Com pés em terra firme - Scientific American

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COM~ PESEMTERRA ! I _.- .- FIRME í i I, l' i . , DURANTE OS QUASE 4 bilhões de anos desde que a vida surgiu na Terra, a evolução produziu várias metamorfoses maravilhosas . Uma das mais espetaculares foi, com certeza, aquela que, a partir dos peixes com nadadeiras, originou as criaturas terrestres portadoras de membros e dedos. Hoje esse grupo, os tetrápodes, reúne desde pássaros e seus ancestrais dinossauros, até lagartos, anfíbios e mamíferos, incluindo a espécie humana. Alguns desses animais modificaram seus membros, ou os eliminaram, mas seu ancestral comum tinha dois membros anteriores e dois posteriores onde antes havia nadadeiras. Essa mudança foi crucial para a conquista da terra fume, mas não foi a única, A terra é um meio radicalmente diferente da água e, para conquistá-Ia, os tetrápodes desenvolveram novas maneiras de respirar, ouvir, lidar com a gravidade. Uma vez concluídas todas as importantes transformações, a terra estava pronta para ser explorada por esses animais. Até cerca de 15 anos atrás, paleontólogos pouco sabiam a respeito da seqüência de eventos que teria ocorrido na transição dos peixes para os tetrápodes. Sabemos que os tetrápodes evoluíram a partir de peixes com nadadeiras robustas, parentes dos celacantos e de peixes pulmonados. Essa relação foi proposta pelo paleontólogo americano Edward D. Cope, no final do século XIX. Mas os detalhes dessa original transição ainda permanecem obscuros. Além disso, estimativas de quando isto teria acontecido variavam muito (entre 350 milhões e 400 milhões de anos atrás) durante o período Devoniano. O problema era que o registro fóssil pertinente era esparso, consistindo essencialmente de um peixe desse tipo, o Eustnenopteron, e um tetrápode devoniano, o Ichthyostega, já em estágio muito avançado para elucidar as raizes dos tetrápodes. . Com poucos vestígios para trabalhar, os cientistas puderam apenas espe- cular sobre a natureza dessa transição. Talvez o mais conhecido dos cenários produzidos por essas conjecturas foi aquele defendido na década de 1950 pelo paleontólogo de vertebrados Alfred Sherwood Romer, da Universidade Harvard. Segundo ele, peixes como o Eusthenopteron. em tempos de seca, usariam os seus apêndices musculares para se arrastar em direção a outro reservatório de água. Com o tempo, de acordo com essa hipótese, os peixes que eram capazes de se movimentar por um trecho maior de terra - e deste modo alcançar fontes de água mais distantes - seriam selecionados para, finalmente, levar à origem de pernas verdadeiras. Em outras palavras, os peixes teriam saído da água antes de seus membros terem evoluído. Desde então, entretanto, muitos fósseis que documentavam a transição vieram à luz. Essas descobertas expandiram quase que exponencialmente a POR JENNIFER A. CLACK Descobertas recentes de fósseis ajudam a entender melhor a evolução dos animais de quatro membros a partir dos peixes EM BUSCA DE AR FRESCO: cerca de 360 milhões de anos atrás o Acanthostega, um tetrápode primitivo, sobe à tona em um pãntano onde é hoje a Groenlãndia. Embora esse animal tivesse quatro pernas, ele não seria capaz de sustentar seu próprio peso fora da água. Desse modo, em vez de seus membros terem evolufdo como uma adaptação à vida na terra, parece que inicialmente funcionaram para ªjudar o animal a erguer a cabeça para fora da água mal oxigenada do pântano, para poder respirar. Somente mais tarde eles descobriram sua utilidade em terra firme 50 SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL

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Répteis - Evolução

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i., DURANTE OS QUASE 4 bilhões de anos desde que avida surgiu na Terra, a evolução produziu várias metamorfoses maravilhosas .Uma das mais espetaculares foi, com certeza, aquela que, a partir dos peixescom nadadeiras, originou as criaturas terrestres portadoras de membros ededos. Hoje esse grupo, os tetrápodes, reúne desde pássaros e seus ancestraisdinossauros, até lagartos, anfíbios e mamíferos, incluindo a espécie humana.Alguns desses animais modificaram seus membros, ou os eliminaram, masseu ancestral comum tinha dois membros anteriores e dois posteriores ondeantes havia nadadeiras.

Essa mudança foi crucial para a conquista da terra fume, mas não foi aúnica, A terra é um meio radicalmente diferente da água e, para conquistá-Ia,os tetrápodes desenvolveram novas maneiras de respirar, ouvir, lidar com agravidade. Uma vez concluídas todas as importantes transformações, a terraestava pronta para ser explorada por esses animais.

