COMO ESTRELAS CADENTES - fnac-static.com · 2018. 10. 16. · jovem, de físico atlético e rosto...

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SVEVA CASATI MODIGNANI COMO ESTRELAS CADENTES Tradução de Regina Valente Oo

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  • SVEVA CASATI MODIGNANI

    COMO ESTRELAS CADENTES

    Tradução de Regina Valente

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    ROSA

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    A velhinha na cadeira de rodas apertou mais contra si o xaile castanho de lã até quase desaparecer dentro dele. Tinha um olhar límpido e altivo que contradizia a sua aparente fragilidade.

    Caía uma chuva miudinha e suja que não tinha qualquer intenção de se transformar em neve. A rapariga loira e forte que empurrava a cadeira de rodas estava mais preocupada em abrigar com o guarda--chuva a idosa do que ela própria.

    O inverno tinha chegado de repente, como uma má notícia. As luzes do Natal iminente eram sarrabiscos pálidos no ar poluído.

    A velhinha olhou em volta. Os carros passavam rápidos, levan-tando salpicos de água suja. Por cima da alameda, para lá da sebe, via-se o viaduto da circunvalação do lado oriental, nas proximida-des da linha verde do metropolitano para Cascina Gobba.

    Do lado esquerdo destacavam-se os prédios construídos no meio de arbustos e lixeiras e o imponente edifício da editora Rizzoli.

    A  velhinha pensou com nostalgia nas casas de lavoura e  nos prados da sua infância, uma extensão a perder de vista que enchia o coração e o olhar.

    A rapariga virou à direita, numa rua estreita, e empurrou a ca-deira de rodas em direção à estação dos correios, que ostentava um letreiro amarelo de esperança. A porta abriu-se diante dela e a ra-pariga franziu o nariz ao respirar o  cheiro da velhice, um cheiro adocicado, eivado de intraduzível e ligeira acidez, a que não eram estranhos o fumo do charuto e o cheiro da chuva que se evaporava dos pesados sobretudos de lã gasta.

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    Um ninho de olhares resignados iluminou-se perante aquela aparição, vozes distantes reencontraram timbres e  cadências es-quecidas, fisionomias desconfiadas abriram-se à  afabilidade. Os velhos que estavam à espera de levantar a pensão abriram caminho à  recém-chegada, à  sua triste caranguejola e  à jovem mulher que a empurrava. Houve imediatamente um rumor de cumprimentos e um aflorar de sorrisos.

    – Como está, senhora Rosa? – murmurou por todos uma mu-lher a quem faltava toda a arcada superior de dentes.

    – Como uma pobre estropiada – respondeu serenamente a ve-lhinha, emergindo do xaile fora de moda.

    – Isso é que é chamar as coisas pelos nomes! – concordou um reformado de ar agressivo. – Hoje em dia as pessoas têm medo de chamar as coisas pelos nomes. A nós, velhos, chamam-nos idosos. Velho é uma palavra bonita e nobre, idoso é um rótulo feio.

    Alguém se riu. A  velhinha mostrou os dentes, extraordinaria-mente brancos e uniformes, num sorriso que trouxe de volta à pa-lidez do seu belo rosto alguns reflexos de juventude. A  rapariga, entretanto, tinha-se aproximado do balcão para entregar a caderneta da pensão, ao mesmo tempo que em volta da cadeira de rodas se adensava a conversa.

    – Está com muito bom aspeto, senhora Rosa – cumprimentou-a uma mulher com um ar solícito. – Quantas primaveras vai comple-tar? – insistiu.

    – Oitenta e três – confessou a velhinha, com uma ponta de or-gulho. –  No dia em que nasci, o  rei Umberto morria em Monza pela mão de um anarquista. – Depois, acrescentou com um sorriso: – Foi também o ano da Exposição Universal em Paris.

