Como um jabuti matou uma onça e fez uma gaita de um de seus ossos

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COMO UM JABUTI MATOU UMA ONÇA E FEZ UMA GAITA DE UM DE SEUS OSSOS

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publicação online com texto escrito durante o processo, roteiro completo e fotos da performance.

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COMO UM JABUTIMATOU UMA ONÇAE FEZ UMA GAITADE UM DE SEUS OSSOS

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p. 04 | COMO UM JABUTI MATOU UMA ONÇA E FEZ UMA GAITA DE UM DE SEUS OSSOS | roteiro

p. 14 | TORNAR UM CÍRCULO O ROSTO DE UM HOMEM

p. 28 | FOTOS DA PERFORMANCE | fotos por Pedro Hurpia

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COMOUMJABUTIMATOUUMAONÇAEFEZUMA GAITADEUMDESEUSOSSOS

ROTEIRO DA PERFORMANCE

Personagens:INTÉRPRETEJABUTI

Na obra, intérprete é representado pelo intérprete e jabuti é representado pela gravidade

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(O intérprete está no espaço, todos os objetos estão agrupados atrás de uma mesa. Enquanto o público entra há, sobre a mesa preta, um ipad ligado a caixas de som, papeís laranjas e um copo laranja. Na frente da mesa, um vaso com uma planta. Sentado na mesa, o intérprete inicia a música Andy WArhol, de dAvid BoWie. O intérprete ouve a música inteira com as mãos entrecruzadas na frente do rosto, encostando os dedões nos dentes. Levanta-se duas vezes no meio da música, sempre apoiando as mãos sobre a mesa. Na primeira vez, pega o copo – que está repleto de tinta laranja – e derrama seu conteúdo sobre a planta. Volta a sentar, deixando o copo na mesa. Na segunda vez, pega o vaso e o coloca sobre a mesa, do lado direito. Aguardo até a música terminar. Inicia lendo o texto).

Boa noite/Boa tarde/Bom dia,

(olha para o público por dois segundos)

As coisas demoram pra acontecer. As maiores tragédias históricas, por exemplo, surgem muito tempo depois do fim das hostilidades. Em função disso, o intérprete gostaria de contar para vocês (pausa breve) a história como um jabuti matou uma onça e fez uma gaita de um de seus ossos. Mas antes, é importante lembrar que (mudança abrupta de tom, discursa sem olhar para a folha) uma revolução social genuína jamais pode ser efetuada por onças, pois são elas que estão no alto e desejam manter o status quo. Nossa “rebeldia”, assim como a delas, é uma farsa. Enfiamos nosso cadáveres para dentro da cloaca, de tal modo que nossos edifícios sufoquem todos em merda real. (volta gradualmente a ler) E no fim, aquilo contra o que nos rebelamos é sempre o fato de, em alguma medida, sermos todos onça.

Justamente por isso atente-se para o fato de que esse discurso é, antes de qualquer coisa, uma fábula. Além de ser uma fabula, é também um manifesto contra a gravidade, cujo teor varia entre

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(O intérprete interrompe o discurso, se levanta, pega a faca laranja e a estaca de madeira. Apoia o queixo sobre a estaca. Permanece assim por exatos dois minutos. Devolve a estaca ao monte. A partir de agora sempre segurará a faca)

O que o intérprete gostaria então de argumentar com vocês é como dois eventos históricos que serão elencados a seguir são, na verdade, (foco) ataques do jabuti registrados e eufemizados historicamente. Na página oito podemos ver nosso primeiro evento, datado de 1962, quando o agente laranja - um hebicida – começa a ser usado como arma química na Guerra do Vietnam, matando toda a vegetação do local. (descritivo e formal) 76 milhões de litros foram espalhados entre 1962 e 1971 em aviões de agricultura, intoxicando e matando em questão de horas toda a vegetação vietnamita, impedindo que soldados se escondessem sob a mata e dizimando plantações que os alimentavam. O agente laranja, além de ter intoxicado milhares de vietnamitas, intoxicou também muitos veteranos de guerra e suas gerações posteriores.

(Levanta-se, pega um cabo de vassoura laranja e o coloca sobre a mesa).

O segundo evento data de 1968, quando a escritora Valérie Solanas atira no artista Andy Warhol. (lendo) O americano Andy Warhol, cujo rosto figura nas páginas 6 e 7 do nosso guia, foi um dos mais importantes artistas do século XX, sendo mundialmente reconhecido por esgarçar e embaralhar os limites entre cultura de massa e arte, reproduzindo milhares de quadros com latas de sopa campbell, rostos famosos e garrafas de coca cola. (descritivo e formal) As 16h30 do dia 3 de julho de 1968, Valerie Solanas dá três tiros em seu peito e se entrega para a polícia logo depois, alegando ter matado o artista pois ele “controlava demais sua vida”. Andy Warhol não morreu, mas sua obra mudou para sempre após o tiro.

(Levanta-se, pega um crânio laranja e o coloca sobre a mesa).

Esses dois eventos históricos, apesar de aparentemente diversos, estão

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intimamente ligados por um fator que raramente aparece nos escritos sobre Valerie Solanas, sempre reconhecida por seu manifesto: Valerie Solanas era coreógrafa. Valerie Solanas coreografava. Valeria Solanas organizava corpos no espaço. Valerie Solanas dançava com uma machadinha. Valerie Solanas dançou, por um tempo, com Andy Warhol, (falando para o público, sem ler e se exaltando durante a fala) o assassino da beleza, o estúpido mascador de chicletes, o homem que controlava sua vida, dominador, seguro de si mesmo, confiante de sua própria capacidade, mordaz, desagradável, violento, egoísta, independente, orgulhoso, em busca de emoções, que ia onde bem entendia, arrogante, que se considerava apto a governar o universo, que já havia percorrido livremente os limites desta sociedade e estava disposto a ir muito mais além do que ela tinha a oferecer. (volta a ler) Valerie Solanas dançava.

