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VELHOGENERAL.COM.BR PRIORIZANDO AS OPERAÇÕES DE COMBATE CONVENCIONAL EM LARGA ESCALA 1 17/01/2020 | VELHOGENERAL.COM.BR | CATEGORIAS: ANÁLISE, DOUTRINA, EXÉRCITO, EUA, GUERRA ASSIMÉTRICA PRIORIZANDO AS OPERAÇÕES DE COMBATE CONVENCIONAL EM LARGA ESCALA COMO O EXÉRCITO DOS EUA PRETENDE LUTAR E VENCER AS PRÓXIMAS GUERRAS Por Alessandro Visacro* Militares da Guarda Nacional do Estado de Arkansas com a 1036ª Companhia de Engenharia de Jonesboro, Arkansas, detonam um sistema de carga linear de abertura de brecha M58 no National Training Center, em Fort Irwin, Califórnia, 16 de Agosto de 2015. (Foto: Maj W. Chris Clyne, 115º D Com Soc Mv). Artigo publicado na edição brasileira da revista Military Review, edição do Primeiro Trimestre de 2019. Durante muitos anos, tanto a Militar das Agulhas Negras quanto a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais ensinaram, em suas aulas de tática, que “a melhor arma contra um carro de combate era outro carro”. No entanto, essa assertiva, tomada ao pé da letra, é errônea. Aeronaves de ataque constituem a maior ameaça contra formações blindadas. O caça de apoio aéreo aproximado A-10 Thunderbolt II, com seu poderoso canhão antitanque GAU-8A de 30 mm, ou o helicóptero AH 64-D Apache Longbow, cujo diversificado arsenal inclui o míssil guiado a laser Hellfire, por exemplo, adquiriram notoriedade por serem implacáveis destruidores de tanques 1 . Na Segunda Guerra Mundial, o caça- bombardeiro britânico Typhoon Mk 1B, dotado de oito foguetes de sessenta libras, além de quatro canhões de 20 mm instalados nas asas, mostrou-se extremamente eficaz em missões de ataque ao solo 2 . Convém lembrar que a controvérsia envolvendo os generais Rommel, Rundstedt e Guderian acerca do posicionamento das reservas blindadas alemãs para se anteporem à invasão da

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17/01/2020 | VELHOGENERAL.COM.BR | CATEGORIAS: ANÁLISE, DOUTRINA, EXÉRCITO, EUA, GUERRA ASSIMÉTRICA

PRIORIZANDO AS OPERAÇÕES DE COMBATE CONVENCIONAL EM LARGA ESCALA COMO O EXÉRCITO DOS EUA PRETENDE LUTAR E VENCER AS PRÓXIMAS GUERRAS

PorAlessandroVisacro*

MilitaresdaGuardaNacionaldoEstadodeArkansascoma1036ªCompanhiadeEngenhariadeJonesboro,Arkansas,detonamumsistemadecargalineardeaberturadebrechaM58noNationalTrainingCenter,em

FortIrwin,Califórnia,16deAgostode2015.(Foto:MajW.ChrisClyne,115ºDComSocMv).

ArtigopublicadonaediçãobrasileiradarevistaMilitaryReview,ediçãodoPrimeiroTrimestrede2019.

Durante muitos anos, tanto a Militar das Agulhas Negras quanto a Escola deAperfeiçoamentodeOficiaisensinaram,emsuasaulasde tática,que “amelhorarmacontraumcarrodecombateeraoutrocarro”.Noentanto,essaassertiva,tomada ao pé da letra, é errônea. Aeronaves de ataque constituem a maiorameaça contra formações blindadas. O caça de apoio aéreo aproximado A-10Thunderbolt II, com seu poderoso canhão antitanqueGAU-8Ade 30mm, ou ohelicópteroAH64-DApacheLongbow,cujodiversificadoarsenalincluiomíssilguiado a laser Hellfire, por exemplo, adquiriram notoriedade por seremimplacáveis destruidores de tanques1. Na Segunda Guerra Mundial, o caça-bombardeiro britânico Typhoon Mk 1B, dotado de oito foguetes de sessentalibras, além de quatro canhões de 20 mm instalados nas asas, mostrou-seextremamente eficaz em missões de ataque ao solo2. Convém lembrar que acontrovérsia envolvendoosgeneraisRommel,Rundstedt eGuderianacercadoposicionamentodasreservasblindadasalemãsparaseanteporemàinvasãoda

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costa setentrional francesa, em 1944, girava em torno da capacidade de opoderioaéreoaliadoimpediromovimentodasdivisõesPanzerparaonorte.

Mesmosedesconsiderarmososvetoresaéreos,dificilmentepoderíamos ternopróprio carro de combate a melhor opção contra blindados. Os alemães, que,com justo reconhecimento, se tornaram célebres por sua excelência tática naguerrademovimento,dificilmenteconcordariamcomessaideia.Elespreferiamempregar o canhão antiaéreo FLAK 18 de 88 mm com “alça zero”, fazendojudiciosousodoterreno,paracriarumafortebarreiraantitanque,enquantoseusblindados ficavam livres para avançar em profundidade, atacando os pontosmais vulneráveis do dispositivo inimigo3. O atrito gerado pelo engajamentodiretoentreunidadesblindadaseratidocomocontraproducente,aexemplodaderrotasofridanabatalhadeKursk,travadaemjulhode1943nafrenterussa–omaiorconfrontodetanquesdaSegundaGuerraMundial4.Anosdepois,asliçõesextraídasdaGuerradoYomKippur,emoutubrode1973,corroboraramavisãotáticadosalemães.

Então,porquenossasescolassemantiveramfiéis,por tanto tempo,aoaxiomamencionadonoprimeiroparágrafo?

QuandoaForçaExpedicionáriaBrasileirafoienviadaparalutarnaItália,nossoExércitofoiredesenhadoaosmoldesdoExércitodosEstadosUnidosdaAmérica(EUA),que,naquelaépoca,nãocontavacomnenhumaarmaanticarroeficaz.Amaiorpartedoarsenaldisponível,comoocanhãoM3de37mm5,porexemplo,erainofensivadiantedosespessos100mmdablindagemfrontaldeumtemívelPanzer VI Tigre6. Como os aliados preferiam empenhar seusmeios aéreos emconformidade com a “Doutrina Trenchard”, isto é, bombardeando os centrosindustriais e os núcleos urbanos da Alemanha nazista7, restavam-lhes poucasalternativas a não ser empregar o próprio carro de combate como armaantitanque.

Esse pequeno exemplo se presta tão somente para demonstrar o quanto ascircunstâncias são importantes no processo de formulação doutrinária. Nãodevemos ignorarocontextomaisamploqueenvolveacriaçãoeaaceitaçãodeum conjunto de princípios teóricos, segundo os quais pretendemos reger oemprego do instrumento militar, sob pena de nos apegarmos, de formaintransigente,adogmasinsustentáveise,porvezes,incoerentes–aindaque,nãoraro,essasejaumatendêncianatural.

