Como Escrevi MAMPR Judith Grossmann

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COMOESCREVIMEUAMIGO MARCELPROUSTROMANCE Judith Grossmann A questão é sempre que nome escolher, pela moção da afetividade que move os mundos da leitura. Então poderiam ser todososnomes.Mesmoestaidéia,alémdeminha,ébemproustiana, pertencendoaindaatantosoutros.Tudodependedosjogosdoacaso. Meu Amigo Marcel Proust Romance (Salvador, Fundação CasadeJorgeAmado,1995)centrouonomedeProustporumlargo espectro de circunstâncias. Quando ele surgiu como um astro no céu da leitura, nele permanecendo fixo, encontrava-me na enésima leiturada Recherche , dentre os meus hábitos de ler uma determinada obra tantas vezes até que nela me converta, podendo então abandoná-la. Raros são os livros que ultrapassam a primeira leitura, alguns chegam a meia, e outros nem a isso. Mas nada disso teria atingido o que agora se chama Meu Amigo Marcel Proust Romance, MAMPR se não houvesse uma certa sintonia, sempre relativa, de idéias e de sentimentos, que servisse aos propósitos de criar uma obra nova e original, de modo que no seu fundo o nome de Proust estivesse dissolvido, possibilitando mesmo que ele pudesse brilhar na superfície ao ladodeumoutro. OndeProustcomeça, MAMPR termina,ondeneledóiamágoa do amor sonegado, aqui há a festa do amor recebido, o acolhimento da infância pelo interlocutor ideal, o ser amado, ou pelo leitor-inter- locutor. Então, afortunadamente, já existe uma recepção por este Fragmentos Florianópolis v.6 n.2 p.223-228 jan./jun. 1997

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Judith Grossmann; Depoimento; Meu Amigo Marcel Proust Romance

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    COMO ESCREVI MEU AMIGOMARCEL PROUST ROMANCE

    Judith Grossmann

    A questo sempre que nome escolher, pela moo daafetividade que move os mundos da leitura. Ento poderiam sertodos os nomes. Mesmo esta idia, alm de minha, bem proustiana,pertencendo ainda a tantos outros. Tudo depende dos jogos do acaso.

    Meu Amigo Marcel Proust Romance (Salvador, FundaoCasa de Jorge Amado, 1995) centrou o nome de Proust por um largoespectro de circunstncias. Quando ele surgiu como um astro nocu da leitura, nele permanecendo fixo, encontrava-me na ensimaleitura da Recherche, dentre os meus hbitos de ler uma determinadaobra tantas vezes at que nela me converta, podendo entoabandon-la. Raros so os livros que ultrapassam a primeira leitura,alguns chegam a meia, e outros nem a isso.

    Mas nada disso teria atingido o que agora se chama MeuAmigo Marcel Proust Romance, MAMPR se no houvesse umacerta sintonia, sempre relativa, de idias e de sentimentos, queservisse aos propsitos de criar uma obra nova e original, de modoque no seu fundo o nome de Proust estivesse dissolvido,possibilitando mesmo que ele pudesse brilhar na superfcie aolado de um outro.

    Onde Proust comea, MAMPR termina, onde nele di a mgoado amor sonegado, aqui h a festa do amor recebido, o acolhimentoda infncia pelo interlocutor ideal, o ser amado, ou pelo leitor-inter-locutor. Ento, afortunadamente, j existe uma recepo por este

    Fragmentos Florianpolis v.6 n.2 p.223-228 jan./jun. 1997

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    leitor, oral, escrita, em reunies, apresentaes, documentos, fitas,trabalhos de critica.

    Quanto tempo leva uma obra para chegar ao destinatrio? 0tempo todo. Mas esta, talvez porque um dos seus temas seja avelocidade, tem sido objeto de uma srie de perguntas imediatas,implicitas nas respostas que a elas darei.

    Proust est presente na obra em questo de n maneiras, sendoas mais localizveis as que enumerarei. Em primeiro lugar, comointerlocutor da protagonista, ao mesmo tempo como amigo e,inevitavelmente, como antagonista. Ironia e afeto so os elementosmais recorrentes desta relao. Em seguida, respectivamente, comolibi para o encontro dos dois enamorados, por serem doisproustianos, como uma figura vista de passagem num Shopping eque evoca o vulto de Proust, e no pice, no captulo final, naconvergncia de temas(a infncia; a quem dar amor; Veneza, entreoutros) e nas tangentes estilisticas.

