Comitê Popular da Copa Porto Alegre – Janeiro de 2013...

8
Comitê Popular da Copa Porto Alegre – Janeiro de 2013 – Nº 1 – Ano 1 Av. TRONCO: Casas de passagem à vista? Além de bônus moradia e aluguel social, casas de passagem também podem ser usadas como alternava pela prefeitura para realocar as 1.500 famílias com a duplicação da Avenida Tronco Moradores do Cristal fazem campanha para permanecer na mesma região ENTREVISTA “Parcipação popular agoniza em Porto Alegre” com o ciensta políco Sergio Baierle Página 3 ARTIGO Página 2 ZONAS DE EXCLUSÃO Os megaeventos e a privazação das cidades: tudo a ver Página 6 ARTICULAÇÃO NACIONAL Comunidades angidas pela Copa do Mundo se organizam em todo o país Página 7 Um espetáculo para quem tem dinheiro Juca Kfouri: "A Copa do Mundo não vai ser pro povo curtir" Página 8 da Relatora da ONU Raquel Rolnik Megaeventos esporvos e cidades: impactos, violações e legados Páginas 4 e 5 Foto: Leandro Anton

Transcript of Comitê Popular da Copa Porto Alegre – Janeiro de 2013...

Comitê Popular da Copa Porto Alegre – Janeiro de 2013 – Nº 1 – Ano 1

Av. TRONCO: Casas de passagem à vista?Além de bônus moradia e aluguel social, casas de passagem também podem ser usadas como alternativa pela prefeitura para realocar as 1.500 famílias com a duplicação da Avenida Tronco

Moradores do Cristal fazem campanha para permanecer na mesma região

ENTREVISTA

“Participação popular agoniza em Porto Alegre”

com o cientista político Sergio Baierle

Página 3

ARTIGO

Página 2

ZONAS DE EXCLUSÃO Os megaeventos e a privatização das cidades: tudo a ver

Página 6

ARTICULAÇÃO NACIONALComunidades atingidas pela Copa do Mundo se organizam em todo o país

Página 7

Um espetáculo para quem tem dinheiroJuca Kfouri: "A Copa do Mundo não vai ser pro povo curtir"

Página 8

da Relatora da ONU Raquel Rolnik

Megaeventos esportivos e cidades: impactos, violações e legados

Páginas 4 e 5

Foto

: Lea

ndro

Ant

on

NOSSA HORAPÁGINA 2

“A Copa do Mundo é nos-sa!”. Foi com euforia que governos e cidadãos brasilei-ros comemoraram a escolha do Brasil como país sede da Copa de 2014. Ao todo, são doze as cidades que sediarão os jogos da Copa, dentre as quais se inclui o Rio de Janei-ro, que pouco depois também foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos de 2016. Realizar esses megaeventos, no entanto, tem significados que vão muito além do es-porte: ao longo da história, não só os Jogos Olímpicos e a Copa, mas também ou-tros eventos esportivos internacionais foram se trans-formando em instrumentos de promoção econômica, impac-tando as cidades-sede, criando situações, no mínimo, con-troversas do ponto de vista do planejamento democrático, transparente e participativo.

Em 2010, apresentei um relatório sobre esse assun-to ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento mostra co-mo, após a Segunda Guerra Mundial e, mais nitidamen-te, com o fim da Guerra Fria, a lógica comercial e corpo-rativa passou a dominar a preparação das cidades para esses megaeventos, substi-tuindo o confronto simbólico dos grandes blocos político--econômicos que os marcava desde os anos 1930. Mais recentemente, no bojo de políticas de empreende-dorismo que marcaram as políticas urbanas na era da globalização neoliberal, os governos começaram a ver nos megaeventos esportivos internacionais uma oportu-

nidade de colocar em prática processos de transformação urbana, como uma estratégia de atração de investimentos e reposicionamento das cida-des através de sua renovação. Barcelona inaugura mais cla-ramente essa estratégia ao realizar os Jogos Olímpicos de 1992, implementando o duplo projeto de modernizar sua infraestrutura e promover uma nova imagem pública, pós-industrial, da cidade.

Do ponto de vista político e simbólico, os megaeventos, es-pecialmente a Copa do Mundo, prestam-se a essa espécie de modernização seletiva porque, em sua promoção, aliam-se um forte sentimento naciona-lista – queremos mostrar para o mundo do que somos capa-zes – e, ao mesmo tempo, um elemento importantíssimo da nossa cultura que é o futebol, este esporte que faz parte da alma dos brasileiros. Juntos, o nacionalismo e a paixão pelo esporte formam o contexto per-feito para a constituição de um verdadeiro estado de exceção, uma espécie de “vale tudo” no processo de preparação e realização deste megaevento, em que regras, normas, leis e direitos não precisam ser cum-pridos.

Outra violação grave, que já vem acontecendo em várias cidades-sede, que pu-de visitar pessoalmente, é a remoção de milhares de pessoas de seus locais de mo-radia para dar lugar a obras de ampliação de estádios e aeroportos e, principalmen-te, de mobilidade urbana, necessárias à ligação entre estádios, aeroportos e zonas hoteleiras. Em quase todos os casos, os traçados das obras são feitos exatamente sobre comunidades que não têm títulos de propriedade indivi-duais registrados em cartório, sob a justificativa de que retirar essas comunidades desses locais é possibilitar uma melhor condição de mo-radia para elas. Isso tem sido feito sem que essas comu-nidades sejam informadas sobre os projetos e os pro-

cessos de remoção, e muito menos tenham a chance de participar das definições dos traçados e de propor opções de reassentamento ou mesmo alternativas que minimizem a necessidade de remoções, nu-ma clara violação do direito à moradia, tal como estabeleci-do nos marcos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.