Taladvertência torna-separticularmenterelevantenomomentoemqueo teordo novo Manual de Campanha 3-0, Operações (FM 3-0, Operations), maisimportantepublicaçãodoutrináriadoExércitodosEUA,começaareverberarnoâmbitodoExércitoBrasileiro.Ouseja,tãoimportantequantosaber“quaisideiassãoexpressas”nonovomanualésaber“porqueessasideiassãoexpressas”.

Devemosatentar,também,paraaquiloquecadaleitorbuscaencontraremsuaspáginas, de acordo com suas próprias convicções e preconceitos, pormeio deuma leitura seletiva, orientada para conclusões previamente determinadas.Nessesentido,valereiteraroqueobservouohistoriadorRobertBaumann: “aspessoassemostrammaisreceptivasàsnovasevidênciasqueseajustamapontos

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devistajáaceitosdoqueàsevidênciasqueoscontradizem”8.Napsicologia,essapredisposição mental, inerente a todo ser humano, denomina-se “viés deconfirmação”9.

Caberelembrarque,noiníciodoséculoXX,oExércitoBrasileiroencontrava-se,genuinamente, empenhado na correção das graves deficiências apresentadasdurante a Campanha de Canudos10. A “reforma militar” em curso buscou seureferencialnadoutrinaalemã,cujospreceitosrepresentavamaquintessênciadaguerramoderna.Naverdade,oexércitodeScharnhorst,Gneisenau,ClausewitzeMoltketornara-semodelonãosóparaoBrasil,masparaamaioriadospaísesaoredordoplaneta.

Entretanto, em face das surpreendentes inovações tecnológicas postas à provanos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial e da derrota alemã emnovembrode1918,oExércitoBrasileiroviu-se,maisumavez,diantedodesafiodemodernizar-se.Em1920chegouaoRiodeJaneiroaMissãoMilitarFrancesa,chefiadapeloGeneralMauriceGamellin.Duranteasduasdécadasseguintes,essepequeno grupo de oficiais esteve à frente de significativas mudançasintroduzidas na Força Terrestre. Mas, por um capricho da história, quando aWehrmacht invadiuaFrançadesbordandoaLinhaMaginot, emmaiode1940,Gamellin era o Comandante-Chefe Aliado11. O notável sucesso da Blitzkriegtornouevidenteo renascimentoda guerrademovimento e a obsolescênciadadoutrinafrancesacentradanasoperaçõesdefensivas.

ComodesenrolardaguerranaEuropaeoengajamentodosEUAnadefesadoHemisfério Ocidental, o Brasil foi atraído para a órbita de influência norte-americana. A partir da criação da 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, em1943,adoutrinavigentenoExércitodosEUAtornou-seoprincipal referencialteóricoparaossoldadosbrasileiros.Édignodenotaque,dentretodasasnaçõesdo globo – incluindo os tradicionais aliados dos EUA, como Inglaterra, França,Canadá e Austrália – o Brasil tenha o maior número de oficiais estrangeirosdiplomados pela Escola de Comando e Estado-Maior, sediada em FortLeavenworth. Ao todo, 315 alunos brasileiros graduaram-se naqueleestabelecimentodeensinoentreosanosde1943e2018.

Todavia,mesmo tendoaprincipal potênciamilitardoplaneta como referênciaem termos doutrinários, o célere e irreversível processo de incorporação denovas tecnologias tem dificultado sobremaneira a manutenção de um ritmoadequadodeevoluçãoteóricaeconceitual.Muitospreceitos,sobretudoaquelesrelacionadosaocombateconvencional,têmsidofrequentementeadquiridosemdecorrência de abstrações doutrinárias, que buscam mitigar mais de setedécadas de ausência de tropas em um campo de batalha de média e altaintensidade. Entretanto, o sentido de urgência dado ao desejo de suprir essalacunanãodevecomprometeraevoluçãodaForçaTerrestrenomédioe longoprazo.Ao contrário, exigeuma abordagem crítica que vaimuito alémdamera“importação”desoluçõespré-formatadas.Assimsendo,opresenteartigovisaaoferecerumamodestacontribuiçãoàsdiscussõesemtornodaediçãodeoutubrode2017domanualde campanhaFM3-0, analisandoas reaisperspectivasdasoperaçõesdecombateemlargaescalanoatualcontextogeopolítico.

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UM H ISTÓRICO DE MUDANÇAS: S ÍNTESE DA EVOLUÇÃO DOUTRINÁRIA DO EXÉRCITO DOS EUA Ao contrário do que aconteceu com o Exército Brasileiro após a Guerra doParaguai, engajando-se em questões nacionais relevantes como a Abolição daEscravatura e a Proclamação daRepública, o Exército dos EUA, ao término daGuerradeSecessão(1861-1865),voltou-separadentrodesimesmo,dedicando-se a temas estritamente profissionais e experimentando um significativoamadurecimento institucional. Seu papel nas chamadas Guerras Índias (1870-1900) e, por conseguinte, na “marcha para o oeste” jamais transcendeu aexpressãomilitar.

Contudo, quando as duas guerras mundiais eclodiram na primeira metade doséculoXX,oExércitodosEUA,assimcomotodososoutrosexércitosdoplaneta,nãoseencontravaverdadeiramenteprontoparaotipodecombatetravadonasplanícies daEuropa, nas ilhas doPacífico e nos desertos donorte daÁfrica.Onúmero excessivo de baixas durante a ofensiva Meuse-Argonne em 1918, aperdadasFilipinasem1941eaderrotasofridanopassodeKasserineem1942ilustram o quão inapropriados eram os preceitos que regiam as forças norte-americanas no início de sua participação nos dois conflitos12. Assim sendo, aevolução doutrinária que se fazia necessária se deu no decurso das própriasguerras.

Nos anos 1950, a criação da “Divisão Pentômica” (divisão de infantaria comunidadessubordinadasdebasecinco)foiarespostadoutrináriadoExércitodosEUA ao advento das armas nucleares13. Na década seguinte, o programa dereestruturação da Força denominado ROAD (Reorganization Objective ArmyDivision)buscouumasoluçãomaisflexível,queseadequassetantoaumcampode batalha convencional quanto nuclear. Foi de acordo com o “modelo ROAD”queoexércitonorte-americanotravouaGuerradoVietnã.

Naturalmente, a traumática experiência vivida nas selvas do Sudeste Asiáticoconstituiu um ponto de inflexão na história do Exército dos EUA. A longa ecruenta luta na península da Indochina tornou evidente graves problemas,incluindo liderança precária, racismo, uso abusivo de drogas, treinamentoinsatisfatórioeindisciplina–fatoresquecontribuíramparaocolapsomoralnalinhadefrentee,porconseguinte,paraocometimentodecrimesdeguerra,emespecial,oataqueindistintoàdesafortunadapopulaçãonativa.Autoridadescivise militares adotaram uma postura pragmática diante do fracasso no Vietnã:simplesmente, mostraram-se determinadas a não incorrer no mesmo erropermitindoquesoldadosnorte-americanos fossemenviadosparacombateremoutra guerra irregular como aquela14. Também estava claro que o fragilizadoexército que se retirou da Indochina, em 1973, não possuía condições desobrepujarasforçasdoPactodeVarsóviaemumeventualcombateconvencionalem larga escala travado nas planícies da Europa. Naquele mesmo ano, a lutarenhida entre árabes e israelenses, no deserto do Sinai e nas colinas de Golã,serviudealertaquantoaospotenciaisriscosedesafiosdeumconfrontodiretoentreforçasregularesdemaiorenvergadura.Estavaclaroquealgoprecisavaserfeito.