    Proust tomado como um mestre da ps-modernidade, nosentido de que ele valoriza os fragmentos, que acoplados voconstituir algum tipo de conjunto. So os fragmentos, j na Recher-che remetidos a uma potica ps-moderna, que narram algumenredo que surge depois, no a partir de um enredo prvio eprevisvel, que se poderia ler at saltando pginas. Em MAMPR anarrativa j est aqui em cada trecho como na seo que o prpriolivro, e somente, de certa forma, pode ser lida no fragmento, antesque ele se espraie sempre para diante, podendo ser continuadoindefinidamente.

    Escrito na primeira pessoa, tal procedimento nao faz deMAMPR uma obra autobiogrfica, seno na medida em que todaobra de fico at certo ponto biografia, porm no mais do queisso. Evidentemente a autora e a personagem esto em posiesopostas, por mais prximas que paream estar, e a Fulana queaparece na narrativa no o eu emprico que por trs dela se v,nem o Shopping concreto aquele que na obra representado, nem

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    a Campos dos Goytacazes aquela cidade que est nos mapas,sendo que tais ocorrncias so mesmo analisadas na prpriarepresentao, para eliminar qualquer possvel risco de misturadas duas instncias. A vai tambm uma diferena entre a poticade fim de sculo de MAMPR, trabalhada em contraste, e a da Re-cherche, que no preciso criar uma geografia fictcia sobre ageografia real, que de qualquer forma a crtica ir desmantelar,porque ela j fico e regio mtica desde o seu nascimento, equando se diz Rio de Janeiro, ou simplesmente Rio, j no se tratada cidade que todos conhecem, mas de outra, transposta, recriada,cabalmente originria do texto que pura origem.

    MAMPR foi escrito em trinta dias, mas alm disso ser umailuso, pois h atrs dele trs romances anteriores a serempublicados, o primeiro deles escrito em Bolsa Vitae 1993, as obraspublicadas em livro e em peridicos, as obras em Arquivo, htambm no caso uma mo de escritor que se exercitou desde ainfncia, como ademais narrado no livro. Este fato, haver sidoescrito em trinta dias apenas se torna pertinente porque a velocidade um dos temas da obra, esta mesma percepo do escritor que seadestrou projetada na protagonista. A velocidade tambm feitaem intensidade do sentir, o sentimento veloz, suas escolhas soultra-rpidas, porque a abundncia dos materiais oferecidos pelomeio atual, cinco anos antes do 2000, assoberbado de signos a seremcodificados, no permitira que todos fossem tomados. E a cabearrebatar uma amostra significativa, a mais expressiva possvel,que apenas a percepo e o sentimento podem decidir.

    Quanto circunstncia de MAMPR haver sido escrito numShopping, o incidente no teria importncia alguma se isto nofosse o grande tema do livro e parte de sua natureza. MAMPRinverte o cnone da obra de arte e da obra literria criadas na solidoe busca a convivncia com o seu objeto - a multido urbana quetransita pelo Shopping para salv-la da grande e permanente lei dacidade, o ostracismo, quem sabe a cicuta, sendo tarefa da ps-

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    modernidade revog-la. A percepo aponta, seleciona, produz.Nada imita, cria. Bem longe do cinema, parodicamente em frenteao mesmo, esta a diferena entre as imagens feitas de palavras queabolem a origem na realidade e nascem de si mesmas e as imagenscinematogrficas, nas quais, comparativamente, o resduo mimtico muito mais alto. Para perfeita compreenso, poderamos dizerque o verdadeiro cinema est na literatura, porque a verdadeiracriao de imagens est na literatura, os gestos surpreendidos e oque essencialmente os percorre, a mo no queixo, os sestros daespera, o balano dos cabelos. Em resumo, o que nem ainda seesboou e que j se dissolve, e que nem um clic flagraria, e que seflagrasse, pior ainda, seria congelado rapidamente demais. J asimagens poticas e verbais, ainda que o significado de um gestofosse buscado em quinhentas pginas, algo se aclararia e seapagaria, como na luz de um pirilampo, ele ainda permaneceriadisponvel, sempre outro, sempre misterioso.