Enfim, o Brasil ainda tem a chance de fazer uma Copa do Mundo não só de forma eficiente para que as pessoas consigam chegar aos jogos, para que tudo funcione per-feitamente bem, mas também de forma que tudo isso seja feito no âmbito do mais ab-soluto respeito aos direitos humanos, à participação, ao direito à informação. Avalio que é muito importante que os governos federal, estadu-ais e municipais envolvidos na preparação para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos instaurem urgentemente um processo de diálogo trans-parente com a sociedade brasileira, especialmente com os setores da população dire-tamente afetados pelas obras. Esse é um ponto fundamental se quisermos que esses mega-eventos promovam o respeito aos direitos humanos e dei-xem um legado positivo para o Brasil.

* Raquel Rolnik é Relatora Internacional do Direito à Mo-

radia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU.

ARTIGOMegaeventos esportivos e cidades: impactos, violações e legados

Raquel Rolnik *

CHARGE

Juntos, o nacionalismo e a paixão pelo esporte formam o contexto perfeito para a constituição de um verdadeiro estado de exceção

“ “

Em quase todos os casos, os traçados das obras são feitos exatamente sobre comunidades que não têm títulos de propriedade individuais registrados em cartório, sob a justificativa de que retirar essas comunidades desses locais é possibilitar uma melhor condição de moradia para elas.

O Jornal Nossa Hora é uma publicação do Comitê Popular da Copa Porto Alegre

Jornalista responsável: Katia Marko (DRT7969). Redação: Katia Marko, Raquel Casiraghi e Daniel Cassol. Pro-jeto gráfico e diagramação: Marcelo Souza (Engenho Comunicação e Arte Ltda). Tiragem: 10 mil exemplares. Impressão: VT propaganda.

EXPEDIENTE

http://comitepopularcopapoa2014.blogspot.com.br

Comitê Popular da Co-pa de Porto Alegre lança o primeiro número do

Jornal Nossa Hora com o ob-jetivo de debater os impactos sociais, ambientais e econô-micos que a Copa do Mundo 2014 pode provocar na nossa Capital e nas demais cidades sedes. Sem medo de fazer eco-ar a nossa voz, queremos dar maior visibilidade aos muitos problemas relacionados à for-ma como está sendo preparado este megaevento no Brasil.

Em diversas cidades bra-sileiras já estão aparecendo problemas como obras apro-vadas sem licitação, ameaças de despejos de milhares de famílias, transferência de grande quantia de recur-sos públicos para pequenos grupos privados, interven-ções realizadas na cidade que ferem as legislações de

planejamento urbano e prote-ção ambiental, extrema falta de transparência e nenhuma participação do conjunto da população nas decisões que estão sendo tomadas em no-me dos jogos.

Nesta edição, tratamos da remoção de pelo menos 4,5 mil famílias em Porto Ale-gre, da farsa da participação popular que se tornou o Or-çamento Participativo, da privatização dos espaços pú-blicos, da mercantilização do esporte e da organização nacional dos atingidos pelas obras da Copa.

Esperamos com este jornal esclarecer a população gaú-cha sobre os vários impactos sofridos com a realização des-te megaevento e pressionar os órgãos públicos para que realmente exista um legado positivo para nosso país.

Nossa Hora, Nossa VozEditorial

O

PÁGINA 3NOSSA HORA

Nossa Hora - A população de Porto Alegre realmente opina e decide os rumos da cidade?Sérgio Baierle - Nos anos 1990 houve um importante ensaio de participação em Porto Alegre. Através dele pare-cia ser possível construir uma outra cidade, de baixo para cima, através da participação direta da população. Mas a mágica que sustentava esta esfera pública plebéia logo revelou seus limites no mundo das relações reais de poder. Qualquer pessoa que preste atenção no funcionamento do OP percebe que o momento onde há mais investimento institucional é o das assembleias. Não é o da discus-são do orçamento municipal, nem o do processamento governamental das demandas e muito menos o da presta-ção de contas. Toda a mágica tem três momentos: o anúncio, a ilusão e a volta ao real. Uma assembléia do OP é o anúncio de que todas as queixas, problemas e propostas podem ser feitas. O pre-feito vai estar lá pra ouvir (em tese). Bom, depois que começaram a trans-mitir o circo ao vivo, há 2 anos, até este pequeno prazer foi retirado, já que é preciso inscrever-se uma se-mana antes no Centro Administrativo Regional para dar tempo ao governo de se preparar para enfrentar eventu-ais desafetos. Mas não importa, é o momento de glória do prefeito. De-pois vem a ilusão, que é a montagem do Plano de Investimentos de acordo com as prioridades dos participantes. Atualmente os próprios representan-tes do governo os chamam de Planos de Ilusões, porque reconhecem que

Entrevista

Participação popular agoniza em Porto Alegre

não é neles que os governos recentes se baseiam para investir na cidade. Assim sendo, por exemplo, o fato de que habitação social seja a primeira prioridade há mais de uma década, não significa em hipótese alguma que a prefeitura vai investir naque-las demandas de habitação social tiradas nas regiões do OP. Nada dis-so, as prioridades de investimento da prefeitura são decididas em outro lu-gar, no balcão de negócios montado na Secretaria de Planejamento e de Obras em parceria com a Câmara de Vereadores. Isso não significa que as pessoas participaram a troco de nada. No final, como já disse, vem a vol-ta ao real, vem o que já foi chamado como miséria participativa e que tenho chamado de exclusão par-ticipativa. Ou seja, a cidade que a população quer não é possível, segun-do o governo, mas sempre rola uma compensação, sobretudo na forma de contratos com entidades comunitárias para a prestação de serviços sociais e educacionais terceirizados. E o real é isso, o OP sustenta uma oligarquia comunitária que opera programas de