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Inaugurando um período de enormesmudanças, foi criado, ainda em 1973, oComandodeInstruçãoeDoutrina(TrainingandDoctrineCommand–TRADOC).Em1976,erapublicadanovaediçãodoManualdeCampanha100-5,Operações(FM100-5,Operations)dandoênfaseàquiloque ficouconhecidocomo “DefesaAtiva”. Em 1982, foi apresentada nova versão do manual, cujo teor revisadoabandonava a proposição defensiva anterior e trazia como grande inovaçãodoutrináriaoconceitode“BatalhaAr-Terra”15.

OnavioArcadaPaz(T-AH866)daMarinhadoExércitodeLibertaçãoPopulardaRepúblicaPopulardaChinafoiumdos42naviosesubmarinosquerepresentaramquinzenaçõesparceirasduranteoExercícioRIMPAC2014.AChinaenviouessenavioemmissãodeajudahumanitáriaàVenezuela.(Foto:USNavy/2ºSargento

ShannonRenfroe).

Em1991,quandotropasnorte-americanaslutarampelalibertaçãodoKuwait,adoutrinada“BatalhaAr-Terra”representouocombatedearmascombinadasemseuestadodaarte.Soldadosbemtreinados,conduzidosporlíderescompetentes,dispunham da mais moderna tecnologia de combate. Décadas de vultososinvestimentos empesquisa e desenvolvimento resultaramnosmais avançadossistemas de armas e equipamentos de emprego militar: carros de combateAbrams,viaturasblindadasBradley,helicópterosdeataqueApacheedeassaltoBlackHawk,caçasF-18Hornet,bombardeiosstealthF-117eumainfinidadedeoutrosmeios, incluindo veículos aéreos não tripulados, informações satelitais,equipamentosoptrônicosdevisãonoturnaesofisticadosrecursosdepontariaeguiagem a laser. Além disso, sistemas de redes robustos integraramcomputadores ao processo decisório, assegurando tanto o aumento dacapacidadedecomandoe controledoscomandantes táticosquantooempregosincronizado das unidades de combate16. A campanha cognominada OperaçãoDesert Storm foi amais rápida emais completa vitóriamilitar da história dosEUA17.

Entretanto, a despeito do sucesso, os líderes militares norte-americanosadmitiam que suas forças armadas necessitavam sofrer reformulações. Adoutrinada“BatalhaAr-Terra”foraconcebidacomopropósitodesobrepujarasforças do Pacto de Varsóvia, no teatro de guerra europeu. Nessa hipótese, astropas norte-americanas disporiam de unidades pré-posicionadas e dainfraestrutura da Europa ocidental: portos, aeroportos, depósitos, armazéns,hospitais,extensamalharodoferroviária,basesmilitares,etc.AGuerradoGolfo

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de1991evidenciouque,nomundopós-GuerraFria,osEUAdeveriamestaraptosadesdobrarem, com rapidez, tropas emqualquerpartedoplaneta, projetandoforçaapartirdeseupróprioterritório.

O cerne do problema residia no fato de que o Exército dos EUA possuía,basicamente, dois tipos de unidades: as leves (infantaria), capazes de sedesdobrar com a rapidez necessária, porém dotadas de um poder relativo decombatetalqueasimpediadeconduziroperaçõesindependentes;easpesadas(blindadas), cujo grande poder relativo de combate assegurava-lhes acapacidade de operar de forma isolada; no entanto, partindo da América doNorte, consumiam um tempo excessivo para se encontrarem prontas em umalongínqua zona de guerra. Era preciso, portanto, dispor de estruturasintermediárias, isto é, forças combinadas demédio porte – rápidas o bastanteparaatenderemaqualquercontingênciaesuficientementefortespara,sozinhas,engajarem qualquer tipo de inimigo18. Surgiu assim a Brigada Stryker (StrikerBrigadeCombatTeam – SBCT), capaz de projetar força em qualquer ponto dogloboemumprazode96horaseoperardeformaindependenteporatédezdias,incluindo72horasdeefetivocombate19.

Com as perspectivas de uma “nova ordem mundial” hegemônica advinda docolapsodaUniãoSoviéticaedofimdaGuerraFria,alémdeexponenciaisavançosnocampodaciênciaetecnologia(guerracentradaemredes,armasinteligentes,drones,etc.),osEUAesperavamalcançarvitóriasrápidas,decisivasecomumaincidênciamínimadebaixasedanoscolaterais.A ferramentaconceitual comaqual os militares norte-americanos acreditavam ser possível obter taisresultados denominava-se “Operações Baseadas em Efeito”20. Uma campanhafulminante, aplicando poder de combate reduzido, porém avassalador, deveriaobedeceràteoriado“ChoqueePavor”deHarllamUllmaneJamesWade21.Essasforamaspremissasqueguiaramastropasnorte-americanasduranteos21diasda exitosa ofensiva que destituiu Saddam Hussein do poder no Iraque, em200322.

Entretanto,asaçõesempreendidasnaÁsiaCentralenoOrienteMédioemnomeda“GuerraGlobalContraoTerror”deraminícioa longascampanhasdecontrainsurgência. A despeito da notável proficiência tática exibida nos campos debatalha, seus resultados imediatos não foram apenas insatisfatórios, mas, dopontodevistapolíticoeestratégico,representaramumverdadeirodesastre.

Depois de 15 anos de esforços militares no Afeganistão, a guerrilha Talibãcontrolava uma área maior do que aquela que possuía quando as primeirasequipesdeforçasespeciaisnorte-americanasingressaramnopaís.Alémdisso,aprodução de ópio e, por conseguinte, o tráfico de heroína aumentaramsignificativamente.Tampoucoseextirpouaameaça representadapor islamitasradicais e outras organizações extremistas23. De acordo com JohnArquilla, em2001, ocorreram cerca de dois mil incidentes passíveis de serem qualificadoscomoatentadosterroristasemtodoomundo.Essasaçõesdeixaramumsaldode,aproximadamente, quatorzemilmortos e feridos. Em2015, o total de ataqueschegou a quinze mil e o número de vítimas alcançou a cifra de oitenta milpessoas24.

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Na verdade, as iniciativasmilitares lideradas porWashington em resposta aosatentados terroristas de 11 de Setembro conflagraram todo o volátil OrienteMédio, com a ingênua presunção de disseminar a democracia ocidental. Oslevantes populares da chamada Primavera Árabe, em pouco tempo, sedegeneraramemlutafratricida.Ondasderefugiados,provenientesdosconflitosna Líbia e na Síria, inundaram a Turquia, o Líbano, a Jordânia e, em menormedida, a Europa. Além de revelar a tragédia humanitária, o fluxomigratórioparaoVelhoMundotemcausadoenormeimpactodemográfico,cultural,políticoeeconômico,cujasconsequências,atéomomento,nãopodemsercorretamenteavaliadas.Ademais,oimbrógliocriadopelaefêmeraascensãodoEstadoIslâmicoeasobrevivênciadocombalidoregimedoditadorBasharal-Assad,emDamasco,permitiuareinserçãodaRússiacomoatordedestaquenaregião.Comosenãobastasse, o Irã – principal antagonista norte-americano no Oriente Médio –tornou-seomaiorbeneficiáriodasguerrasdoAfeganistãoedoIraque.Afinal,oque, de fato, se conseguiu com ambas as intervenções foi a deposição deautocraciasanti-xiitasradicaisemCabuleBagdá,restaurandoahistóricaáreadeinfluênciadoImpérioPersa.