Até cerca de 15 anos atrás, paleontólogos pouco sabiam a respeito daseqüência de eventos que teria ocorrido na transição dos peixes para ostetrápodes. Sabemos que os tetrápodes evoluíram a partir de peixes comnadadeiras robustas, parentes dos celacantos e de peixes pulmonados. Essarelação foi proposta pelo paleontólogo americano Edward D. Cope, no finaldo século XIX. Mas os detalhes dessa original transição ainda permanecemobscuros. Além disso, estimativas de quando isto teria acontecido variavammuito (entre 350 milhões e 400 milhões de anos atrás) durante o períodoDevoniano. O problema era que o registro fóssil pertinente era esparso,consistindo essencialmente de um peixe desse tipo, o Eustnenopteron, eum tetrápode devoniano, o Ichthyostega, já em estágio muito avançado paraelucidar as raizes dos tetrápodes. .

Com poucos vestígios para trabalhar, os cientistas puderam apenas espe-cular sobre a natureza dessa transição. Talvez o mais conhecido dos cenáriosproduzidos por essas conjecturas foi aquele defendido na década de 1950pelo paleontólogo de vertebrados Alfred Sherwood Romer, da UniversidadeHarvard. Segundo ele, peixes como o Eusthenopteron. em tempos de seca,usariam os seus apêndices musculares para se arrastar em direção a outroreservatório de água. Com o tempo, de acordo com essa hipótese, os peixesque eram capazes de se movimentar por um trecho maior de terra - e destemodo alcançar fontes de água mais distantes - seriam selecionados para,finalmente, levar à origem de pernas verdadeiras. Em outras palavras, ospeixes teriam saído da água antes de seus membros terem evoluído.

Desde então, entretanto, muitos fósseis que documentavam a transiçãovieram à luz. Essas descobertas expandiram quase que exponencialmente a

POR JENNIFER A. CLACK

Descobertas recentes de fósseisajudam a entender melhor a

evolução dos animais de quatromembros a partir dos peixes

EM BUSCA DE AR FRESCO: cerca de 360milhões de anos atrás oAcanthostega, um

tetrápode primitivo, sobe à tona em umpãntano onde é hoje a Groenlãndia. Embora

esse animal tivesse quatro pernas, elenão seria capaz de sustentar seu própriopeso fora da água. Desse modo, em vezde seus membros terem evolufdo comouma adaptação à vida na terra, parece

que inicialmente funcionaram para ªjudaro animal a erguer a cabeça para fora da

água mal oxigenada do pântano, parapoder respirar. Somente mais tarde eles

descobriram sua utilidade em terra firme

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nossa compreensão deste capítulo tão importante da história da vidana Terra - e alteraram velhas noções sobre o início da evolução dostetrápodes, sua diversidade, biogeografia e paleoecología.

Equilíbrio PrecárioENTRE ASPRIMEIRASDESCOBERTASfósseis a abrir caminho paraa moderna concepção sobre a origem dos tetrápodes estava aquelarelacionada a uma criatura denominada Acanthostega, que viveu hácerca de 360 milhões de anos, onde é hoje a região leste da Groen-lândia, Foi identificado pela primeira vez em 1952 por Erik [arvik,do Museu Sueco de História Natural em Estocolmo, com base emdois tetos cranianos parciais. "Foi só em 1987que meus colegas e eu finalmente descobrimosespécimes que revelaram o esqueleto pós-era-niano do Acanthostega. "

Embora estivesse provado que esse animal,em muitos aspectos, era exatamente o tipo deintermediário anatômico entre peixes e tetrápo-des imaginado pelos especialistas, ele contava uma história diferenteda prognosticada. "Tínhamos em mãos uma criatura que, apesarde ter pernas e patas, estava mal equipada para vida terrestre." Osmembros deAcanthostega não apresentavam tornozelos apropriadospara suportar o peso do animal no solo, assemelhando-se mais aremos para nadar. Embora tivessem pulmões, suas costelas erammuito curtas para prevenir o colapso da cavidade da caixa torácícaquando fora da água. De fato, muitos dos aspectos do Acanthoste-ga eram inegavelmente semelhantes aos dos peixes. Os ossos doantebraço apresentavam proporções semelhantes às da nadadeirapeitoral do Eusthenopteron. A parte traseira do esqueleto tinha umalonga cauda em forma de remo, com longas raias ósseas que bempoderiam ter sido a estrutura de uma nadadeira. A criatura aindapossuía brânquias, além de pulmões.