Porto Alegre é conhecida mundialmente por ser a cidade da participação popular, dos Fóruns Sociais. Mas na avaliação do cientista político Sérgio Baierle, ativista da ONG Cidade, atualmente trata-se de uma participação cívico-folclórica, um ritual identitário sem maiores consequências. Assim como ocorre o acampamento gaudério no Parque da Harmonia ou o carnaval no Sambódromo. Segundo Baierle, na década passada, a prefeitura vendeu o OP e o FSM como grifes sociais altermundistas, as quais foram imediatamente compradas no mercado financeiro do capital social: Banco Mundial, União Européia, agências de cooperação, universidades, redes de governos, ONGs, etc. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi a desidratação e pasteurização progressivas de quaisquer sementes de transformação social que estas iniciativas pudessem ter tido na sua origem.Confira abaixo a entrevista

gestão da pobreza. É ruim ter progra-mas sociais? Claro que não, mas é péssimo não poder mudar a realida-de que produz a pobreza, é péssimo ter de calar a boca pra não perder um contrato que reproduz a precarização do trabalho social e mal dá pra segu-rar as despesas, quanto mais investir em qualidade dos espaços disponíveis e do atendimento. Mas o pior é quando os programas ditos sociais promovem a exclusão, como é o caso das remoções consen-tidas a forceps em função das obras viárias para a Copa Fifa 2014. Aí, depois de tudo decidido entre go-vernos e empreiteiras, a população é convidada a participar de sua pró-pria exclusão. Obras em andamento, paredes rachando, os últimos a acei-tarem as condições inaceitáveis serão reassentados ainda mais longe. É a exclusão participativa.

Nossa Hora - É possível ter a po-pulação participando e tomando decisões para construir a cidade que queremos?Baierle - Uma das ilusões do OP

reside na idéia de que basta abrir es-paço para os cidadãos participarem e uma democracia radical vai emergir. A situação atual do OP mostra exata-mente o contrário. Os mesmos vícios da democracia parlamentar se repro-duzem ao nível micro. O OP nunca conseguiu ir de fato além da intera-ção Estado-Sociedade, ou seja, nunca conseguiu alterar por suas próprias forças a gestão burocrática do Estado. Lembremos que foi preciso uma gam-biarra administrativa para passar por cima da Secretaria do Planejamen-to lá no início do OP. Naquela época ainda se podia falar em movimen-tos sociais, hoje tá difícil. É ilusório achar que os cidadãos têm poder por serem cidadãos, porque seus direitos estão inscritos em lei. E aí, quem vai fazer cumprir? O Joaquim Barbosa? A concentração de poder nas mãos das grandes corporações e as recorrentes crises econômicas recentes estabele-cem limites cada vez mais duros para iniciativas reformistas. A obsolecên-cia precoce do ideário da Reforma Urbana é uma prova disso. Com a de-mocracia direta do capital nas grandes cidades, não é o poder público local que vai garantir o direito à moradia, por exemplo. A democracia partici-pativa hoje está encurralada nesses esquemas de gestão da pobreza. Pra sair disso temos que começar a sair do próprio capitalismo. A verdadeira dimensão cívica da democracia, para além do pluralismo e do plebeísmo, implica questionar o Estado e o mun-do do trabalho no qual opera. Chega de truques de mágica e governos es-forçados!

Mas o pior é quando os programas ditos sociais promovem a exclusão, como é o caso das remoções consentidas a forceps em função das obras viárias para a Copa Fifa 2014. Aí, depois de tudo decidido entre governos e empreiteiras, a população é convidada a participar de sua própria exclusão.

“ “ Foto: Katia M

arko

NOSSA HORAPÁGINA 4

Duplicação da Av. Tronco: Casas de Passagem a vista e violações de direitos de vento em popaFaltando pouco mais de um ano para Porto Alegre sediar jogos da Copa do Mundo de 2014, uma das principais obras para o evento,

a duplicação da Avenida Tronco, mal saiu do papel. As 1,5 mil famílias que serão removidas por conta da obra convivem com incertezas e insegurança.

aiu por terra o discurso da Pre-feitura de Porto Alegre e do prefeito reeleito José Fortuna-

ti, de que iriam respeitar as famílias atingidas pela duplicação da Avenida Tronco (no bairro Cristal, zona sul da Capital). Com a reeleição garantida já nas pesquisas, antes mesmo do final do pleito, a prefeitura abriu licitação para contratar empresas a fim de construir casas de passagem na região, ago-ra chamadas casas de emergência ou “Eco Casas Ecológicas”. Foram licita-das 290 unidades, sem local definido para a construção, o que disponibiliza certa quantidade de dinheiro por um ano para ser aplicado na construção quando for necessária.

De acordo com o edital de lici-tação, as casas de passagem serão melhoradas, diferente das casas de compensando de 9m², nas quais a pre-feitura colocou moradores da Vila Dique. Agora terão 12,4 m² e custarão R$ 6.856,40 provenientes do Fundo Municipal de Habitação de Interes-se Social (FMHIS). Serão construídas em placas de madeira mineralizada e contarão com banheiro. Neste edital foram contratadas 290 casas, mas o to-tal previsto pelo “Programa Porto da

Inclusão” é de 1 mil. Nestas casas es-perarão algumas famílias que deixarão as imediações da Tronco para a cons-trução da Avenida.