    – Ouviram todos? – interveio alguém, com admiração.– E podem ter a certeza de que ainda me vão ver aqui dentro du-

    rante bastante tempo – afirmou, com uma voz clara e jovial. – Eu cá não tenciono largar a  presa.  – Falava com um acento milanês puro e rico que muitos dos idosos na fila não conseguiam entender, porque eram oriundos de regiões distantes.

    – Quem é esta senhora Rosa a quem toda a gente faz uma grande festa? – quis saber uma mulher da Puglia.

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    – Olhe, minha amiga – respondeu a vizinha, contraindo os lá-bios e abanando a cabeça com ar de quem sabia muito –, a senhora Rosa é a senhora Rosa. Uma grande senhora!

    – A sério? – duvidou a outra.– A minha querida mãe era criada da família desta senhora –

    explicou. – E levava para casa tudo o que havia de bom. Quando os austríacos bombardearam Milão, em 1916, uma bomba caiu perto da casa da senhora Rosa, sem rebentar.

    – Mas como?  – perguntou a  mulher da Puglia. –  Bombardea-mentos aéreos em 1916?

    – É verdade – exclamou, quase como quem se gaba –, aconteceu em Milão – esclareceu, sublinhando a diferença entre as duas Itá-lias. – A família da senhora Rosa tinha uma propriedade mesmo ali ao fundo – acrescentou em voz baixa, indicando um ponto distante para lá do vidro embaciado, na direção das instalações da Rizzoli. – Chamava-se Favorita. Eram grandes senhores. Eu lembro-me mal deles, mas a minha pobre mãe sabia tudo, até ao descalabro. Depois desapareceram. Toda a  família – disse, ao mesmo tempo que so-prava sobre a palma da mão. – De um dia para o outro.

    – Oh, coitada! – respondeu a outra. – E agora vê ao que ela che-gou. Pior do que nós. Como é que foi? Desgraça?

    – Mistério – intrometeu-se um velho que tinha seguido a conversa.– Contaram-se muitas histórias sobre o  assunto  – continuou

    a  mulher  –, mas a  verdade mesmo nunca se chegou a  saber. Foi mesmo um grande mistério.

    – Até se constou que houve um delito  – revelou o  homem. – Pouco depois do fim da Primeira Guerra, aconteceu de tudo na família da senhora Rosa. Morreram muitos. Outros desaparece-ram. A casa incendiada. As terras vendidas. Depois não se soube mais nada. Só ela, um belo dia, voltou a aparecer numa cadeira de rodas. Vem aqui de dois em dois meses receber a pensão.

    Falavam em voz baixa para que a visada não ouvisse.– Como é que isso vai, Anita? – Rosa dirigiu-se a uma mulher de

    olhar estrábico que lhe dedicou um sorriso dócil.– Está tudo bem, senhora Rosa. Imagine  – disse, com um ar

    cúmplice – depois da última vez que nos vimos, a Câmara deu-me

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    a casa. Agora já não tenho medo que me ponham na rua. A casa é minha até eu morrer.

    – Eu tinha-te dito! Deus não dorme. Tu não querias acreditar em mim – disse Rosa.

    – Mas afinal foi assim mesmo  – concordou, enquanto seguia o olhar de Rosa, que observava um bonito velho de rosto sombrio e  fartas sobrancelhas brancas. Tinha-a cumprimentado rapida-mente, com rudeza, excluindo-se do grupo, para remoer pensa-mentos tristes.

    – Aquele ali é o Passoni. – A mulher estrábica esclareceu Rosa, que agora recordava no velho o menino que tinha sido e com o qual tinha brincado na eira da quinta.

