas fofocas. Adorava a noiva rebelde e a cobria de seda, jade e ouro. Ela foi vestida em mantos pesados que a impossibilitaram de cavalgar e desfilou diante da corte como uma criatura exótica do zoológico do imperador. Com o tempo, começou a parecer um pouco uma imperatriz chinesa. Mas as mulheres encarregadas de lhe ensinar as virtudes femininas da humildade, da subserviência e da obediência sabiam que a menina jamais seria domada. Seria mais fácil ensinar um tigre a andar na pontinha das patas.

À noite, a princesa só sonhava com sua terra - de desertos, prados e montanhas que ficavam longe do império que um dia ela governaria. Por fim, desesperada, ela trocou seus mantos pela túnica de uma camponesa e fugiu dos muros do palácio. Ela e sua criada foram livres por três gloriosos dias, até serem capturadas por soldados ao atravessarem o rio Amarelo.

O velho imperador era um homem sensato e havia muito sabia que a menina jamais seria imperatriz. Despachou criados para entregarem uma refeição temperada com veneno, para que seu corpo continuasse imaculado e seu assassinato fosse encoberto do filho. Mas a princesa se recusou a morrer. Em vez disso, vagou num sono tão profundo que seu batimento cardíaco era pouco mais do que uma pancadinha fraca.

O filho do imperador foi informado de que a princesa tinha expirado de febre. Planejou-se um funeral real, apesar de as fofocas da corte rotularem a menina de Imperatriz Traidora. Cochichava-se que ela fora desmascarada como espiã e enterrada viva como pena pela traição. A fiel criada da princesa não teve poderes para provar a inocência de menina. Só o que pôde fazer foi subornar um guarda para contrabandear dois objetos para o túmulo da princesa. Um era uma estatueta de si mesma a cavalo, para poder servir a sua alma no além. O outro era a verdade.

Ela sabia que o tempo revela todos os segredos.

CAPÍTULO UM

Não foi por falta de aviso

Antes de começarmos, dê uma olhada rápida por sua janela. Não faz diferença se você olha uma rua movimentada de Calcutá ou um pequeno shopping em Texarkana. Onde quer que você esteja, todas as pessoas que você vê têm uma coisa em comum. Todas têm um segredo que preferem manter escondido. O cavalheiro elegante com a pasta executiva rouba no parquímetro nas horas vagas. A criança de bicicleta gosta de comer formigas. E a velha baixinha no banco do parque antigamente era conhecida como o Terror de Cleveland. É claro

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que estou brincando. Não conheço os segredos deles mais do que você. Mas aí é que está a questão. Nunca se sabe.Há muitas lições na vida que podem ser desagradáveis. Não seque um hamster no micro-ondas. Chinelos não são adequados para um coquetel. E maionese não deve ter crosta. Mas para uma detetive, há uma lição deficílima de aprender. Por mais que você tente, não tem como saber tudo sobre as pessoas de quem mais gosta. Mesmo que partilhem de incontáveis aventuras e enfrentem a morte lado a lado, ainda pode haver segredos entre vocês.

Quando estava história começou, eu tinha cinco grandes amigas. Eu sabia tudo sobre seus passatempos incomuns, alergias graves, antecedentes criminais e preferências de xampu. O que eu não sabia era que duas de minhas amigas ainda guardavam segredos de mim - e que um desses segredos tinha o poder de destruir a todas nós.

* * *

Tudo começou às oito horas de uma manhã de sábado. Eu estava sentada à mesa da cozinha de minha casa, lendo um livro de curtindo um café da manhã balanceado de pudim de caramelo, quando levantei a cabeça e vi minha mãe parada na porta, segurando um jornal. Não me lembro de me sentir particularmente culpada naquele dia, mas soltei um grito ao vê-la. Seus cachos curtos e escuros saltavam para fora dos grampos e cercavam o rosto como uma nuvem de fumaça tóxica. Havia bolsas sob seus olhos e tênis diferentes nos pés.

- O que está lendo? - perguntou ela numa voz estranhamente formal.

- Fantasmas, demônios e coisas em que se pode esbarrar à noite - informei. - Encontrei debaixo da cama do quarto de hóspedes. O que está fazendo acordada? - Em meus 14 anos de vida, nunca tinha visto minha mãe de pé antes do meio-dia num fim de semana.

- Vi uma matéria no noticiário ontem à noite. Pensei que você poderia achar interessante, então acordei cedo para comprar o jornal. - A caminho da mesa, ela tropeçou numa pilha de livros, que se espalharam pelo chão da cozinha. Uma semana antes, o que a maioria das pessoas pensou ser um pequeno terremoto (eu sabia muito bem o que era) podara as torres altas de livros que revestiam as paredes de nosso apartamento. Mas a tarefa de recolocar em ordem a biblioteca grande e bizarra de meus pais era tediosa demais, e a maior parte dos livros ainda estava onde tinha caído. Minha mãe se jogou numa cadeira na minha frente, fixando os olhos no meu rosto.

- Que matéria era essa? - perguntei, tentando lembrar se eu tinha feito alguma coisa que pudesse chegar aos jornais. Na quarta-feira, eu tinha ajudado a prender um exibicionista no Grande Central Station, mas isso não parecia tremendamente digno dos noticiários. E, pelo que eu saiba, a origem daquele terremoto nunca foi determinada. Eu tentava me manter

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discreta.

- Veja você mesma. - Minha mãe bateu o jornal na minha frente. A primeira página do New York Post trazia uma foto de um orangotango jovem usando um short de boxeador roxo e brandindo uma pinça para salada. Comecei a rir, até que li a manchete: Será Obra de Kiki Strike?, perguntava o jornal. O sorriso sumiu da minha cara enquanto eu olhava de relance para minha mãe.

- Continue. Leia - insistiu ela. - A reportagem está na página 3.

Sob o olhar de minha mãe, passei os olhos pelo artigo. Ao que parecia, às oito horas da noite anterior, uma mulher de nome Marilyn Finchbeck acordou e encontrou um iguana de 1 metro arrastando-se para sua cama. O vizinho, ouvindo os gritos apavorados de Marilyn, chamou a emergência ao entrar no quarto do bebê e descobrir o filho de 1 ano brincando de esconde-esconde com uma família de lêmures de orelhas peludas. Pouco tempo depois, um homem do terceiro andar do mesmo prédio pulou da janela do quarto quando se viu diante do orangotango que aparecia na primeira página do jornal. Na hora, nenhum dos moradores do número 983 da Broadway percebeu que os animais que invadiram os apartamentos estavam com bilhetes manuscritos presos no pescoço.

Ao responder a todos os chamados do prédio de Marilyn Finchbeck, a polícia rapidamente descobriu a origem do tumulto. Alguém tinha arrombado a porta de uma pet shop no primeiro andar e soltado os animais. Filhotes de rottweiller foram encontrados banqueteando-se em sacos de ração premium. Meia dúzia de cacatuas e um papagaio desbocado gritavam das vigas do teto. Mas em vez de procurar pelo misterioso benfeitor dos animais, a polícia prendeu o dono da pet shop. Nos fundos da sua loja, atrás de uma porta oculta, encontraram uma série de gaiolas secretas. A maioria estava vazia. Só dois coalas drogados continuavam presos, os dois aturdidos demais para se juntar à festa. Os funcionários do zoológico que foram chamados para capturar os lêmures e o orangotango (junto com um filhote de leopardo-da-neve que tinha perseguido um entregador por 13 quadras) reconheciam um crime quando viam um. Todos os animais libertados das gaiolas secretas eram de espécies em risco de extinção. Não tinham de estar em Nova York. No pescoço de cada um deles, havia um bilhete que dizia: Quero ir para casa.

O New York Post acreditava que a responsável era Kiki Strike. Um homem do bairro dizia ter testemunhado um elfo de cara pastosa e roupas escuras observando atentamente a pet shop uma semana antes. (Não era a descrição mais elogiosa de Kiki, mas também não era inteiramente imprecisa.)

- Muito bem. Onde você estava ontem à noite, Ananka? - perguntou minha mãe.

- Aqui - insisti, aliviada por poder dizer a verdade. - Não sei nada sobre isso.

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- Você conhece Kiki Strike. Ela estava aqui na quinta-feira vendo filmes de kung fu na sala.

- É, mas a menina que eu conheço tem 14 anos e não dá a mínima para o reino animal. O Post só está querendo vender jornal, mãe. Todo mundo quer acreditar que há uma adolescente justiceira agindo em Nova York.

- Deixe-me entender isso direito. Você ainda espera que eu acredite que sua amiga não tem nada a ver com o desbaratamento do sequestro de uns meses atrás?

- Vamos ter que passar por isso de novo? Você viu o noticiário - expliquei a ela, evitando a verdade. - A história de Kiki estrike em junho era um embuste. Essa menina que Kiki supostamente resgatou dos sequestradores mentiu. Ela inventou a história porque queria aparecer na TV. Quem sabe de onde ela tirou o nome Kiki? Pode ter escolhido na lista telefônica.

Minha mãe se recostou na cadeira e me fuzilou com os olhos semicerrados. Tinha mais coisas em mente e eu sabia que não podia ser coisa boa. Vi um camundongo dar um passo cauteloso para fora do armário debaixo da pia da cozinha. Ele olhou para minha mãe e correu de volta à segurança.

- A diretora Wickham ligou ontem à noite - anunciou por fim minha mãe. - Seu professor de história disse que você não tem prestado atenção nas aulas. Ele alega que você dormiu durante uma aula sobre a fundação de Nova York. Ao que parece, você nem se incomodou em limpar a baba quando você foi embora. - Enfim, eu tinha entendido aonde minha mãe queria chegar. Minhas atividades extracurriculares não estavam em questão. Eu podia me fantasiar de Mulher Maravilha e combater as forças do mal, desde que tirasse boas notas.

- Eu não babei. O sr. Dedly não gosta de mim porque eu sei mais sobre a história de Nova York do que ele. - Isso pode parecer convencimento meu, mas não era exagero. Passei dois anos vasculhando a imensa biblioteca de meus pais e devorando cada livro que pude sobre o assunto. Eu sabia quantos trabalhadores infelizes foram sepultados na ponte do Brooklyn, que cemitério antigamente fornecia cadáveres novos para dissecação dos estudantes de medicina e a localização da ferrovia subterrânea secreta para uso pessoal da família Vanderbilt. Eu mesma podia dar a aula - e com muito mais talento do que o sr. Dedly devo acrescentar.

- O que pode ser verdade, Ananka. Mas o sr. Dedly não é o único professor que a pegou cochilando em aula.

- Quem mais reclamou? - rebati, não inteiramente surpresa em descobrir que a esnobe Escola para Meninas Atalanta estava cheia de espiões e traidores.

- Isso não importa - disse minha mãe. - O que importa é que as aulas começaram há três semanas e você já está encrencada. Não quero mais boletins como os do ano passado. Mais

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uma nota C ou D e vou mandá-la para um internato. Não estou brincando, Ananka. Vou encontrar um tão distante da civilização que a única coisa que você terá para fazer será o dever de casa.

- Você está blefando. - Eu ri de nervoso. Minha mãe nunca me fez ameaça alguma e eu não sabia bem se devia levá-la a sério. Mas eu não conseguia imaginar um destino mais horroroso do que ser banida de Manhattan.

- A diretora Wickham ligou ontem à noite - anunciou por fim minha mãe. - Seu professor de história disse que você não tem prestado atenção nas aulas. Ele alega que você dormiu durante uma aula sobre a fundação de Nova York. Ao que parece, você nem se incomodou em limpar a baba quando você foi embora. - Enfim, eu tinha entendido aonde minha mãe queria chegar. Minhas atividades extracurriculares não estavam em questão. Eu podia me fantasiar de Mulher Maravilha e combater as forças do mal, desde que tirasse boas notas.

- Eu não babei. O sr. Dedly não gosta de mim porque eu sei mais sobre a história de Nova York do que ele. - Isso pode parecer convencimento meu, mas não era exagero. Passei dois anos vasculhando a imensa biblioteca de meus pais e devorando cada livro que pude sobre o assunto. Eu sabia quantos trabalhadores infelizes foram sepultados na ponte do Brooklyn, que cemitério antigamente fornecia cadáveres novos para dissecação dos estudantes de medicina e a localização da ferrovia subterrânea secreta para uso pessoal da família Vanderbilt. Eu mesma podia dar a aula - e com muito mais talento do que o sr. Dedly devo acrescentar.

- O que pode ser verdade, Ananka. Mas o sr. Dedly não é o único professor que a pegou cochilando em aula.

- Quem mais reclamou? - rebati, não inteiramente surpresa em descobrir que a esnobe Escola para Meninas Atalanta estava cheia de espiões e traidores.

- Isso não importa - disse minha mãe. - O que importa é que as aulas começaram há três semanas e você já está encrencada. Não quero mais boletins como os do ano passado. Mais uma nota C ou D e vou mandá-la para um internato. Não estou brincando, Ananka. Vou encontrar um tão distante da civilização que a única coisa que você terá para fazer será o dever de casa.

- Você está blefando. - Eu ri de nervoso. Minha mãe nunca me fez ameaça alguma e eu não sabia bem se devia levá-la a sério. Mas eu não conseguia imaginar um destino mais horroroso do que ser banida de Manhattan.

- Não acho que vá querer descobrir se sou capaz disso. Sugiro que comece a passar mais tempo estudando e menos andando por aí com suas amigas. Algumas delas não parecem se importar com os estudos, e duas são trapaceiras de carteirinha. Oona Wong nunca bate na porta quando vem aqui. Só põe a mão na maçaneta e entra sozinha.

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Estremeci. Eu tinha pedido a Oona para parar de arrombar trancas, mas este era um hábito que ela achava difícil de largar.

- Minha amigas são gênios - foi a resposta ridícula.

- Não duvido disso nem por um minuto. Elas até podem ajudar você a ganhar uma bolsa para a universidade comunitária de sua preferência. - Minha mãe se levantou da mesa. - Você e Kiki Strike estão aprontando alguma - disse ela. - Não sei o que é, mas se continuar afetando seu rendimento escolar, descobrir será minha missão.

Enquanto ela se arrastava para fora da cozinha, olhei o jornal aberto na minha frente. Se Kiki era a responsável, ela deveria ter sido mais discreta.

* * *

É claro que minha mãe tinha razão. Minhas amigas e eu estávamos aprontando alguma. Mas mesmo que as possibilidades fossem apresentadas na forma de uma pergunta de múltipla escolha (Ananka e as amigas trapaceiras estão... A: Passando tempo com grupos de ambientalistas radicais; B: Cheirando canetas permanentes e descuidando do dever de casa; C: Caindo sob a influência de uma mini-hipnotista que lhes garantirá uma vaga de atendente na Better Burger; D: Salvando a cidade de Nova York), minha mãe nem poderia ter adivinhado a verdade. Como muitas pessoas daquela idade, ela sofria de uma estranha forma de amnésia que a impedia de lembrar como era ser jovem. Apesar de suas desconfianças, ela não conseguia acreditar que um grupo de meninas de 14 anos era capaz de alguma coisa além de travessuras insignificantes.

Como estou com humor para compartilhar, vou lhe contar a verdade. Aos 12 anos, eu me juntei às Irregulares, um bando de bandeirantes em desgraça lideradas pela infame Kiki Strike. Juntas, nós seis partilhamos um segredo extraordinário. Descobrimos um vasto labirinto de passagens esquecidas debaixo do centro de Nova York, construído pela comunidade do crime da cidade há mais de duzentos anos. Entradas secretas para a Cidade das Sombras podem ser encontradas em porões de bancos, lojas de grife e casas elegantes de toda Manhattan, e qualquer um que tenha acesso aos túneis infestados de ratos pode entrar e roubar os prédios à vontade. É claro que as Irregulares não estavam interessadas em rechear os bolsos com produtor adquiridos ilicitamente. Apenas queríamos que os túneis fossem só nossos. Mas sabíamos que nosso playground subterrâneo tinha um preço. Em vez de deixar que as autoridades estragassem a diversão, assumimos a responsabilidade de evitar que uma nova geração de criminosos usasse a Cidade das Sombras.

Prefiro pensar que tivemos sucesso. Mas como os corpos inchados de lulas gigantes que dão

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na praia da Nova Zelândia, até os segredos mais bem guardados um dia, cedo ou tarde, vêm à tona. Seis meses atrás, um mapa incompleto da Cidade das Sombras caiu nas piores mãos possíveis e os parentes assassinos de Kiki Strike - a cruel rainha da Pocróvia e sua filha de moral questionável - usaram-no para tramar sua destruição. Depois que as Irregulares frustraram um atentado contra a vida de Kiki, Livia e Sidonia Galatzina fugiram para a Rússia. Mas era só uma questão de tempo até elas voltarem - e, pelo que sabemos, elas ainda têm uma cópia de nosso mapa.

Enquanto esperamos que as Galatzina façam seu movimento seguinte, as Irregulares se mantêm ocupadas. No verão, exploramos novos túneis e expandimos nosso mapa da Cidade das Sombras, recolhendo os tesouros que encontramos pelo caminho (moedas de ouro, relógios de prata, comadres antigas surpreendentemente valiosas). Sempre que demos numa entrada que podia ser descoberta, nós a bloqueamos, ou montamos armadilhas. Foi um trabalho exaustivo e grande parte dele foi feito à noite, quando a maioria das meninas de nossa idade estava aninhada na cama. Esperávamos completar nosso mapa antes de setembro, quando as aulas começassem. Mas quando a diretora Wickham decidiu me dedurar, ainda havia um túnel a ser explorado. Nenhuma ameaça de minha mãe pode me impedir de concluir este trabalho.

Não é que eu não dê importância a suas advertências. Como diria minha amiga Verushka, quando um cão silencioso começa a latir, é melhor prestar atenção. Eu até tentei atacar o dever de geometria que andei deixando de lado, mas a matemática sempre me faz divagar e não ajudou em nada que cada cômodo de nosso apartamento estivesse apinhado de livros sobre temas mais interessantes. (Civilizações perdidas da América do Sul, análise forense de esterco pré-histórico e a trama M15 contra a princesa Diana, para citar alguns.) Enquanto preparava um bule de café forte, vi um livro intitulado Envenenadoras do século XVII encostado numa caixa de adoçante. Incapaz de resistir, convenci-me de que precisava de uma curta parada nos números e deixei que meus olhos imergissem na história da gananciosa marquesa de Brinvilliers, que envenenou metade da família antes de ser queimada na fogueira. Quando levantei a cabeça de novo, eram quase nova da noite. Enquanto vestia calça e camiseta pretas, eu me xinguei por minha falta de disciplina. Os livros sempre foram meu fraco.

Tranquei a porta de meu quarto e desci a escada de incêndio do lado de fora da minha janela. Vou admitir que não havia muita razão para a ação furtiva no estilo Mulher-gato. Minha mãe e meu pai nem estavam em casa. Eu tinha dado um show tão convincente de que estava estudando o dia todo que eles decidiram brindar ao sucesso dos dois num restaurante próximo. Uma simples placa de Estudando: Não Perturbe os manteria longe de meu quarto quando eles voltassem. Mas como eu ia encontrar Kiki Strike para uma noite de aventura (talvez minha última noite, por algum tempo), não parecia lá muito conveniente sair pela porta da frente.

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* * *

O tempo estava estranhamente quente havia semanas, e o ar estava denso do cheiro rançoso de um milhão de latas de lixo. Raios estalavam nas nuvens no alto, avisando que uma tempestade se aproximava de mansinho da cidade. Enquanto ia para o Cemitério de Mármore, um cemitério secreto com uma entrada para a Cidade das Sombras, contei os ratos que se enfiavam nos bueiros ao som de meus passos. Eu tinha passado por quarenta deles quando entrei em uma rua curta e mal iluminada chamada Jersey Street. Os pelos de minha nuca começaram a levitar e meus dedos se agarraram à latinha de spray de pimenta que eu tinha escondida no bolso. Tentei me preparar para um encontro com uma gangue de arruaceiros de punhos ligeiros ou um dos lendários assaltantes de Manhattan. E me vi cara a cara com um roedor imenso.

* * *

Pintado na lateral de um prédio, o esquilo assomava com um metro e oitenta de altura e não pareceu satisfeito por me ver. Dois olhos pretos de conta encaravam debaixo de sobrancelhas bastas, e um sinistro sorriso de sarcasmo revelava a dentuça. Uma das patas carnudas do esquilo segurava uma placa com letras em negrito. Dizia: SEU DINHEIRO LIBERTARÁ TODOS OS ANIMAIS. Olhei por sobre o ombro, na esperança de que um esquilo em carne e osso não estivesse ali para cumprir a ameaça. A viela estava vazia. Estendi a mão e rocei o dedo na pintura da parede. Ainda estava úmida. Quem pintara o esquilo tinha acabado o trabalho havia pouco.

Em qualquer noite em Nova York, há centenas de artistas deslizando pelas sombras, deixando suas marcas pelas paredes da cidade. Alguns são viciados na adrenalina e na correria; outros têm algo a dizer e querem que o mundo todo os ouça. Havia poucas dúvidas de que o artista do esquilo tinha uma missão - suspeitei de que podia ser a mesma pessoa cuja aventura na pet shop ganhara a primeira página do New York Post. Mas uma coisa era certa: não era Kiki Strike. Ela podia falar umas dez línguas e derrubar homens com duas vezes seu tamanho, mas nunca desenharia nem um bonequinho de criança convincente. Havia um novo justiceiro na cidade.

Tendo absolvido Kiki do trabalhinho de libertação dos animais, eu estava me coçando para contar a ela sobre o esquilo que tinha visto. Cheguei três minutos adiantada ao cemitério e andei na frente dos portões, consultando o relógio a cada poucos segundos como um gordo faminto olhando um lote de brownies no forno. As nove horas chegaram sem sinal de Kiki. Às 9h15, passou um caminhão de entrega de pet shop, com um esquilo cor-de-rosa adornando a lateral. O esquilo segurava uma placa que anunciava LIBERTE-OS OU SOFRA AS CONSEQUÊNCIAS. Perguntei-me quais seriam as consequências enquanto o céu trovejava como os intestinos de um gigante com prisão de ventre. Às nove e meia eu estava espremida no toldo da funerária do bairro. Chovia a cântaros e eu começava a me preocupar. Kiki Strike

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se orgulhava de sua pontualidade. Se estava atrasada, tinha de ser encrenca. Liguei para o celular dela, mas ninguém atendeu. Às 19h40, parei um táxi e dei o endereço da casa de Kiki.

* * *

Para qualquer uma que pense que eu estava exagerando, incluí uma curta lista das pessoas que querem Kiki Strike morta. A lista aumenta consideravelmente com o passar dos anos mas, dado o fato de que Kiki não tinha idade para dirigir (embora em geral fizesse isso) na época desta história, acho que você vai achar a lista bem impressionante.

1. Livia Galatzina, rainha (exilada da Pocróvia). Monarca com sede de poder e gosto por móveis bregas, Livia Galatzina envenenou toda a família da irmã mais velha para subir ao trono do minúsculo reino da Pocróvia. Kiki Strike, a infeliz sobrinha de Livia, foi salva por Verushka Kozlova, membro da Guarda Real. Depois que o povo da Pocróvia deu um pé na bunda em Livia, ela se mudou para Nova York. Kiki e Verushka vieram logo depois, com a intenção de se vingar.

2. Sidonia Galatzina, princesa da Pocróvia. Filha de Livia e minha ex-colega na Escola para Meninas Atalanta, a Princesa antigamente era considerada a It Girl de Nova York. Ela também tentou matar Kiki Strike. Para atrair Kiki a suas garras, a Princesa sequestrou duas meninas cujos pais tinham acesso a um mapa perigoso. Quando as Irregulares conseguiram resgatar as meninas, Sidonia e sua mãe fugiram para a Rússia, onde foram vistas pela última vez jogando croquê na casa de um notório gângster.

3. Sergei Molotov. Ex-membro corrupto da Guarda Real de Pocróvia e braço direito de Livia, Molotov imputou o assassinato dos pais de Kiki a Verushka Kozlova, obrigando Kiki e Verushka a se esconderem. Mais tarde, o esperto assassino atirou na coxa de Verushka enquanto tentava capturar Kiki Strike. Ele também escapou impune.

4. Toda a gangue Fu-Tsang. Enquanto exploravam a Cidade das Sombras, as Irregulares descobriram que a Fu-Tsang, uma gangue de contrabandistas chineses, usava salas na Cidade das Sombras para esconder seu butim. Alertamos a polícia e, em retaliação pela batida que se seguiu, a Fu-Tsang uniu forças com a Princesa para matar Kiki Strike. A maior parte da gangue foi presa, embora alguns membros continuem em liberdade.

5. Lester Liu. O misterioso líder da Fu-Tsang. Houve boatos de que Lester Liu administrava seus negócios direto de Xangai.

6. Vendedor de cachorro-quente da esquina da rua 14 com a Sexta Avenida. Vamos colocar da seguinte maneira: desde que Kiki denunciou as atividades dele à vigilância sanitária, eu

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nunca mais comi um cachorro-quente. Tenho escapado da justiça, o vendedor ainda era procurado por várias acusações de crueldade com animais.

Quando uma rainha, um contrabandista e um vendedor de cachorro-quente estão decididos a matar ou capturar você, é melhor não ficar em um lugar só por muito tempo. Em julho, Kiki e Verushka mudaram-se para novos aposentos na rua 18. Originalmente uma garagem de carruagens, o prédio comprido e estreito de tijolos aparentes tinha um único andar. Uma vez que Sergei Molotov a havia baleado dois anos antes, Verushka, aos poucos perdera o uso de uma perna, então estava fora de cogitação usar uma escada. No verão, Luz Lopes, a brilhante mecânica das Irregulares, passou três semanas preparando uma cadeira de rodas exclusiva para o sexagésimo aniversário de Verushka. Quando terminada, trazia um assento que podia se erguer 1 metro no ar, um braço robótico e um pequeno canhão para lançar granadas de gás lacrimogêneo. Naquela noite, quando o trânsito da cidade diminuiu, Verushka pôde ser vista disparando com sua cadeira pela Sétima Avenida. Um policial registrou que ela seguia a 80 quilômetros por hora. Verushka sempre se gabava de ele ter ficado tão impressionado que nem lhe deu uma multa.

Na rua 18, saí de meu táxi e entrei num rio de água de chuva que corria junto ao meio-fio. Espremendo-me ao passar pelos postes do prédio, eu não sabia se Kiki e Verushka estavam em casa. Uma hera voraz tinha tragado as duas janelas que davam para a rua e agora suas gavinhas famintas atacavam os prédios vizinhos. Subi às portas altas de madeira em arco, estendi a mão fundo pela hera e apertei a campainha escondida. Como ninguém atendeu, esperei que um pedestre ruidoso virasse a esquina e comecei a escalar a parede.

Se você for meio parecida comigo, deve ter visto uns mil filmes em que as pessoas escalam prédios usando uma ampla variedade de plantas trepadeiras. Acredite em mim quando eu lhe digo que é muito mais difícil do que parece e você não deve experimentar, a não ser que esteja salvando a vida de alguém ou fugindo da polícia. Antes de chegar à beira do telhado de Kiki, escorreguei uma meia dúzia de vezes, esfolando os nós dos dedos. Por fim, consegui subir e olhei pela imensa claraboia no telhado do prédio. As luzes estavam acesas, mas Kiki e Verushka não estavam ali. Toda a habilitação estava tranquila e silenciosa como uma casa de bonecas de uma criança morta. Não vi sinais de luta - pelo que eu podia dizer, tudo estava em seu lugar. Na realidade, só percebi um sinal de que havia algo errado. No meio da sala, a cadeira de rodas de Verushka estava vazia.

Por mais que quisesse investigar, eu não podia invadir a casa de Kiki. As Irregulares passaram semanas montando armadilhas e uma nuvem de gás de riso explodiria se alguém se atirasse na lateral do prédio. Force uma tranca e você se verá presa numa rede de lasers que vão chamuscar sua pele. Fiquei agachada no telhado e pensei em minhas alternativas. Só havia uma, e não gostei dela: ter de esperar.

Enquanto eu me preparava para uma descida pela trepadeira, olhei a rua, para ver se alguém passava. No final da quadra, vi uma figura escura e magra parada junto a uma parede, abrigada

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pelo beiral do prédio. Dada sua postura e a ausência de um guarda-chuva, imaginei que estava atendendo a um chamado da natureza. Meu celular vibrou e eu o peguei no bolso, na esperança de ouvir Kiki do outro lado da linha. Em vez disso vi o ícone de mensagem de texto. "Reunião amanhã: 7h. FFat Frankie's. Oona." Decepcionada, comecei a descer centímetro por centímetro a lateral do prédio. Só quando pousei em segurança a calçada percebi que eu podia ter sido vista. Corri par a figura que vi perto da parede. A pessoa se fora, mas deixou sua marca - um esquilo feliz de 2 metros de altura com uma placa que dizia NÃO FOI POR FALTA DE AVISO.

COMO PARECER MISTERIOSA

Apesar de que alguns livros lhe dirão, você não precisa de poderes mágicos nem amigos no reino das fadas para desfrutar de uma emocionante aventura de vez em quando. O que você precisa é de um pouco de bom senso - e alguns conselhos práticos. É o que ofereço aqui. Posso não ser a maior aventureira do mundo, mas o que aprendi foi com os melhores. (E costumo fazer anotações muito boas.)Vamos começar por uma coisa simples. Até que ponto você gostaria de intrigar os outros, inspirar romances e talvez se tornar uma lenda em sua época? Você não precisa de um passado de crimes, nem de um segredo perigoso, nem mesmo de um sobretudo impermeável para parecer misteriosa.

Gritos silenciosos

Se você é do tipo que gosta de contar a história de sua vida a alguém que você conhece no metrô, pode achar difícil cultivar um ar de mistério. (Não se preocupe - provavelmente você terá um futuro incrível como apresentadora de talk-show.) Nada a fará parecer menos misteriosa do que um ataque de diarreia verbal. Isso não quer dizer que você deva ser taciturna ou antipática. Simplesmente fique de boca fechada e deixe que as pessoas façam o que mais gostam de fazer - falar delas mesmas.

Invente um segredo

Escolha uma assunto a evitar na conversa. Pode ser o trabalho (ou a profissão de seus pais), o que aconteceu nas suas férias de verão, ou por que sempre há um segurança seguindo você. Sempre que o tema surgir, sorria e mude de assunto.

Vista-se para o papel

Cores ousadas e corpo exposto não transmitem uma imagem misteriosa. Em vez disso, pense

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em preto, alinhado e sofisticado. Além disso, tenha pelo menos um item curioso e jamais seja vista sem ele. Não precisa ser um par de bastões de caratê - um medalhão antigo, um bracelete indiano estranho, ou um exemplar surrado de International Affairs podem funcionar igualmente bem.

Ostente sua cicatriz

Poucas coisas são mais intrigantes do que uma cicatriz. Se você já tiver uma, considere-se uma pessoa de sorte. Se não tiver, deve encontrar uma alternativa razoável em uma loja de fantasias. Mais uma vez, é melhor não discutir o assunto. Nenhuma história que você inventar será tão fascinante quanto aquelas que as pessoas forjarão sozinhas.

Escolha uma área de especialidade

Faça um curso de arrombamento. Aprenda a fazer ligação direta num carro. Esforce-se para ser faixa preta em caratê. Fique famosa no mercado de ações. Mas jamais se sabe de sua especialidade. Espere pela oportunidade certa para exibir suas habilidades e ver o queixo de todos caindo.

Aprenda a desaparecer

Desaparecer é mais fácil do que parece. Você sempre almoça com seus amigos no mesmo lugar? Escolha um dia para comer atum num lugar diferente. Não explique sua ausência. Recuse-se a atender o telefone ou responder a e-mails por 24 horas. Diga às pessoas que você estava ocupada. Quando sair com um grupo, espere até que ninguém esteja olhando e abandone-o. Quando indagada, diga que tinha uma coisa para fazer.

Crie uma sociedade secreta

Depois de você conseguir criar uma aura de mistério, pode ser a hora de transmitir seu conhecimento a novos amigos. Encontre uma causa que possa alardear - seja salvar ou dominar o mundo - e cria sua própria sociedade secreta. Pense em criar seu logotipo, mas lembre-se - para que seja uma sociedade secreta mesmo, deve continuar sempre em SEGREDO.

CAPÍTULO DOIS

Quem dormiu na minha cama?

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Acho que posso dizer com segurança que a maioria das meninas de 14 anos com histórico criminal teria guardado distância do Fat Frankie's. Toda manhã, dezenas de policiais se espremiam na pequena lanchonete para devorar o café da manhã antes de seus turnos matinais. Mas no verão, o Fat Frankie's tornou-se o ponto de encontro preferido de Oona Wong. Por mais ilícitos que fossem seus negócios, ela preferia realizá-los em público. Ela sabia que não tinha nada a temer. Poucos de seus clientes podiam imaginar que a menina elegante com cara de boneca fora uma das falsárias mais famosas de Chinatown. Oona dizia gostar de viver sob tensão - mas sempre desconfiei que ela tivesse uma queda por policiais.

Enquanto eu abria caminho pela lanchonete abarrotada, perguntei-me qual seria o último esquema de Oona. Um ano antes ela abrira o Golden Lotus, um salão de manicure de elite aonde mulheres ricas iam aos bandos para fazer as unhas e trocar fofocas com as amigas. Arrogantes e ignorantes, elas supunham que as jovens chinesas que trabalhavam no salão não sabiam falar inglês. Mas enquanto aparavam cutículas e cortavam unhas dos pés em silêncio, as funcionárias de Oona registravam cuidadosamente as conversas das clientes. Oona fez uma pequena fortuna negociando os segredos das socialites e pegando dicas de ações, mas isso não a impedia de procurar novas maneiras de engordar sua conta bancária.

O que Oona fazia com o dinheiro era um mistério que o restante de nós jamais conseguiu resolver. Tremendamente indelicada, ela nunca hesitava em observar que seu brilho labial não combinava com a pele ou que uma espinha gigantesca estava prestes a estourar na sua testa. Mas por uma questão de princípios, recusava-se a discutir sua vida pessoal. Apesar do que soubemos dela com o passar dos anos, não fazíamos ideia de onde Oona morava ou com quem preparava seus waffles toda manhã. Minha única tentativa de satisfazer a curiosidade terminou numa discussão franca em uma rua de Chinatown quando Oona me pegou seguindo-a para casa, disfarçada de uma sem-tato estranhamente jovem. No fim, prometi deixá-la em paz. Eu sabia que um dia a verdade seria revelada e não valia a pena perder uma amiga para ter uma pré-estreia.

* * *

Encontrei as Irregulares reunidas em volta de uma mesa na ponta do Fat Frankie's, a pouco distância do banheiro. Vestida de macacão de mecânico cinza, Luz Lopes estava sentada com as botas de trabalho apoiadas nas costas de uma cadeira. A cabeça estava tombada de concentração e os lábios formavam palavrões em silêncio enquanto os dedos mexiam em sua última invenção. DeeDee Morlock, a especialista em química das Irregulares, conversava com uma Hare Krishna careca que só podia ser Betty Bent, nossa mestre do disfarce. Enquanto as outras meninas prestavam pouca atenção ao ambiente, Oona estava sentada de costas para a parede, os olhos negros e ferozes indo de uma pessoa a outra. Tive a sensação de que ela contava os segundos até a reunião começar. Quando me viu indo para a mesa, tombou a

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cabeça de lado e cruzou os braços, exigindo em silêncio uma explicação para meu atraso. Oona Wong não gostava de esperar.

- Que emoção. Você finalmente conseguiu chegar, Fishbein. Foi abduzida por alienígenas quando vinha para cá? Ou parou para incomodar outro turista com seu sermão sobre a história secreta do Washington Square Park? - Oona adorava um confronto e na maioria das manhãs eu podia ter cedido. Mas fiquei em silêncio enquanto empurrava as botas de Luz da cadeira e me sentava de frente para DeeDee.

- Cadê a Strike? - perguntou Oona.

- Acho que Kiki não virá - falei.

Betty mordeu o lábio e os dedos de Luz paralisaram-se enquanto todas nos preparávamos para o que viria a seguir.

- Do que está falando? - A cara bonita de Oona se enrugou de raiva. - Ela tem de estar aqui. Quando uma de nós convoca uma reunião, todas têm que comparecer. Esta é a regra.

- Baixe a voz. É cedo demais para gritar. - De todas nós, DeeDee era a que tinha menos paciência com as explosões de Oona. - Deixe Ananka terminar primeiro, está bem?

A boca de Oona se cerrou com força suficiente para quebrar um garfo ao meio.

- Kiki sumiu - expliquei a elas. - Devia se encontrar comigo ontem à noite para terminar o mapa. Não apareceu no Cemitério de Mármore.

- Vai ver estava invadindo outra pet shop - disse Luz, voltando a seu conserto. - Alguém aqui viu os jornais de hoje? Aposto que alguém viu um duende albino soltando outros macacos nas ruas ontem à noite.

- Kiki não soltou aqueles animais. Ela nunca foi irresponsável. É um milagre que nenhum deles tenha sido atropelado por um ônibus. - De natureza dócil e crédula, Betty jamais acreditou que Kiki fosse capaz de qualquer coisa repreensível. O restante do grupo sabia muito bem que era possível.

- Às vezes eu me pergunto se conhecemos a mesma pessoa - eu disse a ela. - Mas desta vez você tem razão. Kiki não teve nada a ver com a pet shop. Já viram os esquilos gigantes?

- Vi um quando vinha para cá - disse DeeDee.

- O que têm eles? - Luz deu de ombros.

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- Tenho certeza de que a pessoa que está pintando os esquilos soltou os animais da loja. Acho que o vi ontem à noite. Ele deixou um esquilo perto da casa de Kiki.

- Então você foi à casa de Kiki? - perguntou DeeDee. - O que Verushka disse? Ela sabe onde Kiki está?

- Verushka também sumiu. E não levou a cadeira de rodas.Por um momento, as Irregulares ficaram sentadas em silêncio enquanto a informação batia de um lado a outra de nosso cérebro como uma bola de boliche numa máquina de lavar. Oona suspiro e revirou os olhos.

- Lá se vai a minha reunião - murmurou ela.

- Eu lamento que seu mais recente esquema de enriquecimento rápido tenha sido temporariamente suspenso. - O volume da voz de DeeDee aumentava a cada palavra. - Não acha que isso é um pouco mais importante?

- É cedo demais para gritar - Oona zombou dela. - Kiki desaparece o tempo todo. É isso o que ela faz. Não sei por que estão todas preocupadas. Nenhuma de vocês perceberia se eu não aparecesse para uma reunião.

- Sua família não está tentando matar você - Betty tentou explicar.

- E o que você sabe, careca? - disse Oona. - Talvez estejam.

- Então, por onde anda a família real homicida da Pocróvia ultimamente? - perguntou Luz, arrastando a conversa de volta aos trilhos. - Ainda escondida na Rússia?

- Não sabemos - admiti. - Livia e Sidonia desapareceram há dois meses. As fontes de Verushka afirmaram que elas saíram de São Petersburgo, mas outro dia ouvi um boato que me fez imaginar se a Princesa e sua mãe ainda podem estar aqui.

- Elas podem estar em Nova York agora? - perguntou-se Betty. - Ouviu alguma coisa no salão, Oona?

Por um momento, parecia que os lábios de Oona não iam se mexer. Sua raiva tinha desaparecido e ela começou a ficar amuada.

- Não tenho passado muito tempo lá - disse ela por fim. - Mas Livia e Sidonia são tópicos de prioridade máxima. Se houvesse alguma novidade, alguém teria me avisado.

- Será que a gente deve dar uma olhada na casa de Kiki? - perguntou DeeDee. - Se nos derem algumas horas, Luz e eu podemos desativar as armadilhas.

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- E destruir aquele trabalhão todo? - Luz gemeu. - O que é isso, gente? Oona tem razão. Esta não é a primeira vez que Kiki desaparece. Nem é a quarta vez. A gente não devia estar um ou dois dias antes de destruir tudo?

- Talvez Luz tenha razão - disse Betty. - Nossa reunião semanal é amanhã. Se Kiki não aparecer, podemos invadir sua casa e procurar pistas.

- Muito bem - falei, levantando-me da mesa. - Se todas preferem aguardar, vamos aguardar. Só espero que estejamos fazer a coisa certa.

- Aonde você vai? - perguntou Betty.

- Tenho uma pesquisa para fazer. Se Livia e Sidonia voltaram a Nova York, pode haver uma nota nas colunas de fofocas.

- Mas Oona convocou a reunião e ainda nem deixamos que ela falasse - protestou Betty. Oona não disse nada. Limitou-se a se concentrar na mesa diante dela como se desejasse que ela voasse pela janela.

- Desculpe, Oona - eu disse. - O que queria discutir?

- Deixa pra lá - murmurou Oona.

- Por favoooooor - pediu Betty, tentando tirar Oona de seu retraimento.

- Vou esperar. Não é tão importante - disse Oona, e de repente desconfiei de que fosse.

* * *

Naquela noite, o clima piorou. Mesmo com as janelas abertas, meu quarto estava quente o bastante para assar um bode. Deitei-me de camisola na minha cama, usando o Daily News como leque. Depois que voltei da reunião, passei um pente-fino em cada jornal de Nova York. Não havia menção alguma a Livia ou Sidonia Galatzina. Os esquilos gigantes eram a grande matéria do dia.

Como que para provar à cidade que eles não podiam ser ignorados, os esquilos invadiram o zoológico do Central Park nas primeiras horas da manhã e libertaram centenas de animais de suas jaulas. Às seis da manhã, um corredor contou ter visto um bando de pinguins num banquete de peixe no Harlem Meer. Uma jiboia foi vista tomando sol na escadaria de uma mansão da Quinta Avenida, com o volume de um poodle no ventre. Rãs arborícolas com cores

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de pedras preciosas pendiam dos galhos de um pinheiro feito uma decoração de árvore de Natal. Entre os únicos animais que ficaram no zoológico estavam vários esquilos enormes. Aquele que ganhou a primeira página do New York Times tinha sido pintado em um iceberg de plástico do habitat do urso polar. Era uma fera de aparência homicida com uma placa que dizia grosseiramente: TÁ OLHANDO O QUÊ?

Segundo os jornais, as gravações da segurança do zoológico capturaram uma figura obscura passando sorrateiramente por vários seguranças adormecidos, parando de vez em quando para mostrar o traseiro para as câmeras. Como a cara do justiceiro estava disfarçada com habilidade e sua bunda não trazia feições características, a polícia estava sem pistas. Começaram a procurar as pet shops e interrogar estudantes de arte, mas o culpado continuava à solta. Todos em Nova York estava ansiosos para ver o que ele faria a seguir.

Uma lufada de vento soprou pelo quarto, farfalhando os jornais que eu atirara no chão. Virei a testa milhada de suor para pegar a brisa e vi uma cara estranhamente pálida emoldurada por cabelos brancos e desgrenhados me olhando da escada de incêndio. Quando gritei de pavor, a cara sorriu e desapareceu. Segundos depois, a porta de meu quarto se abriu e meu pai, de óculos, colocou a cabeça para dentro.

- Ainda está viva? - perguntou ele, dando uma olhada no quarto.

- Mais ou menos. - Eu me sentia meio fraca devido ao choque.

- Bicho-papão? - perguntou ele.

- Aranha.

Com diploma em entomologia, as simpatias de meu pai estavam com os insetos do mundo e ele nunca deixava passar uma oportunidade de falar mal de um aracnídeo.

- Criaturinhas repulsivas - disse ele, tremendo de repulsa. - Sabia que elas dissolvem as estranhas da presa e depois as chupam como um sacolé? São os assassinos seriais de oito pernas do filo artrópode. Mas lembre-se: você é maior do que elas.

- Obrigada pelo conselho - eu falei.

- Meu trabalho é esse - respondeu ele enquanto fechava a porta com um sorriso.

Depois que ouvi seus passos sumirem, enfiei-me pela janela e cheguei à saída de incêndio. Kiki Strike estava encostada na parede, esperando por mim, as roupas pretas e chiques misturando-se na noite. Não era exatamente a imagem de uma princesa - às vezes é difícil acreditar que ela era humana. Embora o veneno que ela consumira quando bebê não a tivesse matado, secara a cor da pele e do cabelo. E como o atentado contra sua vida a deixou alérgica

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à maioria dos alimentos, era improvável que ela passasse de um metro e meio de altura. Aos 14 anos, parecia uma criatura de um filme de ficção científica, incrivelmente bonita e estranha.

- Desculpe pelo atraso - sussurrou ela. Mesmo no escuro, eu sabia que havia alguma coisa errada. Seus olhos azul-claros estejam injetados, as bochechas ainda mais encovadas, e ela não escovava o cabelo havia dias.

- Vinte e quatro horas. Acho que é seu novo recorde de atraso. Por onde andou? Eu tinha certeza de que você tinha sido raptada. Passei o dia todo tentando localizar Livia.

- Verushka estava doente. Tive de levá-la ao hospital.

- Verushka está no hospital? O que ela tem? Ela vai ficar bem? Posso vê-la? - As perguntas disparavam de minha boca como projéteis de mira ruim e minha visão se toldou enquanto as lágrimas tomavam meus olhos. Verushka não só era o tipo de guardiã que eu sempre quis ter - engraçada, compreensiva e hábil com uma bazuca - mas eu também sabia que tinha sido ela quem convencera Kiki a me convidar a ingressar nas Irregulares. Sem a intervenção dela, eu podia ter morrido de tédio muito antes de chegar ao ensino médio.

- Verushka já está em casa. Ela está indo bem. Houve um problema na perna dela... Aquela que Sergei Molotov baleou. Começou a ficar azul há alguns dias. Mas agora está tudo sob controle. Na realidade, ela ia ficar possessa se soubesse que eu te contei. É uma velha durona. Um dia e a vi suturar um ferimento na própria cabeça com uma agulha de costura e linha de pesca. Provavelmente ela vai viver mais do que todas nós.

- Isso não me surpreenderia - concluí. - Mas como você está se sentindo? Parece que foi mergulhada em água sanitária. Tem certeza de que não pegou nada no hospital?

- Nada que não possa ser tratado. O que acha de terminarmos o mapa esta noite?

- Não posso. Algumas de nós têm de ir à escola de manhã. Meus professores andaram se queixando de que eu apago durante as aulas.

- Quer que eu cuide deles? - perguntou Kiki com uma sobrancelha arqueada que tive medo de interpretar.

- Acho que posso lidar com eles sozinha - garanti a ela. - Mas preciso mesmo descansar um pouco. Minha mãe ameaçou me deportar para o meio do nada se minhas notas não melhorarem.

- Venha comigo esta noite e prometo que vai tirar um cochilo amanhã à tarde.

- Ah, é? Como vai fazer isso?

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- É surpresa. Eu não ia meter você me problemas.

- Mas não quero ir ao Cemitério de Mármore hoje - gemi. - É trabalho demais.

- Veja só - contra-atacou Kiki com um sorriso torto. - Eu também pensei nisso. Se você se vestir rápido, podemos usar a entrada do porão de Iris. Os pais dela foram a uma festa.

- E a babá?

- A babá se trancou no banheiro há uma hora. Secou uma garrafa de xerez culinários e agora está cantando musicais sozinha.

- Sei não, Kiki.

O sorriso de Kiki desapareceu enquanto ela tirava uma lasca de tinta da escada incêndio. Por baixo de toda a arrogância, alguma coisa ainda a perturbava.

- Você venceu - concordei, irritada. - Fiquei aqui enquanto visto alguma coisa mais prática. Mas é melhor pensar num plano infalível para me tirar da escola amanhã. - Voltando a meu quarto, estendi a mão pela janela e lhe passei a primeira página do New York Times. - Aqui tem uma coisa para você ler enquanto espera.

- É, eu já vi os esquilos - disse Kiki. - Enquanto estiverem à solta, vão me deixar longe dos jornais. Graças aos filmes do zoológico, ninguém prestou atenção em mim o dia todo. Aquela bunda nas gravações de vigilância era inegavelmente de homem.

Coloquei a cabeça pela janela.

- Preocupada que seus 15 minutos de fama tenham acabado?

- Aliviada - corrigiu Kiki. - Mais 15 teriam me matado.

* * *

Em junho, as Irregulares recompensaram Iris McLeod, de 11 anos, com uma associação honorária. Ela não só salvou a vida de Kiki, como também descobriu um perfume fedorento que afastava os ratos devoradores de gente da Cidade das Sombras. Sem a ajuda de Iris, jamais teríamos continuado nossas explorações, uma vez que nossas Flautas de Hamelin Reversas pararam de funcionar. Os dispositivos do tipo megafone em miniatura foram projetados para gerar um ruído que os ouvidos dos roedores não suportam. Por um tempo, a Flauta Hamelin Reversa funcionou maravilhosamente, deixando só alguns ratos surdos vagando pelos túneis.

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Mas com o tempo esses poucos animais proliferaram em um exército de um milhão de ratos. Os roedores grandes, ferozes e com deficiência auditiva estavam novamente à caça de invasores, e qualquer um sem a proteção do perfume de Iris rapidamente assumiria seu lugar ao lado das centenas de esqueletos mordidos por ratos que tomavam as passagens e câmaras da Cidade das Sombras.

Semicerrei os olhos e me segurei na jaqueta de couro preto de Kiki enquanto ela acelerava o motor de sua Vespa na Bethune Street sem se incomodar em reduzir numa curva. Quando paramos numa derrapada diante da casa de arenito de Iris, a primeira coisa que vi foi o logo das Irregulares estampado na calçada. Um i com o formato de uma menina em movimento, ele marcava todas as entradas conhecidas para os túneis subterrâneos. Por baixo de um velho baú no porão de Iris, havia um alçapão engenhosamente disfarçado. Uma escada comprida e enferrujada levava a um quarto oculto a 20 metros do nível da rua que antigamente pertencera a um contrabandista chamado Angus McSwegan. Segundo Vislumbres de Gotham, um guia do século XIX para o lado negro de Nova York, cada garrafa do uísque de Angus era batizada com um tico de formaldeído, e graças a isso o efeito era rápido. Era a bebida preferida da Cidade das Sombras, que ficava do lado de fora da porta de Angus.

Vi Iris olhando pela janela enquanto Kiki e eu subíamos a escada de sua casa. Antes que tivéssemos a chance de tocar a campainha, a porta se escancarou, revelando uma loura mínima com um jaleco branco exagerado.- Saudações, Irregulares - disse Iris. Como Kiki, Iris era incomumente baixa para a idade. Ao contrário de Kiki, ela possuía bochechas de querubim que em geral eram beliscadas por estranhos que a tomavam por uma menina de 8 anos.

Passamos pela porta e entramos no hall da frente, ladeado por máscaras horrendas e cabeças encolhidas que os pais de Iris colecionavam de expedições arqueológicas.

- Por que esse jaleco de laboratório? - perguntou Kiki a Iris. - Não me diga que andou fazendo experimentos com a babá de novo. Há leis contra esse tipo de coisa, sabia?Iris riu.

- Esqueci que estava com ele. Eu estava me preparando para amanhã.

- O que tem amanhã? - perguntei. - Vai participar de uma peça?

- Andei praticando para a reunião de amanhã, lembra? - Iris pareceu ofendida quando sacudi a cabeça. - DeeDee e eu vamos apresentar nossa grande descoberta. Aquela em que trabalhamos o verão todo. Lembra agora?

Eu não me lembrava, mas deduzi que era melhor cooperar.

- Ah, sim, essa apresentação. É, estamos todas muito animadas.

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- Devem estar mesmo. Minha descoberta vai fazer o perfume repelente de ratos parecer água de privada.

- E por falar em repelente de ratos - disse Kiki -, vamos precisar de um novo frasco esta noite. O meu acabou da última vez e fui perseguida por umas duas centenas de ratos como se eu fosse feita de marzipã. A propósito, quer vir? - Era o jeito dela de se desculpar por esquecer da apresentação de Iris.

- Eu adoraria - disse Iris. - Mas meus pais vão chegar a qualquer minuto. Além disso, quero me certificar de que tudo esteja perfeito para amanhã. Se precisar do perfume, há um frasco a mais no baú lá embaixo. Só trate de ser super silenciosa quando sair. Minha mãe achou que tinha um ladrão aqui da última vez que vocês vieram.

- Desculpe por isso - disse Kiki. - Oona escorregou ao subir a escada.

O nariz de Iris se retorceu ao som do nome Oona.

- Era Oona fazendo todo aquele barulho? A pequena Mestre do Crime?

- Será que vocês não podem se entender? - Kiki suspirou. - Toda essa briga está começando a encher o saco.

- Eu me entendo muito bem com ela - reclamou Iris. - Não é culpa minha se ela não gosta de mim. Na segunda-feira ela disse que se eu não ficasse mais alta, vocês iam me vender a um circo.

- Ela disse isso? - Kiki parecia ao mesmo tempo achar engraçado e chocante.

- Só porque ela te sacaneia não quer dizer que não goste de você - tentei tranquilizar Iris. - Oona sacaneia todo mundo. Ela não sabe agir de outra forma. É como se fosse socialmente retardada.

- Retardada ou não, é melhor ela ficar esperta - Iris fumegava -, ou um dia alguém vai ensinar boas maneiras a ela.

Ouvimos a porta se abrir no segundo andar e uma interpretação desafinada de "Hey, Big Spender" soou pela casa.

- Hora de ir - cochichou Kiki, puxando-me para o porão. - A gente se vê amanhã, Iris. E sempre que tiver o impulso de colocar Oona no lugar dela, tem a minha permissão.

- Obrigada - disse Iris com um riso malicioso. - Talvez eu faça isso mesmo.

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* * *

A temperatura caía a cada passo que dávamos na escada que levava do porão de Iris à cidade perdida abaixo de Manhattan. Na base, eu tremi ao ligar minha lanterna numa câmara decorada com engradados de uísque vagabundo e o esqueleto mordido por ratos de Angus McSwegan, cujo maxilar se abria num sorriso desdentado. Abri meu mapa. O último túnel inexplorado ficava do lado leste da Cidade das Sombras, a mais de um quilômetro e meio de distância.

- É melhor irmos andando - falei com um bocejo. - Temos uma longa caminhada pela frente.

- Ótimo! - Naquele momento, as preocupações de Kiki foram esquecidas. - Estou com vontade de andar.

Depois da câmara havia um túnel largo e revestido de pedra. Um lado estava bloqueado por um monte de entulho, resultado de uma explosão infeliz dois anos antes que tinha mandado DeeDee Morlock para o hospital e Kiki para o esconderijo. O outro lado do túnel se estendia diante de nós. Um monstruoso rato cinza atirou-se de um buraco na parede e desapareceu na escuridão. Ao passarmos pelas portas que levavam aos bares, salões de jogos e covis de ladrões abandonados da Cidade das Sombras, podíamos ouvir o bater de milhões de patinhas em volta de nós. Graças ao perfume repelente de roedores de Iris, os ratos mantinham distância, mas nós duas sabíamos que eles esperavam por uma oportunidade de atacar.

Tínhamos acabado de virar uma esquina em uma parte conhecida dos túneis, a 5 metros abaixo das criptas da antiga catedral de St. Patrick, quando Kiki pegou meu braço e colocou um dedo nos lábios. Uma porta de madeira estava aberta, bloqueando o caminho a nossa frente. De início tive aquela mesma sensação enervante que você tem quando um dia volta da escola e encontra seus livros reorganizados ou sua mesa de cabeceira de cabeça para baixo. Mas quando vi o que estava pintado nas tábuas de madeira da porta, quase disparei para a saída. Embora as Irregulares adorassem acima de tudo uma nova câmara para explorar, sempre tínhamos o cuidado de evitar portas trancadas por fora e rotuladas com uma grande cruz vermelha. Sabíamos bem demais o que encontraríamos. Quem quer que tivesse aberto a porta, não tinha sido uma de nós.

Contando até três em silêncio, Kiki e eu pulamos diante da porta e iluminamos a câmara com nossas lanternas. O piso da sala estava cheio de esqueletos, alguns ainda com roupas mofadas e ternos roídos pelas traças. Estes eram os cidadãos da Segunda Cidade - os criminosos e trapaceiros que encontraram o Criador quando a peste de 1869 grassou nos túneis ocultos de Manhattan. Os poucos sobreviventes trancaram os doentes para morrer em quartos marcados com uma cruz vermelha. A crueldade deles evitou que a doença se espalhasse ao mundo no

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alto e garantiu que a Cidade das Sombras ficasse esquecida por mais de cem anos.

- Não estou vendo ninguém - expliquei a Kiki enquanto minha lanterna circulava pela sala. - Acha que a porta pode ter se aberto sozinha?Kiki examinou a tranca.

- Duvido - disse ela.

Pouco além do facho de minha lanterna, alguma coisa se mexeu e fui tomada por um terror que já conhecia. Como acontecera muitas vezes quando visitei a Cidade das Sombras, jamais consegui me livrar da sensação de que parte dos mortos ainda andava pelos túneis.

- Talvez tenha sido um deles - concluí, apontando a lanterna para um esqueleto com um chapéu de palhinha. - Talvez tenha sido um fantasma. - Um volume intenso apareceu por baixo da camisa do morto e se esgueirou devagar por seu peito. Um rato surgiu da gola e disparou por nós como se tivesse sido chamado para o jantar.

- Você é tão otimista, Ananka - brincou Kiki. - Tomara que tenha sido um fantasma. Mas fique de olhos abertos. Pode haver alguém aqui embaixo. Não percebeu nada estranho nos últimos minutos?

Eu estava prestes a sacudir a cabeça quando finalmente entendi.

- O silêncio - falei. - Não ouço mais os ratos.

- Exatamente - disse Kiki. - Esse é o primeiro rato que vejo há algum tempo. Não faz você se perguntar para onde eles foram?

* * *

O último túnel não mapeado da Cidade das Sombras serpenteava por baixo do Lower East Side de Manhattan. Suas paredes de tijolos esfarelados eram menos impressionantes do que as passagens altas e arqueadas em toda parte da cidade, e às vezes parecia que estávamos andando pelo corredor de uma penitenciária abandonada. Tirei medidas e fiz anotações enquanto Kiki investigava os cômodos por que passávamos. A maioria estava vazia, embora descobríssemos um depósito cheio de barris de ostras em conserva suficientes para alimentar uma pequena cidade por um ano (mas desconfio de que a maioria dos moradores preferisse passar de fome). Para nossa decepção, nenhuma das câmaras parecia ter uma saída para a superfície. Quando o túnel deu num beco sem saída em uma porta de madeira simples, preocupei-me em silêncio que nossa última exploração tivesse sido inútil.

Na sala cavernosa além, encontramos dez catres frágeis em uma fileira e um grande guarda-

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roupa encostado na parede mais distante. Nove das camas estavam feitas - os lençóis e cobertores de lã bem dobrados e enfiados pro baixo do colchão. A décima cama, porém, estava amarfanhada e seu lençol num monturo no meio do colchão.

- Quem dormiu na minha cama? - brinquei, mas Kiki estava com a orelha colada na parede ao lado do guarda-roupa e não prestava atenção. Peguei um livro antigo na mesa de cabeceira. A folha de rosto dizia Guia de uma canadense para as donas de casa. Folheei o livro, parando para olhar rapidamente os capítulos que davam instruções convenientes para fazer suas próprias calcinhas de aniagem e preparar um nutritivo guisado de alce.

- Ei - Kiki chamou. - Ouviu isso?

- Ouviu o quê? Os ratos voltaram?

- Não. Parece água - disse ela. - Me ajude a afastar esse armário.Juntas, empurramos o móvel pesado, afastando-o da parede. Atrás dele havia um túnel estreito com altura suficiente para rastejarmos por ele. A superfície subia em um ângulo acentuado. O rugido da água corrente enchia o vazio.

- Como eu desconfiava - disse Kiki.

- Parece arriscado - falei, apontando um par de tábuas no teto do túnel que estavam vergadas com o peso da terra. - Não acho que a gente deva verificar antes de Luz dar uma olhada. Pode estar prestes a desabar.

- Tem toda razão. Mas sei aonde este túnel vai dar. É uma rota de fuga para o rio. Você sai subindo por aqui. - Ela ergueu os olhos para o teto. Ali, acima de nossas cabeças, havia uma abertura circular cavada na terra - uma saída da Cidade das Sombras.

Achamos uma escada em um dos depósitos e a arrastamos para a última câmara. Ao lado do buraco, uma série de degraus de metal levava a um alçapão. Embora a maior parte das saídas dos túneis parecesse igual, nunca se sabia onde dariam. Você podia se ver interrompendo um jantar festivo da máfia, olhando pasma as joias guardadas numa câmara secreta, ou encarando os olhos do pit bull de um contrabandista. A cabeça de Kiki bateu no alçapão e ela escutou com cuidado antes de abri-lo e se içar para o escuro.

- Não vai acreditar nisso - cochichou ela.

Eu me icei para fora do buraco e segui sua lanterna, que circulava por uma sala enorme. As paredes eram pintadas com murais de prédios antigos e paisagens com palmeiras. Fileiras organizadas de bancos de madeira revestiam o chão. Na frente da sala, havia uma arca de dois níveis feita de madeira e ouro, decorada com um par de leões chorosos.

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- É lindo - sussurrou Kiki.

- Acho que sei onde estamos.

- Parece um templo.

- É a sinagoga Bialystoker - informei a ela, querendo que o sr. Dedly estivesse aqui para ter um gostinho da minha perícia. - Há 150 anos, era conhecida como a igreja da Willet Street. Soube de boatos de que antigamente era uma estação da Ferrovia Subterrânea, mas isso ninguém conseguiu provar. Até agora.

- Então, para que são aquelas camas todas?

- É, antes da Guerra Civil, alguém deve ter escondido escravos foragidos na Cidade das Sombras e os contrabandeados para barcos no rio à noite.

- Mas ora veja só - Kiki estava maravilhada. - Nosso último túnel inexplorado e finalmente descobrimos que alguém fez um bom uso da Cidade das Sombras. Minha fé na humanidade foi restaurada.

- Faz alguma idea da importância disto aqui? Este alçapão, esta sala, as dez caminhas... Tudo faz parte da história americana. Não há nada parecido em lugar algum.

- É por isso que é uma pena que ninguém possa saber deles, a não ser a gente. - Embora estivesse escuro demais para enxergar, eu podia ouvir a advertência na voz de Kiki.

Enquanto descíamos à sala abaixo, meu coração ainda martelava de empolgação e mil pensamentos quicavam por meu cérebro. E se o descobridor do túmulo do rei Tut o tivesse selado e deixado que o deserto o tomasse? E se o explorador que descobriu a Cidade Perdida de Machu Picchu a tivesse deixado oculta nas nuvens?

- Kiki, sente-se por um minuto. Temos que conversar sobre isso - pedi.De sobrancelhas arqueadas, Kiki se acomodou na lateral da cama desarrumada. De repente, sua testa se vincou. Ela bateu no lençol ao lado.

- Poupe sua aula para depois. Tem alguma coisa na cama - disse ela, abrindo com cuidado o lençol. Uma pequena figura de argila caiu no colchão. Era uma mulher usando uma armadura chinesa antiga, montada num cavalo preto e gordo. Não havia dúvidas de que era muito mais antiga do que qualquer coisa que tivéssemos encontrado na Cidade das Sombras.

- As estações na Ferrovia Subterrânea costumavam ser decoradas com arte chinesa antiga? - perguntou Kiki.

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- Provavelmente não - admiti.

- Lá se vai a sua teoria dos fantasmas. Alguém desceu aqui. Então acho que resta uma pergunta. - Kiki me abriu um sorriso perverso.

- Qual? - perguntei.

- Quem vai olhar embaixo da cama?

COMO DETECTAR A PRESENÇA DE UM INVASOR

Está preocupada que seu espaço privativo possa ser invadido mas não tem dinheiro para seguranças armados ou feixes de laser? Não precisa pirar - há dezenas de opções disponíveis. Os dispositivos de segurança baratos e eficazes a seguir não só indicarão uma entrada não autorizada, como muitos também matarão um invasor de susto (o que pode ser muito divertido, se você estiver olhando a cena por um binóculo).

Contatos de portas e janelas

Esses pequenos e baratos dispositivos magnéticos são projetados para emitir um alarme ensurdecedor sempre que é aberta uma porta ou janela. Podem ser encontrados em qualquer loja de ferragens e também são úteis para cômodas, caixas de joias, cofres - ou qualquer coisa que você possa pensar em abrir e fechar. (Seja prevenida: um determinado invasor pode procurar na internet dicas que ajudarão a desarmar essas engenhocas.)

Detectores de movimento

Acredite se quiser, por um preço um pouco maior do que dois ingressos de cinema, você pode comprar seu próprio sistema de alerta de movimento. Coloque o sensor no local certo e espere que alguém entre de fininho em seu quarto enquanto você está envolvida com seu filme de kung fu preferido. O sensor mandará um sinal a seu receptor portátil, que a avisará com um alarme penetrante ou luzes que piscam. (Os detectores de movimento também funcionam bem para a caça de fantasmas.)

Gravador ativado por voz

Os dois itens anteriores são ótimos para proteger seus pertences quando você não está longe - mas e se você suspeitar de que alguém está fuçando quando você não está em casa? Se você não é rica e nem tem talento para instalar sistemas de segurança eletrônicos, recomendo um simples gravador ativado por voz, que começará a gravar ao som de movimento. Você pode

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não pegar seu xereta no flagra, mas pelo menos terá uma prova concreta de que aconteceu uma invasão.

Armadilhas de fios

Se você está com pouco dinheiro - ou precisa de um alarme a curto prazo -, uma armadilha de fios pode ser sua melhor opção. Pegue uma linha de pesca e a estique pela entrada ou numa área de muito trânsito. (Cuide para que fique a 30 centímetros do chão). Amarre uma ponta da linha a um móvel e prenda a outra ponta a um copinho de plástico. Encha o copo de água e coloque-o em cima de um jornal. Se, quando você chegar em casa, o jornal estiver molhado - ou não estiver ali -, você saberá que alguém entrou em seu quarto. (Advertência: este truque talvez só funcione uma vez.)

Alarmes do tipo faça você mesmo

Se você tem habilidade manual e quer um alarme que faça muito barulho, uma rápida busca na internet e levará a instruções para produzir uma ampla variedade de alarmes com peças que talvez já estejam em sua garagem.

CAPÍTULOS TRÊS

Eau Irresistible

Às oito horas da manhã seguinte, arrastei-me para dentro da Escola para Meninas Atalanta, uma academia particular no Upper East Side de Manhattan, e encontrei os sagrados corredores zumbindo de milhares de conversas aos cochichos.

"Ela é quase toda plástica, sabia?"

"Que cadeia coisa nenhuma. Se a polícia um dia aparecer na minha casa, vou terminar dormindo numa caixa na Quinta Avenida."

"Adivinha só quem jantou com o namorado de você-sabe-quem no sábado?"

"O presidente esteve na nossa casa no fim de semana, e ele disse..."

Embora muitas de minhas ricas colegas de escola não soubessem ver a hora sem um relógio digital, todas eram insuperáveis em um assunto - fofoca. Pelo menos uma vez por ano, em geral depois de um boato maldoso que leve uma aluna a se esconder de um de nossos professores toma para si a responsabilidade de nos alertas que a fofoca é cruel e mesquinha, e

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é uma perda de tempo. Embora eu esteja inclinada a concordar com a primeira parte, a segunda não podia estar mais distante da verdade. A fofoca é apenas informação que foi empacotada de forma inteligente e pode ser um instrumento poderoso se você souber usá-la. Revoluções começaram com um único cochicho. Um papo meio despreocupado pode acabar com uma estrela de cinema. E qualquer bom detetive lhe dirá que um comentário descuidado pode revelar um crime.

Quando se lida com fofoca, o truque é ficar de boca fechada. Trocar histórias é como nadar nua no rio Hudson. Parece muito divertido, até que você acorda de manhã com uma assadura braba onde não veria. Descobri que é melhor observar (e ouvir) de longe e resistir ao impulso de participar.

Como as aulas voltaram, fiquei zanzando pelos corredores fingindo cuidar da minha vida, enquanto pegava fragmentos de informações que voavam pelo ar. Durante semanas, o tema mais quente foi a prima de Kiki Strike, Sidonia Galatzina, que todos na Atalanta conheciam como a Princesa. Rica, da realeza e totalmente cruel, a Princesa mandou na escola por anos antes de finalmente sucumbir ao escândalo. Em junho, quatro de nossas amigas mais íntimas foram presas sob a acusação de sequestro e a Princesa desapareceu antes que a polícia pudesse fazer alguma pergunta. Alguns, como as autoridades, acreditam que a própria Princesa foi uma vítima. Eu era uma das pessoas que sabiam que a linda menina de cabelos pretos e olhos dourados tinha planejado todo o incidente.

Parece que todo mundo na Atalanta tinha uma teoria sobre o paradeiro da Princesa. Em setembro, ouvi duas meninas do primeiro ano que conseguiram se convencer de que Sidonia estava morando em um castelo nos Alpes, noiva em segredo do príncipe Uder de Liechtenstein. (Kiki deu uma boa gargalhada com essa.) Mais tarde, ouvi que Dylan Handworthy tinha visto a Princesa em um anúncio japonês de desinfetante de privada. (Embora a modelo fosse somente parecida, cópias coloridas do anúncio rapidamente foram coladas em cada banheiro da escola.) Mas a teoria mais promissora nunca chegou a público. Alex Upton insistia ter esbarrado na Princesa enquanto visitava a Galeria de Rubens no museu Hermitage em São Petersburgo. Alex se gabava de que Sidonia havia apresentado seu companheiro Oleg Volkov, um gângster russo que se acreditava ser um dos dez homens mais ricos do mundo. O que chamou minha atenção foi a data. Se Alex estava dizendo a verdade, a Princesa e sua mãe ainda estavam em São Petersburgo em agosto - um mês inteiro depois de as Irregulares perderem seu rastro.

Fui a sombra de Alex por mais de uma semana, na esperança de obter mais informações. Mas nesta manhã eu estava cansada demais para o trabalho de detetive. Fo só por acaso que passei por perto enquanto ela conversava com uma amiga na frente do laboratório de biologia.

- Os esquilos não atacam pessoas - insistia a amiga. Parei e fingi mexer no meu caderno, morrendo de vontade de informar a elas que uma busca rápida na internet provaria que os esquilos tendem à violência contra seres humanos.

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- Só estou te contando o que eu soube - disse Alex. - Não ligo se você acredita.

Uma terceira menina se juntou ao grupo.

- Acredita no quê?

- Uma das bolsistas disse que foi atacada por esquilos ontem.

- Esquilos? - repetiu a recém-chegada, incrédula.

- Foi o que eu disse - zombou a segundo menina, sentindo-se mais confiante, agora que chegara apoio.