No entanto, tal decisão contradiz totalmente o que asseguram as le-gislações que se referem ao direito à moradia e também ao que o prefeito vi-nha afirmando até então: desde o início do processo o discurso era de que não existiriam casas de emergência na re-gião. Tais casas não são nenhum pouco parecidas às casas, aos lares que as pessoas têm direito. Além disso, não há prazo definido para as pessoas ficarem nessa situação – ou seja, serão realoca-das sem saberem quando receberão as casas definitivas, o que configura uma grave violação de direitos.

Aluguel social é “tapa buracos”Mas o “menu” de programas de re-

moção da Prefeitura vai além. Com uma lógica parecida à das casas de emergência, o Aluguel Social, uma po-lítica pensada para atender as vítimas de desastres naturais, agora é aplicada às vítimas de um desastre de gestão. Está sendo utilizado para tapar os bura-cos de um processo não democrático e da falta de planejamento na realocação das famílias. A PMPA estima conceder aproximadamente 1000 aluguéis sociais

para retirar as pessoas provisoriamente de suas casas para esperarem as casas novas. Isto se as casas novas forem para eles, pois há relatos de negociação das unidades habitacionais contratadas com lideranças comunitárias de outras regi-ões em troca de apoio político.

Em Porto Alegre, o governo mu-nicipal preferiu o Aluguel Social- ou licitar a construção de casas de emer-gência!- para abrigar as pessoas até que as moradias sejam construídas, ao melhor estilo autoritário-clientelista. Mas isto não é tudo.

Outro artifício usado pela prefeitura para “limpar” o local das obras foi o Bônus Moradia, valor de R$ 52 mil concedido a famílias que escolhem se mudar do Cris-tal. É apelidado de "bônus despejo" pelos moradores e lideranças comunitárias, pois na prática as famílias encontram casas es-

crituradas por esse valor apenas em outras vilas distantes, em bairros periféricos ou em outras cidades da região metropolita-na- como Viamão- e, principalmente, no litoral gaúcho.

“Bônus despejo” aumenta déficit habitacional

Além da dificuldade de encontrar casas que atendam os quesitos exigi-dos pela prefeitura, visto o baixo valor, as famílias se vêem obrigadas a unir mais de um núcleo familiar, juntar os valores de mais de um bônus moradia para adquirir uma única moradia digna em regiões mais próximas. Cabe lem-brar que famílias dividindo a mesma casa é caracterizado como Coabitação e interfere diretamente no cálculo do déficit habitacional. Isto significa que a Prefeitura Municipal de Porto Alegre

m 2 de maio passado, na ple­ná ria regional do Orçamento Par ti cipativo no bairro Cristal, o

prefeito José Fortunati assumiu publi­camente a Campanha Chave por Cha­ve. Pressionado duramente por mora­dores e lideranças comunitárias, ele disse que se comprometia em garantir a moradia definitiva a todas as famílias que quisessem permanecer na região.

No entanto, a Campanha Chave por Chave, organizada e realizada pelas fa­

mílias do Cristal e pelo Comitê Popular da Copa de Porto Alegre, é mais ampla. Nela, os moradores afirmam que somen­te deixarão suas casas antigas quando as novas, na mesma região, já estiverem prontas – o que não está acontecendo. Para muitas famílias é muito importan­te permanecer na região, no mesmo núcleo familiar e, principalmente garan­tir um local onde possam manter, por exemplo, seu emprego. A fonte de ren­da é essencial para a sobrevivência das

famílias de baixa renda.As famílias que ainda resistem deci­

diram em assembleia que não aceitarão o Aluguel Social e Casas de emergência, além de entenderem que o valor do Bônus Moradia deve aumentar para no mínimo 80 mil reais. Até o momento, a prefeitura municipal abriu licitação para a construção de 1.415 aparta­mentos populares pelo programa fe­deral Minha Casa, Minha Vida, para o qual deu um subsídio de 7 CUBs por

UH (aproximadamente R$ 5.500,00) para, com isso, atender a demanda das construtoras que não haviam visto, até então, grandes vantagens econômicas na execução dos empreendimentos. Foram escolhidas empresas para cada trecho da obra, mas os projetos sequer foram iniciados e não houve nenhum processo de envolvimento das famílias nos projetos ou no planejamento de suas próprias vidas, comandadas pela obra, desde então.

O prefeito já tinha assumido Campanha Chave por ChaveMoradora pressiona prefeito a assumir a campanha Chave por Chave.

C

E

Foto: Leandro Anton

Foto: Leandro Anton

Raquel Casiraghi *

PÁGINA 5NOSSA HORA

Duplicação da Av. Tronco: Casas de Passagem a vista e violações de direitos de vento em popaFaltando pouco mais de um ano para Porto Alegre sediar jogos da Copa do Mundo de 2014, uma das principais obras para o evento,

a duplicação da Avenida Tronco, mal saiu do papel. As 1,5 mil famílias que serão removidas por conta da obra convivem com incertezas e insegurança.

ara efetivar as negociações, a prefeitura montou na região um escritório de negociações.

Em posse dos cadastros realizados no inicio de 2012 a prefeitura convoca in-dividualmente os moradores a irem ao escritório realizar suas negociações. É nesse escritório que correm as maiores violações de direitos. Sem direito a uma assessoria técnica que faça o contrapon-to das informações, sem alternativas às afirmações feitas pelos técnicos da pre-feitura as famílias sentem-se coagidas

está aumentando o seu próprio déficit e o de outros municípios.