    Um outro tema de MAMPR, o enamoramento, libertado dasolido a dois pelo banho de multido que a protagonista toma,ampliando-o sinedoquicamente para o tema de todos os que amame esperam. Desde o inicio ela est acompanhada da multido eMAMPR um pico, o pico deste final de sculo, o que saltou dapoesia de Homero para o romance do sculo XIX e para o romancedo sculo XX, caracterizado e diferenciado do anterior, buscandoentrar novamente pelo territrio da poesia, refinando-se, afinando-se, no sentido essencial e material, pondo-se em sintonia com asnovas sensibilidades presentes no ps-moderno - no apenas ocentro que aqui mesmo, tambm a circunferncia aqui mesmo,sem incompatibilidades, mais Arquimedes, com seu ponto de apoiopara mover a terra, do que Pascal, com sua esfera com o centro emtoda a parte e a circunferncia em parte alguma. Assim o amor deFulana livra-se de qualquer culpa ou vergonha de segregao emergulha deliciosamente no geral e no socius: so proclamas,npcias, um amor pblico e em pblico, imerso no caldo de todos

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    os amores. Suas metforas maiores so a namoradeira de Dal deGala a ser instalada no Shopping e a esttua monumental deBrecheret, no Ibirapuera. Octavio Paz, em seu tratado amoroso, Adupla chama, considera inconcebvel dizer-se de um indivduo queseja apaixonado pela humanidade. Neste caso, toda a poesia seriaimpossivel j que o sentimento potico tem origem nesta empatiaamorosa por todas as particularidades antes que se possa aproximarde uma delas. Como um deus apaixonado por sua criao, que umdia ir falar. Que futuro !

    Alm da percepo, a memria. Da a presena em MAMPRde uma frao da infncia. Porque, mais uma vez, se trata de umaamostra de como tudo comeou. Esta coisa de ser uma memria,por exemplo. Um episdio infantil, neste caso da autora, e noutilizado no livro, em que, reconhecendo a fora do destino, isto ,ser uma memria, quis opor-se ao mesmo, valorizando a amnsia,um mito de infncia colhido em reportagens de revistas de pocasobre amnsicos. E to forte que se chegou a escrever na maturidadeum conto, O desmemoriado de Alm-Querer, publicado noSuplemento Literrio de Minas Gerais, depois republicado em outrojornal, item do meu acervo no AMLB/FCRB no RJ, quando j sehavia cedido aos apelos do destino e da memria.

    o que se , uma memria, resgatando o que flutua annimoe sem o que ficaria perdido - zerado. Porque somente o amor queexiste num olhar pode fazer alguma coisa existir. As crianas sabemdisso e a todo custo procuram captar o nosso olhar. Qualquer coisa,o mnimo, o infinitesimal, o maior, o mximo, tudo cabe neste olharps-moderno que retira do nada o centro aqui, a circunferncia aqui,ponto arquimdico. Viveremos: com Kafka, com Proust, com Joyce,com Woolf, com Mansfield, com Machado, com Rosa, com Lispector,todos estes j ps-modernos, neste preciso sentido.

    No se presuma que seja tarefa fcil escrever sobre sua prpriaobra. Porque j escrevemos tudo aquilo. Mas justamente porque jescrevemos tudo aquilo, possvel que a tarefa se justifique e at se

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    torne imperiosa, at mesmo para recuperar tudo aquilo que aquelesoutros j escreveram. Ento todos acabam,de uma forma ou de outra,escrevendo, em diferentes graus de adequao, e a postura se tornacada vez mais freqente. E como para partir precisamos receberalguma coisa, esta alguma coisa que todos recebem quase semprea pergunta - qual o segredo?

    Acreditamos que se um escritor acaba por aceitar falar de suaobra, seu compromisso primeiro, que com a verdade, em busca daqual ele pratica mesmo os seus atos de fico, se acentua, e assim,na medida do possivel, procurei contornar esta situao de hard-ship e dizer como foi escrito MAMPR. certo que qualquer um queleia o livro o saber ainda melhor, mas fica valendo este prembulocomo um caminho para chegar a ele. Considerando ainda que oprembulo em nada invalida, antes reala, todo o trabalho criticoque esteja sendo feito.

    E j que Borges tem o seu Aleph, ainda que de emprstimo,Proust tem a sua chvena, Mallarm tem o seu acaso, Nietzschetem todos os nomes da histria, sobretudo o de Wagner, Penlopetem a sua trama, possa eu, modestamente, ter o meu Shopping.