Muitas das inovações críticas surgiram enquanto essascriaturas ainda eram essencialmente aquáticas. As primeirasmudanças parecem estar relacionadas não à locomoção, mas

a uma dependência crescente da respiração aérea

• o surgimento dos vertebrados adaptados Merra foi um marco naevolução da vida em nosso planéta.

• Pordécadas, um registro fóssil pobre ofuscou os esforços paratraçar os passos que finalmente produziriam esses tetrápodesterrestres apartir deseus ancestrais peixes,

• Os fósseis descobertos nos,últimas t.S ~ospréenéheram muitasdas lacunas nahistóriaevolutiva dostetllápo(les, 'bem.çomorevo-lucionaram muito do que se sabia sobre aevolução desse grupo,sua diversidade, bíogeografia e palenecologia.

• Essas recentes descobertas indicam que os tetrápodes evoluf-ram muitos de seus aspeelos mais carat~efí$tjno$ enquantoainda eram seres aquáticos. Essas desco:b~r.tastambém reve-laram que os membras mais antigos dess&grupo eram maisespecializados e mais dispersos geográfiC1i e ecologicamentedo que se pensava.

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Essa 'semelhança com os peixes sugeriu que os membroslocomotores de Acanthostega não estavam adaptados apenaspara uso na água, mas que se tratava de condição ancestral dostetrápodes. Em outras palavras, esse animal, embora claramenteum quadrúpede, era uma criatura primariamente aquática. Seusancestrais mais imediatos eram em essência peixes que nuncahaviam deixado o meio aquático.

A descoberta forçou os estudiosos a repensar a seqüência naqual as principais mudanças no esqueleto desses animais ocor-rem. Em vez de uma criatura como Eusthenopteron, primeirorastejando no solo e depois adquirindo pernas e patas, como havia

postulado Romer, os novos fósseis indicavam que os tetrápodesevoluíram esses aspectos enquanto ainda eram seres aquáticose somente mais tarde os utilizaram para caminhar. Isso, por suavez, significava que os pesquisadores precisariam reconsiderar ascircunstâncias ecológicas sob as quais os membros loco motoresse desenvolveram, já que oAcanthostega mostrava que demandasterrestres talvez não fossem as forças direcionadoras no início daevolução dos tetrápodes.

O Acanthostega manteve o lugar de honra como o elo quefaltava entre os vertebrados terrestres e os seus ancestrais aquá-ticos. Havia, entretanto, uma característica desse animal quenão lembrava nem tetrápodes nem peixes. Cada um de seusmembros terminava numa pata com oito dedos, em vez dos cincofamiliares. Isso é cur.ioso porque os anatomistas acreditavam que,na transição de peixes para tetrápodes, os cinco dedos teriamderivado diretamente dos ossos da nadadeira do Eusthenopteronou outra criatura semelhante. Os cientistas poderiam ter rejeitadoesse espécime como uma forma aberrante. Mas um misteriosoesqueleto parcial de Tuletpeton, um tetrápode primitivo previa-mente conhecido, encontrado na Rússia, apresentava uma patacom seis dedos. Além disso, espécimes de Ichthyostega, tambémdescobertos pela nossa expedição ao leste da Groenlândia, reve-laram que essa espécie tinha patas com mais de cinco dedos.

Descobertas vindas da biologia do desenvolvimento ajudaram ae1ucidar um pouco esse mistério. Sabemos agora que vários genes,incluindo o Sonic hedgehog e os da série Hox, controlam elementosdo desenvolvimento de nadadeiras e de membros. O mesmo grupode genes ocorre em peixes e em terrâpodes, mas tem função diferenteem cada grupo. O Hoxd 11 e o Hoxd 13, por exemplo, parecemter papel mais pronunciado nos retrápodes, onde seu domínio nosmembros em crescimento é mais amplo e assimétrico em relaçãoàquele das nadadeiras nos peixes. É nessas regiões que os dedos se

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EVOLUÇÃO GRADUAL

~-------------------------------,-------------------------------~----------------------.

A EVOLUÇÃODOStetrápodes terrestres a partir de peixes com nddadeiraslobadas envolveu uma transformação radical no esqueleto. Entre outrasmudanças. as nadadeiras peitorais e péMcas transfolmar&f(H,& emmembros com pés e dedos, os ossos das mandíbulas ficaram mais

EUSTHENOPTERONUm peixe com nadadeiras Iobadas

Focinho curto com muitos ossos

Ossos operculares 1cobrindo as brânquias

e a garganta IA-l-...-'>--'--"

ACANTHOSTEGAUm tetrápode primitivo

Focinho mais longo commenos ossos

fortemente unidos entre si, e a nadadeira caudal desapareceu. Enquantoisso, o focinho se alongou e alguns de seus ossos fundiram-se. Os ossosque cobriam as brãnquias desapareceram, bem Como uma série deoutros que uniam a cabeça aos ombros.