- Não, é só que aquele amigo do meu irmão teve o iPod roubado por um esquilo ontem - disse a terceira menina.

- Está vendo? - Alex parecia triunfante.

- É, ele tinha saído de uma exposição no museu e estava indo a pé para casa pelo Central Park quando um esquilo desceu de uma árvore e pousou na cabeça dele. Depois pegou o iPod dele e correu para os arbustos.

- Como um esquilo pode pegar um iPod? - perguntou a cética.

- Ele disse que não era um esquilo comum. Era imenso... Tipo, com meio metro. Ele tentou avisar a um policial, mas o cara riu e disse a ele para não usar drogas. Ei, que cheiro é esse?

- Que cheiro?

- Quer dizer que não está sentindo? Parece um banheiro químico carregado de chili.

Bastou uma farejada rápida para confirmar que havia mesmo um toque de esgoto no ar. O odor ficava mais forte e começou a vagar por toda a escola. Centenas de narizes foram tapados de nojo e as paredes soavam com um coro de "Ecaaaa!"

- Atenção! - ladrou a diretora Wickham pelo alto-falante. - Recebemos um alerta da vigilância sanitária de que houve um refluxo de esgoto no prédio e precisamos evacuá-lo. Alunas do oitavo ano para baixo, por favor, reúnam-se no pátio. Alunas do primeiro ano do ensino médio para cima estão dispensadas até amanhã de manhã.

Cem vozes nasaladas soltaram um grito. Kiki Strike cumpriu sua promessa.

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* * *

Enquanto eu ia para casa para uma soneca muito necessária, uma menina pálida e baixinha de peruca preta e óculos de sol se junto a mim na esquina da 68 com a Lexington. Como tinha sido aluna da Escola Atalanta, Kiki não podia se arriscar a ser reconhecida. Andamos em silêncio para o metrô e esperamos na extremidade da plataforma.

- Ótimo trabalho! - Eu a elogiei depois que não havia mais ninguém por perto para ouvir. - Como você conseguiu que o esgoto fluísse?

- Não fiz isso. Só liguei para a diretora Wickham - ela se gabou. - Ah... E depois atirei uma daquelas belezinhas pela janela do banheiro. - Ela abriu a mão o bastante para revelar uma bomba de inhaca do tamanho de uma ameixa. - DeeDee tem uma caixa cheia delas no laboratório. Adivinha qual é o ingrediente secreto?

- Cocô? - arrisquei.

- Fresquinho, das calçadas do Upper West Side. Ela fez um acordo com um cara que leva cães para passear no bairro dela.

- Que nojo - falei. - Espero que leve as suas mãos quando chegar em casa.

- Está vendo até que ponto eu vou para evitar que você se lasque? - disse Kiki.

- O que agradeço, acredite. Só espero que eu consiga chegar em casa. Será um milagre se não dormir no metrô e parar no Brooklyn. Aliás, soube de uma coisa interessante antes de você evacuar a escola.

- Onde dizem que Sidonia está agora... pastoreando cabras no Uzbequistão? - Kiki riu.

- Não, não era sobre Sidonia. Era sobre os esquilos. Eles começaram a assaltar as pessoas no fim de semana.

- Foi o que eu soube. Eu estava pensando em fazer uma pequena busca por esquilos enquanto estiver por aqui. Mas agora os roedores cleptomaníacos não são a minha maior preocupação.

- Tem razão. Primeiro temos de descobrir quem esteve no túnel.

Pelo mais breve dos instantes, Kiki pareceu confusa.

- É claro - disse ela, assentindo vigorosamente. - O invasor é prioridade máxima.

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Um trem entrou na estação com um guincho de ensurdecer. Eu embarquei, mas Kiki ficou na plataforma. Acho que ela pôde sentir a pergunta que eu estava morrendo de vontade de fazer.

Inclinei-me para fora das portas.

- Você não vem?

- Pensando bem, vou dar uma caminhada no parque - disse Kiki. - Vejo você na reunião.

* * *

- Rápido! Está atrasada! - DeeDee praticamente gritava ao abrir a porta de sua casa perto da Universidade de Columbia. - Todo mundo está lá em cima no laboratório e Oona está nos deixando doidas.

- Desculpe. Dormi demais. - Segui DeeDee enquanto ela quicava por cinco lances de escada até o sótão. Os fundilhos da calça davam a impressão de que ela tinha sentado num pudim de graxa, e uma gororoba roxa que balançava feito gelatina estava grudada em suas trancinhas. - Kiki usou uma de suas bombinhas de inhaca para fechar a Escola Atalanta, então eu pude tirar uma soneca.

- Que bom que alguém encontrou utilidade para elas. Meus pais ameaçaram se mudar se eu não parasse a produção. Toda a casa fede a uma fábrica de fertilizante. Nem posso te dizer o alívio que foi quando comecei a trabalhar com Iris.

- Então é essa a grande descoberta de que Iris andou falando? - perguntei.

- Meus lábios estão selados, Nancy Drew. Iris me mataria se eu estragasse a surpresa - respondeu DeeDee. - Trabalhamos nisso o verão todo.

- Espero que você não a deixe usar nenhuma substância perigosa - ressaltei, sabendo que a elegância não estava entre os muitos dons de Iris. - Não estou a fim de morrer hoje.

- Por que todo mundo trata Iris como uma criancinha? - DeeDee fungou. - Eu estava fazendo meus primeiros explosivos quando tinha 11 anos.

- É, e olha aonde isso te levou. - Apontei para a cicatriz que atravessava sua testa, resultado infeliz de um lote incomum de explosivos.

- Não acha que isso me deixa interessante? - DeeDee levava tudo a sério, menos sua

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aparência. - Na minha escola, todo mundo quer conhecer a garota da cicatriz.

* * *

No alto das escadas ficava o quarto e laboratório de DeeDee. Ela tentou ao máximo arrumá-lo para a reunião, mas o armário estava inchado de roupas sujas e uma coleção impressionante de embalagens de comida chinesa delivery espiava por baixo da cama. Nem suportei pensar no que tinha sido varrido para baixo do tapete. Um monturo do tamanho de uma bola de softball emitia um odor que só podia ser descrito como catinga. Mas DeeDee não parecia se importar. No que dizia respeito a ela, o trabalho doméstico era para pessoas que tinham tempo demais nas mãos e de menos na cabeça. Só seu laboratório, que tomava metade do quarto grande, era imaculado. Béqueres, frascos e tubos de ensaio de vidro cintilavam como cristal, e um arco-íris de substâncias - algumas brilhando - estava organizado nas prateleiras.

Na frente do laboratório, seis cadeiras de armas foram dispostas em semi-círculo e todas, exceto duas, estavam ocupadas. Luz puxava impaciente o rabo de cavalo enquanto Betty Bent reaplicava um jogo de cílios postiços que tinham descolado. Eu esperava ter a oportunidade de perguntar a Kiki o que a incomodava, mas Oona já estava sentada ao lado dela.

- Quanto tempo isso vai levar? - ouvi Oona perguntar. - Tenho uma coisa importante para falar.

- Vai levar o tempo de que Iris precisar - disse Kiki, asperamente. - Ananka e eu também temos novidades, mas estamos dispostas a esperar nossa vez. Iris está ansiando por isso há meses.

Oona revirou os olhos e fitou o teto. Peguei a cadeira mais distante possível. DeeDee bateu de leve na porta do banheiro e a cabecinha de Iris espiou o laboratório.

- Estão todas aqui? - cochichou ela para DeeDee. - Podemos começar?

- Não podemos te ouvir, Iris - disse Oona. DeeDee lhe lançou um olhar desagradável.

- Sim, estão todas aqui - disse ela a Iris. A porta do banheiro se fechou de novo enquanto DeeDee se sentava.

Exatamente dez segundos depois (ela devia estar contando), Iris fez sua entrada. Usava um jaleco de laboratório enorme que chegava aos tornozelos e óculos de proteção laranja. O cabelo tinha sido puxado num coque de aparência oficial.

Oona riu.

- Por que ninguém me contou que era Halloween? - ela cacarejou.

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- Qual é o seu problema? - grunhiu DeeDee.

- SHHHH! - insistiu Kiki.

Iris fez o máximo para ignorar a comoção.

- Boa tarde, companheiras Irregulares.

- Oi, Iris - disse Betty. Em homenagem ao grande dia de Iris, ela vestiu um terninho Chanel vintage e sua peruca ruiva preferida.

- Obrigada por virem. Espero que todas achem minha apresentação interessante e educativa. - Iris abriu um armário e pegou uma bandeja prateada. Nela havia dois frascos de cristal cheios de um líquido âmbar.

Luz virou-se para DeeDee.

- O que é, mais perfume?

- Iris responderá a suas perguntas esta noite - respondeu DeeDee.

- Então você andou fazendo perfume? - bocejando, Luz perguntou a Iris. Tinha pouco interesse em coisas de mulherzinha.

- Pode-se dizer que sim. - Iris deu um sorriso forçado.

- Posso cheirar?

- Desculpe, Betty. Eu esperava que Oona fosse a primeira a experimentar minha nova criação. Chama-se Fille Fiable.

- Pode esquecer, Iris. Já estou com perfume - disse Oona. - Foi feito sob encomenda por um perfumista profissional e custa 400 dólares o frasco de 25ml. Não estou interessada em feder a laboratório de química.

- Compreendo perfeitamente. - Quando Iris parece tomar o insulto com bom humor, comecei a ficar preocupada. - E se eu colocar um pouco no meu próprio pulso e deixar você dar uma cheirada?

- Iris... - disse DeeDee num tom de alerta. Vi uma das sobrancelhas de Kiki se erguer.

- Está tudo bem, DeeDee - insistiu Iris. - Oona não precisa usar para apreciá-lo.

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- Sei que vou sobreviver - disse Oona, revirando os olhos e levantando-se da cadeira.

Iris pegou um dos frascos de cristal na bandeja. Puxando a manga do jaleco, passou um pouco do líquido no braço e o agitou no ar antes de oferecê-lo a Oona. Oona se curvou e inalou fundo. Seu nariz de imediato se enrugou de nojo.

- Acho que precisa de um nome melhor para isso - disse ela. - Que tal Eau de Sovaco? É quase tão horroroso quando se perfume repelente de ratos.

Iris assentiu pensativamente.

- Achei que diria isso. Não é especial o bastante para uma garota de seu gosto. Quer dizer, olhe para você. São brincos de diamante que está usando, não são?

- Dois quilates cada um - gabou-se Oona. Todo mundo tinha um ponto fraco, mas Oona tinha mais do que sua parcela de direito. No topo da lista que incluía bolsas de crocodilo e meias de cashmere, estavam diamantes.

- São lindos - disse Iris, deixando perfeitamente claro que queria dizer o contrário. - Mas você fica meio vagabunda com eles. Acho que fica melhor em Ananka, não concorda?

O restante de nós prendeu a respiração, esperando que começasse a carnificina. Deslizei para a frente de minha cadeira, preparando-me para pular em resgate a Iris. Foi quando Oona surpreendeu a todas nós.

- Sabe de uma coisa, você tem razão - concordou ela. - Sempre pensei que eles eram meio bregas. Quer, Ananka? - Ela tirou os diamantes das orelhas e os jogou no meu colo.

- E esse vestido - disse Iris. - Não a valoriza muito. Li na Vogue, na semana passada, que está muito mais na moda usar só uma combinação durante o dia.

- É mesmo? - disse Oona. - Devo ter perdido essa edição. Acha que eu devia tirar o vestido? Estou com uma combinação por baixo. Mas não ia ficar meio frígido?

- Frio, idiota - declarou Iris. - Uma mulher deve estar disposta a sofrer pela moda.

- Mas não posso estar mais de acordo! - anunciou OOna, tirando o vestido. Ela se postou na nossa frente com uma combinação rosa-clara. - Que tal isso? Fabulosa, não é?

Luz caiu da cadeira, rindo.

- Está drogada, Lopes? - cortou Oona. - Tanto faz. Eu não esperaria a compreensão de uma

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garota que se veste como o Mr. Goodwrench.

- Hmmm, Iris - eu disse, reprimindo uma gargalhada. - Até que ponto você vai com isso? - Iris me ignorou.

- Você está ótima, Oona. Depois da reunião, vamos até sua casa nos livrar de todas as coisas feias do seu armário. Aliás, eu sempre me perguntei onde você morava. Ninguém jamais foi a sua casa, não é? Por que não nos conta?

- Já chega - ladrou Kiki antes que Oona tivesse a oportunidade de falar. Ela pegou o vestido de Oona e lhe entregou. - Vá ao banheiro e vista suas roupas - ela a instruiu.

- Mas esse vestido é horrendo! - Oona gemeu.

- Confie em mim - insistiu Kiki.

Depois que Oona fechou a porta do banheiro, Kiki passou um braço orgulhoso em Iris.

- Impressionante - disse ela. - Cruel, mas impressionante.

- Obrigada! - cantarolou Iris. - Oona estava pedindo por isso.

- É verdade, mas espero que não tenha ido longe demais. Não queira ter Oona como inimiga. Você sabia disso, DeeDee?

- Não, mas concordo com Iris. Oona estava pedindo por isso.

- Estou com DeeDee. Ninguém me faz rir tanto há meses - disse Luz. - Então o perfume pode forçar as pessoas a fazerem o que você quer?

- Bem que eu gostaria. O Fille Fiable só faz as pessoas confiarem em você. Se derem uma fungada completa, ficarão mais dispostas a contar os segredos delas... Ou a acreditar no que você lhes disser - explicou Iris.

- Quanto tempo leva para passar o efeito? - perguntei.

- Só alguns minutos - DeeDee me garantiu. - Oona deve recuperar o juízo logo.

Olhei para Iris.

- Neste caso, eu recomendaria dar no pé rapidinho.

A porta do banheiro bateu na parede, tilintando os frascos de vidro de DeeDee. Por um

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momento, pensei que podia explodir uma briga, mas Oona simplesmente veio até mim e pegou os diamantes.

- Truquezinho engraçado - murmurou ela a ninguém em particular antes de sair do sótão num rompante e descer a escada.

Enquanto o restante de nós ficava sem fala, Betty e DeeDee partiram atrás de Oona.

- Epa - disse Luz, enfiando a mão no fundo dos bolsos do macacão. - Parece que Oona teve uma overdose do próprio remédio.

- Eu não pretendia magoá-la - disse Iris. - Só estava tentando retribuir por todas as vezes em que ela se divertiu à minha custa.

- Você deve ter atingido um ponto fraco - falei. - Ela vai perdoá-la.

- Acha mesmo? - perguntou Iris, cheia de esperança.

- Claro. - Minha mentira não era convincente e Iris começou a fungar assim que Betty e DeeDee voltaram, sem fôlego.

- Ela não vai voltar - anunciou DeeDee. - Vamos continuar com o show. Já tive o suficiente de Oona por hoje. Na verdade, eu mal me lembro de quando não fiquei enjoada de Oona. Se quer saber, a menina dá mais trabalho do que vale. - DeeDee bateu a mão na boca. - Caramba... O que foi que eu disse? Esse perfume realmente solta a língua da gente.

- Oona só está chateada - disse Betty. - Tem alguma coisa errada. Ela agiu de forma estranha a semana toda. Não acham melhor adiar a reunião?

- Não podemos - disse Kiki. - Vamos deixar Iris terminar a apresentação. Depois temos negócios importantes a discutir. Vou falar com Oona esta noite. Ela vai voltar. Vamos precisar da ajuda dela. Iris? Está pronta?

Uma Iris de olhos meio lacrimosos voltou à sua apresentação.

- Humm. Onde eu estava mesmo? Tá legal. Depois que o perfume que meus pais trouxeram de Bornéu funcionou tão bem nos ratos, comecei a pensar em outras coisas que eu podia fazer. E aí li no jornal sobre uns cientistas da Suíça que inventaram um spray que faz as pessoas parecerem confiáveis. Quando contei a DeeDee sobre isso, ela se ofereceu para me ajudar a melhorar a fórmula deles.

- Os suíços usaram ocitocina, um hormônio secretado pela glândula pituitária, com funções de neurotransmissor... - começou DeeDee.

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- Dá para falar na nossa língua? - perguntei.

- Claro. - DeeDee sorriu. - Para aquelas de vocês que preferem dormir nas aulas de biologia, a ocitocina é uma substância em nosso corpo que nos ajuda a formar laços com os outros. Compõe o que nos ajuda a nos apaixonar. Mas em pequenas doses, ela faz com que você confie nas pessoas a seu redor. Por exemplo, a ocitocina é um dos motivos para que as meninas gostem de fofocar e trocar segredos. Isso é bom. Não precisamos mudar a fórmula suíça; só a tornamos um pouco mais potente. Foi assim que chegamos ao Fille Fiable.

"Testamos nosso primeiro lote em um cinema desta rua. Só passava filmes pornô e pensei que poderia convencer o pessoal da bilheteria de que Iris tinha 17 anos. Não foi a melhor ideia que tive. A mulher da bilheteria estava atrás de 5 centímetros de vidro e não conseguiu sentir o cheiro do perfume. Mas as pessoas na fila atrás da gente ficaram tão ultrajadas quando não entramos que exigiram ver o gerente.

- Eles foram tããão legais. - Iris começava a gostar da apresentação de novo.

- Eles foram expulsos do cinema - disse DeeDee. - Iris e eu tivemos de sair dali antes que o efeito do perfume passasse e eles deduzissem que brigavam para deixar uma menina de 11 anos ver um filme obsceno.

Iris se intrometeu:

- Mas depois pensei em outra maneira de testar o perfume. Meu pai uma vez me disse que há centenas de dinossauros no porão do Museu de História Natural que ninguém jamais verá. Então DeeDee e eu convencemos um dos seguranças para nos levar numa excursão.

- É um pouco mais complicado do que isso - explicou DeeDee. - É preciso ter cuidado com a fórmula. Você não pode simplesmente inventar uma coisa que seja totalmente inacreditável. Não podíamos dizer ao segurança que éramos professoras visitantes de paleontologia ou coisa assim, então pensamos em algo mais realista. Dissemos a ele que o pai de Iris estava pesquisando nos arquivos de dinossauros e que precisávamos contar a ele que a mãe de Iris estava prestes a ter um bebê.

- Dissemos que o celular dele estava desligado - acrescentou Iris.

- Funcionou perfeitamente. O segurança nos levou por todo o porão. Iris tinha razão. Eu nem acreditei no que eles tinham guardado lá. Vimos ossos que eu juro que não vieram de nenhuma criatura da Terra sobre a qual eu tenha lido. É claro que tivemos de reaplicar nosso Fille Fiable a cada vez que o segurança dava as costas. Quando estávamos prestes a ir embora, Iris fingiu receber uma mensagem de texto que dizia que o pai já estava a caminho do hospital.

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- Inteligente. - Kiki assentiu com aprovação.

- E o que é o troço no outro vidro? - perguntei.

Iris ergueu o frasco de cristal. Seu conteúdo âmbar brilhava na luz.

- Este é o Eua Irresistible. Nossa segunda obra-prima.

- Percebemos que, com alguns retoques, nossa poção podia ter outras utilidades - disse DeeDee. - Ainda não testamos, mas se nossos cálculos estiverem corretos, deve fazer jus ao nome.

- É uma poção do amor? Anda logo, borrifa um pouco aqui - ofereceu-se Betty, estendendo o braço.

DeeDee sacudiu a cabeça.

- Não acho que seja uma boa ideia. Como eu disse, ainda não testamos.

- Tem que começar por algum lugar - disse Luz. - A Betty me parece uma boa cobaia.

- Tudo bem, Betty, mas não vá reclamar comigo se começar a brotar cabelo nos lugares errados - alertou DeeDee.

- Por que eu reclamaria disso? Sabe quanto custa um bigode falso convincente hoje em dia? Quando quiser, Iris.

Iris tirou o atomizador do vidro e passou em Betty.

- Não acho que deva receber um borrifo completo. DeeDee estava brincando sobre o cabelo, mas pode provocar assaduras.

Betty passou um pouco de Eau Irresistible no pulso e inalou.

- Ai. Tem cheiro de chulé. Vamos ser se funciona. - Ela se virou para Luz e bateu os cílios falsos. - Você me acha irresistível? - perguntou ela numa voz ardente.

Luz inclinou-se para Betty, como que atraída pelo cheiro do perfume.

- Sabe de uma coisa, Betty, nunca conheci alguém completamente... - Luz parou como se procurasse pela palavra certa. - ...resistível.

Todas nós rimos e Betty deu de ombros.

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- Valeu a pena tentar, né? Tudo em nome da ciência.

- Talvez só funcionasse com o sexo oposto - disse DeeDee. - Ou talvez você não tenha passado o bastante. Vamos ter que fazer alguns testes antes de termos certeza.

Iris avançava para pegar o vidro de Eau Irresistible com Betty quando tropeçou na beira do tapete de DeeDee. Vendo Iris se atirar para ela, Betty inclinou-se muito para trás e a cadeira virou. Kiki pegou o vidro de perfume, mas antes disso a maior parte do conteúdo foi derramada. Betty olhou para cima chocada, a peruca vermelha ensopada de perfume, enquanto o cheiro de chulé enchia o quarto. Iris olhou, petrificada, quando DeeDee tirou o cabelo da cabeça de Betty e o jogou num canto. Depois arrastou Betty ao banheiro e lhe deu um banho totalmente vestida.

- Enxágue o máximo que puder enquanto ainda estiver vestida - ouvimos suas instruções. - Depois tome um banho. Tem toalha no armário. Vou trazer alguma coisa para você vestir.

- Mil desculpas! - exclamou Iris enquanto DeeDee fechava a porta do banheiro e voltava ao laboratório.

- Acidentes acontecem - murmurou DeeDee, vasculhando o armário em busca de roupas limpas.

Iris abriu a porta do banheiro.

- Desculpe, Betty! - gritou ela pela fresta.

- E nós? - Luz gemeu. - Pelo cheiro, parece que tem uma meia gigante e suada aqui.

- Vou abrir a janela - eu disse, apertando o nariz.

- Sabe de uma coisa, DeeDee, não acho que aplicar mais dessa coisa vá fazer com que funcione melhor - Kiki informou à nossa anfitriã. - Ninguém neste quarto parece muito atraente agora.

- É - admitiu DeeDee. - Acho que vamos voltar à prancheta com o Eau Irresistible.

* * *

Dez minutos depois, Betty saiu do banheiro e se sentou ao lado de uma Iris infeliz. Usava uma camiseta de clube de química e jeans de DeeDee, que era uns 8 centímetros mais curto e coberto de manchas verdes. Apesar da roupa nada elegante, era um pouco enervante ver

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Betty sem disfarce. Por baixo de toda a maquiagem e narizes de borracha, ela era extraordinariamente bonita.

- Achei sua apresentação fascinante - disse ela, mais preocupada com Iris do que consigo mesma. - Não se preocupe comigo.

- Você ainda está fedendo um pouco - Iris fungou... Pode durar alguns dias.

- Não ligo. Comprei um novo uniforme de lixeiro que estou morrendo de vontade de experimentar - disse Betty. - A gente pode aprender todo tipo de coisa interessante fuçando o lixo dos outros. O cheiro deve tornar o disrface mais convincente.

- É verdade - disse Iris, animando-se um pouco. Ela entregou um saco plástico a Betty. - Luz ia atirar sua peruca pela janela, mas eu sei que é sua preferida, então a salvei. Mas talvez você prefira lavar antes de usar de novo.

- Ou queimar - disse Luz. - Já acabamos aqui? Eu disse a minha mãe que ia chegar em casa à oito.

- Ainda não - disse Kiki. - Sente-se. Há mais algumas coisas na agenda.

- É sobre os ataques de esquilo? - perguntou Betty.

- Você ouviu falar deles? - perguntei.

- Claro. Uma menina na escola teve a carteira roubada. Todo mundo está falando nisso.

- É, ontem um garoto foi assaltado no Morningside Park - acrescentou Luz. - E outra noite um esquilo gigante apareceu na janela da loja de banho e tosa do primo de uma amiga minha. Esses roedores estão virando uma ameaça de verdade.

- Vamos tratar da questão dos esquilos mais tarde - disse Kiki. - Agora temos problemas maiores. Ananka, quer contar a elas?

- Alguém esteve na Cidade das Sombras. Kiki e eu descemos ontem à noite. Primeiro encontramos aberta uma das portas com a cruz vermelha, depois descobrimos isto. - Quando ergui a estatueta chinesa, vi três caretas femininas. Elas sabiam que significava encrenca, e só Iris parecia preparada para o início da aventura seguinte.

- Pode ser a Fu-Tsang? - perguntou Betty. Graça a Sidonia Galatzina, a gangue de contrabandistas chineses já entrara na Cidade das Sombras. - Eles não fazem contrabando de coisas assim?

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- Duvido que seja a Fu-Tsang - disse Kiki. - A maioria deles está na cadeia. O restante provavelmente te medo demais dos ratos para descer os túneis. Três deles foram mesmo devorados da última vez.

- Então, quem acha que pode ser? - perguntou Luz.

- Não sabemos - admiti. - Nem sabemos como entraram lá.

- Mas precisamos descobrir - disse Kiki. - Alguém tem alguma idéia?

- Tenho alguns detectores de movimento que acabei de fazer - disse Luz. - Eu ia usá-los para evitar que minhas irmãs xeretassem minha oficina, mas acho que isso pode esperar. Vou ter que fazer outros, mas não deve demorar muito.

- Quando vão ficar prontos? - perguntou Kiki.

- Se eu ficar acordada até tarde, posso ter tudo preparado amanhã. Mas há uma coisa de que vou precisar.

- O quê?

- Se quisermos colocar os detectores de movimento em todos os lugares certos - disse Luz -, vou precisar do mapa da Cidade das Sombras.

Eu estremeci quando ela disse isso. Ao longo de todo o verão, assumi a responsabilidade, sozinha, pela guarda do mapa. Afinal, só restavam duas cópias dele no mundo. O primeiro mapa inacabado estava em um disco roubado por Sidonia Galatzina. O segundo era uma única folha de papel que em geral eu guardava enfiada entre as páginas de Vislumbres de Gotham. Não havia outras cópias, nem arquivos de computador. Depois de tudo o que aconteceu, as Irregulares não podiam se arriscar a deixar a versão final cair em mãos erradas. Nunca afirmei possuir poderes paranormais, mas no momento em que o mapa não estivesse mais em meu poder, eu sabia que era encrenca na certa.

COISAS QUE VOCÊ PODE APRENDER VASCULHANDO O LIXO

Vários anos atrás, um britânico misterioso começou a fornecer histórias constrangedoras aos jornalistas de Londres sobre a vida particular de gente famosa - e ninguém conseguiu descobrir de onde ele tirava as informações. Muitos sugeriram que ele estava invadindo computadores de celebridades ou vigiando suas casas com câmeras ocultas e dispositivos de escuta. A verdade era muito mais... suja. Todos os furos vinham de uma fonte de baixa tecnologia - o lixo.

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Nos Estados Unidos, o lixo é propriedade pública. Assim que você o coloca no meio-fio, qualquer um pode dar uma olhada. É uma arca do tesouro de informações para detetives, jornalistas, pais e criminosos que não têm escrúpulos em revirar suas cascas de banana e papel higiênico usado para descobrir o que tem depois. Um único saco de lixo pode revelar o seguinte:

Tudo que um vigarista precisa para fazer uma farra de compras

Cuidado quando jogar fora qualquer documento que traga sua conta bancária ou números de cartão de crédito, a não ser que esteja disposta a pagar a conta das férias em Las Vegas de um estranho ou suas ligações para uma hotline de psicóticos.

Seus números de telefone (e de quem liga para você)

Uma conta de celular dará a um enxerido uma lista dos telefonemas que você fez ou recebeu por um mês inteiro. Então, cuidado com quem conversa - ou destrua sua conta antes que ela chegue ao aterro sanitário.

Uma lista de amigos, amados e inimigos mortais

Anda trocando bilhetinhos com a paixão de sua amiga? Sua avó totalmente ignora o conselho do programa de proteção a testemunhas e lhe manda um cartão de aniversário? Você andou babando para fotos nada lisonjeiras de seu abominável professor de matemática? Jogue tudo de forma apropriada no lixo, ou esteja preparada para pagar o preço.

Suas realizações acadêmicas (ou a falta delas)

Se você é uma aluna estelar, esta pode não ser sua maior preocupação. Mas se suas provas escolares revelam que você anda passando muito mais tempo explorando sites nada educativos na internet, você pode querer dispor das evidências de uma maneira discreta.

Um cardápio de suas comidas preferidas

Uma vegetariana declarada que curte um hambúrguer escondido de vez em quando - ou uma maníaca por saúde que cultiva um amor proibido por bolos recheados - deve ter em mente que uma olhada na lada de lixo pode revelar todos os seus pontos fracos.

Seus maus hábitos

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Você sabe quais são. Você se importaria de compartilhá-los com os outros?

Todos os lugares em que você esteve

Itens incontáveis de seu lixo - recibos, sacolas de compras, passagens aéreas, curativos cirúrgicos - podem ajudar alguém a descobrir suas atividades. Só os joque no lixo se você se comportou muito bem.

CAPÍTULO QUATRO

O ataque dos esquilos

Pela primeira vez em semanas, eu estava enfiada na cama num horário razoável, mas por mais que contasse pombos (não estava familiarizada com carneirinhos), não conseguia dormir. Oona estava zangada, Kiki estava preocupada, esquilos atacavam gente inocente no parque e alguém tinha entrado na Cidade das Sombras. Mas, pior de tudo, o mapa estava nas mãos de Luz - e fora de meu controle.

Na manhã seguinte, eu fui praticamente sonâmbula para a escola. No início do primeiro tempo, já havia deixado meu livro de geometria no metrô, machuquei minha virilha esbarrando num parquímetro e esqueci de desligar meu celular. Justo quando eu começava a cochilar no meio da aula do sr. Dedly sobre a construção do muro holandês, começou a tocar o tema de Tubarão. Os celulares eram proibidos na Escola Atalanta e eu preferia ser pega com um cadáver no armário a ter um celular tocando na minha mão. Estremeci enquanto todas as cabeças na sala se viraram para a bolsa que estava pendurada na minha cadeira.

- Fora, Ananka - berrou o sr. Dedly. - Entregue sua bolsa musical à diretora imediatamente.

Uma menina chamada Petra Dubois teve a ousadia de dar uma risadinha enquanto eu me levantava.

- Será que a diretora Wickham vai gostar de saber quem escreveu seu último trabalho? - cochichei enquanto passava pela carteira dela, piscando quando ela arfou. As fofocas podem ser mesquinhas, mas certamente têm suas vantagens.

- FORA! - gritou o sr. Dedly.

Quando estava no corredor, rapidamente enfiei no banheiro e atendi o telefone.

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- É melhor que seja alguém ligando da cadeira - grunhi.

- É pior - disse a voz do outro lado. - Eu criei problemas para você?

- Digamos apenas que posso vislumbrar um futuro sombrio. O que você quer, Betty?

- Acabei de falar com Kiki. Luz foi assaltada a caminho da escola hoje de manhã. - Houve uma breve pausa. - Por esquilos.

A ideia de que Luz Lopez tinha sido vítima de um roubo, particularmente perpetrado por um animal silvestre, era assombrosa. Seu temperamento carrancudo em geral conseguia manter a distância a maioria das pessoas e animais.

- Onde? - perguntei. - Ela está machucada?

- Ela está meio arranhada, mas vai sobreviver. Ela disse que estava atravessando o Morningside Park quando três esquilos imensos pularam nela. Um corredor os afugentou, mas sua bolsa já tinha sumido.

- Os esquilos se mudaram para lá? Quanto dinheiro eles levaram? - perguntei.

- Não tinha dinheiro nenhum, Ananka. - Betty tentava dar a notícia gentilmente.

- Não - gemi.

- É. Eles pegaram os detectores de movimento. E o mapa.

Meus piores temores tornaram-se realidade.

- O que Kiki disse?

- Ela quer uma reunião conosco na casa dela depois da aula. Vamos ao Morningside Park para recuperar o mapa.

- Tá brincando? - perguntei. - De jeito nenhum, os esquilos ainda estão lá.

- Kiki disse que você diria isso. Ela me falou para lhe dar um recado.

- Que recado?

- Ela quer saber se você tem uma ideia melhor.

- Vou pensar em uma no caminho para o reformatório - respondi irritada e desliguei.

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* * *

O caminho para a sala da diretora Wickham era conhecido como a prancha (tipo "Jordan foi obrigada a andar na prancha ontem e nunca mais ninguém a viu"). A porta ficava no final de um corredor escuro em uma parte da escola que a maioria das pessoas evitava. Era um fato notório que, nos tempos em que o prédio era um lar de crianças geniosas, a sala pertencia a um médico que gostava de praticar suas técnicas cirúrgicas em infelizes delinquentes. Embora eu sentisse certa simpatia pela diretora Wickham, havia muitas meninas da Atalanta que juravam que ela podia ser igualmente cruel.

Bati na porta antes de abrir uma fresta. A diretora Wickham folheava uma pilha de pastas e parecia minúscula e velha atrás de sua enorme mesa de carvalho. A julgar pelas histórias que rolavam por aí, podia-se esperar encontrar as cabeças de alunas desobedientes como troféus de caça nas paredes. Em vez disso, dezenas de fotos empoeiradas estavam penduradas no reboco sujo. Em uma delas, uma conhecida pintora posava ao lado de sua obra-prima numa exposição de arte moderna. Outra foto foi tirada na recente posse da primeira senadora mulher de Nova York. O restante das fotos abrangia pelo menos quatro décadas, mas todas tinham duas coisas em comum. Cada uma delas focalizava mulheres famosas - diretoras, escritoras, executivas e cirurgiãs. E em cada uma, escondida em algum lugar ao fundo - a cara borrada ou meio oculta por uma taça de fundo - a cara borrada ou meio oculta por uma taça de champanhe -, estava a diretora Wickham. Mesmo nas fotos em preto e branco tiradas nos tempos em que as mulheres nunca saíam de casa sem seus chapéus, luvas e meias, ela parecia ter 100 anos de idade.

- Tive um pressentimento de que a veria em breve, srta. Fishbein - murmurou a diretora sem levantar a cabeça. - Entre. Fique à vontade.

Eu arriei em uma das cadeiras duras de couro. Enquanto esperava que ela terminasse com a papelada, vi uma bomba de inhaca com defeito em sua mesa. O pavio estava chamuscado, mas não tinha queimado.

- Então - disse a diretora finalmente, baixando a caneta e retirando os bifocais. Quando os olhos dela encontraram os meus, percebi que mesmo sem os óculos grossos ela podia ver coisas que os outros não podiam. - O que você tem a ver com isso?

- O que é isso? - perguntei com minha voz inocente.

- Esse é o motivo da perturbação de ontem. Acredito que você chamaria de bomba de fedor. Uma bomba de fedor particularmente eficaz, devo acrescentar. Quem quer que a tenha feito merece uma suspensão da Atalanta e uma bolsa em Harvard. Perguntei se você sabia alguma

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coisa sobre isso, mas vi suas notas em química, srta. Fishbein, e duvido que esteja apta para a tarefa.

- Tem alguma pista?

- Nenhuma - respondeu a diretora. - Talvez eu deva pedir a sua amiga Kiki Strike para assumir o caso. - Ela deu o golpe com tanta suavidade que mal percebi que tinha apanhado.

- Kiki Strike?

- Não se faça de burra, por favor, Ananka. Suas notas são atrozes, mas eu sei que é inteligente. Kiki Strike foi uma aluna daqui há alguns anos. Eu verifiquei os arquivos depois que sua mãe falou no nome dela. Ela parece pensar que sua amiga é a menina que continua aparecendo nos jornais.

- Isso tudo é uma invenção, diretora Wickham.

- É o que dizem. Mas não acredito em tudo que ouço na televisão. Agora, srta. Fishbein, vamos ser francas. Não é da minha conta o que você faz quando não está na escola. Mas ficar acordada entre as oito da manhã e as quatro da tarde é uma exigência da Atalanta. Se não acha que pode fazer isso, acredito que sua mãe possa ter algumas alternativas para você.

- Sim, diretora Wickham. Mas eu tenho ficado acordada.

- Ah, sim? Então, a que devo a visita?

- Meu celular tocou na aula do sr. Dedly. Era uma emergência.

- Ah, meu Deus - disse a diretora, sacudindo a cabeça, exasperada. - Creio que você está prestes a se tornar inimiga do sr. Dedly, Ananka. Qual era a emergência, se posso saber?

- Uma amiga minha que ia para a escola acaba de ser assaltada. - Eu esperava que ela me ridicularizasse, mas ela assentiu solenemente.

- Sim, uma de nossas alunas recentemente também foi assaltada. Por esquilos, estranhamente. Devo dizer que nunca fui fã de esquilos. Criaturinhas gulosas. Todas pelos e dentes. Mas as pinturas pela cidade são impressionantes. A pessoa por trás delas tem um grande talento, mas isso é outra questão, pois não? Seu celular está desligado agora, ou devo confiscá-lo?

- Não, senhora. Está desligado.

- Então sugiro que não falte a outra das fascinantes aulas do sr. Dedly. Mas Ananka, se eu a vir

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de novo, não serei tão leniente. Entendeu bem?

- Sim, diretora Wickham - falei, perguntando-me como tinha me livrado do castigo com tanta facilidade. Sumi de sua sala antes que ela tivesse a oportunidade de mudar de ideia.

* * *

Meu namoro com os problemas já estava esquecido havia muito tempo quando a última sineta tocou. Deixei todos os livros no meu armário e pulei para um ônibus, indo à casa de Kiki. Quando cheguei, a imensa porta de madeira estava aberta o suficiente para que eu estava aberta o suficiente para que eu escorregasse para dentro. A sala grande e organizada era mobiliada com um sofá, uma mesa de centro com uma pilha alta de livros e um grande alvo de arco e flecha, que ficava no final da sala. As paredes de tijolos aparentes exibiam uma gama impressionante de armas de artes marciais. Espadas ninjas, machados de batalha e chicotes de corrente cintilavam ao sol que entrava pela claraboia do teto. Depois da área de estar ficava uma estufa de vidro que dava para um jardim coberto de plantas. Orquídeas raras com suas flores no formato de lagartas, aranhas e caranguejos brotavam de dezenas de vasos de barro.Uma nuvem deslizou pelo sol e a sala escureceu enquanto uma flecha assoviou no ar e se alojou no meio do alvo vermelho-sangue.

- Luz não foi à escola hoje - explicou Kiki. - Verushka ensinou-a a usar a besta.

- Que bom que Verushka está melhor - observei, vendo Kiki lançar uma segunda flecha para o meio do alvo e me perguntando por que ela estava com luvas azuis dentro de casa.

- Ela se sente melhor do que parece - disse Kiki.

- Como assim?

- Você verá. - Kiki me levou pela sala. - Procure não fazer estardalhaço.

- Oi, Ananka. - Três Band-Aids do Harry Potter cobriam os arranhões de esquilo no nariz e nas bochechas de Luz. Pareciam deslocados com seu traje verde-oliva, inspirado no exército. - Desculpe pelo mapa.

- Vamos pegá-lo de volta - garanti a ela, embora eu tivesse poucas esperanças de voltar a ver meu mapa. - Só estou surpresa que alguém tenha assaltado uma menina vestida de sobrinha do Fidel Castro.

Os olhos de Luz se estreitaram e os Band-Aids enrugaram.

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- Vou lhe fazer um favor e esquecer o que disse. Para sua informação, tirei a ideia dessas roupas de uma foto de Verushka nos velhos tempos.

- E estou lisonjeada com a homenagem. - Verushka apareceu na cadeira de rodas e me ofereceu a besta. - Quer tentar, Ananka? - Kiki olhava com um sorriso duro enquanto eu lutava para não demonstrar meu choque. A mulher baixinha de cabelos grisalhos parecia ter passado uma semana presa num freezer de laticínios. Sua pele era de um azul-claro que escurecia até o marinho nos lábios e na ponta dos dedos. - Não é inteligente encarar uma mulher com uma besta - disse Verushka com uma risada estranhamente juvenil.

- Não entendo - murmurei. - Pensei que o problema fosse a sua perna.

- Sim, mas pode ver que a minha perna ainda está presa ao resto do meu corpo - assinalou Verushka.

- O azul vai sumir? - perguntei, aliviada por não ter insultado Verushka.

- Os médicos dizem que é temporário - disse Verushka. - Mas receio que meus dias de símbolo sexual tenham terminado.

- Talvez, mas você dá um ótimo Smurf. - Luz tinha o hábito de levar as coisas meio longe demais, e decidi mudar de assunto.

- Por que todos esses livros, Verushka? - Peguei alguns livros na mesa de centro. - Conversação em urdu? A arte da guerra? Venenos e antídotos caseiros? Babilônia real? Parece que você tentou ler uma livraria inteira hoje.

- Quando você estiver velha como eu - disse a mulher meio azulada na cadeira de rodas -, não vai querer perder tempo nenhum.

- Verushka está tentando colocar nossas aulas em dia - explicou Kiki com um suspiro. - Não é fácil ter aulas em casa.

- Esse é seu dever de casa? Eu trocaria a Atalanta por isso a qualquer hora. Por que estudar uma coisa inútil como geometria quando eu podia estar aprendendo a falar urdu?

- Sem geometria, não haveria túneis. Sem túneis, nada de Cidade das Sombras. Sem Cidade das Sombras, nada de Irregulares - proclamou Verushka. - Você deve à matemática mais do que pensa.

A campainha tocou e Kiki correu para atender. Parada na porta estava Oona Wong usando um avental de manicure e uma carranca na cara. DeeDee e Betty estava bem atrás dela. Oona marchou para dentro, ignorando as duas.

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- Oona não parece muito emocionada de estar aqui. Alguma ideia de como Kiki a convenceu a vir? - perguntei a Luz.

- Quem sabe? - cochichou Luz enquanto Oona se aproximava. - Talvez tenha prometido a cabeça de Iris numa bandeja.

- Falando de mim? - disse Oona rispidamente.

- Vai cuidar da sua vida - respondeu Luz.

- Só estamos felizes por você ter vindo - eu disse, dando uma cotovelada em Luz.

- Ah, tá, aposto que sim. Quem mais providenciaria a diversão? - Oona se jogou no sofá, cruzou os braços e encarou o vazio. Verushka rodou a cadeira até a menina e cochichou em seu ouvido. Oona assentiu solenemente e a mulher mais velha saiu da sala.

- Vamos ao trabalho - disse Kiki. - Precisamos chegar ao parque antes do pôr-do-sol. Luz, quer contar a todos o que aconteceu esta manhã?

- Claro. - Luz abriu um mapa do parque e o ergueu para que víssemos. - Às sete e meia da manhã, entrei no Morningside Park pelo portão norte. Meu destino era o portão sul, aproximadamente a 13 quadras. Estava quase na fonte quando senti uma coisa caindo na minha cabeça. De início pensei que eu tivesse sido presenteada por um pombo, mas quando vi o rabo da coisa, entendi que era um daqueles esquilos gigantes. Larguei a bolsa que carregava e tentei tirá-lo de meu cabelo. Logo depois disso, outros dois roedores me atacaram. Um corredor parou para me ajudar, mas os esquilos só desapareceram quando ouvi um assovio. Foi quando eu vi que a bolsa tinha sumido.

- Luz Lopez, vítima de esquilo - zombou Oona. - O que vai fazer no bis? Ser assaltada por camundongos?

- Cala a boca, Oona! - Luz se enfureceu.

- Oona, você prometeu - disse Kiki. - Será que podemos nos entender o suficiente para recuperar o mapa? Depois disso você e Luz podem sair no tapa, não me importo.Levantei a mão.

- Sim, Ananka, eu sei que você não acha que os esquilos ainda estarão lá. Mas temos que tentar. Caso contrário, vamos ter que nos aventurar em parques pelos próximos meses. Luz e eu passamos a tarde bolando um plano. Nós seis vamos montar uma emboscada. DeeDee, gostaria de ser a isca?

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* * *

Eu estava parada na beira de um precipício rochoso, sentindo-me perigosamente tonta. A 5 centímetros da ponta dos meus pés, a terra caía 30 metros, até parar no Harlem. Uma trilha estreita descia pela lateral do penhasco para o Morningside Park, onde as árvores balançavam ritmadas como se a terra estivesse se mexendo embaixo delas. Por meu binóculo, eu podia ver dois jovens de moletom de capuz empoleirados e imóveis como Budas malignos no alto de umas pedras que se projetavam na paisagem. Uma mulher com um carrinho de bebê correu para a saída antes que a escuridão caísse. Não havia nenhum esquilo à vista.

- Andando - disse a voz de Kiki nos fones. - Em suas posições.

Desci devagarinho a trilha escarpada, olhando atrás de cada árvore por que passava e procurando ouvir o som de passos atrás de mim. Quando finalmente estava virada para a rota de DeeDee, agachei-me atrás de um trecho de mato alto e ergui o binóculo. Encontrei Kiki ajoelhada na sombra de uma estátua que mostrava um fauno jovem se refugiando de um urso voraz. Luz e Oona estavam perto, escondidas em um arbusto. Betty, vestida de gari, esvaziava latas de lixo. Quando Kiki lhe deu o sinal, Betty pegou em uma lixeira um exemplar do Weekly World News e se sentou num banco do parque.

- É isso. Sua vez, DeeDee - ouvi Kiki dizer.

DeeDee entrou no parque pelo norte. Com a bolsa pendurada no braço e fones de iPod nas orelhas, ela dançava pelo caminho sinuoso, as trancinhas balançando de um lado a ouro. Os dois jovens na pedra a olharam passar, as cabeças seguindo enquanto os corpos ficavam imóveis. Depois de passar por Betty no banco do parque, DeeDee parou para vasculhar a bolsa, pegando um chiclete.

- É isso mesmo, não se apresse - Kiki a estimulou. Olhei os arredores, mas nada vi de interessante. Enquanto o sol sumia e as luzes da rua atrás das árvores começavam a ganhar vida, vi DeeDee alegremente dançando por todo o caminho até o outro lado do parque.

- Bom trabalho, DeeDee - Kiki suspirou nos fones. - Parece que estamos sem sorte.

- Espere. Tem uns homens andando perto de Betty - ouvi Luz sussurrar.

Apontei o binóculo, mas o banco de Betty tinha sido engolfado pelas sombras.

- Não consigo enxergar nada - relatei. - Está escuro demais.

- Seu binóculo tem visão noturna - disse Luz. - Aperte o botão ao lado de seu mindinho direito.

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Assim que apertei o botão, vi as duas figuras que estavam sentadas na pedra andando direto para Betty, sozinha no banco do parque. Suas mãos estavam fundo nos bolsos do moletom, as cabeças baixas e as caras escondidas atrás dos capuzes. Betty olhou em volta freneticamente, mas não havia para onde fugir. Longe demais para correr em seu resgate, olhei impotente de meu poleiro na encosta. Enquanto Kiki disparava de seu esconderijo e Luz e Oona partiam dos arbustos, um grito agudo foi emitido dos penhascos atrás de mim. Eu sabia de pronto que não era Betty. Dois enormes esquilos pretos saltaram dos galhos de uma árvore próxima e caíram nos homens encapuzados.

Enquanto os homens giravam em círculos, tentando tirar de sua pele as garras afiadas dos esquilos, um terceiro esquilo quicou no colo de Betty antes de disparar em auxílio aos colegas. Larguei o binóculo quando ouvi o som de cascalho sendo esmagado perto de mim e olhei a tempo de ver uma figura alta e desajeitada surgir de trás de uma árvore e começar a subir a trilha até o alto do penhasco.

- Tome - disse a figura, parando na minha frente. - Acredito que esteja procurando por isto. - No escuro, eu podia ver que era um rapaz da minha idade, mas seu rosto estava tão sujo que era impossível saber como ele era. Ele me entregou uma bolsa preta. - Diga a suas amigas para saírem do parque.

- O quê? Por quê? - Não gostei de receber ordens de alguém que tinha cheiro de pet shop.

- Aqueles homens ali não estão sozinhos. Diga a suas amigas para irem embora agora. Estou vendo seu fone. Sei que todas estão conectadas.

- Saiam do parque - ordenei às Irregulares. - AGORA - acrescentei com urgência.

- Ótimo - disse o menino. Ele colocou dois dedos entre os lábios e soltou um assovio ensurdecedor. Enquanto voltava pela trilha, três esquilos grandes dispararam penhasco acima e seguiram em fila atrás dele.

* * *

Com um bater de palmas, a oficina de Luz foi inundada de luz.

- Instalou um clapper? - bricou DeeDee. - Como na TV?

- É uma ótima tecnologia - disse Luz. - Uma palma acende as luzes, duas me fazem um cappuccino e se eu bater palmas três vezes, os lasers ligam e transformam vocês em torrada. Sintam-se em casa.

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Era mais fácil falar. Robôs sem membros já reivindicavam a maior parte das cadeiras e cada superfície plana na oficina estava tomada de fios, eletrodos e ferramentas que teriam emocionado um torturador. Nós cinco ficamos sem jeito, de pé no meio da sala, tentando não tocar em nada que pudesse nos queimar ou provocar dano encefálico.

- E então, de que se trata isso? - perguntou-me Kiki. - Eu pretendia deixar uma lembrancinha com aqueles caras no parque.

- Havia mais deles do que você pensava. Não éramos as únicas planejando uma emboscada esta noite.

- E você sabe disso porque... - disse Oona.

- Porque o cara dos esquilos me contou - expliquei. - Ele também me deu isso. - Estendi a bolsa preta. Dentro dela estavam o mapa e os detectores de movimento.

- Como ele sabia que era nosso? - perguntou DeeDee.

- Não sei - admiti.

- Você o viu? Como ele era? - perguntou Betty.

- Foi difícil saber no escuro. Só o que posso dizer é que ele era alto e sujo, e fedia como o Abominável Homem das Neves.

- Viu o tamanho dos esquilos? - perguntou Oona. - Eu pensava que Lopez era uma fracote, até que dei uma olhada naqueles monstros.

- Esquilos gigantes da Malásia - disse Kiki. - São espécies ameaçadas de extinção.

- Você está bem? Eles a feriram? - perguntou DeeDee a Betty.

- Não, só um pulou no meu colo. Deixou cair isso. - Ela colocou a mão no bolso e pegou um medalhão numa corrente de ouro. - Estranho, né? Deve ter sido roubado de alguém.

- Ele abre? - perguntei. - Talvez tenha alguma coisa aí dentro.

- Não tive a chance de olhar - disse Betty, abrindo o fecho do medalhão.

Dentro do medalhão havia um pedaço de papel. Os dois lados estavam cobertos de palavras numa letra minúscula. Betty foi até uma luminária para ler e o restante de nós se espremeu em volta dela.

Kirsten Miller

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- O que diz? - perguntei.

Betty olhou para nós, a cara vermelha de constrangimento.

- É um trecho de uma ópera.

- Anda logo, nos dê uma provinha - disse Kiki com um sorriso malicioso.

Betty pigarreou e começou a ler:

"O soave fanciulla, o dolce viso, di mite circonfuso alba lunar,In te ravviso il sogno ch'io vorrei sempre sognar."

- Você fala italiano? - perguntou DeeDee, pasma.

- Não, mas sei o que significa. É de uma ópera que vi umas mil vezes. La Bohème. Meus pais desenharam o figurino da última produção, no Met.

- E então? - disse Luz.

Betty fez uma careta.

- É uma coisa que um dos personagens principais diz. Não sei traduzir com perfeição, mas quando ele vê a cara de uma mulher chamada Mimi na luz da lua, diz que sabe que ela pode tornar os sonhos dele realidade.

- Caraca - disse Oona. - Esse esquilo sabe bajular.

- Até onde eu sei, os esquilos não são fãs de ópera. Betty tem um admirador - falei.

- Que pena que é criminoso - disse DeeDee.

- Atenção! Alguns de meus amigos mais íntimos são criminosos - observou Luz, gesticulando para Oona.

- Não sou criminosa. Sou uma mulher de negócios - insistiu Oona.

- Ninguém é perfeito - murmurou Betty. Eu podia ver que ela estava lisonjeada.

- Ele parece sofisticado - acrescentei. - Mas La Bohème não termina em tragédia?

- Não se empolgue - alertou Kiki. - Não estou dizendo que você não é naturalmente irresistível,

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Betty, mas nem os criminosos costumam se apaixonar com tanta rapidez. Pode haver mais alguma coisa acontecendo aqui. - Andando na ponta dos pés, ela cheirou Betty e não pôde esconder sua repulsa. - Chulé. Foi o que pensei. Não era essa peruca que você estava usando ontem?

Betty franziu a testa.

- Eu lavei - disse ela. - Pensei que tinha saído toda a Eau Irresistible. Acha que foi só o perfume que o fez escrever isso?

- Ora essa, não fique decepcionada - Kiki a consolou. - São boas novas. Se você está atraindo os caras sem nem mesmo tentar, isso pode significar que a fórmula espacial de Iris realmente funciona.

- Tenho certeza de que você ia receber um monte de cartas de amor se parasse de usar pintas peludas e se vestir como uma aberração - observou Oona.

- Boa, Oona. - A voz de DeeDee gotejava sarcasmo.

- Eu só estava tentando dizer que ela é bonita por baixo de toda essa porcaria.

- Obrigada - disse Betty. - Mas a porcaria é quem eu sou. Por que ia querer que alguém gostasse de mim por outro motivo?

COMO TIRAR PROVEITO DO PODER DO CHEIRO

A maioria de nós passa tempo demais pensando - e se preocupando - em como as pessoas nos veem. Eu recomendaria passar parte desse tempo concentrada em um dos outros cinco sentidos: o olfato. Não pretendo desperdiçar seu tempo alertando-a dos perigos dos odores corporais. (Para esta discussão, veja Seu corpo em transformação, disponível na biblioteca da Escola Atalanta.) Vou oferecer seis dicas úteis para o uso de seu nariz - e dos narizes dos outros - em proveito próprio.

Melhore sua memória

Espremendo os miolos para uma prova? Os cientistas descobriram um truque simples que pode melhorar sua memória em até 13% . (O que pode fazer a diferença entre uma nova C e o verão na escola.) Enquanto estiver estudando, borrife periodicamente o ar com uma fragrância. (Dizem que a de rosas funciona bem.) Depois borrife seu travesseiro com o mesmo

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cheiro antes de ir dormir. O cheiro pode ajudar seu cérebro a reter mais do que você aprendeu.

Seja seu próprio cão farejador

Primeiro treine o reconhecimento de fragrâncias de diferentes sabonetes, detergentes, perfumes e xampus. Depois pratique identificando pessoas por seus cheiros, que podem ser únicos como as digitais. Um dia você será capaz de entrar em uma sala e saber quem esteve ali antes. (Um ótimo truque se você suspeitar de que alguém andou xeretando seu quarto.)

Pareça mais confiável

Se você não é um prodígio da química nem anda com cientistas suíços, pode ser difícil colocar as mãos em algum Fille Fiable. Mas se há alguém cuja confiança você precisa conquistar, faça um pouco de trabalho de detetive. Se conseguir descobrir que perfume a mãe ou a avó da pessoa usa, o cheiro deve diminuir a probabilidade de ela não confiar em você.

Melhore o humor das pessoas

Quem não quis ter o poder de deixar de melhor humor um pai, professor ou oficial de condicional irritado? Você deve consultar um guia de aromaterapia para escolher o aroma ideal para sua situação, mas um dos mais populares é a lavanda, que alivia o estresse e pode baixar a pressão sangüínea. Outras fragrâncias podem alterar o estado de espírito de diferentes maneiras. O cheiro cítrico pode aumentar a produtividade, por exemplo, enquanto baunilha ajuda a criar um clima caloroso e aconchegante.

Vingue-se

Nada diz te peguei como o odor de uma fralda suja, um hamster morto ou uma costeleta de porco estragada, bem escondidos. Ponto final.

Atraia o sexo oposto

Estudos realizados por fontes confiáveis como a revista Cosmopolitan provaram que a fragrância pode fazer quase todo mundo parece mais atraente. Um perfume, loção ou xampu de cheiro agradável seduzirá os outros a continuarem em sua presença por mais tempo dando-lhe tempo para exibir sua personalidade estonteante. Mas cuidado - use demais uma coisa boa e as pessoas poderão ficar enjoadas.

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CAPÍTULO CINCO

O Garoto na Caixa

Um dia depois de recuperarmos o mapa da Cidade das Sombras, Betty Bent saiu pela porta de sua casa e encontrou um esquilo imenso olhando para ela. Pintado em detalhes extraordinários na lateral de um prédio do outro lado da rua, ele usava um medalhão dourado e um sorriso encantador. A placa que segurava dizia ESTIVEMOS PROCURANDO POR VOCÊ.

- Ele sabe onde eu moro - Betty disse ofegante, correndo até o restante de nós enquanto estávamos na avenida do outro lado do Cemitério de Mármore, esperando pelo poente. - Ele deve ter me seguido até em casa ontem à noite.

- Quem seguiu você? - perguntou Luz.

- O garoto do esquilo! - gritou Betty, como se a resposta devesse ser óbvia.

- Você o viu? - perguntou DeeDee.

- Não, eu não o vi!

- Então, como sabe que ele a seguiu? - perguntou Kiki, verificando minha reação pelo canto do olho. Como as outras meninas, eu estava achando toda a cena muito divertida.

- Primeiro, ele pintou um esquilo gigante na frente do meu apartamento. Depois, pouco antes de eu sair para encontrar vocês, um esquilo largou isso na minha janela. - Betty estendeu um pedaço de papel para Kiki.

- "Posso acompanhá-la a sua casa?" - Leu Kiki com um sorriso malicioso.

- Isso é um amor - falei.

- Isso é assédio - anunciou Oona e Luz assentiu, concordando.

- Quem assedia não costuma pedir permissão - observou DeeDee.

- Bom, acho que a questão é a seguinte - disse Kiki Strike. - Você quer que ele a acompanhe a sua casa?

Betty parecia ter sido futucada com uma vareta.

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- Não pensei nisso dessa forma - murmurou ela por fim.

- Não se preocupe - disse Oona. - Ele vai se esquecer de você e voltar a seus pequenos furtos depois que o efeito do perfume passar. - Kiki lançou a Oona um olhar que não foi inteiramente amistoso.- Que foi? - exclamou Oona. - Vocês têm algum problema com a verdade?- Você não tem jeito, Oona - suspirei. - Vamos começar. Agora já deve estar escuro.

* * *

Oona arrombou o cadeado no portão de ferro batido que se espremia entre dois prédios e as Irregulares entraram no Cemitério de Mármore. Além de um velho com um tapa-olho aparava a grama duas vezes por mês no verão, nós éramos os visitantes mais frequentes do cemitério. Poucos em Manhattan sequer sabiam que ele existia e, tirando um buquê de lírios brancos que aparecia infalivelmente em todo Dia dos Namorados, não vimos nenhuma evidência de parentes dos mortos. A um olho destreinado, o cemitério aparentemente não passava de um terreno baldio cercado por um muro de pedra esfarelada. Mas no fundo d gramado havia seis lajes de mármore musguento que cobriam as entradas para dezenas de sepulturas subterrâneas. Os corpos de nova-iorquinos ricos ocupavam todas as sepulturas, menos uma. Dentro dela um sarcófago vazio de pedra com o nome de Augustus Quackenbush era um túnel que levava à Cidade das Sombras.

Um mês tinha se passado desde que as Irregulares estiveram juntas no Cemitério de Mármore, e isto devia parece uma volta aos velhos tempos. Mas quando nós seis deslocamos cuidadosamente da terra uma das lajes de mármore e descemos para as sepulturas, eu já queria que a noite estivesse terminada.

- Este lugar podia ter algum purificador de ar - Oona gemeu enquanto andávamos ao final de um corredor de mármore ladeado de mausoléus.

- Desculpe, princesa, mas o cheiro piora a partir daqui - rebati. - O que me lembra uma coisa... Alguém pegou mais repelente de ratos com a Iris?

- Eu peguei hoje à tarde - disse DeeDee. - Ela estava chateada porque não a convidamos para vir esta noite.

Minha mão direita se fechou num punho quando ouvi Oona bufar atrás de mim.

- Iris sabe que não podemos convidá-la - disse Kiki. - Os pais dela estão ficando desconfiados de todo o tempo que andamos passando no porão da casa deles. Querem que ela encontre amigos da idade dela. - O corredor chegou a um beco sem saída e Kiki parou diante da sepultura de Augustus Quackenbush. Tive um vislumbre do monstro do labirinto entalhado na

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lateral do sarcófago vazio do morto e minha pele ficou arrepiada. - Muito bem. Estão todas prontas? Luz?

Luz pegou os pacotes de detectores de movimento na sacola de compras.

- Vamos ter de nos dividir em duplas se quisermos posicionar todos esta noite - explicou Kiki. - DeeDee, você vai comigo. Luz, você e Betty são uma equipe. Oona, você vai com Ananka.

- Como essas coisas funcionam? - Examinei um dos discos pretos e finos, tentando esconder minha decepção por ficar presa a Oona a noite toda.

- É simples. Cada disco emite um feixe infravermelho invisível - explicou Luz. - Se alguém... ou alguma coisa... passar pelo feixe, um alarme é ativado. Estes são os receptores. - Todas recebemos pequenas engenhocas eletrônicas que cabiam na palma da mão.

- Parece um dispositivo de GPS - disse DeeDee. - Você comprou seis? Deve ter custado uma fortuna.

- Comprei no eBay um tempo atrás. Estavam baratos porque eram modelos antigos, mas são fáceis de customizar. Foram programados para que a localização do feixe pisque na tela se um de nossos alarmes for ativado.

- Onde quer que coloquemos todos os sensores? - perguntou DeeDee.

- Fiz mapas da Cidade das Sombras para cada uma de nós - expliquei. - Coloque um detector de movimento onde tiver um ponto vermelho. E não importa o que aconteça, não se esqueçam de destruir seus mapas antes de a gente ir embora. - Até Oona assentiu, concordando. Numa cidade cheia de princesas homicidas e esquilos cleptomaníacos, era bem complicado manter um mapa em segurança.

Deslizamos de lado a tampa pesada do sarcófago. Com a lanterna presa na cintura, Kiki desceu a escada que levava do caixão a um túnel de terra tosco. Quando eu começava a segui-la, Oona se intrometeu na minha frente.

- Acho que deve me deixar ir primeiro - anunciou ela numa voz superior. - Kiki pode precisar de ajuda para arrombar uma tranca e o restante de vocês é inútil com as mãos.

DeeDee soltou uma risada rápida e aguda.

- Não escorregue - murmurou Luz num tom assassino. Betty me abriu o tipo de sorriso triste que se dá a uma pessoa que está prestes a ter um membro amputado. Parecia até que tinha pena de mim por formar dupla com Oona, que ainda estava zangada com a pegadinha de Iris e castigava as outras por testemunharem isso.

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Uma por uma, as Irregulares desceram às cegas para a escuridão. Uma por uma, nossas botas pisaram na terra e nos atrapalhamos para acender as lanternas. Por fim, havia seis fachos de luz dançando pela passagem apertada que Augustus Quackenbush construíra para contrabandear tecido roubado do cemitério até sua loja próxima. Sem pretender sobreviver até o século XX, a passagem mostrava sua idade. Farelos de terra chuviscavam do teto, raízes de árvores agarravam nosso cabelo e já estávamos sujas quando chegamos à porta para os túneis maiores da Cidade das Sombras. Enquanto Oona parava de se espanar, eu avancei. Deduzi que a única maneira de sobreviver à noite era agir como uma profissional e esperar que Oona entendesse o recado. Correndo pelos túneis, plantei nossos detectores de movimento com a maior rapidez possível. Em vez de ajudar, Oona vadiava e perambulava, vasculhando os engradados e procurando moedas em bolsos de casacos.

- Vamos, Oona. - Eu suspirei quando a peguei examinando as unhas no facho da lanterna. - Sei está chateada, mas temos um trabalho a fazer. Pode me fazer sofrer quando terminarmos.

- Devia ter trazido a Iris - rebateu Oona sem se incomodar em levantar a cabeça. - Ela nunca a decepcionaria.

- Eu lamento que Iris a tenha constrangido. Mas você tem que admitir que mereceu. - Eu podia ouvir a frieza que minha voz adquirira. - Ela está cansada de ser o alvo de suas piadas. Sabe de uma coisa, Oona? O restante de nós também está muito enjoado de você. Que tipo de pessoa implica com uma menina de 11 anos... Ou com Betty, aliás? É como chutar bonecas. E depois você tem a coragem de ficar ofendida quando uma delas revida? Não sei o que há de errado com você ultimamente. Você sempre foi meio grosseira, mas de uns tempos para cá está agindo como se fosse cria de lobos.

- Acha que sou grosseira? - A voz de Oona não transmitia raiva. Ela parecia surpresa, como se a ideia nunca tivesse lhe ocorrido. - Pensei que só estivesse sendo franca.

- Nem sempre as pessoas precisam que você diga a elas a verdade - eu lhe disse, embora já estivesse começando a me arrepender. Queria que minhas palavras soassem como um tapa, mas em vez disso eu dei um murro. - Seja um pouco mais gentil, sim? Nós devíamos ser suas amigas. - Dei as costas para ela e parti para o local seguinte. Foi só quando eu já estava quase fora de vista que Oona começou a me seguir.

Uma hora depois tínhamos colocado nosso último detector de movimento do lado de dentro do túnel que passava abaixo do Lower East Side. Enquanto eu fechava minha mochila vazia, o facho de minha lanterna passou pela cara de Oona e eu vi que seus olhos estavam vermelhos e inchados.

- A sala onde encontramos a estatueta chinesa não fica longe daqui. - Tentei parecer simpática. - Quer dar uma olhada?

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- Claro - disse Oona baixinho.

- Acho que isto era uma estação de Ferrovia Subterrânea - expliquei depois que nós duas entramos na sala das dez caminhas. - Há uma saída que leva a uma sinagoga em Bialystoker Place e um túnel que se estende até a margem do rio. Alguém escondia escravos na Cidade das Sombras e os ajudava a fugir para a liberdade. - Apontei a cama amarfanhada. - Encontramos a estatueta chinesa embrulhada nesse lençol. Kiki se sentou nela.

Os olhos de Oona percorreram a cama, depois pararam nos meus.

- Desculpe por agir de forma tão pavorosa. Sei que isso não é desculpa, mas eu ando sob muita pressão.

- O que a está perturbando?

- Preciso contar uma coisa a vocês - confidenciou ela. - Mas não tive chance. Primeiro Kiki desapareceu, depois Luz foi assaltada e depois descobrimos que alguém esteve na Cidade das Sombras. Ninguém teve tempo para me ouvir. Isso está me deixando louca.

- Estou ouvindo agora - falei.

- Acho que vou precisar de sua ajuda. - Ela parou. Era como se admitisse uma coisa vergonhosa e precisasse criar coragem para continuar. Eu vi sua boca se abrir uma vez mais, mas a voz foi tragada por um bipe alto e insistente. Um ponto de luz vermelha piscou em nossos receptores.

- Não vamos nos preocupar com isso - pediu Oona depois que desligamos nossos alarmes. - Uma das outras meninas deve ter ativado o sensor por acidente.

- Desculpe, Oona. Sei que a hora é péssima, mas vamos ter que verificar.

Nunca vi Oona parecer tão completamente derrotada.

- Entendeu o que eu quis dizer? - perguntou ela.

* * *

Enquanto corríamos pelos túneis, todos os pensamentos sobre a confissão de Oona ficaram para trás. Segundo nossos receptores, o detector de movimento estava debaixo de Chinatown, não muito longe de um depósito conhecido. Antigamente tinha sido uma passagem que ligava a câmara a um covil de ópio, mas as Irregulares tinham destruído a ligação em junho, depois

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que a gangue Fu-Tsang a usou para ter acesso à Cidade das Sombras. À medida que nos aproximávamos do depósito, Kiki e DeeDee se juntaram a nós, e disparamos juntas até pararmos subitamente a poucos metros de nosso destino. Luz e Betty já esperavam por nós na cena.

- Meu Deus do céu! - sussurrou DeeDee. O depósito estava abarrotado de ratos. Milhares de criaturas sarnentas que não conseguiram entrar na câmara se espremiam do lado de fora da porta, esticando o pescoço para olhar o que estava lá dentro.

- Eu ativei o alarme quando vi os ratos - explicou Luz. - Tem alguma coisa acontecendo aí. Achei que devíamos verificar.

- Boa ideia. Senhoras, é hora de nos refrescarmos. - Kiki passou a todas um vidro do perfume repelente de ratos de Iris, e o fedor ficou mais forte do que um campo recém-fertilizado em um dia quente de verão. - Muito bem, sigam-me. - Kiki andou pelos roedores, que guincharam e se dispersaram com o cheiro de seu perfume. Mas embora mantivessem uma distância segura, desta vez se recusaram a ir embora.

Dentro do depósito, os animais maiores e mais poderosos cercavam uma caixa de carga, roendo os sarrafos de madeira com uma concentração sobre-humana. Um buraco mínimo parecia num canto da caixa e um dos ratos estava prestes a passar por ele. Ele e os amigos não ficaram satisfeitos ao ver seis humanas fedorentas invadindo sua festa. Recuaram da caixa e foram para o canto da sala, onde guincharam alto e rangeram os dentes afiados como navalhas.

- A coisa aí dentro deve ser muito saborosa - disse Luz. - Eles estavam dispostos a comer a caixa para chegar a ela.

- Vamos ver o que temos. - Kiki puxou a tampa da caixa.

Enroscado ali dentro havia um menino, as penas finas enfiadas no peito. Suas roupas estavam sujas e esfarrapadas e ele murmurou, delirante, quando o facho de uma lanterna passou por seu rosto.

- Ele não está falando inglês, está? - perguntou Betty.

- Parece chinês. - Luz olhou para Kiki e Oona. - O que ele está dizendo?

- Falam mais de uma língua na China - disse Kiki. - Eu só entendo cantonês e um pouco de mandarim. Ele não está falando nenhuma das duas.

- Está falando hakka. - O rosto de Oona estava cinza como porcelana barata. - Disse que quer ir para casa.

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- Mas é claro que ele quer - falei. - Mas como chegou aqui embaixo, antes de tudo?

- Se não o tirarmos daqui, nunca vamos descobrir - disse Kiki. - Está vendo a espuma em volta da boca? Ele está desidratado. Pode estar aqui embaixo há dias. Precisamos levá-lo a um hospital.

- Não! - gritou Oona, assustando a todas nós.

- Como assim, não? - rebateu Kiki. - Quer que ele morra?

- Não podemos levá-lo ao hospital - insistiu Oona. - Ele é imigrante ilegal. Tenho certeza disso. Se vocês o levarem ao hospital, vão mandá-lo de volta à China.