(lendo) Em meio à pesquisa para esse trabalho, o intérprete se deparou com alguns vídeos de Solanas dançando, trechos que lhe foram cedidos após uma longa conversa com os detentores dos direitos autorais de Solanas. Sobre o material de vídeo recebido, o intérprete afirma que ele foi, claramente, uma das principais referências para sua dança. O material recebido mostra Solanas coreografando as seguintes ações: (falando para o público, sem ler) dormir, fazer compras, jogar boliche, sinuca, cartas e outros jogos, praticar tiro ao alvo, procriar, ler, passear, sonhar acordada, comer, brincar consigo mesma, tomar pílulas, ir ao cinema, fazer análise, viajar, criar cachorros e gatos, refestelar-se na praia, nadar, assistir t.v., escutar música, decorar sua casa, dedicar-se à jardinagem, cosutrar, ir a clubes noturnos, dançar, fazer visitas, desenvolver seu intelecto e absorver cultura.

(coloquial) Vejamos agora o corpo do intérprete reproduzindo um trecho da primeira coreografia feita por Solanas, em maio de 1963, nomeada “Variação número três sobre a gravidade”. Vejamos o corpo do intérprete encontrando o corpo de Solanas. (lendo, esse sou eu falando) Vejamos Solanas, cúmplice dos meus pensamentos repletos de sangue. Vejamos também as páginas 14, 15 e 30 do nosso guia.

(ao som de vAlerie, de Steve WinWood, o intérprete pega o cabo de vassoura

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e o encaixa entre sua boca e a boca da caveira. Encara a caveira por todo o tempo da música)

(lendo) Favor perdoar o intérprete, essa não era a coreografia. A coreografia era mais ou menos assim (simular leitura breve do texto)

(dança um trecho de Trio A de Yvonne Rainer, só com as partes que ela vai ao chão. Ao descer e realizar o primeiro pulo, se debate no chão como um peixe)

(pausadamente) Entre nós cresce uma parede, vejam o que cresce da parede.

(coloca uma placa no pescoço e dança um trecho de Trio A de Yvonne Rainer, só com as partes que ela vai ao chão. Ao descer e realizar o primeiro pulo, se debate no chão como um peixe)

(assertivo) O projeto humano que mais devemos apoiar é a fuga para Lua, com o único intuito de fugir da gravidade.

(dança o mesmo trecho de Trio A de Yvonne Rainer, só com as partes que ela vai ao chão, mas dessa vez com uma espingarda amarrada ao seu corpo com uma corda. Ao realizar o primeiro pulo, novamente se debate no chão como um peixe. Ao voltar para a mesa, solta a corda)

(coloquial) Dizem que essa dança foi concebida em um período no qual Valérie esboçava os primeiros parágrafos do seu manifesto, curiosamente nomeado JABUTI. (lendo) Ao término desse vídeo breve, cujos frames encontram-se na página 20 do guia, ela lentamente se aproxima da câmera e diz (passando a mão no texto) “se você quer saber alguma coisa sobre mim, apenas olhe para a superfície de meus objetos, está tudo lá”. Andy Warhol aparentemente disse algo parecido com isso, mas isso não importa agora.

(argumenta) O que importa agora é entender como a coreografia de Solanas aponta para a relação entre homem e natureza. (argumentação forte) Por exemplo, nosso objetivo “artístico”, enquanto seres humanos racionais,

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não é comunicar, mas disfarçar nossa bestialidade. (justifica de forma condescendente) É por isso que o intérprete recorre ao simbolismo e à obscuridade (materiais “profundos”). (forte, ponto ápice do argumento) Assim como a onça artista, o intérprete tenta compensar sua incapacidade de viver, sua frustração de não ser um animal, construindo um mundo completamente artificial em que ele é o herói, ou seja, exibe características do jabuti. (sério) O jabuti, por sua vez, é reduzido a papéis limitadíssimos. Na nossa encenação, por exemplo, jabuti está sendo representado pela gravidade (volta para a página inicial para conferir a primeira rubrica).

(vai até uma parede e encosta seis varas de madeira na diagonal na parede. Apoia seu corpo no mesmo ângulo e deixa o peso ceder até cair no chão. Permaneçe no chão por alguns segundos)

(lê com o rosto extremamente perto da folha, só levantando-a nas partes grifadas. Quando levanta, abaixa um pouco o tom) Homens e onças, por sua vez, vivem em uma tentativa desesperada e frenética de se divertir em um mundo sem prazer, de escapar do horror de uma existência inútil e estúpida. Ambos possuem uma extensão muito limitada de sentimentos e, consequentemente, percepções, compreensões e opiniões muito limitadas. São totalmente sexuais, incapazes de se relacionarem com qualquer coisa além de suas próprias sensações físicas e sem nada para expressar além da compreensão de que para eles a vida é sem sentido e absurda. Sem a menor confiança em uma capacidade hipotética de mudar qualquer coisa, resignados ao status quo, (voltando à leitura normal) eles necessitam ver beleza na merda porque até onde se pode ver, merda é tudo que terão.