Membro frontal compata de oito dedos

Separação entrecabeça e ombros

'------- ...•Membro traseiro compata de oito dedos

Pélvis maiorconectada à espinha

-------------Crânio desacoplado do ombro eformação de um pescoço

~ Vértebrasinterarticuladas

Sem nadadeiras

~ Costelas longas. 1 Pélvis grande e unidaMembros e curvadas . _ àespinhadorsalanteriores de sustentação Membros postenores de susten~ta~aob~====:::::==ijIIII'"com pata de cinco dedos com pata de cinco d~os

formam. Ainda não podemos dizer como os cinco dedos dos tetrá-podes evoluíram a partir dos oito dedos de Acanthostega. Mas temosuma explicação plausível para o porquê de os cinco dedos terem setomado característica padrão dos tetrápodes: essa configuração teriaauxiliado o desenvolvimento das articulações de tornozelos estáveis obastante para suportar o peso do animal e flexíveis o suficiente parapermitir o jeito de andar que os tetrápodes finalmente inventaram.

O Acanthostega também chamava a atenção para uma regiãopouco avaliada da anatomia dos tetrápodes primitivos: o interiorda mandíbula. Os peixes geralmente têm duas fileiras de dentes aolongo de sua mandíbula, com um grande número de denrículos nafileira mais externa, complementando um par de grandes presas ealguns dentes pequenos na interna. O Acanthostega mostrou queos primeiros tetrápodes possuíam um esquema dentário diferen-te: um pequeno número de grandes dentes na fileira externa edentes menores na fileira interna - mudanças qm: talvei tenhamacompanhado uma alteração na alimentação antes realizada

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exclusivamente na água. por outra conseguida em terra firme ou,então, com a cabeça para fora da superfície.

Essa interpretação possibilitou aos especialistas reconheceroutros tetrápodes em meio a restos de fósseis que há muito tempopermaneciam desconhecidos nas prateleiras dos museus. Uma dasmais surpreendentes descobertas foi a de um gênero denominadoVentastega, originário do Devoniano tardio da Letônia. Na décadade 1990, seguindo a descoberta dosAcanthostega, os pesquisadorescompreenderam que parte de uma mandíbula coletada em 1933pertencia àquele tetrápode. Novas escavações no sítio original deVentastega logo trouxeram à luz mais material de qualidade excep-cional, incluindo um crânio quase completo.

Ao mesmo tempo. vários peixes quase-tetrápodes foram sendodescobertos, ajudando a preencher a lacuna morfológica existenteentre oEusthenopteron e oAcanthostega. Dois desses gêneros jáeramconhecidos dos paleontólogos havia décadas. mas só recentementeforam examinados. Um deles é o Panderichthys. achado nos Bálcãs,

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CAMINHADAPRI.MITIVko (chthyostego é o mais antigo tetrápode conhecido amostrar adaptações para urna locomoção não natatória, embora. seja provávelque se movesse mais como foca do que como típico vertebrado terrestre. Esseanimal também tinha alguns aspectos aquáticos, incluindo longa cauda e membros

com idade entre 375 milhões e 380 milhões de anos, um peixegrande com focinho pontudo e os olhos situados no topo da cabeça.O outro é o Elpistostege, do Canadá, com idade entre 370 milhões e375 milhões de anos, parecido com o Panderichthys em tamanho eforma. Ambos os gêneros são muito mais próximos dos tetrápodesdo que o Eusthenopteron. Foi só no ano passado que uma expediçãoà ilha Ellesmere, no Ártico canadense, liderada pelo paleontólogoNeil Shubin, da Universidade de Chicago, descobriu restos bempreservados de um peixe mais semelhante aos retrápodes do que oPanderichthys ou o Elpistostege. Shubin e sua equipe ainda precisamdescrever e nomear essa espécie de maneira formal, mas tudo indicaque se trata de um animal fantasticamente interessante.

