Como a Arte Contemporânea Deixou de Ser Contemporânea - PÚBLICO

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    OPINIÃO

    LEONEL MOURA 24/03/2016 - 00:30

    Defendo que aquilo que genericamente é apresentado como “arte

    contemporânea” já não representa o tempo contemporâneo, é uma arte do

    passado.

     A maioria dos historiadores considera “arte contemporânea” a que é realizadaa partir do pós-II Guerra até hoje ou, para alguns, a que emerge na década de

    60 até ao tempo presente. São definições meramente temporais que explicam

    pouco sobre os conteúdos e o contexto cultural. Esta dificuldade não deve

    contudo surpreender. A explosão criativa, operada nas décadas de 60 e 70,

    declarou o fim das disciplinas artísticas e operou uma sistemática ampliação

    do campo da arte que da pintura e escultura passa a incluir praticamente

    tudo, canibalizando outras formas de expressão, como o teatro na

     performance, a fotografia e o cinema na apropriação das imagens, a vidasocial numa arte de protesto, o próprio corpo do artista, e até os seus dejetos

    com Manzoni e a sua famosa lata com “merda de artista”, ou a ideia na arte

    conceptual, cujo radicalismo levou à exposição do ar condicionado do grupo

     Art & Language, onde simplesmente se ligou o ar condicionado de uma galeria

    de arte vazia. Isto só para dar alguns exemplos.

    Esta explosão eliminou a possibilidade de se recorrer às distinções estilísticas

    habituais. Como definir uma arte que resulta de um tudo é possível? Onde

    não existem parâmetros preestabelecidos, nem um campo delimitado deação? Daí que alguns autores falem sobretudo do próprio processo de

    desconstrução do conceito de arte. Ou seja, uma “arte contemporânea” que

    extravasa as velhas noções de pintura, escultura ou desenho para se envolver

    com ideias, atitudes, provocações. Essa arte, das décadas de 60 e 70, é

    assumidamente subversiva, iconoclasta, política de muitas maneiras.

    Insere-se numa época contestatária, de que o Maio de 68 é para nós europeus

    a grande referência e nos Estados Unidos pode associar-se às lutas pelos

    direitos cívicos, raciais ou ao feminismo.

    Todavia a partir dos anos 80, com o regresso do conservadorismo político e

    social, reproduzido no plano cultural no pós-modernismo e na ideia de fim de

    história, negação da evolução, irrelevância do sentido e descrença no próprio

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    destino da humanidade, a arte perde capacidade crítica e lentamente deixa de

    ser uma prática de artistas e torna-se num complexo sistema de mercado.

    O mercado passa a regular a qualidade e relevância das obras da arte através

    de uma série de agentes, funcionários públicos, galeristas, diretores de

    centros de arte e museus. Os colecionadores tornam-se na voz dominante

    enquanto os artistas se remetem a um papel secundário caindo num extremo

    individualismo. Os críticos de arte desaparecem para dar lugar a promotores erelações públicas dos interesses dos colecionadores. O debate sobre arte

    resume-se agora a cotações.

    Este processo é aliás similar ao que sucedeu na música, no cinema ou na

    moda e em geral na chamada cultura popular ou de massas.

     A apropriação pelo mercado da “arte contemporânea” tem resultado numa

    evidente manipulação do gosto que sobrevaloriza o fácil, o kitsch, enfim, o

    anódino. Numa lógica de repetição, consolidação de obras e artistasdeterminada exclusivamente pelo valor mercantil, profusão de derivados

    apresentados, tanta vez, como novidades. Aliás, a técnica do derivado, ou seja,

    a manipulação, esperta ou gratuita, do já feito noutra época com outra

    relevância, tornou-se na grande fonte de “inspiração” de muitos artistas.

     Veja-se como o método duchampiano do ready-made, em que o artista altera

    o contexto de um objeto pré-fabricado, se tornou num modelo dominante da

    produção artística da “arte contemporânea”.

    Compreende-se. O mercado não quer verdadeira inovação mas aquilo que

    possa valorizar as obras em carteira. Um colecionador que tenha adquirido

    um conjunto de obras quer sobretudo garantir e se possível aumentar o seu

    preço. Daí que os museus e centros de arte, transformados em verdadeiras

    agências de promoção dos investidores, façam circular as mesmas exposições

    e as mesmas obras. Um estudo recente nos Estados Unidos mostra como os

    grandes museus preenchem o grosso da sua programação, nalguns casos até

    75%, com artistas das cinco maiores galerias americanas.

    Esta realidade, conhecida de todos, tem gerado um efeito perverso. É cada vez

    mais diminuta a renovação geracional. Enquanto as décadas de 60 e 70

    produziram dezenas de novos artistas altamente criativos e disruptivos, como

    agora se diz, atualmente são muito poucos os que conseguem furar o bloqueio

    imposto pelo mercado. Praticamente não existem novos artistas e aqueles que

    se apelidam de novos ou emergentes são, na sua maioria, meros copistas dos

    consagrados. Por isso a “arte contemporânea” é hoje um verdadeiro mercado

    de memorabilia que promove o já visto e o já feito, só integrandopontualmente aquilo que o pode legitimar.

     A arte contemporânea que foi determinante nos anos 60 e 70, época em que

    as obras mais relevantes foram realizadas, entrou em decadência a partir dos

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    anos 80, transformando-se numa mera commodity sem capacidade crítica

    nem, diga-se, criativa. A arte banalizou-se, adaptou-se ao gosto do

    novo-riquismo, esqueceu a sua própria origem e história, alinhou com os

    interesses de curto e médio prazo de quem investe em quantidade mais do

    que em qualidade.