Assim, vê-se que a classificação “onça artista” é uma contradição em termos. (levantando, exaltado) O verdeiro artista é todo jabuti saudável, que confia em si mesmo, e em uma sociedade de jabutis a única Arte, a única Cultura, serão os jabutis orgulhosos, excêntricos e autênticos se divertindo entre si e com tudo mais no universo. (pausa, senta) Em conclusão, a verdadeira função do jabuti é explorar, descobrir, inventar, resolver problemas, fazer piadas, compor música – tudo com amor. Em outras palavras: criar um mundo mágico.

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(coloquial) Mas, como viver nesta sociedade significa, se tivermos sorte, morrer de tédio, nada diz respeito aos jabutis; portanto somente aqueles dotados de uma mente cívica, de sentido de responsabilidade e de busca por emoções, somente eles serão nossa luz no fim do túnel, dando-nos uma nova possibilidade: derrubar o governo, eliminar o sistema monetário, instaurar a automatização completa e tornar todos máquinas perfeitas (como um comentário menor) Aliás, são sempre os outros que morrem. (pausa longa, dez segundos) Vamos ouvir agora um trecho da gaita de ossos sendo utilizada:

(Uma placa sobre a mesa indica: “página 22”. A música the timeS Are A-chAnging toca enquanto o intérprete troca de camisa e coloca um óculos laranja. Ao fim da música, dirige-se ao pufe e enfia a mão sobre ele, coloca-o sobre sua cabeça e cai lentamente ao chão. Volta para a mesa e coloca uma touca de onça. Algo muda em sua postura corporal)

(melancólico e pesado, como se falasse em um enterro) O intérprete sabe que, no fundo, é só um pedaço de merda desprezível. Dominado por uma sensação de bestialidade que o envergonha profundamente; o intérprete deseja não expressar a si mesmo, mas ocultar dos outros seu ser exclusivamente físico, seu egocentrismo total, o ódio e o desprezo que sente pelos outros seres humanos e que suspeita que os outros seres humanos sentem por ele. Dada a constituição muito grosseira de seu sistema nervoso, facilmente suscetível de ressentir-se pela menor demonstração de emoção ou de sentimento, o intérprete está aqui protegido com a ajuda de um código social perfeitamente insípido, sem a mancha do mais leve traço de sentimentos ou de opiniões perturbadoras. (tira o óculos e fala sem ler) O intérprete acredita em cirurgia plástica, ele nunca lê, apenas olha para as imagens, o intérprete nunca quis ser um intérprete, o intérprete sempre quis ser sapateador, o intérprete preferiria permanecer um mistério, o intérprete nunca gosta de dar seus antecedentes e, de todo modo, ele constrói tudo diferentemente a cada vez que é questionado. (colocando o óculos novamente) Na solidão dos aeroportos o intérprete respira aliviado, o intérprete é um privilegiado. Não é apenas que faz parte da sua imagem não dizer tudo, é apenas que ele esquece o que disse no dia anterior e aí ele precisa construir tudo de novo. De todo modo,

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o intérprete não acha que tem uma imagem favorável ou desfavorável de si mesmo. (voltando para a pose da palestra) Ah, o intérprete também se atreve a ser diferente na medida em que aceita sua passividade e seu desejo de ser um animal: sua bichice. O mais divergente dos seres sobre a Terra é o jabuti, mas, apesar de ser diferente da maioria dos seres humanos, é exatamente igual a todos os outros jabutis. Também funcionalista, busca uma identidade formal: ser uma onça. Trata de livrar-se de todos os seus tormentos, mas ainda não possui nenhuma individualidade. Não estando totalmente convencido de ser uma onça, tremendamente inseguro pela ideia de não ser suficientemente onça, o jabuti se adequa compulsivamente ao estereótipo de animais criado pelo homem e acaba não sendo mais que um pacote de maneirismos afetados. Bom, mas essa é apenas minha coreografia, que não visa progressões sociais, apenas oscila entre o isolamento e a suruba.

(Ao som de orAnge cruSh, de r.e.m., ele realiza a ação de deitar no chão diversas vezes com varetas sobre seu corpo. Segura elas e as solta, como em um pega varetas, aguarda um tempo e repete a ação. Ao término da música, volta à mesa)

(lendo com a folha na frente do rosto, como se segurasse uma arma) Os jabutis destruirão os casais – irão se intrometer entre casais mistos, onde quer que eles estejam, e separá-los. Matarão também todos os homens que não estiverem no Corpo Masculino Auxiliar dos jabutis. Os homens do Corpo Masculino Auxiliar são aqueles que trabalham diligentemente para eliminar a si próprios, homens que, indiferentemente dos seus motivos, fazem o bem, que colaboram com jabutis. Alguns exemplos dos homens do Corpo Masculino Auxiliar constam na página 42 do nosso guia. Tanto a destruição como a matança serão seletivas e bem determinadas. Jabuti é contra as revoltas enlouquecidas, indiscriminadas, sem nenhum objetivo claro e que muitas vezes são fatais para os próprios militantes. Jabuti jamais irá instigar, incentivar ou participar de tumultos de qualquer tipo ou de qualquer outra forma de destruição indiscriminada. Ele se aproximará de sua presa em silêncio, tranquila e furtivamente, e então matará com frieza. A destruição nunca será de tal modo que leve ao bloqueio das vias necessárias ao

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transporte de alimentos e outros artigos essenciais, à contaminação ou ao corte do fornecimento de água, ao bloqueio de ruas e do tráfego a ponto de ambulâncias não poderem circular ou ao impedimento do funcionamento dos hospitais.