Mas,aoretornaremda“LongaGuerra”,ossoldadosdosEUAsedepararamcomum cenário geopolítico significativamente distinto daquele que existia há 15anos,quandoiniciaramsualutacontraaAlQaedaeoutrasorganizaçõesfiliadas,representantes do salafismo jihadista internacional25. A hegemonia norte-americana tornara-se contestada por Estados nacionais que demonstramcapacidade crescente de se oporem ao poderio bélico norte-americano emtermos regionais ou que estão, efetivamente, determinados a reduzir a suainfluência em áreas críticas ao redor do mundo. Ou seja, Rússia, China, Irã eCoreia do Norte – explicitamente nominados nas páginas do novo manual e,doravante,considerados“ameaçascompoderdecombateequiparadoouquaseequiparado”26.DeacordocomoGeneralMichaelLundy,comandantedoCentrodeArmasCombinadaseresponsávelpelamaisrecenteversãodoFM3-0:“comooExércitoeasforçasconjuntassemantiveramfocadasnacontrainsurgênciaeno contraterrorismo, nossos adversários observaram, aprenderam, adaptaram,modernizaram-seeconceberamestratégiasquenoscolocamemumaposiçãoderelativadesvantagememlugaresondenós,talvez,tenhamosdelutar”27.

SegundooMajorAlessi-Friedlander,doExércitodosEUA,“hámuitosparalelosentreoqueoExércitodosEUAestávivendohojeeoqueenfrentouhá40anos.[...]ApósmaisdeumadécadanosarrozaiseselvasdoVietnã,oExércitodosEUAse viu completamente despreparado para um potencial ataque pelo ExércitoVermelho e seus aliados”28. Decerto, essa perspectiva sugere um retorno àstradicionais formas de beligerância, isto é, o “American way of war”, emdetrimento da complexa e, aparentemente, infrutífera luta contra atoresarmadosnãoestatais.

Ao tentarem formular o “novo” problema que tinham diante de si, osdoutrinadores norte-americanos identificaram algumas condicionantes quedeveriam, necessariamente, guiar-lhes na busca de uma solução apropriada,quaissejam:

• dareminícioaumacampanhamilitaremsituaçãodedesvantagem;

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• verem-sedesafiados,simultaneamente,emtodososdomínios(terrestre,naval,aéreo,espacialecibernético);

• operarememumambienteregidopor“atividadehipercaótica”,cujoritmoacelerado dos acontecimentos estabelecerá novos padrões de tempo eumadinâmica,consideravelmente,maisrápidaeintensa;e

• engajarem-se emum campode batalha exponencialmentemais letal doqueasruasdeBagdáouasremotasmontanhasdoHinduKush.

Assim sendo, o cerne do novo FM 3-0 enfatiza, de forma objetiva, o combateconvencionalemlargaescala,abrangendotodososcincodomíniosmencionadosanteriormente,alémdosesforçosnoambienteinformacional.Pretende-sequeaaçãodecisiva contraumaameaçadotadadepoderiobélicoequivalente resulteda hábil combinação entre operações ofensivas, defensivas e de estabilidade,instrumentalizadas por meio de manobras conjuntas sofisticadas einterdependentes, denominadas “Combate em Múltiplos Domínios” (Multi-DomainBattle).

AMEAÇAS COM PODER DE COMBATE EQUIPARADO O fato deRússia, China e Irã desafiarem a hegemonia norte-americana retratauma dinâmica multipolar muito próxima do cenário previsto por SamuelHuntingtonemsuacontroversaobraOChoquedeCivilizaçõeseaRecomposiçãoda Ordem Mundial29. De qualquer forma, as preocupações do governo deWashington não parecem infundadas diante da redefinição do arranjogeopolíticoglobal.

ARússiatentarestauraroprestígio,opodereainfluênciaperdidosaotérminodaGuerraFria.Emagostode2008,Moscou,sobalegaçãodeapoiaromovimentoemancipacionista da Ossétia do Sul, lançou uma rápida e decisiva ofensivaterrestre contra a Geórgia, no Cáucaso. No ano de 2014, em resposta àaproximaçãodaUcrâniacomaUniãoEuropeia,oKremlininterveiomilitarmenteem favor dos separatistas na bacia do rio Donetz, anexando a estratégicapenínsuladaCriméia,noMarNegro,cujoportodeSebastopolédeimportânciacapitalparaafrotarussa.Desdesetembrode2015,ogovernodeVladimirPutinvemseenvolvendonaguerracivilsíria,oquelhepermitiuresgatarpartedesuarelevância no Oriente Médio, além de obter vantagens expressivas, como oarrendamento do porto de Tartus, no Mar Mediterrâneo, pelos próximos 49anos30. As atividades cibernéticas russas, como o ataque contra a Estônia em2007 e a suposta interferência nas eleições presidenciais dos EUA em 2016,denotam não apenas um nível avançado de capacidades, como também apredisposição para utilizá-las31. Ademais, a Rússia tem renovado osinvestimentos em sua indústria de defesa, como demonstram a aquisição docaça-bombardeiroSukhoiSu-34eodesenvolvimentodocarrodecombateT-14Armata e das aeronaves Su-57 e MiG-3532. Acredita-se que, em algumastecnologias críticas emergentes, como velocidade hipersônica, por exemplo, osrussosjáestejamàfrentedosnorte-americanos33.

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OPresidentedaChina,XiJinping,cumprimentaoPresidentebolivianoEvoMoralesnoGrandeSalãodoPovo,emPequim(Beijing),19deJunhode2018.AChinapretenderealizarinvestimentosexpressivosnaeconomiaboliviana,sobretudo,emsuainfraestruturaenergética.ABolíviaéoúnicopaíssul-americanoqueabrange,

concomitantemente,asregiõesandina,platinaeamazônica.(Foto:KyodoviaAPImages).