    Neste processo, fechada numa lógica interna autorreferencial, de

    autopromoção e reprodução de derivados a “arte contemporânea” foi tambémperdendo contacto com o mundo real e com a evolução própria da sociedade

    do seu tempo. Particularmente notável quando assistimos nas últimas

    décadas a uma ímpar revolução científica e tecnológica que afetou não só os

    modos de vida como a maneira como se concebem hoje os mais variados

    projetos criativos. As chamadas novas tecnologias, que a maioria dos

    utilizadores imagina erradamente serem meras ferramentas, têm vindo a

    acumular uma inteligência e criatividade próprias, tornando-se verdadeiros

    parceiros dos humanos e não já simples máquinas por eles comandadas. Isto

    por si só bastaria para despertar a curiosidade dos artistas.

    E na realidade despertou nalguns. A partir da década de 70 começam a surgir

    obras, baseadas no computador, em algoritmos e em geral no novo reino do

    digital. São obras pioneiras que abrem um inteiro novo campo de realização

    da arte, a que precisamente tenho chamado “um novo tipo de arte” e que não

    circulam, nem integram o meio da “arte contemporânea”.

     A ciência recente e as novas tecnologias delas nascidas mudaramradicalmente a forma como vemos o mundo e os seus mecanismos. Da

     biologia ao digital, da física às teorias da complexidade, da revolução

     biotecnológica à robótica, do ADN à consciência, o campo do saber não tem

    parado de se aprofundar e expandir. A sua influência tem-se manifestado em

    praticamente todas as áreas do conhecimento, incluindo nas humanidades, e

    inevitavelmente também na arte. A arte de hoje, a arte realmente

    contemporânea realiza-se numa intensa interação com a ciência e as novas

    tecnologias. Não implica que os artistas se devam transformar em cientistas. A arte é uma forma não-objetiva, estocástica, de conhecimento e como tal

    deve manter-se. Mas isso não significa que o princípio do não-saber, da

    ignorância e da superficialidade devam prevalecer tal como sucede na maioria

    da produção da chamada “arte contemporânea”. Não é necessariamente “boa

    arte” aquela que não se entende. Ou aquela que não tem qualquer

    fundamento ou propósito. O experimentalismo é um bom princípio do modo

    de produção artística. Mas nem todo o experimentalismo, por si só, gera algo

    de relevante.

     A arte realmente emergente e contemporânea tem uma base científica e por

    isso se fala tanto de arte e ciência, enquanto reencontro das “duas culturas” na

    linha do texto seminal de C. P. Snow. É uma arte que se apropria do

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    conhecimento científico para gerar novas formas de criatividade e produção

    de obras autónomas da ciência que esteve na sua origem.

     Ao contrário da “arte contemporânea”, que assenta nos efeitos de mercado, no

    sem sentido e, em grande medida, num negativismo regressivo, a nova arte é

    essencialmente construtivista, positiva e visionária. É animada pelo desejo de

    construir um mundo novo por muito que isso possa parecer estranho a

    algumas pessoas.

    Em conclusão. Defendo que aquilo que genericamente é apresentado como

    “arte contemporânea” já não representa o tempo contemporâneo, é uma arte

    do passado, salvo raras e muito pontuais exceções que só confirmam a

    máxima de que um relógio parado está certo duas vezes ao dia.

    Defendo igualmente que a nova arte deve criar os seus próprios meios de

    divulgação e circulação evitando integrar o circuito da “arte contemporânea”

    pelo que isso tem e teria de ilusório e contraditório. A relação com a ciênciaparece-me, por exemplo, bem mais interessante. A nova arte do século XXI

    tem os pés assentes no presente, mas está apontada para o futuro. Como,

    aliás, sempre sucedeu com toda a arte que fez a diferença.

     Artista plástico

    25/03/2016 12:17

    "A explosão criativa, operada nas décadas de 60 e 70, declarou o fim dasdisciplinas artísticas e operou uma sistemática ampliação do campo da arteque da pintura e escultura passa a incluir praticamente tudo..." - Eu diria quecomeçou muito antes, pelo menos desde o Marcel Duchamp.

    24/03/2016 09:26

    " A arte realmente contemporânea tem uma base cientifica...". Faz-me lembraros textos de Clement Greenberg que ditava a sua opinião como se se fosseprofeta da arte do presente e do futuro. Mas o Greenberg tinha bom gosto etinha opinião sobre os artistas. Aqui temos uma mera desqualificaçãogeneralizada de toda a arte que é produzida hoje, com base em factos deveracidade muito duvidosa. Por exemplo, "enquanto que as décadas de 60 e

    70 produziram dezenas de novos artistas ... actualmente são muito poucos osque conseguem furar o bloqueio do mercado". A base de dados artfacts.netreporta a existência de 149.000 artistas em todo o mundo com exposiçõesregulares. Recomendaria ao cronista usar dos meios científicos que advogapara se informar melhor.

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    "enquanto que as décadas de 60 e 70 produziram dezenasde novos artistas ... actualmente são muito poucos os queconseguem furar o bloqueio do mercado" - Ele não diz queagora há menos artistas, o que ele profere são duassentenças diferentes: "as décadas de 60 e 70 produziram

    dezenas de novos artistas" e "actualmente são muito poucosos que conseguem furar o bloqueio do mercado".

    25/03/2016 12:14

    "A arte realmente contemporânea tem uma base cientifica..."- Está a defender o seu "tacho".

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