(com extrema calma, sem ler) Jabuti continuará destruindo, saqueando, sabotando e matando até que o sistema dinheiro-trabalho não exista mais e a automatização tenha sido totalmente instaurada ou até que um número suficiente de humanos coopere com jabuti para tornar a violência desnecessária à realização desses objetivos, ou seja, até que um número suficiente de humanos destrabalhe ou deixe de trabalhar, comece a saquear, abandone as cidades e se recuse a obedecer a todas as leis inadequadas a uma sociedade verdadeiramente civilizada. Abaixo a felicidade da submissão.

(pega a folha, apoia-a sobre a mesa e vai escorregando lentamente) Onças doentes, irracionais, que tentam se defender contra sua repugnância, quando virem JABUTI avançar em direção a elas, se agarrão aterrorizadas à Grande Mamãe com suas Grandes Tetas Balançantes, mas as Tetas não os protegerão de JABUTI. A Grande Mãmae vai estar agarrada ao Grande Papai, que estará no canto cagando em suas poderosas calças dinâmicas. Já nós gostamos da morte, ela nos excita sexualmente e, já mortos por dentro, desejamos morrer. Nós, que somos racionais, não iremos chutar, lutar ou nos debatermos em desespero. Nós simplesmente nos sentaremos tranquilos, nos divertiremos com o espetáculo e nos deixaremos conduzir pelas ondas de nosso próprio desaparecimento. Os jabutis tomarão as ruas.

(pega uma vareta de madeira, para de costas com a vareta ao seu lado e, realizando com ele o mesmo movimento que realiza com a perna, força-o até ele se quebrar. Tira a touca e o óculos).

A cor laranja ficará como um monumento. Representará, em grandiloquência cêntupla, um jabuti que fez história. A petrificação de uma esperança. O seu nome é insubstituível. A gaita não se concretizou, como podemos ver em...(procura e lê) bom, em todas as páginas do guia. Quanto ao intérprete,

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não entra mais, apenas pede para, se possível, morrer de calça jeans. Seu rosto será uma máscara laranja, com a língua de fora. Solanas, o intérprete desejaria poder assistir à sua morte agora, como assiste a sua própria. Sua coreografia foi essencial. Mas, infelizmente, o intérprete ainda agrada a si mesmo. Isto ainda se masturba, até mesmo com os vermes.

São Paulo, 16 de julho de 2015 (o intérprete deve alterar a data para o dia em que fala)

O jabuti.

(o intérprete retira o tenis, coloca o sapato com salto de 30 centímetros e deita no chão. A partir de agora não levanta mais. A música do Jabuti repete incessantemente...)

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TORNANDOUMCÍRCULOAFACEDEUM HOMEM

TEXTO DE RENAN MARCONDES

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O valor da experiência caiu de cotação, é verdade. Mas cabe somente a nós não apostarmos nesse mercado. Cabe somente a nós compreendermos onde e como “esse movimento [...] ao mesmo tempo, tornou sensível uma nova beleza naquilo que desaparecia” [...] cabe somente a nós, em cada situação particular, erguer essa queda à dignidade, à “nova beleza” de uma coreografia, de uma invenção de formas.

Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes

1.

delimitando o círculo (e apagando-o ao mesmo tempo)

Bartelby, o escrivão de Herman Melville, nunca recusa nada. Pelo contrário: ele prefere não fazer. Dessa forma, como uma planta, vai criando raízes no espaço onde trabalha: começa dormindo no espaço até ser deixado sozinho, vivendo no salão desocupado pelo seu antigo chefe, uma vez que expulsá-lo se prova impossível (pois até mesmo essa ação pressupõe uma reação de Bartelby). O escrivão, sem nada fazer, toma os espaços, transforma seus colegas de trabalho, resiste. Mas como seria possível algum tipo de resistência, se na linha acima está escrito que ele nada faz?

É essa a pergunta que mais me mobiliza hoje, enquanto pesquisador e criador de algo que venho nomeando enquanto performance desde 2011. Inicialmente a pergunta, ainda disforme, tem a ver com a própria possibilidade de não fazer, ou mesmo de não conseguir deixar de fazer, dentro de um trabalho de arte. Seja no teatro, na dança ou na performance, essa pergunta é problemática, pois esbarra em uma concepção enraizada de que essas linguagens tem um vínculo direto com o corpo humano e seu

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discurso próprio, suas potências. Como criador, não acredito nisso, até porque não acredito que haja – em nenhuma linguagem artística – algum tipo de ontologia, elemento essencial ou característica de base do qual devemos partir para que possamos nomear a coisa produzida como uma pintura, como cinema ou como música. Ou seja, para mim não é um pressuposto que as chamadas artes performativas tenham como base o corpo. O que scredito que exista, no caso disso que chamamos linguagens artísticas, é a criação de produtos históricos – aglutinados por interesses comuns e algum tipo vago de proximidade teórica – cuja revisitação de sua própria forma é, possivelmente, o único ponto em comum em relação a esses produtos. Isso é certamente um sintoma que ainda carregamos de determinada concepção de arte fundada no final do século XIX e começo no XX, no qual – por razões sociais – a arte precisa se tornar um campo de produção autônomo vinculado à burguesia que não opera mais funcionalmente em relação à uma sociedade. Essa concepção, estofada de valores modernos (revolução francesa, revoluções industriais, surgimento da crítica e da impensa, etc.) é justamente o que nos abre campo para podermos negar qualquer tipo de pureza ou ontologia.