AChina,noperíodocompreendidoentre1996e2017,expandiuem665%seusgastos com defesa, incluindo investimentos em forças aeronavais e odesenvolvimentodesistemasantissatélites34.SuaspretensõesemrelaçãoaoMardo Sul da China têm chamado a atenção dos EUA e seus aliados na zona doPacífico.Oestabelecimentoderobustasbasesmilitaresemrecifesartificiaisnaáreadelimitadapela“LinhadosNoveTraços”temopotencialdeassegurar-lheocontrole militar da região, impedindo o acesso de forças norte-americanasàquele eventual teatro de guerra (não por acaso, o componente terrestre doComando do Pacífico recebeu a incumbência de implementar a doutrina do“CombateemMúltiplosDomínios”).AChinatambéméacusadadeenvolvimentoemmetadedosciberataquesrealizados,emtodoomundo,entreosanosde2005e 201735. Ademais, o governo de Pequim (Beijing) tem demonstrado enormecomplacênciaemrelaçãoaosavançosdoprogramanucleardavizinhaCoréiadoNorte.Entretanto,orecursomaiseficazdagrandeestratégiachinesatemsidoa“geoeconomia”, isto é, “o uso de instrumentos econômicos para promover edefender interessesnacionaiseproduzir resultadosgeopolíticos”36.Valendo-sede um capitalismo estatal poderoso e agressivo, orientado não pela dinâmicaimprevisível e imediatista das regras do mercado, mas pela consecução dosobjetivospolíticosnacionaisdemais longoprazo,aChina, comclaravantagemcompetitiva, tem diversificado e expandido seus acordos comerciais e decooperação econômica, penetrando profundamente em áreas estrategicamentesensíveis comoaAméricaLatina, por exemplo – tradicional zonade influêncianorte-americana. Além disso, os chineses têm sido bem-sucedidos na delicadaquestãoqueenvolvea“captura”depropriedadeintelectual.Pareceprovávelque,

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duranteamaiorpartedahistóriadahumanidade,amilenarChinatenhasidoamaior economia do planeta. Projeções plausíveis indicam que, em bem poucotempo,voltaráaser37.

O Irã, a despeito das pressões da comunidade internacional, permanecedeterminado a levar adiante seu programa nuclear. O governo teocrático deTeerãdisputacomadinastiawahabistadaArábiaSauditaahegemoniaculturalsobre o mundo muçulmano. Os conflitos no Afeganistão, Iraque e Síriapermitiram-lhe ampliar sua influência sobre o chamado “arco xiita”, que seestende do oeste do Afeganistão ao sul do Líbano, passando pelos antigosterritórios da Pérsia, Mesopotâmia e Síria. Seus estreitos vínculos com oHezbollah e suposto envolvimento com outras organizações extremistasdenotam sua participação no terrorismo internacional. Alguns especialistasadvogamqueaGuerradoLíbanode2006,entreasForçasdeDefesadeIsraeleoHezbollah,foiumlaboratório,ondesetestaramastáticasterrestresassimétricasdesenvolvidas pelo Irã38. Mais recentemente, o engajamento em defesa doregime daminoria alauita de Bashar al-Assad resultou na presença de tropasiranianas juntoà fronteiradeIsrael.Emmaiode2018,autoridades israelensesacusaramoIrãdebombardearposiçõesdoexércitonascolinasdeGolã39.

GeneralValeryGerasimov,ChefedoEstado-MaiorGeraldasForçasArmadasdaFederaçãoRussa(FotocedidapeloMinistériodaDefesadaFederaçãoRussa).

Naturalmente, Rússia, China e Irã, também, veem a política externa deWashingtoncomgrandetemor.ApresençaglobaldosEUAinterfereemquestõesregionais específicas, que sob a ótica dessas potências, lhes dizem respeito. Opodereconômiconorte-americanoéconsideradoinvasivoeseuarsenalatômicoameaçador.Moscou se ressente da influência ocidental, cada vezmaior, sobrepaíseslimítrofesque,historicamente,têmorbitadoemtornodaRússia,comoéo

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casodenaçõesdoMarBáltico,doCáucasoedaÁsiaCentral.Damesmaforma,ogovernodePequimdesaprovaapresençamilitarnorte-americananapenínsulada Coreia e o tratamento dispensado a Taiwan. Teerã rejeita cabalmente aingerênciadosEUAnoOrienteMédio,incluindooapoiodadoàdinastiasaudita,aoEstadodeIsraeleàspretensõesnacionalistascurdas.

Considerando que os três países (Rússia, China e Irã) não adotam regimes degoverno democráticos, a disseminação do liberalismo político associado avalores ocidentais lhes parece, particularmente, nociva. As chamadas“Revoluções Coloridas” são vistas com grande temor, a exemplo da RevoluçãoRosa na Geórgia (2003), Revolução Laranja na Ucrânia (2004), Revolução doCedro no Líbano (2005) ou a Revolução da Tulipa no Quirguistão (2005).Convémlembrarque,em2009,cercadetrêsmilhõesdepessoasforamàsruasdeTeerãparaprotestar contra a reeleiçãodeMahmoudAhmadinejad40.Nãoédifícil entender tais preocupações, diante das palavras proferidas pelocomandante de operações especiais dos EUA no continente europeu, emnovembrode2014,duranteumsemináriorealizadonaEstônia:

Ascondiçõesde2014sãodiferentesdaquelasde1944,easferramentascomasquaisaguerranãoconvencionalétravada,hoje,diferemenormemente.Nósdevemosdeixaravisãonostálgicadasremotasbasesdeguerrilhaemterritórios inacessíveis e nos adaptarmos a um mundo de comunicaçõesinstantâneas, transferência de dados, resistência não violenta, guerracibernéticaeeconômica,emanipulaçãoda lei internacionalparaminarasoberania nacional. [...] Na nossa era, é mais provável que a guerra nãoconvencionalassumaa formadeummovimentoderesistênciacivil,aindaque manipulado por poderes estrangeiros, que provoque uma respostaviolenta das autoridades, com o propósito de destruir a legitimidade dogoverno aos olhos da comunidade internacional. Empreender e enfrentaressanovaformadeguerranãoconvencionaldemandagrandesofisticaçãoeagilidade41.

Ou seja, o atual ambiente geopolítico parece tão hostil e desafiador sob aperspectiva russa, chinesa ou iraniana quanto sob o ponto de vista norte-americano.Masqualalógicaembutidanasiniciativasestratégicaslevadasacabopelos “Estados com poder de combate equiparado”? E, sobretudo, quais asimplicaçõesdessasiniciativasparaadoutrinaexpressanoFM3-0?

Espectadores da surpreendente demonstração do poderio bélico norte-americanoduranteaGuerradoGolfoem1991,essespaísesseconvenceramdequeosEUAhaviamsetornadovirtualmenteimbatíveisemumcampodebatalhaconvencional.Nenhumaoutraforçaarmadadoplanetapoderiaconfrontar-lhes,aventurando-se em um embate campal direto, conduzido de acordo com aortodoxiaque,atéentão,haviaregidoaguerraentreasnações42.

Anosmaistarde,emfevereirode1999,doisoficiaisdaForçaAéreachinesa,QiaoLiangeWangXiangsui,publicaramumlivrointitulado“Aguerraalémdoslimites:conjecturas sobreaguerraea táticanaeradaglobalização”. A obra propunhaações e procedimentosque transcendiamasusuais táticasmilitares, visando acompensar a inferioridade militar de países emergentes, como a China em

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particular, no caso de um conflito envolvendo meios de alta tecnologia43.Segundoosautores:

A guerra como nós a conhecíamos, descrita em termos gloriosos edominantes, até a conclusão do recente conflito, marcando um ápice nahistóriamilitar,deixoudeserconsideradaumdosmaisimportanteseventosnocenáriomundial,epassouateraimportânciadeumatorsecundário.[...]A questão é que as forçasmultinacionais lideradas pelos Estados Unidos,operandona regiãodesérticadoKuwait,marcaramo fimdeumperíodo,inaugurando,assim,umanovaera.[...]Tudoissoaindaéindeterminado.Aúnicaconclusãocertaéadeque,apartirdeagora,aguerranãoserámaiscomosemprefoi. [...]Aguerra,quesesubmeteuàsmudançasdamodernatecnologia e do sistema demercado, será desencadeada de formas aindamais atípicas. Em outras palavras, enquanto presenciamos uma relativaredução na violência militar, estamos evidenciando, definitivamente, umaumentonaviolênciapolítica,econômicaetecnológica44.