- Talvez seja isso que ele quer - sugeriu Betty. - Ele disse que quer ir para casa.

- Se não podemos levá-lo para o hospital, o que vamos fazer com ele? - perguntei a Oona.

- Vamos ter que levá-lo para minha casa.

- Sua casa? - Os olhos de DeeDee estavam arregalados, mas Kiki parecia impertubável. Ela empurrou Oona de lado.

- Tem certeza? - perguntou Kiki em voz baixa.

- Tenho - insistiu Oona. - A sra. Fei e as mulheres saberão o que fazer.

- Que mulheres? - perguntei, mas elas me ignoraram.

- Todas vocês, entreguem os mapas a Ananka e me ajudem a tirar o garoto da caixa - ordenou Kiki. - Ananka, encontre uma saída para a gente perto da Catherine Street.

Enquanto eu examinava o mapa, minha mente estava presa em um único pensamento chocante. Kiki sabia onde Oona morava.

* * *

Saímos da Cidade das Sombras em uma das cozinhas infernalmente quentes de um restaurante enfiado abaixo das calçadas de Nova York. Canos gorgolejavam de esgoto e o vapor pendia tão baixo que até Kiki foi obrigada a se abaixar. Em um canto, dois gatos anormalmente gordos dividiam uma entrada de camundongo enquanto baratas do tamanho de periquitos dançavam nas bancadas. Esprememos nossos setes corpos em uma plataforma

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enferrujada de metal e DeeDee socou um botão vermelho na parede. Lentamente, o elevador de carga subiu do porão, passando por uma grade de metal, deixando-nos na calçada acima. O logo das Irregulares cintilava embaixo do poste. Era uma hora da madrugada e Chinatown dormia. Uma fita amarela impressa com a palavra cuidado batia nas janelas sem vidro de um prédio abandonado do outro lado da rua. Um aviso de demolição estava colado na porta e uma caçamba de lixo cheia de entulho escondia tudo, menos a ponta de um i dourado. Tristemente, fiz uma anotação mental para revisar o mapa. Outra entrada para a Cidade das Sombras logo desapareceria para sempre.

Com Oona na frente, carregamos o menino para a escada de um prédio decrépito coberto de pichações. Oona tocou uma das campainhas.

- É tarde pra caramba - cochichei. - Você não tem sua própria chave?

- Não preciso de chave - disse Oona. - Sempre tem alguém acordado. - Alguns segundos depois, uma mulher deslumbrante com um terninho vermelho bem cortado e batom escarlate abriu a porta da frente. Pensei ter detectado o contorno de uma pistola sob o paletó. Ela recebeu Oona com um sorriso que estremeceu quando viu o menino. Ela não se deu ao trabalho de pedir explicações. Em vez disso, olhou ansiosa para os dois lados antes de nos conduzir para dentro de um corredor despojado. Ali, ela e Oona trocaram algumas palavras nervosas.

- Precisamos levá-lo lá para cima - anunciou Oona ao restante de nós.

- Pensei que Oona fosse órfã - cochichou Betty enquanto Kiki e OOna carregavam o menino para o segundo andar.

- Eu não sou órfã. - De algum modo, Oona tinha ouvido. - Mas essa mulher não é minha mãe. Ela é uma segurança.

- Segurança?

No alto da escada havia uma única porta. A segurança de Oona a abriu e saímos do corredor sujo, entrando num palácio. Tapetes preciosos cobriam o piso e móveis de mogno estofados de sede ficavam solidamente junto às paredes, pintadas da cor do céu e decoradas com imagens de salgueiros delicados e pavões se exibindo. No meio da sala havia quatro mulheres chinesas. A mais velha se vestia com um simples pijama preto, enquanto o restante usava roupões longos e de cores vivas e chinelos bordados. As três mais novas entraram em ação no momento em que aparecemos, como passarinhos flutuando por uma linda gaiola.

- Essas são minhas avós - disse Oona. - Não se incomodem em dizer amenidades. Elas não falam inglês.

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- Ela é sua avó? - gesticulei para uma mulher que não parecia ter mais de 30 anos.

- É só uma expressão. - Oona suspirou. - Elas não são parentes de sangue.

Pelo canto do olho, vi a mais velha das avós de Oona respirar asperamente como se tivesse recebido um golpe inesperado. Recuperando-se de imediato, ela se ajoelhou ao lado do sofá onde tínhamos colocado o menino. A mulher tinha pelo menos 80 anos, com cabelos prateados presos num coque e a pele coberta de rios de rugas. Enquanto ela sentia a pulsação do garoto, percebi que suas mãos eram incomumente musculosas e a ponta dos dedos, ásperas e calosas. Ela puxou as pálpebras do menino para trás antes de abrir sua boca e examinar a língua. Depois se virou e deu ordens a uma das mulheres mais novas, que desapareceu na cozinha.

- A sra. Fei diz que o ki dele está alto demais - explicou Oona. - Ele precisa de tônicos refrescantes.

DeeDee e eu trocamos um olhar confuso. Um minuto depois, a mulher mais nova correu de volta à sala com uma panela de água e uma terrina cheia de ervas medicinais. A sra. Fei pediu para ficar a sós com o paciente e Oona guiou as Irregulares para uma sala de jantar ao lado.

- A sra. Fei parece saber o que está fazendo - disse Kiki pensativamente, sentando-se à mesa redonda de madeira.

- Se não soubesse, todas estaríamos motes a essa altura - disse Oona. - Nunca fui a um médico americano.

- O que acha que devemos dizer a ela? - perguntou Luz. - Ela vai querer saber onde encontramos o menino.

- Esta não é a sua casa, Lopez - disse Oona. - A sra. Fei não faz perguntas. Nenhuma de minhas avós fará.

- Quem são essas mulheres? - perguntou Betty. - Por que você mora com elas?

- Elas me criaram - disse Oona. - Agora é minha vez de cuidar delas.

- Mas pensei que você tivesse nos dito que não era órfã - disse DeeDee. - Onde estão os seus pais?

- Meu pai é dono de fábricas em Chinatown. Ele trouxe essas mulheres ilegalmente para o país para trabalhar em suas fábricas exploradoras. Elas eram escravas deles. Usei o dinheiro do salão de manicure para pagar pela liberdade delas - disse Oona. - Acho que o menino pode pertencer a ele também.

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- Seu pai se parece muito com... - comecei a dizer.

- É isso mesmo - disse Oona. - Meu pai é Lester Liu.

* * *

Os segredos são como xarope para tosse: ficam mais potentes com o passar do tempo. Guarde um por um tempo suficiente e o que antigamente podia ter sido inofensivo pode provocar uma explosão letal. Dois anos antes, o segredo de Oona teria inspirado algumas horas de fofoca - mas nenhuma de nós o teria usado contra ela. Mas o fato de ela ter escondido a verdade por tanto tempo me fez desconfiar de que tinha mais a esconder. E aquela revelação que ela fez já era suficientemente chocante. O pai de Oona era um homem perigoso. Líder da gangue Fu-Tsang, Lester Liu enriquecera contrabandeando falsificações de sapatos e bolsas de grife para Chinatown. As Irregulares destruíram suas operações em junho e mandaram a maior parte da gangue para a cadeia. Mas Lester Liu nunca foi acusado de crime algum. Ele ainda estava livre e Kiki Strike estava no topo de sua lista negra.

- Por que não nos contou? - perguntei.

Oona fez uma careta.

- Não é o tipo de coisa que eu queira me gabar.

As outras meninas estavam pasmas. Luz parecia não respirar. Betty estava prestes a arrancar o lábio inferior a dentadas. Só Kiki continuava inabalável. Num instante percebi que ela sabia daquilo o tempo todo.

- Não sou uma traidora - murmurou Oona.

- É claro que não é - Kiki a tranquilizou. - Ninguém acha isso.

DeeDee pegou meu olhar antes de se voltar para Oona.

- Devia ter nos contado antes - disse ela cientificamente. - Há mais alguma coisa que precisemos saber?

- Não - disse Oona.

- Eu acho que foi muita coragem sua revelar tudo. - Betty pôs a mão no braço de Oona.

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- Isso explica muita coisa - acrescentou Luz com um suspiro cansado.

- Preciso pensar por um minuto. - Pousei a cabeça na mesa de jantar. Um milhão de lembranças voltou a tomar forma em minha mente. A sala ficou em silêncio enquanto uma das avós de Oona apareceu com um bule de chá e seis pequenas xícaras. Quando as Irregulares ficaram sozinhas de novo, Kiki tomou um gole e suspirou.

- Agora que todas tiveram tempo para absorver a novidade, vamos tratar de negócios.

- Por que acha que o menino que encontramos pertence a seu pai? - perguntou DeeDee.

Percebi Kiki comunicando seu estímulo a Oona.

- Meu pai não é só contrabandista. Também é um cabeça de serpente.

- O que é um cabeça de serpente? - perguntou Luz.

- Eles contrabandeiam pessoas para os Estados Unidos - explicou Oona. - Gente pobre que precisa de emprego. Prometem aos cabeças de serpente mil dólares para trazê-los para cá e, quando eles chegam, têm que pagar a dívida. Até que paguem, eles praticamente são escravos. Meu pai os faz trabalhar dia e noite em suas fábricas.

- E se eles se recusarem? - perguntou DeeDee.

- Às vezes são espancados - disse Oona. - Às vezes são mortos.

- Sua mãe também está envolvida? - perguntei.

- Não sei muito de minha mãe, a não ser que ela era uma das clientes de Lester Liu. Morreu no dia em que nasci. Quando meu pai descobriu que eu era menina, não quis nada comigo. Ele me deu à sra. Fei e as amigas da fábrica cuidaram de mim.Luz estava ultrajada.

- Qual é o problema com as meninas?

- Na China, os meninos levam o nome da família. É dever deles cuidar dos pais quando eles envelhecem. Quando as meninas crescem, elas se unem à família do marido, então muito gente as considera sem valor. Meu pai é muito antiquado. Para ele, eu era só desperdício de dinheiro.

- Tá brincando! - exclamou Betty. - Ele conhece você?

- Um criminoso profissional não podia esperar ter um filho melhor - acrescentou DeeDee.

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- Eu o vi uma vez - disse Oona. - Quando eu tinha 10 anos, a sra. Fei me falou de meu pai. Disse que ele era muito rico, e eu sabia que minhas avós mal conseguiam me alimentar. Então todo dia eu colocava o único vestido que tinha e saía para procurá-lo. Pensei que, se ele me visse, podia me querer de volta. E então, um dia, eu o encontrei do lado de fora de uma de suas fábricas. Conversava com dois homens sobre uma encomenda secreta que esperavam para aquela noite. Eles sabiam que eu estava ouvindo, mas não se importaram. Pensaram que eu era idiota demais para entender. Depois que foram embora, fui a Lester e me apresentei como filha dele. De início ele riu. Depois me disse que eu não era nada até que ele dissesse o contrário.

- Que coisa horrível! - Uma lágrima pendia dos cílios postiços de Betty.

- Que babaca - concordou Luz, embora não costumasse usar a palavra babaca.Oona continuou:

- Tudo bem. Nós ficamos quites. Fui direto à polícia e contei a eles sobre a encomenda. Eles deram uma batida no barco assim que ele entrou no porto. Estava cheio de estatuetas que tinham sido roubadas de um templo no Camboja. Os homens dele foram presos, mas Lester Liu se safou. Estava num avião para Xangai antes que a polícia pudesse interrogá-lo. No dia em que ele partiu, me mando um bilhete. Só dizia isso: "Quando eu voltar, vou encontrar você."

- Eu não queria insistir nisso, mas você devia ter nos contado - disse DeeDee.

- Eu tinha esperança de não precisar contar - admitiu Oona. - Pensei que ele podia ter se esquecido de mim. Eu não consegui estragar seus negócios mesmo. Ele se deu melhor ainda depois que foi para Xangai. Metade de Chinatown está aqui por causa dele.

- Talvez ele tenha mesmo se esquecido de você - propôs Luz, com otimismo.Oona franziu a testa.

- Esperem aqui. Há uma coisa que devem ver. - Quando ela voltou, colocou uma caixa de papelão retangular na frente de Luz. - Lester Liu me mandou isso. Anda, dá uma olhada. - Luz espiou dentro da caixa como se esperasse encontrar um escorpião ou uma orelha decepada. Em vez disso, pegou um dragão. Era uma escultura de bronze de Fu-Tsang, o dragão chinês que protege esconderijos e o símbolo da gangue violenta que leva seu nome. Alguém ofegou. Pode bem ter sido eu. - Reconhece isso? - perguntou Oona.

Todas já havíamos visto o dragão. Vários meses antes, eu o encontraram numa bolsa que pertencia a uma vítima de sequestro chamada Mitzi Mulligan. A estatueta antiga dera a pista crucial que nos levou ao covil dos Fu-Tsang, onde Sidonia Galatzina escondera as meninas que sequestrara, na esperança de atrair Kiki para a morte. Na noite em que a polícia estourou o cativeiro, o dragão desaparecera misteriosamente.

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- Sabe o que isso significa? - Oona tremia.

- Significa que ele sabe que você fez parte do grupo que frustrou as operações de contrabando - expliquei. - Você está com um problemão, Oona.

- É - ela concordou. - Do tipo que me faz indagar por que ele me convidou para jantar.

- Como é? - exclamou Luz.

- Ele convidou vocês também.

- O quê? - Foi a vez de Kiki ficar surpresa.

- Você estava desaparecida quando o dragão chegou pelo correio - Oona tentou explicar. - Eu queria contar a você primeiro, mas quando você voltou, ficamos ocupadas demais caçando esquilos e procurando invasores.

- Está dizendo que Lester Liu sabe quem eu sou? - Betty estava quase desmaiando de choque.

- Não acho que ele saiba seu nome - disse Oona. - O bilhete só dizia Kiki Strike e suas amigas talentosas são bem-vindas.

- Quando será o jantar? - perguntou Kiki.

- Na sexta-feira - respondeu Oona.

- Daqui a um dia e meio. - Eu quase podia ouvir a mente de Kiki zumbindo. - Queria ter mais tempo para me preparar. De qualquer forma, não acho que as seis devam ir. Se for uma armadilha, não vamos querer estar no mesmo lugar ao mesmo tempo. Ananka e eu ficaremos feliz em acompanhá-la, Oona.

- Obrigada por me apresentar como voluntária - eu disse, perguntando-me por que eu sempre tinha as tarefas desagradáveis.

- Não há de quê - Kiki piscou.

- A propósito - acrescentou Oona com um sorriso nervoso. - O jantar é formal. As duas precisam ir de vestido de noite.

A sra. Fei colocou a cabeça pela sala de jantar assim que soltei um gemido. O timing foi tão perfeito que por um momento desconfiei de que ela estivera ouvindo. Ela falou brevemente com Oona.

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- O menino acordou - anuncio Oona.

- Enquanto as outras garotas rapidamente saíam da sala, puxei Kiki de volta. Sacudi seu braço com um pouco de força e ela se virou para mim com um sorriso duro que deixou claro que eu estava a ponto de tomar um soco.

- Você sabia de Lester Liu, não é? - cochichei.

Os olhos azul-claros de Kiki me examinaram.

- Sim - disse ela.

- Há quanto tempo você sabe?

- Desde o início.

- Não acha que devia ter partilhado essa informação com o restante de nós? - eu a pressionei. - Devíamos formar uma equipe. Não podemos ter segredos desse tipo.

- Quer dizer que eu devia ter contado a você, não é? Não leve isso para o lado pessoal, Ananka. Não cabia a mim, não era um segredo meu.

Embora Kiki tivesse razão, eu odiava pensar que ela e Oona esconderam a verdade de nós - como se fôssemos idiotas ou infantis demais para lidar com ela. Lembrei-me de mil pequenos olhares que foram trocados entre elas ao longo dos anos e de repente me senti uma idiota.

- Quanta honestidade de sua parte - zombei. - Mas este não é um segredinho inofensivo. Caso tenha se esquecido, a Fu-Tsang ajudou a sua tia a tentar nos matar. Se afilha de Lester Liu decidisse passar para o lado do mal, você agora estaria morta.Kiki se recusou a morder a isca.

- A primeira regra de uma equipe é confiar um no outro. E se você confia em alguém, deixa que guarde segredos. Quando estivesse pronta para contar a você, ela contaria. Você não precisa saber de tudo, Ananka.

- E por que não? Por que eu devo confiar em Oona se ela não confia em mim? Como vou saber que ela não está escondendo mais nada de perigoso?

- Oona ficou preocupada que o restante de vocês olhasse para ela se um jeito diferente - Kiki se eriçou. - Não prova que ela estava com a razão.

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* * *

Na sala de estar, encontramos o menino sentado com as costas num braço do sofá, as pernas esticadas diante dele. A sra. Fei tinha enfiado um cobertor em volta dele e alguém lavara seu rosto e penteara seu cabelo preto na altura do queixo. A cabeça fina tombou quando ele viu as seis Irregulares entrarem na sala e os dedos longos e finos agarraram o cobertor. Oona puxou uma cadeira para o lado do sofá e falou com ele em hakka. De início o menino só ficou boquiaberto para ela. Não era o primeiro a ficar pasmo com a beleza de Oona. Por fim ele criou coragem para responder numa voz rouca.

- O nome dele é Yu - traduziu Oona. - Ele tem 16 anos e é de Taipei. Quer saber onde está e quem somos nós.

- Diga a ele que está em Nova York. Diga a ele que o resgatamos dos ratos - disse Kiki.

- E depois pergunte como ele chegou aos túneis - acrescentei.

Os olhos de Yu passaram por cada uma de nós antes de ele falar novamente.

- Ele disse que há cerca de um mês foi raptado quando ia para a escola. Depois uns homens o agarraram e o enfiaram num barco. Havia muitas crianças ali dentro... Pelo menos 12, talvez mais. Ele reconheceu uma das meninas. Era aluna da mesma escola. Ele queria falar com ela, mas os guardas os vigiavam dia e noite. A viagem foi muito longa e muitos passageiros adoeceram. Quando o barco parou, eles foram amarrados, colocados em grandes caixas de madeira e levados a um prédio. Ele tentou fugir, mas foi pego e atirado numa sala longe dos outros. Foi onde ele descobriu a porta no chão.

"Ele disse que ficou perdido nos túneis por vários dias. Não sabe quanto tempo. Ele não conseguia encontrar uma saída. Ninguém descia lá. Só tinha ratazanas e esqueletos. Ele pensou que tinha entrado no inferno. Quando estava cansado demais para continuar fugindo dos ratos, ele se enroscou numa caixa e esperou pela morte."

- E a estatueta chinesa que encontramos? - perguntou Kiki. - Onde ele conseguiu?

- Ele disse que havia muitas caixas de madeira no barco. Uma tábua em uma delas estava solta. Quando ele enfiou os dedos dentro da caixa, foi isso que encontrou. Ele a escondeu em sua mochila. Se escapasse, achava que podia ajudar a polícia a identificar os sequestradores.

- Depois que o barco chegou a Nova York, para onde os homens o levaram? Ele pode descrever o prédio? - Se o prédio tivesse uma entrada para a Cidade das Sombras, eu podia reconhecê-lo.

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- Ele disse que nunca viu o lado de fora do prédio. Estava escuro demais quando eles chegaram. Foram levados a um porão, e cada um foi colocado numa baia pequena de madeira.

- E as pessoas que o sequestraram? Ele pode nos dizer como eram? - perguntou Kiki.Oona ouviu e depois se voltou para nós.

- Ele disse que os guardas tinham tatuagens. Tatuagens de dragões. Está vendo, eu tinha razão. Meu pai e os Fu-Tsang estão por trás disso. - Sem esperar que comentássemos, ela falou delicadamente com Yu. Ele sacudiu a cabeça furiosamente.

- O que você disse agora? - perguntei a Oona.

- Eu disse a ele que ia pegar para mandá-lo de volta a sua família em Taiwan - respondeu ela. - Mas ele se recusa a ir. Diz que tem que ficar aqui para salvar os outros.

- Diga a ele que pretendemos ajudar - disse Kiki. Oona transmitiu o recado e Yu sorriu, fechou os olhos e sucumbiu à exaustão.

- Bom, uma coisa é certa - falei, enquanto Oona se levantava. - Temos muito que conversar no jantar com o seu pai.

O QUE FAZER QUANDO SEUS SEGREDOS SÃO REVELADOS

A certa altura, vai acontecer com qualquer um. Um segredo que você escondia cuidadosamente será revelado no pior momento possível. Seus colegas de turma podem descobrir que você nasceu com rabo. Sua mãe pode descobrir o que você realmente estava fazendo em todas aquelas vezes que afirmou trabalhar de baby-sitter. Seu vizinho pode saber que você gosta e receber grandes grupos de pessoas quando seus pais não estão em casa. Qualquer que seja o segredo, você vai precisar agir rapidamente para consertar os danos.

Recentemente procurei um dos melhores profissionais de relações públicas de Nova York para ouvir seus conselhos sobre uma questão pessoal delicada. Um conselheiro de celebridades e políticos com alguns segredos muito picantes, ele é um mestre na restauração de reputações. Aqui está o que ele me disse:

Não tenha medo de pedir desculpas

Se você fez alguma coisa errada, assuma a responsabilidade e peça desculpas. Nada vai acalmar a situação mais rapidamente do que demonstrar algum remorso. Porém, as leitoras menos sinceras podem pegar uma dica do mundo das celebridades e dar uma não desculpa. Em vez de aceitar a culpa por uma ofensa terrível, desculpe-se por uma menor. (Por exemplo,

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em vez de dizer "Desculpe se chamei esse promotor de [preencha o espaço]", experimente "Desculpe por ter faltado ao almoço e ficado tão azeda". Entendeu a diferença?)

Cuidado com o que diz e faz

Hoje em dia, câmeras celulares e a internet podem levar a humilhação a um nível inteiramente novo. Assim, no momento em que seu segredo for revelado, imagine que você está vivendo sua vida na câmera - e aja de acordo com isso. Isto significa não dar ataques, não aprontar em público e não fazer confissões espontâneas.

Jamais deixa que a vejam suar

Relaxe. Se as pessoas acham que têm o poder de perturbar ou constranger você, elas nunca a deixarão em paz. Receba seus insultos com um sorriso agradável ou um olhar vago.

Transfira a atenção para alguém pior do que você

Foi para isso que nascem os irmãos e irmãs. Não é muito gentil observar que os crimes passados de seus irmãos foram muito mais horrendos, mas isso pode fazer você parecer uma santa em comparação com eles. Não use esta tática se seus irmãos estiverem ouvindo.

Torne-se uma defensora da caridade

Banque a Madre Teresa para mostrar que você foi incompreendida de difamada. Se você estiver de castigo, use o tempo livre para fazer uma faxina na casa. Se foi rotulada de má, ofereça-se para trabalhar voluntariamente num abrigo de animais. Todos parecem inocentes quando cercados de filhotinhos de cachorro.

Resista ao escândalo

A maioria das pessoas tem a capacidade de atenção de um simples mosquito. Se você se recusar a fazer de seu segredo uma novela, provavelmente ele será esquecido mais rapidamente do que você pensa.

CAPÍTULO SEIS

A criança selvagem

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Alguém batia na porta do meu quarto. Rolei na cama e apertei o travesseiro na orelha, na esperança de que o barulho sumisse.

- Ananka, está atrasada para a escola! - gritou meu pai. - Saia da cama e destranque essa porta!

Num instante, meus olhos estavam abertos e eu tateava o despertador. Eram 9h16. Saltei da cama e corri para a porta.

- Ananka! - meu pai berrou de novo enquanto a porta se abria e peguei toda a força de seu grito no ouvido direito. Ele pigarreou e sua voz assumiu um volume normal - Que bom. Está vestida. - Olhei para baixo e percebi que eu ainda estava com as roupas que tinha usado na noite anterior. Quando subi pela janela de meu quarto às quatro da madrugada não tive energia para vestir o pijama.

- Tenho que me trocar - murmurei, andado trôpega pelo corredor a caminho do banheiro.

- Você não tem tempo para isso. Ande. Vamos andando - rebateu meu pai, sem perceber que eu estava amarfanhada e suja. - Se for bem rápida, poderá pegar o segundo tempo.

Minha mãe, ainda de roupão, bloqueou minha saída. Seus olhos foram da lama do Cemitério de Mármore em minhas botas à poeira que cobria minha camiseta preta. Ela pegou a bolsa na mesa perto da perto da frente e a vasculhou.

- Leve isso - disse ela, batendo uma escova de cabelos na minha mão. - E aqui está algum material de leitura para o caminho até a escola. - Ela estendeu um folheto acetinado. Na capa havia a foto de uma adolescente ordenhando uma vaca com umas das mãos e segurando um livro didático na outra. - Vou telefonar hoje - anunciou minha mãe enquanto me empurrava pela porta.

A caminho da escola no banco de trás de um táxi, tentei me acalmar. Mas uma olhada no folheto deixou perfeitamente claro que a vida que eu conhecia estava prestes a acabar.

-------------- ACADEMIA BORLAND --------------

Televisão. Videogames. Drogas. Com tanta coisa competindo pela atenção de nossos filos, não admira que muitos jovens de hoje não consigam desenvolver seu potencial acadêmico. Na Academia Borland criamos um ambiente único sem as distrações do mundo moderno. Localizada a 200 quilômetros, nos arredores de Burp, na Virgínia Ocidental, e encravada nas montanhas Apalaches, a Academia Borland é ao mesmo tempo uma fazenda-modelo e uma instituição acadêmica respeitada. Os alunos dividem seu tempo entre aulas planejadas para desenvolver o raciocínio e tarefas agrícolas que pretendem aprimorar a disciplina pessoal.

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Livres da influência negativa da cultura popular, os alunos podem passar o fim de semana adquirindo uma nova apreciação pelo trabalho árduo e os prazeres simples da natureza. Os resultados de nossa abordagem falam por si. No ano passado, três alunos da Academia Borland foram admitidos em Yale e dois de nossos queijos artesanais foram premiados com a faixa azul da Feira Estadual da Virgínia Ocidental.

Ideal para crianças com baixo rendimento escolar ou com histórico de violência, a Academia Borland é projetada para dar a cada aluno a atenção personalizada de que ele precisa. As crianças são supervisionadas 24 horas por dia e nossa equipe de enfermeiros profissionais está autorizada a administrar medicamentos, se necessário.

Morei em Nova York a minha vida toda. Nunca vi uma vaca de perto e não pretendia aprender a fazer queijos premiados. Minha mente se encheu com mil planos de uma só vez. Se eu esvaziasse minha conta no banco, podia procurar um esconderijo. Ter meu próprio apartamento. Ir para uma escola pública. Combater o crime à noite, dormir tarde nos fins de semana. Quando meu táxi parou diante da Escola para Meninas Atalanta, eu estava convencida de que era hora de afirmar minha independência. Eu ainda tinha minha parte do dinheiro que as Irregulares ganharam com os tesouros que encontramos na Cidade das Sombras. Eu teria ido direto ao banco se a diretora Wickham não estivesse na calçada da escola esperando por mim. Enquanto eu deslizava do táxi, perguntei-me como uma mulher que pesava menos do que um saco de roupa suja e era mais velha do que o Empire State Building podia me fazer sentir um bebê ranheta de fralda suja.

* * *

- Bom dia, Ananka. - A diretora avaliou o estado lamentável de minha aparência. - Sua mãe telefonou para dizer que você estava a caminho. Ela pensou que seria uma boa ideia se eu a acompanhasse até a sala de aula.

- Desculpe, diretora Wickham, eu lamento muito - murmurei.

- Eu também lamento - disse ela, levando-me pela escada para dentro da escola. - Sabe o que isso significa, não é?

- Sim, li sobre a Academia Borland quando vinha para cá.

A diretora riu, mas não vi nada de engraçado em meus apuros.

- E conheço o fundador da academia - disse ela. - Não é um homem agradável, mas estou impressionada que ele finalmente tenha encontrado um jeito de combinar suas paixões pelo ensino com a criação de animais. Sua mãe parece pensar que a Academia Borland proporciona

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o tipo de ambiente de que você precisa, mas devo admitir que não estou convencida disso.

- Não está? - senti um segundo surto de esperança.

- Não. Na realidade, pretendo apelar por seu caso. Não me pergunte por quê, mas acredito que você pode ser valiosa para a Atalanta. Mas você foi advertida, então terei de castigá-la. Acredito que duas semanas de detenção depois da aula devem ser suficientes. Pode ficar até seis da tarde todo dia, preparando um trabalho que vou lhe atribuir.

- Obrigada, diretora Wickham - respondi, radiante.

- Não me agradeça ainda. - A diretora Wickham me deixou na porta do laboratório de química. - Você tem muito trabalho a fazer se pretende voltar a cair nas minhas boas graças. Sua mãe me disse que você lê muito sobre Nova York. Daqui a duas semanas, espero que me entregue um artigo de vinte páginas sobre um aspecto da história da cidade. Escolha o tema com sensatez. Deve ser bom o suficiente para impressionar o sr. Dedly. Caso contrário, receio que vá tirar nota F no curso dele e, se isso acontecer, não poderei salvá-la da Borland. Então vá para a biblioteca depois de sua última aula, Ananka, e por favor... procure ficar longe de problemas.

* * *

Dentro do laboratório, coloquei óculos de segurança e amarrei um avental preto na cintura. Minha parceira, uma menina estudiosa chamada Natasha, sem talento algum para a química, vertia líquidos num béquer de vidro e mal deu pela minha chegada. Olhei os filetes de fumaça sulfurosa que começava a subir da mistura e me perguntei como tudo podia ter dado tão errado. Minhas amigas tinham segredos para mim, minha mãe me vigiava cada vez mais, eu não conseguia dormir e nem tinha tempo para almoçar. Dali a duas horas, enquanto minhas colegas de turma comiam (ou fingiam comer), eu estaria numa missão de reconhecimento no Central Park, na frente da mansão de Lester Liu, do outro lado da rua. Eu estava arriscando minha liberdade por uma menina que nem se incomodava em me contar a verdade.

Enquanto Natasha, brigava por extinguir as chamas que começaram a disparar do béquer, peguei um pedaço de papel no bolso. Ali, na letra de Oona, estava o endereço do prédio de Lester Liu na Quinta Avenida. Fiquei tentada a dar bolo e deixar que Kiki, OOna e Betty planejassem sozinhas a operação. Mas havia uma coisa no endereço que me intrigava. A revelação veio enquanto meu frenético professor de química chegava com um extintor de incêndio que arrotou uma montanha de flocos de espuma na bancada em chamas. Lester Liu morava na Mansão Varney.

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* * *

Em agosto, a Mansão Varney tinha chegado aos noticiários quando caiu um pedaço do mármore da fachada do prédio, atingindo um táxi e errando por pouco um lulu-da-pomerânia premiado de propriedade da sra. Gwendolyn Gluck, uma das mais proeminentes socialites da cidade. Antes que a polícia pudesse isolar a área, uma segunda laje de mármore achatou a caixa de correio e a escultura de uma deusa nua, que guardava a porta da frente havia cem anos, escorregou e se espatifou na calçada. Na excitação que se seguiu, sumiu a cabeça decepada da deusa. Três dias depois foi encontrada no Queens, fixada à capota de um Trans Am adornado.Se o prédio em questão fosse outro, pouca gente teria se importado. Velha e leprosa, Nova York perde regularmente nacos de si mesma. Mas nos cafés e salas de visitas do Upper East Side, cochichava-se que a mansão na Millionaires's Row estava sendo destruída - não pelo tempo, mas pelo fantasma de Cecelia Varney.

Quando Cecelia Varney nasceu, filha de um dos homens mais ricos de Nova York, os jornais a rotularam de A Garota Mais Sortuda do Mundo. Quando ela morreu noventa anos depois, na mansão de sua família, era conhecida na cidade como A Eremita da Quinta Avenida. O que aconteceu entre os dois eventos foi tema de dois filmes de TV e um musical off-Broadway, mas ninguém tem certeza de nada. Aos 34 anos, a formidável socialite de repente se divorciou do terceiro de uma série de playboys interesseiros. Depois chocou os amigos famosos abandonando-os em favor de um paranormal pouco conhecido e frequentando sessões espíritas em vez de clubes noturnos. Na manhã de seu trigésimo quinto aniversário, sem avisar a ninguém, Cecelia Varney se trancou na mansão com dois criados de confiança e um casal de gatos de seis dedos (presentes de aniversário de seu amigo Ernest Hermingway). Nunca mais saiu da casa e dizia-se que ela ainda estava lá, enterrada em algum lugar no porão. A única empregada a sobreviver à srta. Varney foi vista chamando um táxi enquanto chegava o agente funerário. Foi a última vez que alguém a viu.

No dia em que o obituário de Cecelia Varney foi publicado no New York Times, corretores de imóveis começaram a assediar a mansão como hienas famintas. Não só a casa estava entre as mais magníficas de Nova York, como se dizia que era lotada da coleção inestimável da srta. Varney. Em 45 anos, ela gastara toda a fortuna da família sem colocar um pé numa loja. Homens que juravam segredo - e ganhavam muito bem para cumprir a palavra - faziam entregas na calada da noite. Diziam os boatos que a srta. Varney abrigava incontáveis obras de arte que havia muito tempo se pensava estarem perdidas ou destruídas, e todos na cidade queriam dar uma olhada em seus tesouros. Infelizmente, seu testamento deixou claro que nem a casa, nem seu conteúdo podiam ser perturbados. Tudo pertencia aos 76 gatos (todos descendentes do casal original) que andavam à vontade pelos cômodos.

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Então foi com alguma surpresa que o prédio trocou de mãos poucas semanas depois da morte de Cecelia Varney. Os gatos, ao que parece, desapareceram sem deixar rastros. Nem mesmo o último lote de filhotes pôde ser localizado. Sem os herdeiros para reinvidicá-la, a mansão foi a leilão. Um bilionário misterioso a comprou. Antes que prédio começasse a esfarelar, uma de minhas colegas da Atalanta jurou que vira um homem baixinho e elegante de terno cinza-claro abrir a porta da mansão. Quando ela falou na bengala, eu devia saber muito bem que era Lester Liu.

* * *

Encontrei Oona e Betty esperando por mim no Central Park, de frente para a Mansão Varney. Embora Betty estivesse com um de seus disfarces (cabelo louro, terninho preto, óculos de nerd), era Oona que me parecia desconhecida. Da noite para o dia, ela se transformara de uma amiga confiável em filha de Lester Liu.

- Oi. - Oona olhou para mim e depois para o outro lado da Quinta Avenida. - O que acha? - Senti minha animação murchar ao avaliar a mansão. Por trás dos andaimes de metal, o prédio parecia sem vida, a pedra tão branca que podia ter sido entalhada em gelo. Cada janela estava escura - bloqueada por cortinas que isolavam a cidade. A maioria das mansões na Millionaires's Row era de monumentos ostentosos aos homens que as construíram. A Mansão Varney era um mausoléu.

- Você sabe que seremos as primeiras pessoas lá dentro - falei. - Será que ele está lá?

- Provavelmente uma dezena de crianças taiwanesas - disse Oona. - Aposto que ele as faz encerar o chão. A propósito, dá para acreditar que ele mora aqui enquanto eu passo todo o meu tempo livre num salão de manicure?

- Como está Yu? - perguntei, na esperança de lembrar a ela que a vida pode ser pior. - Está melhor?

- Acho que sim. Ele me parece muito saudável, mas a sra. Fei diz que tem que ficar na cama por uns dias. Acho que ela só quer mantê-lo perto dela. É a criança doce e adorável que ela nunca teve. E é menino também, então ela deve pensar que ganhou o grande prêmio.

- Estamos no século XXI - eu disse. - Não acredito que algumas pessoas ainda prefiram meninos a meninas.

- Ah, gente - protestou Betty. - Desculpe interromper, mas quanto tempo vamos esperar pela Kiki? Tenho que voltar para a escola.

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Olhei o relógio. Só faltavam vinte minutos para o término da hora de almoço.

- Tudo bem, vamos começar - falei, assumindo o comando. - Oona, se a casa acaba de ser vendida, aposto que a imobiliária ainda tem uma planta-baixa em seus computadores. Acha que pode conseguir?

- Tranquilo - disse Oona. - Vou invadir esta noite.

- Betty, pode pedir a Luz para preparar uns grampos rapidinho?

- O que você vai fazer com grampos? - perguntou Betty.

- Dispositivos de escuta - eu a corrigi. - Pequenos, para a gente poder plantar pela casa de Lester Liu.

- Aaah, sim. - Betty sorriu de seu erro. - Tenho que costurar alguns bolsos ocultos nos vestidos que estou fazendo para vocês. Assim vocês não serão pegas se as bolsas forem revistadas.

- Perfeito. Pode falar com Iris e DeeDee e ver se podemos usar um pouco da essência da confiança?

- Ei - disse Oona. - Você não vai fazer nada?

- Não posso - respondi. - Estou de detenção até as seis da tarde e depois disso vou tentar explicar à minha mãe onde estive ontem à noite.

- Foi flagrada? - Betty arfou.

- Fui. Vou contar a história toda quando ela parecer um pouco menos trágica. Agora, uma última coisa. Quantas pessoas moram na mansão com Lester Liu?

Oona deu de ombros.

- Tá legal - suspirei. - Acho que alguém vai precisar vigiar o lugar nas próximas 24 horas e ver quem entra e quem sai. Alguém se habilita?

- Eu faço isso - disse uma voz atrás da gente. Betty gritou quando um esquilo pulou em seu ombro e meteu o focinho em seu pescoço.

Um menino alto com roupa de camuflagem saiu da trás de uma árvore. A cara e o pescoço estavam sujos de terra e as mãos eram cobertas de tinta. Ele podia ter 15 ou 16 anos, o cabelo podia ser ruivo e ele podia ser bonito. Era quase impossível saber.

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- Tire esse esquilo dela - insisti.

O menino assoviou e o esquilo quicou de volta para ele.

- Ele não a estava atacando - disse o garoto. - Ele gosta dela.

- Espero que não goste dela como gostaram de nossa amiga Luz. Seus monstrinhos a arranharam toda. - Poucas pessoas suportavam o rosnado de Oona, mas o menino ficou firme.

- Sim, desculpe por isso. Às vezes eles se empolgam um pouco. Estou tentando ensinar boas maneiras a eles. Não queremos machucar as pessoas; só queremos o dinheiro delas. - A voz dele era fria e clara. Cada palavra era enunciada com perfeição. Era como se ele fosse um extraterrestre que aprendera inglês bem demais.

- Você esteve me seguindo? - perguntou Betty.

- Sim - admitiu o garoto com franquesa, pegando-nos de surpresa.

- Quem é você? - perguntei.

- Podem me chamar de Kaspar.

- Tipo o fantasminha camarada? - Oona deu uma risada.

- Seja boazinha - disse Betty.

- Acho que é mais tipo Kaspar Hauser - falei, lembrando-me de um livro que uma vez encontrei na seção minúscula da biblioteca de meus pais dedicada a manuais de criação de filhos. - Era a criança selvagem original. Foi descoberta na Alemanha muito tempo atrás.

- Esperta - disse Kaspar. Seu sorriso revelava dentes brancos como ladrilhos do metrô recém-esfregados. Ele não morava no parque havia muito tempo. - Quem são vocês?Olhei para Oona e Betty.

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- Pode falar - disse Oona. - Isso nos dará uma desculpa para matá-lo no futuro.

- Meu nome é Ananka Fishbein. Esta é Oona Wong. E a menina que você anda assediando, sabe? Seu nome é Betty Bent. - Perguntei-me se o cara estava corando por baixo de toda aquela sujeira.

- Onde estão suas outras três amigas? - perguntou ele. - A baixinha de cabelo branco, a que parece má e a menina que devia ser isca de esquilo?

Olhei o relógio. Onde estava Kiki?

- Mas você não é o espertinho? - eu disse. - Talvez deva nos contar um pouco mais sobre si mesmo antes de convidarmos você a entrar para o clube.

- O que gostariam de saber? - Kaspar recostou-se despreocupadamente numa árvore, como um fanfarrão à moda antiga?

- Que tal sobre os esquilos? - perguntei. - Por que ensinou os animais a roubar?

- Não ensinei. Eles é que me ensinaram - disse Kaspar sem humor algum. - Receio que não seja uma história muito agradável.

- As histórias desagradáveis são as minhas preferidas - Oona o incentivou. - Adoraria ouvir a sua.

- Já que insiste - disse Kaspar. - Há alguns anos, acordei e descobri que meus pais me abandonaram. Ainda não sei para onde foram, mas levaram tudo de valor do apartamento. Quando não pude pagar o aluguel, o senhorio me expulsou. Então vim morar aqui no parque. Numa manhã, eu estava vasculhando uma caçamba de lixo atrás de comida quando percebi alguns homens entregando gaiolas com esquilos incomuns na porta dos fundos de uma pet shop. Lembro-me de pensar que os animais pareciam ainda mais infelizes do que eu. Eles mereciam ser livres, e não ficar numa gaiola onde idiotas podiam olhar embasbacados para eles.

"Enquanto a porta dos fundos estava aberta, eu espremi uma batata podre na fechadura. Quando os homens foram embora, entrei de mansinho na loja e libertei os esquilos. Alguns fugiram, mas esses três ficaram comigo. Depois de um tempo, eles começaram a me trazer presentes. Barras de chocolate, notas de 10 dólares, pulseiras de diamante. De início não percebi que eram roubados. Eu só estava feliz por ter dinheiro para comprar comida. Mas

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quando descobri, eu sabia que tinha que fazer bom uso das habilidades deles. Com o dinheiro que ganhamos, eu podia libertar mais animais. Nenhuma criatura viva deve ser mantida numa gaiola.

Betty piscava para reprimir as lágrimas e até Oona parecia estranhamente comovida. Mas, para mim, a história dele não parecia verdadeira.

- Agora que conhecem meu segredo, que tal me contarem o de vocês? - perguntou Kaspar. - Onde conseguiram aquele mapa? No minuto em que o vi, entendi que era importante. Desconfiei que a menina que assaltamos ia voltar para procurar por ele. Não esperava que ela trouxesse amigas tão encantadoras.

Recusei-me a aceitar o elogio.

- Não podemos falar nada sobre o mapa.

- Entendo. Primeiro precisa perguntar à menina de cabelo branco. Ela é sua líder, imagino.

- Não precisamos de permissão de ninguém - rebateu Oona. - Só não confiamos em ladrões amantes de esquilos.

- Você é um criminoso - disse Betty delicadamente. - E não o conhecemos realmente.

- Talvez haja uma maneira de eu conquistar a confiança de vocês. - Kaspar olhou para Oona, para mim e para Betty. - Talvez eu não tenha ouvido direito, mas vocês disseram que precisam de alguém pra vigiar esse prédio?

- Talvez - disse Oona, zombando de seu jeito peculiar de falar.

- Vou ficar de olho nele. Vou ficar aqui a noite toda, nem vou perguntar por quê. Talvez eu até resolva o mistério dos gatos de Varney. Mas tenho uma condição. Betty deve concordar em jantar comigo.

- De jeito nenhum - falei. - Isso é pedir demais. Não usamos nossas amigas como moeda de troca.

- Está tudo bem, Ananka - disse Betty. - Quando tudo isso acabar, se ainda for o que ele quer, eu o farei. - Eu podia ver que Betty não acreditava que tinha de honrar o acordo. De certo modo, ela pensava que uma fungada no Eau Irresistible ainda podia prender Kaspar.

- Betty... - tentei alertá-la.

- Já me decidi - anunciou ela. - Mas também tenho uma condição. Chega de batidas em pet

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shops e assaltos, está bem? Não saio com delinquentes.

- Excelente. Então temos um acordo. - Kaspar abriu seu sorriso de estrela de cinema e começou a subir em um carvalho na frente da mansão de Lester Liu. - Encontrem-me aqui amanhã à noite e farei meu relatório.

Deixamos Kaspar empoleirado num galho da árvore e corremos para a aula. A estação de metrô mais próxima não ficava longe de minha escola, e nós três andamos rapidamente na mesma condição.

- Cadê a Kiki? - Oona fumegava. - Não a abandonei da última vez e aquela prima sádica dela quase me matou. Agora que meu próprio pai quer me assassinar, ela nem aparece.

- Deve ter acontecido alguma coisa. Kiki nunca fura uma missão de reconhecimento. - Embora estivesse preocupada com Kiki, eu não podia deixar de ficar satisfeita que ela e Oona estivessem à beira de um rompimento. - Acha que uma de nós deve passar na casa dela depois da aula?

- Eu faço isso - disse Betty. - Mas depois vou direto à casa de DeeDee. Tenho de descobrir um jeito de me livrar desse perfume.

- Ah, sim, sobre o perfume, Betty. Acho que você cometeu um erro com o cara do esquilo. Nenhum perfume na terra ia durar tanto - eu disse a ela.

- E por que mais Kaspar quer nos ajudar? Eu me sinto mal, mesmo que ele seja um criminoso. É como se estivesse me aproveitando dele.

- Tenho uma ideia melhor - disse Oona. - Por que não poupa a viagem à casa de DeeDee e dá uma boa olhada no espelho?

- Como assim? - perguntou Betty.

Oona olhou para mim e revirou os olhos.

- E você ainda diz que eu não tenho jeito?

* * *

O sinal das quatro horas provocou uma debandada de alunas. Enquanto eu abria caminho carrancuda pela horda até minha primeira tarde de detenção, ocorreu-me que logo eu podia me ver na presença de Sua Grandeza. Toda escola tem suas celebridades e Molly Donovan estava no topo da lista VIP na Escola para Meninas Atalanta. A fama de Molly pouco tinha a ver

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com o fato de que sua mãe atriz foi premiada com dois Oscar ou que o pai, cirurgião plástico, era responsável por metade dos narizes da Atalanta. A maioria das meninas da Atalanta era rica e muitas eram famosas, mas poucas podiam alegar ter conquistado seu sucesso. Molly era uma celebridade por ter sido sentenciada à detenção mais vezes do que qualquer outra menina na história da escola. Soube que na ducentésima visita ela pretendia fazer uma tatuagem comemorativa.

Molly e sra. Fontaine estavam sozinhas na biblioteca quando cheguei para cumprir minha sentença. Embora renomada como a mais rigorosa das inspetoras de alunos, a sra. Fontaine sofria da maldição de uma bexiga do tamanho de uma ervilha. Toda manhã, alunas de todas as idades faziam apostas sobre o número de vezes que ela dispararia para o banheiro durante o dia. O dinheiro que trocava de mãos toda semana podia ter comprado um penico folheado a ouro para a sra. Fontaine.

Tentei pegar os livros de que precisava para escrever o trabalho que a diretora Wickham me atribuíra, mas a biblioteca da Atalanta não chegava aos pés da que eu tinha em casa. (Mas se gabava de ter um número impressionante de livros dedicados a Seu corpo em transformação.) Eu estava rindo de um dos títulos quando vi a sra. Fontaine mudar seu peso considerável de uma perna para a outra e fazer uma careta, como se estivesse prestes a explodir. Assim que escolhi uma mesa de estudos duas filas atrás de Molly, nossa carcereira nos alertou para ficarmos de boca fechada e disparou porta afora.

- Psst.

Espiei por cima da mesa. Molly estava ajoelhada na cadeira, olhando para mim. Embora não fosse a imagem de encrenqueira, com bochechas gorduchas e sardas de Pipi Meialonga, Molly era famosa por contribuir para a delinquência dos outros. Olhei para meus livros e tentei ignorá-la.

- Pssssssst.

Molly recusava-se a desistir. Levantei a cabeça por sobre a divisória. Molly sorria docemente e girava um anel vermelho no dedo.

- Nunca vi você aqui - disse ela. - O que você fez?

- Cheguei atrasada hoje de manhã.

- Ah - disse Molly, claramente decepcionada. - É só isso? Eu esperava que você fosse a menina da bomba de inhaca.

Ouvindo passos no corredor, baixei em minha cadeira e enterrei a cara no livro. Os reflexos de Molly não foram tão rápidos.

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- Molly, sente-se e comece a trabalhar! - guinchou a sra. Fontaine. - Se eu a vir incomodando Ananka, vou cuidar para que fique aqui o mês inteiro.

- Eu já estou de detenção até o final de outubro - observou Molly.

- Então digamos novembro - disse a sra. Fontaine.

Arranquei três folhas de meu caderno e comecei o trabalho. E pretendia escrever sobre o incidente de ladrões de túmulos que tinha incitado o Distúrbio dos Médicos de 1788, mas em vez disso fui dominada por outro tema.

Embaixo da sinagoga Bialystoker, no Lower East Side, há uma sala secreta...

Quinze minutos depois, ouvi a sra. Fontaine sair da sala. Senti um calor em minha nuca e pulei ereta, quase batendo a cabeça em Molly Donovan.

- Trabalho interessante - disse Molly. - Sua ortografia é terrível.

- Vá embora - sussurrei, de olho na porta. - Vai conseguir a expulsão de nós duas.

- Não posso ser expulsa - disse Molly. - Estou tentando há anos. Não importa o que eu faça. Meus pais simplesmente doam mais dinheiro à escola.

De repente eu fiquei impressionada.

- Por que quer ser expulsa?

- Odeio isto aqui. Prefiro qualquer lugar, menos Nova York.

- É mesmo? - perguntei, pasma. - E por quê?

- São meus pais. Eles não me dão sossego. Acha que eu sou especial.

- Mas sempre soube que você era muito inteligente.

- Não esse tipo de especial. Especial de superdotada.

- Ah, é? E qual é o seu dom? - perguntei.

- Minha mãe me chama de calculadora humana. Posso resolver mentalmente equações

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matemáticas complexas. Meus pais costumavam me levar a festas para divertir os convidados. Quando eu tinha 11 anos, decidi que não ia mais ser o mico de circo deles. Até tirei um D em geometria no ano passado - disse ela, demonstrando um orgulho tremendo.

- Meus parabéns - eu disse. - Qual é a raiz quadrada de 7.368?

- Você também? - Molly suspirou. - É 85837. Três casas decimais bastam?

- Claro, mas não posso verificar. Não tenho calculadora.

- Então acho que vai ter que confiar em mim. Epa, lá vem a fonte. Não conte a ninguém o que eu disse a você. Vai acabar com minha reputação.

- Tudo bem - sussurrei, enquanto Molly voltava para sua cadeira.

* * *

Outros 15 minutos se passaram e Molly voltou.

- Isso não é divertido? - perguntou ela.

- É melhor do que eu pensava. - Eu estava mesmo começando a gostar dela.

Molly se sentou na beira de minha mesa.

- Adoro a detenção. É minha hora preferida do dia. A gente conhece pessoas muito interessantes. É chato que eu tenha que ver meus psicólogos depois disso; se não fosse assim, eu ia te convidar para jantar. Minha cozinheira faz uma bouilabaisse incrível.

- Psicólogos? - perguntei. - Você tem mais de um?

- Claro, eu sou superdotada, lembra? É uma equipe de marido e mulher. Eu os vejo três vezes por semana. São especializados em crianças excepcionais.

- Como é isso? - perguntei.

- Horrível. Eles me dão um monte de testes e me fazem falar de como é ser tão inteligente. Às vezes eu consigo me apresentar para uma plateia de especialistas. É como ser uma daquelas galinhas no carnaval que fazem o jogo da velha.

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- Isso parece bem ruim - concordei.

- É claro que é. Não sei por que meus pais me mandam para eles. O filho deles mesmo fugiu. Soube que agora ele mora no parque. Eles tentam pegá-lo de vez em quando, mas ele também é superdotado. Fica sempre fugindo. Epa, lá vem ela de novo.

* * *

Passei os 15 minutos seguintes contando os 900 segundos até Molly voltar.

- E aí - disse ela. - Onde estávamos mesmo?

- O menino. Aquele que você disse que fugiu. Qual é o nome dele?

- Phineas Parker. Por quê?

- Como ele é?

- Não faço ideia. Nunca o vi. Por que quer saber?

- Só curiosidade - expliquei.

- Se souber onde ele está, pode pedir a grande recompensa que os pais dele estão oferecendo. Mas duvido que você seja má o bastante para dedurá-lo.

- Não depois do que você me disse. Aliás, qual é o dom dele?

- Arte - disse Molly. - Os pais têm as pinturas dele pelo consultório todo. Parece que algum tempo atrás venderam uma por, tipo, uns 30 mil dólares.

- Escute, Molly. Acha que pode me conseguir uma foto de Phineas?

- Talvez - disse ela. - O que vou levar em troca?

Pensei por um momento.

- Se me conseguir uma foto, eu consigo sua expulsão.

- Promete? - disse Molly, com os olhos brilhando.

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- Prometo - garanti a ela.

- Molly! - A sra. Fontaine pegou a nós duas de surpresa. - Então que seja! Vai ficar aqui por novembro inteiro.

- Ótimo! - exclamou Molly enquanto quicava de volta para sua cadeira.

* * *

Ao voltar para casa, peguei meu celular para ligar para Kiki e descobri que havia duas ligações não atendidas da minha casa. Não era um bom sinal. Quando passei pela porta da frente, encontrei minha mãe esperando no corredor, agarrada a um cronômetro como uma treinadora sádica de corrida. Ela olhou o relógio e depois para mim.

- São 6h47. Por que chegou tão tarde? Eu verifiquei na internet. Não há nada de errado com o metrô.

- Na verdade, eu vim a pé. - O tom de voz dela me assustava e eu queria desesperadamente um pouco de Fille Fiable. - Fiquei sentada por horas. Precisava de algum exercício.

- Exercício é a menor de suas preocupações. Seu pai e eu queremos conversar com você na sala ao lado. - Eu estava chocada demais para me mexer. - Agora! - ordenou minha mãe.

O piso da sala de estar continuava coberto de livros caídos. Só foi aberta uma pequena roda cercando o sofá. Sentei-me de frente para meus pais e tentei ignorar um livro intitulado Templos de perdição da América Central que me chamava do outro lado da sala.

- Quer nos dizer por que teve tanta dificuldade para sair da cama esta manhã? - perguntou minha mãe.

- Porque eu estava cansada?

- É o melhor que pode fazer? - Minha explicação foi rejeitada e minha mãe pareceu enojada. - Eu tinha acabado de conversar com o diretor da Academia Borland quando sua diretora ligou - disse ela. - Ela parece pensar que pode colocar você na linha de novo. Mesmo contrariando minhas expectativas mais otimistas, concordei em dar uma chance a ela.

- Obrigada - murmurei.

- Não tão rápido. A Academia Borland ainda está esperando por você em dezembro. Já preenchi o cheque. Durma até tarde de novo e vai acordar num ônibus para a Virgínia

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Ocidental.

- Não queremos castigá-la, Ananka - interrompeu meu pai, parecendo pouco à vontade. Ele sempre preferia bancar o interrogador bonzinho. - Só queremos ajudar você a ter sucesso. Se você se sair bem na escola, um dia poderá fazer o que quiser. Poderá estudar esquilos gigantes, entrar para o FBI ou cavar ossos antigos em Nova York. Mas nunca será capaz de fazer tudo isso se primeiro não passar em geometria.

- Seu pai pode não querer castigar você, mas eu quero - declarou minha mãe. - Demos a você toda a nossa confiança e toda a privacidade do mundo, e você abusou das duas coisas. É por isso que sentimos a necessidade de tomar algumas precauções. Seu pai e eu passamos o dia encontrando todos os livros de que você precisa para seus estudos. Estão em seu quarto. Todo o restante da biblioteca está temporariamente proibido até que você aprenda a se concentrar.

"Nas próximas duas semanas, você virá diretamente para casa todo dia ao sair da detenção e começará seu dever de casa. Nesse período, ficará longe de Kiki Strike. Entendeu?

- Sim. - É fácil parecer humilde quando você acha que tem um ás na manga.

- Ótimo. Então seu tempo começou. E, Ananka?

- Sim?

- Amanhã você vai pegar o metrô para casa.

Corri para meu quarto para examinar os danos. As gavetas de minha mesa tinham sido saqueadas e muitos de meus livros preferidos foram confiscados, mas minha coleção de livros de história de Nova York não foi tocada. Meu exemplar de Vislumbres de Gotham continuava ali, junto com o mapa que estava enfiado entre suas páginas. Quase soltei um suspiro de alívio, quando por acaso vi as janelas. As duas estavam trancadas com cadeados novinhos. Eu estava presa ali dentro. Deitei-me na cama, plenamente preparada para cair aos prantos, quando houve uma batida na porta e meu pai enfiou a cabeça para dentro.

- Não é assim tão ruim - cochichou ele. - Só tire um A na próxima prova e ela vai se esquecer de tudo. Você pode fazer isso!

- Obrigada, pai. - Eu funguei.

- A propósito, hoje chegou uma coisa pelo correio para você. Acho que é de uma de suas amigas. Não conte a sua mãe que eu lhe entreguei.

- Tudo bem - concordei. Ele atirou na cama um pequeno pacote de papel pardo.

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- Se precisar de ajuda no dever de casa, é só me falar.

- Eu falo - prometi, enxugando os olhos.

Abri o pacote e larguei o conteúdo na cama. Havia dois cadeados idênticos àqueles da minha janela, um martelo e um cinzel pequenos e uma pequena caixa de couro. A caixa tinha um tubo de ensaio de metal frio ao toque e tinha a etiqueta Nitrogênio Líquido. Pesquei dentro do envelope e encontrei um bilhete.

Desculpe por não aparecer hoje. Soube que está de castigo. Não é assim tão ruim. Se não conseguir arrombar os cadeados, pode usar este kit. Cubra um dos cadeados com nitrogênio e deixe por um ou dois minutos. Quando o cadeado congelar, bata nele com o martelo e o cinzel. (Cuidado! Nitrogênio também congela dedos.)Vejo você amanhã à noite.Kiki

CAPÍTULO SETE

A bela adormecida

Na sexta-feira de manhã, atravessei as portas da Escola Atalanta uns 45 minutos antes do primeiro sinal. Os corredores estavam praticamente vazios. A caminho do banheiro, passei correndo por algumas alunas bolsistas e uma ou duas puxa-sacos a caminho do banheiro. Tinha bebido todo o meu expresso triplo enquanto estava no metrô e os efeitos começavam a ficar desagradáveis. Enquanto lutava freneticamente com a fivela de meu cinto, ouvi alguém bater a por¬ta do reservado vizinho.

— Psst! Ananka. — O sussurro era quase um grito. Olhei para baixo e vi uma cara sardenta sorrindo para mim sob a divisória.

— Molly? — eu grunhi. A garota precisava mesmo trabalhar seus limites. — O que está fazendo?

— Vem cá — insistiu ela.

— O quê? Não!

— Vem cá. Tenho uma coisa pra você.

— Não acha isso meio esquisito, Molly?

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Molly fez uma carranca.

— Estou falando sério. Vai querer ou não?

— Meu Deus do céu, Molly. Dá para esperar um minuto? Estou quase explodindo.

— Não, não dá. Caso tenha se esquecido, eu tenho cada professor da escola de olho em mim. Não tenho muito tempo.

Respirei fundo e abri minha cabine. Não tive a oportunidade de ver se alguém estava ouvindo antes de Molly me puxar para a cabine dela. Ficamos nariz com nariz acima da privada.

— Isso é muito estranho — eu disse a ela. — Por que todo esse segredo?

— Consegui uma foto de Phineas Parker para você. — Molly abriu a mochila. Estava vazia, a não ser por uma foto num enorme porta-retrato de prata.

— Eu só precisava da foto, Molly, não do porta-retrato. Isso é da Tiffany. Seus psicólogos com certeza vão saber que sumiu.

— E eu ligo? Vou dizer a meu pai para acrescentar mais umas 100 pratas no próximo cheque deles. Oooh! Ou talvez me mandem procurar outro médico. Isso seria incrível! O que você acha?

Eu tinha dificuldade de desviar os olhos. Phineas Parker tinha cabelo castanho-avermelhado, olhos castanhos e a cara de um deus grego. Um esquilo enorme estava empoleirado no ombro dele.

— É, foi o que eu pensei — Molly cacarejou. — Quem sabia que ele era tão bonito? Se um dia ele decidir voltar para casa, talvez eu consiga que os pais dele arranjem nosso casamento.

— Molly — eu disse com um sorriso —, quando chegar a época, você estará a centenas de quilômetros de Nova York.

- Então vai mesmo fazer isso?

- Promessa é promessa. Nada vai acontecer de imediato, mas um dia, em breve, você será expulsa.

Molly atirou os braços em mim e me sufocou com um abraço tão forte que quase perdi o controle da bexiga. Duas meninas riram quando Molly e eu saímos da cabine, mas eu não liguei. Nunca em minha vida eu fiz alguém tão feliz.

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***

Naquela noite, horas antes do início marcado para o jantar de Lester Liu, peguei o metrô para casa, passei de cabeça erguida direto por minha mãe e me tranquei no quarto. Pouco antes das sete horas, meu pai bateu na porta e perguntou se eu queria um pouco de pão e água. Informei-lhe educadamente que já tinha comido e pedi que me deixassem em paz com meus estudos. Às 7h45, arrombei cuidadosamente um dos cadeados e desci a escada de incêndio na ponta dos pés. Às 7h30, eu estava na frente do prédio de Betty Bent. Não senti uma grama que fosse de orgulho.

Meus dedos roçavam a campainha quando Betty abriu a porta e me arrastou para dentro de seu apartamento escuro do porão. Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela levou um dedo aos lábios.

— Ainda bem que chegou cedo - sussurrou ela, dando uma espiada rápida por sobre o ombro. — Há uma coisa que você precisa ver.

— Tem mais alguém aqui? — perguntei.

— Só Oona. Vem. — Ela contornou os manequins e bonecos de modista sem cabeça que apinhavam a sala de estar. Os pais desenhavam figurinos para uma nova ópera que pelo visto seria montada em Marte.

— Espere um segundo. Tenho uma coisa para te contar — sibilei para Betty. — Hoje eu descobri a identidade secreta do seu namorado.

Betty reduziu o passo, mas se recusou a se virar.

— Namorado?

— Você sabe de quem estou falando. Ele adora ficar ao ar livre, gosta de trabalhar com animais e não vê uma barra de sabão há um bom tempo. — Betty parou de andar. — O nome verdadeiro dele é Phineas Parker. Os pais dele são psicólogos. Ele fugiu há alguns meses. Quer ver uma foto?

Betty assentiu, muda, e eu lhe passei a foto que tirei do porta-retrato.

— Nada mal, hein? — Meu sorriso desapareceu quando vi a cara de Betty. — Que foi?

— Nada. Eu só queria que Iris nunca tivesse feito aquele poção do amor. Olha... Talvez você

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não deva contar a mais ninguém sobre isso.

— E por que não? — Meu ótimo trabalho de detetive foi recompensado com uma fofoca de primeira classe. Guardar segredo seria como ganhar na loteria e perder o bilhete.

— Ele não deu nenhuma razão para a gente entregá-lo. Vamos guardar o segredo dele por enquanto.

— Não me diga que está a fim da criança selvagem do Central Park.Betty deu de ombros.

— E se eu estiver? Que diferença faz?

— Mas ele está seguindo você feito um babuíno apaixonado — argumentei. — É evidente que ele também gosta de você.

— Talvez. Mas graças ao Eau Irresistible, eu nunca vou ter certeza — disse ela com um suspiro. — Agora corre ou vai perder o show.Betty irrompeu para o quarto nos fundos do prédio. A luz inundava a sala de estar pela porta aberta.

— Tá legal, fique aqui. — Betty me mostrou uma sombra e apontou o quarto. — Dê uma olhada.

Fitando o espelho triplo de corpo inteiro estava Oona, usando um vestido magnífico, composto de múltiplas camadas de chiffon e sede cinza-clara. Sempre que ela se mexia, centenas de contas costuradas pela bainha do vestido cintilavam como orvalho.

— Que vestido incrível. Você desenhou? — perguntei a Betty.

— Não. Oona trouxe. Numa caixa imensa, com uma fita vermelha grande.

— Presente do papai?

— Arrã. Foi entregue na casa dela hoje de manhã. Ela teve de experimentar aqui. Disse que as avós não aprovariam se soubessem que ela estava aceitando presentes de Lester Liu.

— Vejo que você não aprova também - falei, Betty sacudiu a cabeça. — É meio estranho, eu acho. Mas é só um vestido.

— Não é só um vestido. Está vendo todos os brilhos na bainha? São de verdade. São diamantes.

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— Não podem ser verdadeiros — falei com desdém. — Tem toneladas deles.

— Eu sei, mas são. Eu testei um. E não havia só um vestido na caixa que ela trouxe. Está vendo as joias novas dela?

Ainda sem saber que estávamos olhando, Oona parou de girar para os espelhos e colocou a mão na caixa gigantesca que estava aberta na cama. Uma pulseira grossa de diamantes lampejou no pulso enquanto ela pegava uma estola de peles prateada e a passava pelos ombros. Ela fez uma pose de estrela de cinema e soprou um beijo para o próprio reflexo. De repente eu me senti como se estivesse espionando uma estranha. A Oona que eu conhecia tinha lá seus defeitos, mas sua dignidade não estava à venda. Não só ela teria recusado os presentes de Lester Liu, como teria incendiado a caixa e atirado na rua. Esta era uma pessoa que eu nunca vira. Uma impostora, talvez. Uma gêmea do mal. Ou talvez, agora me ocorria, esta fosse a verdadeira Oona — o lado que ela escondia de todas nós.

— Ela está ótima — murmurei, temerosa de compartilhar de minhas suspeitas com Betty.

— Ela está linda. O problema é este — cochichou Betty. — O pai descobriu seu ponto fraco. Não sei o que ele quer, mas ele acha que pode comprar a confiança dela. Estou começando a ficar preocupada, Ananka.

— Eu também. — admiti. Se a segurança das Irregulares depender da garota do espelho, todas corremos um grave perigo. A campainha tocou.

— Volto já — disse Betty.

— Oi, Oona. - Entrei na luz do quarto. Oona acenou para meu reflexo.

— E aí, o que acha? — perguntou ela.

— Seu pai tem excelente gosto — observei secamente.

— Tem mesmo, né? — Oona girou mais uma vez para sua própria admiração antes de ver minha cara. — Não me olhe desse jeito — disse ela. — Se ele mandou alguma coisa, eu tenho que usar, não é? O que ele pensaria se eu aparecesse com um dos trapos velhos de Betty?

Eu não sabia o que dizer. Enquanto Betty voltava ao quarto com Luz, DeeDee e Iris a tiracolo, finalmente situei o que me incomodava. O argumento de Oona fazia perfeito sentido. Só não era uma coisa que minha amiga teria dito.

— Seus pais a deixaram sair com a gente de novo? — perguntei a Iris enquanto ela passava pela porta.

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— É, eles finalmente entenderam que é melhor ter amigas mais velhas do que amiga nenhuma. — Iris estendeu a mão para roçar o vestido de sede de Oona. — Você está demais, Oona — disse ela com entusiasmo.

— Diga uma coisa que eu não saiba, nanica — respondeu Oona asperamente ao se afastar da mão estendida de Iris.

— Bonita por fora — murmurou DeeDee. — Onde está a Kiki?

— Parece que ela vai se atrasar — disse Betty. — Sentem-se.

— Eu trouxe seus grampos. — Luz os largou na cama de Betty com um baque. Tirou de um saco de papel um objeto achatado do tamanho de uma moeda e o estendeu entre o polegar e o indicador. — São vinte, e vocês podem colocar onde quiserem. Tem um adesivo atrás, se precisarem grudar debaixo de uma mesa ou atrás de uma tela.

— Você é um gênio — elogiei.

— Já me disseram isso — respondeu Luz.

— Iris e eu trouxemos um pouco de Fille Fiable. — DeeDee colocou três vidrinhos de spray na penteadeira de Betty. — Mas lembrem-se de que ele só fica forte por alguns minutos. Talvez vocês tenham que reaplicar várias vezes.

— Está dizendo a mim como isso funciona? — perguntou Oona. — Caso tenha se esquecido, sua sombra com problemas de crescimento me fez uma demonstração pessoal.

— Muito bem! — Betty se recusou a deixar que o comentário de Oona causasse algum prejuízo. — Hora de se vestir, Ananka. Quer vir, Iris?

— Pode apostar que sim! —cricrilou Iris, ansiosa para escapar de Oona.

***

Como figurinistas do Metropolitan Opera, os pais de Betty passavam os dias desenhando trajes vinkings para homens com estrutura óssea minguada e transformando prima-donas roliças em camponesas francesas famintas. Em incontáveis ocasiões, vi a prova de seu trabalho meio esticada na sala de estar, mas nunca fui convidada a visitar seu ateliê.

— Nunca se perguntou por que moramos num porão? — perguntou Betty a Iris, a mão postada na maçaneta da porta com a placa Mantenha Distância. — É por isso. — Ela abriu a porta e

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revelou um enorme espaço de trabalho cheio de trajes de todos os tipos imagináveis — asnos, romanos, sultões e gueixas. — Nunca conseguimos todo esse espaço na superfície, e a luz do sol destrói a cor dos tecidos.

— Você podia ganhar uma fortuna no Halloween — Iris estava admirada.

— Meus pais jamais emprestariam essas coisas. Na verdade, eles provavelmente vão me matar se souberem o que estou fazendo. — Betty foi até uma das araras de roupa e começou a vasculhar os cabides. — O que acha deste, Ananka? — Ela estendeu uma roupa cor-de-rosa com asas de tecido fino.

— Muito engraçado — sussurrei.

— Posso experimentar? — Os olhos castanhos de Iris cintilavam.

Betty olhou confusa a menina.

— Não acho que seja de seu tamanho. Além disse, você tem quase 12 anos. Por que ia querer se vestir de Fada Sininho?

Iris olhou as sapatilhas verdes de balé.

— Eu só estava pensando que podia usar uma roupa dessas, se um dia desses vocês precisarem de novo de minha ajuda. Sabe como é, quando precisarem de alguém que pareça uma criancinha inocente.

— Duvido que a gente vá precisar de uma fada. Que tal uma pequena sereia? Você pode ficar de tocaia nas fontes. — A única a rir fui eu.

— Você está passando tempo demais com Oona — Betty me repreendeu. — Parecer nova não é sua única competência — disse ela a Iris. — Se algumas pessoas querem te tratar como uma menina de oito anos, problemas delas. Não se esqueça de que você já salvou a pele delas. Com seus miolos, sei que não foi a última vez.

— Ela tem razão — admiti. — Desculpe, Iris.

— Já superei isso — disse Iris. — Vamos voltar ao trabalho.

— Quer ver o vestido de Kiki? — Betty empurrou um diabo de lado e revelou um elegante vestido de cetim e renda. — Pensei que ela ia querer continuar no preto, então tive de fazer eu mesma. Todos os vestidos de adulta são grandes demais para ela e a maioria dos vestidos de criança tem cor de sorvete.