    – Está com algum problema? – quis saber.– É mais do que um problema – explicou Anita. – Está muito

    mal, o pobre diabo. Não vê como está zangado?– Mas o que é que ele tem? – insistiu Rosa.– A  próstata  – contou-lhe, baixando significativamente o  tom

    de voz.– Não é assim tão grave – disse Rosa.– O que é grave são os oitenta e um anos. Ele ouviu o médico

    dizer ao filho: «Na idade dele, o risco da operação é muito elevado». Coitado do Passoni! Ficou assustado. Soube que na Suíça há um sítio onde operam idosos. Um sítio onde, se ainda não tiver chegado o momento, não se morre. Aqui, pelo contrário, com aquela porca-ria de assistência que nós temos…

    – Deus não dorme – sentenciou Rosa.– E que Deus a ouça – concluiu Anita.– Rosa Dugnani – chamou a voz da funcionária no balcão, fa-

    zendo passar por baixo do vidro à prova de bala o impresso e uma es-ferográfica para assinar. A acompanhante de Rosa pegou no impresso e na esferográfica e pousou-os no colo de Rosa. A idosa assinou e re-cebeu um monte de notas novinhas em folha de cinquenta mil, dez mil, mil. Quatrocentas e noventa e seis mil liras ao todo. Com um ar satisfeito, enfiou o dinheiro numa bolsinha de pele preta um pouco gasta, juntamente com a  caderneta da pensão. Distribuiu cumpri-mentos e sorrisos e saiu da estação dos correios. A rapariga loira, com

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    grande destreza, fez um ziguezague pelo passeio todo molhado da chuva para evitar os excrementos dos cães e os escarros dos homens.

    Donas de casa abatidas pelo cansaço deslocavam-se subjugadas pelos pesados sacos do supermercado. Uma longa fila ininterrupta de automóveis e camiões antecipava o bíblico engarrafamento do Natal, pulverizando chumbo e  outros venenos. Rosa escondeu o rosto no xaile de lã.

    A rapariga loira conduziu a cadeira de rodas ao longo de uma rua secundária onde, ao lado do muro que circundava uma oficina de artesanato, estava parado um Rolls-Royce metalizado. Um motorista jovem, de físico atlético e rosto cordial e sorridente, foi ao encontro delas. Rosa assumiu uma posição ereta e atirou para trás de si o xaile que a sua acompanhante se apressou a segurar. O jovem pegou na velhinha ao colo, como se fosse uma boneca e, com uma manobra que já lhe era habitual, pousou-a no banco traseiro do Rolls-Royce.

    A rapariga loira dobrou a cadeira de rodas e, ajudada pelo moto-rista, meteu-a na mala; depois sentou-se ao lado de Rosa.

    – Aquele Passoni – disse Rosa, com o tom de uma pessoa habi-tuada a ser obedecida. – Não te esqueças. Tem de ser operado na Suíça. Hoje mesmo é preciso avisar o professor Battaglia.

    – Com certeza, minha senhora. Deus não dorme  – comentou a rapariga, ao mesmo tempo que sorria e tomava nota.

    Rosa Dugnani tinha tirado a máscara da pensionista para voltar a  ser aquela que era: Rosa Letizia, proprietária da Rosa Letizia & Figli, Indústrias Aeronáuticas, uma referência na finança interna-cional. Com um ruído suave, o Rolls-Royce seguiu em direção do centro.

    – Ajuda-me a  tirar esta porcaria  – ordenou Rosa, ao mesmo tempo que começava a desapertar os botões do casaco preto.

    – É para já – obedeceu Olimpia, que interveio com mãos hábeis.– Viste a felicidade da Anita? – perguntou.– Sim, minha senhora – respondeu a rapariga, que ainda não se

    tinha habituado bem às extravagâncias da patroa.– Finalmente tem um teto. E um refúgio para a velhice – conti-

    nuou, pensando na pobre velha que encontrara na estação dos cor-reios.

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    – Nunca vai saber que, se tem uma casa, o mérito é seu.– Que importância é que isso tem? – disse, com um encolher de

    ombros. – Vai achar que o mundo ainda é bom e não terá de agra-decer a ninguém.

    – Já alguma vez fez contas às pessoas que ajuda? – disse a rapa-riga, ao mesmo tempo que enfiava o xaile e o casaco num saco de papel brilhante, pesado, que dizia «Caravelle».