Recentemente, o Chefe do Estado-Maior Geral da Rússia, General ValeryGerasimov, também fez menção à adoção de estratégias mais ecléticas, nãocalcadasexclusivamentenousodoinstrumentomilitar:

A ênfase no conteúdo dos métodos de enfrentamento está mudando emdireçãoaoamploempregodemedidaspolíticas,econômicas,diplomáticas,informacionais e outras medidas não militares, implementadas com oenvolvimentodopotencialdeprotestodeumapopulação.Formasemeiosnão militares de luta têm sido objeto de um desenvolvimento semprecedentes,adquirindoumcaráterperigosoe,àsvezes,violento45.

Assimsendo,acondutados“Estadoscompoderdecombateequiparado”parecesesubordinar,claramente,atrêspremissas:

• Umembatediretocontraas forçasarmadasdosEUAseriaextremamentedesvantajosoearriscadoe,portanto,deveserevitado.

• Outros meios, que não as alternativas militares tradicionais, devem serempregadosna consecuçãodosobjetivosnacionais; isso significaatribuirmaior ênfase às ações políticas, diplomáticas, geoeconômicas einformacionais, em detrimento das ações no campo militar, bem comodesenvolveroutrosmétodosindiretosdeengajamento,como,porexemplo,guerranãoconvencional,operaçõesdeinformaçãoeguerracibernética.

• Dispordepoderiobélicoconvencionalque,emboranãosejasuficienteparalhes assegurar uma vitória militar definitiva sobre os EUA, permita-lhesalterar a relação custo benefício de uma eventual intervenção norte-americana, tornando-a desvantajosa e criando, assim, um impasseestratégico do qual possam tirar proveito, explorando as ambiguidades econtradiçõesdosistemainternacional.

Dessa forma, asopçõespolíticas e estratégicas traçadasporMoscou,PequimeTeerã se desenvolvem, em linhas gerais, de acordo com a seguinte sequêncialógica:

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1. Emprego “agressivo” de meios não militares, apoiados por alternativasmilitares de efeito não cinético (não letais), sobretudo operações deinformaçãoeguerracibernética.Issolhespermitemoldaroambienteaseufavor,reduzindoprogressivamenteainfluênciaeopoderdeingerênciadosEUAemdeterminadaáreageográfica,aomesmotempoquelhesasseguraexpandir sua própria presença no âmbito regional. As iniciativasgeoeconômicasempreendidaspeloschinesesnaÁfricaenaAméricaLatinaseprestamcomoexemplo,assimcomoasaçõeslevadasaefeitoporTeerãjuntoàsforçaspolíticasxiitasdoAfeganistão,Iraque,SíriaeLíbano.

2. Emprego de meios militares para alcançar objetivos estratégicos, sem,contudo,provocarumaintervençãonorte-americana.Issosignificaadmitiruma escalada violenta do conflito até um limite que anteceda uma açãodecisiva do governo de Washington. Nessa fase, é possível observar oempregolimitadodeforçasconvencionais,combinadocomohábilusodeferramentasdiplomáticaseinformacionais,alémdepráticasdeguerranãoconvencional,sobretudo,ointensousodeproxies,comoosrussostêmfeitoapoiandoosseparatistasnolestedaUcrâniaepormeiodemilíciasxiitasedoWagnerGroup,umacompanhiamilitarprivadaaserviçodoKremlin,naguerracivil síria46;bemcomoo IrãpormeiodoHezbollahedo Janudal-Madhi,porexemplo.

3. Eventualempregodecapacidadesdeanti-acessoenegaçãodeárea(A2-AD,na sigla em inglês), valendo-se de sofisticadosmeios aéreos, navais e dedefesa antimísseis, apoiados por operações de informação, atividadescibernéticasedeguerraeletrônica,afimderestringiroingressodeforçasnorte-americanasnoteatrodeoperações.

Essecenárioambíguoedifusotemcolocadoemgrandeevidênciaosconceitosde“GuerraHíbrida”e“ZonaCinza”.DeacordocomHalBrands,o“conflitonazonacinzaéumaatividadecoercitivaeagressivapornatureza,masdeliberadamenteconcebida para permanecer abaixo dos limites de um conflito militarconvencional”47. Ou seja, “a Zona Cinza se caracteriza por uma intensacompetição política, econômica, informacional e militar, mais acirrada que adiplomacia tradicional, porém inferior à guerra convencional”48. O próprioGeneralGerasimovadmiteque“atualmente,oobscurecimentodadistinçãoentreestadodeguerraedepazéóbvio”49.

SegundoJohnTroxell,“aguerradeinformação,guerracibernéticaecompetiçãoeconômicainternacionalnãosãonecessariamentenovasabordagensoumétodosparaosEstadosbuscaremobjetivosde segurançanacional,maso contextoemque estão sendo aplicadas e a importância que assumiram são algosignificativamente novo”50. O que temos, de fato, é o exercício da tradicionalrealpolitik com umportfóliomais diversificado demeios e, talvez, commenosamarras morais. Não apenas os Estados fazem parte dessa dinâmica. Afinal,diante da vigorosa ascensão de atores não estatais (armados ou não) e doadvento da sociedade pós-industrial, a ordem internacional tornou-sevisivelmentemaiscomplexa,apontodecolocaremdúvidaaprópriaeficáciadosistemawestfaliano.

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As disputas geopolíticas sempre foram comparadas a uma partida de xadrez.Entretanto, parecem existir novas regras em um mundo globalizado eprofundamenteafetadopelaRevoluçãoDigital,noqualasdistânciaseo tempoforamvirtualmenteabolidoseopodersensivelmentedegradado51.Imaginemos,então, um tabuleiro que comportamais de dois adversários aomesmo tempo.Algumaspeçassãoautônomas,possuemvontadeprópria,movendo-sedeformaindependente. O perfil de jogo das peças sofre modificações no decorrer dapartida–atorreavançanadiagonalcomoumbispo,eumpeãoretrocedeváriascasas! Os jogadores são livres para se movimentarem sem respeitar o tempodestinado aos outros adversários... Possivelmente, essa analogia retrate oscomplexosdesafiosdoséculoXXIdeformamaisapropriada52.

FIGURA1:RelaçãoentreospapéisestratégicosdoExércitoeasfasesconjuntas.