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— É ótimo, mas eu mataria para ver Kiki de rosa-chiclete.

— Vai ter que matar mesmo. Ah, e este é o seu. — Ela puxou um vestido longo de sede vinho-escuro. — Minha mãe desenhou este vestido para uma interpretação moderna de Medeia. As manchas de sangue não aparecem.

— Que bom saber disso — eu falei. — Acha mesmo que vou ficar bem nele?

— Tá brincando? Você vai ficar linda — insistiu Betty. — E olha só — disse ela, estendendo a mão nas dobras da saia. — Bolsos ocultos para os grampos... Como prometi.

***

Com minha roupa nova, sentei-me à penteadeira de Betty, de costas para sua coleção de narizes falsos, enquanto ela dava os últimos retoques na maquiagem. Iris estava de pé ao lado e Betty lhe dava instruções.

— Um dos olhos de Ananka é um pouquinho maior do que o outro, então vamos ter que colocar um pouco mais de delineador no menor...

— Que horas são? — intrometeu-se Oona. Tendo finalmente se cansado de ficar olhando o próprio reflexo, ela estava arrumando as perucas de Betty, dispostas em dezenas de cabeças de isopor junto à parede. Luz estava esparramada na cama, encarando o teto. Ela olhou o relógio.

— Quase 8h15 — disse ela.

— Cadê a Strike? — grunhiu Oona. — Vamos levar meia hora para chegar à área residencial e teremos de estar lá às nove. Se desta vez Kiki der bolo, juro que vou dar um chute no rabo dela.

— Boa sorte — Luz bufou. — Pagou 50 pratas para ver.

Iris começou a rir, depois pensou melhor.

— Kiki virá — disse DeeDee e logo a campainha tocou. — Está vendo? — Ela pulou para atender a porta.

Quando DeeDee voltou, tinha uma cara horrível. A de Kiki parecia um instantâneo de filme de terror.

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— Desculpe pelo atraso — disse ela.

— Tá legal. Está tudo bem com você? — A tez de Kiki parecia ainda mais cadavérica do que de costume e seus olhos estavam injetados e inchados. Dava a impressão de que não dormia havia dias.

— Verushka está doente de novo. Tive de encontrar outro médico.

— Pensei que ela estivesse melhor — disse DeeDee. — Qual é o problema agora?

— É a perna. Ainda há alguma coisa errada com ela.

— Acha que devia estar aqui? — perguntei. — Não devia ficar em casa com ela?

Oona protestou com um pigarro, mas nós a ignoramos.

— Ela não quer que eu perca isto — disse Kiki. — O médico está com ela agora.

— Tem certeza de que está bem para o jantar? — perguntou Betty. — Uma de nós pode ir no seu lugar, se precisar ficar em casa.

— Com licença? — Oona gemeu. — Eu adoro a Verushka tanto quanto qualquer uma de vocês, mas isto é sério também.

— Eu vou ficar bem — Kiki nos garantiu com um sorriso amarelo.

— Então pula fora, Ananka — disse-me Betty. — Você terminou e tenho 15 minutos para consertar uns danos graves.

— Vestido legal, Oona — disse Kiki enquanto assumia meu lugar junto à penteadeira. — Um presente, imagino?

— É, o pai de Oona tem mesmo a ficha da filha, né? — disse DeeDee.— Espero que esteja falando de meu número de roupa, Morlock — ladrou Oona.

***

Enquanto nosso táxi acelerava pela Madison Avenue, Oona, Kiki e eu examinamos as plantas da mansão de Lester Liu. Duas quadras ao sul de nosso destino, saímos do táxi e fomos a pé para o parque. Uns turistas que andavam pela Quinta Avenida pararam para nos olhar boquiabertos. Com seu vestido cinza-claro, Oona parecia uma deusa de mármore que ganharam vida, e Betty tinha feito maravilhas com Kiki. Com o cabelo sem cor, a pele

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incrivelmente branca, o vestido preto elegante e os lábios vermelhos, ela podia ser a rainha dos vampiros. Até eu estava apresentável, embora lutasse para andar com elegância nos saltos altos.

Kiki deslizou ao lado do muro que separa a Quinta Avenida do Central Park. Passando de fininho pela Children's Gatena rua 76, ela se aproximou de dois homens que estavam sentados no chão, curtindo um banquete de salsicha Viena e feijão frio.

— Kiki Strike — disse ela, estendendo a mão para o mais velho.

— Howard Van Dyke. — O homem trocou um aperto de mãos com ela. Era baixo, corpulento e incomumente peludo; como um gnomo de jardim que tivesse dado sementes. — Aceita uma salsichinha? — perguntou ele.

— Não, obrigada — Kiki declinou educadamente. — Sou alérgica.

— Eu sou Kaspar — disse o mais novo, colocando-se de pé e apertando a mão de Kiki. — Li sobre você nos jornais. Oona, Ananka — disse ele com uma pequena mesura na nossa direção. — As duas estão esplêndidas esta noite.

— Obrigada, garoto do esquilo. Ai! — Oona gritou quando lhe dei uma cotovelada.

— Oi, Kaspar — falei.

— Betty me falou que você foi muito útil — disse Kiki. — Obrigada por vigiar a mansão.

— Foi um prazer — disse Kaspar. — Howard me fez companhia.

—Obrigada a você também, Howard — disse Kiki. — E então, o que viu?

— Não teve muita atividade — observou Kaspar. — Há um mordomo que entra e sai o dia todo. Ele é um personagem incomum. Parece um Gengis Khan de peruca malfeita... É impossível não reconhecê-lo. Há também um cozinheiro, mas ele saiu da casa no momento. Acho que pode ser o único empregado da casa no momento. Houve algumas visitas esta manhã. Um homem alto de terno apertado apareceu por volta das nove horas. Bem-vestido, mas meio chamativo. Só ficou alguns minutos. O segundo foi um entregador que deixou uma caixa de najas.

— Você disse najas? — perguntei.

— Era o que parecia — confirmou Kaspar. — Tem certeza de que quer entrar lá?

— Com ou sem najas, não temos alternativa — disse Oona, olhando-me de cara feia. — Fomos

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convidadas para jantar.

— Então vou esperar para ter certeza e que vão sair de lá.

— É muito cavalheirismo de sua parte — disse Kiki. — Mas podemos nos cuidar sozinhas.

— Sei que podem. Mas entenda, minha agenda social está vazia esta noite. Não tenho nada para me divertir — disse Kaspar, exibindo uma habilidade extraordinária para a diplomacia.

— Se não se importa de dar uma paradinha depois do jantar, estou curioso para ouvi sobre as najas. Como suas amigas devem ter lhe contado, eu sou uma espécie de amante de animais.

— Neste caso, talvez a gente traga uns restos para você — disse Kiki com um sorriso.

— E quem sabe uma garrafa d Châteuneuf du Pape? — perguntou Howard. — É o melhor vinho para acompanhar salsichas.

— Verei o que posso fazer. — Kiki riu enquanto íamos para a saída.

— Gostei de Kaspar — anunciou Kiki enquanto atravessávamos a Quinta Avenida. — Por que será que ele fugiu de casa?

— Como sabe disso? — perguntei, aturdida.

— Os dentes dele são meio perfeitos demais — disse Kiki. — Se estivesse morando no parque há muito tempo, a essa altura estaria crescendo musgo neles.

***

O mordomo de Lester Liu deu um passo para o lado e esperou em silêncio enquanto nós três entrávamos no saguão da mansão. Alto, moreno e com um penteado estranho, ele examinava o espaço acima de nossas cabeças, embora eu sentisse que via tudo. Evitei a pele branca erguida numa recepção selvagem. Por baixo de um lustre de cristal ardiam dezenas de velas bruxuleantes e os diamantes de Oona ganharam vida, emitindo pequenas centelhas enquanto ela deslizava pelo mármore. Os olhos de Kiki circularam pela sala, observando as rotas de fuga e possivelmente procurando por najas. No primeiro andar, havia duas portas altas de cada lado do saguão. A porta à nossa direita tinha sido apressadamente coberta com tábuas. Cada pedaço de madeira fora fixado com pregos nodosos e tortos.

— Viemos ver o meu pai — a voz de Oona, sempre meio alta demais, ricocheteou nas paredes de mármore. Sem pronunciar uma palavra, o mordomo voltou os olhos para a grande escadaria. Um baixinho de smoking descia do segundo andar, a ponta da bengala batendo em

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cada degrau. De perfil, seu rosto parecia frio, mas ao passar pela última curva da escada, ele abriu um sorriso encantador.

— Minha cara Oona. — Lester Liu falou com o sotaque ciciado de um lorde inglês que acabou de receber o título de nobreza. Com a mão livre, pegou a filha pelo ombro e plantou dois beijos em seu rosto. — Você é ainda mais estonteante do que sua mãe. De agora em diante, deve sempre se vestir assim. — Eu esperava que Oona se retorcesse ou lançasse um insulto para ele. Em vez disso, ela ficou boquiaberta com o belo pai, incapaz de falar.

— Estas devem ser suas amigas. — Lester voltou-se primeiro para Kiki. — Srta. Strike, suponho — disse ele, estendendo a mão para Kiki. — Você é em cada detalhe tão impressionante como imaginei que seria.

— Muito lisonjeiro de sua parte, sr. Liu. — A sobrancelha arqueada de Kiki deixou perfeitamente claro o que ela pensava da opinião dele. — Quer evitar que alguém saia... ou entre? — perguntou ela com um sorriso, apontando a porta bloqueada.

Lester Liu retribuiu o sorriso de Kiki e aceitou a provocação.

— Este e um toque da decoração da sra. Varney. Ela era muito frugal nos últimos anos. Em vez de aquecer a mansão toda, fechou a ala leste pra economiza na conta do gás. Mas como posso me concentrar nestas trivialidades com criaturas tão encantadoras diante de mim? — perguntou ele, estendendo a mão na minha direção.

— Annie Fisher — menti. Se Lester Liu não sabia meu nome, não tinha sentido dar a ele. — É um prazer conhecê-lo, sr. Liu. — A mão do homem era fria e seca, como a de uma estátua.

— O prazer é todo meu — disse ele. — Gostariam de conhecer a casa? Receio não ter muitas visitas e estou ansioso para partilhar meus tesouros. — Ele olhou para Oona ao dizer isso e um arrepio desceu por minha espinha.

Lester Liu estendeu o braço para mim e eu tive de me sacudir para pegá-lo. Por baixo do paletó, eu sabia que ele era magro, mas musculoso. Ele me conduziu com uma facilidade surpreendente por uma porta e entramos num labirinto de câmaras escuras e frias, cada uma delas cheia dos tesouros de Cecelia Varney.

Ao que parecia, depois de descobrir que o dinheiro não podia comprar a felicidade, Cecelia Varney se dedicou a comprar todo o resto. Começamos nosso giro por uma sala vazia revestida de espelhos altos. Refletidos no vidro, vi os olhos de Kiki disparando para cada canto enquanto os de Oona ficavam fixos nas costas do pai. Lester pegou um controle remoto no bolso do paletó e a sala se encheu de luz. Os espelhos ficaram transparentes, revelando prateleiras apinhadas de milhares de delicadas estatuetas de porcelana. Aprisionadas por trás do vidro,

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havia sereias dançando jiga, jovens brincando com lindos gatinhos e lindas moças sussurrando para seus amados.

— A Sala Staffordshire — anunciou Lester Liu com um toque de repulsa na voz. Até meninas de porcelana pareciam lhe dar nos nervos. — O gosto da srta. Varney era bom, mas nem sempre era coerente. Estes serão vendidos em leilão na semana que vem. Espero que paguem por algumas reformas que planejei. Mas livrar-me destes monstrinhos será uma das principais melhorias que posso fazer. — As luzes se reduziram e senti o braço de Lester Liu me puxando para outra porta escura.

— Creio que achará esta sala interessante, srta. Strike. — As luzes se acenderam tão de repente que uma dor aguda atingiu minha cabeça e eu cambaleei nos saltos. Quando parei de piscar, vi-me num quarto mobiliado com antiguidades ostentosas. Ao lado de uma cama de dossel acortinada com tecido ricamente bordado, havia uma escrivaninha marchetada em ouro. Um livro de capa de couro com uma coroa dourada estava aberto junto ao pé de uma chaise longue revestida de seda. No meio do quarto, em um pedestal de mármore quadrado, havia uma caixa simples de ouro. — Este é o quarto de Maria Antonieta — disse Lester Liu. — É quase idêntico ao que ela deixou na noite em que fugiu de uma turba de camponeses brandindo tochas. O governo francês vem tentando recuperar estes objetos há séculos. É claro que ainda não fazem ideia de onde encontrá-los.

— O que tem na caixa? — perguntou Kiki, aproximando-se para olhar. — Não é muito parecida com o resto, não é? — A mão de Kiki segurou a lateral do pedestal e entendi que ela plantava o primeiro grampo.

— Tem um olho excelente — disse Lester Liu com um sorriso sereno. — A caixa é o último acréscimo ao quarto. Contém uma cabeça. Em 1955, um antiquário muito inescrupuloso convenceu a srta. Varney de que a cabeça pertenceu à própria rainha. Os testes de DNA que encomendei foram incapazes de me dizer a cabeça de quem a srta. Varney comprou, mas certamente não era de Maria Antonieta. Mais provavelmente pertenceu a um membro menor da família real francesa. Dado o tamanho incomum do nariz, eu diria... — Ele foi interrompido por um estrondo que veio da Sala Staffordshire. O tronco sem cabeça de uma ordenhadora de porcelana voou pela porta e caiu a meus pés.

— O que foi isso? — eu ofeguei.

— Colocou alguém atrás de nós? — perguntou Kiki. Ela correu até a porta e foi tragada pela escuridão.

— Garanto-lhes que não há ninguém aí, srta. Stike — Lester Liu a chamou desanimado.

— A sala está vazia — anunciou Kiki ao voltar. Seus olhos gélidos se demoraram em Lester Liu. — Devo informá-lo de que nossas amigas sabem que estamos aqui. Se não estivermos em casa

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à meia-noite, a polícia será chamada.

— Era o que eu esperava. — Lester Liu franziu o cenho e afagou minha mão, que ainda estava presa no gancho de seu braço. — Vamos, senhoras. Há muito mais a ver.

***

O pai de Oona nos levou por mais de uma dezena de câmaras escuras, cada uma delas um museu bizarro dedicado a uma das paixões incomuns de Cecelia Varney. Até os corredores eram abarrotados de telas, do chão ao teto. Lester Liu apontou obras de arte que havia muito se acreditavam perdidas, inclusive um retrato de Van Gogh de um homem ruivo e carrancudo, enquanto eu olhava todas as pinturas, procurando por olhos em movimento, certa de estar sendo observada. Fiquei esperando ser atacada a qualquer momento por cobras venenosas, assassinos da Fu-Tsang ou uma combinação letal das duas coisas. Enquanto eu estava de frente para uma caixa de vidro em que o único item em exibição era um enorme diamante verde-amarelo etiquetado de O Florentino, pensei ter detectado alguma coisa arfando atrás de mim. Quando me virei e me vi sozinha na sala, quase torci um tornozelo na pressa para acompanhar os outros.

Passei mancando por ícones russos, porta-balas Pez de astronauta e um urinol de homem com a inscrição R. Mutt, em 1917. Era como se estivéssemos vagando pelo brechó mais caro do mundo e eu podia ver que Oona estava tentada a fazer umas comprinhas. Quando ela se demorou diante de um par de braceletes de platina e esmeralda que pertenceu à duquesa de Windsor, Lester Liu abriu o armário e os ofereceu a ela. Kiki e eu partilhamos um olhar preocupado quando Oona levou tempo demais para recusar.

Chegamos à última sala do tour de Lester Liu e a encontramos vazia, a não ser por um grande caixão de vidro.

— Por fim — disse Lester Liu. — Permitam-me apresentá-las a minha própria Bela Adormecida.

Dentro do caixão estava uma forma feminina magra coberta da cabeça aos pés por uma mortalha de quadrados de jade unidos por um fio de ouro. Kiki se ajoelhou pra examinar a figura; depois seus olhos leitosos dispararam para a cara de Lester Liu.

— É uma múmia chinesa — observou ela. — Quem é?

— Muito astuta, srta. Strike — disse Lester Liu. — Esta é a mais valiosa das posses de Cecelia Varney. A mulher que vê à sua frente é conhecida a China como a Imperatriz Traidora. Tem quase duzentos anos. Ladrões de túmulos saquearam sua tumba na década de 1940 e a srta. Varney comprou o conteúdo em segredo, com a ajuda de um funcionário corrupto do governo. Só algumas pessoas sabem que a Imperatriz saiu da China.

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— Então há um corpo de verdade aqui? — perguntei.

— Certamente. Quando a encontrara, ela estava perfeitamente preservada. Talvez a mais bela múmia já descoberta. Sua pela ainda é macia e há sangue nas veias. Dizem que o estado de seu cabelo é extraordinário. Como um rio de seda preta. Mas depois que a retiraram da tumba, a Imperatriz começou a envelhecer. A srta. Varney não poupou despesas na construção deste caixão hermeticamente fechado. Se um dia ele for aberto, a múmia virará pó rapidamente.

"Soube que a srta. Varney passava muito tempo na companhia da Imperatriz. Parece que ela ficou comovida com sua história.

— Por que a chama de Imperatriz Traidora? — perguntei.

Lester Liu baixou os olhos para a mulher no caixão, a expressão fria.

— Ela traiu a família, srta. Fisher, e não há crime maior para os chineses. Mas ela nasceu bárbara. Sua traição era prevista. — Apoiando-se na bengala, Lester Liu voltou-se para nós três.

"A história é só uma lenda, mas a maioria das lendas começa com um pingo de verdade. Diz-se que muitos séculos atrás, o imperador chinês mandou seu herdeiro para selar a paz com os líderes de tribos que moravam a oeste de suas terras. Lá, o tolo rapaz se apaixonou por uma princesa bárbara. Ela era linda, mas incorrigivelmente selvagem. Não possuía nenhuma das virtudes femininas valorizadas na China, e no entanto ele estava decidido a tomá-la como esposa. Quando o líder das tribos percebeu os sentimentos do jovem por sua filha, ficou satisfeito. Um dia a China teria uma imperatriz com sangue bárbaro.

"O imperador concordou com a união. Era melhor fazer uma aliança de sangue com os bárbaros do que uma guerra interminável. Mas quando ele pôs os olhos na futura esposa do filho, entendeu que ela nunca seria imperatriz. Sua pele era áspera e as mãos tinham calos de segurar as rédeas de um cavalo. Pior ainda, ela era teimosa e insolente e recusava-se a se conformar às regras da corte. Entretanto, o imperador amava o filho e o filho amava a menina. Ele a tolerou até o dia em que ela acrescentou a traição à lista de ofensas. Os guardas dele interceptaram correspondência secreta entre a menina e os parentes. As cartas revelaram uma conspiração para assassinar o imperador e seu herdeiro.

"O imperador não tinha alternativa, a não ser executar a menina. Mas não suportava magoar o filho. A menina foi envenenada, um veneno que a fez cair em sono profundo, e o filho foi informado de que ela morrera de febre. Ela foi enterrada viva na sepultura mais magnífica já construída para uma mulher. Mas as histórias de sua traição eram cochichadas na corte, até que por fim todo o império sabia da terrível verdade.

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"Dizem que enquanto a sepultura era fechada, a criada bárbara da menina lançou uma maldição sobre o imperador e sua corte. Um dia, disse ela, a Imperatriz Traidora acordaria e teria sua vingança.

Por fim Oona falou:

— Não acha que é meio doentio guardar uma coisa assim em sua casa? — Era como se a história tivesse rompido um feitiço. Enquanto os olhos de Lester Liu estavam na filha, vi Kiki colocar furtivamente um grampo do lado de dentro de um candelabro de parede. — Múmias, cabeças decepadas, o que mais tem aqui? Jimmy Hoffa?

— Estou satisfeito em ver que você se recuperou de sua timidez, minha cara. Na realidade, não pretendo ficar com a Imperatriz. Os tesouros de sua sepultura foram doados ao Metropolitan Museum of Art e uma exposição será inaugurada no mês que vem. Será a coleção mais impressionante de artefatos chineses antigos já vista fora da China. No momento, a múmia é frágil demais para ser deslocada, mas será a peça central da exposição.

"É claro que a abertura de gala será espetacular. E nada me agradaria mais do que ter minha única filha a meu lado.

A resposta curta e obscena de Oona foi interrompida por outro estrondo e um gemido fraco. Nós três giramos o corpo, esperando que alguém surgisse da sala escura da qual tínhamos acabado de sair. Oona e eu nos contentamos em olhar o escuro de uma distância segura, mas Kiki de novo decidiu investigar.

Um minuto depois ela voltou com uma expressão confusa.

— Uma das telas caiu da parede.

— Por favor, não se preocupe, srta. Strike - aconselhou-a Lester Liu calmamente, espanando uma poeira invisível no caixão de vidro da imperatriz. — O mordomo verá o que é.

— O que está havendo? — Oona tentou disfarçar o medo, mas os diamantes em seu pulso cintilavam com o tremor das mãos. — Que diabos está tentando aprontar?

O belo pai lhe abriu um sorriso enfurecido.

— Que divertido. Raras vezes se ouve linguagem tão pitoresca saía da boca de uma jovem adorável. É muito parecido com ver uma ópera de macacos. Garanto-lhe que não estou aprontando nada, minha cara.

— Pare de me chamar desse jeito — rosnou Oona. — Eu não sou nada sua.

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O mordomo entrou do outro lado da sala e ficou parado feito uma estátua.

— Ah — disse Lester Liu. — O jantar está servido.

***

A sala de jantar revestida de madeira era pouco iluminada. Uma lareira palpitava na extremidade da sala e um único candelabro brilhava no meio de uma longa mesa de mogno. O mordomo me guiou a uma cadeira que parecia estar a quilômetros de minhas amigas. Do outro lado da sala, a cara de Lester Liu era oculta pelas sombras. De onde estava, eu podia ver pouco, exceto o branco de sua camisa.

Senti o mordomo a meu lado e olhei para cima, vendo que ele mergulhava uma concha numa terrina funda. Os dragões dançantes pintados no fundo da tigela diante de mim foram tragados por um líquido laranja-escuro. Mexi na sopa com a ponta de uma colher de prata e uma fila de espinhas pratas e afiadas veio à superfície. Minha cabeça se levantou de repente de pasmo e Lester Liu riu do outro lado da mesa.

— Não é uma tentativa de assassinado, srta. Fisher — disse ele. — É ouriço-do-mar. Creio que vão achar delicioso.

Eu corei e levei uma colherada do líquido aos lábios. Tinha gosto de poço de maré suja. Pensei ter visto o mordomo sorrir com malícia quando passou a caminho da cozinha com a terrina vazia. Quando a porta da cozinha se fechou, ouvi o som de louça se espatifando, como se ele tivesse atirado o prato na parede. A colher caiu de minha mão e espirrou sopa na frente de meu vestido.

— Ah, meu Deus — Lester Liu suspirou. — Espero que não seja o segundo prato. É uma rara iguaria chinesa... Filhotes de naja em molho apimentado.

— Seu mordomo é sempre tão atrapalhado? — Oona escarneceu dele.

— Esse não foi o mordomo. — Lester Liu parou para tomar sua sopa revoltante. — Foi o meu fantasma.

COMO SABER SE SUA CASA É MAL-ASSOMBRADA

Só porque você não viu um fantasma, não quer dizer que não exista um olhando para você. Segundo os parapsicólogos, nem todos os fantasmas se revelam tão prontamente como um poltergeist. Alguns espíritos simplesmente vagam nas sombras satisfeitos em inspirar arrepios e um calafrio de inquietude em seus companheiros de casa humanos. Outros fazem ruídos estranhos na calada da noite ou mudam objetos de lugar quando ninguém está olhando. Mas

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se você desconfia de que está dividindo a casa com os mortos, existem algumas medidas que você pode tomar para ter certeza.

Capture seu fantasma em filme

Os especialistas concordam que os fantasmas são mais ativos à noite (mas que surpresa). Então, quando sua casa estiver adequadamente escura e sinistra, tire várias fotos dos cômodos que você acha que são mal-assombrados. Quando examinar as fotos, não descarte nenhuma foto ruim. As câmeras podem registrar coisas que o olho humano não detecta, e qualquer caça-fantasma profissional lhe dirá se aqueles estranhos globos cintilantes, as névoas inexplicáveis ou feixes de luz que estragaram as suas fotos podem ser fantasmas.

Registre suas observações

Sempre que você ouvir, vir ou sentir alguma coisa estranha, anote a hora e uma descrição de sua experiência. Isto lhe permitirá situar padrões de seus visitantes e pode ajudá-la a descobrir que o silvo arrepiante que você ouve todo dia às quatro horas é só um som dos irrigadores girando no jardim de seu vizinho.

Consulte uma bússola

Aparentemente, a maioria das bússolas deixa de funcionar na presença de fantasmas. Quando estiver perto de um espírito, a agulha pode ser incapaz de se fixar num ponto. Em vez disso, ela ficará girando pelo mostrador ou simplesmente se recusará a dar uma leitura precisa.

Ative uma câmera de vídeo

Os fantasmas têm uma tendência irritante de evitar qualquer um que esteja procurando por eles. Assim, em vez de ficar sentada a noite toda com sua câmera na mão, ligue uma câmera de vídeo e tenha uma boa noite de sono. Se possível, mude a câmera para o modo infravermelho, que pode capturar registros de calor. De manhã, assista à gravação enquanto come seus cereais e veja do que se tratava todos os barulhos no escuro.

Observe a temperatura

Muitos moradores de casas mal-assombradas relatam flutuações inexplicáveis na temperatura. Um local em sua casa que em geral é um forno pode parecer a Antártida em um dia de inverno. Outro pode ser insuportavelmente quente. Então mantenha uns termômetros de interior em lugares-chave. No mínimo, os estranhos pontos de frio ou calor podem ajudá-la a situar melhor suas câmeras de vídeo.

Monitore quaisquer movimentos

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Você ouve passos misteriosos à noite ou se pergunta por que a porta da geladeira está sempre aberta de manhã? Instale alguns detectores de movimento baratos pela casa. Eles vão alertá-la de qualquer movimento e ajudar a determinar se sua casa é mal-assombrada — ou se sua irmã gosta de assaltar a geladeira à meia-noite.

Invista em um EMF

Muitos caça-fantasmas profissionais voltam-se para um Detector de Campo Eletromagnético (EMF, de Eletromagnetic Field Detectior) para ajudá-los a detectar as fontes incomuns de energia. Leituras ais altas do que o normal podem indicar a presença de um fantasma (ou uma geladeira, então tenha cuidado). Os EMF podem ser comprados por pouco mais de 20 dólares, mas uma bússola (ver item anterior) também pode funcionar muito bem.

CAPÍTULO OITO

O fantasma ansioso

A maioria das pessoas confia na mesma série de perguntas chatas quando quer conhecer alguém melhor: "Você trabalha em quê?", perguntam elas. "Onde você estuda?" "O que você estava fazendo às 9h45 da noite do dia 5 de agosto?" Embora as respostas a estas perguntas possam lançar uma luz sobre a situação financeira, a competência educacional ou as tendências homicidas de uma pessoa, elas não podem realmente lhe dizer o que a faz palpitar. Então, sempre que conheço alguém, prefiro esperar pelo momento certo e perguntar se ele acredita em fantasmas. Admito que é meio estranho, mas esta perguntas simples me poupou horas sem fim de papinhos chatos. Se minha nova conhecida ri de uma ideia tão boba ou sacode a cabeça com condescendência, logo invento uma desculpa para seguir meu caminho. Mas sei que tenho sorte se ela responde com um sonoro "Sim". Não faz diferença se ela é mal-ajambrada, taciturna ou mentalmente atordoada. Qualquer pessoa que acredita em fantasmas tem pelo menos uma história boa para contar.

Naquela noite, olhei Oona Wong do outro lado da mesa e vi que ela acreditava. Ela não riu da afirmação do pai. Como o restante de nós, simplesmente baixou a colher na mesa e se preparou para a história que sabia que viria. Lester Liu empurrou a sopa de lado e inclinou-se para o candelabro. Seu sorriso encantador desaparecera. Ele tinha uma expressão sombria — uma mistura de apreensão, tristeza e medo que somava anos a seu rosto.

— Cecelia Varney não deve gostar de estranhos morando em sua casa — disse Kiki Strike despreocupadamente, como se mansão mal-assombrada não fosse mais incomum do que um hotel barato.

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Lester Liu sacudiu a cabeça lentamente.

— A srta. Varney está descansando em paz. A mansão não veio com fantasma algum. Receio que eu é que seja assombrado. É por isso que convidei vocês para jantar esta noite. Tenho esperanças de que Oona concorde em me ajudar.

A língua de Oona ficou presa, então Kiki falou por ela:

— Por que Oona? Você precisa é de um exorcista.

Lester Liu ignorou seu conselho e se dirigiu à filha.

— Minha cara — disse ele suavemente, como se a preparasse para notícias difíceis. — Nunca ouviu falar de um fantasma ansioso? — Os olhos de Oona se arregalaram, os lábios se separaram e um pequeno arquejo passou entre eles. Ela parecia conhecer a história que Liu estava prestes a contar. Até Kiki ficou temporariamente muda.

— O que é um fantasma ansioso? — perguntei, sem saber se estava preparada para a resposta.

Do outro lado da mesa, os olhos de Lester Liu desapareceram sob o abrigo escuro das sobrancelhas.

— Na China — começou ele —, dizia-se que quando uma pessoa morre com muita raiva, sua alma continua na terra, presa de uma fome de vingança. Quanto mais furiosa a alma, mais poderoso é o fantasma. É claro que o problema pode piorar se o morto não recebeu as coisas de que precisava na outra vida. É sob estas condições que uma alma pode se tornar um fantasma ansioso.

Uma série de estrondos abafados veio de trás da porta da cozinha.

— Eu já vi minha fantasma incontáveis vezes. O resto dela ainda é bonito, mas o resto não passa de ossos, pele e cabelos. Com o passar dos anos seu poder cresceu e agora ela me segue aonde quer que eu vá. É por isso que raras vezes saio desta casa. É por isso que nenhum de meus empregados fica. Vejo que não tenho alternativa a não ser dar à minha fantasma o que ela deseja.

A cara de Oona estava branca de terror, e até Kiki parecia afetada. Eu ainda estava confusa.

— Por que ela tem tanta raiva? O que você fez?

— Eu abandonei a filha dela. Desisti dela porque não era o menino que queria. Não fui bom

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marido nem bom pai, srta. Fisher. Nem fui um bom homem. Mas isso deve mudar. Está na hora de me corrigir com as pessoas que magoei. É isso que a mão de Oona vem tentando me dizer.

O mordomo saiu da cozinha, segurando uma bandeja de prata. Enquanto seguia para Lester Liu, percebi que a parte de trás de sua roupa pingava o limo, como se ele tivesse sido atacado por uma lesma gigante. Ele cochichou suavemente no ouvido do patrão.

— Lamento informar que teremos de pular para o terceiro prato — anunciou Lester Liu. — Não sobrou nada do segundo. É uma pena. É tão difícil trazer filhotes de naja para Nova York. Os americanos têm um paladar muito vulgar e sou obrigado a importá-las diretamente da Tailândia.

O mordomo contornou a mesa, largando dois caranguejos fritos em cada prato. Os meus estava unidos num abraço, como se estivessem se consolando enquanto se preparavam para conhecer seu destino. Assim que o empregado voltou para a cozinha, Oona afastou o prato e encarou o pai. Fiquei satisfeita em ver a raiva em seus olhos.

— Quer que eu o ajude a se livrar de uma fantasma? Por que eu o ajudaria? Enquanto você vivia como um ditador de terceiro mundo, com seus empregados horripilantes e seus filhotes de cobra, eu morava num apartamento em ruínas com quatro mulheres que mal conseguiam me dar de comer. Elas tinham de roubar tecido de sua fábrica para fazer minhas roupas. Dividíamos um banheiro com mais trinta pessoas e vivíamos sem aquecimento no inverno. Tive de aprender inglês sozinha. Só fui a uma escola aos 8 anos. Tudo porque eu era uma menina? — Oona agora gritava, a cara ameaçadora de raiva. — E agora espera que eu lamente por você, seu velho ridículo? Quantas pessoas morreram por sua causa? Quantas pessoas ainda trabalham como escravas nas suas fábricas? É a sua vez de sofrer.

Perguntei-me se Oona não teria ido longe demais. Lester Liu continuou calmo, mas suas narinas estavam infladas e os dentes, trincados. Não plantamos todos os nossos grampos, nem descobrimos nenhuma pista sobre as crianças taiwanesas desaparecidas e, se Lester Liu nos expulsasse daqui, talvez nunca mais tivéssemos outra chance. Eu sabia que a mesma ideia passava pela cabeça de Kiki. Ela pediu licença educadamente e saiu da sala de jantar, presumivelmente indo ao toalete. Isso me deixou sozinha para testemunhar a batalha entre Oona e o pai.

Lester Liu voltou-se para a filha com frieza.

— Na China, uma criança nunca diria coisas assim ao próprio pai. Respeitar os pais é a virtude mais importante.

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— Isso aqui parece a China para você? — perguntou Oona. — Eu nasci aqui. Sou americana. E você é só um criminoso.

— Oona — sussurrei, tentando acalmá-la.

—Está tudo bem, Fisher — disse Lester Liu com um suspiro cansado. — Receio que minha filha tenha falado a verdade. Como sem dúvida está ciente, eu fiz coisas terríveis. Mas não sou o único criminoso em nossa família. — Ele se virou para Oona. — Sei como você paga para viver como vive, minha cara. Sei sobre as falsificações e o salão de manicure. Lamento que tenha sido obrigada a abandonar sua moral. Sua mãe deve estar magoada. Ela era uma mulher simples com fortes princípios. Por isso convidei você aqui. Para perguntar se você, por sua mãe, renunciaria à vida de crimes. Eu mesmo já fiz isso. Desde que você e suas amigas destruíram a Fu-Tsang, venho levando uma vida de um homem de negócios legítimo.

— Homens de negócios legítimos raptam crianças chinesas? — Eu queria dar um chute nela quando ela disse isso. Oona não podia colocar nossos planos em risco só para ter argumentos.

Lester Liu ficou confuso.

— Não tenho palavras, minha cara. Isto não é um romance de Dickens. Que utilidade crianças teriam para mim? Você deve saber que há muitos homens em Chinatown que não tomaram as decisões que eu tomei. O crime não parou quando deixei de cometê-lo.

"Ganhei mais dinheiro do que posso gastar, Oona. As fábricas serão fechadas. As dívidas serão perdoadas. Comprei a Mansão Varney com a intenção de doar a maior parte dos tesouros a museus. O quarto de Maria Antonieta será enviado à França. As telas serão expostas onde outros possam vê-las. Eu me tornarei um dos mais importantes filantropos da cidade. Um homem que é admirado, e não temido. Quero que esteja comigo. Como minha filha, você finalmente receberá a atenção que merece. Os ricos e famosos de Nova York farão fila para conhecê-la.

De repente eu senti uma brisa gelada nos meus ombros. As chamas das velas foram sopradas dos pavios e o fogo na lareira aumentou e desapareceu como se tivesse sido sugado pela chaminé. A sala ficou às escuras e um gemido que não podia ser do vendo quase me fez desmaiar de pavor. Não estávamos sozinhos na sala. Procurei às cegas pela faca que tinha visto ao lado de meu prato. Agarrando-a como uma adaga, esperei que alguma coisa acontecesse. Ouvi passos se aproximando por trás. A mão de repente pegou meu pulso e um sussurro encheu meus ouvidos.

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— Terminei lá em cima. Vá para o primeiro andar.

Um arranhão rápido e uma única chama iluminou uma cara fantasmagórica. Kiki Strike levou o fósforo a uma das velas e a usou para acender as outras.

— Talvez você prefira jantar no escuro, mas eu gosto de ver o que estou comendo — disse ela, sentando-se de frente para o prato intocado.

— Com licença — murmurei, levantando-me da mesa e praticamente correndo porta afora.

***

Fora da sala de jantar, eu estava pegando um frasquinho de cristal do bolso e renovando meu Fille Fiable quando uma grande mão agarrou meu ombro.

— Permita-me acompanhá-la ao toalete — murmurou o mordomo numa voz grave e monótona.

— Obrigada, mas há anos vou ao banheiro sozinha. — Inclinei-me para ele e esperei que o perfume fizesse seus prodígios. — Se puder me apontar para que lado fica...

O mordomo parou no meio da respiração como se seu cérebro estivesse em guerra consigo mesmo.

— É a terceira porta à direita. — Ele apontou um corredor pouco iluminado e voltou à cozinha. Comecei a soltar um suspiro de alívio até que me lembrei de que estava numa mansão estranha com um fantasma à solta.

Mesmo em ambientes sem fantasmas, eu não gosto muito do escuro. Como qualquer pessoa cheia de imaginação, vejo formas nas sombras e figuras agachadas nos cantos. Uma ida ao banheiro no meio da noite me deixará tremendo de pavor, e um corte de energia pode ser praticamente uma ameaça à vida. Então, embora eu estivesse certa de que a fantasma de Lester Liu não hesitaria em me pegar, eu sabia que a veria em toda parte se olhasse. Disparei às cegas pelas seis salas no corredor. Lembrava-me vagamente de uma biblioteca, um estúdio, alguns quartos e um banheiro. Deixei grampos atrás de livros, sob cadeiras e atrás de uma privada. (Não foi uma grande ideia, como percebi depois.) Em dez minutos, eu tinha terminado. Endireitei meu vestido, renovei o Fille Fiable e voltei à sala de jantar. Estava vazia, exceto pelo mordomo que limpava os restos de um pato assado que se espalhara pela sala e gotejava pelas pernas da mesa. Pensei por um momento que o vira sorrir.

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— Suas amigas decidiram ir embora, senhorita. Elas esperam pela senhorita no saguão. — Ele baixou a bandeja de carne mutilada e me levou a Oona e Kiki. O molho espirrara no lindo vestido de Oona e Kiki retirava do cabelo comprido grãos de arroz que grudavam feito piolhos. Lester Liu estava com a estola de Oona na mão e sua expressão era de constrangimento.

— O que houve? — perguntei.

— O mordomo afirma que foi empurrado — disse Kiki. — O quarto prato caiu em cima de Oona.

— Aceitem minhas desculpas, por favor — pediu Lester Liu. — A fantasma em geral reserva seus castigos para mim. Espero que ainda considerem minha oferta.

— Por que não prende a respiração e vê o que acontece? — Oona fechou a carranca enquanto pegava a estola.

— Mais uma coisa antes de partir, por favor? — Lester Liu colocou a mão no braço da filha. — Sua mãe ia querer que você tivesse isso. É a única foto que resta dela. — Ele pegou uma fotografia do bolso interno do paletó. Tive um vislumbre de uma jovem bonita com um vestido antiquado.

Oona arrancou a foto das mãos dele e disparou para a porta.

— Aonde você vai? — eu chamei, correndo para acompanhá-la enquanto ela ia direto para a rua, um braço erguido no ar. Um táxi do outro lado da Quinta Avenida costurou pelo transito e parou na frente dela.

— Preciso ficar sozinha. — Oona abriu a porta do táxi e pulou para dentro.

— Espere... — comecei a dizer, mas Kiki pegou meu braço e eu deixei a porta bater.

— Deixe que ela vá — disse ela, erguendo a mão para chamar um táxi. Ouvimos um assovio agudo do outro lado da rua. Sentado no muro de pedra que cerca o Central Park, estava o garoto selvagem.

— Foi rápido — observou Kaspar enquanto nos aproximávamos. — Aonde Oona foi? Parecia estar com pressa.

— Ela tem um encontro com uma lavagem a seco — eu disse. — Faz muita sujeira quando come.

Kaspar não aceitou a explicação, mas não fingiu acreditar nela.

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— Vocês viram as najas? — perguntou ele.

— Estava no cardápio — disse-lhe Kiki. — Filhotes de naja em molho apimentado. Segundo nosso anfitrião, são uma iguaria na China.

Eu tremi ao pensar nisso.

— Prefiro comer a terra de um canil.

Kaspar não achou engraçado.

— Você disse najas? A maioria das najas está em risco de extinção. Não dá para comprar em lugar nenhum de Nova York. Seu anfitrião disse de onde elas vieram?

— Disse que importa da Tailândia — falou Kiki. — Você deve saber, já que passou um dia e meio vigiando a casa de um dos mais famosos contrabandistas de Nova York. Não há nada que ele queira e não consiga.

— Por que vocês estavam jantando com um contrabandista?

— Ele queria apresentar Oona ao fantasma dele — falei. — E não, eu não estou brincando.

Para um menino com suas próprias histórias doidas para contar, Kaspar pareceu extraordinariamente surpreso.

— Quem vocês são? — perguntou ele. — Vocês tem mapas de lugares estranhos. Contrabandistas convidam vocês para jantar. E nem sei o que pensar do fantasma.

— É uma longa história, para outra ocasião — disse Kiki. — Tenho a sensação de que veremos você mais vezes. Mas agora preciso ir para casa; uma amiga minha está muito doente.

— Lamento saber disso. — Ele realmente parecia lamentar. — Posso lhe pedir um favor antes de ir?

— Claro — disse Kiki.

— Por favor, dê lembranças minhas a Betty — disse Kaspar. — E diga a ela que estou ansioso pelo jantar.

***

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Enquanto nosso táxi disparava para o centro, Kiki e eu ficamos em silêncio. Havia coisas demais para conversar e nenhuma das duas sabia por onde começar.

Por fim, Kiki suspirou.

— Você está fedendo de verdade.

— Exagerei um pouco com o Fille Fiable pouco antes de irmos embora. Esbarrei naquele mordomo horripilante.

— Você não ficou afastada por muito tempo. Todos os seus grampos foram instalados?

— Foram. Não há tantos cômodos para cobrir, com a ala leste bloqueada. Então, acha que existe mesmo um fantasma?

— Não sei. Oona parece convencida disso.

— Eu lamento por ela — eu disse. — A mãe morte que ela jamais conheceu volta do túmulo e espera que Oona vire uma cidadã exemplar.

— Eu não engoli essa parte. Lester Liu está atrás de alguma coisa. Não sei o que é. Queria poder pensar com mais clareza. — Kiki pousou a cabeça na janela do táxi e mergulhou no silêncio.

— Kiki? — perguntei. — Está tudo bem?

— É claro que não está tudo bem. Eu acabei de dizer a você que o pai de Oona parece ter alguma coisa na manga.

— Não foi o que eu quis dizer. Você anda faltando às reuniões ou aparece atrasada. Não é típico de você. Verushka está muito mal? Há alguma coisa que eu deva saber?

Kiki esfregou os olhos, manchando a maquiagem. Respirou fundo e percebi que estava inalando o Fille Fiable.

— Eu cometi um erro idiota — admitiu Kiki. — Verushka pode estar morrendo. E mesmo que não morra, nós duas estamos com muitos problemas.

Fiquei chocada demais para falar. Chocada demais para dizer alguma coisa além de "Posso vê-la?".

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***

Dez minutos depois, eu estava na porta do quarto de Verushka, os pés se recusando a avançar. Se não fosse pelo ritmo lento e estável do motor cardíaco, eu seria a primeira a chamar um agente funerário. Kiki se ajoelhou ao lado da cama, segurando uma das mãos azuladas e sem vida de sua guardiã e roçando o cabelo em seu rosto.

Os olhos de Verushka palpitavam e os lábios se mexeram. Kiki inclinou-se para ouvir.

— Eu não podia guardar um segredo para sempre — respondeu ela com um tremor na voz. — Ananka está preocupada com você. As outras também ficariam, se soubessem a verdade. — Verushka fez um movimento fraco para Kiki se inclinar e ela sussurra em seu ouvido.

— Eu não contaria a ela, a não ser que fosse obrigada a isso, Verushka. Sei que tem razão. Ela precisa saber lidar com o pai dela. Vou cuidar para que ela não se meta em problemas. Mas não será fácil. Agora há um fantasma na história.

Um homem de meia-idade com um jaleco branco passou por mim e se ocupou numa mesa, preparando uma seringa de líquido incolor. Ergueu a seringa para a luz e bateu na ponta para retirar as bolhas de ar. Um jorro de líquido partiu da ponta da agulha.

— O que está dando a ela? — perguntou Kiki enquanto o médico enfiava a agulha no braço esquerdo de Verushka. Os olhos da velha palpitaram e se fecharam.

— Você não entenderia — respondeu o médico.

— Posso entender — insistiu Kiki, levantando-se e fixando os olhos no médico. — Sou nova mas não sou retardada.

— Escute — disse ele, olhando imperiosamente de cima para Kiki. — Tenho mais de dez anos de educação superior. Nem tenho certeza se você viveria tudo isso. Então, por que não para de me atormentar e me deixa fazer o meu trabalho? Você me contratou para salvar esta mulher e não para lhe dar um curso de medicina.

A sobrancelha de Kiki foi ao teto.

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— Continue, faça seu trabalho. Se for benfeito, vou esquecer que esta conversa aconteceu — disse Kiki. — Mas se alguma coisa acontecer com ela, vou considerar você o responsável.

O médico revirou os olhos enquanto Kiki marchava para fora do quarto.

— Que imbecil — declarei quando estávamos a uma distância que ele não poderia ouvir.

— Não contratei o dr. Pritchard por suas boas maneiras ao leito — disse Kiki. — Ele é bom e, pelo preço certo, está disposto a ficar de boca fechada. Infelizmente, estou presa a ele.

— Você não está presa a ele. Vamos chamar uma ambulância e levar Verushka ao hospital.

— Não podemos. Eu a levei três semanas atrás. Esse foi meu grande erro. Os médicos localizaram o problema na bala alojada em sua perna. Estava liberando cianeto no sistema. Acho que minha tia e capanga dela tinham um plano B. Se a bala não matasse Verushka, o veneno acabaria matando.

"Quando os médicos retiraram a bala, pensei que haviam salvado sua vida. Mas depois relataram à polícia o ferimento a bala. Quando peguei uma enfermeira tirando as digitais de Verushka, eu a tirei escondido do hospital. Pensei que ela se recuperaria, mas a melhora deve ter sido temporária. O veneno ainda está em seu sistema. Ele a está matando.

— Se é tão grave, por que se preocupou com digitais? — perguntei.

— Verushka ainda é preocupada pelo assassinato de meus pais — disse Kiki. — E a prova de sua inocência está na Pocróvia. Mesmo que o hospital salvasse sua vida, ela acabaria na cadeia. Eu conheço Verushka. Era o que ela ia querer.

— Acha realmente que o "dr. Encanto" pode salvá-la? — perguntei.

— Deixando as questões pessoais de lado, ele é um dos melhores médicos da cidade. Gastei cada centavo que tínhamos para garantir que ele tivesse tudo de que precisasse. Provavelmente vou ter de fazer outro filme de kung fu para pagar as contas.

— Não vai, não — eu disse a ele. — Nós vamos ajudar. Ainda tenho o dinheiro que ganhei do ouro da Cidade das Sombras. É todo seu.

— Obrigada — disse Kiki, enquanto nossos celulares começavam a bipar. Uma mensagem de texto tinha chegado para cada uma de nós.

"Golden Lotus. Amanhã. Meio-dia. Oona"

— Você tem problemas maiores do que Lester Liu — lembrei a Kiki. — Fique com Verushka até

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que ela esteja melhor. Vou cuidar da reunião amanhã.

***

Voltei me arrastando pela minha janela antes que o relógio batesse meia-noite. Enquanto tirava meu vestido elegante, colei o ouvido à porta de meu quarto. Meus pais ainda estavam acordados. Eu podia ouvir o som fraco de vozes alemãs coléricas e o ratatá de uma metralhadora vindo da sala de estar. Se eles estavam relaxados o bastante para curtir um filme, minhas atividades não deviam ter sido descobertas. Embora eu estivesse exausta, ainda havia uma coisa para fazer antes de me deitar para dormir. Abri a porta e fui na ponta dos pés pelo corredor até o quarto de hóspedes.

Às 11h da manhã seguinte, depois que meu pai saiu para seu estudo de grupo aos sábados, aproximei-me de minha mãe enquanto ela se servia de café. Apesar de eu preferir esperar até que ela tivesse consumido a terceira ou quarta xícara, minha missão não podia ser adiada.

— Preciso ir à biblioteca — informei a ela.

— Claro que precisa. — Para alguém muito nova no sarcasmo, ela estava ficando muito boa nisso.

— Estou falando sério. — Estendi o caderno e lhe mostrei o início do trabalho que a diretora Wickham tinha me dado. — Estou escrevendo um trabalho importante sobre a Ferrovia Subterrânea. Isso pode me livrar de um F no curso do sr. Dedly, mas não temos dois livros de que preciso para terminar.

Minha mãe ficou confusa.

— Nossos livros de história americana do século XIX estão no armário do quarto de hóspedes. Você sabe disso. Se está procurando por alguma coisa que não tenhamos, duvido que vá encontrar na biblioteca.

— Nós tínhamos aqueles livros, mas não estão mais lá. Papai deve ter tirado — retruquei. — Você sabe que ele sempre empresta coisas.

Os hábitos de emprestar de meu pai eram fonte constante de irritação para minha mãe.

— De que livros precisa? — perguntou ela. Estendi uma folha de papel com dois títulos. — Vamos dar uma olhada?

Esperei pacientemente por meia hora enquanto minha mãe procurava no armário do quarto

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de hóspedes. A menos que olhasse debaixo do meu colchão, ela não os encontraria.

— Queria que seu pai não tratasse nossa casa como a Biblioteca Pública de Nova York. — Ela por fim suspirou e olhou o relógio. — Você tem duas horas, Ananka. Se não estiver de volta à uma e meia, vou atrás de você. E é melhor acreditar que faria um escândalo.

***

O salão de manicure Golden Lotus, dez quadras ao norte da biblioteca, estava fechado pela primeira vez em mais de um ano. Uma placa fora colada claramente na porta, e no entanto, quando cheguei, encontrei uma mulher de casaco de mink de óculos de sol espiando pela janela, procurando por sinais de movimento e achando difícil acreditar que podia ter de esperar um dia inteiro para fazer as unhas dos pés.

— Com licença — disse ela no mesmo tom que devia usar quando se dirigia aos empregados dos outros. — Você trabalha aqui? Fala inglês?

Olhei em volta, perguntando-me se ela podia estar falando com alguém atrás de mim. Não havia mais ninguém lá.

— Não — informei a mulher enquanto batia na porta. — Não falo inglês.

— Você... sabe... fazer... unhas? — perguntou ela, enunciando cada palavra como se estivesse falando com uma idiota, e não com uma estrangeira.

— Você... sabe... ler? — perguntei, batendo na placa de Fechado na porta.

A mulher recuou chocada enquanto DeeDee destrancava a porta do salão e me deixava entrar.

— Vá fazer suas próprias unhas — eu disse à mulher antes de bater a porta às minhas costas.

***

No piso da sala da frente do salão, um mosaico retratava um antigo oráculo grego perdido em transe. Estações luxuosas de manicure revestiam as paredes e as cadeiras e mesas eram cobertas de linho branco. Nos fundos do prédio, no final de uma longa fileira de salas de depilação, ficava o escritório de Oona. Uma das portas no corredor estreito estava aberta e tive um vislumbre de Yu dormindo numa mesa.

— Ele trabalhou a manhã toda — explicou DeeDee. — Mas ainda está meio fraco. Oona o fez

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tirar uma soneca.

— Oona colocou Yu para trabalhar? Qual é o problema dela?

— Não, Yu queria fazer alguma coisa boa por Oona. Ele insistiu. Espere até ver o que ele fez.

— Oona contou a você sobre a noite passada?

— Contou — disse DeeDee. — Sinistro, né? Luz está montando o equipamento. Ela tem gravações de todos os grampos. Vamos descobrir o que Lester Liu está aprontando.

Abri a porta do escritório de Oona e fiquei paralisada. Na parede atrás de sua mesa havia a parte superior de um mural que mostrava as seis Irregulares envolvidas numa valente batalha com os ratos das Cidades das Sombras. A imagem era tão realista que podia ser uma foto. Eu até podia distinguir os bigodes de cada um dos ratos.

— Yu pintou isso? — perguntei. — Ele só viu o restante de nós uma vez. Como se lembra tão bem de nossos rostos?

Oona deu de ombros.

— Acho que alguém raptou a criança mais talentosa de Taiwan. Ele também pintou um retrato da sra. Fei, e agora ela é a maior fã dele. É o tempo todo Yu para cá, Yu para lá. É tanta meiguice que me dá vontade de vomitar. E aí, Kiki vem?

— Ela disse que se atualiza com você depois. E então, o que achou da noite passada? Seu pai ainda está do lado errado da lei?

Oona insistiu.

— Confesso que ele me pegou por um tempo, mas quando acordei hoje de manhã, eu sabia que era tudo uma fraude; o fantasma, a múmia, a exposição, tudo. Estou louca para ouvir as gravações dos grampos.

— Oona? — eu disse, meus olhos de repente atraídos para a joia em seu pulso. — Onde conseguiu essas pulseiras? — Ela usava os mesmos braceletes de platina que admirara na casa de Lester Liu.

— Quer dizer estas? — perguntou Oona, tentando deixar a situação mais leve. — Vieram por mensageiro esta manhã. Acho que são a maneira de meu pai se desculpar pela noite passada.

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— Você vai devolvê-las, não vai?

— Quem você acha que é? Minha oficial de condicional? — rebateu Oona. — Ainda nem tive tempo. Além de tudo, quem vai se machucar se eu usar aqui no escritório por um tempinho?

— Você — respondi.

— Tudo bem, gente, está tudo pronto, então adiem a briga. Estamos preparadas para os negócios. — Luz Lopez olhava do corredor, com as mãos enfiadas no fundo dos bolsos do macacão. Sinalizou para que a seguíssemos a uma das salas da depilação, onde o laptop estava aberto na mesa. Betty, agindo como assistente de Luz, passou-nos fones de ouvido sem fio.

— Betty e eu repassamos todas as gravações de ontem à noite — disse Luz. — A maior parte não é nada. Uma pegou a descarga da privada e algumas outras coisas que provavelmente não vão querer ouvir. Mas pegamos uma coisa interessante. Vou tocar primeiro a melhor parte.

Betty virou-se para Oona.

— Isto pode ser difícil para você. Tem certeza de que quer ouvir?

— Seja lá o que for, posso aguentar — Oona garantiu a ela.

Inserimos os fones em nossos ouvidos e mostramos o polegar para Luz. A gravação começou de repente com o som de passos num piso de mármore e o que eu imaginei que fossem cubos de gelo tilintando num copo.

"Obrigado, Sukh." Era a voz exausta de Lester Liu. "É só por esta noite."

"Desculpe pelas perturbações desta noite, senhor", disse o mordomo em sua característica voz monótona.

"A culpa não foi sua. Como posso não ser grato a você? Você foi o único empregado que ficou. Essa lealdade é rara neste mundo."

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"Foi uma honra, senhor."

"É só, Sukh."

"Sim, senhor."

Luz avançou por vários minutos de silêncio. A gravação recomeçou com o som de um copo se espatifando e um grito.

"Para trás!", gritou Lester Liu. "Não chegue mais perto." Ao fundo, eu podia ouvir um arquejo — uma respiração rápida e superficial, como a de um animal hidrofóbico. Era o mesmo som que eu tinha ouvido na mansão.

"Eu tentei!", ele implorava. "Você a assustou, mas eu tentei. Não mereço uma noite de paz?" O arfar se reproduziu e ficou pesado, como se a criatura lutasse para respirar. Um gemido começou suavemente e aumentou a um agudo ensurdecedor.

"Por favor", implorou Lester. "Por favor. Farei o que puder amanhã. Farei de tudo para impedir isto. Tudo! Não! Não!" A última palavra saiu num volume alto e se seguiu pelo baque de um corpo no chão. A gravação parou.

— A maior parte é isso — explicou Luz. — O mordomo voltou e o ajudou no quarto, mas depois não houve mais nada por horas. Posso verificar o que está vindo esta manhã, se estiver interessada.

— Não preciso ouvir mais nada. — A cara de Oona era cinzenta, os olhos hipnotizados pela tela do computador.

— Sabe de uma coisa, Oona — começou Luz. — Nem acredito que estou sugerindo isso. Quer dizer, contraria tudo em que acredito como cientista, mas talvez haja alguém que pode ajudá-la.

— Quem? — perguntou Oona.

— Minha mãe costuma ver esse cara. Ele é médium... Sabe como é, ele diz que pode falar com os mortos. De qualquer forma, minha mãe está convencida de que ele esteve em contato com a irmã dela, que morreu em Cuba há 15 anos. Eu sempre pensei que era uma fraude, mas agora não sei. Pelo menos ela se sente melhor assim. Pode ser que a ajude conversar com ele.

— Ah, tenha dó, Luz — gemi. — Não pode estar falando a sério.

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— Me dá o endereço. — disse Oona.

CAPÍTULO NOVE

O superdotado

Em Manhattan, sempre é possível saber quem é turista pelo ângulo de sua cabeça. Embora a maioria das cidades pertença ao céu, os nova-iorquinos raras vezes olham para cima. Mais provavelmente, olhamos direto para a frente enquanto nos esprememos pelas multidões – ou fixamos os olhos nos pés, desviando-nos de cocôs fumegantes de cachorro e grades traiçoeiras do metrô. A maioria de nós toma como certo o que é familiar, mas numa cidade como Nova York nada é familiar por muito tempo. Aqueles que não se importam em ser confundidos com turistas encontrarão gárgulas olhando de banda para eles de cima, assaltantes andando de mansinho por ressaltos ou lavadores de janelas pendurados por cabos finos de metal. Tudo isso leva a curiosidade a parar e ver o mundo de ma perspectiva diferente.

O endereço que Luz nos deu era de um antigo prédio comercial perto do Madison Square Park. Oona e eu paramos diante dele com a cabeça tombada para trás num ângulo desagradável. O céu nublado escondia o alto da estrutura.

– Tem certeza de que é este? – perguntou Oona. – Eu estava esperando uma coisa mais...

– Misteriosa? – propus, enquanto as nuvens se afinavam e tivemos um vislumbre dos andares superiores. No alto de um prédio que deveria ser comum, ficava uma cobertura projetada para se assemelhar a um antigo templo grego. Um filete de fumaça de uma chaminé próxima ondulou entre as colunas de pedra que sustentavam a estrutura. Pintado no frontão triangular sob o telhado do prédio, um único olho verde fitava Manhattan. – Era isso que tinha em mente? – perguntei.

– Pode apostar – murmurou Oona.

No saguão, demos uma olhada na lista de empresas no prédio. Enfiado entre a Norton Taxidermia sob Encomenda e a Associação de Proctologia e Manhattan estava Oskar Phinuit, Contatos com o Mundo Espiritual.

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– Parece que vamos para a cobertura – Senti uma onda de empolgação na barriga. Oona apenas pareceu nauseada.

***

Um elevador antiquado nos deixou no vigésimo quinto andar. Janelas altas iluminavam uma sala que estava vazia, a não ser por uma única mesa. Atrás dela sentava-se uma idosa usando um paletó de tweed que devia ter sido comprado antes da Segunda Guerra Mundial. As ondas de seu cabelo cor de ébano pareciam duras ao toque e um botão de rosa negra estava enfiado na lapela.

– Compramos duas dúzias de barras de chocolate de seus colegas de escola ontem. – Ela falava na voz entrecortada e concisa de uma estrela de cinema dos anos 40. – Volte amanhã. Pode ser que precisemos de mais.

– Não estamos aqui para vender doces. – Eu estava meio irritada. Em certas épocas do ano, era difícil ir a algum lugar da cidade sem que os adultos esperassem que você forçasse chocolate para eles. – Temos uma hora marcada com o sr. Phinuit.

– Monsieur Phinuit, por favor. E seu nome é...

– A consulta é para minha amiga. O nome dela é Oona Wong.

– Sei. – A mulher olhou por sobre os óculos. – E Oona Wong fala?

– Demais. – Minha piada caiu com um baque. – Ela só está meio nervosa – acrescentei.

– Neste caso, aproxime-se. – A mulher pegou uma prancheta em uma gaveta da mesa.

– Oona gostaria de ter contato...

– Não, não, não! – A mulher sacudiu o dedo para mim. – Não me diga. E pelo amor de Deus, não diga a Monsieur Phinuit. Se a pessoa com quem estiver tentando entrar em contato quiser ter esse contato, Monsieur Phinuit saberá. Agora, há algumas perguntas que devo fazer a vocês. Alguma de vocês duas tende a ter desmaios?

Ambas sacudimos a cabeça.

– Tem algum amigo imaginário ou ouvem vozes na cabeça? Ótimo. Estão tomando algum medicamente ou abusando de substâncias controladas? Ótimo. Visitaram um médium no passado? Não? Muito bem. Já tiveram uma experiência de quase-morte em que viram uma

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forte luz no final de um túnel? Não? Bem, creio que as duas ainda são jovens. Última pergunta. Por acaso trouxeram alguma comida? Não? Excelente. Isso interferiria na capacidade de Monsieur Phinuit se concentrar.

Ela fez algumas anotações na prancheta e a enfiou de volta na gaveta.

– Acompanhem-me, por favor, eu as levarei a Monsieur Phinuit. Lembrem-se, é importante que falem o mínimo possível. Respondam a quaisquer perguntas que ele fizer, mas não deem nenhum informação voluntariamente. – A recepcionista se levantou de sua cadeira e, com um puxão rápido, endireitou a saia longa e apertada. Andou rapidamente pelo piso de madeira em passos incrivelmente minúsculos e parou diante da única porta da sala. – Espero que tenham contato co o outro lado – disse ela.

***

Depois daquela porta havia uma sala maior. Três de suas paredes eram inteiramente de vidro e por um momento tive a sensação de flutuar no espaço. Uma névoa densa e cinzenta se comprimia pelas janelas, espiralando e se agitando. Pareciam restos e figuras formadas nas nuvens, mas se dissolviam antes que meu cérebro pudesse entendê-las. Meus ouvidos detectaram um silvo fraco – o murmúrio deu ma multidão ao longe.

– Bonjour.

Perto da vidraça mais distante, um homem enorme enchia uma cadeira de madeira grande o bastante para servir de banco de parque.

– Por favor, aproxime-se. – Enquanto obedecíamos a seu comando, um raio fraco de luz do sol penetrou brevemente a névoa e o terno preto de Oskar Phinuit brilhou como pele de cobra. Suas mãos delicadas pousavam no alto da barriga espetacular e o anel de esmeralda em seu mindinho esquerdo subia e descia com sua respiração. Seu rosto trazia uma expressão estranhamente saciada, como uma sucuri que engoliu uma ovelha inteira. Perguntei-me se ele havia devorado tudo naquela sala.

– Sentem-se.

Ele sinalizou para duas cadeiras dobráveis de metal diante dele.

– Desculpem-me se acham minha mobília desconfortável. Devo manter meu ambiente desatravancado. Até objetos comuns emitem sinais psíquicos que podem interferir em minha capacidade de canalizar o mundo os mortos.

Kirsten Miller

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Lembrando-nos da advertência da recepcionista, Oona e eu nos sentamos em silêncio. Oskar Phinuit nos examinou com dois olhos verdes que flutuavam como azeitonas num mar de carne pastosa.

– Posso cometer a descortesia de perguntar a sua idade?

– Quatorze. – Eu teria preferido acrescentar alguns anos, mas é melhor se sincera quando se lida com paranormais.

Os olhos de Oskar se abriram e fecharam num único piscar preguiçoso. O resto dele continuou imóvel.

– E gostaria de falar com os mortos?

– Sim.

– Entendo. Isso pode ser difícil. A maioria das crianças não viveu o bastante para forjar muitos contatos no mundo espiritual. Pode ser mais fácil lhes falar de suas vidas passadas. Afinal, não faz tanto tempo assim que as duas desfrutaram de outras existências. Sua amiga, acredito, era uma mulher de status elevado. Vocês podem ter se conhecido.

A última coisa que eu precisava ouvir era que eu tinha sido serviçal de Oona numa encarnação anterior.

– Isso seria fascinante, tenho certeza, mas minha amiga precisa ter contato com alguém.

– Minha secretária lhes falou? Não faz diferença se a jovem está tentando ter contato com os mortos. Devemos ver se eles estão tentando ter contato com ela.

– Ela pensa que já teve contato... do fantasma da pessoa.

– Ah? Ela viu um fantasma, foi? – A boca de Oskar se abriu para murmurar uma risada e eu fiquei nervosa por não ver evidência alguma de dentes. – Deixe-me adivinhar. Não era um espírito muito bem-comportado. Atirava coisas, não era? Fez um pouco de bagunça?

Por fim, Oona falou:

– Como sabe disso?

– Os poltergeists... Os fantasmas ruidosos... Em geral aparecem na presença de meninas de sua idade. Por algum motivo, eles não estão muito interessados em rapazes e adultos. Ninguém sabe por quê. Alguns colegas meus afirmam que os espíritos impertinentes não passam de embustes... Menininhas desagradáveis dando uma lição nos mais velhos. Mas tenho uma

Kirsten Miller

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

opinião diferente. Acredito que a adolescência é uma época de grande poder. Pode ser que os espíritos se congreguem para se banquetear com essa energia. Ou talvez os poltergeists sejam poderes dentro das meninhas que ainda não foram domados.

– Está dizendo que Oona pode estar causando as assombrações?

– Está dentro dos reinos das possibilidades. Mas antes de chegarmos a conclusões demais, vejamos se há mesmo um espírito do outro lado que pode querer falar com a sua amiga. – Os olhos de Oskar rolaram para trás e a cabeça tombou para frente. – A voz de Oskar estava alterada e eu me perguntei se ele tinha dificuldades para respirar. Atrás dele, as nuvens apertavam as vidraças como se estivessem apostando corrida no céu. – Uma linda mulher de origem asiática. Ela morreu há muito anos, mas não encontrou a paz. – Olhei pra Oona, que estava empertigada na cadeira. – Ela insiste que você troque de sabão em pó.

– Tá brincando Sabão em pó?

– Silêncio! – trovejou Oskar. – Os espíritos dizem o que precisam dizer. Humm-humm? Humm-humm; ela quer que você saiba que não está só. Alguém está sempre ouvindo.Oona inclinou-se e cochichou no meu ouvido.

– Acha que este espírito escreve as mensagens dos cartões da Hallmark?

– Oona, cala a boca – murmurei, na esperança de que Oskar não a tivesse ouvido.

– Há mais uma coisa – continuou ele. – Você está diante de uma decisão. Deve escolher o que manter e o que abandonar. Se escolher sensatamente, terá tudo o que sempre desejou.

Oona ficou séria mais uma vez.

– O fantasma pode me falar de meu pai? Ele realmente me quer como filha dele, ou está tentando me atrair para uma armadilha?

Um vinco fundo apareceu na testa gorda de Oskar enquanto ele se concentrava.

– A mensagem não é inteiramente clara – disse ele. – O espírito diz que você não deve procurar as respostas em seu pai. Só as encontrará dentro de si. Chegou a hora de você crescer e cumprir seus deveres. Quando aceita o amor de alguém, você aceita uma grande responsabilidade. Agora o espírito está sumindo. Ela disse o que queria.

– É só isso? – Oona estava incrédula.

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– Espere um momento. Há outro espírito entrando na sala. Uma mulher mais velha de óculos escuros. Creio que pode ser cega. Ela tem um recado para a outra menina na sala.

– É mesmo? – eu soltei. Minha tia-avó Beatrice encontrou seu fim em agosto, logo depois de entrar para o livro dos recordes como a primeira cidadã idosa e deficiente visual a chegar ao cume do monte Everest. Naquele mesmo mês, dois alpinistas deram com seu cadáver sentado ereto na neve, com um sorriso radiante nos lábios congelados.

– Ela diz que você deve fazer seu dever de casa – anunciou Oskar. – Espere um momento, desconfio que ela está brincando. Com os mortos, às vezes é muito difícil saber. Ela quer que você saiba que a resposta a seu dilema está debaixo do tempo. Agora ela também desapareceu. – Os olhos de Oskar rolaram para baixo e ele piscou rapidamente enquanto se adaptava à luz. – Hoje os espíritos estão caprichosos. Às vezes tagaleram por horas sem fim. Em outras ocasiões, são apenas uma ou duas palavras. Ouviram o que precisavam ouvir?

– Talvez. – A voz de Oona não trazia emoção.

– Obrigada por seu tempo – eu disse enquanto Oona disparava pela porta.

***

Assim que chegamos no elevador, Oona agarrou meus pulsos como um náufrago se prendendo a um salva-vidas.

– Temos que ir à Cidades das Sombras – insistiu ela.

– Quer dizer agora? – Seu aperto era forte o bastante para deixar hematomas, mas eu consegui me soltar.

– Preciso saber se meu pai está por trás dos raptos. Temos que levar Kiki e Yu pelos túneis. Talvez ele possa nos levas às outras crianças.

– Oona, Yu ainda está fraco. E Kiki não poderá ir. Eu não devia te contar, mas Verushka pode estar morrendo. Kiki precisa ficar com ela.

As portas do elevador se abriram e eu saí, mas Oona não se mexeu.

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– Verushka está morrendo? – disse ela enquanto as portas do elevador começavam se fechar. Enfiei o braço entre elas e recebi o golpe doloroso antes que voltassem a se abrir.

– A bala na perna dela estava envenenada.

– Temos que levar a sra. Fei à casa delas agora mesmo! Ela sabe como salvá-la.

– Kiki já contratou um médico. Ele tem a personalidade de um monstro-de-gila, mas parece que é bom.

A respiração de Oona começou a ficar entrecortada e seus olhos não paravam.

– Ai, meu Deus! – ela gemeu. – Tudo está desmoronando!

De repente percebi por que Verushka queria manter sua doença em segredo. Eu acabara de empurrar Oona por um precipício.

– Calma – eu a instei, sentindo eu mesma um pouco de pânico. – Ainda há uma chance de Verushka se recuperar. E você ter um colapso nervoso não vai ajudar a ninguém.

– Mas o que eu vou fazer? Não sei se meu pai quer me mimar ou me matar, e agora um médium suíno diz que eu tenho que cumprir meus deveres? E se Lester Liu não foi honesto? E se ele raptou mesmo aquelas crianças? Ainda devo bancar a filha boba dele? Devo alguma coisa a ele só porque somos parentes?

– Tem certeza de que era isso que o espírito tentava dizer? Foi tudo muito confuso, se quer minha opinião.

– O fantasma de minha mãe disse que se eu tomar a decisão certa, terei tudo que desejar. Não acha que isso quer dizer que devo aceitar a oferta de Liu?

