COMO VIVE OS NEM-NEM - Universidade de Coimbra · ca que a forma como os currículos são escritos...

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31-10-2018 COMPORTAMENTO. CERCA DE10% DOS JOVENS ESTÃO A DERIVA COMO VIVE OS NEM-NEM Não estudam nem trabalham: muitas vezes por falta de opções ou de dinheiro para estudar. Retrato de uma geração esquecida e sem rumo. Por nina Arsénio O s dias de Sara Ascenso começam cedo, por volta das 7h40. Faz o peque- no-almoço ao namora- do. normalmente uma sanduíche, e às vezes até lhe prepara um lanche. Isto nos dias em que ele dorme na casa dela. A seguir, tenta comer al- guma coisa e volta para a cama Não tem motivo para ficar a pé tão cedo. Não há trabalho — mesmo depois de ter enviado mais de 30 currículos — nem aulas. Dorme mais umas horas até a chamarem. "Acordo com a mi- nha avó a chamar-me para o almo- ço e a dizer: "Então, já não chega de dormir?", conta à SÁBADO a jovem, de 21 anos, que vive em casa dos pais com a avó. De tarde, trata dos animais da casa — dois cães, dois coelhos, duas tartarugas e um hámster —, em seguida vai buscar o irmão. de 15 anos, à escola. Muitas vezes faz o jantar, gosta de preparar uma lasanha caseira ou uns bifes com cogumelos. Depois sai para beber um café. Os dias sucedem-se com a mes- ma rotina monótona É assim há mais de seis meses. "Acho que de- via ser uma pessoa mais activa, mais ambiciosa. Os meus pais estão sempre a dizer que devia arranjar um trabalho. A minha situação tor- na-se chata para eles, porque vêem que não saio disto... É triste para eles e para mim." Sara Ascenso é uma jovem nem- o Com 21 anos, Sara Ascenso já enviou mais de 30 currículos, mas o telefone não toca há seis meses O número de jovens nem- -nem baixou no primeiro tri- mestre de 2018. Dos 22 milhões de jovens. 197 mil estão nesta situação EM PORTU- GAL UM EM CADA SETE JOVENS, DOS 15 AOS 29 ANOS, É N EM -NEM: NÃO ESTUDA NEM TRABALHA -nem, não trabalha nem estuda, ou NEEF (que significa Nem Emprego, Educação ou Formação), mas não é a única. São vários os relatórios que fazem um retrato desta gera- ção. De acordo com os dados do estudo Education ata Glance 2018, Portugal está em 10Q lugar. no ranking de jovens nem-nem, numa lista de 31 países da Organi- zação para a Cooperação e Desen- volvimento Económico (OCDE). A conclusão é que um em cada sete jovens, dos 15 aos 29 anos. é nem-nem. O sociólogo Elísio Estanque ex- plica à SÁBADO que estas situa- ções estão marcadas também pelo insucesso escolar. Aponta ainda a falta de estímulos, o sistema de ensino ou situações específicas relacionadas com ambientes de maior dificuldade socioecónomi- ca. "A falta de recursos acaba por contribuir para que se crie uma lógica de bola de neve, sempre a aumentar e muito difícil de dei- xar." Mesmo assim, o Eurostat re- vela que a percentagem de nem- nem não piorou, é exactamente a mesma que em 2007/08, ou seja. de 11,2%. "Houve aqui uma oscila- ção à volta de 10 ou 11 anos". con- ta Elísio Estanque. "Porém, duran- te o período mais intenso da crise. houve um aumento intenso do de- semprego jovem e do número da- queles que não estavam a estudar nem a trabalhar, como resultado da crise económica e das dificul- dades que o País enfrentou." A psicóloga clínica Catarina Lucas diz que a maioria destes casos não são por escolha própria. E acres- centa que é nos jovens com menos habilitações que se registam núme- ros mais elevados de inactividade. "Talvez isso aconteça porque quanto mais formação o jovem ti- ver, mais oportunidades surgirão." Trabalhar por menos de €3/hora Sara Ascenso quis apostar na forma- ção, mas nem tudo lhe correu como tinha imaginado. Estava a tirar um curso de massagista a partir do Ins- tituto de Emprego e Formação Pro- fissional (IEFP). mas foi cancelado por falta de alunos. Esta era uma forma de concluir o 12Q ano. "Tive de me desenrascar e procurar equi- valência num curso à noite, que não dá continuidade à profissão", conta à SÁBADO. Lá acabou por concluir os estudos a partir de um curso de Educação e Formação de Adultos (EFA), em Junho passado. E agora