A performance é paradoxal nesse sentido, pois sua afirmação e definição mais constante encontra seu fundamento no argumento acima apresentado: a performance nasce da mistura de linguagens; a performance não tem lugar; a performance nega a estrutura de arte criada no período moderno (salões, museus, galerias, academias). Todas as alternativas, apesar de parcialmente corretas quando analisadas e relacionadas historicamente, parecem hoje absurdamente frágeis quando tornam-se caminhos de possíveis definições do que seria a performance. Isso porque tais argumentos sustentam a performance como função, ou procedimento, e não como gênero, que é a atual forma que ela possui (Marina Abramović é inegável nesse aspecto) ou tenta possuir.

Tentarei explicar como vejo essa diferença. O termo performativo, oriundo dos atos da fala pesquisados pelo linguista J. L. Austin em seu livro de 1962 Os atos da fala relaciona-se com determinados verbos que, no póprio ato de sua enunicação realizam uma ação, isso é, tem resultado efetivo dentro

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de determinados contextos sociais previamente compostos. O caso clássico, do casamento, no qual o noivo ao dizer “eu aceito” realiza a ação de aceitar (diferentemente de dizer “eu corro”, pois a enunicação não realiza a ação), é um bom caminho para pensarmos por que esse verbo inspirou o nome de um tipo de produção, mesmo ela já acontecendo desde os anos 1920 (Cabaret Voltaire, Bauhaus), sem necessidade de um nome específico. Ele vem como apoio a uma necessidade de presentificação, do reforço da atualização e experiência que pode haver entre um espectador e um acontecimento artístico. Isso possivelmente se evidencie dentro do campo das artes visuais pois é nela que a ausência do corpo, que a transformação imediata em mercadoria e que o aceite da reprodução (como podemos ver em gravuras, fotografias e afins) falam mais alto. Isso também tem raízes importantes no final do século XIX e no romantismo, no qual a figura do artista e sua vida ganham ainda mais proeminencia histórica em relação a sua obra. Dessa forma, a obra torna-se testemunho, amálgama e centralizadora do corpo do artista (Van Gogh, Gauguin, Cézanne), perpetuando suas questões e vivências mesmo após sua morte. A questão é que essa suposição pode vir a suprimir o próprio corpo do artista, além de necessitar de um aparato teórico-histórico para julgar, validar e determinar a permanência dessa obra-corpo. É nesse caminho – somado à experiência de duas guerras mundiais – que o corpo dos artistas volta reclamando uma experiência imediata, desinstitucionalizada e marginal em relação a esse aparato moderno. Essa reclamação, porém, não é referente a uma volta ou surgimento de um corpo, mas sim da constante lembrança de que os objetos “de arte” que sustentam esse aparato são construídos por corpos. Não é a toa que os primeiros experimentos que recebem o nome de performance ou que tem características performativas são de artistas cujas pesquisas iniciam-se em linguagens como a pintura e a escultura (Pollock, Gutai Group, Yves Klein, Marinetti, Oiticica). A preocupação é encontrar procedimentos de esgarçamento, prolongamento e problematização desses meios a partir do corpo em contexto – talvez o material mais pulsante dos anos 60 e 70.

Realizando um salto para nosso século XXI, já em sua segunda década vemos a performance passar por um momento no qual a discussão centraliza-

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se mais em seu lugar como um gênero, ou uma linguagem, do que como função, procedimento crítico. O perigo desse transposição é estereotipá-la e reificá-la a partir da série de alternativas elencadas acima como possíveis definições de seu uso. Essa estereotipia vem muitas vezes agregada a um entendimento no mímino pradronizado, ou reificado, do termo performance que usamos comumente, fora do circuito artístico, no qual a performance é um termo de teor positivo, produtivamente falando: a boa performance do carro, a performance satisfatória do funcionário, ou seja, a boa execução, a execução diferencial. Até mesmo quando analisada antropologicamente (Schechner, Carlson, Turner) sua função social está relacionada com a demontração de habilidades, evidenciação de uma diferença, restauração de um comportamento cotidiano pela sua negação ou hiperbolização.

Nesse contexto, de um entendimento usual da performance como produtivo e de execução satisfatória, nós artistas devemos ser extremamente cautelosos para não nos tornarmos um artista “iluminista”, de corpo pretensamente liberto, consciente e lúcido e cuja ação apresentaria, denunciaria e poderia mesmo vir a transformar as mazelas de uma sociedade repressora, machista, capitalista, burocrática e ignorante. Esse cuidado me parece necessário pois essa é justamente a visão mais esperada possível de se ter de um performer e a que mais reberverará positivamente, mesmo porque ela transita do micro – intervenções urbanas que demonstram como os trabalhadores são cegos e alienados – até o macro – Lady Gaga como a propositora de novas formas artísticas do mundo pop mas treinada pelo método Abramović e apoiadora da causa LGBT.

É apenas uma hipótese, mas talvez o reforço crescente em reafirmar institucionalmente a performance como gênero seja um modo de estagná-la. Não é à toa que, nesse movimento, muitos debates se abram a partir de eventos como a nomeação de um “método” pela artista Mariana Abramović. Propor um método seria perpetuar ou interromper um movimento de pensamento gerado pelo que foi nomeado enquanto arte da performance? Penso que aceitar essa dissolução e apropriação da performance pelo mercado e pelas instituições não apenas seria um posicionamento cínico e pós-moderno (no

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sentido de pressupor que não há diferenciação nos modos de experiência sensível a partir dessas apropriações por outras interfaces) mas é também aceitar uma possível estagnação do que moveu a performance nos últimos anos, como se não houvesse mais para onde ele ir.