Eu esperava que não. De Lester Liu desse a Oona tudo o que ela desejasse, o que isso significaria para as Irregulares?

– Acho que ela disse que você já deve saber o que fazer.

– Bom, eu não sei. Quem sabe... Talvez Oskar Phinuit tenha inventado a história toda. Parte daquela besteirada bolorenta pode ter vindo direto de um biscoito da sorte. E essa coisa de sabão em pó... O que foi aquilo?

– Não sei, Oona, mas acho que você deve dar ouvidos ao que ele disse. O segundo espírito parecia muito a minha tia-avó Beatrice.

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– Ah, tá, e a resposta a todos os seus problemas está debaixo do templo. Não está no corredor de sabão em pó do supermercado, disse eu tenho certeza. Por favor, Ananka. Não podemos dar uma olhada rápida na Cidade das Sombras?

Olhei o relógio do meu celular. Às onze e meia eu disse à minha mãe que voltaria em duas horas, e agora eram quase quatro da tarde.

– Tudo bem, Oona. Vamos voltar ao salão. Se Yu estiver se sentindo bem, vamos levá-los pelos túneis.

– Obrigada. – Oona suspirou de alívio. Eu não conseguia me lembrar se já a ouvira usar essa palavra antes.

***

Betty e DeeDee voaram em nossa direção assim que entramos no Golden Lotus.

– Ainda bem que voltaram! – Betty mal conseguia ficar parada. Andava de um lado para o outro e tinha dificuldades para ficar quieta.

– Onde está Yu? – perguntou Oona, barrando a passagem dela.

– Ele trabalhou demais – explicou DeeDee, enquanto Oona olhava freneticamente as sala de depilação. – Quase desmaio. Luz o levou para casa de táxi.

– Oona, vem cá – chamou Betty. – Aconteceu uma coisa.

Foi quando eu quase me sentei em um esquilo gigante da Malásia que se enroscara em uma das cadeiras de manicure.

– Ele veio pegar você para seu encontro? – brinquei.

– O que essa coisa está fazendo aqui? – disse Oona. – Isto não é um zoológico. Tire o animal de seu namorado de meu salão.

– Ele não é meu namorado. Quer ouvir? Estou tentando te contar uma coisa. O esquilo entrou pela porta enquanto eu ajudava a colocar Yu no táxi. E veio entregar isto.

Betty me passou um pedaço de papel que ainda estava molhado da saliva do esquilo. Nele

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estavam escritas as primeiras frases de uma carta de amor que terminavam abruptamente com uma palavra rabiscada: socorro.

– Acho que Kaspar está com problemas – disse Betty. – O esquilo não foi embora. Tentamos expulsá-lo, mas ele não saiu.

– O cara dos esquilos mora no Central Park. Se ele não soubesse se cuidar, a essa altura estaria enterrado com todos os indigentes na ilha Hart – disse Oona com desprezo. – Provavelmente ele só está tentando chamar sua atenção. Mas isso não importa. Não temos tempo para nos preocupar com ele. Preciso de sua ajuda.

– Oona – falei, usando meu tom mais tranquilizador. – Temos que dar uma olhada nisso agora. Podemos ir à Cidade das Sombras mais tarde. Yu nem está aqui. O que espera que a gente faça?

– Eu espero que vocês corrijam suas prioridades. Quem é mais importante, Ananka? Eu ou um garoto que deixa um bando de esquilos atacar Luz?

– É claro que você é mais importante – DeeDee tentou explicar. – E se está com problemas, vamos largar tudo. Mas se seu problema puder esperar um tempinho, temos de ajudar Kaspar.

A energia de Oona desapareceu num instante.

– Tanto faz. Façam o que quiserem. Para que vocês servem, aliás? Vocês nunca estão por perto quando eu preciso. Kiki nem aparece na metade do tempo, e o resto está mais interessado num garoto que mal conhecem. Então podem ir, saiam de meu salão.

– Está nos expulsando? – murmurou Betty, incrédula. – Não vai nos ajudar a encontrar Kaspar?

– Eu tenho meus próprios problemas – anunciou Oona, indo pra seu escritório. Na parede atrás da mesa, o mural das Irregulares estava quase completo. – Sempre tive de cuidar sozinha de minhas coisas e acho que sempre será assim. – Com essa, Oona bateu a porta. Betty, DeeDee e eu trocamos um olhar incrédulo.

– Mas que ataque de piti impressionante – disse DeeDee.

– Ela só está estressada – respondi. – Ela vai voltar.

– Sempre a otimista. – DeeDee não acreditou nisso nem por um minuto.

***

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Nossa primeira parada foi o Central Park. Não muito longe da mansão de Lester Liu, ouvimos alguém chorar. O barulho parecia emanar de uma azaléia ao lado do MINI Cooper. Espiei entre os galhos e encontrei o amigo de Kaspar, Howard Van Dyke, exprimido no meio oco do arbusto, aninhando uma galinha roliça de penas avermelhadas. Enroscados ao lado dele havia dois esquilos gigantes e um gatinho. As lágrimas de Howard pararam quando ele me viu.

– Você veio me levar? – perguntou ele, enxugando o nariz na manga do casaco.

– Não, Howard. Sou eu, Ananka. Kaspar nos apresentou, lembra?

– Ah, sim! – De repente Howard ficou animado. – Esta é April – disse ele, erguendo a galinha. – É a única amiga que tenho. Eu a salvei de um chef cruel da Tavern on the Green e juramos amizade eterna.

– É um prazer conhecê-la, April – falei, tentando parecer sociável. – Howard, tem visto Kaspar ultimamente?

Howard começou a chorar de novo e a galinha cacarejou quando ele a abraçou no peito.

– Kaspar se foi. Eles o levaram para a gaiola dele.

– Como assim? Você se lembra de quem o levou?

Howard pensou por um momento.

– Eu lembro... Lembro que hoje de manhã estávamos comendo feijão bem ali.

– Tudo bem, é um bom começo. Lembra de mais alguma coisa?

– Lembro de um homem de cabelo brilhante. Ele usava um de meus antigos ternos.

Minha esperança esmaeceu um pouco.

– Como ele conseguiu um de seus ternos antigos?

– Não sei. Mas era um dos ternos que eu usava quando trabalhava em Wall Street.

– Então está dizendo que ele era elegante?

– Lã xadrez príncipe de Gales de três botões.

– O que o homem do terno fez?

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– Ele me bateu com força. Quando acordei, meu amigo Kaspar tinha sumido.

– Tem alguma ideia de por que ele o levou?

– Tenho. Eles querem que Kaspar faça truques como as focas do zoológico.

– Eles? – perguntei. – Quer dizer os pais dele? – Howard assentiu. Olhei para Betty e DeeDee. Tínhamos a informação de que precisávamos.

– Howard? – Betty enfiou a cabeça pelo arbusto. – Está com fome?

– Aquele homem derrubou meu feijão no chão – Howard chorava.

– Vamos ajudar a conseguir alguma coisa para você comer. Pode sair do arbusto por um minuto?

Howard saiu engatinhando, depois se levantou e se espanou. April, a galinha, permaneceu fielmente a seu lado.

– Tome algum dinheiro – disse Betty. – Compre comida e mais tarde eu volto para ver como você está.

Howard olhou para a nota de 20 dólares na mão dele.

– Posso comer um sanduíche de salada de galinha? – perguntou ele, animado.

– Claro – disse Betty. – Só me prometa que não vai dividir com a April.

***

– Aonde vamos? – perguntou DeeDee depois que ele não podia mais ouvir. Eu as levava ao outro lado do parque. Três esquilos pretos e grandes andavam ao nosso lado.

– Acho que precisamos ver uns psicólogos – eu disse.

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– Como é? – exclamou DeeDee, correndo para me alcançar.

– Vamos ver os pais de Kaspar – explicou Betty. – O nome verdadeiro dele é Phineas Parker. A mãe e o pai dele são psicólogos.

– Como sabem disso?

– Fiquei de detenção na escola com uma das pacientes deles – informei a DeeDee. – Ela me falou de Kaspar.

– Acha que os pais dele o raptaram? – perguntou DeeDee.

– Só há um jeito de descobrir. – Apontei para as árvores do alto de um prédio. Torres denteadas de pedra se erguiam pelas bordas como as ameias de um castelo encantado. – O consultório deles fica ali.

Quando chegamos ao Central Park West, os esquilos de Kaspar deram uma olhada no prédio dos Parker e dispararam para as árvores. Por mais frio que o parque ficasse à noite, eles ainda não estavam prontos para partir.

Os drs. Parker e Parker dividiam um espaço no primeiro andar do número 55 do Central Park West. Tocamos a campainha e fomos recebidos por uma jovem usando jeans de grife, moletom de capuz e uma camiseta de Che Guevara. Seus óculos eram constrangedoramente descolados e o cabelo com luzes estava preso num rabo de cavalo. Estava claro que ela era paga para deixar as crianças à vontade, mas não funcionava.

– Oi, gente! – cantarolou ela como se estivesse superfeliz em nos ver. – Meu nome é Shiva. Estão aqui para ver Jane e Artie?

– Quem? – perguntei. Shiva franziu a testa.

– Vocês têm hora marcada? – perguntou ela num tom bem menos simpático.

– Não – respondi. – Estamos procurando os pais de Phineas Parker. Somos amigas dele.

– Esperem. – Shiva nos deu as costas e falou em voz baixa num walkie-talkie. – Artie, tem três meninas aqui que dizem conhecer Phineas... Tudo bem.. Posso levá-las para a sala de espera?... Ah, Artie, você é tão inteligente... Tudo bem... Obrigada, Artie. – O jeito como ela

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dizia Artie me dava náuseas. Eu me perguntei o que Jane pensava disso.

Quando Shiva girou de volta a nós, seu sorriso falto tinha voltado.

– Acompanhem-me, meninas, eu vou lhes mostrar a sala de espera. Jane e Artie agora estão com um cliente, mas vão sair logo.

Ela nos guiou por um corredor que tinha sido pintado num tom de verde para acalmar as crianças. Dezenas de telas estavam nas paredes, cada uma delas a cópia perfeita de uma obra-prima, só que com um ou dois detalhes alterados para divertir. O famoso autorretrato de Rembrandt mostrava o artista com um dedo enfiado no nariz. A Mona Lisa usava um soco inglês. O lábio superior da Moça com brinco de pérola estava curvado num rosnado.

– Chegamos. – Shiva abriu a porta para nós. – Sentem-se. Vai levar alguns minutos. Fiquem à vontade.

Entramos num espaço abarrotado e sem janelas. Cadeiras de madeira de cores primárias se espremiam em volta de três mesinhas. Cada uma das mesas tinham pilhas de livros com títulos como O fardo do gênio, Lágrimas de Einstein, Lidando com a mediocridade e A nascente. Um quadro-negro com uma longa equação matemática de alto e baixo ficava num canto da sala. Dois pezinhos espiavam de baixo.

– Que tipo de psicólogo são os Parker? – perguntou Betty antes de saber que tínhamos companhia.

– São especializados em ajudar crianças dotadas – eu disse. – Tem uma escondida atrás do quadro-negro.

Rolei o quadro de lado, afastando-o da parede, e vi um menino agachado no canto, abraçando um urso de pelúcia e com as pernas dobradas no peito.

– Oi – falei. – Mue nome é Ananka. Por que está escondido?

O menino me fitou com os olhos castanhos grandes que não eram tristes nem assustados. Não disse nada, mas piscou rapidamente por meio minuto.

Tentei de novo.

– Por que não sai daí e se senta com a gente? Não há motivo para ter medo. Todas nós somos legais.

O menino largou o urso fez uma série de sinais com as mãos, rápidos como um raio.

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– Acho que ele é surdo – tentei explicar a DeeDee e Betty.

O menino suspirou de frustação e pegou uma caneta e uma folha de papel no bolso da camisa. Escreveu furiosamente por alguns instantes, depois me entregou um bilhete.

APARENTEMENTE VOCÊS NÃO ENTENDEM CÓDIGO MORSE NEM LIGUAGEM DE SINAIS. NÃO ESTOU ME ESCONDENDO DE VOCÊS, NEM SOU SURDO. ESTOU SENDO VIGIADO. A SALA É EQUIPADA COM DUAS CÂMERAS DE VÍDEO. ESTE É UM EXPERIMENTO SOCIAL. MEUS MÉDICOS QUEREM OBSERVAR MINHAS INTERAÇÕES COM CRIANÇAS NORMAIS. NÃO TENHO NADA CONTRA SUA ESPÉCIE. SIMPLESMENTE NÃO ESTOU COM VONTADE DE SER ESTUDADO HOJE.

GEOFFREY

– Uma linda caligrafia – eu disse delicadamente. – Onde estão as câmeras?

Geoffrey apontou duas pequenas caixas instaladas perto do teto. Pareciam bem inocentes, tirando o grumo de fios que iam da parte de trás das caixas à parede.

– Ei, DeeDee – eu disse, andando para uma das caixas. – Me faz uma escadinha. – DeeDee me lançou um olhar desconfiado mas se curvou com as mãos cruzadas. Quando me ergueu no ar, segurei os frios e os puxei da caixa. – Mais uma – eu disse a ela, indo para o outro canto.

– Eles não vão ficar satisfeitos – alertou Geoffrey de trás do quadro-negro.

– Não ligo se vão ficar satisfeitos – declarei, falando diretamente com a segunda câmera. – Em Nova York, é ilegal gravar pessoas e registrar suas conversas sem a permissão delas. E não me lembro de ser solicitada a assinar nenhum formulário de autorização.

Com essa, puxei os fios da segunda caixa.

– Agora você pode sair – eu disse ao garotinho. – As câmeras estão desligadas.

– Obrigado. – Geoffrey ficou tão aliviado quanto um cachorro que sai para o passeio matinal. – Mas receio que o experimento deles seja inútil, de qualquer forma. Dado seu conhecimento da legislação do estado de Nova York, posso entender que você não deve ser normal. Seu QI deve estar acima da média.

– Não sou um gênio – falei. – Só leio muito.

– E como acha que os gênios viram gênios?

– Os médicos sempre fazem experimentos com você? – perguntou Betty.

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– É Shiva. Ela é a pior. Estou no projeto de formatura dela. A culpa é minha. Eu queria me dar bem com outras pessoas de minha idade, mas meus pais acham que é anormal querer ser normal. Este é o meu castigo. Vou ficar aqui até que possa aceitar que sou diferente.

– Isso é terrível – Betty teve pena dele. – Por que não finge que está curado?Geoffrey suspirou.

– Ninguém precisa me dizer que sou diferente. Sei disso a minha vida toda. Mas me recuso a deixar que Shiva pense que venceu. Se depender de mim, ela nunca vai se formar.

Shiva entrou na sala num rompante e Geoffrey correu de volta a seu esconderijo.

– Essas câmeras eram caras, suas pestinhas!

– Este é o preço por infringir a lei – eu disse. – Quem você pensa que é, Jane Goodall?

– Eu preferia mesmo trabalhar com gorilas. Eles têm maneiras melhores – rosnou Shiva.

– É, e eles não podem se defender sozinhos. Olha, não viemos aqui para participar de seus experimentos doentios. Vamos ver os Parker ou não?

– Tudo bem – grunhiu Shiva com os dentes trincados. – Sigam-me. Eu já acabei com vocês mesmo.

***

Os drs. Parker e Parker dividiam uma sala que parecia uma galeria de arte. As paredes eram pintadas de um branco ofuscante e decoradas com uma série de telas que mostravam animais com caras tristonhas observando de trás das grades.

– Olá – disse um homem com um cavanhaque ruivo aparado rente. Usava o tipo de roupa que pretendia dar a impressão de ter sido vestida às pressas, mas provavelmente fora montada por uma equipe de especialistas e custava mais do que um carro mediano. – Sou o dr. Arthur Parker. Esta é minha mulher, dra. Jane Parker.

A esposa avançou para apertar nossas mãos. Tudo na aparência dela – do suéter acinturado aos óculos coloridos – pretendia transmitir calor e honestidade. Mas alguma coisa em suas maneiras me fez desconfiar de que ela não gostava muito de crianças.

– Shiva nos disse que vocês conhecem Phineas – disse Parker homem. – Importam-se se

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perguntarmos como o conheceram?

– Os esquilos dele atacaram uma de nossas amigas no Morningside Park – respondi.

– Ah. – O dr. Parker franziu o cenho. Andou até o outro lado da mesa e pegou um talão de cheques. – De quanto precisam para cobrir os prejuízos?

– Não viemos atrás de seu dinheiro – disse Betty. – Viemos para saber de Phineas. Estamos preocupadas com ele.

– Por que vocês se preocuparam com ele? – perguntou a mãe de Kaspar, como se fosse a declaração mais ridícula que ela ouvira na vida.

– Alguém o sequestrou no Central Park esta manhã – eu lhes informei. – Imaginamos que vocês tivessem alguma coisa a ver com isso.

– Antes de tudo – disse o pai de Kaspar, como se tentasse falar de forma compreensível com uma cabra obtusa. – Se fôssemos os responsáveis, não seria sequestro. Nós somos os pais dele.

– Falamos com um amigo dele há alguns minutos – disse. – Ele viu Phineas sendo arrastado por um homem com cabelo com gel e um terno elegante. – Uma revelação se seguiu à imagem que lampejou por minha mente, mas não me atrevi a contar.

Os pais de Kaspar trocaram um sorriso secreto.

– Sim, foi assim que ele fugiu de casa. Ele contatou um sem-teto para fazer com que seu desaparecimento parecesse sequestro. Isso foi um mês antes de descobrirmos que ele estava morando no parque. Vejam bem, Phineas é diferente. Ele não é como vocês. Ele é especial.

O pai de Kaspar se intrometeu com um sorriso falso:

– Ora, Jane, tenho certeza de que todas elas são especiais da própria maneira. Só que nosso filho é dotado de uma maneira que vocês não compreenderiam.

– Experimente. – DeeDee estava enjoada de ter sua inteligência questionada.

– Querida... – alertou Arthur Parker.

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– Já que insiste – disse a mãe de Kaspar, como se esperasse que pedíssemos. – Olhem à sua volta. Nosso filho é responsável por todas as telas desta sala. Outras da mesma série foram vendidas em um leilão por mais de 30 mil dólares. Impressionante, não acham? – Todas concordamos. – Muito bem: e se eu lhes dissesse que elas foram pintadas quando ele tinha 5 anos?

Concentrei-me em uma das pinturas. Mostrava um macaco recurvado apaticamente no canto de uma jaula. Os membros estavam flácidos e a cabeça pendia no peito. Do lado de fora da gaiola, havia uma multidão reunida. O braço de um homem parrudo estava recuado como se ele se preparasse para atirar um amendoim para a criaturinha. Era uma obra de arte impressionante para um menino de 5 anos.

– Eu diria que me dá vontade de chorar – disse Betty. Não era preciso muito para fazê-la chorar, mas eu mesma estava me sentindo meio lacrimosa.

A mãe de Kaspar exultou.

– Sim, pode ser doloroso se ver diante de um talento tão superior.

– Nosso filho começou a se mostrar promissor quando engatinhava – disse Arthur Parker. – Tinha pouco mais de 2 anos quando usou os lápis de cor para copiar os desenhos de Picasso que tínhamos nas paredes de nossa casa. Alguns até sugeriram que ele melhorou a obra de Picasso. Depois disso, estudiosos de todo o mundo vieram a Nova York para observá-lo. O maior especialista da Ásia em crianças superdotadas passou mais de seis meses com Phineas, testando os limites de seu talento. Segundo o relatório dele, não há limites.

Foi isso que nos inspirou a deixar nosso emprego na publicidade e ajudar outras crianças como Phineas a realizarem seu potencial – disse Jane Parker. – Não é fácil lidar com gênios. Phineas sempre foi mais sensível do que as outras crianças.– Sim – concordou o marido. – Essas pinturas, por exemplo, foram feitas depois de nossa ida ao zoológico. Enquanto as outras crianças riam e apontavam os animais, Phineas chorava. Ele não suportou ver os animais sendo vistos em suas jaulas.

– Ele sempre adorou animais – disse Jane Parker. – Foi por isso que demos os esquilos a ele. Outras crianças tinham cachorros e gatos. Phineas precisava de algo um pouco mais singular. Mas ele se recusou a manter os animais trancados. Insistiu que eles ficassem soltos. Deviam ver o estrago que um esquilo gigante pode fazer com um cabideiro antigo. – Ela e o marido riram da lembrança.

– A questão é que – disse Arthur Parker – queremos nosso filho de volta. Se ele continuar no

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parque, a perda para a ciência será incalculável. Mas por favor, deixe que nós nos preocupemos com ele. Não procurem por ele. Não quero que se magoem se descobrirem que ele não quer ser encontrado. Ele sempre foi perseguido por garotas. Algumas até eram elas mesmas gênios.

– O que meu marido está dizendo é que se vocês continuarem perseguindo Phineas, jamais traremos nosso filho para casa – disse-nos Jane Parker.

– Vocês dois são loucos, não são? – perguntou DeeDee. Ela estivera fumegando em todo o discurso, e nunca na vida eu a vira com tanta raiva. – Acabamos de dizer a vocês que seu filho corre perigo, e vocês agem como se fôssemos um bando de tietes idiotas?

O pai de Kasper sorriu placidamente.

– Está vendo, Jane, eu sabia que elas não iam entender. Acho que está na hora de voltarmos ao trabalho. Vocês, meninas, podem ir embora.

– Bom, sabe o que vocês podem fazer? – começou DeeDee. Peguei o braço dela e a arrastei para fora do consultório.

– Vocês podem ir... – Betty terminou o pensamento de DeeDee com uma voz calma e clara antes de fechar a porta.

***

– Dá pra acreditar nessa gente? – DeeDee se enfureceu enquanto voltávamos pelo parque. – Não admira que o garoto more no parque! Não admira que ele libere todos os animais!

– Calma, DeeDee – falei.

– Calma? – ela gritou. – Eu estava tentando ajudar o brilhante filho deles, e só o que tive em troca foi um monte de insultos velados.

– Talvez os pais dele tenham razão – murmurou Betty. – Talvez Kaspar esteja nos evitando. E se o Eau Irresistible perdeu o efeito e ele decidiu que não quer mais ter um encontro comigo?

– Howard viu Kaspar ser sequestrado – argumentei.

– Howard é um amor, mas ele anda com uma galinha. Pode não ser a testemunha mais confiável do mundo – disse Betty.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Ele é muito mais confiável do que esses dois birutas. Sugiro que comecemos a pensar no que vamos fazer agora – insistiu DeeDee.

– Pensei numa coisa quando estava descrevendo o cara que levou Kaspar – eu disse. – Cabelo com gel, terno elegante, tendências sádicas. Sabe quem ele parece?

Betty olhou para mim e para DeeDee e sacudiu a cabeça.

– Quem? – perguntou ela.

– Sergei Molotov.

– O capanga de Livia? O cara que atirou em Verushka? Por que ele ia querer sequestrar Kaspar?

– Não sei – admiti. – Mas tenho que conversar com Kiki. Vou à casa dela agora mesmo.

– Vamos todas com você – completou Betty.

– Desculpe – eu disse a ela. – Preciso ir sozinha.

– Por que não podemos ir? – DeeDee exigia saber.

– É um... segredo. – Não tive de olhar para elas para saber como elas se sentiram com a minha resposta.

COMO INVOCAR UM POLTERGEIST

Há alguém na sua família que pode muito bem levar um bom susto? Então, por que não invocar seu próprio poltergeist? Se estiver procurando por uma pegadinha rápida, o clássico truque do walkie-talkie debaixo da cama deve ser adequado a seus propósitos. Mas se uma noite de diversão não bastar para você, aqui estão alguns truques simples que podem convencer seus entes queridos de que eles estão sendo assombrados. Ser um bom fantasma requer tempo, dedicação e sutileza – mas os resultados tendem a ser inestimáveis.

Faça uma descoberta

Plante um objeto antigo e horripilante em algum lugar da sua casa e finja que descobriu. Seu objeto pode ser qualquer coisa – uma foto, um brinquedo estranho, ou uma cara de arrepiar. Se você mora num prédio antigo, pode dizer que encontrou debaixo da tábua do assoalho ou atrás do aquecedor. Se sua casa é nova, alegue que cavou no jardim. Especule sobre quem pode ter sido o dono e o que pode ter acontecido com ele. Depois deixe o assunto de lado por

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pelo menos um dia antes de passar ao truque seguinte.

Use o poder da sugestão

Se você for uma boa atriz, este pode ser seu truque mais eficaz. Numa manhã, pergunte a sua família se eles ouviram os barulhos na noite anterior. Não exagere. Você não precisa convencê-los de nada – só plante a ideia na cabeça deles. Alguns dias depois, você pode perguntar se eles viram alguma coisa estranha no porão ou no sótão. Se lhe pedirem uma descrição, sacuda a cabeça e insista que deve ter sido sua imaginação.

Use o poder da sugestão

Se você for uma boa atriz, este pode ser seu truque mais eficaz. Numa manhã, pergunte a sua família se eles ouviram os barulhos na noite anterior. Não exagere. Você não precisa convencê-los de nada – só plante a ideia na cabeça deles. Alguns dias depois, você pode perguntar se eles viram alguma coisa estranha no porão ou no sótão. Se lhe pedirem uma descrição, sacuda a cabeça e insista que deve ter sido sua imaginação.

Torne o conhecido desconhecido

Nada assusta mais as pessoas do que quando uma coisa conhecida de repente parece desconhecida. Reorganize os armários da cozinha no meio da noite. Use graxa preta de sapato para fazer um X em cada espelho (por menor que seja). Vire fotos e obras de arte pela casa para que elas fiquem de frente para a parede. Compre um vestido ou blusa velha em um brechó e pendure em um dos armários. Deixe pilhas de moedas em lugares insólitos.

Ruídos estranho

Nenhuma assombração estaria completa sem uns ruídos inexplicáveis. Infelizmente, é fácil ser apanhado no ato de produzi-los. Não use os gemidos e grunhidos óbvios. Esconda um gravador pequeno em lugares diferentes da casa e toque uma gravação simples – talvez um riso de criança ou os resmungos de um velho.

Divirta-se um pouco com suas fotos

Retire as fotos da família dos porta-retratos e faça cópias coloridas. (Você também pode escolher uma só pessoa, se preferir.) Pegue as cópias (não os originais!) e esfregue com cuidado na cara das pessoas. Coloque os originais num lugar seguro e suas cópias horripilantes nos porta-retratos.

Mande para eles uma mensagem do alémÀ medida que sua assombração aumentar, você pode querer deixar algumas mensagens para sua família. Use protetor labial incolor para escrever socorro no espelho do banheiro. (Só ficará

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evidente quando o espelho embaçar.) Ou use suco de limão para escrever Fora em uma parede acima do aquecedor. (Isso só funcionará no inverno, quando o calor do radiador por fim deixar marrom a mensagem invisível.)

CAPÍTULOS DEZ

Segredos, mentiras e traições

É um simples fato da natureza humana. Se você tem um segredo a contar, não vai encontrar vivalma que não queira ouvir. Avise à pessoa que vai estragar a vida dela, magoá-la profundamente ou derrubar o governo – ela ainda vai trincar os dentes e insistir que você desabafe. Embora seja um ponto fraco que todos temos em comum, o impulso irresistível de ouvir segredos seria de pouco prejuízo se a maioria de nós não ficasse tão ansiosa para contá-los. Todo dia, segredos aparentemente inofensivos passam por nossos lábios e às vezes só mais tarde percebemos os danos causados por um deles.

O sol começava a se pôr e a estufa que dava para leste estava iluminada e quente como a face do sol. A cara de Kiki estava escondida atrás de um chapéu de aba larga que protegia sua delicada pele enquanto ela regava as orquídeas de Verushka. Olhei-a espanar delicadamente das folhas de uma orquídea-borboleta uma camada de fuligem preta de Manhattan.

– Contei a Oona que Verushka pode estar morrendo. – Era estranhamente agradável confessar. – Ela queria ir à Cidade das Sombras hoje para procurar os amigos de Yu. Tive que explicar por que você não podia ir.

Kiki continuou olhando a orquídea.

– Você tem uma boa enorme, Ananka. Se eu não tivesse respirado tanto Fille Fiable, nunca teria contado a você. Verushka estava preocupada que Oona pudesse descobrir... – Ela parou, como se estivesse criando energia para continuar. – Olha, eu sei que Oona parece durona, mas é tudo atuação. Ela é muito mais frágil do que você pensa. Ela tem que lidar com um fantasma e um pai trapaceiro. A última coisa de que precisava era uma nova preocupação.

A censura de Kiki me afetou.

– Eu sei, desculpe. Cometi um erro. Oona já estava sob pressão. Ouvimos as gravações dos grampos de Luz hoje de manhã, e parece que a fantasma pode ser real. Oona até me arrastou para ver um médium esta tarde. Ele disse que se Oona cumprir seu dever, terá tudo o que desejar. Agora ela está desesperada para descobrir provas de que o pai está mentindo. Acho que é porque está começando a acreditar nele.

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– Você a levou à Cidade das Sombras?

– Não. Aconteceu outra coisa. Eu disse a Oona que ela precisava esperar e ela teve um ataque. Estou preocupada que possa ter pressionado demais.

– O que houve?

– Um dos esquilos de Kaspar entregou um recado a Betty enquanto Oona e eu estávamos na rua 23 falando com os mortos. Ele foi raptado.

Os olhos leitosos de Kiki lampejaram.

– Você foi ver os pais dele?

– Você sabe sobre os pais dele?

– Um garoto que fala como um professor universitário não desaparece sem que alguém perceba. Pesquisei um pouco depois que o conheci. Phineas Parker, né?

– Caraca. Você é boa mesmo.

– Tenho um computador e sei digitar. É só do que preciso. Os pais dele o capturaram?

– Duvido. Eles são completamente malucos. Basicamente nos chamaram de tietes e sugeriram que Kaspar encenou o desaparecimento para se livrar da gente. Mas não acredito nisso. O amigo de Kaspar, Howard, viu o sequestrador. O homem não vai ganhar nenhum prêmio por saúde mental, mas eu juro, Kiki, a pessoa que ele descreveu parecia exatamente Sergei Molotov.

Kiki esmagou uma lagartinha que tinha aparecido em um broto de uma orquídea-fantasma.

– Não é impossível – disse ela por fim. – Tenho o pressentimento de que Livia e Sidonia estão planejando alguma coisa. Elas sabem sobe a bala envenenada. Não me surpreenderia se Molotov estivesse em Nova York para esperar Verushka morrer. Se isso acontecer, vou ficar mais vulnerável do que nunca.

– Mas por que Molotov sequestrou Kaspar? Isso não faz sentido.

– Não sei – admitiu Kiki. – Talvez eu precise ter mais cuidado com quem vejo. Tá legal. Eis o que você deve fazer. – Ela parou e olhou para mim inquisitivamente. – Vai escrever isso? – Eu peguei um caderno na minha bolsa. – No que diz respeito a Kaspar, só o que podemos fazer agora é dar uma olhada nos parques de Manhattan, só para ter certeza de que ele não está nos evitando. E ficar de olho em algum novo esquilo gigante. Quanto a Lester Liu, peça a Luz

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para fazer uma daquelas câmeras de vigilância que parecem pombos e a coloque do outro lado da mansão. Assim podemos rastrear todo mundo que entra e sai. Continue ouvindo as gravações dos grampos e, assim que Yu estiver melhor, leve-o aos túneis. Eu irei com você, se puder. Nesse meio tempo, diga a Oona para ter paciência. Se o pai dela estiver aprontando alguma, vamos acabar descobrindo.

– A paciência não é um dos pontos fortes de Oona – lembrei a Kiki. – Lester Liu é inteligente e descobriu as fraquezas da filha. Estou preocupada que ela vá se deixar iludir.

– Vá conversar com ela – aconselhou Kiki. – Eu procurei deixar claro que estou do lado dela, mas ela precisa saber que todas nós estamos.

***

Meu celular mostrava cinco ligações de casa não atendidas e eu não me dei ao trabalho de ver os recados. As duas horas que eu disse que levaria tinham se transformado em seis, e eu sabia que estava pedindo para ter problemas. Mas eu não podia ir para casa sem falar com Oona. Entrei no metrô para Chinatown e já estava escuro quando saí na Canal Street. Uma fila de patos assados pendurados na janela de um restaurante lembrou a meu estômago que eu não comera nada desde o café da manhã. Parei para olhar desejosa a sopa com bolinhos sendo tomada por um homem com uma verruga na ponta do queixo. Pelo reflexo no vidro, vi um Rolls-Royce prata deslizar atrás de mim. Minha fome desapareceu enquanto eu via o carro entrar na rua de Oona. Quando cheguei ao prédio dela, encontrei o Rolls estacionado na frente. O mordomo de Lester Liu esperava ao volante, fitando a rua em frente. Subindo o alpendre, vi Oona disparando escada abaixo, com a sra. Fei atrás. Mesmo com a porta fechada, eu podia ouvi-las gritando em chinês. Oona irrompeu para fora, quase me derrubando na grade.

– O que está fazendo aqui?

– Fui ver Kiki... – Eu parei, assombrada com o vestido que ela usava. Lembrei-me de admirá-lo na vitrine da Bergdorf Goodman e eu sabia que o preço devia ser astronômico. E quando Oona levantou o braço para coçar a pela vermelha sob a gola, vi os braceletes de platina que Lester Liu dera a ela. – Você ainda está com os braceletes.

– E você com isso? – rosnou Oona. A sra. Fei chegou ao alpendre, sem fôlego por causa da correria pela escada. O cabelo estava solto e caía nas costas como uma cascata prateada. Ela pegou a mão de Oona e pareceu suplicar. – Tenho que ir – disse Oona, libertando-se da avó e correndo para o Rolls-Royce.

– Ir aonde? – perguntei.

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– Tenho que jantar com o meu pai.

– Não pode! – gritei. – É perigoso demais. Pelo menos espere até que uma de nós possa ir com você. Todas nós queremos ajudá-la.

Antes que se enfiasse no carro, Oona se virou para mim.

– Tarde demais. Não preciso mais de ajuda. Já resolvi tudo. – A porta bateu na minha cara.

– Espera! – pedi, mas o carro já arrancava do meio-fio.

– Ela se foi. – Olhei surpresa para a sra. Fei, que descansava em um dos degraus, olhando o Rolls-Royce desaparecer na esquina. – Eu disse a ela para ficar em casa. O pai dela é um homem muito mau. Mas não sou a verdadeira mãe dela. Ela não ia me ouvir.

– Quando foi que aprendeu inglês? – Sentei-me ao lado da sra. Fei no concreto frio.

– Há muito tempo. Aprendi sozinha – disse a sra. Fei. – Assim posso manter Wang longe dos problemas. Ela sempre fala inglês quando não quer que eu entenda.

Eu sorri com a ideia dos truques de Oona se voltando contra ela.

– Seu segredo está seguro comigo, sra. Fei. Mas por que a chama de Wang?

– Wang foi o nome que eu dei quando ela nasceu. – Havia tristeza em sua voz, como se ela falasse de alguém que já morreu. – Ela disse que é nome de camponesa. Não é nome para a filha de um homem rico. Ela sempre quer que tudo seja novo e bonito. Ela não quer morar em Chinatown com uma velha pobre.

– Isso não é verdade – tentei tranquilizá-la. Mas quando ouvi a incerteza em minha voz, pensei que era melhor mudar de assunto. – Como está Yu?

– É um bom menino. Wang está irritada porque eu não o deixei procurar pelas crianças hoje. Mas é minha tarefa fazer com que ele melhore, e não deixar que piore. Eu disse isso a ela, e ela ligou para o sr. Liu. Disse em inglês que acredita que há um fantasma na casa dela.

– Ela fez isso? – Eu mal sufoquei as palavras.

– Wang está com um grande problema – disse a sra. Fei. Só o que pude fazer foi assentir minha concordância.

***

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Na semana seguinte, o outono chegou a Nova York. No pequeno parque na frente do meu prédio, vi as últimas folhas flutuarem para baixo, ficando presas no para-brisa de um carro que passava. Passei horas com o nariz grudado no vidro frio de minha janela, esperando que alguma coisa – qualquer coisa – acontecesse. Desde que voltara da casa de Oona às sete e meia da noite sem uma desculpa razoável para minha ausência de oito horas, fui colocada em prisão domiciliar. Os homicidas condenados tinham mais liberdade que eu.

Não que isso importasse. Não havia nada que eu pudesse fazer. Luz e DeeDee estavam liderando o que restava das Irregulares. Iris, vestida como uma bandeirante que vendia biscoitos ou fantasiada de Halloween, contrabandeava novidades para mim sempre que podia, mas nunca havia muita coisa para contar. Kaspar ainda estava desaparecido e Betty passava cada momento livre procurando pelos parques da ilha e olhando os jornais em busca de sinais de esquilos gigantes. Mas nem os intrépidos repórteres da cidade sabiam o que tinha sido feito de seu justiceiro e os três sócios peludos. As câmeras de pombo de Luz mostravam entregas regulares de animais exóticos mas comestíveis na mansão de Lester Liu, assim como visitas frequentes a Oona, que mal falava com o restante de nós. Mas graças aos grampos na mansão do pai sabíamos como Oona passava a maior parte do tempo. Ela e Lester Liu estavam ocupados preparando a festa de inauguração no Metropolitan Museum of Art. Imensas faixas vermelhas anunciando a exposição em ônibus e cartazes lembravam aos nova-iorquinos que não demoraria muito para A Imperatriz Despertar. Com a pródiga abertura de gala a pouco mais de duas semanas, Lester Liu e sua linda filha se tornaram mais famosos filantropos da cidade.

DeeDee e Luz tentaram ao máximo romper o vínculo de Oona com Lester Liu. Levaram Yu à Cidade das Sombras, mas ele não conseguiu guiá-las até os adolescentes taiwaneses desaparecidos. Elas ligaram para a Sociedade Protetora dos Animais para falar das entregas incomuns de Lester Liu, mas os fiscais ou foram enfeitiçados ou subordinados pelo cavalheiro elegante e saíram sem olhar nenhuma geladeira. Depois destas e de outras decepções, Luz e DeeDee passaram dias de olho grudado nas fitas de vigilância, procurando por algum sinal de atividade ilegal. Só o que testemunharam foi uma lacrimosa sra. Fei sendo rejeitada duas vezes na porta da frente da mansão.

Só Kiki continuava em contato com Oona, que ligava de vez em quando para saber de Verushka. Também não houve progresso algum naquela frente. O médico evitara a deterioração do estado de Verushka, mas sua saúde não melhorara. Em algum lugar na cidade, Sergei Molotov esperava pacientemente que ela expirasse. O que quer que ele e Livia estivessem planejando, ainda era um mistério e eu tinha medo do dia em que finalmente descobríssemos.

Era um domingo frio e úmido de novembro, com duas semanas de minha sentença, quando ouvi um som estranho saindo de uma de minhas gavetas da cômoda. Dentro dela, encontrei um velho GPS vibrando como um feijão-saltador mexicano. Um sensor de movimento tinha

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sido ativado na Cidade das Sombras. Vários segundos depois, chegou uma mensagem de texto ao meu telefone. “Casa de Iris. Já.” Era de Kiki Strike.

Meu coração disparava, mas consegui aparentar calma enquanto negociava uma libertação antecipada com minha mãe. Durante semanas, eu encarnei a filha perfeita. Coloquei a biblioteca de meus pais em ordem sem ser solicitada e limpei o fogão – duas vezes – quando o tédio ficou bem ruim, até terminei o dever de casa e me dediquei ao trabalho que a diretora Wickham havia me passado. Eu esperava ter conquistado boa vontade suficiente para me permitir um passeio sem acompanhante, mas de início meu pedido foi negado. Precisei rastejar um número humilhante de vezes para que finalmente eu tivesse algumas horas de liberdade fora de casa.

***

– Oi, Ananka! – Iris me conduziu para dentro da casa. Usava um jaleco de laboratório mínimo e branco com suas iniciais bordadas em um dos bolsos.

– Está muito profissional hoje, Iris. Qual é a ocasião?

– Acaba de chegar um pacote pelo correio. Tinha três desses jalecos e um kit de química. Acho que tenho um admirador secreto.

Comecei a rir da piada, mas mordi a língua quando me lembrei da bronca que levei da Betty.

– Espero que seja bonito.

– Eu também – disse Iris, sonhadora. – Quanto é que você acha que os entregadores ganham?

– Não faço a menor ideia. Por que quer saber?

Iris corou.

– Deixa pra lá. É melhor descer ao porão. Eu disse à babá que estava com diarreia e ela correu para comprar um remédio. Ela pode voltar a qualquer momento.

Desci a escada e encontrei as Irregulares esperando com impaciência.

– Por que demorou tanto? – perguntou DeeDee.

– Tive de negociar com minha carcereira. Cadê Oona? – As outras meninas trocaram olhares.

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– Como é que eu vou saber? – disse DeeDee. – Ela não retorna meus telefonemas.

– Ela anda ocupada. Gastar do dinheiro do pai é trabalho árduo. – Luz parecia amargurada, e nem Betty se apressou em defesa de Oona.

– Acho que ela não virá – disse Kiki, entregando-me um frasco do perfume repelente de ratos de Iris. – Passe logo. Vamos ter que ir sem ela.

– E você deveria estar aqui? – perguntei, Kiki tinha perdido peso desde que eu a vira. A calça preta parecia três números maior e ficava acima de seus quadris com a ajuda de um cinto apertado. – Não devia estar em casa com Verushka?

– O médico disse que a situação dela é estável. Ficar sentada em casa não vai fazer com que eu me sinta melhor – disse Kiki. – Pelo menos aqui posso fazer bem a alguém.

– Neste caso, vamos andando – disse DeeDee. – A não ser que a gente queira a babá de Iris indo com a gente.

– Sabe aonde vamos? – perguntei.

– Debaixo de Chinatown – respondeu Luz.

***

Dentro da Cidade das Sombras, Luz seguiu na minha frente pelos túneis escuros até o local em que o alarme foi disparado. Assim que estávamos debaixo de Chinatown, começamos a ouvir gritos, guinchos e o que pareciam palavrões nua língua desconhecida. Senti um corpo quente roçar meus tornozelos enquanto um rato disparava por mim para se juntar à turba de feras vorazes que se reunira na frente de um covil de ladrões. Andamos devagar pelos roedores e encontramos uma menina ao alto de uma mesa frágil, segurando uma vela que era pouco mais do que um toco de cera. Os ratos se revezavam para subir pelas pernas da mesa. Cada uma de nós ia para um lado, e a menina chutou um deles para o outro lado da sala. Uma bola de pelo gorduroso passou por minha cabeça enquanto entrávamos na câmara, bateu na parede e depois rapidamente entrou na fila para outra tentativa de ter uma refeição. Uma das Irregulares gritou. Meus olhos seguiram o dedo que Luz apontava. A menina parecia estar apodrecendo. Na pele de seus braços e pernas escorriam umas manchas verdes, salpicada do que parecia ser sangue.

Enquanto o cheiro de nosso perfume enchia suas narinas, os ratos se separavam, saltando de nosso caminho e rosnando para nós das laterais. A menina na mesa ficou paralisada quando viu Kiki. A julgar por sua expressão sobressaltada, ela teria ficado menos surpresa em ver

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Jackie Chan vindo resgatá-la. Enquanto DeeDee borrifava nela o repelente de ratos, a menina tossiu e se debateu, quase derrubando o vidro da mão de DeeDee. Mas quando os ratos se retraíram, ela começou a entender. Deixou que Kiki pegasse um de seus braços e o examinasse sob a lanterna.

– Não toque nela! – gritou Luz. – Pode ser contagioso.

– Relaxe – disse-lhe Kiki. – Ela está coberta de tinta.

– Sim. Tinta – concordou a menina, subindo e descendo a cabeça. As mechas pretas cobriam os olhos e ela as empurrou de volta para dar uma boa olhada em Kiki.

– Você fala inglês? – perguntou Luz.

– Não – respondeu a menina, depois, sentindo nossa decepção: – Pouco.

– Como chegou aqui? – perguntou Kiki. A menina sacudiu a cabeça, confusa. Kiki perguntou novamente em cantonês e depois em mandarim, mas a menina sacudia a cabeça sempre. – Parece que ela só fala hakka – Kiki assentiu. Ela tentou novamente. – Escada?

– Sim. Escada. – A menina apontou uma escada em um canto da sala que levava a uma saída da Cidade das Sombras.

– Vem, Ananka – disse Kiki. – Vamos ver o que tem ali.

– Por que eu? – Por algum motivo, eu sempre ficava com as tarefas perigosas.

– É para seu próprio bem. Você ficou engaiolada por tempo demais. Se não tiver um surto de adrenalina logo, vai ficar molenga.

Vinte metros acima do covil dos ladrões na Cidade das Sombras, abrimos um alçapão e nos içamos para um espaço que parecia um calabouço. Uma farpa da tábua áspera do piso entrou na palma da minha mão e eu cambaleei numa parede de pedras irregulares. Depois de duas semanas de prisão domiciliar, eu já estava sem prática. Kiki colocou a orelha na única porta da sala.

– Está ouvindo alguma coisa? – sussurrei.

– Só o silêncio. Acho que estamos sozinhas.

Depois do calabouço ficava um labirinto de cubículos mal construídos. Nós nos esgueiramos pelos corredores, espiando as baias apertadas que recentemente abrigaram seres humanos. Cada uma delas estava vazia, a não ser por um colchão de solteiro, e o piso de concreto estava

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salpicado de tinta. Pegadas multicores seguiam em circulo e encontramos uma palma vermelha e pequena numa das paredes de compensado.

– Parece que chagamos tarde demais – disse Kiki. – As crianças foram levadas.

– O que acha que estavam fazendo aqui?

– Pelas provas, eu diria que estavam pintando.

– Sua capacidade de dedução me assombra – brinquei. – Alguma ideia do que estavam pitando?

– Bom, os borrifos parecem se concentrar num canto de cada cubículo. Elas deviam estar trabalhando em cavaletes. – Kiki se ajoelhou para examinar uma única mancha de tinta azul no chão. – Ultramarino. É um pigmento feito de lápis-lazúli esmagado, e não é barato. As crianças não estavam pintando só para passar o tempo. Precisamos subir para ver o que tem lá.

Uma escada raquítica levava ao térreo. Quando chegamos ao patamar, vimos o sol atravessando buracos imensos no teto. O prédio não passava de uma concha vazia. O piso e as janelas tinham sido arrancados e só quatro paredes de tijolos esfarelados mantinham a estrutura de pé. Pombos arrulhavam de uma centena de frestas e cantos. Suas penas e fezes transformaram o chão em arte moderna. Kiki tentou a porta da frente da estrutura, jogando o ombro contra a madeira quando ela se recusou a abrir. Um homem que passavam ficou assustado com o barulho e o balde que carregava escorregou de seus dedos. Um mar cinza e fedorento de pepinos se espalhou pela calçada. Vi a fita de isolamento diante de mim. Estávamos na rua da casa de Oona.

– Coincidência? – perguntei a Kiki, sabendo qual seria sua resposta.

– Isso não existe. Vamos levar a menina. Como já estamos aqui, podemos muito bem pedir a Oona para traduzir.

***

A segurança muito bem-vestida de Oona disparou alpendre abaixo sem olhar duas vezes um bandidinho em miniatura pichar sua marca na lateral do prédio. Ela carregava uma mala volumosa e não estava sorrindo.

– Oona está em casa? – Kiki repetiu a pergunta em mandarim quando a mulher a ignorou.

– Não – respondeu a mulher rudemente em inglês. – Foi almoçar com o pai.

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– Ela está no almoço? – O sangue de DeeDee ferveu.

– Podemos esperar por ela lá em cima? –perguntei.

– Faça o que quiserem. Não trabalho mais aqui. – A mulher passou esbarrando por nós e desapareceu na rua.

– Por que Oona demitiu a segurança? – perguntou-se Betty.

– Por que você acha? – Luz se irritou.

Olhando o segundo andar, vi a sra. Fei observando de uma janela. Acenei e ela desceu para nos receber. Mal tínhamos passado do saguão quando a sra. Fei pegou a menina que encontramos nos túneis e arranhou a tinta em seus braços. Em seguida pegou a paciente pelo queixo e examinou sua língua e os globos oculares. Depois de estar satisfeita, a sra. Fei nos levou para o segundo andar e arrastou a menina para o banheiro, onde ouvimos água correr na banheira. Quando voltou, a sra. Fei falou com Kiki em mandarim.

– A menina é saudável – traduziu Kiki. – Só está suja. A sra. Fei pergunta se queremos um chá enquanto esperamos por Oona.

Oona irrompeu porta adentro.

– A espera acabou. – Ela vestia um casaco curto de zibelina por cima de uma blusa grafite. O cabelo preto e comprido estava torcido num coque e preso com uma fivela incrustada de diamantes. Na base do pescoço, a pele estava vermelha e cheia de perebinhas minúsculas. – Há quanto tempo. Não sabia que vocês ainda me queriam no seu clubinho.

– O que há de errado com você? – perguntou Luz. – O alarme na Cidade das Sombras tocou há duas horas. Devia ter ido com a gente.

– Tocou, é? – Oona parecia genuinamente surpresa. – O que houve? Por que ninguém me ligou?

– Nós ligamos para você – disse-lhe DeeDee. – Você não se deu ao trabalho de atender.

Oona não estava com humor para levar bronca.

– O que é isso, uma espécie de intervenção? Tive de ir almoçar e o restaurante estava barulhento. Não devo ter ouvido o telefone tocar.

– Ou talvez só não quisesse interromper sua tarde com o papai – eu disse. – Vocês dois passam muito tempo juntos, não é?

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Oona colocou a mão sob o casaco e coçou furiosamente o pescoço.

– E eu tenho escolha? Enquanto vocês ficaram andando por aí procurando o garoto dos esquilos, eu tive de fazer meu próprio trabalho de detetive.

– Trabalho de detetive? – Luz bufou.

– Nunca vi uma detetive usar zibelina – murmurou Betty delicadamente. Foi um golpe forte, e Oona ficou pasma.

– Bom, acho que todas vocês já deixaram claro como se sentem.

– O que a gente devia pensar? – DeeDee disse categoricamente. – Você não atende nossos telefonemas, passa o tempo todo fazendo compras e indo almoçar com um homem que pode querer nos matar. Até demitiu sua segurança. O que foi, aliás? Não precisa mais de proteção?

– Para sua informação, eu a despedi porque ela tem a mão leve. Encontrei um de meus melhores anéis enfiado no colchão dela. Kiki, quanto mais dessa porcaria eu vou ter que aturar?

Kiki ficou em silêncio por um momento.

– Você não está entendendo, Oona – disse ela por fim. – O que quer que esteja tentando fazer, tem que nos deixar ajudar. Está acontecendo alguma coisa grande. Pense nisso. Seu pai aparece depois desse tempo todo; depois Kaspar some e Sergei Molotov é visto na cidade. Sei que agora tudo isso parece acidental... Mas pode haver uma ligação.

"E não é só isso. Acabamos de encontrar uma menina taiwanesa na Cidade das Sombras. Ela nos levou ao porão onde ela e as outras crianças foram trancafiadas. Adivinha onde fica?

– Onde?

– No prédio abandonado na frente da sua casa.

– É mesmo? – De algum modo, Oona não pareceu chocada. Ela parecia feliz.

– E você disse que não viu nada? – DeeDee não conseguia esconder seu ceticismo.

– Vi uns operários entrando e saindo o tempo todo.

– Percebeu alguma coisa estranha hoje? – perguntou Kiki.

Kirsten Miller

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Eu pude ver uma chama de lembranças passar pela mente de Oona.

– Eles me acordaram de manhã. Arrastando um monte de caixas de madeira do prédio. Não devia passar de oito horas.

– Deve ter sido quando eles transferiram as crianças para outro lugar – eu disse.

– O que a menina falou? – perguntou Oona. – Ela sabe quem a sequestrou?

– Ela não fala bem inglês – disse Kiki. – Por isso estamos aqui. Precisamos que você traduza.

Oona fechou a cara.

– Claro. Eu devia saber que era por isso que estavam aqui.

De repente ouvimos dois gritos de alegria no corredor e encontramos Yu e a menina taiwanesa abraçados.

– Parece que eles estão felizes por se verem – observou Luz.

– É assim que os amigos ficam – rebateu Oona. Ela escutou a conversa por um momento. – O nome dela é Siu Fah. Ela e Yu eram colegas de escola.

A menina nos viu olhando e apontou para Kiki. Yu olhou Kiki de cima a baixo e os dois riram.

– O que eles disseram agora? – perguntei.

– Estão falando que Kiki parece a estrela de um famoso filme de kung fu chamado A linda diabinha. – Oona não conseguiu reprimir um sorriso.

– Diga a eles que é só coincidência – disse Kiki. – Depois pergunte a Siu Fah como foi que ela fugiu.

Oona interrogou a menina.

– Ela falou que os sequestradores disseram a ela que Yu tinha morrido, mas ela não acreditou. Ela sabia que ele tinha encontrado uma saída, então escapulia de fininho do quarto onde estava presa. Procurava sempre que podia, mas levou mais de uma semana para achar o alçapão.

– Como eram os sequestradores?

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

Esperamos impacientes pela tradução de Oona.

– Eram principalmente chineses. Ela disse que só viu o chefe deles uma vez. – Oona hesitou e olhou o restante de nós.

– Vai. Pergunte a ela – exigiu Luz.

Siu Fah falou por dois minutos inteiros antes de Oona traduzir.

– Ela disse que era um homem claro de cabelo preto. Sempre estava de terno. Ela acha que ele falava russo com alguns dos homens. – Eu não sabia, por sua expressão, se Oona estava aliviada ou decepcionada.

– Molotov – cuspiu Kiki.

– O que eles estavam pintando? – Eu queria saber.

– Pintando? – Oona repetiu pensativamente antes de fazer a pergunta a Siu Fah. – Ela disse que não sabe o que as outras crianças pintavam. Nunca teve permissão para ver. Mas mandaram que ela copiasse uma obra que ela nunca viu na vida. Era uma pintura de uma mulher gorda olhando um espelho que era segurado por um menino. Ela terminou há alguns dias e eles a tiraram dela. Ela acha que foi vendida.

A testa de Kiki se franziu.

– Parece tela de Peter Paul Rubens. A toalete de Vênus. Acho que estavam copiando obras de arte famosas.

– Pergunte a ela se tem alguma ideia de para onde levaram as outras crianças – disse DeeDee.

A voz de Siu Fah ficou triste.

– Ela não sabe. Estava tentando salvá-los, mas não conseguiu – disse Oona.

Senti um puxão nas costas de meu casaco. A sra. Fei acenava para mim da cozinha. Esperei até que ninguém estivesse olhando e saí de fininho.

– O prédio de que vocês falaram. Pertence a Lester Liu – cochichou a sra. Fei.

– Como sabe disso, sra. Fei?

– Nós moramos lá quando Wang era bebê.

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– Ela se lembra? – perguntei.

– Não sei – disse a sra. Fei.

– Cadê Ananka? – Ouvi Betty perguntar no corredor. A sra. Fei pôs um dedo nos lábios.

– Só vim pegar um copo de água – falei em voz alta.

***

Nós cinco saímos do apartamento de Oona e tomamos a calçada. A algumas quadras de distância, paramos para uma consulta rápida.

– Acho que não conseguimos muita coisa sobre Lester Liu – disse Luz.

Tive de contar a elas.

– Ele é dono do prédio abandonado. Não me perguntem como sei disso. Simplesmente sei.

– Era só o que faltava... Mais segredos – DeeDee fungou.

– Mas Siu Fah descreveu Sergei Molotov – disse Betty.

– Mas nós temos certeza disso? – perguntou DeeDee solenemente. – O quanto sabemos que nossa tradutora é confiável?

– Acha que Oona estava mentindo? – A possibilidade não tinha me ocorrido e eu me xinguei por ser tão crédula.

– Só estou dizendo que nenhuma de nós fala hakka – disse DeeDee. – Não temos ideia do que a menina realmente disse. Ela pode ter descrito Lester Liu de cabo a rabo e não íamos saber a diferença.

– Oona definitivamente está aprontando alguma – insistiu Luz.

– Aquela pele que ela usava custa uma fortuna – acrescentou Betty.

– Acha que Yu e Siu Fah estão seguros com ela? – perguntou DeeDee.

– Calem a boca! Todas vocês. – Já fazia algum tempo que eu não via Kiki perder a calma e tinha me esquecido de como podia ser apavorante. Seus olhos eram de lobo e o cabelo estava

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desgrenhado. Veias azuis incharam sob a pele da testa. – É assim que vocês falam das amigas? Nenhuma de vocês tem ideia de como isto tem sido difícil para Oona. Alguma de vocês sabe o que é ser criada sem família? É claro que não sabem. Talvez Oona esteja mesmo tentada. Talvez ela queira ter um pai, como todo mundo. No que me diz respeito, só há uma coisa que importa. Agora mesmo não temos nenhuma mísera prova de que ela está fazendo alguma coisa errada. E daí que ela seja filha de Lester Liu? Eu sabia disso quando a convidei a se juntar às Irregulares, e nos últimos dois anos ela não fez nada que me fizesse questionar sua lealdade.

– Só estava tentando ser lógica – DeeDee se defendeu.

– Isto é a vida. Não é ciência experimental. As pessoas nem sempre agem com lógica.

– Elas também não costumam mudar – disse DeeDee. – Não se esqueça... Oona passou muito tempo do lado errado da lei.

– Ela tem razão – acrescentei delicadamente.

Kiki nos encarou com nojo. Depois girou o corpo e marchou para a Canal Street, deixando-nos chocadas na esquina.

– Alguém aqui é meio sensível – disse Luz.

– Kiki também não tem pais – observou DeeDee. – Ela acha que sabe como Oona se sente. Não consegue ver o que realmente está acontecendo.

***

Naquela noite, recebi dois e-mails urgentes. Os dois eram endereçados a quatros das Irregulares. Os nomes de Oona e Kiki não estavam na lista. A primeira mensagem vinha de Betty e continha um link para o site do New York Society Journal. Ali encontrei três fotos tiradas em uma festa elegante na noite do sábado anterior. Mostravam Lester Liu de braços dados com Oona. Ambos sorriam para as câmeras. A legenda abaixo das fotos dizia O filantropo Lester Liu e sua filha estonteante.

Luz mandou o segundo e-mail. De acordo com seu equipamento de vigilância, exatamente às oito da noite todos os grampos na mansão de Lester Liu pararam de funcionar. Quinze minutos depois, as câmeras de pombo escureceram.

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CAPÍTULO ONZE

Assassina à solta

Às sete horas da manhã seguinte, o cheiro acre de café fervendo vagou para meu quarto. Vesti meu roupão e fui na ponta dos pés até a cozinha para investigar, esperando encontrar um ladrão morto de cansaço ou uma princesa anã. Em vez disso, descobri minha mãe sentada à mesa, bebendo de uma xícara da PBS. Ela não disse nada quando dei um "bom dia" rouco, mas continuou a ler um exemplar do New York Daily News que estava aberto diante dela. Mesmo com o jornal de cabeça para baixo, não tive dificuldades para identificar a mulher cuja foto agraciava a página 2. Era Livia Galatzina, a rainha exilada da Pocróvia e tia de Kiki Strike.

A adrenalina bombeou por meu corpo. Minhas mãos tremeram enquanto eu servia café na última louça limpa da casa e me sentava à mesa. Minha mãe empurrou o jornal para mim e se levantou para encher a xícara. A manchete dizia Assassina à solta em Manhattan.

AS AUTORIDADES CONFIRMARAM que foi vista recentemente em Nova York uma mulher procurada por ligações com o assassinato da princesa Sophia, herdeira do trono da Pocróvia, ocorrido há 14 anos. No início de novembro, uma mulher de 60 ano deu entrada no hospital St. Vincent, onde foi tratada de uma feri infectada de bala. Obedecendo à lei da cidade de Nova York, as enfermeiras tiraram as impressões digitais da paciente e relataram o incidente à polícia. Mais tarde as digitais foram identificadas e pertenciam a Verushka Kozlova, ex-integrante da Guarda Real da Pocróvia que supostamente envenenou a família real do país há mais de uma década, antes de desaparecer sem deixar rastros.

De acordo com a polícia, a srta. Kozlova desapareceu do St. Vincent antes que sua prisão fosse decretada. Testemunhas afirmam que ela estava em companhia de uma menina baixa e incomumente pálida que deu o nome de Trixie Drew. Alguns sugeriram que a adolescente tinha uma forte semelhança com a agora lendária Kiki Strike. Infelizmente, as câmeras de segurança do hospital não mostram sinais da companheira de Kozlova, e uma enfermeira que fotografou a menina com um celular descobriu mais tarde que a imagem tinha sido misteriosamente apagada.

Enquanto a identidade da adolescente continua desconhecida, sugeriu-se uma possibilidade extraordinária. Procurada em São Petersburgo para fazer seus comentários, a rainha exilada da Pocróvia alegrou-se com as notícias de que a assassina de sua irmã finalmente aparecera. A rainha Livia também especulou que a companheira da srta. Kozlova podia ser sua sobrinha, Katarina, filha única de Sophia. Embora há muito se pensasse que a criança fora assassina junto com os pais, a rainha Livia agora admite que a princesa Katarina desapareceu no dia do assassinato. "Se minha amada sobrinha ainda estiver viva insisto que ela volta para sua família. Vou tratá-la como minha própria filha e garantir que seja reconhecida como herdeira de

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direito ao trono da Pocróvia."

A rainha Livia oferece uma recompensa de 100 mil dólares por qualquer informação que leve à captura de Verushka Kozlova.

Na outra página, localizei um curto artigo sobe o desaparecimento misterioso dos esquilos gigantes de Nova York, mas não havia tempo de ler. Vi minha mãe me encarando e soube que minhas habilidades de atuação determinariam meu destino. Tentei parecer entediada enquanto atirava o jornal pela mesa.

– Então agora cada menina pálida de Nova York é Kiki Strike? Isso é birutice, mãe. Tenho que me arrumar para a escola.

– Então não se importaria se eu telefonasse para a diretora Wickham e verificasse se você foi à escola? – perguntou minha mãe. Eu estava pronta para meu close-up.

– Fique à vontade. – Eu bufei com sarcasmo. Tomei o último gole do meu café e fui para o banheiro.

***

É claro que eu não pretendi ir à escola. Abri a torneira da banheira e tentei ligar para Kiki, mas só consegui sua voz na secretária eletrônica. Tomei banho em tempo recorde e assim que estava a uma distância razoável de minha casa, comprei todos os jornais de Nova York e chamei um táxi. Toquei a campainha de Kiki e ela atendeu de pronto. Pela primeira vez, desde que a conhecia, eu vi o medo de verdade em seu rosto.

– Pensei que fosse o dr. Pritchard – disse ela. – Ele devia ter chegado há séculos. Verushka teve uma manhã difícil.

– Não soube? – Senti a primeira onda de pânico e meu coração bateu nos ouvidos. Kiki lia os jornais religiosamente e eu esperava que ela estivesse preparada com um plano. Meu celular tocou. O número de Betty piscou no identificador de chamadas. – Ligo para você daqui a um minuto – eu disse a ela. Assim que desliguei, o número de Luz apareceu no visor.

– Soube do quê? – perguntou Kiki. Passei a ela o exemplar do Daily News. Seus olhos voaram pela página. – De onde essa bruxa velha tirou 100 mil dólares? – ela zombou. – Ligue para as Irregulares e diga para virem aqui. Precisamos limpar o lugar. Diga a elas para deixarem as armas. Peguem só os pertences pessoais. Vou cuidar de Verushka.

– E o médico? – perguntei. – Como ele vai saber onde nos encontrar?

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– O médico é um rato – gritou Kiki enquanto disparava para o quarto. – Aposto que já gastou a recompensa de Livia.

– O que vai fazer com Verushka? – gritei, embora já soubesse que só havia uma alternativa. Mas se Lester Liu e Sergei Molotov tinham alguma ligação, não parecia sensato levar Verushka para a casa de Oona. – Kiki, você realmente quer... – Eu comecei a dizer.

Kiki disparou para a sala como um pistoleiro entrando num saloon.

– Pensei que tivesse deixado claro na noite passada, Ananka. O que quer que esteja pensando agora, deve guardar para si mesma.

***

Luz, DeeDee e Betty chegaram enquanto empurrávamos a cadeira de rodas de Verushka para fora do quarto. Elas assumiram seu trabalho como profissionais, movendo-se com eficácia e falando pouco. Não era a discussão da noite anterior que estava em sua mente. Por trás das expressões vagas, eu podia ver que elas estavam magoadas. Elas limpavam as consequências de um segredo que ninguém lhes contara. Luz e DeeDee colocavam em silêncio roupas e papéis em sacos de lixo. Betty pegou duas perucas na bolsa imensa, junto com um avental de enfermeira, óculos e um nariz falso. Em menos de um minuto, transformou Kiki e Verushka em uma africada idosa e sua enfermeira particular. Com Verushka murmurando incoerentemente, não podíamos nos arriscar a um transporte público, então Kiki e eu a enrolamos em mantas e disparamos o quilômetro e meio até Chinatown. Não muito longe do Fat Frankie's, vi dois policiais olhando do outro lado da rua. Se o dr. Pritchard tinha ido até as autoridades, a polícia de Nova York estaria procurando por uma idosa com pele azulada. Mesmo com a maquiagem, a aparência de Verushka continuava muito estranha. Enquanto os policiais atravessavam a rua para averiguar, borrifei em nós três uma névoa de Fille Fiable. Nunca vou saber se o que nos salvou foram os disfarces, o perfume ou o fedor de suor, mas a polícia nos deixou seguir sem nos incomodar.

***

Quando chegamos ao prédio de Oona, Kiki e eu levamos o corpo flácido de Verushka pela escada até o segundo andar. Kiki avisara por telefone e as quatro avós estavam prontas para entrar em ação. Transformaram a sala de jantar em um hospital improvisado e nos ajudaram gentilmente a depositar Verushka numa cama. Depois a sra. Fei começou a ladrar ordens e as mulheres mais novas se espalharam em três direções.

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– Ela é a sua mãe? – perguntou a sra. Fei enquanto verificava o pulso de Verushka.

– Bem que podia ser. – Kiki não pareceu surpresa ao ouvir a avó de Oona falando em inglês. – Ela cuida de mim desde que eu era bebê.

A expressão da sra. Fei rapidamente endureceu.

– Se você se importasse igualmente com ela, teria vindo antes. Cianeto, não é? O veneno a está devorando. Sua amiga pode morrer – ela a repreendeu.

– Pensei que tinha encontrado um ótimo médico – explicou Kiki.

– Médicos americanos – grunhiu a sra. Fei. – Eles conhecem máquinas e substâncias químicas. Não sabem nada do corpo humano. Vou fazer um acordo com você. Eu salvo sua amiga e você salva Wang. – Não era difícil ver de onde Oona tirou sua aspereza.

– O que a faz pensar que Oona precisa ser salva, sra. Fei? – perguntou Kiki.

– Porque eu a ouço quando ela fala com o pai. Ela pensa que ele a quer de volta, mas sei que ele vai magoá-la. Tentei vê-lo e pedir a ele para deixá-la em paz, mas ele não quis falar comigo. – Ela apontou para um pacote lindamente embrulhado perto da porta. – Está vendo isso? Todo dia chega alguma coisa. Wang acha que presentes equivalem a amor. Todo dia ela vai à casa dele. Às vezes ela só chega em casa tarde da noite.

O alerta da sra. Fei significava mais para Kiki do que qualquer coisa que eu pudesse ter dito.

– Eu prometo... Vamos cuidar de Oona – garantiu ela à velha.

– Por favor. Ou um dia Wang nunca voltará para casa.

– Você fala um inglês perfeito. – Nenhuma de nós ouviu Oona chegar. Mas ela apareceu estranhamente composta e a assadura no pescoço estava nítida. – Há quanto tempo está me espionando, sra. Fei?

– Não espionando... Ouvindo. Quero ajudar você. – A voz da sra. Fei não tinha culpa, mas eu mal consegui suportar ouvir o diálogo.

Oona lentamente olhou para Kiki e para mim.

– Então, o que vocês andaram conversando com minha avó? – Ela abriu um sorriso artificial quando não respondemos. – Deixa pra lá. Não importa. Como está Verushka? – Oona se ajoelhou ao lado da cama de Verushka e pegou sua mão azulada..

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– A sra. Fei acha que pode salvá-la..– Vocês terão de ficar aqui até que ela melhore – disse Oona a Kiki. – Pode ficar no meu quarto..– E onde você vai dormir? – perguntei..– Na mansão – respondeu Oona com frieza. – Vou me mudar para lá esta noite..A sra. Fei arfou e todo o seu corpo pareceu tremer.

– Não acho que isso seja inteligente – alertei Oona. Com os grampos de Luz desativados, as Irregulares não tinham como garantir a segurança dela.

– Vamos finalizar os planos para a festa da Imperatriz esta noite. Meu pai quer que eu esteja no museu às seis horas. Por que eu faria todo o caminho de volta a Chinatown se ele mora na mesma rua? Pelo menos vou ter alguma privacidade lá.

– Eu não ia ouvir! – pediu a sra. Fei. – Fique aqui. Esta é a sua casa.

– Este não é o meu lugar – disse Oona, e não estava brincando. – Precisava estar onde posso assumir minhas responsabilidades.

A sra. Fei torceu as mãos nodosas, mas nada disse em resposta.

– E a fantasma? – tentei. – Não tem medo dela?

– A fantasma vai ficar feliz se conseguir o que quer. Além disso, se for mesmo minha mãe, por que eu deveria ter medo?

Vi a sra. Fei pegar o olhar de Kiki.

– Vou com você ao museu esta noite – anunciou Kiki.

– Que engraçado. Não me lembro de ter convidado você. De jeito nenhum vou deixar que abandone Verushka.

– Então eu vou. – Pensando bem agora, isso pareceu corajoso, mas eu tive de forçar as palavras para fora.

– Não sou uma inválida – disse Oona. – Não preciso de dama de companhia.

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– A questão não é essa – falei sem pensar.

– Ah, entendi. – As narinas de Oona inflaram como as do pai e sua assadura ficou escarlate. Ela coçou violentamente a pele do pescoço até que uma gota de sangue machucou a gola branca. – Vocês duas acham que estou deslumbrada, né? Acham que agora que sou a filhinha do papai, né?

– Não, não é. – Kiki se eriçou. – Acabou de confiar a você a coisa mais importante que tenho. Você pensou, por um segundo que fosse, que eu teria trazido Verushka aqui se achasse que você não era leal? Que outra prova você quer?