"Dessa maneira, a prefeitura resolve o problema da obra e das construto-ras de luxo, já que 'limpa' a região, que atualmente é alvo da especulação imo-biliária, deixando áreas que depois certamente serão utilizadas para empre-endimentos de alta classe. No entanto, o poder municipal gera outros vários problemas, já que as pessoas são joga-das para bairros que sofrem com falta de investimento e de infraestrutura em transporte coletivo, saúde e educação, aumentando e agravando problemas so-ciais da cidade", afirma Claudia Favaro, arquiteta e integrante do Comitê Popu-lar da Copa Porto Alegre.

* Com a contribuição de Claudia Favaro, Felipe Drago e Leandro Anton.

Um Escritório Violador de Direitosa aceitar uma das modalidades, sendo muitas vezes ameaçadas de perderem completamente seus direitos se não rea lizarem a negociação em um prazo determinado e mais ainda se participa-rem de qualquer tipo de organização de resistência.

Alias essa é uma política da pre-feitura para toda a cidade. Trata-se de trabalhar isoladamente os territó-rios, as pessoas e os interesses. Não há um planejamento para a cidade de Porto Alegre, trata-se de realizar costu-

ras urbanas onde trata-se isoladamente os problemas sem analisar o conjunto das medidas e das necessidades dos cidadãos, essa estratégia enfraquece a organização comunitária e não dá saída às famílias a não ser aceitar o que pela prefeitura lhes é imposto.

A duplicação da Avenida Tron­co, que corta a Vila Cruzeiro e o bairro Cristal, zona sul da Capital, já constava como necessária nas diretrizes do plano diretor mu­nicipal da década de 50. Quase 60 anos se passaram e foi pre­ciso uma Copa do Mundo para que a obra saísse do papel. Os porto alegrenses já ficaram seis décadas sem a duplicação, por que não poderiam esperar mais uns 3 anos para iniciar com cau­tela a obra, dando assim tempo para que a prefeitura fizesse a construção das novas unidades habitacionais para então fazer a remoção das famílias já para as novas casas, com tranqüilidade, respeitando a vontade e os direi­tos das pessoas?Mais ainda, há mais de dois anos que a Matriz de Responsabilida­des firmada pelo prefeito de Por­to Alegre foi divulgada, ou seja, há muito tempo que se sabe que esta obra seria trazida a tona para a Copa do Mundo de 2014, ao invés de a primeira medida ser a construção da Avenida, por­que desde então a Prefeitura não tratou de organizar a construção de novas moradias para as famí­lias que ela já sabia que teriam que ser removidas?A Prefeitura Municipal usa como desculpa os recursos disponibili­zados para obras de infraestru­tura, como esta, devido à Copa do Mundo pelo governo federal. E declara aos quatro ventos que a pressão tem sido feita pelo governo Dilma que cobra para que a obra fique pronta e ame­aça retirar os recursos caso isso não aconteça. Foi o que disse, na mesma assembléia do OP, o pre­feito, declarando que o acelera­mento da obra e a conseqüente violação de direitos era respon­sabilidade do Governo Federal. A nossa luta é que os recursos federais devem ser empregados para um desenvolvimento que não fere os cidadãos. E será mes­mo necessário um avenida pron­ta para que os jogos aconteçam em Porto Alegre? E tudo isso às custas de que? Afinal esse desen­volvimento é pra quem?

Desenvolvimento pra quem?

A intenção foi clara, desde sempreD

P

Foto: Leandro Anton

Foto: Fernando Campos

sem sequer se pronunciar. Mas os mora-dores não pararam ai, foram eles às ruas identificar áreas ociosas na região para serem desapropriadas, e muitas delas foram e são estas hoje que dão chão à li-citação dos projetos para as moradias de 1400 famílias. Mas as famílias não es-queceram a área do Jockey, e colocaram na Câmara de Vereadores um projeto de lei para gravar a área como Área Es-pecial de Interesse Social (AEIS III), mas o projeto não teve a oportunidade de ir a plenário tendo sido derrubado pela Comissão de Constituição e Jus-tiça composta pelos vereadores: Luiz Braz-PSDB, Elói Guimarães-PTB, Bernardino Vendrusculo-PSD, Marcio Binz Eli-PDT, Sebastião Mello-PMDB, Waldir Canal-PRB e Mauro Pinheiro--PT com quem contávamos. Todos eles, obviamente não tinham interesse no projeto. Bastava somente um voto dos membros da comissão a favor do pro-jeto para que ele fosse a plenário para ser apreciado pelos demais vereadores da Câmara.

esde o início do processo, a prefeitura não contava com a organização dos moradores na

região e sua resistência. No final de 2011 a primeira medida adotada pela prefeitura foi gravar áreas de interesse social na cidade, todas em zonas peri-féricas e nessa mesma lei, alterou uma outra que regulamentava o PMCMV em Porto Alegre e retirou o direito de 80% das famílias de permanecerem na mesma região caso a necessidade de remoções. Esta atitude colocou desde o princípio como a prefeitura pensava em resolver o problema da remoção, obviamente colocar essas famílias nos bairros mais distantes da cidade onde estão sendo construídos os empreen-dimentos do PMCMV de 0-3 salários na cidade de Porto Alegre.

Sempre alegando não existirem área vazias na região para reassentamento das familias, a prefeitura viu o gover-no Yeda entregar ao Jocquey Clube uma área publica de cerca de 16 hectares para construção de edifícios de alto padrão,

NOSSA HORAPÁGINA 6

Os megaeventos e a privatização das cidades: tudo a ver

Porto Alegre, como as grandes capitais, vem sofrendo com a privatização dos espaços públicos. Como vai ser na Copa da Fifa?

o começo de outubro de 2012, o Largo Glê-nio Peres, tradicional

espaço público do centro de Porto Alegre, foi palco de uma batalha campal. Uma manifestação do movimento “Defesa Pública da Alegria” contra a privatização dos es-paços públicos na capital gaúcha terminou em con-fronto em virtude da ação truculenta da Polícia Militar, que deslocou grande efetivo para proteger o Tatu Bola in-flável da Coca-Cola, mascote da Copa do Mundo de 2014.