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31-10-2018

COMPORTAMENTO. CERCA DE10% DOS JOVENS ESTÃO A DERIVA

COMO VIVE OS NEM-NEM Não estudam nem trabalham: muitas vezes por falta de opções ou de dinheiro para estudar. Retrato de uma geração esquecida e sem rumo. Por nina Arsénio

Os dias de Sara Ascenso começam cedo, por volta das 7h40. Faz o peque-no-almoço ao namora-

do. normalmente uma sanduíche, e às vezes até lhe prepara um lanche. Isto nos dias em que ele dorme na casa dela. A seguir, tenta comer al-guma coisa e volta para a cama Não tem motivo para ficar a pé tão cedo. Não há trabalho — mesmo depois de ter enviado mais de 30 currículos —nem aulas. Dorme mais umas horas até a chamarem. "Acordo com a mi-nha avó a chamar-me para o almo-ço e a dizer: "Então, já não chega de dormir?", conta à SÁBADO a jovem, de 21 anos, que vive em casa dos pais com a avó.

De tarde, trata dos animais da casa — dois cães, dois coelhos, duas tartarugas e um hámster —, em seguida vai buscar o irmão. de 15 anos, à escola. Muitas vezes faz o jantar, gosta de preparar uma lasanha caseira ou uns bifes com cogumelos. Depois sai para beber um café.

Os dias sucedem-se com a mes-ma rotina monótona É assim há mais de seis meses. "Acho que de-via ser uma pessoa mais activa, mais ambiciosa. Os meus pais estão sempre a dizer que devia arranjar um trabalho. A minha situação tor-na-se chata para eles, porque vêem que não saio disto... É triste para eles e para mim."

Sara Ascenso é uma jovem nem-

o Com 21 anos, Sara Ascenso já enviou mais de 30 currículos, mas o telefone não toca há seis meses

O número de jovens nem-

-nem baixou no primeiro tri-mestre de 2018. Dos 22 milhões

de jovens. 197 mil estão nesta situação

EM PORTU- GAL UM EM CADA SETE

JOVENS, DOS 15 AOS 29 ANOS, É

N EM -NEM: NÃO ESTUDA

NEM TRABALHA

-nem, não trabalha nem estuda, ou NEEF (que significa Nem Emprego, Educação ou Formação), mas não é a única. São vários os relatórios que fazem um retrato desta gera-ção. De acordo com os dados do estudo Education ata Glance 2018, Portugal está em 10Q lugar. no ranking de jovens nem-nem, numa lista de 31 países da Organi-zação para a Cooperação e Desen-volvimento Económico (OCDE). A conclusão é que um em cada sete jovens, dos 15 aos 29 anos. é nem-nem.

O sociólogo Elísio Estanque ex-plica à SÁBADO que estas situa-ções estão marcadas também pelo insucesso escolar. Aponta ainda a falta de estímulos, o sistema de ensino ou situações específicas relacionadas com ambientes de maior dificuldade socioecónomi-ca. "A falta de recursos acaba por contribuir para que se crie uma lógica de bola de neve, sempre a aumentar e muito difícil de dei-xar." Mesmo assim, o Eurostat re-vela que a percentagem de nem-nem não piorou, é exactamente a mesma que em 2007/08, ou seja. de 11,2%. "Houve aqui uma oscila-ção à volta de 10 ou 11 anos". con-ta Elísio Estanque. "Porém, duran-te o período mais intenso da crise. houve um aumento intenso do de-semprego jovem e do número da-queles que não estavam a estudar nem a trabalhar, como resultado

da crise económica e das dificul-dades que o País enfrentou."

A psicóloga clínica Catarina Lucas diz que a maioria destes casos não são por escolha própria. E acres-centa que é nos jovens com menos habilitações que se registam núme-ros mais elevados de inactividade. "Talvez isso aconteça porque quanto mais formação o jovem ti-ver, mais oportunidades surgirão."