    O  motorista passou para trás uma capa de raposa prateada, quente como um abraço, macia como uma nuvem. Rosa agradeceu--lhe com um sorriso de que o jovem se apercebeu através do espe-lho retrovisor.

    – As pessoas a quem fiz bem? – disse, à procura de uma ligação com o discurso interrompido. – É uma conta inútil.

    – A  senhora é  boa de mais  – observou a  rapariga, com uma ponta de ironia de que Rosa se apercebeu e perdoou.

    – Não digas disparates – afirmou com autoridade. – Se puses-ses no outro prato da balança aqueles que eu fiz chorar, as contas nunca mais batiam certo.

    – Posso imaginar – comentou Olimpia, para a incentivar a falar.– Não te sobrevalorizes – avisou Rosa.A  rapariga ajudou-a a  colocar em volta dos ombros a  capa de

    raposa prateada e disse:– O facto é que a senhora se diverte a interpretar o papel da pen-

    sionista indigente.– Indigente não. Pensionista sim – ripostou, indignada. – Agora

    sou apenas Rosa Dugnani, Letizia de casada, viúva, doméstica, sem nada de seu, pensionista segundo a  lei. – Os cabelos de prata e o olhar vivo conferiam ao belo rosto da senhora uma luminosidade particular, agora que se tinha libertado da roupa pavorosa.

    – Então é por avidez que volta atrás – provocou-a Olimpia.– Sabes porque é que ainda não te despedi? – perguntou Rosa.– Porque precisa de mim, imagino.– Era capaz de encontrar cem como tu – respondeu, deixando-a

    gelada.– A sério? – murmurou a rapariga, com receio de ter ultrapas-

    sado os limites.

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    A expressão da velha senhora serenou, e isso tranquilizou-a.– A sério, mesmo – repetiu, pronunciando claramente as pala-

    vras. – Continuo a aguentar-te porque gosto da tua franqueza.– Ao menos isso – consolou-se, ao mesmo tempo que lançava

    um olhar inconsciente às pernas de Rosa.Ela apercebeu-se daquele olhar e entendeu o seu significado.– Quanto às minhas pernas – continuou –, se as mandasse co-

    brirem-te de pontapés, elas ainda eram capazes de o fazer. Até por-que – acrescentou com um tom grave – não há nada que eu não esteja em condições de fazer. Se realmente quiser.

    «Tenta voltar a ser jovem», pensou Olimpia; mas guardou para si aquele comentário cruel, não tanto porque podia ferir a senhora, mas porque podia custar-lhe o emprego.

    – Diz lá o que estás a pensar, serpente venenosa – desafiou Rosa, que parecia ter lido os seus pensamentos.

    – Gostava de ser forte como a  senhora  – respondeu Olimpia, dizendo substancialmente a verdade. Porque era sobretudo a força que ela invejava àquela criatura frágil; não os biliões nem o poder, que eram apenas a consequência disso.

    – Não é verdade – replicou, ao mesmo tempo que um véu de melan-colia descia sobre o seu olhar. – Metade do meu corpo já não existe – continuou, após uma pausa, batendo avidamente uma mão sobre os joelhos redondos e cheios de vida da rapariga. – As minhas pernas estão mortas, e em breve também o resto as vai seguir. – Respirou profundamente. – E tu tens a coragem de me invejar – censurou-a.

    – Mas nem sempre foi assim – tentou consolá-la.– Não – respondeu Rosa, a  sorrir –, durante anos até foi pior.

    – Recordações de tragédias distantes pairaram durante alguns ins-tantes na sua mente.