A Ouvidoria da Briga-da Militar afirmaria depois que houve excesso por par-te dos policiais, que teriam causado a violência. Já a delegacia de Polícia Civil responsável pelo caso de-clararia que o mascote da Copa não havia sido depre-dado, mas simplesmente esvaziado após ter a energia elétrica cortada.

O caso demonstrou que Porto Alegre, assim como todas as capitais brasilei-ras, vem deixando de ser de seus cidadãos, mas das empresas que pagam para

exibirem suas marcas nos espaços que antes eram públicos. O movimento Defesa Pública da Alegria, formado fundamentalmen-te por jovens, moradores da capital, é um dos críti-cos dessa política levada a cabo em Porto Alegre, que sucateia espaços tradicio-nais da cidade para que a iniciativa privada possa se apropriar.

“A ideia da primeira De-fesa Pública da Alegria era manifestar publicamente o descontentamento cidadão com essas políticas e exaltar a cidade como um espaço de convívio, democrático, ou seja, saudável e alegre”, diz o movimento, explicando as razões do protesto no Largo Glênio Peres. “A privatiza-ção de espaços se manifesta no sucateamento intencio-nal de espaços e serviços da Prefeitura, como é o ca-so do Araújo Vianna, que permaneceu anos fechado, após sua interdição no go-verno Fogaça, para depois ser entregue à iniciativa privada, sem nenhum tipo de consulta à população”, completa a nota enviada ao Nossa Hora.

N

Tendo a Copa do Mundo como pretexto, este proces­so deve se agravar com a proximidade da competição. Durante a Copa, as cidades­­sede terão as chamadas “zonas de exclusão”, locais determinados pela Fifa onde haverá restrição a circulação de pessoas (no entorno dos estádios, por exemplo, para proteger as empresas patro­cinadoras do evento). Ape­sar da promessa de geração

de empregos em função do evento, esta política deve excluir vendedores ambu­lantes que tentarem, sem autorização da Fifa, vender suas mercadorias nas regi­ões dos estádios. Os vizinhos também terão dificuldades para circular: a tendência é que precisem de uma auto­rização da Fifa para saírem e voltarem para suas casas. No caso do Beira­Rio, é de se pensar o que deve ocorrer

com a circulação no Hospital Mãe de Deus, que fica a me­nos de dois quilômetros do estádio Beira­Rio.

As zonas de exclusão fo­ram motivo de polêmica na Copa do Mundo da África do Sul. Uma entidade chamada StreetNet, que trabalha com vendedores ambulantes no país, estimou em 100 mil pessoas o número de preju­dicados com as restrições de venda no entorno dos está­

Cidades-sedes terão zonas de exclusão

Daniel Cassol

dios do Mundial. Outro gra­ve efeito colateral da Copa

na África foi a remoção da população pobre.

Na Bahia, as vendedoras de acarajé serão removidas dos estádios

PÁGINA 7NOSSA HORA

m vez de ser motivo de celebra-ção do esporte mais popular do país, a preparação para a Co-

pa do Mundo 2014 tem sido utilizada para aumentar, acelerar e intensificar violações de direitos humanos. O que temos visto são remoções forçadas de milhares de pessoas de suas casas sem alternativa de moradia digna para dar lugar a obras viárias que nem sequer foram discutidas com a população.

Como forma de reação a esse mo-delo imposto, há cerca de três anos, foram criados nas 12 cidades-sede os Comitês Populares da Copa. Uma iniciativa dos impactados, os comitês representam um espaço de mobiliza-ção popular para conseguir que nossas cidades e suas populações, como um todo, possam usufruir dos investi-mentos realizados. Os comitês se organizam nacionalmente por meio da Articulação Nacional dos Comitês Po-pulares da Copa (Ancop).

Megaeventos

Comitês Populares da Copa resistem à violação de direitosDesde que o Brasil foi anunciado sede da Copa, diversos impactos têm atingido a população.

Formada por movimentos popu-lares, representantes de comunidades impactadas e Organizações Não Go-vernamentais (ONGs), a Ancop tem por objetivo denunciar violações de direitos, o endividamento público e o legado negativo das obras para a so-ciedade. Está presente nas cidades de Fortaleza, Recife, Natal, Salvador, Manaus, Cuiabá, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Belo Horizonte, Bra-sília e Porto Alegre – todas sedes dos jogos mundiais de futebol.

Dossiê dá visibilidade para a luta

A partir das ações da Articulação Nacional e dos comitês locais, a viola-ção dos direitos ganharam destaque e já foi possível reverter alguns processos de remoção, como em Curitiba e For-taleza. A divulgação de duas edições do Dossiê da Articulação Nacional dos Co-mitês Populares da Copa - Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil também chamou a atenção para

a questão. O documento reúne casos de impactos e violações de direitos huma-nos nas obras e transformações urbanas empreendidas para a Copa do Mundo e as Olimpíadas no Brasil.

O dossiê foi produzido coletivamen-te pelos Comitês Populares da Copa e consolida uma articulação feita em nível nacional para contestar a forma como a Copa está sendo implementada, fato que nunca tinha acontecido em pa-íses que receberam o evento.

Integrante do Comitê Popular da Copa de Curitiba, o advogado Thiago Hoshino participou da elaboração do dossiê. Segundo ele, as obras da Co-pa estão violando os direitos humanos e representam um “retrocesso na ga-rantia dos direitos coletivos e sociais fundamentais”.