Trabalhar por menos de €3/hora Sara Ascenso quis apostar na forma-ção, mas nem tudo lhe correu como tinha imaginado. Estava a tirar um curso de massagista a partir do Ins-tituto de Emprego e Formação Pro-fissional (IEFP). mas foi cancelado por falta de alunos. Esta era uma forma de concluir o 12Q ano. "Tive de me desenrascar e procurar equi-valência num curso à noite, que não dá continuidade à profissão", conta à SÁBADO. Lá acabou por concluir os estudos a partir de um curso de Educação e Formação de Adultos (EFA), em Junho passado. E agora

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A realidade nacional Somos um Caso à parte da realidade europeia

Num estudo revelado em Junho. pelo Garantia Jovem. programa europeu coordenado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP). os jovens nem-nem, ao contrário dos do resto da Europa, são so-bretudo jovens desemprega-dos. em contraste com os i nact I-vos. Outro dado é que a taxa NEEF é mais elevada entre os jovens dos 20 aos 24 anos.

continuar a estudar ou arranjar um emprego? "Pensei estudar mais. mas os meus pais não têm dinheiro para me pagarem um curso. Tenho de re-correr aos cursos financiados". diz.

Teve dois empregos. mas ne-nhum deles foi bem-sucedido. Tra-balhou. enquanto estudava à noite,

num cabeleireiro das 9h às 18h. sem contrato, para receber €200 ao fim do mês. Depois esteve num café para desenrascar. Ganhava €2,50!hora e trabalhava das 15h às 23h. Nenhum dos empregos durou mais de um mês. "Sempre que ti-nha oportunidade ia entregar currí-culos [em lojas e supermercados]. Fui a cinco entrevistas, mas nunca me chamaram. Uma vez fui à Pu1l&Bear e parecia mesmo que es-tavam a precisar. Criou-se ali uma ilusão. Disseram-me que me liga-vam durante a semana, mas nada. Estou há 6 meses sem receber um telefonema", diz, desmotivada. E desabafa: "Sem experiência, nin-guém me vai dar emprego."

A psicóloga Catarina Lucas expli-ca que a forma como os currículos são escritos ou enviados prejudica as hipóteses de o candidato ser chamado. "É importante que nos diferenciemos. e isso. às vezes, está nos pequenos detalhes. Quando o jovem não é chamado, é importan-te que faça uma análise sobre os

52,8% de mulheres

A maioria dos jovens

nem-nem em Portugal são

mulheres, segundo o INE

"OS MEUS PAIS PODIAM NÃO ME DAR

DINHEIRO QUANDO

PEÇO... ESTOU

ACOMODA- DA"

motivos para que isso esteja a acontecer e redefinir a estratégia ou empenhar-se no desenvolvi-mento de competências em falta e no que o mercado procura."

Existem culpados? Se não trabalham nem estudam. a pergunta mais comum será: como é que a geração NEEF se sustenta? Na maioria das vezes. o dinheiro vem dos pais. Este é também o caso de Sara. "Não são grandes valores. Por exemplo. a minha mãe soube que eu ia sair no outro dia e deu-me 10 euros. Fui a Milfontes passar o fim--de-semana e os meus pais deram--me 40 euros." Mas acrescenta: "Podia pedir e eles podiam não me dar. Se calhar, isso era mais um incentivo para me fazer à vida. Lá está, estou acomodada."

Catarina Lucas diz que perante as dificuldades, os jovens habi-tuam-se à mesada dos pais. "Não sei se podemos falar em culpados, mas ao longo dos anos temos as-sistido a uma tendência para o ex-cesso de protecção dos pais, para um facilitismo através do qual não se aprende a verdadeira dificulda-de das coisas. Foi ensinado a esta geração que podem ter tudo sem grande esforço. o que a tornou menos preparada para a adversi-dade. Além disso. foi vendida a ideia de que estudar garantia um bom trabalho. mas quando a altu-ra chegou. não foi o que aconte-ceu, o que aumenta a frustração e a desmotivação."