Não quero acreditar nisso. O que vem me interessando é uma busca pelas próprias contradições que a performance encontra em seu caminho para se tornar um gênero. Isso não significa para mim nem aceite de seus clichês (Carlos Monroy, La Pocha Nostra) nem uma negação prévia do termo (Tino Sehgal, Laura Lima, Tunga), como diversos artistas fazem. Interesso-me pela performance, acredito nela, mas tento sempre observá-la de um ponto de vista distanciado, ponto do qual me parece que precisamos aceitar seu diálogo com as outras artes da cena e, principalmente, com a ideia de obra artística.

Talvez por isso passe meses ensaiando, talvez por isso decore textos, crie coreografias, escreva roteiros. Porque me interessa a performance a partir de uma perspectiva processual e funcional, e não línguistica ou argumentativa. Interessa-me a performance justamente por ela ainda configurar, em alguma instância, um campo aberto de peças que podem ser juntadas a fim de conceber uma obra. Não acredito que ela esteja mais próxima do real do que outros meios ou linguagens artísticas, pelo contrário. Não acredito que seu acontecimento promova uma relação mais direta com o mundo do que a que podemos ter com uma pintura ou um livro, por exemplo. Acredito que essas inúmeras ações, de ordens absolutamente distintas, que englobamos sob o guarda-chuva da performance (mesmo quando não são assim chamadas, como nos casos acima citados) precisam ser entendidas pelo caminho do alargamento, e jamais da definição. Tê-las como novas peças que nos lembrem a todo instante que outras peças ainda podem surgir, e que, pela reconfiguração destas, esse surgimento será inevitável. Nesse sentido, faz pouco sentido a preocupação em nomear como performance, dança, teatro ou qualquer outro nome que interesse. Para a obra criada, isso é o que menos importa. Até mesmo porque essa significação tende à reificação e me parece perigosa no momento. Chamemos do que for mais conveniente, de acordo

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com repertórios prévios e expectativas futuras (pois elas sempre existirão). Mas entender os nomes também como peças móveis, que territorializam o trabalho mas não o reificam pode ser importante para o processo produtivo.

Hoje, posso falar que faço performance, que faço dança, que faço teatro. Justificativas teóricas seriam facilmente encontráveis para todos os casos. Mas eu prefiro não oferecê-las. É essa preferência que nos leva de volta a Bartelby e a uma conversa mais demorada sobre minha pesquisa. Abaixo, algumas palavras a partir de interesses e procedimentos que se apresentam em minha pesquisa.

2.

Preenchendo-o com ações

i. Primeira ação: APAGAMENTO | A simulação de um discurso lógico e coerente permeada por ações que esvaziem ou ressignifiquem essa suposta coerência

A primeira vez que um discurso falado aparece em meus trabalhos é em Formulações ao insuporte (2014), no qual me proponho a explicar o título do trabalho enquanto vou colocando um pão inteiro na boca, de modo a impedir que as palavras saiam de modo compreensível. Esse aparente discurso, que ao invés de se clarear, vai se apagando, reapareceu no meu mais recente trabalho, Como um jabuti matou uma onça e fez uma gaita de um de seus ossos (2015). Nas primeiras versões dessa obra, eu começava contando uma história (que supostamente corresponderia ao título da obra, também apresentado), que partia de uma fábula do Esopo. Após apresentá-la, dizia que mostraria uma imagem muito importante para a compreensão da história, mas quando virava o livro havia apenas um recorte fundo nas páginas e uma área chapada laranja. Aqui, o primeiro apagamento ocorria, pois o que indicava como uma imagem supostamente representativa da história era apenas uma área de cor. Mostrada a imagem, descrevia a história contada da seguinte forma, junto à ação de colocar um pequeno cubo no chão: “Essa

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é a história de um objeto muito pequeno que se livrou de seu tamanho”. A falta de proximidade em relação a essas três apresentações da história (narrada, mostrada e explicada) já indicava que o trabalho se constituiria por uma série de relações abertas. Esse procedimento, que se inicia como um alívio explicativo, gradualmente se revela uma simulação vazia, na qual as coisas faltam (falta a imagem, falta a dicção para o fim da explicação, etc.).

Na versão final do trabalho, essas diferentes apresentações se complexificaram, pois optei por permear as imagens corporais que fui desenvolvendo com um texto supostamente explicativo, falado como uma palestra. Esse texto, que mistura trechos do “SCUM manifesto”, de Valerie Solanas (feminista radical que tentou assassinar Andy Warhol) , falas de Andy Warhol e trechos da peça Hamlet máquina, do dramaturgo alemão Heiner Müller, é ainda catalisado por um livreto que cada pessoa do público recebe. Essa catalisação se deve ao estabelecimento de relações entre texto, livro e imagem, as quais são indiretas e, ao invés de explicarem ou concluírem um argumento, abrem-no.

Penso e desejo que as artes constituam-se mais como fenômeno de ruptura do que como um fenômeno argumentativo. Alcançar e efetivar cenicamente esse processo certamente é um processo difícil, pois estamos programados para o entendimento e apreensão do mundo, de modo que uma arte da não-compreensão muitas vezes é negada de antemão. Porém, para chegarmos verdadeiramente nessa arte, talvez precisemos passar pela explicitação de como a argumentação e a linguagem são elementos centrais em um processo de reificação do mundo.