    Soberbo e  cortejado por olhares ávidos, o  Rolls-Royce metali-zado deslizava com um ruído suave no meio do trânsito que pare-cia ter em relação a ele uma atitude de respeito. O ar cinzento, do outro lado dos vidros, tornava mais elegantes os letreiros das lojas e as montras ricas. Rosa abriu uma portinha recortada no braço do assento e tirou de lá um cofrezinho azul do qual emergiram quatro anéis de singular beleza; enfiou um no indicador e outro no médio

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    da mão esquerda e dois no anelar da mão direita. Afastou as mãos para admirar a maravilha das pedras encastradas em forma de flo-res, que pareciam ter desabrochado sobre aqueles dedos diáfanos que irradiavam cintilações intensas.

    – Aqui está, minha senhora – disse Olimpia, ao mesmo tempo que virava um espelho na direção dela para que pudesse pentear-se.

    – Pois é – suspirou Rosa, ao mesmo tempo que compunha com breves passagens do pente os cabelos cândidos. O espelho devolveu--lhe uma expressão satisfeita. – De vez em quando é preciso regres-sar ao ponto de partida – concluiu.

    – Para fazer o bem – não conseguiu conter-se Olimpia.Rosa deitou-lhe um olhar severo e autoritário.– E também – disse – porque a beneficência é um bálsamo so-

    bretudo para quem a pratica. Além de que me ajuda a recordar todo o caminho que percorri. E a não perder o contacto com a realidade.

    – Sim, minha senhora – comentou Olimpia, achando que a pa-troa exigia uma resposta.

    – Sempre estive sozinha – murmurou. – Nos bons e nos maus momentos – acrescentou, fazendo-lhe sinal para retirar o espelho. – A dor não tem amigos. O sucesso suscita inveja e rancor. Na lama há o coaxar das rãs. Quando se está no topo do campanário, gras-nam os corvos.

    O  passado manifestava-se com nitidez, enquanto os aconteci-mentos mais recentes tendiam por vezes a  ficar desvanecidos no arquivo da memória. Estas ligações em falta que diluíam os pensa-mentos em nebulosas eram o aspeto melancólico da sua declinante biografia. «Cansaço passageiro», diagnosticava o médico. «Apatia senil», retorquia ela, que detestava a  hipocrisia e  gostava mesmo de chamar as coisas pelos nomes. Todas as coisas: as inerentes ao destino biológico do homem, as relativas ao sexo e as que diziam respeito às suas relações com o próximo.

    – Está a  sentir-se mal?  – perguntou Olimpia, preocupada, pe-rante a súbita mudança de expressão.

    – Deixa-me tocar em ferro  – reagiu a  senhora, enquanto se punha apressadamente à procura das chaves, que acabou por en-contrar na carteira.

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    O  Rolls-Royce virou na via Montenapoleone e  continuou aos soluços até ao nível da via Gesù. Rosa olhou com um profundo desprezo para a  hollywoodesca galeria que uns decoradores sem ideias tinham construído em frente à  loja da Cartier: um buraco de minhoca em tela cor de nata, talvez em sintonia com a Quinta Avenida, mas que constituía um insulto atroz ao tradicional orde-namento daquela célebre rua de Milão transformada em parque de estacionamento.

    – Que nojo! – sibilou Rosa. – Lembra-me para eu telefonar ao presidente da Câmara.

    – Sim, minha senhora – anuiu Olimpia, enquanto anotava num caderninho.

    Depois o Rolls-Royce virou na via Gesù, percorreu-a durante um breve troço, enfiou-se na ampla entrada de uma casa setecentista, desceu uma rampa curta e foi dar a uma ampla garagem onde esta-vam alinhados automóveis de várias épocas, perfeitamente funcio-nais e a brilhar como espelhos. Aqueles modelos, que teriam feito as delícias do mais requintado colecionador, continham pedaços do passado de Rosa. Era um espetáculo que lhe enchia sempre os olhos de alegria e o coração de tristeza.

    O motorista saiu do seu lugar, abriu a porta e debruçou-se afe-tuosamente sobre a patroa.

    – Dá-me licença, minha senhora? – perguntou, deixando entre-ver num simpático sorriso os dentes muito brancos e fortes.