Lei Geral é uma aberraçãoThiago Hoshino também comenta

a Lei Geral da Copa, outra luta travada pela Ancop. Ele enfatiza que a dita lei é uma verdadeira aberração jurídica.

Em Carta Aberta enviada aos se-nadores e divulgada nas redes sociais, a Articulação Nacional manifestou-se contrária às propostas de mudança de nossa legislação contidas na chamada Lei Geral da Copa. Segundo o docu-mento, a lei é o carro-chefe de uma plataforma de ameaças a direitos e ga-rantias arduamente conquistados pelo povo brasileiro, tais como os direitos

do consumidor, o direito ao trabalho e o direito de ir e vir. Também ofende as liberdades de imprensa, de informa-ção e de expressão e fere o patrimônio público e cultural do país. Como am-plamente denunciado, o projeto chega a prever a criação de novos crimes, apenas para garantir monopólio de mercados à FIFA e seus parceiros co-merciais.

“A nosso ver, toda a concepção da Lei Geral é em si mesma um grande equívoco, tanto do ponto de vista polí-tico como jurídico. Em primeiro lugar, ela é ilegítima, porque, baseada mera-mente em contratos estabelecidos entre o Brasil e uma entidade privada, tem pouco ou nada a ver com o atendimento do interesse público. O Caderno de Ga-rantias e Responsabilidades, que tem servido como sua principal justificati-va, foi assinado em 2007 sem qualquer respaldo, discussão ou conhecimen-to da população. Apenas recentemente esses documentos vieram à público, demonstrando o grau de submissão do Estado brasileiro às exigências da FI-FA”, analisa o texto.

té agora não é evidente que o legado da Copa e das Olimpíadas contribua minimamente para a inclusão social e ampliação de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Ao contrário,

a falta de diálogo e transparência dos investimentos aponta para a repetição do que ocorreu no período dos Jogos Panamericanos de 2007. Na época, assistimos ao desperdício de recursos públicos (de acordo com o TCU, mais de R$ 3,4 bilhões foram gastos de forma indevida, mas ninguém foi punido) em obras superfaturadas que se transformaram em elefantes brancos e, tão ou mais grave, o abandono de todas as “promessas” que geraram na sociedade expectativas de algum “legado social”.

Se forem contabilizados os recursos investidos para a construção de equipamentos para Copa e Olimpíadas, o país poderia diminuir o déficit habitacional, ampliar o acesso aos serviços urbanos básicos, promover melhorias socioambientais, programas de trabalho e renda, investir na saúde pública e na educação. Além disso, poderia construir uma políti-ca esportiva que promovesse o esporte amador, além do esporte de alto rendimento e não beneficiar quem faz do esporte fonte de acumulação de poder e de riquezas.

Portanto, é urgente continuar a mobilizar uma ampla rede de organi-zações sociais e movimentos populares, sindicatos, órgãos de defesa de direitos e controle do orçamento público, com protagonismo das comu-nidades direta e indiretamente afetadas, para monitorar as intervenções públicas e privadas e articular ações integradas em defesa de um legado positivo para o país.

Qual será o legado da Copa?

E

A

Katia Marko

NOSSA HORAPÁGINA 8

NOSSA HORA - Com ingressos cada vez mais caros, o futebol no Brasil hoje é um espetá-culo caro, o qual a população mais pobre não pode mais acompanhar. Por que o fute-bol é tão caro para o torcedor brasileiro? É possível rever-ter este processo, trilhando um exemplo parecido ao da Alemanha, onde os estádios mantêm setores populares com preços mais acessíveis? JUCA KFOURI ­ Eu diria que se trata de uma tendência mundial, que começou na Inglaterra como maneira de combater os hooligans. Ao lado de medidas corretas, preventivas, educativas e repressivas, houve elitiza­ção nos estádios, como se a violência fosse exclusiva das classes menos abastadas. So­mada à tendência de trans­formar os estádios em es­túdios de televisão, há essa receita de expulsar excluídos do futebol. Pelo que estamos vendo nas novas arenas no Brasil, o caminho aqui revela que vai ser por aí. A Copa do Mundo não é um evento para um povo de um país curtir. A massa vai curtir a Copa como curtiria em qualquer outro

Um espetáculo para quem tem dinheiroNo embalo da Copa, futebol brasileiro trata torcedor como consumidor e afasta o povo dos estádios

Nas rodadas finais do Brasileirão 2012, os ri-vais Internacional e Grêmio lan çaram mão da mesma es-tratégia para reforçar o apoio da torcida. Em meio à elei-ção para presidente do clube, o Grêmio fez promoção na qual um ingresso valia por dois, e ainda liberou a entrada de mulheres no estádio Olím-pico. A grande procura lotou o estádio e chegou a deixar gente de fora. Já o Interna-cional, com metade de seu estádio disponível, também baixou os preços para chamar seu torcedor e recuperar o fa-tor local no Beira-Rio.

Quando o ingresso é ba-rato, a torcida comparece.

Mas o futebol brasileiro vai caminhando justamente no sentido contrário.

Paixão da grande maioria dos brasileiros, o futebol vem se tornando um divertimento exclusivo para quem tem di-nheiro. E bastante dinheiro. O preço dos ingressos aumenta acima da inflação nos últimos anos, principalmente depois

que o Brasil foi escolhido co-mo sede da Copa do Mundo de 2014. Reportagem da Agên-cia Estado publicada em junho de 2012 mostrou que, desde 2007, quando o Brasil foi es-colhido sede da Copa, o valor dos ingressos aumentou 127%.