– E você, Ananka? – Oona observou minha cara de perto, enquanto eu lutava para bola uma resposta. – É, foi o que eu pensei. Venha a museu, se é o que você quer. Não tenho nada a esconder. Agora, se não se importam, preciso fazer minhas malas.

– Oona? – Eu não tirava os olhos do sangue na blusa.

– O que é? O que está olhando?

– Acho que está na hora de trocar de sabão em pó.

Oona bateu a mão no pescoço e olhou o sangue que veio nos dedos. Depois, sem dizer nada, saiu da sala.

***

Como matei aula e era foragida da justiça dos pais, eu não podia ir para casa. Em vez disso, passei a maior parte daquele dia frio de novembro com Yu e Siu Fah, procurando herbanários enquanto reuníamos os itens de uma lista de compras de cinco páginas preparada pela sra. Fei. Em cada rua de Chinatown, centenas de corpos roliços embrulhados em casacos roçavam, esbarravam e quicavam uns nos outros enquanto cada um deles gingava para o calor. Mas de algum modo o vento frio e severo não me incomodava muito. Embora só tivéssemos trocado algumas palavras, Yu e Siu Fah eram uma companhia surpreendente boa. Eu me esqueci de como a felicidade podia ser contagiante e otimista pela primeira vez em semanas. Mas quando voltamos ao apartamento de Oona depois do pôr do sol, liguei a TV no Channel Three e recebi uma forte dose de realidade. O noticiário local começou com uma imagem da casa de Kiki. A porta da frente estava aberta e policiais entravam e saiam do prédio enquanto as luzes de suas viaturas giravam em silêncio. Adam Gunderson, o principal repórter do Channel Three, tinha feito fama no início do ano ao expor Kiki Strike como uma fraude. Agora estava na frente da casa dela, trajando uma parca pronta para o Ártico e um microfone na mão. Ao lado dele havia um homem baixinho e estranhamente feminino de idade indefinida. Óbvio que era Betty Bent disfarçada.

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"Boa noite, Janice. Estou aqui em Chelsea, onde a polícia descobriu o esconderijo de uma das mais famosas assassinas do mundo. Durante 14 anos, Verushka Kozlova foi procurada por ligações com o assassinato da família real da Pocróvia. Hoje pela manhã, uma denúncia anônima levou as autoridades a esta garagem de carruagens na rua 18. Dentro do prédio cheio de armadilhas, encontraram um arsenal variado de armas de artes marciais. Digitais tiradas da cena confirmam que a sra. Kozlova morou aqui, embora seu paradeiro ainda seja desconhecido.

"Virgil Krull, morador da vizinhança, afirma que normalmente via a companheira da sra. Kozlova entrando e saindo do prédio. Sr. Krull, é verdade que a menina é parecida com a fictícia Kiki Strike?

Virgil Krull semicerrou os olhos para as câmeras e falou com um forte sotaque do Sul.

"Não sei muito sobre essa Kiki Strike de que todo mundo fala, mas a menina que vi era uma coisinha gorducha com uma perna mais curta do que a outra. Não sei quantos problemas ela pode causar, com a enfermidade dela e tudo isso.

"Então duvida que a companheira da srta. Kozlova pode ser uma justiceira adolescente?

"Imagino que não. Ela também parecia meio lerda. Suponho que tenha um toque de retardo, se entende o que quero dizer.

Com o sorriso oculto pelo microfone, Adam Gunderson rapidamente passou à pergunta seguinte:

"Como se sente tendo morado de frente para uma assassina famosa, sr. Krull?

"Tenho que dizer que é muito empolgante. Não se esbarra com esses tipos no Mississippi. Fico feliz por ter me mudado para Nova York.

"Bom, é uma maneira de ser ver a questão, imagino. Obrigado, sr. Krull.

"Janice, os outros vizinhos com quem falamos não se lembram de ter visto nenhuma das moradoras do prédio e as gravações de segurança de casas vizinhas desapareceram misteriosamente esta manhã. Fontes do Departamento de Polícia dizem que as autoridades estão confusas. Por ora, Verushka Kozlova continua à solta e os moradores do centro de Manhattan não dormirão tranquilamente até que ela seja capturada. Falando ao vivo de Chelsea, eu sou Adam Gunderson para o noticiário do Channel Three.

– A boa e velha Betty. – Kiki estava de pé atrás de mim. – Isso deve confundir a todos por um tempinho.

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– Todos, menos Sergei Molotov. Acha que ficará segura aqui?

– Tão segura quando estaria em qualquer lugar. – O tom de voz de Kiki me dizia para não me estender no assunto.

– Preciso ir para o museu – eu disse, fingindo olhar o relógio. – São quase seis horas.

– Pode ser que precise disto. – Kiki me entregou um frasco de Fille Fiable. Uma quantidade mínima do líquido âmbar batia no fundo do vidro. – Foi só o que sobrou. Vou pedir a DeeDee para fazer mais. Tenho de ligar para ela e as outras esta noite de qualquer forma.

– Para descobrir onde esconderam suas coisas?

– Para pedir desculpas – disse Kiki. – Eu devia ter contado tudo isso a elas antes.

***

Meu táxi entrou a oeste na rua 85 e vi o museu assomando no final da quadra como um templo construído para aplacar um deus poderoso. Luzes douradas jorravam de suas janelas e no alto da entrada principal do museu três faixas vermelhas ondulavam na brisa. Abaixo delas estava Lester Liu, vestido de casaco de gola de peles e olhando a Quinta Avenida como um rei vigiando seu reino. O cabelo prateado continuava perfeitamente imóvel enquanto o vento se movia em volta dele. Acenei para Oona, que disparava pela Quinta Avenida. Ela se juntou a mim na frente da fonte desligada, a expressão fria como se a água da chuva tivesse sido recolhida e congelada dentro dela. Juntas, subimos a escada para cumprimentar seu pai e eu rezei para que o efeito do Fille Fiable que passei no táxi não tivesse passado.

– Boa noite, srta. Fisher. É um prazer vê-la. – Lester Liu sabia como dizer uma coisa enquanto deixava perfeitamente claro que pretendia dizer outra. Abriu para Oona um sorriso insincero. – Não esperava companhia esta noite, minha cara.

– Ela se convidou – respondeu Oona asperamente. Era tão bom me sentir querida.

– Eu morro de vontade de ver o museu à noite desde que era uma garotinha. – Tentei parecer animada enquanto os olhos frios de Lester Liu continuavam fixos em mim.

– Bom, então, este deve ser um presente para você. Vamos. Oona e eu precisamos ver a Imperatriz.

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***

Sem as centenas de turistas que tagarelam em dezenas de línguas, o Grande Salão do Metropolitan Museum of Art era espantosamente silencioso e tudo parecia menor no escuro, depois do horário de funcionamento. O teto abobadado parecia tão alto quanto o céu. Uma selva de arranjos florais brotava de reentrâncias nas paredes e uma esfinge antiga, agachada entre duas colunas de mármore, guardava os tesouros que ficavam lá dentro.

– Ah! Sr. Liu! – exclamou um cavalheiro elegante, de cabelos brancos e um terno de corte perfeito. Anormalmente alto, com uma coluna tão rígida que parecia uma vara de aço, ele pareceu cruzar o vasto salão em menos de dez passos.

– Sr. Hunt. – Lester Liu estendeu a mão para cumprimentar o homem. – Permita-me apresentar minha filha, Lillian, e minha nova assistente, a srta. Fisher. Senhoras, o sr. Hunt é o diretor do Metropolitan Museum.

– Vieram ajudar nos arranjos para a abertura de gala, meninas? – perguntou o sr. Hunt, embora não parasse para ouvir a resposta. – Falei com quase todos de nossa lista que mandaram um RSVP – gabou-se ele a Lester Liu. – Não posso dizer que tenha visto um índice de aceitação tão alto! A festa de inauguração para A Imperatriz Desperta deve ser o evento da temporada. – Depois ele passou a nos entediar com uma longa lista de nomes famosos que compareceriam, inclusive duas estrelas de cinema adolescentes que eu certamente nunca vira dentro de um museu.

– Por que ele a chamou de Lillian? – cochichei para Oona enquanto o sr. Hunt continuava a tagarelar.

– Ele acha que Lillian Liu tem um som agradável – disse ela. – Que me importa como ele me chama? Eu inventei Oona Wong?

– Meninas? – interrompeu o sr. Hunt. – Gostariam de ver a exposição? Ainda tenho uns telefonemas a dar antes de começarmos e pensei que poderiam desfrutar de uma espiada no espetáculo.

– Seria um prazer – respondeu o sr. Liu por nós.

– James! – o sr. Hunt gritou a um segurança mal-encarado que estava perto do controle de casacos. – Poderia, por favor, guiar o sr. Liu e suas acompanhantes para ver a nova exposição? Estarei com o senhor em breve, sr. Liu.

Oona e o pai andaram grudados no segurança enquanto eu fiquei pra trás. À menina que nos aproximávamos da ampla escadaria que levava ao segundo andar, meus olhos caíram em uma

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figura à espreita na escuridão de uma das galerias laterais. Eu parei, esperando que ela se mexesse.

– É uma estátua, srta. Fisher – ouvi Lester Liu dizer. – Não precisa entrar em pânico. O museu está cheio delas. – Oona deu uma risadinha e eu me senti corar.

***

No segundo andar, passamos por salas mal iluminadas e retratos de pessoas que morreram havia muito tempo. Quanto mais imergíamos no prédio, mais forte era meu impulso de fugir. Só uma heroína de filme de terror se veria sozinha no Metropolitan Museum of Art com um contrabandista e sua filha dissimulada. Tentei observar bem o caminho que tomávamos, mas sem um rastro de farelos e pão ou um rolo de barbante para marcar a trilha, eu sabia que ficaria desesperadamente perdida no labirinto do museu. Meus olhos disparavam de um lado para o outro e não consegui resistir ao impulso de olhar por sobre o ombro para ver se alguém se esgueirava atrás de nós. Ao nos aproximarmos da extremidade sul do prédio, o som de martelos ficou ensurdecedor. Um trabalhador apareceu como se saído do nada e desapareceu numa sala vermelha escura no final do corredor. Nossa jornada tinha terminado.

– Não saiam da exposição sem um guia – gritou o segurança por sobre a barulheira. Os olhos do segurança nunca deixavam meu rosto e percebi que o aviso era para mim. Ele devia ter me visto ficando pra trás e confundido minha agitação com traquinice. – Os alarmes e detectores de movimento estão ativados nas galerias. Se quiserem ver as pinturas, voltem quando o museu estiver aberto. Se quiserem ir embora, por favor, entrem em contato conosco, na segurança, e vamos conduzi-los à saída.

– Obrigado, James. – Lester Liu esbanjava charme. – Se todos os seguranças do museu forem diligentes como você, sei que podemos ter confiança completa de que meus tesouros estarão seguros.

Quando o segurança deu as costas para nós, senti-me sem minha única defesa. Mas enquanto minha mente gritava para ele ficar, eu segui em silêncio Lester Liu para o ambiente da exposição. A primeira galeria estava um caos, com caixas de madeira encostadas nas paredes. Um homem que parecia um passarinho com um emaranhado de cabelo amarelo gritava ordens a uma turma de musculosos trabalhadores de luvas brancas. Quatro dos homens baixavam cuidadosamente uma grande tela em uma caixa aberta enquanto dois colegas se ocupavam em lacrar outra com pregos.

– Parem, parem, parem! – gritou o homem quando nos viu. A pancadaria de martelos cessou e o homem correu. – Sr. Liu – disse ele, tirando a luva e estendendo a mão. – É uma honra tê-lo aqui, senhor.

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– Dr. Jennings – disse Lester Liu. – Como o trabalho está progredindo?

– As outras galerias estão em ordem, senhor. Esta é a última sala a ser renovada. Estamos retirando as últimas obras da exposição anterior. Todas devem sair dentro de uma hora.

– Para onde as estão levando? – perguntei, gesticulando para as caixas e sentindo minha coragem voltar aos poucos. O homenzinho pareceu chocado que eu pudesse falar.

– Minha nova assistente – explicou Lester Liu.

Os olhos do homem passaram entre nós dois como se ele se perguntasse como responder à minha pergunta.

– Algumas serão colocadas no depósito e outras serão enviadas aos museus que as emprestaram. As duas que pertencem ao Met serão devolvidas a suas galerias de origem. Isso responde à sua pergunta?

– Por que embalá-las com tanto cuidado se só estão transferindo para outra parte do museu?

Já era bem ruim ter feito uma pergunta; duas, era uma coisa inaudita. O baixinho ficou assombrado e Oona revirou os olhos. Eu corria o risco de pressionar demais.

– São obras de arte inestimáveis. Até as molduras valem milhões. Meus colegas costumam ser menos conscienciosos, mas eu teria este cuidado se estivesse apenas mudando seu lugar na sala. Agora, sr. Liu, posso lhe mostrar o restante da exposição?

Enquanto o dr. Jennings, Oona e Lester Liu seguiam em frente, parei para olhar os trabalhadores terminaram de preparar as caixas. Enquanto um homem corpulento se curvava sobre o martelo para colocar um último prego, a camisa dele se soltou das calças, expondo parte das costas – e a cabeça tatuada de um dragão vesgo. Era um Fu-Tsang. Girei e vi se mais alguém tinha percebido, encontrando Oona me encarando do outro lado da sala, os olhos me desafiando a falar.

– Você vem? – grunhiu ela.

***

Se minha mente já não estivesse dançando de dragões, eu podia ter ficado tomada do mesmo pasmo que os ladrões de túmulo devem ter sentindo quando entraram pela primeira vez na tumba da Imperatriz. Entrei numa sala escura que exibia mostruários de vidro muito iluminados, instalados em pedestais altos e pretos. Dentro de cada mostruário, um mundo em

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miniatura parecia flutuar a cerca de um metro do chão. Ali estavam perfeitas réplicas em porcelana de palácios, mansões e jardins antigos – cada uma tão detalhada que eu podia ver as telhas. Outro mostruário exibia uma fazenda habitada por porcos, galinhas e patos minúsculos. Ali estavam as provisões da Imperatriz para depois da morte. Qualquer coisa de que uma mulher de sua estirpe pudesse precisar tinha sido cuidadosamente copiada e enterrada com ela. Espiando a galeria ao lado, vi um exército de cridos de barro de 30 centímetros de altura, todos ainda aguardando ordens de sua senhora. Cada sala da exposição foi planejada para levar os visitantes cada vez mais fundo na tumba da Imperatriz, até que por fim chegassem à magnífica câmara onde a múmia estaria à mostra.

– A Imperatriz deve chegar no dia da abertura de gala – ouvi Lester Liu anunciar. – Peço desculpas pelo atraso. Ela e seu esquife são extremamente frágeis. Aceitei o conselho do sr. Hunt e contratei uma equipe de especialistas para transportá-la de minha casa até o museu.

– Claro, sr. Liu. A sala da Imperatriz estará pronta quando ela chegar – garantiu-lhe o dr. Jennings. – Podemos dar uma olhada?

– Oh, Lillian! – exclamou Lester Liu. Oona me lançou um olhar de advertência e se apressou atrás do pai. Quando por fim estava fora de vista, saí de mansinho pela entrada e vi os trabalhadores colocarem uma das caixas numa plataforma móvel. O homem tatuado a levou embora. Enquanto seus colegas voltavam a atenção para a próxima obra de arte, segui a caixa porta afora.

Eu já fiz coisas imbecis, mas não muitas. Apesar das incontáveis lições de Kiki, minhas habilidades de espiã continuavam risivelmente ruins e eu só tinha duas gotas de Fille Fiable para me salvar dos problemas que eu sabia em que estava me metendo. Enquanto o homem empurrava a caixa pelos corredores vazios do Metropolitan Museum of Art, mantive uma distância segura, enfiando-me atrás de colunas e tateando por acidente uma ou duas estátuas. Meu cérebro funcionava na velocidade dobrada e as coisas começavam a fazer sentido para mim. Em vez de tentar desativar os detectores de movimento do museu e silenciar os alarmes, os Fu-Tsang roubavam telas enquanto as transferiam de um lugar para outro. E para mim não havia mais nenhuma dúvida de que Oona estava envolvida.

O homem virou uma esquina e esperei vários segundos antes de espiar pelo canto. A tela não estava à vista e eu podia ouvir o rangido das rodas da plataforma ficando mais fraco.

– Já não era sem tempo! – ouvi alguém exclamar. A voz parecia vir da última de várias galerias no corredor. – Esperei a noite toda. Vamos! – Avancei aos poucos pelo corredor e fiquei paralisada no meio de um passo. Tirei meus sapatos, fui na ponta dos pés para a entrada da galeria e devagar coloquei a cabeça pelo canto. A caixa estava aberta e o bandido Fu-Tsang e ouros três homens erguiam a tela.

– Agora pegue aquela ali. – Um homem estava no meio da sala, orientando a ação com a

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arrogância de um faraó comandando um exército de escravos. – Vamos tentar colocá-la na parede antes do amanhecer, sim? – Minha cabeça girava. A tela não tinha sido roubada. Só tinha sido transferida. Depois que estava achatada na parede, pude ver um nu roliço com um traseiro imenso espreguiçando-se num cenário turco. Mas parecia haver alguma coisa espiando por sobre o homem da mulher – algo que parecia deslocado. Quando mudei de posição, o objeto desapareceu. Não havia como chegar mais perto. Eu teria de voltar pela manhã.

Escapuli de volta pelo corredor e tentei lembrar que caminho tinha tomado. Esperava sem sorte e a esquina que escolhi me levou direto ao sr. Hunt.

– Quem é você? – ele perguntou como se nunca tivesse posto os olhos em mim. – Venha cá um instante. Onde, em nome de Deus, estão seus sapatos?

Aproximei-me do homem, na esperança de chegar perto o bastante para ele sentir meu perfume.

– Sou a assistente do sr. Liu, senhor. Só estava procurando o banheiro e me perdi. – Rezei para que o perfume pudesse compensar minha desculpa esfarrapada.

– Não é mais minha funcionária, srta. Fishbein. – Eu tremi quando ouvi a voz de Lester Liu. Ele tinha vindo procurar por mim. – Sr. Hunt, o senhor se importaria de pedir à segurança para cuidar desta arruaceira para que eu possa voltar a meu trabalho?

– De forma alguma – respondeu sr. Hunt, com muito mais entusiasmo do que a situação merecia.

Dadas as alternativas, eu teria preferido passar a noite na cadeia. Em vez disso, a segurança do museu ligou para minha mãe. Enquanto eu esperava por sua chegada perto do guarda-casacos, Oona e o pai passavam por mim a caminho da saída. Lester Liu recusou-se a dar pela minha existência, mas depois que o pai estava na porta, Oona não resistiu a me dar a última palavra.

– O que acha que está fazendo? – rosnou ela. – Isto não é brincadeira. Se não fosse por mim, você agora estaria morta.

– Não me faça favor nenhum – cuspi para ela. – Eu não me associo com traidoras.

TESTE SUAS HABILIDADES DE DETETIVE

Uma boa detetive nunca deixa passar o menor dos detalhes. Quando se trata de resolver

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crimes e salvar cidades, até o nome da galinha de estimação de alguém pode se provar de importância fundamental. (Embora não seja o caso neste livro.)

O teste a seguir a ajudará a determinar se você está pronta para a ação – ou se deve treinar um pouco mais. Lembre-se de uma coisa: na vida real, não há perguntas de múltipla escolha.

1. Qual é o nome da galinha de estimação de Howard Van Dyke?

a. Nuggetb. Aprilc. Thelmad. Extra Crispy

2. A que horas seu vizinho saiu de casa pela manhã?

a. Exatamente dez minutos e onze segundos mais cedo do que ontemb. Quem sabe? Eu decidi dormir um pouco maisc. Eu nunca me intrometeria na privacidade dos outros!d. Pensando bem, não o vejo há semanas. Talvez eu deva bater na porta dele

3. Qual dos seguintes itens não pode estar em sua lixeira?

a. A identidade de sua paixão secreta.b. O número de telefone não listado de sua melhor amigac. Vários vidros vazios de Mashmallow Fluffd. Aquele bilhete desagradável de sua diretora

4. Que frase descreve melhor o vendedor de cachorro-quente na esquina da rua 14 com a Sexta Avenida?

a. Fornecedor da carne processada mais saborosa de Manhattan.b. Espião do governo mongolc. Criminoso procurado por crimes contra o reino animald. Amigo dos esquilo

5. Quais dos seguintes itens impedirão que você pareça misteriosa?

a. Pele sem cicatrizes e tatuagensb. Um nome como Tiffanyc. Uma boca enormed. A falta de ficha criminal

6. Complete a seguinte frase: Com base no que leu até agora, Oona Wong é...

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a. Uma agente dupla covardeb. Uma menina de temperamento doce com um coração de ouroc. Um poltergeistd. Um pseudônimo

Crédito Extra

Crie um disfarce bom o bastante para enganar um conhecido seu usado apenas o conteúdo de sua bolsa ou sua mochila. Você foi apanhada espionando um parente suspeito (pela segunda vez). Elabore uma não desculpa adequada. (Sinta-se culpada depois, se quiser.)

Coloque luvas de borracha e retire o cesto de papéis do quarto de sua irmã. Examine o conteúdo e componha uma lista das atividades dela nos últimos dois dias.

RESPOSTAS:

1) b2) a3) Se você estivesse prestando atenção, nada disso estaria na sua lixeira.4) c5) c6) d – Você não leu mais para a frente, leu?

CAPÍTULO DOZE

Prisioneira de Cleveland Place

Sempre admirei as heroínas de filmes que se recusam a contar seus segredos quando são capturadas pelo inimigo. Ameace-as, torture-as ou zombe delas, e só o que você terá em troca é um discurso enaltecedor sobre a honra, a integridade e o alto preço da liberdade. No final, ou elas escapam de seus torturadores ou morrem heroicamente, deixando para trás alguns amantes arrasados e inspirando toda uma nação com sua coragem. Enquanto eu esperava que minha mãe me arrastasse do Metropolitan Museum of Art para casa, prometi a mim mesma que me comportaria com a maior dignidade. Não haveria choros, nem súplicas, nem pedidos de clemência. (E tragicamente nenhum administrador dedicado para testemunhar minha bravura.) Elaborei meticulosamente a única resposta que daria às perguntas de minha mãe: Um dia você vai entender.

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O problema foi que não houve pergunta alguma. E um único olhar para a cara de decepção de minha mãe me lembrou de que ela não era inimiga. Ela era mãe de uma menina dissimulada, mentirosa e indigna de confiança que não podia ou não iria explicar seus atos. A caminho de casa, não houve sermões nem papo de colégio interno. Minha mãe ficou sentada em silêncio perto da janela, olhando a Quinta Avenida passar voando. Vi o que meus segredos fizeram com ela e quis lhe contar a verdade. Mas eu sabia que tinha esperado demais.

Senti-me um pouco menos solidária quando encontrei duas malas grandes no chão do meu quarto, junto com um bilhete informando-me de que os dois dias seguintes seriam meus últimos na Escola para Meninas Atalanta. Meu telefone foi confiscado e meu computador sumiu. Até as janelas tinham trancas novas. Não havia como entrar em contato com as Irregulares. Até que eu pudesse me libertar da Fortaleza Fishbein, a traição de Oona continuaria secreta.

***

E as coisas só ficaram piores na manhã seguinte. Quando eu ia para a escola, encontrei minha mãe vestida e esperando perto da porta.

– Você não vai! – declarei, incrédula.

– De que outra maneira posso ter certeza de que você vai para a escola? – Ela deu um sorriso malicioso, mantendo a porta aberta para mim.

Havia poucas coisas mais humilhantes na vida do que ser acompanhada até a escola pela mãe. O que mais me irritou foi que ela conseguiu frustrar o único plano de fuga que eu tinha bolado. Ela ficou sentada a meu lado no metrô e me olhava pelo canto do olho enquanto passávamos por várias bancas alardeando os jornais da manhã.Assassina às portas da morte!, gritava a primeira página de um deles. Médico herói conta tudo!, gritava outro. Quando minha mãe me deixou na porta da frente da Escola Atalanta, várias testemunhas começaram a rir. Felizmente, Molly Donovan estava na calçada esperando por outra oportunidade de se atrasar. Bastou uma encarada de Molly e olhos foram desviados, lábios selados e eu pude entrar na escola com o pouco que me restava de minha autoestima.

– O que foi desta vez? – Molly e seus cachos quicavam a meu lado.

– Fui flagrada zanzando pelo Metropolitan Museum ontem à noite.

– O museu? Tá brincando! – Se antes eu não tinha o respeito de Molly, certamente acabara de conquistá-lo.

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– Bem que eu queria.

– Você deve estar falando a verdade. Está sendo vigiada, sabia? Eles devem pensar que você representa risco de fuga.

– Quem está me vigiando?

– Shhhh. Olhe em volta. Não seja tão óbvia. Deixe que eles se divirtam. Esta é a coisa mais empolgante que os professores têm o dia todo. Faz com que eles se sintam a Nancy Drew. – Uma olhada rápida dos dois lados provou que Molly tinha razão. Todo professor por que passávamos me perseguia com os olhos. Comecei a entender como era ser Molly Donovan.

– Talvez seja melhor não sermos vistas juntas agora – murmurei, tentando evitar que meus lábios se mexessem.

– É, acho que gângsteres barra-pesada como você não podem ser vistas se rebaixando com criminosas inferiores como eu – zombou Molly.

– Desculpe. Não sei o que estava dizendo. Não importa mais, já que consegui ser expulsa.

– Que gozado, era justamente sobre isso que queria falar com você. Sabe a promessa que me fez? Acha que pode acelerar um pouco as coisas? Estou ficou meio desesperada. Chamei a atenção de uma universitária que trabalha para meus psicólogos. Ela parece pensar que sou o bilhete dela para a fama e a fortuna.

– Por acaso o nome dela não seria Shiva? – perguntei.

– Você conheceu a fera? – Eu assenti. – Bom, então sabe do que estou falando. Meus pais a deixaram colocar câmeras no meu quarto para ela poder me estudar em meu ambiente natural. Então é melhor você agir rápido, porque, se isso continuar por muito tempo, talvez eu tenha de matá-la.

– Não sei não, Molly. Agora estou meio sobrecarregada.

– Você teve tempo para invadir o Metropolitan Museum, mas não tem tempo para ajudar uma amiga?

– Você pode não acreditar, mas tenho outras amigas com problemas piores do que os seus.

– Vamos ver o que você acha no final do dia – Molly me desafiou, abrindo a porta de minha aula do primeiro tempo. – Não há nada pior do que perder sua privacidade. Já ouviu falar do efeito do observador?

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– Não.

– Nunca ouviu isso em aula? O efeito do observador é um dos fenômenos científicos mais estranhos. Quando as pessoas são colocadas sob observação, seu comportamento muda. É como quando você vai a uma loja e o segurança fica te seguindo. Você sabe que não vai roubar nada, mas começa a se sentir culpada, depois começa a agir de forma suspeita. Isso é o efeito observador. Então, aqui está minha pergunta. Como pode saber quem realmente é se está sendo observada o tempo todo?

***

Não precisei do dia todo para entender o argumento de Molly. Quando terminou o primeiro tempo, eu me vi me esquivando pelos corredores como uma condenada foragida da lei. No segundo tempo, eu estava clinicamente paranoica. Aonde quer que fosse, podia sentir mil olhos rastejando sobre mim. Se eu fosse ao banheiro, ao sair descobria uma professora zanzando do lado de fora. Se por acaso eu passasse a 15 metros da saída da escola, o nível de som caía como se as pessoas estivessem prendendo a respiração para ver o que aconteceria. Lá pelo terceiro tempo, eu podia ter começado a ouvir vozes, mas quando me sentei na aula do sr. Dedly o dia começou a ficar um pouco mais brilhante.

A pessoa sentada atrás da mesa na frente da sala não tinha o nariz peludo, a expressão dolorida ou o gosto por tweeds desiguais do sr. Dedly. Era uma indiana bonita, vestida com um sári turquesa vibrante. Um diamante mínimio cintilada sua narina esquerda e as pulseiras de ouro tiniram como um sino de vento quando ela se levantou para falar com a turma.

– O sr. Dedly não virá hoje. Eu sou a srta. Mahadevi, a professora substituta. Antes de começarmos a aula, preciso falar com uma das alunas desta turma. – Ela examinou o livro de chamada, o dedo percorrendo a lista até que parou em algum lugar no meio. – Ananka Fishbein. Por favor, venha à frente da sala. O restante da turma pode conversar em voz baixa.

Minhas colegas ficaram ocupadas demais fofocando para perceber a estranha nova professora que me pegou pelo braço e me levou porta afora.

– Ananka – cochichou ela sem nenhum vestígio do sotaque Bombaim. – Sou eu.

– Betty? – comecei a rir, até que ela me fez calar. – O que você fez com o sr. Dedly?

– Há algumas horas, os Arqueólogos Amadores de Manhattan receberam uma dica de que uma turma de construção em Coney Island tinha descoberto os restos de um navio pirata e tentavam esconder as provas. Seu professor é o presidente do clube, então teve de ir verificar. Muito bom, né? Foi ideia de Luz. Soubemos do que aconteceu no museu ontem à noite. Kiki

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me pediu para vir ver você. Ela achava que você estava sob vigilância estrita.

– Isso é o mínimo. Minha mãe vai me despachar para um internato na Virgínia Ocidental na quinta-feira. Não se preocupe – acrescentei quando a cara de Betty despencou. – Vou pensar num plano. Quem contou a vocês sobre o museu?

– Oona. Quem mais seria? Ela disse que você foi pega xeretando. Nunca a vi tão irritada. Pensei que ela ia começar a espumar pela boca.

– Ah, é mesmo? Ela contou a você por que eu estava xeretando por lá? – Betty sacudiu a cabeça. – É, eu achei que ela deixaria essa parte de fora. Eu estava xeretando porque havia homens da Fu-Tsang no museu.

– Não! – As pulseiras de Betty chiaram quando ela bateu a mão na boca.

- Sim. Vi um cara com um dragão tatuado nas costas. Ele transferia as telas de uma exposição anterior. Pensei que podia estar roubando, então o segui.

– E ele estava?

– Não – admiti. – Por acaso estava levando para outra parte do museu. Mas eu juro que tinha alguma coisa esquisita acontecendo com lá. E a pior parte é que... Oona deve estar envolvida nisso. Ela viu o cara da tatuagem, como eu. Ela sabe que a Fu-Tsang está envolvida, e não contou a ninguém. Acho que ela passou para o lado negro.

Betty estremeceu.

– Queria poder dizer que estou surpresa. Vou ligar para Kiki assim que a aula terminar.

– Alguém precisa visitar o museu também. Eu mesma iria mas dizem que fui proibida de entrar.

– Eu vou. Meu próximo tempo está livre e o museu só fica a algumas quadras daqui. O que você quer que eu faça lá?

– Dê uma olhada na tela que vi sendo transferida ontem à noite. Vou descobrir como ela se chama. Havia alguma coisa estranha nela, mas não consegui definir o que era. Era uma pintura de uma mulher nua, deitada de costas para o pintor. Parecia que tinha alguém espiando por sobre o ombro dela.

– Que coisa arrepiante. A gente devia entrar na internet e procurar o nome da pintura assim que eu terminar minha aula.

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– Perfeito. Então isso significa que você realmente dar essa aula? Sabe alguma coisa da história de Nova York?

– Há uma coisa de que sei muito bem. – Sua voz já começara a adotar o ritmo melífluo de um sotaque indiano. – Vamos entrar. A gente conversa de novo depois da aula.

***

A turma foi se aquietando enquanto Betty se aproximava da plataforma. Ela ergueu uma imagem de uma mulher horrível, cuja queixada carnuda exibia uma barba por fazer. A julgar pela preta e crespa e o vestido de seda azul da mulher, a imagem datava de meados do século XVIII. De repente entendi o tema da aula de Betty e não consegui deixar de sorrir.

– Alguém pode identificar esta mulher de aparência infeliz? – perguntou Betty, o sotaque mais uma vez perfeito. Ninguém levantou a mão. – Muito bom. Governou a Colônia Britânica de Nova York. O nome dele era Edward Hyde.

A turma deu uma gargalhada.

– Não só o sr. Hyde não tinha competência como governador, como adorava se vestir como sua prima, a rainha Anne. Infelizmente, como podem ver, ele fez um péssimo trabalho nisso também. Hoje vamos analisar as poucas técnicas que o sr. Hyde podia ter usado para tornar sua fantasia mais convincente.

Pela primeira vez no dia, eu estava quase começando a curtir quando a porta se abriu e uma aluna da sexta série que parecia um lêmure passou um bilhete à professora substituta.

– Ananka Fishbein – disse ela com um toque de compaixão na voz –, você foi convocada à sala da diretora.

***

Molly Donovan tinha acabado de voltar da prancha. Eu a vi se arrastando para fora da sala da diretora, de cabeça baixa e o ânimo abatido. Peguei seu braço e a guiei para um canto.

– Qual é o problema? – cochichei. – O que houve?

– Nunca vou sair daqui – gemeu Molly. – Eu disse à minha professora de cálculo que ela podia enfiar o transferidor dela naquele lugar, e só o que consegui foi um sermão de dez minutos. Wickham disse que os donativos de meus pais não fazem diferença para ela. Disse que ainda

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estou aqui "porque tenho potencial".

– Eu sinto muito, Molly. Talvez você deva contar a ela por que quer ser expulsa.

– Acha mesmo que isso ajudaria? – Molly se desesperava. – Essas pessoas são todas iguais. Se elas acham que você tem potencial, querem sugá-lo de você.

– Não sei se a diretora é assim – argumentei. – Talvez ela queira te ajudar.

Molly bufou.

– Encare a realidade, Ananka. Não posso confiar em adultos. Você é minha única esperança.

***

Quando entrei, a diretora estava ao computador. Pude ver o reflexo da tela nos óculos dela. Olhava um arquivo de uma aluna da Atalanta. Não precisei perguntar para saber que era meu.

– Feche a porta, por favor, Ananka – ordenou ela. – Eu não sabia de sua amizade com a srta. Donovan.

– A senhora ouviu nossa conversa?

A diretora Wickham olhou para cima e sorriu maliciosamente.

– Minha visão pode estar falhando, mas minha audição é afiada como sempre. Então entendi que Molly gostaria de ser expulsa?

– Ela quer sair de Nova York. Diz que os pais dela acham que ela é especial.

– Mas Molly é especial.

– Especial o bastante para ser levada a festas para divertir os convidados dos pais? Especial o bastante para ver os psicólogos três vezes por semana e ter câmeras instaladas em seu quarto?

– Ah, meu Deus. – A diretora Wickham tirou os óculos e mordiscou a armação. – Terei de pensar no que fazer com a srta. Donovan.

– Soube que a Academia Borland está aceitando novos alunos. – Se eu tinha de ir, talvez pudesse levar Molly comigo.

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– Agradeço por sua informação, Ananka. Mas não a chamei aqui para discutir Molly Donovan. Gostaria de ter uma conversinha sobre você.

– É, quanto a isso... – Fiz uma careta ao falar. – Desculpe por matar aula ontem. Sei que a senhora tentou me ajudar. Peço desculpas por decepcioná-la.

– Sim, foi muito decepcionante, Ananka. – De algum modo a voz dela não combinava com as palavras.

– Sei que minha mãe lhe contou sobre o incidente do museu. Todo mundo está me vigiando como se eu fosse fugir para o México.

– Sua mãe parece pensar que você pode deixar a escola um pouco mais cedo hoje. Mas não é por isso que quero conversar com você. Terminei de ler seu trabalho e achei que merecia uma discussão.

Eu não pensava no trabalho havia mais de uma semana e fiquei mortificada ao me lembrar do que tinha escrito.

– Desculpe por isso também. Tenho certeza de que não era o que a senhora esperava.

– Isso é verdade. Mas é bom saber que depois de cinquenta anos na Atalanta, ainda posso ter uma surpresa agradável.

– A senhora gostou? – Nunca desconfiei de que ela pudesse levar meu trabalho a sério.

– É um trabalho de pesquisa extraordinário. Estou certa de que o sr. Dedly vai ficar satisfeito quando voltar. Na realidade, eu não ficaria surpresa se você recebesse um A no semestre. Mas diga-me, como descobriu a estação da Ferraria Subterrânea embaixo da sinagoga Bialystoker?

– Andei explorando aqui e ali – eu disse baixinho.

A diretora riu.

– Você tem uma vida interessante, Ananka. Sabe de uma coisa, quando eu era criança, meu avô costumava contar histórias sobre salas ocultas embaixo de Manhattan. Ele dizia ter visitado algumas na juventude, mas duvido de que estivesse em alguma missão nobre. Ao que parecia, ele era meio trapaceiro.

– Ele deve ter sido um dos poucos que sobreviveram à peste – falei.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Como? Que peste foi essa?

– Isso dá outro trabalho inteiro, diretora Wickham.

– Bem, adoraria ler quando você terminasse. Acredito que podemos publicar este.

– Não! – eu disse meio rápido demais. Meu coração saltou quando pensei na reação de Kiki. – Escrevi isso para a senhora. Não quero que mais ninguém leia.

– O trabalho é seu, Ananka, mas insisto que reconsidere. Esse tipo de informação deve ser partilhado com toda a cidade. Mas acredito que tenhamos descoberto a origem de seus problemas acadêmicos. Você tem um dom que vem sendo ignorado. Talvez tenhamos de dar outra olhada em seu programa de curso.

Era bom saber que era superdotada, mas eu não achava que faria muito diferença. Quantos pontos de QI são necessários para ordenhar vacas e fazer queijo?

–Mas, diretora Wickham, amanhã será meu último dia na Atalanta. Minha mãe não lhe contou? Vou para a Academia Borland na quinta-feira.

A diretora Wickham franziu o cenho.

– Isso é novidade para mim – disse ela, pegando o telefone. – Preciso dar uma palavrinha com sua mãe. Poderia me dar licença?

– Claro – falei. O que quer que ela estivesse planejando, não ia dar certo.

***

Quando cheguei ao corredor, eu tinha certeza de uma coisa. Em 48 horas eu estaria na Virgínia Ocidental. Não tinha sentido lutar. Assim que as Irregulares soubessem da verdade, nada mais me prenderia a Nova York. Em uma demonstração incrível de descuido, eu tinha confessado um segredo a alguém que mal conhecia, achando que nada adviria daí. Agora a Cidade das Sombras mais uma vez corria o risco de ser descoberta, e era tudo culpa minha.

Eu não podia encarar Betty, então matei a aula e fui para a biblioteca. Peguei uma cadeira num terminal de computador, pretendendo digitar minha confissão. Meu cotovelo bateu no mouse e a tela se iluminou. Uma visitante anterior estivera lendo as colunas de fofocas online do dia. Uma nota no Nova York Post anunciava que a rainha Livia da Pocróvia logo voltaria à cidade para procurar pela sobrinha havia muito desaparecida. Entrei em minha conta de e-mail e,

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com os dedos postados no alto do teclado, parei para pensar. Minha desgraça era inevitável, e embora as Irregulares não continuassem minhas amigas por muito tempo, eu precisava ajudá-la enquanto pudesse. Mandei a coluna de fofocas por e-mail para Kiki, abri uma nova página e digitei a URL do Metropolitan Museum of Art.

A Imperatriz Desperta tinha substituído uma exposição intitulada De Vênus a Vargas: Uma Celebração da Forma Feminina. Não tive dúvidas de que foi muito popular. Foi preciso pouca pesquisa para identificar a tela que vi sendo transferida. A Odalisca em cinza era ainda mais adorável do que eu me lembrava. Mas quando imprimi em cores, não vi prova de nada, a não ser um travesseiro atrás do ombro da mulher. Navegando pelas fotos de outras obras que estiveram na exposição, encontrei nus esparramados em sofás, nus desfrutando de piqueniques e nus se pavoneando por parques. A julgar pela arte, não lhes parecia faltar coisas que se pode fazer sem roupas. Enquanto reprimia um bocejo, por acaso dei com uma tela de uma loura grandona se olhando num espelho. Nem precisei ler o nome do artista. Era a tela que Siu Fah descrevera. A tela que ela copiava.

Eu mal tinha terminado de imprimir as imagens das telas da exposição quando o sinal tocou. Disparando pelos corredores apinhados, consegui alcançar Betty antes que começasse o tempo seguinte.

– Não devia ter matado minha aula – ela se irritou quando a encontrei. – Podia ter aprendido alguma coisa.

– Desculpe, mas eu estava fazendo bom uso de meu tempo. Trouxe para você cópias das telas em exposição que foram substituídas pela Imperatriz Desperta. Dê uma olhada nestas duas... Ainda estão no Metropolitan Museum. Veja se percebe alguma coisa estranha.

– Quer me dar uma dica?

– Ainda não – eu disse. – Só estou me baseando num pressentimento. Quero que as veja com olhos frescos.

– Tudo bem. Encontro você no banheiro das meninas na hora do almoço. – Ela pegou os impressos e os enfiou na bolsa. – A propósito, ouvi algumas colegas suas fofocando sobre Oona.

– Ouviu? – Eu estive ocupada demais para pegar as últimas fofocas.

– Arrã. Acho que Oona é a convidada de honra da vez. Todos os pais das meninas ricas estão desesperados para receber a filha de Lester Liu para jantar.

– Calculo.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– É, mas tem uma coisa. Parece que Oona não aceitou nenhum dos convites. Está esnobando a todos.

– Ela é inteligente. Fazer com que se curvem uma ou duas vezes a deixará ainda mais irresistível. Não há nada que essas meninas respeitem mais do que alguém esnobe. Faz parte do plano dela.

– É, acho que faz sentido. Só que magoa pensar que Oona pode mesmo ter se tornado uma traidora – disse Betty, infeliz.

Algumas horas antes, eu podia ter respondido com uma observação maldosa. Agora fiquei em silêncio. Oona não era a única que traía as Irregulares.

***

Quando tocou o sinal do almoço, peguei um sanduíche de hummus no refeitório e ele explodiu quando dei a primeira dentada. Estava limpando a mancha de meu suéter quando Betty entrou no banheiro, parecendo ter visto um fantasma. Os olhos estavam vidrados, a peruca preta estava torta e o diamante no nariz não estava lá. Uma aluna do primeiro ano a caminho da pia parou boquiaberta para olhar Betty como se não conseguisse entender o que havia de errado com a imagem.

– Ajeite seu cabelo – ordenei à meia-voz.

– Hein? – Era como se eu tivesse acordado Betty de um sonho.

– Olhe-se no espelho – exigi. – Qual é o problema? – perguntei enquanto ela ajeitava a fantasia.

Betty ficou com o olhar vago e eu me perguntei se devia dar um tabefe nela, como fazem nos filmes.

– Agora pode sair – falei à menina do primeiro ano, que tinha terminado de lavar as mãos.

– Eu vi a Odalisca em cinza – disse Betty por fim.

– É? E aí?

– Você tinha razão. Tem uma coisa que não devia estar ali. Atrás do ombro da mulher. Não dá para ver se olhar direto para ela. Você tem que ficar no lugar certo.

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Kiki Strike vol. 2 – A Tumba da Imperatriz

– Anamorfose. – Fiquei contente em saber que não tinha alucinado no museu.

– Ana-o-quê?

– É como se chama essas imagens ocultas. São ilusões de ótica. Você só pode vê-las de determinados ângulos. E o que era?

– Um esquilo.

Ficamos em silêncio, olhando-nos no espelho. A tela que eu vira mostrava uma mulher num ambiente turco. Não havia motivos para um esquilo estar ali. Eu nem sabia se havia esquilos na Turquia.

– Tem certeza? – perguntei.

– Tenho. Havia outra tela da exposição com um esquilo oculto. O nome era Vênus e Adônis. O esquilo está sentado num galho de árvore.

– Você acha...

– Eu não acho, Ananka. Eu sei. São pinturas de Kaspar. – E depois ela começou a chorar.

***

No último tempo, planejei uma ousada escapada depois da aula. Meu destino podia estar nas montanhas da Virgínia Ocidental, mas eu tinha de achar uma maneira de adiar isso. Às quatro horas, disparei para a saída sem esperar por Betty. Eu não sabia aonde ir, mas assim que estivesse em segurança, entraria em contato com as Irregulares. Corri o caminho que levava aos portões da escola e descobri minha mãe encostada num parquímetro.

– Vai a algum lugar? – perguntou ela.

– Para casa? – eu suspirei. Era hora de admitir a derrota.

O metrô estava lotado de estudantes indo para casa, mas só uma tinha a mãe acompanhando. Para esconder minha humilhação, pratiquei o olhar vago dos viajantes exaustos, meus olhos passando pelos anúncios que ficavam no alto do trem. O mais perturbador mostrava fotos lado a lado da cabeça de um anônimo. A cabeça de antes tinha pouco mais de um trecho árido de careca, enquanto na de depois brotava um cabelo grosso e luxuriante. Uma marca de cabelo sintético em spray assumiu o crédito pela melhoria. Por seis quadras, li e reli a legenda: "Nunca vão saber a diferença!" Escondido atrás daquelas palavras, um significado místico me

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escapava. Quando as portas do trem se abriram na Spring Street, eu sabia o que era.

Naquela noite, fiquei sentada em meu quarto, olhando a parede por horas sem fim, sem pretender ter qualquer contato com o mundo. Não me incomodei de encher as duas malas que ainda estavam no chão do meu quarto. Não me importava se isso significasse sair da cidade com as roupas do corpo. Eu era a única pessoa que sabia que um crime terrível tinha sido cometido. Continuava cismada com cinco fatos simples:

1. Lester Liu era um trapaceiro.2. Oona Wong era uma traidora.3. Eu também era.4. Alguma coisa ruim estava prestes a acontecer.5. De jeito nenhum eu podia sair de Nova York.

A porta de meu quarto se abriu e alguém entrou.

– Saia – pedi. – Vou fazer as malas depois.

– Soube que a Virgínia Ocidental é linda nesta época do ano. – Eu me virei e vi Kiki sentada à minha mesa, totalmente à vontade. Desabotoou o casaco preto e longo e atirou uma perna vestida de bota por cima da outra. – Mande-nos um queijo gouda quando estiver acomodada.

– Minha mãe e meu pai sabem que está aqui?

– Shhhh. É claro que não. Mas eles não trancaram todas as janelas do apartamento.

– Como está Verushka?

– Está acordada e parece um pouco mais humana. É cedo demais para ter certeza, mas acho que a sra. Fei pode ser salvado a vida dela.

– Isso é maravilhoso. – Abri um sorriso amarelo. – Recebeu a história que mandei para você? Livia está voltando a Nova York.

– Vamos nos preocupar com isso depois. Como você está?

– Triste. Esta pode ser a última vez que vejo você, até o verão.

Kiki ergueu uma sobrancelha.

– Ainda não vou entregar você para as vacas. Soube que você teve uma noite interessante ontem. Quer me contar o que aconteceu?

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– Betty não te falou?

– Eu perdi o primeiro telefonema dela. Quando finalmente consegui falar com ela, ela estava perturbada demais para dizer coisa com coisa. Além disso, imaginei que seria muito mais interessante ouvir de você.

– Bom, quando fui ver a exposição da Imperatriz com Oona, ainda havia alguns trabalhadores em uma das galerias. Eles embalavam telas de uma exposição anterior. Um deles se abaixou e vi que tinha uma tatuagem da Fu-Tsang. Quando carregou uma tela numa plataforma móvel, eu o segui e vi para onde a levava. Mas ele não a roubou. Só colocou em outra parte do museu. Eu os vi pendurando a tela e pensando ter visto uma coisa estranha, mas não podia ter certeza.

"Então hoje de manhã entrei na internet para verificar as telas da exposição anterior. Todas eram de nus. Uma era A toalete de Vênus... A tela que Siu Fah copiou antes de fugir. Betty foi ver as outras esta tarde. Disse que as duas tinham esquilos onde não devia. Ela está convencida de que Kaspar as pintou.

– Sim, ela conseguiu chegar até aí. O que você acha?

– Eu entendi, Kiki. Sei o que está acontecendo. Lester Liu e os Fu-Tsang roubaram algumas telas da exposição de nus. Usaram a Imperatriz para entrar nas galerias quando os alarmes estivessem desativados. De algum modo trocaram as obras de arte. Aquelas que os trabalhadores penduraram ontem à noite... Ou despacharam para outros museus... São todas falsas. Por isso as crianças taiwanesas foram sequestradas. Ele as está obrigando a fazer reproduções. Agora que elas terminaram, não há como saber o que pretende fazer com elas. E acho que Betty tem razão. Acho que Kaspar está com elas. Quem mais colocaria um esquilo em uma tela de Rubens? Era uma mensagem secreta para nós.

– Excelente trabalho, dra. Watson – disse Kiki. – Mas eu sei de uma cosia que você não sabe.

– O que é?

– Você viu a coleção de arte de Cecelia Varney na noite do jantar. Se Lester Liu já é dono de obras de arte suficientes para encher um museu, por que ia precisar roubar mais?

– Boa pergunta. – Kiki tinha razão. Não fazia sentido.

– Já considerou que ele pode não estar roubando as telas para si mesmo? Lembra quando soubemos que Livia e Sidonia estavam com aquele gângster russo?

– Oleg Volkov?

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– Esse. Pesquisei um pouco quando você me contou. Você disse que as telas roubadas eram todas de nus? – Eu assenti. – Desde que enriqueceu, Volkov se tornou um dos maiores compradores de arte do mundo. Fez uma farra de gastos por um bom tempo. Mas seu gosto é muito específico. Ele não liga para estilo nem período. Nem acho que se importe se a obra é boa. Ele só compra telas de mulheres nuas. Quanto maiores as mulheres, melhor, ao que parece.

– Acha que Lester Liu roubou as telas para Oleg Volkov?

– De que outra maneira Volkov completaria sua coleção se as telas que ele quer não estão à venda?

– E Sergei Molotov? Onde ele entra nessa história?

– Ele também deve estar nessa. Talvez não esteja em Nova York só por minha causa.

– O que acha que eles querem?

– Dinheiro, poder, vingança... Ou uma mistura dos três. Desconfio de que vamos descobrir muito em breve.

– Tem outra coisa, Kiki. Você não vai gostar. Oona sabe o que está havendo. Ela viu o cara da Fu-Tsang no museu, mas não fez nada. Ela deve estar no esquema.

Os olhos de Kiki brilharam.

– E imagino que você tenha chegado a essa conclusão.

– Você ainda não acredita, não é? O que Oona precisa fazer? Escrever uma confissão?

– Ela tem sido nossa amiga há anos e nunca nos deixou na mão. Antes de condená-la, devemos uma coisa a ela.

– O quê?

– A oportunidade de se defender. É por isso que todas vamos nos reunir amanhã ao meio-dia na casa de Lester Liu. Parece que você terá de cancelar seus planos de viagem.

– Mas como vou conseguir isso? Todo mundo está me vigiando.

– Vamos criar uma distração. Não terá de ser nada grande, só o bastante para você escapulir.

Foi aí que tive um de meus poucos momentos de gênio na vida.

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– Tem tempo para fazer uma entrega esta noite? – perguntei.

COMO FALSIFICAR UMA OBRA DE ARTE

Eu nunca defenderia uma vida de crimes, mas a verdade é que em geral é mais fácil falsificar uma obra de arte do que revelar uma falsificação. E por isso que há falsificações em algumas das casas e museus mais refinados do mundo. Na verdade, alguns dizem até que a Mona Lisa exibida no Louvre, na França, não passa de uma cópia do original. Então quando chegar a hora de comprar sua primeira obra-prima, é melhor saber o que está enfrentando. Aqui estão algumas medidas que um falsificador rematado pode tomar para fraudar você.

Ele vai escolher o tema com cuidado

É incomum (mas não erudito) que um falsário recrie uma obra de arte que já existe. A maioria prefere produzir uma pintura nova e alardeá-la como uma obra perdida de um artista morto e respeitado. Porém, um bom falsificador pensará duas vezes antes de produzir um Picasso ou um Van Gogh. Quanto mais famoso o artista, mais provavelmente estarão envolvidas aquelas pessoas irritantes com seus microscópios como "especialistas".

Um artista é contratado

Não importa se um falsificador não sabe pintar – há muita gente que pode fazer isso. Infelizmente, qualquer pintor americano disposto a aceitar uma encomenda de um falsário deve cobrar um preço exorbitante. (Ou pior, exigir parte dos lucros!) Felizmente para a comunidade do crime, muitos países, como a China, têm artistas jovens muito bem treinados que estão dispostos a trabalhar por um preço baixo. Na maior parte do tempo, eles nem precisam ser sequestrados.

Outra pintura deve ser sacrificada

Um falsário não pode simplesmente ir à loja de material de arte para escolher suprimentos para sua pintura. Uma tela nova em folha é um sinal certo de falsificação. Em geral, ele simplesmente vai comprar uma obra de arte ruim que tenha a mesma idade da tela que está reproduzindo – e pintar por cima. A fraude pode ser detectada por raios X, mas ele se certificará de que ninguém olhe tão de perto antes que seu dinheiro esteja no banco.

Ele faz o dever de casa

Os especialistas costumam detectar falsificações examinando as telas e tintas usadas em sua criação. Um bom falsário pesquisará os pigmentos e instrumentos que o artista original teria

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empregado e se ater a eles – mesmo que isto signifique moer umas cochonilhas para conseguir o tom certo de vermelho (carmim).

A arte deve sofrer os estragos do tempo

À medida que uma tela envelhece, aparecem na superfície rachaduras finas (chamam-se craquelês). A não ser que um falsário queira esperar uma ou duas décadas para que essas fissuras comecem a aparecer, ele terá de recriá-las. Pode expor a tela ao calor, arranhar a superfície com um alfinete ou misturar clara de ovo no pigmento. Não há uma técnica infalível, mas qualquer uma das três – se benfeitas – enganará a maioria dos olhos.

Uma história inteligente é inventada

Um falsário não pode afirmar que herdou a tela de sua avó em Topeka. Deve inventar o que se chama uma "proveniência". Isto é uma história de obra que identifica seus danos ao longo de décadas ou séculos. Os compradores devem ficar particularmente preocupados com histórias românticas que envolvam famílias antigas e aristocratas que faliram em épocas difíceis.

Os dedos são cruzados

Mesmo quando uma falsificação é detectada, em geral varrem para baixo do tapete. Os ricos abominam admitir que foram ludibriados, e até os museus às vezes deixarão que uma tela falsa fique em suas paredes simplesmente para evitar o constrangimento.

CAPÍTULO TREZE

Fugitiva

Precisamente às 8h18 da manhã seguinte, uma bomba de inhaca foi atirada na sala dos professores da Escola para Meninas Atalanta. Outras 22 foram detonadas em rápida sucessão para fazer seu trabalho sujo nas salas de aula, armários de material de limpeza e banheiros do prédio. A última bomba foi detonada no saguão da escola enquanto as alunas e funcionaram fugiam, muitas com ânsia de vômito e gritando de nojo. A culpada ficou à pela vista da multidão que evacuava o prédio, rindo como uma louca do caos que provoco. Embora uma máscara de gás escondesse a maior parte de seu rosto, não havia como confundir o cachos ruivos e brilhantes de Molly Donovan.

O gemidos das sirenes perfurava meus tímpanos. Três carros da polícia guincharam e pararam na frente da escola, e uma equipa da SWAT saltou da traseira de um furgão preto sem placa. Molly não resistiu à prisão – afinal, foi ela mesma quem chamou a emergência. Enquanto era algemada e arrastada ao prédio, escapuli pela turba hipnotizada e me afastei rapidamente da

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escola. Embora meu plano tivesse se mostrado um sucesso estelar, não tive vontade de comemorar. Minha vida estava uma bagunça e parecia mais fácil fugir do que ficar e me envolver numa pequena faxina de primavera. Tinha contado mentiras demais a meus pais para me perdoar. Não havia volta. Proteger o segredo da Cidade das Sombras tinha me custado minha casa. Dividir esse segredo me custaria as Irregulares.

Fiquei em uma banca de jornais por mais ou menos uma hora, colocando minhas fofocas de celebridades em dia, até que o dono me informou grosseiramente que ele não era dono de uma biblioteca. Retornando à rua, minha paranoia voltou. Viaturas policiais pareciam reduzir ao passar por mim. Lojistas olhavam de suas vitrines. Por fim, comprei um copo de café e um bagel e fui para o Central Park esperar pelas Irregulares. Alguns flocos de neve solitários vagavam das nuvens no alto. Um homem de queixo quadrado e moletom passou correndo, os punhos cerrados ao cortar o ar gelado. Um sujeito de olho braços que esperava que um poodle terminasse seus "negócios" foi obrigado a pular para fora do caminho do corredor. Peguei a trilha perto da rua 78 e fui para as árvores na frente da mansão de Lester Liu. A ponta de um par de asas surradas se projetava de sob um arbusto e ouvi o cacarejar suave de uma galinha.

– Quem estão aí? – uma voz assustada chamou de entre as folhas. – O que você quer?

– Howard? É você?

– Talvez – foi a resposta cautelosa.

– É Ananka. Lembra de mim? Sou amiga de Kaspar.

A cabeça de Howard Van Dyke apareceu no arbusto. Com a barba adornada de folhas, ele podia ser um espírito da floresta.

– Ora, olá – disse ele alegremente. – Que gentileza a sua me fazer uma visita. Quer entrar? – Ele separou os galhos e eu me enfiei no arbusto. A clareira no meio era surpreendentemente espaçosa, com lugar suficiente para mim, Howard, a galinha dele, os esquilos de Kaspar e um gato. Os suprimentos de uma semana de salsichas viena e feijão enlatado estava empilhado de lado.

– Parece que está bem abastecido – eu disse.

– Sim, é muito estranho. Pessoas diferentes me trazem mantimentos todo dia. Na segunda, foi uma estrela de cinema chinesa. Ontem foi uma senhora indiana adorável num vestido esplêndido.

– Era Betty – falei, mas não conseguia me lembrar de vê-la vestida de estrela de cinema chinesa. – Todas são Betty. Ela adora andar disfarçada.

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– Entendo. – Howard assentiu como se o que eu disse fizesse perfeito sentido. – Ela disse que eu não devia morar no parque. Disse que preciso ir para casa.

– Onde fica a sua casa? – O gatinho de Howard pulou no meu colo e eu passei os dedos por seu pelo preto e macio.

– Eu morava ali. – Ele apontou para o lado oeste do arbusto. – Eu tinha mulher e dois filhos. Às vezes eu os vejo, mas ele não me veem. Não sabem mais quem eu sou.

– E por que não? – perguntei. – Por que não mora com eles?

– Eu cometi um erro. – Howard baixou a cara na barba e começou a chorar. – Comprei ações ruins e perdi todo o nosso dinheiro. Pensei que podia esconder a verdade, mas minha mulher descobriu quando levaram a mobília. Foi quando decidi morar no parque. Não posso ir para casa. Minha família fica melhor sem mim.

– Como sabe disso? Já perguntou a eles como eles se sentem?

Howard levantou a cabeça, surpreso.

– Foi isso que a estrela de cinema disse.

– E o que você disse a ela?

– Eu tenho medo.

– Não pode se esconder para sempre, Howard. Um dia terá de ir para casa. Talvez eles o perdoem. Talvez não. Mas você precisa dar essa chance a eles. É justo. – Só dizer isso fazia com que eu me sentisse culpada. Olhei o gatinho ronronando no meu colo. – Howard? Onde conseguiu esse gato?

– É o gato de Kaspar. Ele achou no dia em que foi salvar as cobras.

– Como assim, salvar as cobras?

– Ele não queria que outras cobras fossem comidas, então foi salvá-las. Depois o homem do terno apareceu e o levou.

Ouvi uma Vespa ao longe, Kiki tinha chegado ao Upper East Side.

– Howard, quero que escute com atenção, está bem? Cuide muito bem desse gato. Não o perca de vista e não deixe que ele se perca. Daqui a alguns dias, Kaspar vai voltar para pegá-lo.

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– Ele vai? – Howard ficou superfeliz. – Você vai salvar Kaspar?

– Vou. E ele vai ficar muito feliz se você ainda estiver com o gato. – Olhei para o gatinho e contei de novo. Não havia como errar. O animal tinha seis dedos em cada pata.

***

Enquanto estava visitando Howard, começou a primeira nevasca da estação. Flocos gordos de neve se lançavam na cidade. Penduravam-se em galhos e grudavam nas calçadas, transformando New York num cenário de filme em preto e branco. Os sons da cidade ficaram abafados e os sinais de trânsito balançavam no vento, os globos verdes e luminosos a única cor que restou na Quinta Avenida. Neste mundo silencioso e paralisado, a mansão branca e imensa de Lester Liu assomava na Quinta Avenida como a Fortaleza da Solidão.

Kiki Strike acorrentou a Vespa em um banco do parque de frente para a casa de Lester Liu enquanto Betty, DeeDee e Luz convergiam para nosso ponto de encontro de três direções diferentes. Ninguém sorria.

– Um milhão de dólares para a primeira pessoa que adivinhar o que achei no parque – informei ao grupo.

– Não estou com humor para joguinhos – disse Luz. – E você não tem um milhão de dólares.

– Conte logo, Ananka. – As pálpebras de DeeDee caíram de exaustão.

– Tudo bem – fiquei irritada. – Acabo de bater um papinho com o amigo de Kaspar, o Howard, e ele está dividindo um arbusto com o herdeiro da fortuna Varney.

– Howard tem um gato de seis dedos? – A sobrancelhas de Kiki tocou a beira do gorro de tricô preto.

– É. Kaspar achou no dia em que foi sequestrado.

– Kaspar? – Os olhos de Betty cintilaram ao ouvir o nome dele. A coisa era séria.

– Isso quer dizer que podemos ter a primeira família do crime de Nova York expulsa de sua mansão elegante? – Luz sorriu com malícia.

– Pensei que estávamos tentando manter a mente aberta, Luz – Kiki suspirou.

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– Neste exato momento, estou tentando não morrer congelada. – DeeDee tremeu e sacudiu os flocos de neve das trancinhas. – Será que podemos começar? Fiquei acordado a noite toda preparando mais Fille Fiable. – Ela colocou a mão por dentro do casaco e sacou um vidro grande de perfume. – Se eu não descansar logo, vou desmaiar.

– Vá para casa, se estiver cansada – propôs Kiki. – Já fez o bastante por hoje.

DeeDee sacudiu a cabeça.

– Nem pensar. Vou dormir muito melhor quando descobrir o que está havendo.

– Tem certeza de que quer saber? – perguntou Luz.

– Não comece com isso de novo – alertou Kiki

***

Tive a sensação de que estávamos sendo esperadas. O mordomo abriu a porta e deu um passo para o lado em silêncio. Lester Liu nos recebeu no saguão, a bengala numa das mãos e um lenço com monograma na outra. Sua cabeça de repente se voltou para trás e inclinou para a frente num espirro violento. Ele enxugou o nariz e colocou o lenço no bolso do paletó.

– Boa tarde, senhoras. – Sua voz, normalmente suave, estava áspera e nasalada. – Minha filha desconfiou de que vocês podiam passar por aqui hoje. Perdoem-me por não oferecer minha mão. Receio estar com uma gripe terrível. Não quero colocar vocês em risco.

Olhei para DeeDee e entendi, pelo olhar apavorado, que a gripe de Lester Liu tornava nosso Fille Fiable inócuo.

Kiki foi direto ao assunto.

– Oona está?

– Está sim. Está em seu quarto, fazendo a prova do vestido que vai usar na abertura de gala amanhã. Eu ficaria feliz em levá-las lá. – Lester Liu parou para me abrir um sorriso condescendente. – Desde que a srta. Fishbein prometa não andar por aí de novo.

Kiki falou por mim:

– Vamos ficar bem atrás do senhor, sr. Liu.

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– Então, façam a gentileza... Acompanhem-me, senhoras. – Ele gesticulou para uma porta cravejada e buracos de pregos. Era a porta que estava bloqueada na primeira vez que visitei a mansão. As outras meninas deslizaram para dentro, mas eu hesitei na soleira. O ar na ala leste era espesso de poeira. Partículas mínimas cintilavam nas tiras finas de luz do dia que se espremiam pelas frestas das janelas. A pouca mobília parecia ser estofada de pelo cinza fosco. Achei difícil acreditar que Oona Wong passasse muito tempo numa parte da mansão que parecia e cheirava a um mausoléu.

– Pode ficar aqui, se preferir, srta. Fishbein. – Pude ouvir o humor na voz de Lester Liu. – Sukh cuidará para que fique longe de problemas.

Eu não queria ficar com o dublê de cabelo feio de Gengis Khan. Corri até Betty, Luz e DeeDee, que se espremiam no meio da sala.

– O senhor abriu a ala leste – observou Kiki calmamente enquanto apreendia tudo. – Não está preocupado com a conta do aquecimento?

Lester Liu nos guiou a uma sala de estar vazia.

– Creio que posso pagar por todas as comodidades modernas necessárias, srta. Strike. Agora que minha filha veio morar comigo, precisei de mais espaço. Esta ala da mansão servirá como seus aposentos particulares. Como pode ver, ainda temos de decorar um pouco. – Meus olhos passearam pelo papel de parede desbotado decorado com flores de lótus entrelaçadas e trechos de mofo preto que escorriam. Se a casa não fosse assombrada, era um desperdício de uma excelente oportunidade. Kiki deve ter pensado a mesma coisa.

– Como está sua fantasma? – perguntou ela. – Ela finalmente desapareceu, agora que Oona está aqui com o senhor?

Lester Liu riu, o que provocou um espirro.

– Não. A fantasma ainda está conosco. Não espero que vá embora. Sabe o que são fantasmas, srta. Strike?

Andamos por um jardim de inverno, seu teto de vidro abobadado coberto de neve. Um emaranhado de plantas mortas foi esmagado sob nossos pés. Enquanto pisávamos no caule petrificado de uma palmeira, senti Luz puxar minha manga. Nós duas sabíamos que Oona nunca teria ido tão longe sem voltar. Era evidente que Lester Liu não estava nos levando a ela, mas Kiki pareceu não perceber. Dei um tapinha em seu ombro, mas ela preferiu me ignorar.

– Alguém sabe o que são fantasmas, sr. Liu? – perguntou ela.

– Eu sei. Os fantasmas são o passado vivo. Ninguém pode escapar do próprio passado, srta.

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Strike. Não eu. Nem você. Nem Cecelia Varney. Sabe por que a srta. Varney se trancou nesta mansão? Ela acreditava que era assombrada. Descobriu que sua fortuna não vinha de fazendas de batatas, como sempre pensou, mas das fábricas de armamento do pai. Um médium a convenceu de que os espíritos das pessoas que foram mortas por essas armas um dia se vingariam. Ela cedeu toda uma ala de sua mansão aos espíritos na esperança de aplacá-los, e tentou dissipar sua fortuna para que nenhum legatário humano herdasse também sua culpa.

– Então ela não estava preocupada com a conta do aquecimento.

– Não, srta. Strike. A srta. Varney compreendia que o passado nunca vai embora. A não ser que tomemos medidas, tudo um dia voltará para nos assombrar.

Depois do jardim de inverno, ficava um imenso salão de baile revestido de painéis de madeira. Uma luz se derramava por baixo de uma porta na extremidade do salão. Agora estávamos imersas na ala imensa e vazia da mansão. O estalo agudo da bengala de Lester Liu no piso de madeira de repente parou.

– Ah, chegamos – disse Lester Liu. – Vão descobrir o que procuram dentro deste aposento.

– Acho que vou ficar aqui – murmurou Luz.

– Eu também – DeeDee concordou. Betty não se mexeu.

– Vamos, senhoras, o que há para se temer?

Kiki me deu um cutucão forte. Enquanto eu passava pela porta, ela ficou para trás, parada, de braço dado com Lester Liu. Eu sabia que ela podia derrubá-lo com um único soco. Girei a maçaneta, mas ela parecia emperrada.

– Não abre. – Minha boca estava seca e eu me sentia meio tonta.

– Então sugiro que destranque – aconselhou Lester Liu.

Senti a tranca estalar entre meus dedos e prendi a respiração enquanto abria a porta. Ali, sentadas no chão de um quarto empoeirado, havia mais de uma dúzia de pessoas, de mãos e pés amarrados, os olhos vendados e com mordaças enfiadas nas bocas. Não pude ver nada além do alto de suas cabeças. Todas, exceto uma, tinham cabelos pretos.

– Surpresa! – exclamou uma voz conhecida.

Sergei Molotov entrou no campo de visão portando uma pistola. Tentei bater a porta na cara dele, mas Molotov agarrou meu braço e me puxou numa chave de cabeça, a cara espremida na minha têmpora. Eu o ouvi fungar no meu pescoço.

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– Você toma banho? Tem um cheiro repugnante. Parece de sovaco. – Ele tinha acabado de dar uma bela fungada no Fille Fiable.

– Solte-me. Sou uma agente dupla – cochichei. – Estou trabalhando para o sr. Liu.

– É mesmo? – Sergei parecia confuso e senti seu braço afrouxar.

– O que está fazendo, sr. Molotov? Coloque a menina com as outras crianças – ordenou Lester Liu. Enquanto ele estava distraído, as Irregulares atacaram. Mas antes que Kiki pudesse descer um murro, Lester Liu puxou uma adaga comprida da bengala. A ponta pousou na base do pescoço de Kiki. As outras meninas ficaram paralisadas.

– Parece que seu passado voltou para assombrá-la, srta. Strike.

– Olá, princesa. – Molotov olhou Kiki com desprezo. – É bom vê-la novamente. E como está minha velha amiga Verushka Kozlova? É verdade o que dizem os jornais... Que é possível que já esteja morta?

Kiki o ignorou e se virou para Lester Liu.

– Confia neste homem? Está ciente de que ele tem o hábito desagradável de assassinar seus empregadores, não é? Quem sabe o que vai fazer com você.

– Isso seria motivo de preocupação se o sr. Molotov fosse meu empregado. – Lester Liu baixou a adaga e abriu um sorriso presunçoso para Kiki. – Mas ele recebe ordens da chefe desta operação... Sua queria tia Livia. Não consigo entender por que ela ia querer me prejudicar quando nosso acordo tem se mostrado mutuamente benéfico. Ela entregará a seu patrono, Oleg Volkov, algumas obras de arte que ele deseja e o sr. Volkov generosamente financiará a volta de Livia a Nova York. Ela, por sua vez, me dará seu mapa dos túneis subterrâneos. Como bonificação, poderia desfrutar de minha vingança. Agora, senhoras – disse Lester Liu, encantador como sempre –, poderiam se juntar à srta. Fishbein? Desculpem-me se seus aposentos estão meio apinhados, mas não pretendemos mantê-las como hóspedes por muito tempo. Sr. Molotov, poderia imobilizar as meninas, por favor? Prefiro não ter nenhum perturbação esta noite.