As implicaçõesde tudo issopara adoutrina expressanoFM3-0 são claras: asforças militares norte-americanas, provavelmente, terão de desempenhar umpapel estratégico importante nas fases que antecedem a deflagração de umaguerratotalounopós-conflito.Decertoserãoexigidascapacidadessofisticadasemdomínios contestadosporadversários compoderiobélicoequiparado.Masmuitodificilmente, travarãoumcombateconvencionalde largaescalaem todasua plenitude, como advogam os mais ortodoxos discípulos de Clausewitz(FIGURA1).

OpróprioFM3-0reconhecequeosadversáriosdosEUApreferematingirseusobjetivossemengajaremdiretamentesuasforçasemcombate53.Evaialém:“asforças opostas retratam inimigos dotados de moderna tecnologia para gerarcombinações de ameaças convencionais, irregulares e disruptivas em cada umdoscincodomíniosenoambienteinformacional”54,ouseja,adversáriosaptosatravaraGuerraHíbrida.SegundooCoronelPatProctor,doExércitodosEUA:

DesdeofimdaGuerradoVietnã,oExércitotevedelutarumtotalinferioratrintadiasdecombatesdealtaintensidade.

No mesmo período, ele travou dezenas de conflitos de baixa intensidade,muitos dos quais duraram anos. Já é tempo de o Exército redefinir a simesmo,nãoapenasparalutarevencerbatalhas,masparalutarevenceras

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guerrasqueaNaçãoexige– incluindoaconfusa fasedeestabilidadepós-conflitodasguerrasfuturas55.

Issonos levaaoutroponto fundamentale irrefutável:vivemosemumaeradepredomínioabsolutodeviolênciaarmadanãoestatal.DeacordocomSebastianGorka, nos últimos duzentos anos, ocorreram 460 guerras, das quais mais de80% foram guerras irregulares, isto é, conflitos protagonizados por atoresarmados não estatais56. Na década de 1990, esse percentual chegou a 96%57,obedecendoàtendênciaidentificadaapósotérminodaSegundaGuerraMundial,em1945,equesemantématéosdiasatuais,comodemonstraaFIGURA2.

FIGURA2:Naturezadosconflitosarmadosentre1946e2017.

DavidKilcullenchamaaatençãoparaofatodeque:

Conflitos entre Estados sempre foram relativamente raros e estão setornandocadavezmenosfrequentes.Poroutrolado,aguerrairregulartemsidohistoricamenteaprincipalformadeviolênciaorganizadaaoredordoplaneta e é provável que continue assim [...] Com o arrefecimento dasguerrasnoIraqueenoAfeganistão,orenovadofocodosEUAemameaçasconvencionais só irá reforçar essa tendência, uma vez que a supremaciamilitar norte-americana significa que nenhum inimigo, no seu juízoperfeito,irápreferirlutarumaguerraconvencionalcontraasforçasnorte-americanas,e isso induztodososseuspotenciaisadversários–estataisounão–aousodemétodosirregulares[...]

Emparticular,osgovernosqueadquiriremarmasnucleares,asquais lhespermitirão dissuadir ataques convencionais, deverão patrocinar ‘guerrasporprocuração’contraseusoponentes”58.

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TalafirmaçãoencontrarespaldonaacirradacorridaarmamentistaqueseseguiuaotérminodaSegundaGuerraMundial.AferozdisputaentreosEUAeaUniãoSoviética,duranteaGuerraFria,levouaumequilíbriodosarsenaisatômicosdeambas superpotências. Os riscos inaceitáveis de uma hecatombe nuclear,postuladosdeacordocomateoriada“DestruiçãoMútuaAssegurada”(MAD,nasigla em inglês – Mutual Assured Destruction)59, descartaram a opção de umconfrontodiretoentreas forçasdaOrganizaçãodoTratadodoAtlânticoNorte(OTAN) e do Pacto de Varsóvia na Europa. Por conseguinte, o embate foitraspassado para a via indireta do Terceiro Mundo. O que se pôde observar,nesseperíodo, foiuma incontidaproliferaçãodeconflitosdebaixa intensidadeaoredordoplaneta60.

Segundo o General Álvaro de Souza Pinheiro, “a probabilidade de conflitos demaior intensidade entre Estados nacionais desenvolvidos está decrescendosensivelmente; mesmo que se aceite a possibilidade realística da eclosão deconfrontaçõesarmadasentreatoresestatais,omaisprováveléqueempreguemmétodos assimétricos de guerra”61. Em um artigo para o Washington Post, ocolunista Max Boot foi ainda mais enfático, assegurando que os EUA estão,simplesmente,sepreparandoparalutaraguerraerrada62.

Naverdade,ossoldadosnorte-americanosseveempresosemumparadoxo,quepoderíamos chamar de “paradoxo do poder hegemônico”. Isto é, os EUA sãoobrigados a envidar esforços e investimentos expressivos, a fim de obter umasuperioridadebélicaincontestável,quelhesdá,apenas,acertezadequelutarãoemguerrasnãoconvencionaiseconflitosassimétricos.Afinal,comoobservouoGeneralRupert Smithemsua consagradaobra “AUtilidadedaForça:aArtedaGuerra no mundo moderno”: “o adversário costuma jogar com as nossasfraquezas e não com os nossos pontos fortes”63. De certa forma, o GeneralMichaelLundyeoCoronelRichardCreedadmitemessaaparentecontradiçãoaoafirmarem que as “forças do Exército não podem se dar ao luxo de seconcentraremexclusivamentenocombateterrestredegrandevultoàcustadasdemaismissõesqueanaçãodelasrequer,mas,aosmesmotempo,nãopodemsedaraoluxodeestaremdespreparadasparaaqueleprimeirotipodeoperaçãoemummundocadavezmaisinstável”64.

Embora o novo FM 3-0 atribua, de forma explícita, ênfase ao combateconvencionalentreforçasregularesdemaiorenvergadura,adoutrinaexpressaemsuaspáginasnãosegrega“operaçõesdeguerra”e“nãoguerra”,admitindoapossibilidadedequeoExércitodosEUA,nodesempenhodetodososseuspapéisestratégicos (FIGURA 1), engaje-se em operações de contra insurgência, ajudahumanitária, assistência militar, dentre outras, no contexto de operações deestabilidademais amplas. Alémdisso, advoga o recurso à guerra irregular nosníveis estratégico e operacional65.Mais importante, ainda, reconhece que umaofensiva calcada no poderio bélico convencional, por mais bem-sucedida quepossaser,talvez,nãorepresenteoatodecisivodeumacampanhamilitar.Afinal,“osucessotáticovencebatalhas,masnãoéosuficienteparavencerguerras”66.

Seusidealizadoressabemquenãosetratadeumaobraacabada.Espera-sequeosdebatesemtornoda“nova”doutrinaestimulemnovasmudanças67.Porém,étemerário que os soldados profissionais cedam à tentação de se dedicarem

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exclusivamente (ou quase exclusivamente) às operações de combate em largaescala,seapegandoaofalaciosoadágio“quempodemais,podemenos”.Afinal,ahistória militar demonstra, de forma inequívoca, que poderosos exércitos,concebidospara travaremgrandesbatalhas de atrito, quase sempre fracassamdiantedeobstinadasforçasirregularesesuastáticasheterodoxas.Comoconstado próprio FM 3-0: “uma força, qualitativa e quantitativamente, inferior podederrotaruminimigosuperior,sepuderditarostermosdocombate”68.Essassãoadvertências importantes diante de “ameaças com poder de combateequiparado”, que têmexibido enormepropensãopara iniciativas apoiadas nosconceitosde“GuerraHíbrida”e“ZonaCinza”.