A razão para o encareci-mento dos ingressos tem a ver com uma tentativa de elitizar

lugar do mundo, pela televi­são, com exceção de algumas cidades onde os jogos sejam tão desinteressantes que a Fifa abra os portões, como fez na Copa da África, para não ter vazios nos estádios.

NOSSA HORA - O senhor tem sido bastante crítico em relação à conduta dos diri-gentes do futebol brasileiro, em especial Ricardo Teixeira, envolvido em escândalos de corrupção no âmbito da Fifa. Mudou alguma coisa desde a renúncia de Ricardo Teixeira e a posse de José Maria Marin?JUCA KFOURI - Trocou seis por meia dúzia, com mais simpatia. O Marin é mais político, muito mais cara de pau, aceita com mais natu­ralidade a crítica. O Ricardo Teixeira não aceitava críticas, era muito mais cioso de ter uma imagem de seriedade. O Marin manda recados, diz que eu ainda vou gostar dele e que não irá me processar. Essa é a mudança. Em rela­ção à ética, à gestão do di­nheiro e a questões como a mudança no calendário do futebol brasileiro, é seis por meia dúzia.

NOSSA HORA - Podemos dizer que existe corrupção na organização da Copa do Mundo no Brasil?JUCA KFOURI - Onde há empreiteiras e agências de publicidade do porte que te­mos, não há dúvida nenhu­ma de que tem financiamen­to de campanhas, uma série de coisas. E não esqueçamos que o escândalo inicial que foi a promessa do capital privado: esta é uma Copa do capital público. Existem dis­farces e sofismas, falam que incentivo fiscal não é dinhei­ro publico, que isenção não é dinheiro público. São manei­ras falaciosas de você disfar­çar aquilo que está na cara. A discussão é intelectualmente desonesta porque querem di­zer que o estádio de Itaquera será um pólo de progresso. Daí seria investimento pú­blico, e não gasto. O Soccer City foi fator de progresso no Soweto, em Johannesburgo? Não foi. O Engenhão é fator de desenvolvimento no Rio de Janeiro? Não é. Porque o Itaquerão será? O que se sabe é que está sendo objeto de especulação imobiliária e de expulsão de quem morava

nas redondezas, com um si­lêncio cúmplice da mídia.

NOSSA HORA - Havia a pro-messa de que a Copa seria fei-ta apenas com recursos priva-dos, mas hoje o governo não só põe recursos públicos nas obras, como pode cedê-las depois à iniciativa privada, como é o caso do Maracanã.JUCA KFOURI - O governo in­veste mais de 800 milhões de reais e a empresa que ganhar a concessão tem obrigatorie­dade de reembolso de 18% deste valor. Assim eu também quero ser capitalista. Assim é fácil ser o Eike Batista. Por ou­tro lado, o que era dito como legado da Copa para as cida­des – aeroportos, vias de aces­so, etc – está cada vez mais longe. Os problemas serão re­solvidos com paliativos, como decretar feriado por causa do trânsito. O que me preocupa é que não vamos ter legados para cidade, vamos ter elefan­tes brancos. Estamos fazendo, de certa maneira, num regime democrático, o que se fez na ditadura militar, em matéria de construção de estádios. Até hoje os estádios dos anos 70 não tiveram capacidade plena.

NOSSA HORA - Quais os de-safios da sociedade civil da-qui pra frente?JUCA KFOURI - Continuar fazendo o que poucos têm feito. Mostrar estes escân­dalos, dizer que mentiram para nós o tempo todo, que cada vez mais dinheiro pú­blico está sendo utilizado. Com os atrasos, há cada vez mais obras sem licitação, em regime de urgência. E mais: você encontra gente que diz que onde há pro­gresso há pessoas que pre­cisam ser postas para fora. A experiência que ainda vigora na Cidade do Cabo, a cidade de lata, foi uma das coisas mais impressio­nantes que já vi na minha vida. Dez mil pessoas mo­rando em contêineres de zinco. Para quê? Para fazer o mais lindo estádio que já vi na minha vida, que é o estádio da Cidade do Cabo. Que está sendo objeto de estudos para ser implodido, porque a prefeitura não dá conta de manter. O ministro Aldo Rebelo diz que os está­dios serão modernos, mul­tiuso. A Madonna vai cantar em Cuiabá?

os estádios, como se isso aju-dasse a combater a violência, uma tendência que começou na Europa. “É uma tendên-cia mundial, que começou na Inglaterra como maneira de combater os hooligans. Ao la-do de medidas corretas, houve elitização nos estádios, como se a violência fosse exclusiva das classes menos abastadas”,

Daniel Cassol

ENTREVISTA

Juca Kfouri: "A Copa não vai ser para o povo curtir"Em entrevista ao Nossa Hora, o jornalista Juca Kfouri, colunista da Folha de S. Paulo e apresentador da ESPN, mostra que a Copa do Mundo no Brasil está sendo financiada com recursos públicos, que beneficiarão a iniciativa privada. Aponta os problemas ocorridos na África do Sul e comenta o processo de elitização do futebol brasileiro.

afirma o jornalista Juca Kfou-ri (leia a entrevista abaixo,). Paralelo a isso, no futebol ne-gócio o torcedor passou a ser tratado como consumidor – e assim, quem quiser ir ao está-dio, comprar uma camisa do time do coração ou mesmo acompanhar o campeonato pela TV, tem que desembolsar um bom dinheiro por mês.

Enquanto os endinheirados ocuparão os camarotes dos novos estádios, ao povo restará a alegria dos campos de várzea.

Foto: Eduardo SeidlFoto: DivulgaçãoFoto: Divulgação