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ii. Segunda ação: DESLOCAMENTO | Partir das relações de peso para lidar com os objetos, comparando-se ou distanciando-se deles

Tendemos a achar que usar um objeto é um processo unilateral de ação humana sobre o objeto passivo. Contra isso, procuro encontrar um eixo intermediário a partir das propriedades físicas do objeto (sua forma, peso, densidade, textura), mas com foco principal em seu peso e resiliência. A relação tem sido cada vez mais de comparação ao corpo, através de ações que visam repetir com o corpo humano os modos de comportamento dos objetos, nas quais encontro outros modos de se mover e de me relacionar com o entorno. Como geralmente me disponho lado a lado ou muito próximo deles (em meio a uma série de canudos de madeira, justaposto a uma tábua de madeira, sobre gizes, sob um gaveteiro de aço), essa zona de encontro tende a dotar os objetos de humanidade – ou reforçar a objetificação em se ver um corpo performando algo. É muito claro esse processo desde as minhas performances mais antigas, como Desassossego (2012), obra na qual ficava durante 4 horas tentando repousar meu corpo sobre ou sob fragmentos de estruturas de madeira. Vejo nesse caso que, apesar de não haver clareza no tipo de relação estabelecidade entre corpo e objeto (clareza que foi surgindo com o tempo de pesquisa) nessa obra, nela havia uma constante experimentação com o objeto a partir de suas propriedades físicas, que por vezes aceitavam o peso do meu corpo e por vezes não me aguentavam, fazendo com que eu caísse, tombasse, escorregasse ou me machucasse. Esse procedimento leva a outro ponto importante das escolhas: a queda.

iii. Terceira ação: QUEDA | Escorregar, cair, desequilibrar, tombar, tropeçar, enfim, mover-se em direção ao chão

Se um objeto pode cair, um corpo humano também pode. Em Manual civilizador para um peso sem nome (2013), eu me agachava sobre o assento

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de uma cadeira e puxava seu encosto até cair de costas no chão. Ao final do mesmo trabalho, eu me punha de pé sobre a cadeira, com a tábua sobre ela, andando em direção ao outro lado da tábua até que ela caísse e me levasse ao chão. Em Formulações ao insuporte tentava me equilibrar sobre um corpo de prova de concreto (uma estrutura cilíndrica de concreto usado como teste de resistência do material) vinte vezes, e sempre caía. Em Como um jabuti... me apoio em diagonal sobre uma parede e me movimento lentamente até cair no chão. Assim como proponho quedas corporais em meu trabalho, quedas objetuais também são constantes: Em Manual..., uma tábua de madeira apoiada em minhas costas é jogada no chão por um leve movimento de minha coluna, em Formulações... um azulejo se quebra ao ser soltado pelas minhas mãos em direção ao chão, em Como um jabuti... realizo três vezes a ação de deitar e tentar equilibrar todas as varetas de madeira sobre minha barriga, sendo que eles sempre caem, como em um pega-varetas em escala ampliada. As quedas são sempre momentos de pausa em meus trabalhos, como se elas fossem o ponto final da relação [para com determinado objeto estabelecida por mim, são extremos que se formalizam, pontos no qual a ação chega a um limite e não pode mais continuar, não pela exaustão, mas por uma impossibilidade do corpo em relação à gravidade. Mostrar quem vence na relação entre dois vetores, ainda mais quando apenas um intenta a ação.

iv. Quarta ação : CORTE SECO | Não desenvolver a ação, não deixa-la se transformar, reforçar o caráter programático e demonstrativo do trabalho

Em meus trabalhos, não existe um percurso no qual uma ação se transforma na outra e dá prosseguimento ao trabalho. As ações são pensadas como imagens que possuem um começo, um meio e um fim (que geralmente é marcado pelas quedas citadas acima). Do chão onde termino, me levanto e começo outro procedimento do zero, que apesar de estar conceitualmente e dramaturgicamente vinculado ao anterior, poderia existir por si só. É como

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escrever em aforismos ou desenvolver pequenos haicais sobre um determinado tema, e deixar que entre eles haja espaço para que o espectador estabeleça a relação e complete as lacunas que existem (essa talvez também seja minha estratégia ao escrever o presente texto). Esse procedimento reforça também que houve um ensaio, um planejamento e uma programação para o que está sendo atualizado em cena. A ideia de um acontecimento único, original, me desinteressa em absoluto, talvez por eu acreditar que sua existência é impossível. O que me interessa de acontecimento é o modo como os vetores de força entre os dois corpos e a gravidade operam naquele momento. Porém, é importante controlar esse acontecimento para que ele não ultrapasse o mero jogo de forças e se transforme em representação forçada da relação estabelecida (claro, existem ações que possibilitam isso mais do que outras). Esses cortes secos acompanham uma escolha de recusa à iluminação ou sonoplastia nos trabalhos, dando mais espaço para uma crueza desejada. Não se demonstra nada com ilusão.

3.