Um Pouco de Ar FrescoGRAÇAS A ESSAS RECENTES DESCOBERTAS e análises, temos emmãos os restos de nove gêneros, documentando cerca de 20 milhõesde anos da evolução inicial dos terrápodes. Agora também podemoster uma idéia mais clara de como o corpo de um vertebrado adaptou-se para a vida na terra. Uma das mais interessantes revelações quesurgiram desse trabalho foi que, como no caso do desenvolvimentodos membros, muitas das inovações críticas surgiram enquanto essascriaturas ainda eram bastante aquáticas. As primeiras mudanças, emprincípio, não foram aquelas relacionadas a necessidades de locomo-ção, mas sim a uma dependência cada vez maior de respirar ar.

Curiosamente, essa troca de ventilação pode ter desencadeado atransformação gradual na forma, tanto da cintura escapular (regiãoanáloga aos ombros) como das nadadeiras peitorais. De fato, osevolucionistas se empenharam muito para explicar o que as criaturas

JENNIFER A. CLACK, especialista em paleontologia de vertebrados com dou-tarado pela Universidade de Cambridge, estuda as origens dos tetrápodeshá 2S anos. Membro da Sociedade Linneana, os interesses não-acadêmicosde Clack incluem canto em coral (particularmente de música sacra antiga),jardinagem e motociclismo.

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posteriores semelhantes a nadadeiras. Além disso, seu ouvido parecia serespecializado para uso dentro da água. Ainda não se sabe como o Ichthybstegadividia o seu tempo entre a vida terrestre e a aquática. É possível que fizesse oninho e depositasse seus ovos em terra e caçasse e se alimentasse na água

transicionais como oAcanthostega faziam com seus protomembros,já que não eram usados em locomoção. A hipótese mais provável éque, quando as nadadeiras direcionadas para trás se transformaramaos poucos em membros orientados para o lado, com grandes áreaspara a inserção de músculos, eles ganharam força. Isto teria ocorridomilhões de anos antes de os membros anteriores se desenvolverema ponto de sustentar o peso do animal em solo firme. Sendo assim,nesse interim, esses membros poderiam permitir ao animal elevar acabeça fora da água e respirar. Os dedos, nesse caso, poderiam terfacilitado essa atividade, auxiliando numa melhor distribuição dopeso acumulado nos membros.

No ano passado, a equipe de Shubin anunciou a descoberta deum úmero (um dos ossos do braço) de 365 milhões de anos quecorroborava essa idéia. O fóssil, descoberto no sítio paleonrológicoRed Hill, na Pensilvânia, parecia estar ligado ao resto do corpo poruma articulação do tipo dobradiça, diferente da junta articulada,presente em nós e em outros vertebrados terrestres. Esse arranjo nãopermitiria que o animal caminhasse com patas, mas possibilitariaao tetrápode flexionar parte do seu corpo para fora da água a fim derespirar. Isso também poderia ter ajudado o animal a ficar parado naágua em posição de emboscada, à espera de uma presa.

A respiração fora da água precisou de algumas mudanças tantono crânio como na mandíbula. No crânio, o focinho alongou-se e onúmero de ossos reduziu-se, ficando mais agrupados. Isto fortaleceuo focinho de maneira a permitir que o animal saísse da água e entrasseem um meio que não lhe dava tanto suporte quanto o líquido. Osossos atrás da cabeça, por sua vez, tomaram-se mais firmementeintegrados. A fusão das partes que formam a mandíbula fortaleceuessa região, facilitando o modo de ventilação dos terrápodes, chama-do de 'bomba bucal". Nesse tipo de respiração, empregado pelosanfíbios modernos e pelos peixes que respiram ar, a cavidade bucalse expande e se contrai como um fole, para tragar o ar e direcioná-loaos pulmões. O bombeamento bucal pode ter demandado mais força

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da mandíbula sob a influência da gravidade do que na água, ondeos organismos ficam mais leves.

Será que o fortalecimento das mandíbulas teria se dado comoadaptação para a alimentação na terra? Possivelmente. Os primeirostetrápodes eram todos carnívoros quando adultos, e é improvávelque se alimentassem mais na terra durante as primeiras fases de suaevolução, já que as únicas presas que poderiam encontrar naquelemeio seriam insetos e outros pequenos artrópodes. Já os filhotesprecisavam se alimentar apenas desse tipo de presa. Seriam eles osindivíduos que inicialmente se aventuraram mais longe do meioaquático em busca de alimento,

Ao mesmo tempo, na parte dorsal do esqueleto, uma série deossos que articulavam a cabeça à cintura escapularnos peixes desapa-receu. Como resultado, os tetrápodes, ao contrário dos peixes, tinhampescoço musculoso que ligava a cabeça ao resto do esqueleto - issopermitia ao animal movimentá-Ia. O sistema branquial também serenovou. Alguns ossos foram perdidos, mas houve um aumento notamanho do espiráculo - a abertura no topo da cabeça que levava aum saco de ar situado na região da garganta, tomando todo o aparatorespiratório mais adaptado para o ar.