Assim como Sara, também Jaime Brito. de 19 anos, assume que são os pais que lhe dão dinheiro. Po-rém, o percurso de Jaime é diferen-te. Fez a escolaridade pelo ensino regular [escolheu Humanidades], na Escola da Apela, na ilha da Ma-deira (Funchal). Depois, em 2017, foi para o continente tirar o curso de Comunicação Social. mas aca-bou por ficar apenas um semestre. "Não senti que fosse a minha voca-ção. Também não tive direito a bolsas e vindo das ilhas é compli-cado suportar custos", diz. Catarina Lucas explica esta falta de empe-nho. "É uma geração muito focada no agora. no prazer e na O

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O realização imediata. Tem pouca capacidade de se projectar no futu-ro e de traçar um caminho para lá chegar. É uma geração que não consegue encontrar um propósito para a sua vida."

Jaime está inscrito no Centro de Emprego há seis meses. Não queria estar parado. Ainda só teve um emprego: num restaurante de sushL Servia às mesas. "Estive lá cerca de dois meses. Tinha um vencimento de €650, mais gorje-tas. Saí porque era muito stressante e não condizia com a minha perso-nalidade. Experimentei o trabalho de cozinha, ou seja, fazer os rolos de sushi, lavar o peixe, escamar, pi-car, etc. Não tinha jeito."

Agora, está desempregado há um mês e, ao contrário de Sara, tem um objectivo bem definido. "Quero arranjar um trabalho mais calmo e poupar dinheiro. Assim que tiver o suficiente vou para o Porto ou Lisboa tirar o curso de preparador físico."

Geração com pressa Joana (nome fictício). de 25 anos, fez o 12Q ano a partir de um curso profissional, o de auxiliar de infân-cia. Já teve alguns trabalhos diver-sificados: trabalhou numa creche como auxiliar durante dois meses, numa empresa de telemarketing por quatro meses e numa empresa de limpezas apenas dois. "Agora, o último trabalho que tive foi co-

o Elisio Estanque, sociólogo na Universidade de Coimbra, defende que a situação não tem piorado e que terá sido mais complicada durante a crise

A psicóloga Catarina Lucas diz que esta geração tem pouca resistência à frustração, por isso desiste mais facilmente

"ESTA GERAÇÃO É

IMEDIATISTA E POUCO

TOLERANTE À FRUSTRA- ÇÃO, O QUE DIFICULTA O

PROCESSO DE INTEGRA-

ÇÃO NO TRABALHO"

mo auxiliar de idosos, a cuidar de uma senhora. Estive lá durante oito meses", revela.

A jovem está desempregada há quatro meses. "Enviei mais de 15 currículos para todo o lado. mas só fui a uma entrevista". Joana confessa que mesmo que a chamassem não

Dicas A psicóloga Catarina Lucas

explica como contrariar a tendência

Cursos Não ficar de braços cruzados e apostar na formação pessoal

e profissional dos jovens

Manter-se ocupado Através de estágios, por exemplo, no estrangeiro,

voluntariados ou iniciativas de criação do próprio negócio

Pais Têm de ser incentivados Sensibilizar os pais para a necessidade de treinarem os filhos para a resiliência

aceitava qualquer coisa. "Se as con-dições não são boas e pagam mal, não aceito", explica. Apesar de gos-tar de trabalhar com crianças, quer experimentar algo novo. O seu so-nho é formar-se como maquilha-dora. "Tenho metade do dinheiro, são 1.500 euros. A minha mãe tam-bém me vai ajudar, mas quero ar-ranjar um trabalho certo e conciliar com o curso."

O dia-a-dia destes nem-nem não é multo diferente. Todos costumam levantar-se cedo, para tentarem estar activos. Só Jaime costuma levantar-se por volta das 10h e de-pois de almoçar vai ter com os ami-gos. "Vou até ao café, tento abstrair-me dos stresses da vida. Ao fim-de-semana bebo um copo, mas são dias demasiado pacatos", revela o jovem de 19 anos. Joana, por vezes leva o sobrinho à escola e tem aulas de condução, enquanto espera por melhores oportunidades. "Esta é uma geração imediatista e pouco tolerante à frustração", explica Ca-tarina Lucas. "Isso dificulta o pro-cesso de integração no mercado de trabalho. Há uma expectativa elevada por parte dos jovens— à qual o panorama actual de empre-go não consegue corresponder." O

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N NE : OS JOVENS QUE NEM TRABALHAM NE;M ESTUUNM:

Sara tem 21 anos e está desempregada. Diz que já enviou mais de 30 currículos. E apenas um dos ca-

Sociedade 7

sos que retrata a geração nem-nem. Mas especialistas dizem que estes jovens são pouco resibentes