    – Claro que dou licença – respondeu a sorrir, enquanto o jovem a  erguia e  se dirigia ao elevador. –  Pessoalmente, não tenho ne-nhum motivo para me queixar. Que outra mulher, na minha idade, se pode dar a um luxo como este? A doença tem as suas vantagens.

    «Quando se é rico», pensou.– A senhora está sempre com vontade de brincar – disse Mario.– A senhora deseja alguma coisa? – interveio Olimpia, atenciosa.– Nada, neste momento  – retorquiu Rosa, sorrindo de novo

    a Mario. Era uma maneira de brincar que a divertia.Olimpia apressou-se a abrir a porta do elevador; com um rumor

    quase impercetível, a cabina subiu até ao último piso, abrindo-se para uma entrada onde tudo era suavidade: luzes, objetos de decoração,

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    cores. Rosa sorria ainda quando Mario a pousou numa nova cadeira de rodas. De pé, ao lado da cadeira, esperava-a o celeste sorriso de Clemente, o velho e fiel servidor, curvado pelos anos. Estava com ela desde sempre. Era ligeiramente mais novo do que Rosa, embora pare-cesse mais velho. Era ainda um rapaz quando abandonou os campos para a seguir na sua louca corrida através do mundo, dos anos, da vida. Vira-a cavalgar homens, potros e motores; vira-a rir e chorar; agora via-a morrer. Mas disso não tinha plena consciência, porque também ele estava a morrer.

    – Oh, senhora Rosa, nem queira saber! – começou com os seus queixumes. – Nem queira saber, senhora Rosa – repetiu, enquanto empurrava com as suas poucas forças a cadeira sobre a alcatifa macia e compacta. A emoção apertava-lhe a garganta, impedindo-o de falar. No decurso da sua longa vida, Clemente tinha vivido de emoções e  de sentimentos reflexos: alegria, dor, indignação ou raiva nunca resultavam das suas vivências pessoais, mas eram a projeção daquelas que constelavam a existência tumultuosa de Rosa Letizia, Dugnani de solteira.

    Clemente era a única pessoa no mundo que sabia tudo de Rosa e da sua família: escândalos, intrigas, amores, desgraças e terríveis segredos que levaria com ele para a sepultura.

    – Estás velho e gagá – disse Rosa, ao mesmo tempo que se virava para trás de forma a poder vê-lo enquanto atravessavam o amplo ves-tíbulo, revestido de nogueira clara, em direção ao escritório. – Então, desembucha! – incitou-o.

    A brincadeira da milionária que se diverte a  regressar aos su-búrbios, para o meio da gente pobre, para levantar a pensão, estava já esquecida. Rosa amava Clemente como o  amigo mais sincero, mas era capaz de o chicotear se não se decidisse a falar.

    – Nem queira saber, senhora Rosa! – insistiu, com a exasperante monotonia de um disco riscado.

    Perante um acontecimento extraordinário, as palavras do em-pregado saíam sempre cortadas e  o discurso tornava-se incom-preensível. A última manifestação daquilo que Rosa captava como um sinal de alarme remontava a dez anos atrás. Lembrava-se per-feitamente. Era jovem: tinha setenta e três anos.

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    Clemente, que nessa altura já era idoso, tinha tropeçado deses-peradamente nas palavras para lhe dizer que o seu filho Riccardo, num ato de cobardia, tinha passado por cima da mãe e das viúvas dos irmãos, e se tinha tornado o único dono da Rosa Letizia & Figli.

    Rosa acabava de regressar de um internamento numa clínica na Suíça onde uma equipa de especialistas, dirigida pelo professor Hans Brower, lhe tinha alisado as rugas, fazendo recuar a máquina do tempo em direção a  uma ilusão de juventude. Também daquela vez Cle-mente tinha ido a correr ao encontro dela, dizendo: «Senhora Rosa… nem queira saber!». Tinha sido necessária toda a sua autoridade para expugnar a neurótica reserva do servo fiel; mas quando finalmente teve a chave para interpretar o acontecimento, a revelação destruiu o efeito daqueles dois meses de cuidadoso restauro. Qualquer coisa aconteceu dentro dela, no complicado sistema hidráulico da micro-circulação cerebral; uma complicação que se traduziu na paralisia que a manteria pregada para o resto da vida a uma cadeira de rodas.