Mas por que, depois de milhões de anos de grande êxito res-pirando o oxigênio da água, alguns peixes começaram a buscar ooxigênio do ar? Alguns vestígios surgem da forma geral do crânio,que em todos os tetrápodes primitivos e quase-tetrápodes conhecidosé completamente achatada, quando vista de frente. Essa observa-ção, combinada com dados paleoarnbientais vindos dos depósitosnos quais os fósseis foram descobertos, sugere que essas criaturaseram caçadores especialistas em águas rasas, nas quais apanhavampequenos peixes, e onde possivelmente se acasalavam e botavamovos. Talvez não por coincidência, as plantas vasculares tenham

florescido durante oDevoniano, transformando tanto os hábitatsterrestres como os aquáticos. Pela primeira vez, plantas decíduascomeçaram a soltar suas folhas na água, com a mudança das estações,criando ambientes atrativos para pequenos peixes e artrópodes, masdificultando a natação de animais maiores. Além do mais, pelo fatode as águas mais quentes reterem menos oxigênio do que as maisfrias, esse tipo de ambiente seria mal oxigenado. Nesse caso, asmudanças no esqueleto descritas aqui podem ter dado aos primeirostetrápodes acesso a águas que tubarões e outros peixes maiores nãopodiam freqüentar, colocando-os, literalmente, acima de qualquercompetição. Foi por pura sorte que esses mesmos aspectos mais tardeseriam proveitosos em terra firme.

Essas inovações relacionadas à respiração colocaram os retrá-podes a caminho da conquista de terra firme; entretanto, eles pre-cisariam de novas mudanças no esqueleto. Uma reforma na regiãodo ouvido foi um desses desenvolvimentos. Muitos dos detalhesdessa transformação são ainda desconhecidos, mas está claro quemesmo nos peixes semelhantes a tetrápodes que tinham nadadeiras(o Panderichthys, entre outros) a região do crânio situada atrás dosolhos já havia se encurtado, seguindo um encolhimento da cápsulaque aloja o ouvido interno. Se o Panderichthys habitava os baixios ouos estuários, como as evidências paleoambientais sugerem, a reduçãono ouvido interno pode refletir a crescente influência da gravidadeno sistema vestibular, que coordena o equilíbrio e a orientação. Aomesmo tempo, um aumento no tamanho da câmara de ar situada nagarganta pode ter ajudado a audição. Em alguns peixes modemos,esse saco de ar "captura" as ondas sonoras, impedindo-as de sim-plesmente atravessar o corpo do animal. De lá elas são transmitidaspara o ouvido interno, através dos ossos circundantes. A câmara dear aumentada, evidente nos Panderichthys, seria capaz de interceptar

mais ondas sonoras, melhorando, portanto,a capacidade de audição do animal.

As modificações na região do ouvidoestavam intimamente relacionadas àquelasdo sistema branquial. A saber: um ossoconhecido como hiomandibular - que nospeixes serve para alimentação e movimen-tos de respiração - diminuiu e!11tamanhoe alojou-se em um orifício dentro da caixacraniana, onde se transformou no estribo.Nos tetrápodes modernos, os estribosampliam as ondas sonoras e as transmitemdo tímpano, através de um espaço de arna garganta, para o ouvido interno. Oprimeiro estágio de conversão deve terocorrido rapidamente, dado que já estavaestabelecido no tempo do Acanthostega. Ébastante provável que isso tenha ocorridojunto com a modificação das nadadeirasem membros com dedos. Mas o estribo

j 1 280 milhõesde anos atrás

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NASCIMENTO DAS PATAS: Os tetrápodes Surgiram a partir dos peixes com nadadeiras lobadas, comoSusthenoptéron, mais ou menos entre 380 milhões e 375 milhões de anos atrás, no período OevonianoMédio tardio

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animais viveram ao longo dos trópicos e subtrópicosdos supercontinentes da Laurásia e Gonduana. Os maisantigos tetrápodes teriam habitado ambientes de águadoce e salobra, não apenas o mar

DESCOBERTAS DEVONIANAS .FÓSSEISDETETRÁPODESprimitivos e de peixes quase-tetrápodes vieram à tona em locais tão distantes entresi como o noroeste da China e o leste dos EstadosUnidos. Como resultado, fica claro agora que esses

ÁreasdetemlS

Mares rasosepicontinentais

demoraria milhões de anos para assumir seu papel principal comocomponente de um ouvido tirnpânico adaptado ao ar. Nesse ínterim,ele deve ter funcionado nesses tetrápodes ainda aquáticos comocomponente estrutural do crânio.