CONCLUSÃO Os Estados nacionais, como entes políticos, ainda competem acirradamenteentresi,guiadospelaraisond’étatepelospreceitosrealistasdaescoladeHansMorgenthau.Todavia,têmdiversificadoasformasdeenfrentamentoeprocuradoreduziravisibilidadedesuasaçõesestratégicas,emfacedeumaopiniãopúblicacadavezmaisintoleranteeimpacienteemenosdispostaaarcarcomoscustosde uma guerra total. Guerra cibernética, guerra da informação, guerrapsicológicaeoperaçõesclandestinas(BlackOps)sãoapenasalgunsdosrecursoslargamente empregados, de modo conjugado, com alternativas não militares,visandoacomplementar,apoiar,ampliare,sobretudo,evitarumaconfrontaçãoformal69. Por esse motivo, talvez, seja prudente aprofundarmos os estudosrelativosà“GuerraHíbrida”e“ZonaCinza”,enquantobuscamosentendermelhora nova doutrina de “Combate emMúltiplosDomínios” – ainda que esta últimaexerça, naturalmente, maior fascínio sobre o imaginário dos soldadosprofissionais.

Indubitavelmente,adisponibilidadedepoderiobélicoconvencionalsemantémimprescindível,sobretudo,comofatordissuasório.SegundooGeneralLundyeoCoronelCreed:“ofatode[asforçasnorte-americanas]estarempreparadasparaocombateterrestredegrandevultogeraumadissuasãoconvincenteecontribuiparaaestabilidadeemâmbitomundial”70.

Entretanto, não há como negar que a violência armada não estatal, isto é, aguerra irregular, continuará sendo a formamais usual de conflito ao redor doplaneta.Portanto,umexércitoqueestejapreparado,apenas,paraasoperaçõesde combate em larga escala representará mais um estorvo do que um trunfodiantedoscenários“voláteis,incertos,complexoseambíguos”doséculoXXI.Asforças armadas que almejam ser bem-sucedidas deverão, necessariamente, sercapazes de realizar rápida transição entre conflitos que apresentem níveisvariáveis de intensidade, lutando em um ou mais teatros de operaçõessimultaneamente.Mas,alémdisso,elasdeverãodemonstraraptidãoparatravarasguerrasregulareirregularnomesmoteatro,aomesmotempoecomamesmaproficiência. Isso exige que as competências necessárias para sobrepujaradversáriosestataisenãoestataissejam,concomitantemente,desenvolvidasaolongo de todo o processo de preparo profissional da Força e não de formasegregada,comotemsidousual.

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Embora, há muitas décadas, a enorme influência norte-americana sobre adoutrina militar terrestre brasileira seja inegável e indispensável, a meraincorporação de preceitos teóricos vigentes no Exército dos EUA, sem umentendimento mais amplo das circunstâncias que os envolvem, pode,inadvertidamente,noslevaràadesãoaalgumasideiasdissonantesdarealidadenacional, do cenáriopolítico internacionaloudo contextohistóricovividopelahumanidade.Háquese tercautelaquandodiscussõeseminentemente táticasetécnicas têm lugar sem uma clara orientação política e estratégica. Em ummundonoqualaguerravemsendotravadadediferentesformasenão,apenas,pelo fogodos canhões, faz-senecessáriaumavisãomais ampla e coerentedasquestõesligadasàSegurançaeDefesa.Acapacidadeparaconduziroperaçõesdecombateemlargaescaladeformaeficazéessencial,mas,semdúvida,nãoseráosuficienteparasalvaguardarosinteressesvitaisdasociedadeegarantiravitória.

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42.AlessandroVisacro,AGuerranaEradaInformação,p.54.

43.QiaoLiangeWangXiangsui,UnrestrictedWarfare,(Beijing:People’sLiberationArmyLiteratureandArtsPublishingHouse,1999).[Otrechotraduzidofoiextraídodaversãoemportuguêsintitulada“Aguerraalémdoslimites:conjecturassobreaguerraeatáticanaeradaglobalização”,tradutordesconhecido,disponívelemhttps://pt.scribd.com/document/385434327/A-Guerra-Alem-Dos-Limites-Unrestricted-Warfare–N.DoT.]

44.Ibid.

45.ValeryGerasimov,“AGuerraContemporâneaeosProblemasAtuaisparaaDefesadoPaís”,MilitaryReview73,Nº3,EdiçãoBrasileira(TerceiroTrimestre2018),p.45.

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47.JohnArquilla,“PerilsoftheGrayZone”,p.121.

48.Voteletal.,“UnconventionalWarfare”,p.102.

49.ValeryGerasimov,“AGuerraContemporânea”.

50.JohnF.Troxell,“Geoeconomia”,p.24.

51.SobreadegradaçãodopodervideMoisésNaím,OFimdoPoder:nassalasdadiretoriaounoscamposdebatalha,emIgrejasouEstados,porqueestarnopodernãoémaisoquecostumavaser(SãoPaulo:LeYa,2013).

52.Umaanalogiamaisinteressante,comparandooxadrezaoGo,éapresentadaporMarkMcNeilly,SunTzueaArtedaGuerraModerna(RiodeJaneiro:Record,2003),p.37.

53.FM3-0,Operations(Washington,DC:U.S.GPO,Oct.6,2017),p.1-9e3-4.

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54.Ibid.,p.2-54.

55.PatProctor,“LessonsUnlearned:ArmyTransformationandLow-IntensityConflict”,Parameters47,Nº4(Winter2017-18),p.45.

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60.AlessandroVisacro,GuerraIrregular,pp.23-25.

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64.MikeLundyeRichCreed,“FM3-0Operações”,p.10.

65.FM3-0,Operations(Washington,DC:U.S.GPO,Oct.6,2017),p.7-2.

66.Ibid.,p.1-39ep.7-58.

67.MikeLundyeRichCreed,“FM3-0Operações”.

68.FM3-0,Operations(Washington,DC:U.S.GPO,Oct.6,2017),p.1-11.

69.AlessandroVisacro,GuerraIrregular,p.167.

70.MikeLundyeRichCreed,“FM3-0Operações”.

*AlessandroVisacroécoroneldoExércitoBrasileiro.FoideclaradoAspiranteaOficialdaarmadeInfantaria pela turmade 1991 daAcademiaMilitar dasAgulhasNegras. Possui o curso deAltosEstudosMilitaresdaEscoladeComandoeEstado-MaiordoExército.Exerceuasfunçõesdeoficialsubalterno no 29º BIB e no 26º BI Pqdt. Comandou a 3ª Cia F Esp e o 1º B F Esp. Foi oficial deoperaçõesdo2ºBatalhãodeInfantariadaForçadePazdo17ºcontingentebrasileiro,noHaiti,eChefe de Estado-Maior do Comando de Operações Especiais. É autor dos livros Guerra Irregular,LawrencedaArábiaeAGuerranaEradaInformação.