Tornar o círculo a face de um homem

Acho que fiz um trabalho difícil. Difícil para o público, difícil para mim. Não faço ideia se isso é um demérito para o trabalho ou não, mas gosto de acreditar que não. Basicamente, Como um jabuti matou uma onça e fez uma gaita de um de seus ossos é, para mim, um trabalho sobre a própria possibilidade de se criar uma obra de arte e de alcançar transformações a partir dela. Isso porque sempre nos encontramos em um limite tenso entre um exercício individual de autopromoção, aceitação e exaltação de ação e um outro exercício, ideal e utópico, de proposição de crenças, valores e vontades de mudanças que nos ultrapassem. Longe de me posicionar em um dos lados desse jogo, busquei na obra evidenciar essa condição inescapável do processo e da obra artística. Esse embate encontra pontos de concentração nas figuras de Andy Warhol e Valerie Solanas, diametralmente opostas: enquanto Andy Warhol sintetiza a figura cínica ou ingênua do artista homem que apenas produz incansavelmente, Valerie Solanas surge como uma das

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primeiras figuras revolucionárias e extremistas do movimento feminista, desenvolvendo um curto e denso manifesto de teor utópico, impessoal, violento, engajado, completamente contrário às falas de Andy Warhol. Essa separação é muito próxima àquela das figuras de Hamlet e Ofélia em Hamlet máquina, de Heiner Muller: no texto de Muller, enquanto o “ator-Hamlet”, sem drama para representar, acaba por voltar para dentro da armadura do seu pai, Ofélia, presa em uma cadeira de rodas debaixo do mar, grita para as sociedades futuras, sendo um movimento latente (porém inaudível) da revolução. Essses opostos são unidos, embaralhados e reorganizados, tendo como substitutos as figuras da onça e do jabuti.

A intensa pesquisa desses assuntos teve início a partir de dois interesses latentes: a cor laranja e o título da obra, originalmente o título de uma lenda indígena. Com o processo de produção do trabalho, esses interesses se mesclaram por figuras, imagens, referências históricas, textos: o agente laranja, “SCUM manifesto”, Hamlet máquina, “Trio A” da coreógrafa Yvone Rainer, a performer feminista Valie Export, fábulas de Esopo, o “Prêmio Jabuti”, o “jabuti” do congresso... Esse universo aberto, na forma de inúmeros hiperlinks, foram condensados, em grande parte, no guia de acompanhamento que é distribuído no início do trabalho. Esse livro, assim como o texto falado, entra como um modo de introduzir esse aparato supostamente teórico que se descontrói ao longo do trabalho, já que as indicações de página não tem nenhuma relação direta com as ações realizadas ou com o que está sendo dito no momento.

Da mesma forma, o texto começa como um discurso de apresentação da obra, das referências principais e de uma suposta argumentação da relação entre essas referências para, gradualmente, substituir essa fala por uma outra, contraditória devido à sobreposição dos materiais de Solanas, Andy Warhol e Heiner Müller. À medida que essa transformação se dá, interferências surgem no meu corpo: uma roupa e touca de oncinha são colocadas, óculos e meias laranjas se revelam; enfim, o sujeito do discurso, exaltando a revolução do oprimido (ou do jabuti), revela-se gradualmente como sendo a onça, ou seja, o sujeito do discurso dominante. Ao mesmo tempo, revela-se que o jabuti, na

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encenação, é representado pela gravidade, essa força inescapável que rege os corpos e seus movimentos.

No texto, sempre refiro a mim mesmo na terceira pessoa, como “o intérprete”; esse inicial estranhamento encontra certa medida de explicação ao final do texto, quando se dá a entender que todo o texto foi escrito pelo próprio jabuti, como uma voz imanente que, não conseguindo se pronunciar autonomamente, recorre ao intérprete para se fazer ouvir e estabelecer sua crítica. Claramente essas figuras discursivas são apenas balizas para falar de uma problemática geral da nossa relação ocidental de mundo, que diferencia sujeito de objeto e, com isso, pressupõe um modo de ver um mundo dual, com ativos x passivos, sujeitos x objetos, homens x mulheres, jabutis x onças.

Com isso, chega-se a um trabalho que não possui um discurso claro e muito menos apresenta um posicionamento, mas sim abre janelas intercambiáveis, pistas falsas, caminhos sem conclusão e apontamentos para futuras reflexões a partir desse quebra-cabeça apontado (e que se encontra também materializado na forma de pequenas placas no chão com fragmentos de imagens referentes ao universo pesquisado).

Alguns problemas ainda parecem existir na obra, como a dificuldade de estebelecer o sujeito construído do discurso como uma imagem montada e não como algo a ser levado a sério por toda a obra. Sinto que é tão automática nossa relação com essa figura, professoral e discursiva, que talvez seja preciso anunciar mais fortemente a escolha dessa figura como uma imagem irônica do sujeito do discurso. Outra questão é a dificuldade de abertura e interesse que há para trabalhos que visem uma lógica não-discursiva, da “não-compreensão”, da ruptura e do dissenso. Um grande espectro dos trabalhos que vem sendo produzidos, em diversas linguagens artísticas, opta por um discurso claro e bem enunciado, que demonstra posicionamentos políticos e apresenta verdades (voltamos aqui para o caso do cinismo ou do engajamento direto iluminista do artista contemporâneo). Meu interesse é outro, é apresentar o problema, imaginar imagens que incidam no meio dele e que o esgarcem ainda mais, deixando zonas abertas para a relação do

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público com elas, que não operem apenas pela ordem do entendimento ou da poesia, mas sim de um pensamento crítico e reflexivo sobre o mundo que nos rodeia. De forma utópica e certamente ingênua (como uma boa síntese de Warhol e Solanas) talvez o que mais me interesse seja, a partir do trabalho, que alguém possa olhar para uma laranja sobre a mesa e lembrar que, na passividade da sua cor, pode estar a síntese de uma revolução social futura.

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fotos

POR PEDRO HURPIA

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PROJETO CONTEMPLADO COM O PROAC PRIMEIRAS OBRAS DE DANÇA 2014