No conjunto, essas alterações necessitaram de uma completamudança na maneira de pensarmos os tetrápodes primitivos. Foram-se os tempos das desajeitadas quimeras da imaginação popular, quenão estavam adaptadas nem para viver na água, nem para viver emterra firme. Aquilo que uma vez foi considerado como o trabalho daevolução em andamento - um membro ou um ouvido "inacabados",por exemplo - sabemos agora se tratar de adaptações em si mesmas.Nem sempre prosperavam, mas eram adaptações. A cada estágiodessa transição, os inovadores eram empurrados para novos nichos.Alguns, de fato, eram altamente especializados.

Um Novo ModeloNo GERAL,os TETRAPonF~<;e quase-tetrápodes descobertos atéhoje eram criaturas de tamanho considerável, que alcançavamem tomo de 1 metro de comprimento. Eram predadores de umagrande variedade de invertebrados e peixes - e não eram muitoseletivos quanto ao cardápio. Entretanto, estamos começando adescobrir exceções à regra. Uma delas é o Lioonuma, descobertoem um museu da Letônia por ErikAhlberg, da Universidade deUpsala, na Suécia, em 2000. Esse animal está representado pelosfragmentos de uma mandíbula bizarra: em vez das duas fileiras

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GOIlDUAIIA

de dentes em cada lado, ele apresentava sete fileiras. Ainda nãosabemos exatamente para que servia essa dentição abundante, masé provável que esse animal tivesse uma dieta diferente daquela deseus parentes mais próximos.

Um trabalho refeito sobre o primeiro tetrápode do Devonianodescoberto, o Ichthyostega, está mostrando que essa criatura tambémfugia da regra. A região do ouvido e as partes relacionadas da suacaixa craniana confundiram os pesquisadores por muito tempo, poismostravam construção diferente daquela presente em tetrápodes oupeixes de outros períodos. Mas, com a ajuda de outros fósseis e ouso da tomografia computadorizada, meus colegas e eu começamosa ver algum sentido nessa misteriosa construção. Provavelmente oIchthyostega possuía ouvido altamente especializado, porém, equi-pado para uso dentro da água. Do mesmo modo, a grande caudaem forma de nadadeira e os membros posteriores semelhantes abarbatanas sugerem um estilo de vida aquático.

Contudo outras partes do esqueleto de Ichthyostega indicamcapacidade de se mover sobre a terra. Ele possuía ombros e an-tebraços bem fortes. As costelas da região do tórax eram largas esobrepostas, formando um colete que teria impedido o colapsoda cavidade torácica e dos pulmões quando o animal estivesseem terra firme. Ainda assim, o Ichthyostega provavelmente não selocomovia como um vertebrado terrestre típico. Sua caixa torácicateria restringido a ondulação lateral do tronco que ocorre no movi-mentodos tetrápodes. Em contraste com os peixes, oAcanthostega

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e outros tetrápodes primitivos, o Ichthyostega apresentava vértebraspontudas que mudavam de direção ao longo da coluna, sugerindoque os músculos que elas sustentavam eram especializados paradiferentes funções e se moviam de modo singular. Essa últimaevidência sugere que, em vez de se dobrar no plano horizontal,como faz o corpo de um peixe, o Ichthyostega se dobraria mais noplano vertical. Quando em terra, o Ichthyostega talvez se movessecomo uma foca, erguendo primeiro a sua parte traseira, entãoavançando ambos os membros anteriores ao mesmo tempo, efinalmente arrastando o resto do corpo para a frente.

Se nossa hipótese estiver correta, o Ichthyostega é o mais antigovertebrado conhecido a mostrar algumas adaptações para locomo-ção não-aquática. É impossível dizer com certeza o que ele faziaem terra firme. Pode ser que se alimentasse de peixes encalhadosna praia e se reproduzisse na água; nesse caso, usaria o ouvidoespecializado para escutar o sinal de um parceiro em potencial.Esse cenário implica que o Ichthyostega seriacapaz de emitir sons, bem como de escurá-los.Em outra hipótese, ele poderia se alimentar naágua e ouvir sinais de sua presa ali, enquantousaria os membros anteriores para cavar osninhos na terra, onde depositaria ovos. Enfim,porém, o seu plano corpóreo foi abandonado,visto que nenhum fóssil descoberto com menos de 360 milhõesde anos pôde ser atribuído com segurança à mesma linhagem doIchthyostega. Sem dúvida, houve muitos desses projetos superadosposteriormente, durante a evolução inicial dos tetrápodes. Novaspesquisas são necessárias para confirmar essas idéias, mas dadosrecentes mostram que os tetrápodes do Devoniano eram maisdiversos do que suspeitávamos.