– Você vai nos matar, imagino – disse Kiki enquanto Molotov amarrava suas mãos às costas.

– Ah, Deus, não. – Lester Liu riu. – Sou um homem de negócios, e não um assassino. Não pretendo matar suas amigas. Pretendo vendê-las. Existem países com demanda por pessoas de sua idade por um preço muito alto. Quanto a você, srta. Strike, não é mais preocupação minha. Sua tia pode fazer com você o que preferir, embora eu não possa deixar de ter esperanças de que os planos dela incluam muita dor.

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– E Oona? – perguntou Kiki.

Lester Liu lambeu os lábios como se saboreasse uma ideia deliciosa.

– Tenho um castigo especial em mente para a menina que diz ser minha filha. Devo admitir que estou ao mesmo tempo impressionado e apavorado com a ganância da menina. Comprei a confiança dela por uma pechincha. Nem imaginam como foi fácil colocá-la contra vocês. Ela não queria nada além da riqueza de uma imperatriz. Acho que concordará que é adequado que ela partilhe do mesmo destino.

– Sabe de uma coisa, há um problema com seus planos – disse Kiki. – O mapa de Livia dos túneis é inútil. Seus homens seriam devorados pelos ratos em minutos.

– Isto não é mais problemas, srta. Strike. Por que acha que me esforcei tanto para conquistar a confiança de minha filha quando eu podia ter matado todas vocês? Ela me contou seu segredinho. Tenho o que preciso para afastar os ratos. Agora, se me derem licença, tenho uma festa para planejar.

Molotov desligou o interruptor e nos deixou no escuro. Tentei soltar minhas mãos, mas a corda queimou meus pulsos.

– Ei, Kiki. Esta seria a hora errada para dizer que eu avisei? – Era a voz de DeeDee.

– Esta seria a hora errada para dizer que Oona estaria morta se eu saísse daqui antes que o pai dela tenha a oportunidade de matá-la? – acrescentou Luz.

– Kaspar! Kaspar? Você está aqui? – sussurrou Betty.

– Hummm-hummm – disse uma voz abafada.

– Acha que alguém vai nos ouvir se gritarmos? – perguntei.

– Quer que eles nos amordacem também? – perguntou Kiki. – Acalmem-se. Vamos descobrir um jeito de salvar Oona.

– Salvar Oona? – cuspiu Luz. – Caso tenha se esquecido, ela é a razão de estarmos nessa barafunda. A traidorazinha gananciosa até contou a pai sobre o perfume repelente de ratos. Digo que a gente deve salvar a própria pele e deixar que Oona receba o que espera por ela.

– Você a deixaria morrer num caixão hermeticamente fechado? Deixaria que o cadáver dela ficasse em exposição no Metropolitan Museum of Art? – perguntou Kiki. – Não importa o que tenha feito, ela não merece isso.

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– O que quer dizer? – sussurrou Betty.

–Não entendeu? Foi o que Lester Liu quis dizer por partilhar o destino da Imperatiz. É o que ele planeja para ela.

– Ah, tenha dó – disse Luz. – Ele não vai matá-la. Como explicaria o desaparecimento da própria filha?

– Boa pergunta – observei.

– Sepultada para sempre no Metropolitan Museum of Art. Isso é horrível – disse DeeDee pensativamente.

– Ninguém vai morrer nem ser vendida como escrava. – Era uma voz de homem conhecida.

– Kaspar! – gritou Betty.

As cortinas das janelas se abriram o suficiente para que uma luz fraca entrasse na sala e revelasse um Phineas Parker relativamente limpo e incrivelmente bonito.

– Oi, Betty. – Kaspar estava radiante enquanto soltava as amarras. – Achou meus esquilos?

– Foi assim que soubemos que as telas no museu eram falsificações – disse ela. – É tão bom encontrar você. Eu... quer dizer, nós... estamos procurando por você há semanas.

– É bom que vocês tenham me encontrado também.

Eu podia ver que os sentimentos dele por Betty não tinham mudado.

– E aí, Kaspar, como terminou sendo raptado? – perguntei, sentindo-me um tanto constrangida por ser uma testemunha cativa do reencontro deles. – Howard disse que você estava tentando salvar umas cobras, é isso?

– Pode-se dizer que sim – respondeu Kaspar com uma risada. – Na manhã depois de seu jantar, Howard e eu estávamos tomando café da manhã quando vi um furgão de entregas de uma empresa chamada Tasty Treasures parar na frente da mansão. Eu tinha certeza de que era a mesma que eu vira entregar as cobras. Então, quando o motorista entrou na mansão, eu subi de fininho para ver o que tinha dentro do furgão. Descobri gaiolas apinhadas de cobras, macacos e lagartos. Eu não podia soltá-los na rua... Tinha dado minha palavra a Betty. Eu tentava pensar num plano quando o entregador voltou. Eu o ouvi falando com um russo sobre um carregamento de gatos que tinha sido despachado para a Malásia. Acho que os gatos de seis dedos são considerados amuletos da sorte por lá. O entregador admitiu que ficou com um

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para ele. Olhei para baixo e vi um gatinho enroscado no chão do furgão. Eu não sabia mais o que fazer, então o peguei e corri. É claro que o russo me viu e me seguiu ao parque. Howard conseguiu fazê-lo tropeçar, o que me deu tempo suficiente para escrever um bilhete para Betty. Não sei o que teria me acontecido se eu não tivesse alguns desenhos meus no bolso. Quando ele percebeu que eu era artista, me trancou no porão com as outras crianças.

Kaspar se virou para Betty.

– Ficou preocupada comigo?

– Muito – sussurrou Betty.

– Chega desse mela-cueca – intrometeu-se Luz. – Como você se soltou?

– Um presente de Oona. – Kaspar ergueu um canivete retrátil minúsculo. – Devia ter um pouco mais de confiança nas suas amigas.

Os olhos de DeeDee se estreitaram.

– Por que Oona lhe deu um canivete?

– Para nos ajudar a fugir. Se não fosse por Oona, todos estaríamos espremidos num engradado agora mesmo. Uma das meninas taiwanesas desapareceu depois que terminamos as pinturas e os guardas decidiram que era arriscado demais nos manter no mesmo lugar. Eles pretendiam nos despachar para fora de Nova York, mas Oona convenceu o pai a nos trazer para cá, para o caso de precisar fazer mais algum trabalho.

"Na noite passada, ela me trouxe a faca e um kit de chaveiro. Ela nos disse para escapar amanhã à noite, enquanto todos estão na abertura da exposição.

– Estar seria uma má hora para dizer que eu avisei? – perguntou Kiki a DeeDee.

– Só porque Oona poupou Kaspar não quer dizer que seja uma santa – respondeu DeeDee asperamente. – Ela ainda ajudou Lester Liu a roubar as telas.

– Errada de novo – disse Kaspar. – Oona nunca esteve aliada ao pai. Ela vai denunciá-lo amanhã durante a festa. Descobrimos de onde ele tirou os nomes das crianças que sequestrou e Oona sabe onde todas as telas estão escondidas. Ela quer humilhá-lo.

– Por que ela contou tudo isso a você? – Luz escarneceu dele. – Você é praticamente um estranho.

– A quem ela devia contar? – disse Kaspar. – Pelo que eu soube, nenhuma de vocês acreditava

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nela.

– Podíamos ter acreditado, se ela se confidenciasse com a gente – murmurou Betty.

– Ah, meu Deus, o que foi que fizemos? – DeeDee gemeu enquanto começava a apreender a verdade.

–Oona sabe em que tipo de perigo se meteu? – perguntou Kiki.

– Não – disse Kaspar. – Ela acha que enganou o pai.

– Me desamarre – exigiu Kiki.

– Eu o farei, se insistir, mas Molotov vai voltar para nos ver mais tarde. Não teremos nenhuma chance de escapar amanhã se estiver faltando alguém quando ele voltar.

– Me desamarre – repetiu Kiki. – E desamarre Ananka. Conhecemos a mansão e alguém tem que encontrar Oona antes que seja tarde demais.

COMO PREVER O CLIMA

Durante anos, eu me convenci de que os meteorologistas de Nova York se empenhavam em me enganar. Toda manhã, eu via suas previsões. Ria de suas piadas bregas, admirava seus dentes superbrancos e acreditava em tudo o que me diziam. Como consequência, fiquei soterrada em nevascas, ensopada em tempestades e assada viva durante ondas de calor. Por isso aprendi a confiar em meus próprios sentidos e procurar por sinais de que um tempo desagradável pode estar a caminho.

As abelhas zumbem mais embaixo

Quando uma tempestade está se aproximando, o ar fica denso de umidade, o que significa que os insetos (e as aves que os comem) costumam zumbir mais perto do chão. Outros animais, inclusive gatos e cães, têm sido famosos por prever tornados e terremotos, então se Rover começar a agir como se estivesse possuído, pode ser hora de procurar um abrigo.

O som fica mais nítido

Não, você não está desenvolvendo super poderes. O fato de que pode ouvir aqueles homens mascarados sussurrando a uma quadra de distância significa que uma frente baixa de pressão está se aproximando. Prepare-se para um ou dois dias de tempo ruim.

A fumaça manda sinais

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Olhe as chaminés à sua volta. Se a fumaça subir reta no ar, pode preparar seu piquenique ou lançamento de foguetes. Se ela se achata ou zanza pelo céu, você provavelmente vai precisar uma capa de chuva.

O céu muda de cor

Como qualquer pastor de ovelhas profissionais lhe dirá, um céu vermelho no final da tarde é previsão de tempo bom, enquanto um céu vermelho pela manhã indica chuva a caminho. Mas se por acaso você vir um arco-íris a oeste, não se incomode em procurar o lendário pote de ouro. Procure seu guarda-chuva.

O vovô começa a reclamar

Os idosos podem prever o tempo muito bem. Suas articulações coloridas em geral indicam queda na pressão barométrica, o que significa que a chuva está chegando.

As catingas começam a se demorar

Há dias em que a cidade de Nova York parece ter o cheiro de um banheiro público. Quando está se aproximando um tempo ruim, o cheiro costuma ficar mais forte. Se sua casa é cercada de flores e árvores (e não latas de lixo, cocô de cachorro e canos de esgoto), talvez isto não seja ruim.

CAPÍTULO QUATORZE

Caça ao lixo

– Fique bem atrás de mim e faça o que eu fizer – ordenou Kiki. Ela arrombou a trance de nossa porta e se esgueirou em silêncio pelas paredes, parando de vez em quando para tentar ouvir sinais de movimento. Vestida de preto, Kiki podia desaparecer nas sombras. Mas embora eu tivesse trocado meu suéter vermelho pela jaqueta militar de Luz, ainda me senti visível e me xinguei por não ter me preparado melhor.

Tínhamos acabado de colocar a ponta de nossos sapatos na poça de luz que vinha do saguão da mansão quando a campainha tocou e ouvimos passos descendo a escadaria. Kiki deslizou para o escuro. Quando tentei segui-la, tropecei no meu próprio pé e caí de bunda com um baque suave. Os passos no saguão pararam, Kiki esticou a mão e com um puxão rápido me colocou de pé. Nós nos achatamos na parede enquanto os passos se aproximavam e o mordomo aparecia na porta. Sukh ficou imóvel, ouvindo, os olhos lentamente percorrendo a sala. Estávamos bem atrás dele, a cerca de um metro. Fechei os olhos e tentei não desmaiar quando percebi o que pendia de seu braço. Era a mortalha jade da Imperatriz.

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– Esqueça o que acabou de acontecer – sussurrou Kiki no meu ouvido depois que Sukh voltou ao saguão. – Esqueça tudo agora, ou nenhum de nós vai conseguir sair daqui.

A porta da frente se abriu.

– Posso ajudá-la? – ouvimos o mordomo dizer.

– Oi! – Minha cabeça virou de repente para Kiki. Era a voz de Iris. – Estou procurando minha amiga Oona.

– Você não é meio nova demais para ser amiga da srta. Liu? – Sukh parecia cético.

Iris se ofendeu.

– Só sou baixa para minha idade. Posso vê-la?

– A srta. Liu está indisposta no momento. Talvez possa voltar em outra hora.

– Tem algum problema com ela? – Eu entendi que Iris sabia que havia alguma coisa errada. – Ela está doente?

– A srta. Liu está bem – respondeu o mordomo, irritado. – Mas não está recebendo visitas hoje.

– Alguma das outras meninas passou por aqui?

– Não que eu saiba. Bom dia, senhorita.

– Por favor, diga que Iris esteve aqui! – gritou Iris enquanto a porta se fechava.

– O que ela estava fazendo? – cochichei para Kiki enquanto os passos de Sukh ficavam mais fracos. – Ela não devia estar na escola?

– E você também não devia? – perguntou Kiki.

Quando por fim a barra ficou limpa, Kiki virou pelo canto e partiu para a escada. Eu teria dado pelo menos uma parte de meu corpo para ficar na ala abandonada da mansão. Embaixo do brilho fraco de lustre de cristal, não havia onde se esconder. A gente podia muito bem ser alvo de papelão em um estande de tiros. No alto da escada, nos vimos na extremidade de um longo corredor. Havia oito portas fechadas para arrombar. Nossa vida dependia de decidirmos corretamente.

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– A maioria desses cômodos não estava sendo usada quando plantei os grampos – cochichou Kiki. – Oona deve estar em um deles. – Ela foi na ponta dos pés até a primeira porta, escutou com a orelha colada na madeira e espiou pelo buraco da fechadura. – Pode ser esta – disse ela, mergulhando para dentro do quarto.

As cortinas estavam abertas e uma luz prateada e clara banhava o quarto magnífico. Do lado de fora, o ar estava denso de neve e o sol da tarde era um borrão fraco. Junto à parede mais distante havia uma cama de baldaquino antiga com as cortinas de veludo verde fechadas. Com os passos abafados por um caríssimo tapete persa, disparei pelo quarto e puxei de lado o tecido pesado. Alguém dormia por cima das cobertas, o cabelo preto e brilhante esparramado no travesseiro.

– Oona? – sussurrei. Como não houve resposta, cutuquei o corpo. Era frio e rígido sob meus dedos. – Tem alguma coisa errada com ela – eu disse a Kiki. Sem pensar, puxei mais as cortinas e a luz caiu na visão medonha. A mão de Kiki cobriu minha boca, abafando o gripo que tentava escapar. Deitado na cama estava um cadáver vestido somente com um roupão de seda vermelha. Era tarde demais. Oona estava morta.

– Ananka, Ananka, escute. Não é Oona. – Kiki se recusava a tirar a mão, até que abri os olhos para olhar mais uma vez. A pessoa na cama tinha o mesmo tamanho de Oona, e até no escuro era fácil ver que antigamente também tinha sido bonita. Mas agora sua pele coriácea estava esticada sobre as maçãs do rosto. A ponta do nariz esfarelava e a boca pendia aberta num gripo interminável. Era a múmia.

– Esta é a Imperatriz? Quanto anos tinha? – consegui murmurar depois que parei de ofegar. Eu sempre imaginei a Imperatriz como uma mulher mais velha, mas o corpo na cama parecia extraordinariamente jovem.

– É difícil dizer – respondeu Kiki. – Quando morreu, ela não devia ser mais velha do que nós. Estou começando a ter pena da coitadinha. Ela foi assassinada, o túmulo foi saqueado e depois sua múmia largada num quarto no Upper East Side.

– O que acha que Lester Liu vai fazer com ela?

– O que quer que ele tenha em mente, duvido que seja adequado para a Imperatriz.

A ideia de uma múmia de dois mil anos enterrada sob o lixo numa caçamba ou decorando o covil de um colecionador excêntrico era insuportável de tão triste.

– Temos que salvá-la – eu disse a Kiki. – Mesmo que seja uma traidora, ela não merece isso.

– Vamos tentar – concordou Kiki. – Mas os vivos vêm em primeiro lugar.

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***

De volta ao corredor, Kiki se aproximou com cautela de um segundo quarto. Estávamos a centímetros de distância quando a porta se abriu um pouco e ouvimos uma risada familiar do outro lado. Fiquei paralisada de pavor. Em segundos eu teria estado cara a cara com Lester Liu se Kiki não tivesse agarrado minha mãe e me puxado pelo corredor. Uma porta se abriu enquanto passávamos. Oona estava sentada sozinha no chão de um quarto enorme, perigosamente perto de uma lareira acesa, grande o bastante para assar um porco premiado. Kiki e eu entramos de mansinho e fechamos a porta em silêncio. Ouvi Oona falando suavemente, como que a uma companheira invisível. Ela encostara a foto da mãe no chão e a cercara de tangerinas, maçãs e limas. No colo havia uma pilha de papéis coloridos que de longe pareciam dinheiro. A cada poucos segundos, Oona pegava um punhado de notas e atirava nas chamas. Eu tinha certeza de que ela perdera o juízo e comecei a falar, mas Kiki pôs a mão no meu ombro.

– Espere – murmurou ela em silêncio.

Quando a última tira de papel foi transformada em cinzas, Kiki e eu nos aproximamos da lareira. Ao ouvir nossos passos, Oona olhou por sobre o ombro antes de voltar a fitar o fogo.

– Ela tem o que precisa agora? – perguntou Kiki delicadamente.

– Isto é só o começo. – O rosto de Oona estava corado do calor. – Tenho quatorze anos para compensar.

– O que estava fazendo? – perguntei.

– Mandando dinheiro para a outra vida para o fantasma da minha mãe. Ela vai precisar dele, quando finalmente chegar lá. – Oona sorriu tristemente quando viu a confusão que devia estar escrita na minha cara. – Na China, muita gente acredita que o que você queima neste mundo pertence a seus ancestrais no outro mundo. Eu devia ter feito essas oferendas há muito tempo, mas fui uma péssima filha. Se minha mãe é um fantasma ansioso, a culpa é minha. Era meu dever cuidar dela e punir Lester Liu. – Ela se levantou e espanou as cinzas das roupas. – A porta estava trancada. Você arrombou?

Kiki ergueu uma sobrancelha.

– Não, abriu quando a gente passou correndo por ela.

Oona assentiu.

– A fantasma deve ter aberto pra vocês. Mas isso não quer dizer que devam ficar. É perigoso

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demais ficarem aqui agora.

– Tarde demais – eu disse a ela, deixando passar o comentário da fantasma. – Já fomos sequestradas. Acabamos de ver Kaspar lá embaixo. Ele nos contou de seus planos. Por que não contou para nós? A gente teria ajudado.

– Vocês estavam ocupadas e era minha responsabilidade... Não de vocês. Tive um pressentimento de que meu pai estava armando alguma, mas não conseguia deduzir o que era. Tive de me aproximar dele e fazê-lo acreditar que ele me conquistara. Então aceitei os presentes, gastei seu dinheiro e fiz o jogo dele. Depois de um tempo, eu o convenci. Acontece que sou uma atriz melhor do que eu pensava, porque acabei convencendo vocês, também. Mas no minuto em que descobriram que eu era filha de Lester Liu, todas estavam disposta a acreditar o pior de mim.

– Kiki não. Ela sempre confiou em você. Mas tem razão sobre o restante de nós. Prometo que isso nunca mais vai acontecer. – Doía admitir que eu fora uma boba, mas eu sabia que dizer a verdade era a única maneira de preservar a amizade de Oona.

– Não se preocupe. Eu a perdoo – disse Oona com tristeza.

– Então esse tempo todo você estava tentando se vingar da morte de sua mãe? Se tivesse nos contado o que seu pai planejava...

– Eu não sabia. Tive minhas desconfianças depois que conheci Siu Fah. Mas só soube que ele estava roubando telas do museu quando vi o cara da Fu-Tsang na noite em que você foi flagrada. Depois que saímos, eu disse a meu pai que tinha entendido tudo e que queria ajudar. Era a única maneira de descobrir onde ele escondia as crianças taiwanesas, antes que alguma coisa terrível acontecesse com elas. Mas tinha de guardar segredo, se quisesse fazer ele acreditar que eu estava do lado dele.

– A gente sabe. – Não pude deixar de demonstrar minha decepção. – Você contou a ele sobre os ratos. Isso não foi muito inteligente, Oona. E se alguma coisa sair errada? Se ele colocar as mãos no mapa da Cidade das Sombras, a cidade toda vai correr perigo.

O gênio de Oona se inflamou.

– Eu pareço assim tão idiota? Não contei a ele sobre o perfume. Dei a ele minha velha Flauta de Hamelin Reversa. Se ele conseguir o mapa, os homens dele vão virar comida de rato no minuto em que entrarem nos túneis. Mas este e o plano B. Se eu tiver sucesso, Lester Liu não irá tão longe.

Kiki esperou que Oona se acalmasse por um momento.

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– Entendo que esteja fazendo isso por sua mãe, mas acha realmente que ela ia querer colocar você em perigo? E a sra. Fei? Ela ia ficar arrasada se alguma coisa acontecesse a você.

– Está falando da pessoa que andou me espionando por anos? – Oona se irritou.

– Ela a ama, Oona. Só estava ouvindo para poder ajudá-la. Ela sempre cuidou de você e a tratou como filha. Qual é o seu dever para com ela?

Oona ia falar, mas se deteve. Sentou-se na lateral da cama e pôs a cabeça entre as mãos. Era como se tivesse descoberto um defeito fatal em seus planos.

– Tem razão. Eu fui tão idiota. Foi isso que o médium tentou me dizer, mas só ouvi o que queria. Ignorei todas as coisas sobre o sabão em pó e ter alguém me ouvindo. Entendi mal a mensagem toda. Mas isso não importa. Não posso parar agora. Já cheguei longe demais. Não tem volta.

– Sim, tem! – insisti. – Podemos todas sair esta noite. Vamos achar um jeito.

– Lester Liu vai te matar – disse Kiki abruptamente.

– Sei que é isso que ele quer. – Oona olhou para cima com um sorriso triunfante. – Mas depois de amanhã, ele estará na cadeia.

– Não, Oona. Ele vai te matar amanhã – disse Kiki, e o pânico atravessou o rosto de Oona. – Tivemos uma conversinha com ele antes; ele disse que quer que você morra como a Imperatriz. Tenho certeza de que isso significa duas coisas: primeira, ele vai trocar seu corpo pelo da Imperatriz. Ananka e eu acabamos de encontrar a múmia em um quarto neste mesmo corredor. Eles devem estar preparando o esquife para você. Segunda, ele quer que você seja sepultada viva, como a Imperatriz foi. Acho que você receberá uma droga que vai deixá-la paralisada. Depois ele vai deixar você sufocar até morrer dentro do esquife hermético da múmia enquanto todo mundo na festa vê. Você será coberta pela mortalha jade, assim ninguém vai saber a diferença. Isso parece divertido?

Eu tremi com a ideia, mas Oona ficou firme.

– Só terei de pensar em outra ideia.

– Eu tenho uma. Saia daqui enquanto pode e procure a polícia – eu disse.

– Não. – Oona bateu o pé. – Lester Liu pode escapar... Como fez da última vez. Eu teria que cuidar de minhas costas pelos próximos trinta anos. E vocês também. Tenho de achar um jeito de acabar com isso para sempre. – Ela se virou para Kiki. – Não é o que você faria se estivesse no meu lugar? Você daria à Livia e Sidonia outra chance de escapar?

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Kiki respirou fundo.

– Talvez haja uma maneira – disse ela pensativamente. – Mas você não pode agir sozinha. Tem que deixar que a gente ajude.

– Vocês duas ficaram malucas? – perguntei.

***

Minutos depois de Kiki e eu voltarmos ao cativeiro, Sergei Molotov chegou para verificar os prisioneiros. Ele entrou furtivamente no quarto feito um demônio jovial e acendeu a luz, cegando a todos temporariamente. O cabelo com gel cintilava como óleo de motor e atraía a atenção para sua tez doentia e nariz de agulha.

– Está confortável, minha princesinha? – Molotov estava emocionado ao ver Kiki amarrada. – Falei com a rainha Livia esta tarde. Ela e o sr. Volkov chegarão à América em breve e ela está ansiando para ver você. Disse que espera chegar a tempo para os funerais de Verushka Kozlova. Como é mesmo aquela expressão... Ela vai despir no seu túmulo?

– Cuspir – disse DeeDee.

– Sim, obrigado – disse Molotov. – Ela vai cuspir no túmulo de Verushka Kozlova.

Kiki encarava a parede como se não estivesse ouvindo uma palavra. As cordas em seus pulsos e tornozelos só estavam ali para exibição e, se não fosse por nossa amiga lá em cima, Kiki teria derrubado Molotov rapidinho. Como Kiki não respondeu, Molotov chegou mais perto. Peguei uma lufada de sua loção pós-barba fedida.

– Você não fala? Tenho maneiras de fazer as pessoas falarem. Eu disse que não ia machucá-la, mas talvez o sr. Liu não se importe se eu ferisse uma de suas amigas, não é? Talvez esta aqui? – Ele me chutou no queixo com força suficiente para me fazer gritar.

– Você é um monstro, Molotov. – A voz de Kiki era espessa de raiva. – Quer que eu fale? Então vou lhe fazer uma pergunta. O que vai acontecer quando Oleg Volkov não conseguir as pinturas dele? O que acha que ele vai fazer com você? Ouvi dizer que ele pode ser muito criativo.

Quando Molotov sorriu, seus lábios vermelhos e finos se esticaram numa fila de dentes cinzentos.

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– Mas que absurdo. As pinturas estão absolutamente seguras. A rainha Livia as entregará ao sr. Volkov pessoalmente. A pergunta que você devia fazer é como a rainha vai lidar com você? Espero que os planos dela sejam tão brilhantes quanto os do sr. Liu.

– Você demora a aprender, não é, Molotov? Nunca vai me manter trancada por muito tempo. E desta vez, não vou deixar que você e aquela bruxa velha escapem.

– Quem vai libertar você, princesa? A fantasma? – Molotov revirou os olhos e agitou os braços compridos e pálidos. – Uuuuuuu... – Eu podia rir, se o gemido não fosse idêntico ao que ouvi nas fitas de gravação. Lester Liu sabia de nossos grampos o tempo todo.

Molotov tinha começado a levar sua apresentação a todo um novo nível quando ouvimos um baque do outro lado da sala. Depois outro. E mais um. Podiam ser barulhos de uma casa velha. Podiam ser da tempestade do lado de fora – ou um galho de árvore batendo numa janela. Mas pareciam passos. As crianças taiwanesas se sentaram mais eretas. As Irregulares apontaram os olhos para a porta. Sergei Molotov parou no meio dos gemidos e aprumou os ouvidos.

– Talvez ela faça isso – disse Kiki com um sorriso descarado.

– Esta casa velha está caindo aos pedaços – declarou Molotov. – Os espíritos não virão salvar você. A mãe da menina chinesa não é mais fantasma do que a sua mãe. Eu sou o único fantasma aqui. Eu atirei a comida. Eu fiz os barulhos.

– Era você fazendo aquilo? – Luz riu. – Porque se for assim, estou mesmo impressionada.

O baque ficava cada vez mais alto. Alguém – ou alguma coisa – estava se aproximando.

– Quem disse que é a mãe de Oona? – Kiki o provocou. – Talvez Cecelia Varney ainda esteja zanzando por aqui. Ela não pode estar muito feliz com o que você fez com os gatos dela.

Molotov sacou a arma da cintura e esperou. Os baques pararam do lado de fora da porta. Embora eu estivesse assustada, não pude deixar de curtir o terror de Molotov.

– Sabe de uma coisa, Molotov, um homem sensato uma vez me disse o que são realmente os fantasmas. – O tremor na voz de Kiki não combinava com sua expressão. – São o passado voltando para empatar o jogo. Na China, eles têm fantasmas ansiosos, mas na Pocróvia nós temos a Likho. Lembra dela? A bruxa de um olho só, o espírito da infelicidade que todo mundo conhece mas não provoca. E se ela finalmente veio atrás de você? Depois de tudo o que você fez, não acha que ela vai pegá-lo, mais cedo ou mais tarde?

Molotov não suportou mais o suspense. Escancarou a porta e apontou a arma para a escuridão. Não havia nada lá.

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– Está vendo, princesa – disse ele, recuperando a coragem. – Nada de fantasmas. Era só a casa fazendo barulhos.

– Lembre-se disso quando estiver voltando pelo escuro – disse Kiki com um sorriso malicioso.

***

Eu não tinha a menor ideia da hora. A cabeça de alguém estava no meu ombro e algumas pessoas roncavam. Fiquei sentada olhando uma sala tão escura que não fazia muita diferença se meus olhos estavam abertos ou fechados. Eu devia estar fazendo planos, mas no lugar disso pensava na sala oculta embaixo da sinagoga Bailystoker quando uma lasca de luz entrou pela fresta da porta. Ouvi um estalo e a porta começou a se abrir um pouco. Uma figura magra, de camisola comprida, flutuou pela sala. A vela em sua mão iluminava um rosto branco emoldurado por cabelos escuros que caíam sobre ombros magros. Por um momento, eu tinha certeza de que não era Oona, mas o fantasma dela.

– Molotov saiu e todo mundo está dormindo – cochichou ela.

– Que bom. – Kiki tinha ficado acordada, pensando. Ela sacudiu Betty e cutucou Luz com a ponta do sapato. – Acordem – ela instou a todos enquanto Oona nos desamarrava uma por uma. – Hora de trabalhar.

– Onde estou? – murmurou Luz.

– Você está amarrada na mansão assombrada de um contrabandista homicida – informei a ela.

– É verdade, agora eu me lembro. Minha mãe vai ficar muito puta.

– Essa é a Luz Lopez – Ooan brincou enquanto tirava as cordas de DeeDee. – Destemida diante da morte, mas morre de medo da própria mãe.

Assim que ficou livre, DeeDee se levantou e atirou os braços em Oona. A cientista lógica desaparecera e uma boba sentimental tomara seu lugar.

– Eu sinto tanto por ter pensado que você era uma traidora. Eu realmente exagerei. Espero que me perdoe.

– Eu também – disse Betty, esfregando o sono e as lágrimas dos olhos.

– Somos três. Nem acredito que todas fomos tão idiotas – disse Luz. – Agora podemos resgatar você e dar o fora daqui?

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Oona deu um puxão amistoso no rabo de cavalo de Luz.

– Desculpas aceitas, mas vocês não podem sair. Os alarmes estão ligados. Se tentar abrir uma das portas ou janelas, eles vão disparar, e será a Fu-Tsang que atenderá ao chamado, não a polícia.

– E quem liga? – gemeu Luz. – Estou morta mesmo. Minha mãe vai mesmo me matar.

– Pelo menos você vai sofrer em Nova York. Eu vou tirar leite de vaca na Virgínia Ocidental – observei.

– Vocês duas sempre são bem-vindas no parque. – Era difícil saber se Kaspar falava a sério.

– Tá legal, tá legal. Podemos nos concentrar, por favor? – disse Kiki Strike. – Vamos salvar todo mundo, uma de cada vez. Oona deve ser a primeira.

– Já estava na hora. – Oona fingiu se queixar.

– Não força, Oona Wong. – Kiki riu. – Eu tenho um plano, mas vamos precisar de alguns suprimentos. Como estamos presas na mansão, vamos ter que fazer uso dos recursos disponíveis. E, Oona, se conseguirmos tudo o que precisamos, vamos sair daqui esta noite. Entendeu?

– Entendi.

– Tudo bem. Vamos começar pelo começo. Kaspar, desamarre as outras crianças. A essa altura, elas devem precisar dar uma espreguiçada. Oona, explique a eles o que está acontecendo. DeeDee, quando Fille Fiable ainda temos?

– Tem um vidro inteiro no bolso do meu casaco. Não acho que eles pegaram.

– Ótimo. Estamos com sorte. Agora, a parte mais difícil. Lester Liu quer enterrar Oona viva, então ele vai precisar de uma espécie de droga... Que vá paralisá-la para ela não se mexer no esquife de vidro. Seja lá o que for, temos que encontrá-la e substituí-la por alguma coisa inofensiva. DeeDee, você vem comigo para procurar. Se não encontrarmos a droga, todo o negócio vai mixar.

– Pode ser uma das drogas que usam para paralisar as pessoas durante uma cirurgia – disse DeeDee. – Acho que devemos começar pela cozinha. Uma coisa dessas deve ser guardada na geladeira.

– Fiquei de olho nas cobras – alertei.

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– Nem precisa dizer isso – disse Kiki. – Tá legal, Betty, você e Kaspar precisam encontrar umas roupas para a gente usar na festa de amanhã. Como não vamos trocar de roupa em casa, temos que nos virar com o que Cecelia Varney tem em seu guarda-roupa...

– Peraí, peraí, peraí – interrompeu Luz. – Nós vamos a abertura da exposição? Vocês ficaram doidas? Lester Liu nos reconheceria num segundo... E Ananka deve ter sido banida do museu para sempre.

– Só até meus 18 anos – eu a corrigi.

– Temos que ter cuidado e esperança de que o Fille Fiable faça o resto.

– Mas não entendo seu plano – disse Betty. – Como vamos evitar que Oona termine dentro do esquife da Imperatriz?

– Não vamos – disse-lhe Kiki.

– Mas ela vai morrer sufocada! – argumentou DeeDee.

– Não se Luz descobrir um jeito de deixar o ar entrar no esquife.

– Então vamos deixar que Lester Liu pense que venceu? – Luz estava intrigada.

– E vamos à exposição testemunhar Oona se levantar dos mortos e mandar o pai para a cadeia.

– Este é um jeito de chamar a atenção de todos. – Oona parecia satisfeita com o plano. – O que quer que eu faça?

– Você e Ananka vão esconder a Imperatriz – disse Kiki.

– Pra quê? – perguntou Luz. – Ela já está morta mesmo.

– Por que é o certo a fazer. Caso contrário, eles vão se livrar dela, e Ananka e eu concordamos que ela já passou pelo suficiente.

– Onde vamos escondê-la? – perguntei.

– Eu sei de um lugar – disse Oona.

***

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No saguão da mansão, nós nos dividimos. Oona, Betty, Kaspar e eu subimos até o quarto de Cecelia Varney, esperando que os alarmes disparassem a qualquer momento. A casa estava em silêncio, e embora tenhamos tirado os sapatos, nossos passos pareciam trovejar nos meus ouvidos. No alto da escada, Oona passou pelo quarto com a múmia e abriu a quarta porta do corredor. A luz da lua caía em uma cama de solteiro forrada com um cobertor marrom e puído. Não havia outro móvel no quarto. As paredes eram nuas e o piso não tinha tapetes. Nada dava prazer aos olhos ou ao tato. Aparentemente Cecelia Varney tivera a vida de uma freira medieval. Oona acendeu a vela e flutuou pela câmara.

– Não tem nada aqui – sussurrou Betty. – Nem estou vendo um closet.

– Talvez não tenha procurado direito. – Oona parou diante de uma lareira que transformava em miniatura a outra imensa de seu quarto. Ela inclinou um suporta lareira e empurrou a parede até que surgiu uma abertura grande o bastante por onde se espremer. – Sou a única pessoa que sabe disso.

– Como descobriu? – Eu estava admirada.

– A fantasma me mostrou no primeiro dia em que fiquei sozinha aqui – disse ela. – Ela queria que eu visse.

– Então você acredita mesmo que há uma fantasma? – perguntou Kaspar.

– É claro que há uma fantasma – respondeu Oona, como se devesse ser evidente para todos.

***

A primeira coisa que vi quando entramos no cômodo abarrotado atrás da lareira foi alguém olhando para mim. Uma jovem loura de vestido de renda preto encarava de um retrato na parede com uma expressão fria e desagradável na cara bonita. Reconheci Cecelia Varney pela foto que acompanhou seu obituário, mas era difícil acreditar que a mesma mulher tinha passado os últimos cinquenta anos de sua vida escondida do restante do mundo. Revestindo o cômodo, havia araras de lindos vestidos, a maioria de estilos que estiverem no auge da moda nas décadas de 1940 e 50. Uma parede de estante guardava caixas de veludo preto cheias de joias faiscantes. Era como se a velha ermitã tivesse aprisionado a socialite deslumbrante numa câmara secreta. Para piorar o caráter soturno do lugar, cada item estava em condições impecáveis e não havia um grão de pó no cômodo.

– Dá para acreditar nisso? – Oona pegou um colar de diamantes e deixou que cintilasse à luz da vela. – Cecelia Varney tinha tudo isso e isso só a deixou infeliz. Ela chegou a um ponto em que não conseguia saber quem a amava e quem amava seu dinheiro, então começou a pensar

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que sua fortuna era amaldiçoada. Imaginou que se pudesse gastar até o último centavo antes de morrer, poderia evitar que o dinheiro magoasse alguém. Parece loucura, mas talvez ela estivesse certa.

– Como soube de tudo isso? – perguntei.

– Meu pai encontrou os diários dela. Li o máximo que pude suportar. Era uma coisa muito deprimente. Sabia que o último marido roubou um milhão de dólares dela e fugiu para a Venezuela? Depois disso, em quem você confiaria? Eu provavelmente também ia deixar todo o meu dinheiro para um bando de gatos.

– E então, o que acha, Betty? Cecelia Varney tem o que precisamos?

Betty examinou os vestidos de uma das araras.

– São meio ultrapassados e todos têm tamanho 38. Vou ter que fazer umas alterações, mas acho que posso pensar em alguma coisa. Mas não vai ficar bonito. – Ela pegou um vestido cintilante de contas pretas que parecia menor do que os outros. – Ela devia ser pouco mais do que uma adolescente quando comprou este. Acho que sei quem vai usar isto.

Enquanto Kaspar e Betty saqueavam as araras de roupa, Oona e eu fomos na ponta dos pés até a câmara da múmia e embrulhamos o corpo num lençol. Com cuidado, sem entortar nem esbarra com a Imperatriz, levamos de volta ao quarto de Cecelia Varney. Estávamos do lado de fora do cômodo oculto quando vozes abafadas chegaram a nossos ouvidos.

– Eu não entendo, Betty. – A voz de Kaspar não tinha a confiança de sempre. – Pensei que tivéssemos um acordo. Se eu vigiasse a mansão, você jantaria comigo.

Betty suspirou.

– Sim, o acordo era esse. Mas um acordo não vale nada se uma pessoa não está pensando direito quando concorda com ele.

– Por que você não estava pensando direito?

– Não estou falando de mim. Você estava sob influência quando me fez o convite.

Kaspar ficou indignado.

– Sob influência? Pode me chamar de criminoso, se quiser, mas não bebo e nem tomo drogas. Posso ter comido salsichas Viena demais naquela manhã, mas eu estava raciocinando com muita clareza.

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– Não. Não, não estava. Veja só, uma amiga nossa fez um perfume... Uma poção do amor. Ela derramou em mim um dia antes de você nos ver no Morningside Park. Foi o que o fez ficar a fim de mim. Depois eu me aproveitei de você.

– Deixa ver se eu entendi. Você estava usando esse perfume na noite em que foi ao Morningside Park. De algum modo eu o respirei e me apaixonei de imediato. Depois você se aproveitou do meu estado infeliz para que eu fizesse seu trabalho sujo. É isso meso?

– Desculpe – sussurrou Betty e Kaspar começou a rir. – Shhhh! – pediu Betty.

– Tudo bem, tudo bem – disse Kaspar, tentando se controlar. – É que é tão ridículo.

– É a verdade! Sei que é difícil de acreditar, mas DeeDee e nossa amiga Iris são químicas muito boas. Elas podem fazer qualquer coisa.

– Ah, não duvido de que elas sejam capazes de preparar uma poção do amor. Mas deixa eu te fazer uma pergunta. Lembra do bilhete que escrevi para você naquela noite? As palavras não lhe pareceram familiares?

– Eu sabia de cor. É uma passagem de La Bohème. Vi a ópera umas cem vezes. Meus pais são figurinistas.

– Por acaso você estava na ópera para ver La Bohème na noite de 18 de agosto?

– Talvez. – Betty parou para pensar. – Sim, deve ter sido no dia 18. Era o fim de semana antes do aniversário do meu pai.

– E você estava de vestido branco e peruca preta cacheada?

– Sim – admitiu ela. Percebi que Kaspar a pegara de surpresa.

– Você chorou quando Mimi morreu?

– Eu sempre choro nessa cena.

– E estava usando algum perfume naquela noite?

– Não. Como você...

– Eu estava sentado do outro lado do corredor. Foi uma semana antes de eu fugir. Achei que você era a menina mais fascinante que vi na vida. Tentei me apresentar, mas você desapareceu nos bastidores antes que eu tivesse essa chance. Quando vi você de novo naquela noite no parque, nem acreditei na minha sorte.

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– É mesmo?

– A defesa encerra a argumentação.

Houve um longo silêncio. Oona picou para mim e deu um beijo nas costas da mão. Eu tentei abafar minha risada.

***

Quando passamos com a múmia pela lareira e encontramos no cômodo oculto, encontramos Kaspar e Betty a centímetros um do outro, a cara vermelha feito beterraba.

– Onde vamos colocar a Imperatriz? – perguntei, tentando parecer despreocupada, mas sem conseguir parar de sorrir.

– Coloque-a deitada nisto. – Kaspar abriu um casaco de peles no chão.

– Vocês duas... Hummm. Ouviram alguma coisa agora há pouco? – perguntou Betty, nervosa.

– Estávamos ocupadas resgatando uma múmia – respondeu Oona, equilibrando-se na beira da verdade.

– Então esta é a Imperatriz Traidora? – Kaspar se curvou ao lado da múmia. – Posso dar uma espiada? Ela está decente?

– Sim, ela estava vestida. – Eu ri. Quando Kaspar puxou o lençol, ele e Betty se encolheram.

– Sabe de uma coisa, Oona, se ela ainda tivesse nariz seria meio parecida com você – observou Betty depois de se recuperar do choque.

– O que ela está vestindo? – perguntei. O que eu pensava ser um roupão era na verdade uma longa tira de sede vermelha pintada com palavras douradas. – Dá pra ler, Oona?

– Isso foi escrito há dois mil anos. Como eu vou saber o que diz?

– É sem dúvida uma espécie de mensagem – observou Kaspar.

A coluna de Oona de repente ficou rígida.

– Todo mundo de boca fechada! – sussurrou ela freneticamente. Alguém passava pelo quarto

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de Cecelia. – Eles vieram me pegar! – Uma porta se abriu no corredor.

– Ela não está aqui. – Embora a voz fosse fraca, claramente pertencia a Sukh.

– Descobriram que não estou no quarto. Tenho que ir.

– Não! – insisti. – Não sabemos se Kiki substituiu a droga que vão usar. Você pode morrer.

– Isso não importa – disse Oona. – Se não me encontrarem aqui em cima, eles vão até a ala leste. Se vocês não estiverem lá, não há como saber o que vão fazer. Não vou deixar que uma dúzia de pessoas sofra para me salvar.

– Kiki vai pensar em alguma coisa! – sussurrou Betty.

– Não posso assumir esse risco. Fiquem escondidos aqui até que a barra esteja limpa. Talvez eu veja vocês amanhã. Mas, o que quer que aconteça, obrigada pela ajuda. Vocês são as melhores... as únicas... amigas que tive na vida. – Com essa, ela disparou para fora do cômodo oculto.

– Oona volte aqui! – chamou Betty, mas desta vez não houve resposta.

***

O sol já estava nascendo quando Kaspar, Betty e eu voltamos para a ala leste da mansão com os braços cheios de roupas finas. As outras Irregulares correram para nós enquanto entrávamos de fininho na sala. As crianças taiwanesas perceberam que Oona não estava ali e começaram a cochichar entre elas. Eu me senti péssima. Nenhuma de nós podia dizer a eles o que aconteceu.

– Por que demoraram tanto? – insistiu Kiki. – Estávamos prestes a organizar uma equipe de busca.

– Eles foram procurar Oona – eu disse, mas mal conseguia acreditar. – Tivemos de nos esconder.

– Ela se entregou para nos salvar – Betty disse ao grupo, em meio às lágrimas. – Eles apareceram quando estávamos lá em cima e ela sabia que se não a encontrassem, eles procurariam aqui embaixo.

– Ah, Oona! – Luz gemeu.

– Parece que apostei mal – confessou Kiki. – Achei que nossa busca não daria em nada. Desse

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jeito poderíamos convencer Oona a sair da mansão esta noite.

– Achou a droga que vão usar? – perguntei a DeeDee.

– Tubocurarina. – DeDee sacudiu a cabeça, chocada. – É uma toxina vegetal da América do Sul. Antigamente os índios usavam para envenenar a ponta das flechas, e por algum tempo os médicos a usaram para manter as pessoas imóveis durante cirurgias. Mas agora é considerada perigosa demais. Não há motivos para Lester Liu ter isso. Encontramos na bancada da cozinha. Substituímos por água da torneira.

– Encontraram na bancada? Tem certeza de que trocaram a tempo?

– Acho que sim. – DeeDee não parecia tão confiante como eu esperava.

– Betty – disse Kiki, assumindo o comando da situação –¸ temos as roupas para amanhã?

– Elas são meio ultrapassadas e podem não caber direito, mas se a gente se ensopar do perfume, pode passar pela porta da frente.

– Isso basta. Ananka? A Imperatriz está segura por ora?

– Está – relatei.

– Luz?

– Lasquei um cantinho do esquife. Foi só o que pude fazer com as ferramentas que tinha. Mas basta para entrar ar e não acho que alguém vá perceber.

– Então, nada de pânico. O plano está em andamento.

CAPÍTULO QUINZE

A Imperatriz desperta

Às sete horas da noite seguinte, as Irregulares estavam prontas para o baile. Betty fez o máximo que pôde com o conteúdo do closet de Cecelia Varney, mas nenhuma de nós estava destinada a entrar para a lista de mais bem-vestidas da noite. O busco encaroçado do vestido azul sem alça de DeeDee foi recheado com vários pares de meias. Luz recusou-se a usar saltos altos e combinou o vestido estilo anos 1950 com suas botas de combate arranhadas. Betty alfinetou um vestido cor-de-rosa à minha forma nada adequada. Se um dos alfinetes pipocasse, toda a roupa podia cair no chão. Betty vestiu uma túnica amarelona que Luz

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recusara e a cor a deixou doentia – mas Kaspar não percebeu. Só o vestido de contas pretas de Kiki parecia combinar com ela, embora fosse evidentemente grande demais. O restante de nós teria de depender do nosso Fille Fiable para convencer o porteiro de que não éramos internas de um hospício.

Kaspar não iria à abertura de gala. Cecelia Varney não possuía smoking, e os vestidos dela eram pequenos demais para ele se vestir de drag. Então, enquanto esperávamos que a Imperatriz despertasse, Kaspar levaria os artistas taiwaneses para a casa de Oona. Ele ficou feliz em fazer sua parte, mas insistiu em voltar ao Central Park para procurar seus esquilos. Todo mundo sabia que era só uma desculpa para ficar perto do museu, caso Betty precisasse de ajuda. Kiki tentou convencê-lo a ficar em Chinatown, mas ele simplesmente se recusou a ouvir.

Pouco antes das sete, Kiki e Luz saíram para investigar a mansão. Às sete e quinze voltaram com a notícia de que todos tinham saído para a abertura de gala. Com Kiki na frente, todos os 17 passaram rapidamente pela escuridão da ala leste da mansão. Chegamos ao saguão sem nenhum problema e estávamos quase na porta quando ouvimos uma risadinha baixa de cima. Sukh acenava para nós do patamar do segundo andar, mas parecia relutar em nos perseguir.

– O que está esperando? Vá para a porta! – gritou DeeDee.

– Vai a algum lugar, princesa? – Sergei Molotov surgiu da Sala Stafforshire e apontou o cano da arma diretamente para Kiki.

– O que está fazendo aqui? – perguntou Luz. – Nós vimos vocês dois saírem.

– Levamos o sr. Liu à festa de gala. Só fica a algumas quadras daqui. Não acha que o sr. Liu ia deixar crianças sozinhas em casa, não é? Isso seria muito irresponsável.

– E o que vai fazer, Molotov? Atirar na gente? – cuspiu Kiki. – Pode tentar. Sua arma não tem tanta bala assim.

– Tem toda razão – escarneceu Molotov. – Só tenho seis balas. Vou lhe dizer como vai ser. Você vai escolher as cinco amigas que gostaria que eu baleasse. A última bala será reservada para você. Quem sobrar, pode fazer o que quiser. – Molotov sorriu. Ele sabia que não podíamos lutar com ele.

– Você não tem autorização para nos machucar – observou Kaspar.

– Nem tenho autorização para deixar que vocês fujam. É um dilema, não é? O que acha de facilitarmos a vida de todos? Voltem para o quarto e não levarão tiro nenhum. Sukh, por favor, mostre às crianças o caminho de seus aposentos.

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– Certamente, sr. Molotov – respondeu o mordomo.

Ouvi dois passos, um baque pesado e um gemido. Meus olhos dispararam para a escada onde Sukh estava esparramado de costas, a expressão um misto de dor e confusão. Ele se levantou e desceu manco e devagar a escada. Só a dez degraus do final, seu corpo grandalhão se atirou para a frente. De braços estendidos, ele parecia alçar voo. Depois a gravidade reassumiu o controle e o fez se estatelar no chão. Ele quicou três degraus antes de parar em um monturo imóvel ao pé da escada. Uma coisa ficou evidente para aqueles de nós que estavam olhando. O mordomo tinha sido empurrado. Mas não havia ninguém atrás dele.

Kiki não se encontrava entre as testemunhas. Enquanto a maioria dos olhos estava fixa no espetáculo, os dela continuaram em Sergei Molotov. Com a atenção dele momentaneamente desviada, ela entrou em ação. Um tiro soou e quebrou o vidro. Molotov tateou em busca da arma, que Kiki tinha chutado para dentro da Sala Staffordshire. Kiki, Kaspar e Luz dispararam atrás dele. Antes que chegassem à porta, um estrondo tremendo provocou um tremor pelo saguão e balançou o lustre. Depois tudo ficou estranhamente silencioso. Kiki, Kaspar e Luz estavam paralisados na porta.

– O que aconteceu? – perguntou Betty por fim.

– Hummmm... – Kaspar procurou uma maneira de expressar o que vira. – Um armário cheio de estatuetas simplesmente caiu.

Nós corremos para a porta. Cacos de vidro e porcelana se espalhavam pelo chão da Sala Staffordshire. Um dos armários altos, que antes ficava na parede, agora estava de frente para o chão. Dois sapatos italianos cuidadosamente engraxados se projetavam por baixo dele. Os pés dentro dos sapatos se mexiam. Depois do armário tombado havia uma estatueta que tinha escapado incólume. Era uma menina brincando com um gatinho.

– Como pôde cair sozinho? – perguntou DeeDee.

– Não pôde – respondeu Kiki.

***

Uma faixa larga de tapete vinho se estendia como um rio de sangue da beira da Quinta Avenida até a entrada do Metropolitan Museum of Art. Limusines, Bentleys e Rolls-Royces esperavam em fila para expelir seus fabulosos passageiros no meio-fio. Apesar da neve que se empilhava na sarjeta e da brisa gelada que vergastava as árvores, mal se via um casaco. As celebridades e socialites faziam poses afetadas para a multidão de paparazzi que se espremia na beira do tapete. De vez em quando, os flashes paravam para dar passagem a uma senhora de costas rígidas ou um nerd de óculos. Embora seus rostos fossem desconhecidos dos leitores

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de tabloides nova-iorquinos, estes eram os convidados mais importantes da abertura de gala – pessoas tão incrivelmente ricas que não precisavam mandar beijos para as câmeras.

As Irregulares observavam a ação do outro lado da rua enquanto os dentes de Luz batiam como castanholas e minha pele adquiria um tom alarmante de roxo. Nossa caça da meia-noite ao lixo na mansão de Lester Liu podia ter reproduzido vestidos de baile e venenos – mas ninguém pensou em pegar casacos.

– Todo mundo pronto? – Pálida como uma escultura de gelo que ganhou vida, Kiki parecia perfeitamente à vontade no frio. Incapaz de falar, nós assentimos rigidamente e Kiki nos entregou o vidro de Fille Fiable. – Não economizem. Passar pela porta será a parte mais difícil.

Fedendo a suor, as Irregulares se desviaram do tapete vermelho e correram direto para a entrada do museu. Um segurança musculoso com um terno preto e apertado cutucou o companheiro e começou a rir enquanto subíamos a escada. Os dois homens avançaram, usando sua massa formidável para bloquear nosso caminho. Kiki assumiu a liderança. Mesmo de saltos, sua cabeça não chegava à altura do peito dos seguranças. Eles olharam de cima e com deboche a garota minúscula. Como a maioria dos porteiros de Nova York, eles viviam pela oportunidade de impedir que a plebe como nós chegasse perto de seus chefes ricos e bonitos.

– Convites – ladrou um deles.

– Não precisamos de convite – disse Kiki com confiança. – Somos convidadas pessoais de Lester Liu.

A risada do homem foi interrompida quando nosso Fille Fiable finalmente chegou a suas narinas.

– Mas que fedor horrível é esse? – perguntou um segurança, cheirando o ar.

– Acho que são vocês dois. – Kiki tapou o nariz. – Esqueceram o desodorante hoje de manhã, cavalheiros?

Betty riu enquanto os dois seguranças deram farejadas sutis nas axilas.

– Terrível, hein? – disse Kiki. – A maioria dos macacos tem um cheiro melhor. Mas receio não ter tempo para lhes dar uma aula de higiene pessoal. Lester Liu espera por nós.

Um dos seguranças sacou um walkie-talkie.

– Vou verificar com o sr. Hunt.

– Eu não incomodaria o diretor – aconselhou Kiki. – E se ele decidir nos receber pessoalmente?

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Uma fungada e vocês perdem o emprego.

– Ela tem razão, Lenny – disse o outro segurança em voz baixa. – Talvez a gente deva deixar que entrem.

– Acho que isto é o melhor para todos – concordou Kiki.

– Por favor, não contem nada – pediu o primeiro segurança enquanto abria a porta do museu para nos deixar entrar. – Preciso desse emprego para pagar os implantes de panturrilha. Se não, nunca vou poder usar um short.

– Não se preocupe – disse Kiki. – Jamais penso em me interpor entre um homem e seus shorts.

Dentro do Grande Salão do Museu, encontramos os ricos, famosos e fabulosamente elegantes de Nova York vagando por entre macieiras silvestres pingando milhares de brotos vermelhos. Projetada nas paredes do museu, uma imagem de um dragão Fu-Tsang vesgo cercava os convidados como um predador escolhendo pacientemente uma vítima no rebanho.

– Hihihihihi. – Atrás de nós, duas meninas cochichavam. Elas não se esforçavam para esconder o assunto de sua conversa. Eu as reconheci de pronto. Eram famosas por interpretar personagens inocentes e doces no cinema e tinham uma vida devassa fora das telas.

– Que foi? – perguntou Luz. – Acharam alguma coisa engraçada?

A loura riu de novo.

– Pelo menos minha amiga não está vestida de vagabunda – contra-atacou Kiki. – Se eu fosse você, guardaria essa roupa no armário. Pelo rumo que sua carreira está tomando, tenho a impressão de que vai usá-la em breve.

O sorriso das meninas murchou.

– O que você é, uma espécie de anã albina? – rosnou a morena antes de se virar para a amiga. – Por que estamos perdendo tempo com essas aberrações? Vamos para a festa. – Enquanto elas passavam esbarrando por nós com os narizes empinados. Luz casualmente colocou uma bota de combate pesada na cauda do vestido de lantejoula da morena. Um rasgão alto pôde ser ouvido por cima da tagarelice no salão. A morena guinchou quando sentiu uma brisa fria em seu traseiro exposto. Ela cerrou os punhos e partiu para Luz.

– Só pode estar brincando! – Luz riu. – Pode vir, maninha.

Kiki pegou o braço fino da morena e a obrigou a inalar um pouco do Fille Fiable.

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– Você devia ir para casa antes que aconteça alguma coisa muito desagradável – ela aconselhou. – E da próxima vez que for a uma festa, não se esqueça de colocar a calcinha.

– Essa foi engraçada – eu disse enquanto a morena corria para a porta e a amiga olhava chocada. – Vamos desmascarar outra celebridade. Que tal aquele atorzinho espalhafatoso que sempre fica se gabando de sua vida amorosa revoltante? Ele está bem ali, incomodando uma pobre mulher no bar.

– Não estamos aqui para nos divertir – lembrou-me Kiki. – Chega de briguinhas por esta noite. Precisamos encontrar Oona o mais rápido possível.

***

Um tapete verde-jade felpudo flanqueado por macieiras silvestres brancas levavam à escadaria do Grande Salão. Os convidados em grupos de dois ou três e começavam a seguir para a exposição da Imperatriz. As Irregulares tentaram ao máximo se misturar na multidão, mas cabeças ainda se viraram para nossas roupas incomuns e várias pessoas nos cheiravam com um nojo patente. Estávamos prestes a passar para o toalete feminino do segundo andar quando surgiu uma idosa com um vestido discreto. Enfiei-me por trás de uma macieira e descobri que me dava pouca cobertura. A diretora Wickham semicerrou os olhos para mim através dos galhos. Eu me preparava freneticamente para uma explicação quando ela se virou e desceu o tapete em direção à exposição. U não fazia ideia se ela me vira e rezei para que pudesse evitá-la pelo resto da noite. Caso contrário, salvar Oona custaria minha liberdade.

Alcancei as Irregulares quando elas avançavam pela exposição. Dragões imperiais flutuavam nas paredes enquanto os convidados se misturavam e se admiravam dos tesouros da Imperatriz.

– Tudo isso por uma traidora – ouvi uma mulher dizer e meu corpo virou gelo. Pelo que eu sabia, Lester Liu pensava o mesmo de Oona.

– Aqueles egípcios sabiam mesmo despachar com estilo uma garota – observou um homem a seu companheiro enquanto eles passavam por mim para olhar mais de perto uma réplica do palácio imperial.

– Walter, você é um cretino – sussurrou o amigo. – Esta coisa não é egípcia; é japonesa.

– Na verdade, é tudo chinês – informou-lhes Betty educadamente.

– Viu o vestido dela? – riu o primeiro homem. Ele nem esperou que Betty se afastasse. – Se tem uma coisa que cabe num museu...

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– Não – DeeDee me alertou quando viu a fúria na minha cara.

***

Depois da galeria que exibia o reino em miniatura da Imperatriz, entramos na sala com o exército de serviçais de argila. Pela primeira vez percebi que cada rosto era único, como se as estátuas tivessem sido modeladas com base em pessoas reais.

– Interessante – murmurou Kiki com o nariz quase apertado no vidro. – A estatueta da Cidade das Sombras... Aquela que Yu encontrou no barco. Deve ter sido de um dos criados da Imperatriz.

– Não pode ser – cochichei. – Lester Liu disse que o conteúdo da tumba foi trazido a Nova York na década de 1940.

– Há alguns problemas com sua análise. Para começar, Lester Liu disse...

– Quer dizer que a Imperatriz não era um dos tesouros de Cecelia Varney?

– Não. Ela deve ter vindo no barco com Yu e Siu Fah. Tudo aqui foi contrabandeado da China este ano.

– Hora de andar – Luz nos alertou assim que o diretor do museu entrou na sala com Lester Liu.

Entramos cada vez mais fundo na tumba da Imperatriz, passando pelo guarda-roupa de seda bordada que ela levou para a outra e por quarto caixões conectados feitos de pedra e laca, que antigamente portavam sua múmia. Por fim entramos numa sala cavernosa com dezenas de mesas de jantar espalhadas. Havia uma plataforma e um microfone na ponta. As pessoas começavam a se reunir para o jantar e a maioria parecia muito mais fascinada com os arranjos dos lugares do que com o esquife de vidro no meio da sala. Só três pessoas examinavam a múmia envolta em jade. Uma era Iris McLeod, num vestido roxo de franjas que a deixava parecida com uma uva gigantesca. Quando nos aproximamos da Imperatriz, o cecê dominou tudo.

– Viu isso? – Um homem que estava parado perto de Iris se afastou do caixão.

– Viu o quê, George? – A mulher ao lado dele parecia irritada.

– A múmia se mexeu!

A mulher olhou em volta para ver quem o ouvira.

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– Chega de vinho para você! – respondeu ela num sussurro enfurecido. – Lembra do que aconteceu na última noite de gala? Aquela estátua que você decidiu levar para dar uma volta era inestimável. Estou surpresa que tenham permitido que entrássemos desta vez.

– Eu sei o que vi, Jocelyn. Aquela múmia se mexeu! Você viu? – O homem perguntou a Iris. Antes que ela pudesse responder, a mulher pegou o braço dele e o arrastou para longe da Imperatriz.

– Você assustou aquela garotinha! – ela o repreendeu. – A pobrezinha vai ter pesadelos por meses!

– Acho que está exagerando, querida. Ela me parece bem madura.

– Aliás, o que ela está fazendo aqui? – continuou a mulher. – Chegamos a um ponto em que não se pode ir a lugar nenhuma nesta cidade sem ser incomodada por crianças de roupas esquisitas.

– Iris! – sussurrou DeeDee, dando um tapinha no ombro da menina.

– Aí estão vocês! – Iris parecia superfeliz em nos ver. – Onde é que estiveram? Tem cartazes de desaparecida com a foto de Ananka em todo o Greenwich Village e quando parei na casa de Oona, aquele mordomo estranho não me deixou vê-la. Achei que tinha acontecido alguma coisa muito ruim. Decidi que se não achasse vocês aqui, ia ligar para a polícia quando chegasse em casa.

– Ficamos amarradas por um tempinho. Vou contar tudo mais tarde. Como conseguiu entrar? – perguntei.

– Meus pais são consultores do museu. Eles sempre recebem convites para essas coisas. – Ela tombou a cabeça para o casal de aparência acadêmica sentado a uma mesa perto da entrada. – Eu os convenci a me trazer desta vez.

– Pelo cheiro, parece que você teve que usar um vidro inteiro de Fille Fiable – disse Kiki.

– A metade. A outra metade está escondida na minha coxa. Aliás, cadê Oona? Tenho que agradecer a ela.

– Agradecer pelo quê? – perguntou luz.

– Há alguns dias, alguém me mandou três jalecos de laboratório e um kit imenso de química. Localizei a loja de onde vieram e usei meu perfume para conseguir que o dono me dissesse quem comprou. Por acaso foi Oona. Ela deve ter gastado uma fortuna. E aí, onde ela está?

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Os olhos de Kiki baixaram para a múmia e depois voltaram a Iris.

– Não! – Iris arfou. – Ela está bem?

– Vamos saber daqui a alguns minutos – disse-lhe Kiki.

– Há alguma coisa que eu possa fazer?

– Só curta o espetáculo – eu disse. – Temos tudo sobre controle.

– Tem certeza? – Iris suspirou de decepção. – Botei esse vestido idiota só para o caso de vocês precisarem de mim.

– Sabe de uma coisa, senhoras, não faria mal ter um plano B – Kiki aquiesceu. – Fique de olho em mim, Iris. Se alguma coisa der errado, vou lhe fazer um sinal. Corra até o parque e procure por Kaspar... É um cara alto de cabelo ruivo. Ele vai saber o que fazer.

– Ótimo! – Iris falou alegremente. – Prometo que não vou deixar vocês na mão.

***

Quando a maioria dos convidados finalmente se sentou, o diretor do museu subiu à plataforma. As cinco Irregulares estavam estacionadas nos cantos da sala, longe da luz das luminárias que brilhavam no meio de cada mesa. Enfiei-me no canto mais distante da diretora Wickham, que jantava com a artista que eu vira na foto na parede de sua sala.

– Boa noite. – O sr. Hunt olhou a multidão de gente bonita. – Bem-vindos à abertura de A Imperatriz Desperta. Vocês foram os primeiros a ver parte dos tesouros chineses mais extraordinários já reunidos no hemisfério ocidental. É para mim um grande prazer apresentar o homem cuja generosidade sem paralelo possibilitou esta exposição. Senhoras e senhores, eu lhes apresento o sr. Lester Liu.

Aplausos estrondosos encheram a sala enquanto Lester Liu subiu ao palco. Era a deixa de Oona, mas nada aconteceu. O corpo sob a mortalha de jade da múmia não se mexeu. À medida que minha expectativa se transformava em pavor, tentei sinalizar para Kiki e vi sua cabeça voltada para Iris. Ela assentiu uma vez e Iris pediu licença da mesa e foi para a porta. Tive de apreciar Iris agindo. Mesmo de longe, sua linguagem corporal gritava emergência de banheiro.

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A voz de Lester Liu ainda estava áspera e rouca, mas ele ficou radiante com a admiração a multidão.

– Obrigado, sr. Hunt. Não sou um homem de muitas palavras, mas estou feliz em oferecer a Imperatriz Traidora à cidade que tanto me proporcionou em todos esses anos. Agora que me aposentei, pretendo dedicar meus dias a dar mais presentes deste tipo. Ajudando-me em meus empreendimentos filantrópicos estará minha amada filha única. Ela passou os últimos cinco anos numa escola da Suíça, mas concordou gentilmente em voltar a Nova York para ajudar o pai. Gostaria de aproveitar a oportunidade para lhes apresentar a srta. Lillian Liu.

Uma menina deslumbrante de vestido preto se juntou a Lester Liu na plataforma. Não podia ter mais de 15 anos e, de onde eu estava, sua semelhança com Oona era um mistério. Sem pensar, avancei para olhar melhor. Ao fazer isso, senti vários alfinetes se soltando e segurei o alto do vestido antes que ele escorregasse no chão.

– Hihihihi. – Olhei por sobre o ombro e vi a atriz loura apontando para mim de uma mesa próxima. Voltei a me enfiar nas sombras, mas não antes de os olhos de Lester Liu dispararem na minha direção.

– Muito obrigado – ele resmungou ao microfone. – Espero que desfrutem das festividades. – Enquanto os convidados batiam palmas, Lester Liu conduziu a menina que ele chamava de Lillian a uma saída e sinalizou para um segurança. Percorrendo a sala com os olhos, ele identificou cada uma das Irregulares. O segurança sacou o walkie-talkie e logo cinco homens uniformizados e parrudos estavam cautelosamente costurando pelas mesas e vindo para cada uma de nós. O cheiro de Fille Fiable ficava cada vez mais fraco e eu tinha esperanças de que ainda houvesse perfume suficiente para me salvar. Procurei por uma rota de fuga que eu deveria ter identificado antes. Mas as saídas estavam bloqueadas pela segurança.

– Poderia me acompanhar, senhorita? – Não era uma pergunta. O segurança me pegou pelo braço e seus dedos carnudos cravaram-se no meu corpo. Comecei a me debater. Se as Irregulares fossem expulsas da festa, não sobraria ninguém para salvar Oona.

Um grito apavorante soou pela sala e senti a mão do segurança se afrouxar. Quando vários outros gritos se juntaram ao coro, consegui me soltar. De início, não sabia o que estava acontecendo. Voava comida, cristal era espatifado e um velho caiu desmaiado. Eu estava começando a me perguntar se o museu tinha um poltergeist só dele quando um esquilo gigante saltou na mesa na minha frente. Arrancou um topete do couro cabeludo de um astro de cinema velho e chutou uma garrafa de vinho tinto no colo da celebridade loura. Em outros lugares, os dois amigos do esquilo estavam alegremente trabalhando pela sala. O segurança que tinha aparecido para em acompanhar até a saída do prédio puxou a toalha de uma mesa e tentou montar uma rede para esquilos.

Localizei Kiki no meio de toda a excitação com uma cadeira no alto da cabeça. Com um

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movimento rápido, ela a desceu no esquife. Choveu vidro pela figura coberta de jade que ele abrigava. Por um momento, o pandemônio parou e o tempo pareceu se imobilizar. Depois as pessoas começaram a correr para as saídas e as descobriram bloqueadas por fora. Iris e Kaspar tinham fechado a sala. Ninguém ia sair até que o tumulto parasse.

– O que ela está fazendo! – gritou alguém enquanto Kiki rasgava a mortalha do corpo de Oona, expondo uma figura magra embrulhada em tecido listrado de azul. O silêncio na sala aumentava. Até as celebridades mais idiotas na festa de gala sabiam que múmias chinesas antigas não vinham embrulhadas em lençóis do século XX.

– Obrigada – disse Oona quando Kiki retirou a mordaça que tinha sido enfiada em sua boca. – Eu bem que podia beber uma água.

– Não deixe ele sair! – gritei, apontando para Lester Liu que se esgueirava para uma saída. – E cuidado com a bengala dele!

O diretor do museu, uma atriz da Broadway e o CEO de uma empresa de informática detiveram o pai de Oona na porta. A socialite Gwendolyn Gluck apareceu furtiamente atrás de Lester Liu e pegou sua bengala assim que ele tentou retirar a adaga oculta. Depois que sua fuga foi frustrada, abri caminho pela multidão até Kiki e a encontrei mexendo nas amarras de Oona.

– Parece que a menina que está amarrada no fundo do caixão – observou um espectador. Toda a sala tinha se reunido para testemunhar a comoção.

– Este é mesmo o evento da temporada! – exclamou alguém.

– Passe uma faca à menina pálida – exigiu alguém. Kiki libertou Oona com uma faca de carne. Por baixo das tiras de tecido, Oona estava descalça e usava uma camisola branca e sem mangas. Sua pele estava coberta de vergões vermelhos, de ficar amarrada. Ela pegou uma garrafa de água em uma mesa e a emborcou. Depois a multidão se separou enquanto Oona ia ao palco para falar à plateia.

– Acho que ela é a menina que faz minhas unhas – cochichou uma mulher. – O que ela vai dizer? Ela não fala inglês nenhum.

Eu não podia sentir um orgulho maior ao ver Oona tomar o microfone. A mesma menina que antigamente nunca teria saído de casa sem seus diamantes e bolsas de grife estava diante da multidão mais elegante de Nova York usando só uma camisola.– Olá a todos. Estou muito cansada, então serei breve. Meu nome é Oona e Lester Liu é meu pai. Há quatorze anos, ele me abandonou porque eu não era menino e esta noite ele tentou me matar porque eu sei a verdade. Tudo o que viram nesta exposição foi ilegalmente

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contrabandeado da China no início deste ano. Como veem, é isso que meu pai faz. Ele contrabandeia artefatos, gente... Até contrabandeia espécies em risco de extinção.

"Lester Liu não é um filantropo. Ele só ofereceu estes objetos ao museu por um motivo. Precisava ter acesso às galerias a fim de roubar cinco pinturas inestimáveis, que ele prometeu a um gângster russo pervertido. As telas foram cortadas de suas molduras e levadas para fora do prédio enquanto se preparava a exposição da Imperatriz. Foram substituídas por falsificações criadas por 12 jovens artistas que ele raptou de seus lares em Taiwan. Ele conseguiu seus nomes com dois psicólogos de Nova York e um especialista asiático em crianças superdotadas. As obras de arte originais estão escondidas no apartamento daquele homem. – Todos os olhos se concentraram no dr. Jennings, o curador assistente que conheci durante minha última visita ao museu. O homem com cara de passarinho de imediato caiu em prantos. – Agora – continuou Oona. – Imagino que a polícia tenha sido chamada. Estou disposta a fazer quaisquer perguntas que eles queiram fazer.