    – Nem queira saber, senhora Rosa!  – balbuciou mais uma vez Clemente, com um soluçar senil. Estavam parados no vestíbulo, em frente à porta do escritório de Rosa. Ela resignou-se a esperar que ele continuasse. O que poderia ter ele ainda para lhe revelar? Já não lhe importava nada de nada. As angústias do sofrimento e as cha-mas da felicidade já não a feriam nem a aqueciam. O seu coração era refratário às emoções e ela declamava sem entusiasmo o último ato do seu drama terreno. Só o trabalho e a experiência lhe suge-riam as deixas e as entoações certas; os envolvimentos emocionais tinha-os deixado para trás, pálidas sombras de paixões já extintas.

    Clemente tinha-se imobilizado diante dela, como uma figuri-nha do presépio, numa atitude suplicante.

    – Senhora Rosa – continuou –, eu não sei como lhe dizer…– Velho gagá  – resmungou baixinho, desejando seriamente,

    agora, que guardasse para si o segredo que o fazia sofrer, mas com a certeza de que a má notícia estava prestes a abater-se sobre ela.

    – Trata-se da senhora Gloria – revelou o empregado, libertando-se de um peso que atingiu Rosa em cheio e quase lhe cortou a respiração.

    – Gloria? – murmurou.– Gloria – repetiu Clemente.

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    O rosto diáfano da senhora tornou-se neve. Agarrou furiosamente os braços da cadeira de rodas, dando a sensação de querer levantar-se e caminhar. Tinha a agressividade dos melhores momentos e o olhar cintilante de ira. Depois os seus olhos ficaram mais serenos.

    – Porquê logo a Gloria? – perguntou em voz alta a um deus im-piedoso e distante. – Como é que tiveste tão pouca misericórdia. Talvez eu merecesse um castigo. Eu. Mas porquê a Gloria? – Largou as mãos e deixou-se encostar na cadeira.

    – Diz-me tudo o que sabes – ordenou.– A senhora Gloria foi levada para a clínica – explicou Clemente,

    que tinha recuperado a capacidade de se exprimir.– Quando? – Precisava ainda de lhe arrancar os factos que con-

    tinuava a guardar ciosamente.– Pouco antes de a senhora voltar para casa.– Porquê? – perguntou, com uma voz neutra.– Tomou uns soníferos.Abençoada rapariga, pensou Rosa. Tinha há algum tempo aquele

    hábito deplorável. Já numa outra vez tinha acontecido, mas o assunto resolvera-se com um despertar tardio.

    – Quantos? – quis saber.– Muitos – prosseguiu o velho. – Todos ao mesmo tempo. Se ca-

    lhar, queria morrer – acrescentou, a ganhar coragem para concluir a história. – Foi a empregada que a encontrou. Depois de ter chamado a ambulância, ligou para aqui. Não disse nada a ninguém. É uma rapariga de confiança.

    Clemente tinha sabido tudo o que podia saber.– Liga ao Mario – disse, subitamente mais calma. Tinha criado

    a  ilusão de estar acima das emoções. Mas ainda havia um ponto vulnerável, e era ali que o destino a tinha atingido.

    – Sim, minha senhora – disse o velho, obediente.– Diz-lhe que tem de me levar a Beata Virgo – continuou.A clínica Beata Virgo era, sessenta por cento, propriedade de Rosa,

    apesar de oficialmente pertencer a  uma sociedade financeira com sede em Vaduz; constituía o refúgio dos Letizia, no que respeitava à saúde. Nenhuma informação relativa à família transporia nunca as paredes daquela casa de saúde.

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