correta sobre os ambientes nos quais os tetrápodes evoluíram. Masas descobertas de criaturas como o Ventastega e o Tulerpeton emdepósitos de salinidade variada colocam essa noção em questiona-mento. O sítio de Red Hill, na Pensilvânia, tem fornecido um ricocontexto para estudar a evolução dos tetrápodes, trazendo à tonamuitas espécies de peixes, invertebrados e plantas.

Ainda há muito a aprender sobre as mudanças na anatomiaque acompanharam a ascensão dos tetrápodes. Embora já existauma hipótese razoável para explicar por que a cintura escapular e osmembros anteriores evoluíram daquela maneira, ainda não temosuma explicação adequada para a origem dos membros posterioresrobustos - marca registrada de um tetrápode - já que nenhum fóssilparece conter indícios sobre isto. Apenas os espécimes de Ichthyoste-ga eAcanthostega preservam essa parte da anatomia, e em ambos osanimais os membros posteriores já estão desenvolvidos demais pararevelar como evoluíram. É quase certo que um único cenário não

Embora exista uma boa teoria sobre a evolução dos membrosanteriores da maneira como ocorreu, ainda falta uma que

explique a origem dos membros posteriores, já que nenhumfóssil descoberto até agora traz pistas sobre isso

Pernas Mundo AforaOS FÓSSEISDESCOBERTOSNASÚLTIMASduas décadas não apenaspermitiram aos cientistas traçar muitas das mudanças que ocorreramno esqueleto dos tetrápodes, mas também suscitaram novas hipótesessobre quando e onde tais criaturas evoluíram. Temos agora quasecerteza de que os rerrápodes surgiram entre 375 milhões e 380 mi-lhões de anos atrás, no Devoniano Médio tardio, em um intervalode tempo mais restrito do que aquele postulado antes. Os tetrápodesDevonianos estavam espalhados pelo globo, desde regiões que estãoagora na China e na Austrália, onde criaturas conhecidas como Sinos-lega e Metaxygnathus, respectivamente, vieram à tona, até o leste dosEstados Unidos, onde o úmero de Red Hill e uma criatura chamadade Hynerpeton foram descobertos (ver quadro ao lado).

Dentro dessas localidades, os tetrápodes do Devoniano habita-vam uma vasta gama de ambientes. Depósitos no leste da Groen-lândia, os primeiros a abrigar tais criaturas, indícam que a área já foiuma grande bacia fluvial, dominada por enchentes periódicas quese alternavam com períodos de seca. O rio era sem dúvida de águadoce na sua origem, o que nos ajudou a fundamentar uma idéia mais

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poderia responder por todos os estágios de transição desse grupo.Precisamos também detalhar a seqüência na qual as mudanças noesqueleto ocorreram - quando os membros posteriores evoluíram,em relação aos anteriores e ao ouvido, por exemplo.

A descoberta e a descrição de mais fósseis resolverão algunsdesses mistérios, bem como novas idéias da biologia evolutiva dodesenvolvimento. Estudos dos mecanismos de controle genéticoque guiam a formação da região da brânquia nos peixes e da áreado pescoço em mamíferos estão ajudando. Eles fornecem indíciossobre quais processos caracterizariam tanto tetrápodes como peixese quais seriam exclusivos dos tetrápodes. Por exemplo, sabemos queos tetrápodes perderam todos os ossos que protegiam as brânquiasnos peixes, mas os genes que guiavam a sua formação ainda estãopresentes nos camundongos, onde funcionam de forma diferente.

Outras questões parecem mais difíceis de responder. Seria ótimosaber qual contexto arnbiental de fato originou os primeiros tetrápo-des. Também gostaríamos de compreender as pressões evolutivasque atuaram durante cada fase da transição. Na falta de um registrofóssil perfeito, pode ser que nunca formemos o quebra-cabeça com-pleto da evolução dos tetrápodes, mas vamos preencher muitas daslacunas na história de como os peixes conquistaram a terra. ó'f3

PARA CONHECER MAISGainingground: The origin and evolution oftetrapods. Jennifer A. Clack.lndianaUniversity Press, 2002.

The emergence of earlytetrapods. Jennifer A. Clack, em Paleogeography, Paleo-climatology, Paleoecology (no prelo].

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