Assim que o discurso de Oona terminou, celulares foram sacados das bolsas e bolsos e o flash de câmeras iluminou a sala. Pelo canto do olho, vi Kiki indo de fininho para a saída. Eu a alcancei assim que ela bateu na porta.

– Eu vou com você – disse a ela. – Ainda não estou preparada para ir para casa.

– Ei, Iris, pode abrir – chamou Kiki pela porta.

– Correu tudo bem? – O vestido roxo de Iris estava rasgado e coberto de manchas de grama.

– Obrigada – eu disse. – Você está ficando ótima em salvar nossa pele.

– Alguém tem que fazer isso. – Iris estava radiante.

– Escutem, eu não posso estar aqui quando a polícia chegar – disse-lhe Kiki. – Diga a Kaspar e às outras meninas para nos encontrarem no Fat Frankie's às nove horas.

Kiki e eu estávamos na metade do tapete verde-jade quando alguém me chamou.

– Ah, srta. Fishbein. – Senti meu coração parar. – Não me diga que vai sair sem falar comigo.

– Oi, diretora Wickham – murmurei enquanto me virava.

A diretora se aproximou de Kiki e estendeu a mão.

– Srta. Strike. É um prazer vê-la novamente. Parece que você era mesmo perigosa, afinal.

– A senhora se lembra. – Kiki estava impressionada.

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–Nunca me esqueço de uma aluna – disse a diretora Wickham. – Em particular uma aluna com ambições tão incomuns. Agora, Ananka, imagino que o incidente desta noite tenha alguma coisa a ver com seu desaparecimento ontem pela manhã, pois não?

Não consegui pensar em nada para dizer, então assenti.

– Aquela menina no palco é amiga sua, não é? – Eu assenti de novo.

– Bem, então, uma vez que você só ajudou a frustrar um importante roubo de obras de arte, acho que podemos perdoar sua ausência da escola. Verei você na segunda de manhã cedo. O sr. Dedly está ansioso para discutir sua descoberta. Mas por ora sugiro que corra para casa. Seus pais colocaram metade do departamento de polícia procurando por você em Manhattan.

– Não posso ir para casa, diretora Wickham. Se eu for, estaria no próximo ônibus para a Virgínia Ocidental. Não posso me arriscar a ser mandada para o internato.

– Ah. – A diretora Wickham pensou por um momento. – Receio que também não possa me arriscar a perder você. Entenda, contei a muitas pessoas sobre a sala oculta embaixo da sinagoga Bialystoker. Odiaria que elas pensassem que eu finalmente estou ficando senil. O que diria se eu fosse à sua casa amanhã à tarde e explicasse umas coisinhas se eu fosse à sua casa amanhã à tarde e explicasse umas coisinhas a seus pais?

Meu coração disparava. Não suportei olhar para Kiki.

– Tudo bem – engoli em seco.

– Excelente! Verei você amanhã ao meio-dia. E bom trabalho esta noite, Ananka. Srta. Strike, se um dia quiser voltar à Atalanta, eu ficaria feliz em lhe dar uma bolsa.

Um grupo de policiais passou correndo por nós, e Kiki e eu corremos para a saída do museu. Eu não disse nada até que estávamos na escadaria da frente.

– Eu posso explicar... – comecei a dizer.

– Poupe sua saliva – rebateu Kiki. – Vamos discutir isso em grupo.

COMO PENETRAR EM UMA FESTA

Uma boa detetive nunca precisa de convite. Não deixe que uma corda de veludo a impeça de desbaratar um crime ou conseguir pistas. Quer você esteja seguindo um suspeito a um bat mitzvah ou a uma festa do Oscar, há incontáveis maneiras de passar pela porta.

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Faça o dever de casa

Quem foi convidado? Há alguém na lista que não vai comparecer? A imprensa pode aparecer? Servirão comida? Quanto mais você souber, mais fácil será escolher um curso de ação.

Confiança, confiança, confiança

Não são só os cães que sentem o cheiro do medo. Qualquer bom porteiro pode detectar o nervosismo e a ansiedade a uma quadra de distância. Se quiser entrar, você tem que acreditar que ali é o seu lugar. E sempre tenha uma boa história preparada muito antes de aparecer.

Faça disto um desafio

A maioria dos penetras de sucesso faz isso por todos os motivos errados. Quer sejam alpinistas sociais ou persigam estrelas, eles tendem a levar tudo muito a sério. Lembre-se de que o mundo não vai acabar se você não conseguir entrar – você vai conseguir o que quer de uma maneira ou de outra. Quanto menos você se importar, maiores são suas chances.

Use uma fantasia

Por que se arriscar a ser parada na corda de veludo se você pode entrar tranquilamente pela porta dos fundos? Um uniforme de garçonete, avental de cozinheira, roupa de faxineira, kit de encanador ou distintivo de bombeiro a colocarão para dentro da maioria das entradas de serviço. Certifique-se de levar uma muda de roupa, ou você poderá terminar servindo hors d'oeuvres ou enfiando-se em privadas a noite toda.

Adote uma comitiva

Este truque consagrado requer alguma astúcia. Espere num lugar discreto até que um grande grupo de pessoas se aproxime da porta. Depois simplesmente se una à turba. É improvável que o porteiro interrogue cada pessoa – em particular se houver alguém importante na frente do grupo. Mas cuide para dar a impressão de que pertence a seus novos amigos. Se você estiver vestida da cabeça aos pés de J. Crew, provavelmente vai se destacar numa multidão de lolitas ou motoqueiras.

Tire proveito de sua idade

Infelizmente, isto só funciona se você tiver menos de 15 anos e a festa não for só para adultos. Provoque uma ou duas lágrimas e diga ao porteiro que está procurando seus pais, sua carteira ou um dos brincos de pérola de sua mãe. Se você for acompanhada para dentro, simplesmente escape de seu companheiro. É provável que ele não vá perder tempo procurando uma criança inocente.

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Peça para ir ao banheiro

Este ardil funciona melhor nas festas maiores e mais elegantes. Antes da festa, vista sua melhor roupa, mas use sua capacidade de disfarce para parecer doente. Corra para a entrada quando o porteiro estiver ocupado (mas não sobrecarregado) e pergunte a ele onde é o banheiro. Se seu pedido parecer urgente – não exagere – você será conduzida para dentro. Ninguém quer vômito no tapete vermelho.

Não tome chá de cadeira

Depois que entrar, misture-se. É menos provável que você seja expulsa se fizer novos amigos.

CAPÍTULO DEZESSEIS

Segredos revelados

As Irregulares estavam espremidas numa cabine do Fat Frankie's. Iris tinha escapulido dos pais em toda a confusão, alimentava com fritas três esquilos grande escondidos embaixo da mesa enquanto Kaspar e Betty namoravam distraídos. Uma torre de pratos vazios era prova da fome feroz que tomara o grupo quando chegamos ao restaurante. Kiki e eu tomamos café enquanto as outras encheram a boca de uma grama de delícias gordurosas. Luz tinha devorado sozinha dois churrascos gregos, um hambúrguer e um sundae com calda. Eu não comia havia mais de 36 horas, mas as pontadas de fome que devia estar sentindo tinham murchado por causo do medo.

Enquanto esperávamos que Oona terminasse com a nata de Nova York, as outras conversavam, principalmente sobre a menina misteriosa que fora apresentada como filha de Lester Liu. Luz insistia que era gêmea de Oona. Betty não tinha certeza. DeeDee não acreditava que houvesse algum parentesco. Quando pediram sua opinião, Kiki deu de ombros e se recusou a se unir ao debate. As apostas estavam sendo feitas quando Oona entrou no Fat Frankie's. Luz sutilmente enfiou seu dinheiro no bolso e puxou outra cadeira para a mesa.

Talvez graças a nossos trajes ridículos, nenhuma de nós tinha considerado o que Oona pudesse vestir depois da festa. Ela chegou exibindo um poncho de chuva de plástico da polícia por cima da camisola da algodão, e os pés sobravam dentro de um par de tênis All Star grandes demais. De algum modo ela fazia a roupa parece chique. E apesar do fardo de arrepios e fibras sintéticas, ela parecia mais feliz do que eu já vira.

– Oi, baixinha – disse ela, sentando-se ao lado de Iris. – Vestido bonito. Quem pensaria que eu seria salva por um monte de esquilos e uma ameixa falante?

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Iris retribuiu com um sorriso.

– Bem-vinda, Wong. Vejo que seu namoro com a morte não melhorou muito sua personalidade.

– Não sabia? Eu sou irremediável. – Oona riu. – Sugiro que se acostume com isso.

– Como foi tudo com a polícia? – perguntou Luz.

– Digamos apenas que Lester Liu não incomodará mais nenhuma de nós por um bom tempo. A polícia está na mansão agora. Junto com sequestro, tentativa de assassinado, roubo de obras de arte e contrabando, parece que eles pretendem acusá-lo de comer animais em risco de extinção e manter um cadáver na asa. Acho que é ilegal em Nova York... Quem diria? E eles encontraram Molotov e Sukh... Vocês realmente deram um show com aqueles dois.

– Eles estão mortos? – sussurrou Betty.

– Não, mas talvez preferissem estar. Ouvi os paramédicos dizerem que Molotov ficará engessado da cabeça aos pés por meses. Precisamos ir ao hospital e passar pimenta no nariz dele.

– E a outra menina? – perguntei. – Descobriu quem ela é?

– Lillian Liu? Ela foi embora há muito tempo – disse Oona. – E Lester não está falando. Nunca tive a oportunidade de vê-la. Ela era mais bonita do que eu? Brincadeirinha. É sério, como é a garota?

– Hmmmm – disse Luz, nervosa. – Sabe de uma coisa, é gozado. Ela é igualzinha a você.

Oona recebeu a informação sem se deixar perturbar.

– Acho que tinha de ser muito parecida, para o plano de meu pai dar certo. Eu me pergunto onde ele achou um espécime tão extraordinário de beleza feminina.

– Não, é sério, Oona. Ela é idêntica a você – insistiu Luz. – Tem certeza de que você é filha única de Lester Liu?

– Luz precisa de óculos – intrometeu-se DeeDee. – Não achei que fosse tão parecida assim. Mas o que deu errado com o plano? Por que eles decidiram amarrar você?

– Acho que foi só falta de sorte. Sukh me deu uma injeção e, como não senti nada, deduzi que vocês tinham trocado a droga. Tentei ficar imóvel, mas é muito mais difícil do que vocês

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pensam. Justo quando eles estavam me colocando no esquife, deu comichão no meu nariz e Molotov me pegou no meio de uma coçada. Acho que eles não tiveram tempo para experimentar outra droga, então só me amarraram no fundo e me embrulharam. Eu tive sorte por vocês todas terem ido à festa. Se não estivessem lá, eu podia ter ficado muito entediada dentro daquele caixão.

– Pode brincar agora, mas não devia ter arriscado sua vida – disse-lhe Kaspar. – Se alguma coisa desse errado, nós não nos perdoaríamos. Mas obrigado por nos proteger.

Oona franziu a testa.

– Não precisa me agradecer. Eu devo isso a essas meninas. Dei um trabalhão para elas confiarem em mim e elas ainda apareceram para salvar o dia. – Ela se virou para nós. – Eu devia ter contado a vocês sobre Lester Liu há anos. Desculpe se coloquei vocês em perigo.

– Nós é que pedimos desculpar por duvidar de sua lealdade – disse-lhe DeeDee. – A gente devia ter mais confiança em você.

– Então sugiro que todas nós paremos de pedir desculpas. Tudo ficou bem no final, não foi? – Oona sorriu.

– Estou louca pra ter um pouco de paz e sossego. – Betty suspirou.

– E dormir um pouco – acrescentou Luz.

– Não esperem nada de imediato – Kiki enfim falou e as Irregulares ficaram em silêncio. – Ananka tem uma confissão a fazer.

Todos os olhos se voltaram para mim. Foi a surpresa nelas que me deixou doente. Ninguém esperava que eu quebrasse alguma regra.

– Quando me encrenquei na escola, minha diretora meu deu um trabalho como castigo. Eu escrevi sobre a Ferrovia Subterrânea.

– Não quer ser mais específica? – Kiki me incitou.

Respirei fundo e deixei que as palavras saíssem no bafo.

– Escrevi sobre a estação da Ferrovia Subterrânea embaixo da sinagoga Bialystoker. Aquela que Kiki e eu descobrimos na Cidade das Sombras.

– Você fez o quê? – Luz ficou de pé num salto e um prato se quebrou no chão, espalhando ketchup numa cadeira.

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– Ah, Ananka! – Betty estava apavorada. – Por quê?

– Do que ela está falando? – cochichou Kaspar para Iris. – O que é a Cidade das Sombras?

– Não posso te contar – sussurrou Iris.

– Acho que pensei que a estação não devia ser segredo – eu disse a Betty. – Mas nunca pensei que a diretora levaria isso a sério. Pensei que ela ia rir disso. Não sou exatamente uma aluna estelar na Atalanta. Mas por acaso a diretora acreditou em cada palavra daquilo.

– E ela contou a outras pessoas – acrescentou Kiki. – Ananka colocou a Cidade das Sombras em risco de ser descoberta. Precisamos decidir o que fazer. Precisamos decidir esta noite.

– Quer dizer decidir como evitar que as pessoas entrem nos túneis? – perguntou Iris.

– Sim. E decidir se Ananka deve continuar como membro das Irregulares.

Olhei a mesa, incapaz de fitar os olhos dos outros. O silêncio aturdido era aflitivo.

Por fim, DeeDee pigarreou:

– Ananka, não sei por que você achou que a diretora não acreditaria. Isso foi idiotice, se não se importa que eu diga. Mas estou curiosa... Por que você acha que a sala debaixo da sinagoga Bialystoker não deve continuar em segredo?

– Bom... – A verdade era que eu não tinha pensado muito bem em meus atos. Só segui meus instintos. – Acho que andei pensando em segredos e como é difícil saber qual deles guardar. Sem querer ofender, Oona, mas seu segredo acabou causando muitos problemas. E depois fiz coisas ainda piores, abrindo a boca e deixando escapar um segredo que Kiki me pediu para guardar. Mas há uma coisa que eu tenho certeza. Não acho que um segredo deva ser guardado, se sua revelação tornar o mundo melhor. Quem construiu aquela sala com as dez caminhas arriscou a própria vida para ajudar os outros a escapar da escravidão. E as pessoas que passaram por isso foram corajosas o bastante para fazer o que era necessário para ganhar a liberdade. A Ferrovia Subterrânea não é como a Cidade das Sombras. Guardá-la para nós mesmas seria egoísmo. Mas entendo que a decisão não cabe a mim. Eu devia ter falado com vocês antes.

DeeDee me olhava com uma expressão vaga e científica. Eu tinha certeza de que não a havia convencido.

– Concordo com Ananka – disse ela. – As pessoas devem saber da estação da Ferrovia Subterrânea.

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– Eu também acho – disse Betty.

– A resposta a seu dilema está debaixo do templo – Oona citou. – Ainda não sei o que significa, mas voto em deixar as pessoas saberem.

– O que está dizendo? – perguntou Luz. – Deixa pra lá. Concordo com vocês. E também acrescento que Ananka não tem sido a única pessoa a ter segredos por aqui, srta. Strike. Mas o que vamos fazer? Vamos abrir a Cidade das Sombras ao público? Acabou tudo?

– Espere aí. Deixe-me pensar por um segundo. – DeeDee baixou a cabeça e deixou os dedos acompanharem a cicatriz na testa. – A sala fica no final de um túnel, né? E se a gente provocar uma explosão e bloquear a passagem? A gente pode dar às pessoas acesso àquele depósito com todas as ostras em conserva. Só vamos dar a impressão de que o túnel nunca foi tão longe. Ninguém ia saber a diferença.

– Gostei! – disse Luz. – Não tenho uma boa explosão faz tempo.

– Parece uma solução razoável – admitiu Kiki. – Então acho que todas concordamos. Ananka fica e a Ferrovia Subterrânea vem a público. Alguma pergunta?

Kaspar levantou a mão.

– Eu tenho uma. Vocês estão falando de alguma espécie de cidade subterrânea?

Toda a mesa uivou de rir.

***

As Irregulres votaram por unanimidade em deixar Kaspar saber de nosso segredo. Kiki até prometeu a ele um giro pela Cidade das Sombras. Com uma condição.

– Como Luz observou, tem havido alguns segredos vagando por aqui. Acho que está na hora de todos nós colocarmos as cartas na mesa. Então, se alguém está guardando alguma informação, agora é a hora de contar. Vou começar. Desculpe por não contar a vocês que a doença de Verushka era grave. Minhas intenções eram boas, mas todas mereciam saber. Também gostaria de recomendar que só usemos o Fille Fiable nas emergências mais terríveis... E que a gente prometa nunca usar uma na outra. Todo mundo concorda?

– Concordo! – gritou a mesa.

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– Muito bem, Kaspar, é sua vez.

– Bem... – Kaspar olhou nervoso para Betty. – Isso é mais difícil do que eu pensava. Meu nome não é Kaspar, é Phineas Parker. Eu fugi de casa há alguns meses. Meus pais são... Bom, é difícil descrever os dois.

– Eu sei – disse Betty. – Eu os conheci. Fomos procurá-los depois que você desapareceu.

– Vocês foram? – A cara de Kaspar corou de constrangimento. – O que quer que eles tenham dito, eu peço desculpas. Eles podem ser bem cruéis.

– Não precisa se desculpar – Betty o tranquilizou. – Não achamos mais que as pessoas são responsáveis por seus pais.

– São os psicólogos de que Oona falou na festa de gala... Aqueles que deram a Lester Liu os nomes das crianças taiwanesas? – perguntou DeeDee.

Kaspar assentiu.

– Tenho certeza de que vi o pai de Oona no consultório de meus pais antes de fugir. Duvido que eles pretendessem fazer alguma coisa errada. Eles não são os melhores pais do mundo, mas não acho que sejam criminosos. Agora, se importam se a gente continuar? Estou curioso para saber dos segredos que Betty esconde?

– Meus segredos? Tudo bem, lá vai. Quero que todos sabiam que decidi honrar meu acordo com Kaspar. Vou jantar com ele... Se ele ainda quiser.

– E o... você sabe o quê? – perguntou Luz.

– O quê? – perguntou Betty, confusa.

– Eau Irresistible? – sussurrou Luz.

– Minha vez. – Oona rapidamente levantou a mão. – Ananka e eu por acaso ouvimos uma conversa sobre a primeira vez que Kaspar viu Betty. Aconteceu um mês antes de ela tomar uma chuva de Eau Irresistible. – Kaspar e Betty ficaram no mesmo tom de vermelho.

– Eu não diria que é um segredo, mas há uma coisa que eu devia ter contado a vocês antes – interrompeu DeeDee. – Iris fez mais uns testes em mim. O perfume do amor não funciona. Nunca funcionou.

– Fiquei a fim de um cara que faz as entregas de uma loja de falafel – admitiu Iris. – Eu praticamente tomei um banho de Eau Irresistible e ele nem olhou duas vezes para mim. E eu

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dou gorjetas ótimas!

– É este o seu segredo? – Oona riu.

– Tenho 11 anos. Dá um tempo – disse Iris.

– Sabe de uma coisa, um dia você não vai mais precisar de perfume nenhum – disse-lhe Kaspar, e Iris se retorceu de prazer.

– Luz? – incitou Kiki. – Alguma coisa que queira contar?

– Humm, bom, meu nome não é Luz Lopez. É Amber White. Sou uma dentista protética de 45 anos de Toledo e nas minhas horas de folga gosto de me vestir de personagens da Disney. Entrei para as Irregulares porque gosto mesmo de andar com meninas de 14 anos. Espero que não usem isso contra mim.

DeeDee riu tanto que o café que bebia saiu pelo nariz.

– Tudo bem, Luz – disse Kiki. – Entendemos. Sem segredos. Oona, mais alguma coisa que gostaria de contar ao grupo?

– Não olhe para mim, estou totalmente limpa. Vocês sabem de tudo.

– Ah, é mesmo? – cantarolou Iris. – E os jalecos de laboratório? E o kit de química?

– Parece que agora é uma detetive – disse Oona. – Aquilo não era segredo. Imaginei que você devia ter um ou dois presentes depois que eu fui tão desagradável. Mas pode mandar seu bilhete de agradecimento a Lester Liu... Foi ele que pagou.

– Acabou? – perguntou Kiki. – Alguém tem mais alguma coisa para desabafar?

– Há uma cosia que você deve saber, Oona – eu disse suavemente. – Todo mundo ficou nervoso. – Quando invadimos a mansão, acho que tive uma ajudazinha.

– Está falando da fantasma? – perguntou Oona. – Ela é uma mão na roda, né? Será que a sra.Fei vai deixar que ela venha nos assombrar?

– É, mas tem outra coisa. Sergei nos contou que ele atirou toda a comida naquela noite e fez os barulhos para nossos grampos. Se a mansão tem mesmo um fantasma, não acho que seja da sua mãe.

– É claro que não é – disse Oona. – É de Cecelia Varney.

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– Você sabia? – perguntou Betty.

– Claro. Descobri quando ela me mostrou o quarto secreto. Acho que ela não queria que eu tivesse o fim que ela teve... Rica, solitária e paranoica. Eu queria poder fazer alguma coisa por ela.

– Acho que sei como pode agradecer a Cecelia Varney – disse Kiki.

***

Saímos do Fat Frankie's às dez da noite. Iris parou um táxi e foi correndo para casa, esperando que o que restava do Fille Fiable ajudasse a convencer os pais de que ela se perdera na loucura do museu. O restante de nós foi para a casa de Oona. Ainda havia duas tarefas a terminar antes de ir para asa enfrentar nossos castigos. Afinal, aquelas de nós que tinha pais podiam ver a luz do dia só no ano-novo. A maioria das Irregulares fez cara de corajosa, mas Luz perdia toda a cor sempre que pensava no que a mãe tinha reservado para ela.

O cheiro de bolinhos enchia a escada do prédio de Oona e podíamos ouvir gente rindo dentro do apartamento. Yu, Siu Fah e as outras crianças sequestradas estavam comemorando a liberdade na sala de estar. Elas aplaudiam quando entramos no apartamento e encheram Oona de perguntas. Enquanto ela respondia a cada um deles em hakka, Kiki e eu fomos ver Verushka. Nós a encontramos na cozinha, trinchando uma galinha. Embora se curvasse muito numa muleta, Verushka estava fora da cadeira de rodas, e sua pele, branca, parecia incrivelmente humana. As ervas da sra. Fei a trouxeram de volta das portas da morte.

– Kiki! Ananka! – Verushka baixou a faca, mancou pela sala e atirou os braços em nós duas. – As crianças contaram sobre a múmia e o museu. Saiu tudo como planejado?

– E alguma coisa chegou a ser planejada? – perguntei. – Fico feliz em ver que parece tão saudável, Verushka. Sente-se bem como aparenta?

– Ah, sim – Verushka confirmou. – A sra. Fei é uma excelente médica. Mas estou pensando que seria melhor estar morta. – Kiki olhou apavorada e começou a se opor, mas Verushka a silenciou. – Escute, Katarina. Se Livia acreditar que estou morta, teremos a vantagem de novo.

– O elemento surpresa? – perguntou Kiki. – Não tinha pensado nisso.

– Precisamos achar um jeito de as pessoas acreditarem que morri.

– Mas não tem que se preocupar com Livia e Sidonia – eu disse. – Agora que destruímos seus

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planos, elas não vão voltar a Nova York.

Verushka me deu um tapinha no ombro.

– Temos que ensinar você a jogar xadrez logo – disse ela. – Assim vai aprender a pensar à frente. Sempre precisamos nos preocupar com Livia e Sidonia. Elas fizeram um movimento e agora temos que fazer o nosso. Vamos obrigá-las a voltar a Nova York.

– Por quê? – perguntei, assim que a sra. Fei saiu da despensa com os braços cheios de latas.

– Onde está Wang? – perguntou a velha, ansiosa ao nos ver. – Ela está segura?

– Está na sala – garanti a ela. – E Lester Liu na cadeia.

– Falando de mim de novo? – A boca da sra. Fei se fechou quando Oona empurrou a porta. – Continue, sra. Fei, pratique seu inglês. – Oona cruzou os braços e esperou que a velha falasse.

– Desculpe. Aprendi inglês por que você nunca me contava nada. Eu só queria sua segurança.

Oona baixou os braços e pegou uma cenoura na bancada. Mordeu a ponta e mastigou despreocupadamente.

– Quer que a gente saia? – perguntou Verushka.

– Não, podem ficar. Não tenho mais nada a esconder. Sabe de uma coisa, sra. Fei, uma fantasma me disse que alguém estava sempre ouvindo. Precisei de um tempo para entender que ela se referia à senhora.

– Uma fantasma? Você falou com sua mãe? – sussurrou a sra. Fei.

Oona pensou por um momento.

– Não sei se era minha mãe – confessou ela. – Nem tenho certeza se era um fantasma. Mas o que quer que fosse, sabia do que estava falando. Ela disse que eu tinha que tomar a decisão de deixar tudo para trás. Se eu agisse assim, teria tudo que desejasse.

A sra. Fei ficou confusa.

– Mas Ananka disse que Lester Liu está na cadeia. Como ele pode lhe dar tudo o que você quer?

– Não quero mais o dinheiro, nem a mansão. Nem ligo para todas as roupas bonitas e joias. Foram essas coisas que escolhi deixar para trás. Percebi que só o que queria era que alguém

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em quisesse. Perdi tempo demais esperando que fosse o meu pai.

A sra. Fei tentou consolá-la.

– Eu tentei avisá-la. Lester Liu é um homem mau.

Oona assentiu.

– Acho que sempre soube disso. Fiquei confusa por um tempo, mas no fundo eu sempre soube que ele não poderia ter mudado. Quando a fantasma me disse que eu tinha de cumprir o meu dever, pensei que significasse colocar Lester Liu na prisão. Mas não foi o que ela quis dizer. Ela queria que eu cumprisse meu dever para com você.

– Comigo? – perguntou a sra. Fei.

– Você é a única mãe que eu tive. É a melhor mãe que eu poderia ter. Não tinha de cuidar de mim. Fez isso porque quis. Eu devia ter entendido há muito tempo. Assim eu podia ter passado menos tempo me lamentando pelo que eu não tinha, e mais tempo apreciando o que eu tinha. Desculpe. Você merecia uma filha melhor.

Lágrimas desceram pelas rugas da velha e Oona se curvou e a envolveu num abraço.

– Você é uma boa menina, Wang. – A sra. Fei soluçava.

– Ainda bem que pensa assim, mas ainda prefiro Oona.

– Teimosa como sempre – eu ri.

– De onde acha que eu tirei isso? – perguntou Oona. – Aliás, tenho uma pergunta, sra. Fei. Tinha uma menina no museu esta noite. Lester Liu a apresentou como filha dele. Isso é possível? Será que ela é minha parente?

A sra. Fei assoou o nariz e limpou as lágrimas do rosto.

– A outra neném morreu.

– Outra neném?

– Sua mãe estava muito doente. Os bebês nasceram cedo demais. Lester Liu não queria chamar um médico. A casa dele era cheia de coisas que ele contrabandeava. Eu era a única pessoa que sabia o que fazer. Tentei salvar as duas. Mas Lili não sobreviveu. Quando levei você, eu a deixei com sua mãe.

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Oona se encostou na bancada.

– Eu tinha uma irmã gêmea?

– Lili? – perguntou Kiki.

COMO SABER QUANDO CONTAR UM SEGREDO

Nem sempre é fácil saber que segredos devem ser contados – e quais devem ser guardados a todo custo. Uma vez que costumo confundir as duas coisas, consultei as pessoas mais éticas que conheço e elaborei este guia útil. Agora, sempre que estou prestes a contar um segredo, faço a mim mesma estas nove perguntas simples.

Quer experimentar? Reserve um momento e pense no maior segredo que conhece...

1. O segredo é picante e saboroso?

Isso não importa. Eu só estava curiosa. Mas não me conte. Passe para a questão 2.

2. Contar o segredo derrubará um ditador, resolverá um crime covarde ou colocará um cara mau atrás das grades?

Se sua resposta for sim, você sem dúvida deve contar. Mas certifique-se de confidenciar às pessoas certas. Existem espiões em toda parte.Se sua resposta for não, passe à pergunta 3.

3. Se não contar o segredo, você ou outra pessoa será prejudicada?

Se a resposta for sim, qualquer heroína que se dê ao respeito acharia coragem para desabafar.Se não, passe à pergunta 4.

4. Alguém será prejudicado se o segredo for revelado?

Já existe muita dor e sofrimento no mundo, então, se sua resposta for sim, é provável que você deva manter os lábios selados.Se não, vá para a pergunta 5.

5. Se você contar o segredo, podem acontecer coisas boas?

Kirsten Miller

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Se as resposta for sim, uma pessoa de virtude abriria o bico. Em algumas situações, guardar um segredo que deve ser contado pode ser tão ruim quanto tagarelar sobre um que não deve.Se a resposta for não, passe à pergunta 6.

6. O segredo pertence a outra pessoa?

Se você chegou até aqui e sua resposta for sim, você deve considerar seriamente ficar de boca fechada.Se não, continue, por favor.

7. Existe a possibilidade de seu segredo ser revelado?

Esta é uma pergunta espinhosa. Um dia, todos os segredos serão revelados. Você terá mais controle sobre a situação se seguir em frente e contar seu segredo antes que outra pessoa o faça. Tenha em mente que quanto mais tempo guardar um segredo, mais danos ele pode causar.

8. Seu segredo é particularmente constrangedor?

Se sim, você pode assumir o risco e guardar para si. (Mas lembre-se sempre da pergunta 7.)Se você chegou ao final deste questionário e sua resposta for não, você provavelmente tem um segredo bem sem graça, a não ser que...

9. Você descobriu um tesouro escondido, uma espaçonave alienígena ou uma cidade perdida?

Se sim, fique à vontade para contar o segredo a mim.

CAPÍTULO DEZESSETE

Um lugar como o nosso lar

No início da manhã seguinte, enquanto o sol lento de inverno se aproximava do East River, as Irregulares se despediam no alpendre escorregadio e coberto de neve do prédio de Oona. Kaspar, Betty e eu partimos para encontrar Howard Van Dyke e o gato de seis dedos. Kiki e as outras foram para o Cemitério de Mármore. DeeDee passou a noite preparando um lote de explosivos com a sua marca registrada e, antes que o dia acabasse, a Cidade das Sombras estaria um pouco menor.

Parei para comprar um café da manhã para Howard, mas quando chegamos ao parque e sacudimos a neve de seu esconderijo, encontramos tudo deserto. Os esquilos de Kaspar

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dispararam para dentro para se banquetear de uma late meio devorada de feijão, provocando uma tempestade de penas e folhas.

– Não entendo. – Os olhos de Kaspar percorreram as árvores próximas como se esperasse encontrar o amigo empoleirado num galho. – Howard sempre fica aqui de manhã. Ele gosta de dormir até tarde.

– Não o viu ontem à noite, quando veio procurar os esquilos? – perguntei. Eu queria ter procurado por Howard antes. O clima estava ficando frio demais para um corretor de ações selvagem.

– Não, mas isso não me surpreendeu. Ele observava a família à noite. Quando as luzes se acendem na casa deles, dá para ver cada movimento. Howard chama de TV de mendigo. Os esquilos preferem ficar no parque. Eles têm lembranças ruins do Upper West Side.

– Howard tem família em Manhattan? – perguntou Betty. – Por que não mora com eles?

– Mas eu pensei que você... – comecei a dizer antes de finalmente entender. Havia outra pessoa que podia ter tido aquela conversa franca com Howard. Eu devia ter percebido mais cedo que a estrela de cinema chinesa e benevolente que o instou a ir para casa não era outra senão Oona Wong.

– A mulher e os filhos dele moram na rua 75 – disse Kaspar. – Ele fugiu deles no verão passado. Howard sempre chorava quando falava deles, mas nunca me contou por que foi embora.

– Ele contou a mim – eu disse. – E tenho o pressentimento de que Howard foi para casa.

***

A família de Howard morava numa rua charmosa e arborizada, numa casa de arenito de cartão-postal com uma grande janela de sacada. Um menininho levado estava de nariz apertado feito um porco no vidro. Betty acenou e ele mostrou a língua. Quando tocamos a campainha, uma mulher roliça e bonita, de pérolas, atendeu à porta. O menino nos espiou de atrás de sua saia, a cara retorcida numa careta horrível de gárula.

– Sra. Van Dyke? – perguntou Kaspar.

– Sim – respondeu ela cautelosamente, esfregando as mãos para preservar o calor.

– Olá, senhora. Meu nome é Kaspar. – Ele não teve oportunidade de explicar mais nada. A mulher de Howard voou para fora e passou os braços nele. Betty riu de surpresa.

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– Kaspar! – exclamou a mulher. – Howard me contou tudo sobre você. Obrigada por mantê-lo vivo esse tempo todo. Eu fiquei louca por meses!

– Ficou? – A voz de Kaspar ficou abafada pelo suéter da mulher.

– Quase morri de alegria quando o vi – disse a sra. Van Dyke. – Estava começando a pensar que ele nunca viria para casa.

– Então não está mais zangada com ele? – Eu soltei antes que percebesse que estava ficando meio pessoal demais. – Desculpe. É só que Howard me disse que ele perdeu todo o dinheiro da família.

A sra. Van Dyke soltou Kaspar e olhou por sobre o ombro para ver se alguém estava ouvindo. Quando viu o filho fazendo careta para nós, ela o enxotou para dentro e fechou a porta com delicadeza.

– No início eu fiquei chateada – disse ela suavemente. – Mas vou lhes contar um segredinho. Quando me casei com Howard, eu sabia que ele não era o melhor corretor do mundo. E podem acreditar, esta não era a única culpa dele. Ele também é um tremendo porcalhão. Uma vez encontrei a cueca suja dele numa caixa de pão e ele tinha uma crise de comilança daquelas horrendas salsichas Viena todo mês. Mas ele era o homem mais maravilhoso que conheci. Então, fiz o que tinha de fazer. Guardei o dinheiro todo mês, para o caso de acontecer alguma coisa, e nunca contei a ele sobre nossas economias. Com os juros que ganhei, nós ficamos muito bem.

– Mas eu soube que levaram toda a mobília – eu disse.

– Eles vieram mesmo, é verdade. Mas eu cuidei da conta na hora.

– Se ele soubesse... – Kaspar gemeu.

– Não há a quem culpar – a sra. Van Dyke o tranquilizou. – Howard não estava com os comprimidos dele no dia em que os homens vieram pegar os móveis. Caso contrário, não acho que ele ficasse escondido por tanto tempo. Como pode ter percebido, ele fica meio confuso com os remédios. Ele sofreu uma lesão bem feia na cabeça alguns anos atrás. Ele estava se exibindo e mergulhou na piscina de crianças em um resort em Acapulco – confidenciou ela. – Mas chega de história antiga por hoje. Imagino que tenham vindo ver Howard, e não a mim.

***

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Na sala de estar dos Van Dyke, encontramos um homem sentado no chão a menos de 3 metros da televisão. Se April, a galinha, não estivesse ao lado dele, eu talvez não reconhecesse Howard. Limpo, barbeado e sem cheiro, ele vestia um blazer azul-marinho e gravata listrada de Harvard.

– Ora, olá! – Ele pulou quando nos viu e apertou nossas mãos. – Nem acredito no que perdi! Estive acompanhando os noticiários por dois dias seguidos. Vocês souberam do bezerro de duas cabeças em Minnesota? Esperem um minuto... – Ele parou e farejou o ar em volta de nós. – Kaspar, seu cheiro é praticamente humano! Você também voltou para casa?

– Se minha casa fosse assim, eu teria voltado há séculos – disse-lhe Kaspar. – Mas ainda estou por minha conta, sozinho. Bom... Não exatamente. – Ele piscou para Betty.

– Esta deve ser a jovem sobre quem você costumava tagarelar – observou Howard. – Ela enfim cedeu?

– Acho que sim – disse Kaspar.

– Eu cedi. – Betty corou.

– Que bom saber disso! Quem precisa de uma casa quando tem uma boa mulher? Sentem-se, todos vocês. Alguém quer umas salsichas?

– Na verdade, Howard, esta não é uma visita social – explicou Kaspar. – Eu adoraria colocar as fofocas em dia, mas temos uma coisa urgente para fazer hoje.

– Tem alguma coisa a ver com o gato de Cecelia Varney?

– Então você soube?

– Minha maravilhosa esposa gentilmente guardou os jornais dos últimos quatro meses. Ela sabe que eu gosto de me manter informado dos últimos acontecimentos. Já estamos quase em setembro. Eu estava fazendo carinho no pequeno Fang quando li sobre os herdeiros desaparecidos da fortuna Varney. Ah... Eu o batizei, espero que não se importe. Um nome de durão pode estimular a autoconfiança dele, não acha?

– Parece razoável – concordou Kaspar. – Fang está aqui?

– Claro! Mas na maior parte do tempo, ele fica no quarto. Ele tem um medo terrível da April. Às vezes ela pode ficar meio xereta mesmo. Aliás, o que pretendem fazer com ele?

***

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A mansão de Lester Liu estava apinhada de repórteres, curiosos ambientalistas e amantes de múmias. Furgões de televisão bloqueavam a Quinta Avenida e o trânsito foi desviado por várias quadras. Kaspar, Betty e eu vimos Adam Gunderson do noticiário do Channel Three gravando uma reportagem.

Boa noite, Janice. Estou aqui no Upper East Side de Manhattan, onde, na noite passada, um rico filantropo foi desmascarado como um dos mestres do crime mais descarados que esta cidade já viu! Lester Liu, cuja mansão está atrás de mim, foi acusado esta manhã de uma lista tremenda de crimes, inclusive sequestro, roubo de obras de arte e tentativa de homicídio. O Channel Three também encontrou provas de que o sr. Liu é o líder secreto da gangue Fu-Tsang de Chinatown, um bando de contrabandistas violentos que aterrorizaram Lower Manhattan por décadas.

Embora a gangue Fu-Tsang contrabandeasse de tudo, segundo consta, de bolsas falsificadas a drogas ilegais, o contrabando de gente parece ter sido a principal fonte da riqueza de Lester Liu. A polícia já fechou sete confecções ilegais de propriedade do sr. Liu e há poucas horas dez adolescentes taiwaneses apareceram na delegacia do Quinto Distrito de Manhattan afirmando que foram trazidas ilegalmente para o país e mantidas em cativeiro pelo sr. Liu e um homem chamado Sergei Molotov. Depois de darem seus depoimentos, os adolescentes serão entregues a seus pais no exterior.

Mas talvez o aspecto mais extraordinário desta história seja a pessoa que levou o sr. Liu à justiça – sua filha de 14 anos, Oona Wong. A srta. Wong não estava disponível para entrevistas, mas testemunhas da abertura de gala da noite passada a descreveram como uma menina atraente, embora malvestida, com uma pronúncia excelente do inglês.

Veja a matéria completa e as mais recentes revelações às cinco horas, na Reportagem Especial do Channel Three. Por hora, eu sou Adam Gunderson, falando ao vivo da Quinta Avenida.

– Isso foi maravilhoso, sr. Gunderson! Meu nome é Tiffany Thompson e sou sua maior fã – eu disse, cheia de entusiasmo.

Adam Gunderson baixou o espelho que usava para verificar o cabelo e me abriu um sorriso presunçoso.

– Obrigado. É ótimo saber que ainda existem algumas crianças que assistem aos noticiários hoje em dia. – Ele fez um ruído como se a maioria dos jovens passasse as noites assaltando velhinhas e barbarizando em cemitérios em vez de enriquecer sua mente com as reportagens dele.

– Ah, eu vejo você toda noite. Por isso eu queria ter certeza de que você fosse o primeiro a

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saber o que encontrei no parque.

Os olhos do Adam Gunderson ficaram vidrados.

– Eu agradeço por isso, jovenzinha, mas agora estou muito ocupado. Estamos gravando uma reportagem especial sobre Lester Liu. Por que não fica ali, fora do caminho, enquanto grava o próximo segmento?

– Quem sabe isto não possa fazer parte dele? – Eu estendi o gato. Quando o pelo roçou no terno de Gunderson, o repórter saltou para trás.

– Alguém me dê uma escova para fiapos! – gritou ele. – Estou todo cheio de pelo de gato. Poderia, por gentileza, tirar essa coisa daqui? – sibilou ele.

– Mas pensei que quisesse dar uma olhada nos dedos dele – eu gemi. – São muito incomuns. Os gatos não deviam ter só cinco dedos? – Num instante, a cara de Adam Gunderson passou da irritação ao êxtase. Ele arrancou o gato de minhas mãos e examinou os dedos.

– Onde achou esse bicho? – perguntou ele, tentando esconder a empolgação.

– Bem ali no parque, do outro lado da rua, na frente daquela casa grande. Eu vi um monte de gatos sendo colocados num furgão de entrega, mas este aqui escapuliu.

– Lembra do nome no furgão? – inquiriu o repórter. Seus lábios se mexeram em silêncio enquanto ele esperava por minha resposta e eu sabia que ele rezava.

– Claro – eu disse. – Era de uma empresa chamada Tasty Treasures.

– Alguém me consiga o endereço da Tasty Treasures! – gritou ele.

Enquanto um assistente frenético esbarrava em mim, por acaso olhei a Mansão Varney. Uma das cortinas no segundo andar se abriu e uma figura enevoada apareceu brevemente na janela. Serei a primeira a admitir que podia ser o brilho do sol no vidro, ou um dos muitos policiais que ainda andavam pelo prédio. Na realidade, há centenas de possíveis explicações que fazem completo sentido. Mas prefiro pensar que era Cecelia Varney.

***

– Isso deve resolver – eu disse a Kaspar e Betty. – Sempre se pode confiar em Adam Gunderson. Ele não é muito inteligente, mas é incrivelmente insistente. Vai se certificar de que o gato receba a mansão e os contrabandistas de animais tenham uma gaiola só deles.

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– Então agora que fizemos nossa boa ação do dia, para onde vamos? – perguntou Kaspar enquanto nós três andávamos pela Quinta Avenida. – Vamos passar no Hotel Carlyle para um bule de chá?

– Muito engraçado – eu disse, embora a ideia de um sanduíche de pepino fosse muito tentadora. – Está na hora de eu ir para casa receber meu castigo. – Desde que saíra da casa Howard, eu quase ansiava por isso.

– Eu também – Betty suspirou.

– Por que vocês não ficam no parque comigo? – propôs Kaspar. – A gente pode fundar nossa própria colônia.

– Não se pode morar no parque para sempre – disse-lhe Betty. – Às vezes a gente precisar ir para casa.

– Pelo menos para tomar um banho – eu aconselhei.

– Howard foi para casa e olha como ele se deu bem – tentou Betty.

– Nunca vou voltar para a casa de meus pais – declarou Kaspar. – Não é a minha casa. É só um laboratório com mobília cara. Sabe de uma coisa, só porque sou parente de Arthur e Jane não quer dizer que eu pertença a eles. Eles passaram toda a minha vida tentando fazer de mim uma criança perfeita, e estou cansado de ser a cobaia deles.

"Acho que conhecer a sra. Van Dyke esclareceu tudo de uma vez para mim. Ela não liga se Howard não é perfeito. Ela é louca por ele assim mesmo. Sabe o que minha mãe faria se descobrisse minha cueca na caixa de pão? Ia ligar para uma equipe de especialistas para analisar meu comportamento aberrante.

– Eu sinto muito. – Betty pegou a mão de Kaspar e o humor sombrio dele logo ficou mais leve.

– Eu também – eu disse. – Mas me recuso a deixar que minhas amigas namorem vagabundos. Temos que achar um lugar para você.

– Acho que as duas já têm seus próprios problemas. Vocês provavelmente ficarão de castigo por mais uma ou duas décadas.

– Veremos. – Eu me sentia estranhamente otimista. – Quando fugi da diretora no museu ontem à noite, ela prometeu conversar com meus pais. Se alguém pode me salvar, é ela. Então por que não fica comigo? Tem um quarto extra no nosso apartamento. Se eu não for despachada para o colégio interno, talvez meus pais deixem você ficar até que pense no que

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fazer.

***

Cada poste de rua do meu bairro tinha o mesmo cartaz de desaparecida. A menina infeliz na foto parecia inchada, pastosa e meio vesga. Kaspar foi gentil em me garantir que eu era muito melhor pessoalmente. Nós nos escondemos na porta do outro lado da rua e esperamos que a diretora Wickham chegasse. Ao meio-dia em ponto, um táxi parou e a velha baixinha saltou do carro. Atravessamos correndo a rua para recebê-la antes que ela pudesse tocar a campinha de meu apartamento. Os esquilos ficaram para trás, revirando a lixeira de um vizinho.

– Obrigada por vir, diretora Wikcham. Mas antes que a gente entre, gostaria de apresentar meu amigo Phineas Parker.

A diretora tirou os óculos e examinou Kaspar.

– É um prazer conhecê-lo, sr. Parker – disse ela. – É muito parecido com seu pai. Como estão Arthur e Jane?

– Conhece meus pais? – Kaspar não pôde esconder seu desprazer com o assunto. – Sei que eles vão bem, mas não os vejo há meses. Estou morando sozinho.

– No Central Park – acrescentei.

A testa da diretora Wickham se vincou um pouco de preocupação.

– Ora essa, isso é muito desagradável – disse ela. – As coisas estavam tão ruins assim em casa?

– Piores – admitiu Kaspar.

– Queria que conhecesse Phineas porque acho que a senhora pode ser fã de sua arte. Foi ele que pintou os esquilos por toda a cidade.

– É verdade? Sinto falta de suas criaturas. Elas davam certa graça a meu dia. Por que parou?

– Fui raptado por Lester Liu e obrigado a reproduzir duas telas que ele roubou.

Para seu eterno crédito, a diretora nem piscou.

– Quais? – perguntou ela.

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– A Odalisca em cinza e Vênus e Adônis.

– Que interessante. Tive a oportunidade de ver as falsificações esta manhã. O sr. Hunt, diretor do museu, é um velho amigo meu. A anamorfose naquelas duas telas é impressionante. Mas devo confessar que sou familiarizada com sua arte há muito tempo, sr. Parker. Na realidade, eu tenho uma de suas pinturas em casa. Uma obra dos seus primeiros anos, acredito. Foi presente dos pais de uma de minhas alunas. Mas não consegui exibi-la. É muito triste.

– É da série do zoológico? – perguntei.

– Sim, na realidade, é. É uma pintura de um panda muito assediado. Posso perguntar de onde veio sua inspiração, sr. Parker?

– De um dos pacientes de meus pais – admitiu Kaspar.

– Era por isso que eu tinha esperanças de que a senhora o ajudasse – eu disse. – Ele não pode ficar no Central Park, mas também não pode ir para casa. A mãe e o pai dele são malucos.

– Ananka! – Kaspar corou.

– É verdade, não é? – perguntei.

– Entendo. – Quando a diretora Wickham erguia a sobrancelha, parecia uma Kiki Strike envelhecida. – Por acaso vou almoçar com uma ex-aluna da Atalanta hoje. É uma artista renomada e dona de uma pequena academia de artes nos arredores da cidade. Ela esteve comigo esta manhã no museu e, a julgar pela reação que teve a sua obra, creio que pode ser convencida a lhe oferecer uma bolsa, sr. Parker. Se importaria de esperar aqui enquanto tenho uma conversa com os pais de Ananka? Devo terminar em alguns minutos e depois, se não estiver ocupado, talvez possa almoçar comigo e minha amiga.

– Viu? – cochichei para Kaspar enquanto a diretora Wickham tocava a campainha. – Você tem que saber quando contar a verdade.

***

– Ananka! – minha mãe gritou quando abriu a porta. – Por onde andou?

– Ananka? – A cabeça de meu pai apareceu na sala e depois ele disparou pelo corredor. Meus pais me sufocaram de abraços e vários minutos se passaram antes de eles perceberem que a diretora Wickham estava olhando.

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– A senhora deve tê-la trazido para casa. – A voz de minha mãe falhava de emoção. – Nem posso lhe dizer o quanto estamos gratos. Mas onde diabos a encontrou?

– No Metropolitan Museum of Art – respondeu a diretora.

Meu pai engoliu em seco enquanto a cara de minha mãe virava pedra.

– Você voltou lá? – grunhiu ela.

– Talvez precisemos conversar – disse a diretora Wickham calmamente. – Podemos nos sentar?

Como todo mundo que entra em nossa casa pela primeira vez, a diretora Wickham ficou admirada com a biblioteca de meus pais. Mas ao contrário da maioria das visitas adultas, ela não pareceu nervosa por andar entre pilhas mal equilbradas de livros que revestiam cada parede.

– Posso entender por que Ananka não tem interesse no dever – disse ela. – Sua filha pode receber uma educação maravilhosa simplesmente ficando em casa. – Ela se sentou no sofá e olhou os jornais na mesa de centro.

ROUBO DE OBRAS DE ARTE FRUSTRADO POR MNINA DE 14 ANOS!, gritava o Post.

MÚMIA ANTIGA ENCONTRADA NA MANSÃO!, berrava o Daily News.

Meus olhos se demoraram numa manchete na primeira página do New York Times. VERUSHKA KOZLOVA PODE ESTAR MORTA, POSSÍVEL INCOMPETÊNCIA MÉDICA. Reprimi um sorriso. Na noite anterior ouvi Kiki ao telefone antes de dormir em minha cama improvisada no chão da casa de Oona. Ao que parecia, ela conseguira matar Verushka e se vingar do sr. Pritchard em um único telefonema.

– Já leu os jornais de hoje? – perguntou a diretora a meus pais.

– Estivemos preocupados – disse meu pai.

– Acho que devem dar uma olhada. – A diretora apontou a primeira página do New York Post. A foto mostrava Oona atrás da plataforma da festa de gala. – Reconhece alguém?

– Essa é amiga de Ananka! – Minha mãe arfou. – Aquela que sempre arromba nossa porta!

– Olhe mais parto – aconselhou a diretora. Ao fundo da foto, estava uma menina meio nerd com um vestido horrível. Eu mal me reconhecia.

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– Ananka? – Meu pai dava a impressão de que ia ter um colapso. – É você?

Esperei tempo demais para responder.

– Não posso ajudar se você não se ajudar – alertou a diretora Wickham.

– Sim – admiti.

– E foi onde eu a encontrei – informou a diretora a meus pais. – Eu era convidada da abertura. Sua filha e as amigas desbarataram o maior roubo de obras de arte da história do Metropolitan Museum.

Meus pais me olharam boquiabertos como se eu fosse uma visitante de um planta distante. Eu sabia que o cérebro deles estava ocupado reavaliando tudo o que tinha acontecido nos últimos três meses.

– Por que não conta como aconteceu? – a diretora Wickham me instou. – Eu mesma estou muito curiosa para ouvir.

– Bom, acho que começou com os esquilos gigantes... – comecei. E contei tudo a eles. As crianças taiwanesas raptadas, Lester Liu e o fantasma ansioso, o desaparecimento de Kaspar. Pulei só uma parte da história – a Cidade das Sombras. Guardar um segredo não ia matar ninguém.

– Era por isso que você escapulia de casa? – perguntou meu pai.

– E dormia durante as aulas? – acrescentou minha mãe.

– E fugiu?

– Sim, sim e sim – eu disse. – Peço desculpas por ter mentido para vocês, mas eu tinha que ajudar minhas amigas. Eu não podia ir para a Virgínia Ocidental antes que tudo estivesse resolvido.

Meu pai lançou um olhar para minha mãe.

– Não vamos mandar você para a Academia Borland. – Ele suspirou. – Só queríamos colocar algum juízo em você no susto. Sua mãe estava convencida de que você estava prestes a se tornar uma delinquente juvenil e, para ser franco, eu não sabia o que pensar.

– Eu... Eu... Tudo bem, é verdade – disse minha mãe. – Estou disposta a admitir que errei. Só queria que você nos contasse as coisas. No mínimo, nós podíamos ter ajudado. Você só tem 14

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anos, Ananka, e às vezes tem que confiar em nós para saber o que é melhor. E mesmo que você seja uma espécie de detetive mirim, não vou permitir que deixe sua educação de lado. Com todo o tempo que perdeu, não vou me surpreender se você não passar em alguma matéria neste semestre.

– Pensei que estaria preocupada com isso, sra. Fishbein – disse a diretora Wickham. – Foi por isso que vim aqui hoje. Todo ano, escolho uma aluna promissora do primeiro ano da Atalanta para ser minha protegida pessoal. Este ano, escolhi Ananka. Suas antecessoras vieram a se tornar algumas das mulheres mais bem-sucedidas do país. Acredito que sua filha tenha o mesmo potencial.

– Acha mesmo? – Minha mãe colocou a mão no coração como se estivesse esperando que o órgão vacilasse e parasse.

– Acho. E também quero lhes garantir que Ananka poderá colocar em dia todos os trabalhos dos cursos que perdeu. Com alguma instrução particular, ela terminará o ano com notas razoáveis. Na realidade, ela já tem um A em uma matéria.

– Eu tenho? – perguntei.

– Sim. À luz de sua extraordinária descoberta, o sr. Dedly acha adequado lhe dar um A em seu curso de história de Nova York.

– Que tipo de descoberta? – perguntou minha mãe, como se nada mais pudesse surpreender.

COMO SE PREPARAR PARA SEU CLOSE-UP

A certa altura da vida, você acabará na televisão. Talvez você seja celebrada por suas contribuições à humanidade. Ou talvez vá se capturada andando furtivamente pelo telhado de um hotel de Monte Carlo com o bolso cheio de diamantes roubados. Qualquer que seja o caso, você vai querer ter certeza de que está preparada para as câmeras. Hoje em dia, se você passar por um constrangimento na televisão, nem seus netos vão te perdoar.

Cuidado com o que come

Para evitar uma boca seca que a deixará lambendo os lábios como uma vaca sedenta, beba alguma coisa antes de aparecer diante das câmeras. Mas cuide para que não seja bebida gaseificada, a não ser que pretenda arrotar para seus espectadores. Além disso, você deve comer antes, ou seu microfone pode pegar o som de seu estômago roncando. Mas tenha cuidado com pratos à base de feijão.

Nunca, jamais masque chiclete

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Isto provavelmente não precisa ser dito a ninguém cujo nome não seja Britney.

Não tente deslumbrar as câmeras

Se quiser brilhar para as câmeras, faça isso com sua personalidade, e não com suas roupas ou joias. Pedras cintilantes e pulseiras barulhentas deixarão a equipe de reportagem louca. Use uma blusa de cor viva e você vai parecer tão pálida que as pessoas vão se perguntar se tem uma doença terminar. E listras e estampas malucas confundem as câmeras e transformar sua roupa num borrão nada lisonjeiro.

Não se arrisque a usar roupas novas

Sempre que receber um prêmio ou alegar sua inocência, você vai querer estar à vontade. Use roupas que sabe que caem bem e valorizam seu corpo. A última coisa que você quer é parecer inchada, calombenta ou com dor.

Prepare-se para suar

As luzes da TV são quentes o bastante para derreter até a personalidade mais fria. Então leve uns lenços de papel e um pó compacto se não quiser dar a impressão de que foi mergulhada em óleo para bebê. E escolha roupas que possam ajudar a esconder ou evitar qualquer mancha pavorosa nas exilas.

Use maquiagem

Isso não tem nada a ver com vaidade. A maquiagem para as câmeras é uma necessidade, se não quiser parecer uma zumbi doente. (Isso vale para homens e mulheres.) Mas escolha tons mais sutis e fique longe de brilho labial e sombra para os olhos que brilhem ou faísquem – ou ninguém vai levar você a sério.

Não fique agitada

Mesmo que seus saltos quebrem, seu vestido rasgue ou uma mosca voe direto para dentro de sua boca, jamais perca a calma. Você pode transformar um mico medíocre na TV em um clássico.

CAPÍTULO DEZOITO

Espere o inesperado

O pacote chegou uma semana depois da revelação no Metropolitan Museum of Art. Enfiado

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dentro dele havia um pedaço de queijo cheddar extra-ardido, uma carta e uma foto de uma Molly Donovan suja de lama montada numa porca gigante. Uma das mãos segurava um troféu dourado. Uma faixa no fundo dizia Quinto Rodeio Anual de Porcos da Academia Borland.

Querida Ananka,

Não fique animada – é só um troféu de segundo lugar. Só estou na Borland há uma semana, mas estou superfeliz que a diretora Wickham tenha recomendado. Tem um cara na minha turma que gosta de colocar fogo nas coisas quando ninguém está olhando e uma menina que acha que é vampira. (São pessoas realmente fascinantes depois que você as conhece.) Eles é que são os especiais aqui. Todo mundo fica tão ocupado com os alarmes de incêndio e sanguessugas que ninguém presta atenção nenhuma em mim.

De qualquer modo, nunca tive a oportunidade de agradecer pessoalmente a você, então batizei minha porca em sua homenagem. Se ela ainda estiver por aqui no ano que vem, vamos ganhar o primeiro prêmio do rodeio. Se não, vou mandar umas costeletas para você!

Molly

Embora estivesse feliz por Molly, eu lamentava perdê-la. A Atalanta ficou calma demais depois que ela foi expulsa. Coloquei o queijo na geladeira e olhei minha roupa no espelho do corredor. Saia de tweed, botas marrons de cano alto e um lindo casaquinho curto. Passei horas procurando pela roupa certa. A diretora Wickham disse que haveria jornais e câmeras de televisão, e eu não pretendia ser uma vítima da moda por duas vezes numa semana só.

– Você está ótima, Ananka – disse meu pai. Ele e minha mãe esperavam por mim na porta, os dois com as melhores roupas.

– Ótima? – estremeci.

– Seu pai quis dizer que você conseguiu o perfeito equilíbrio entre o estiloso e o nerd. – Minha mãe riu. – Agora vamos, ou chegaremos atrasados.

***

Passamos por nosso primeiro esquilo gigante na esquina da Bowery com a Delancey. A criatura encantadora com pelos vermelhos e felpudos e uma expressão terna foi pintada na parede de tijolos de um prédio condenado. A placa em sua mão dizia EU VOLTAREI! O segundo esquilo passou na traseira de um furgão de entregas. Um roedor cinza adorável, ele erguia uma faixa que dizia NÃO SE ESQUEÇA DE MIM! Quando meus pais e eu chegamos ao Lower East Side, tínhamos visto mais de uma dúzia de roedores. Durantes dias, os nova-iorquinos ficaram

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especulando sobre o significado das mensagens dos roedores. Muitos acreditavam que o justiceiro estava deixando Manhattan, agora que seu trabalho fora feito. A prisão de Lester Liu e a destruição da rede de contrabandos da Fu-Tsang tinha detido o fluxo de animais em extinção para Nova York e, graças à chocante revelação de Adam Gunderson sobre a empresa Tasty Treasures, não haveria mais filhotes de naja nos cardápios da cidade. Mas só as Irregulares sabiam o verdadeiro significado das placas dos esquilos. Kaspar ganhou uma bolsa de estudos numa escola de arte. Desde que recebera a notícia, ele passou cada noite decorando a cidade como um presente de despedida para Betty.

Quando chegamos à sinagoga Bialystoker, encontramos as pessoas entrando no prédio baixo de pedra. A diretora Wickham esperava por mim na calçada.

– Bom dia – ela nos cumprimentou. – Fico feliz em ver que trouxe seus pais, Ananka, mas onde estão suas amigas?

– Decidimos que era melhor que não fôssemos vistas juntas em público por um tempinho – eu disse a ela. – Não queremos chamar mais atenção.

– Ah – disse a diretora. – Ora, então, talvez possa passar algumas informações na próxima vez que as vir. Recebi um telefonema do sr. Hunt, o diretor do museu, esta manhã. Houve uma descoberta relacionada com a múmia da Imperatriz.

– Nós tentamos ter o maior cuidado com ela! – eu disse.

–A múmia não foi danificada. Considerando tudo, ela está em uma forma incrível. Não, o que quero dizer é que a Imperatriz finalmente foi inocentada.

– Inocentada? – perguntou meu pai.

– Ela foi chamada de traidora pelos últimos duzentos anos. Mas agora parece que pode não ser verdade. Quando os especialistas do museu reclamaram o corpo, descobriram que estava enrolado num tecido recoberto de uma escrita antiga. Era uma mensagem que tinha sido contrabandeada para dentro do esquife por uma das criadas da Imperatriz. Ao que parece, a pobre menina não se adaptou à vida na corte e tentou escapar antes de se casar com o filho do imperador. Ela não cometeu traição; só queria ir para casa. Quando foi capturada, o imperador a envenenou e a enterrou viva. É claro que os especialistas querem mais evidências, mas o museu já realizou alguns testes na múmia e descobriu a presença de uma substância tóxica no corpo.

A diretora parou e me lançou um olhar penetrante.

– Infelizmente, a mensagem também afirmava que a criada colocou na tumba uma estatueta dela mesma montada a cavalo, mas não parece estar entre as posses da Imperatriz. É uma

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pena. Daria maior credibilidade à história.

Pensei na descoberta que tinha dado início a toda a aventura. Eu quase me esquecera da estatueta de argila de uma mulher a cavalo que escondi atrás das roupas de meu armário. A criada da Imperatriz servira-lhe bem e chegara a hora de promover o reencontro das duas.

– Sei onde está a estatueta – confessei. – Diga ao sr. Hunt que a entregarei a ele amanhã.

– Pensei que você pudesse lançar alguma luz sobre o mistério. – A velha senhora riu. – E quem sabe alguns outros mistérios também?

– Ananka! – chamou o sr. Dedly da escada da sinagoga. – Aí está você. Estamos prontos para começar!

***

As câmeras começaram a espocar quando entrei na sinagoga. Na frente do templo, Adam Gunderson, do noticiário do Channel Three, testava o microfone.

– Aqui está ela, a menina da hora, Ananka Fishbein – anunciou o sr. Dedly. Desde que ele leu meu trabalho, eu me tornei a aluna preferida do sr. Dedly. Ele até me convidou para ser assistente dele em uma escavação arqueológica no centro da cidade. Descobriram uma fossa antiga perto da Wall Street e podia haver tesouros fascinantes escondidos em suas profundezas.

Gunderson me olhou desconfiado.

– Já nos conhecemos? – perguntou ele.

– Acho que não. – Abri um sorriso adequadamente pueril. – Por que não começamos? Tenho outro compromisso esta tarde.

Boa tarde, Janice. Estou aqui no Lower East Side de Manhattan com uma boa notícia, para variar. Este foi um ano memorável para as meninas de 14 anos, e agora sabemos que outra adolescente fez uma descoberta excepcional.

Ananka Fishbein, estudante com distinção da Escola para Menina Atalanta, levou arqueólogos a uma estação há muito desaparecida da Ferrovia Subterrânea, embaixo da sinagoga Bialystoker. A sala subterrânea está perfeitamente preservada, com dez camas e um túnel de fuga que leve ao East River. É uma parte importante da história americana e um exemplo poderoso que revela até que ponto as pessoas irão para garantir sua liberdade.

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Diga-me, srta. Fishbein, como uma menina da sua idade conseguiu fazer uma descoberta que escapou aos especialistas durantes tantos anos?

"Uma menina da minha idade?", repeti, quase sufocando com as palavras. Vi meus pais rindo e, se não fosse pelas câmeras, eu teria dada um ou duas lições nele. "Bom, sr. Gunderson, se ler as coisas corretas, pode descobrir quase qualquer coisa...

***

Fechado para Reformas, anunciava a placa na porta do Golden Lotus. Mas lá dentro o salão de manicure de Oona borbulhava de atividade. As Irregulares, Verushka, a sra. Fei e Iris se reuniram para uma festa de despedida a três de nossos novos amigos.

Luz e DeeDee me viram pela vitrine e abriram a porta para mim.

– E aí, superstar – disse DeeDee. – Vi você no Channel Three.

– É bom saber que algum jovem ainda vê os noticiários hoje em dia – eu brinquei.

– Eu prefiro fazer do que ver – Luz se gabou.

– Como vai fazer notícia se sua mãe não perde você de vista? – zombou DeeDee. Oona convenceu o sr. Hunt a mandar cartas aos pais explicando nosso desaparecimento e elogiando nossa contribuição para o mundo da arte. A mãe de Luz mandou emoldurar a carta, mas ainda não suportava deixar a filha sozinha por mais de 5 minutos. Fiquei surpresa ao ver que ela não tinha se convidado para a festa.

– Ela está melhorando – Luz suspirou. – Só me seguiu ao banheiro duas vezes ontem.

– Ananka! – Kaspar chamou do outro lado da sala. – Tenho uma coisa para você.

Ele e Betty estava aninhados perto dos cubículos das pedicures, curtindo as últimas horas juntos. Pela manhã, Kaspar estaria num trem para sua nova escola. Ele já garantira a Betty que a veria todo fim de semana, mas ela ainda parecia meio triste. Cumprimentei os outros e fui vê-los.

– O que é? – perguntei enquanto ele estendia um pacote embrulhado em jornal.

– Um presentinho de agradecimento. Por me ajudar a encontrar uma casa.

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Rasguei o papel. Dentro dele havia uma pintura da sinagoga Bialystoker. Virei a moldura para a esquerda e um esquilo gigante apareceu como que por mágica no telhado do prédio.

– Obrigada. É linda – eu disse a ele. – E muito incomum.

– Tenho uma para a diretora Wickham também, se não se importar de entregar por mim. Com sorte, ela vai achar esta animada o bastante para pendurar na parede.

– Acho que ela vai ficar emocionada me mostrar uma pintura de um artista de sua estatura.

Kaspar riu.

– Se quiser ver o que artistas de verdade podem fazer, dê uma olhada na sala de Oona.

***

Eu não estava nem na metade do corredor quando ouvi Iris e Oona discutindo.

– O que foi? – perguntei enquanto empurrava a porta. – Pensei que vocês agora fossem amiguinhas.

– E somos. Dê uma olhada. – Oona apontou o mural que Yu e Siu Fah terminavam. Os dois ficaram para trás para poder terminar o presente a Oona quando os amigos voltaram a Taiwan. Agora que o mural finalmente estava concluído, eles iriam embora de manhã cedo. – Pedi a eles para colocar Iris na pintura.

A imagem que parecia viva, das Irregulares em batalha com os ratos da Cidade das Sombras, tomava maior parte da parede. As seis integrantes mais velhas tinham expressões dignas e uniformes pretos com um longo i aparecendo na frente. Iris, porém, estava com o mesmo vestido roxo de babados que usara na abertura da gala. Não pude deixar de rir.

– É, é, muito engraçado – Iris fungou. – Por que não posso ter um uniforme também?

– Porque é assim que quero me lembrar de você – explicou Oona. – Você estava com esta roupa quando salvou minha vida.

– Não me faça me arrepender disso, Wong – a menina se irritou.

– Peraí, agora que você é toda adulta não pode aturar uma brincadeira? – perguntou Oona. Ela falou em hakka e Yu sorriu. Estendendo a mão para o mural, ele tirou uma faixa de papel que tinha sido fixada na parede, revelando uma pintura um tanto diferente por baixo. O vestido

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roxo de Iris desapareceu. A imagem agora mostre as sete Irregulares com uniformes pretos e vistosos. – Melhor assim? – perguntou Oona com uma piscadela.

– Perfeito! – Iris quicou de empolgação.

Enquanto Iris admirava seu retrato, Yu e Siu Fah avançaram para apertar minha mão. Enquanto Yu falava, Oona traduzia.

– Ele quer que eu diga que você fez uma coisa maravilhosa. A sala oculta deve pertencer a todos. Mostra a dificuldade que as pessoas estão dispostas a enfrentar por sua liberdade. – A cabeça de Siu Fah quicou em aquiescência.

Oona disse alguma coisa em hakka e os três riram.

– O que foi isso? – perguntei.

– Eu perguntei se eles tinham tempo para desenhar um halo acima de sua cabeça – respondeu Oona. – E talvez fazer sua boca um pouco maior também.

***

Kiki cobriu uma das mesas de manicure com uma toalha e Verushka e a sra. Fei colocaram três bolos em formato de esquilo.

– Ei! Todo mundo aqui – ordenou Oona. – Tenho algumas coisas a dizer antes de começarmos a mastigar. Primeiro de tudo, gostaria de agradecer a Kaspar, Yu e Siu Fah por nos ajudarem a colocar meu pai na prisão, que é o lugar dele. Vamos sentir falta de vocês todos. E tenho que dizer que foi meio legal ter alguns meninos por perto, para variar.

Betty fungou atrás de mim enquanto Oona traduzia seus sentimentos para Yu e Siu Fah.

– Segundo, gostaria de anunciar a abertura de mais dois salões de manicure Golden Lotus. E apresentar minha nova sócia... Minha estimada avó, a sra. Fei. – A velha ao lado dela ficou radiante. – Parece que um monte de gente está livre, agora que Lester Liu foi trancafiado, e todos precisam de emprego. Então imagino que esteja na hora de expandir o império.

– E vai gravar as conversas de suas clientes nos salões novos também? – perguntou DeeDee.

– Mas é claro que sim! Qual é o problema de um pouco de ação de Hobin Hood? – perguntou Oona. – E por falar nisso, tenho de tratar de mais um negócio. – Ela correu para sua sala e voltou com uma caixa de papelão, que entregou a Versushka. – Soube que o rato do dr.

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Pritchard custou uma fortuna. Talvez isso ajude.

Verushka abriu a caixa e uma lágrima desceu por seu rosto. Ela pegou um punhado de joias. Reconheci vários dos presentes que Oona recebeu do pai.

Verushka plantou um beijo no rosto de Oona.

– Obrigada – disse ela. – Vamos pagar muito em breve.

– Não se incomode... É tudo seu – insistiu Oona. – Compre o que precisar agora e guarde o resto para uma emergência. Você e Kiki parecem ter muitas regularmente. Mas da próxima vez, quem sabe vocês contem para a gente?

– Vamos contar – concordou Verushka. Ela se virou para Kiki e assentiu solenemente. – Está na hora – disse ela.

Kiki avançou para se dirigir ao grupo.

– O dinheiro pode ter vindo numa hora melhor do que você pensa. Verushka e eu tomamos uma decisão. Não podemos continuar nos escondendo. Temos de lidar com Livia de uma vez por todas.

– O que tem em mente? – perguntou Oona, preocupada.

- Eu estarei nos jornais amanhã – anunciou Kiki. – Estou reivindicando o trono da Pocróvia.

* FIM*

Comunidade do Orkut: Digitalizações de Livros

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