Compartilhando imagens

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1 Compartilhando imagens, peixes e habilidades 1 Rafael Devos UFSC Resumo: Este trabalho apresenta experimentações em hipermídia com coletivos de pesca, através do engajamento da câmera em técnicas corporais e cadeias operatórias implicadas nas práticas de vigia de cardumes, navegação de canoas não motorizadas e arrasto de rede na praia. Com montagens em videos, panoramas interativos e paisagens sonoras online a pesquisa se inseriu em meio às trocas de pescadores que compartilham imagens com smartphones da presença dos cardumes nas praias e no mar, em meio a um sistema de cognição distribuída, junto à comunicação pelo rádio e outras formas tradicionais de obter e confirmar “notícias de peixe”, em um monitoramento coletivo dos cardumes na paisagem costeira de Santa Catarina. De forma mais ampla, o trabalho sugere entender o uso de “novas tecnologias”, hipermídia, sem dissociá-las da tecnicidade de práticas coletivas e sistemas de conhecimento artesanais. Palavras-chave: imagem, pesca, hipermídia, percepção ambiental A contribuição deste texto ao debate da mesa redonda “Antropologia Visual e Hipermídia: práticas de pesquisa entre a circulação das imagens e a inscrição etnográfica” parte de uma experiência de pesquisa de campo, com a produção de imagens de pesca artesanal, compartilhadas na internet 2 . Meu objetivo aqui é pensar uma relação entre imagem, etnografia e hipermídia que ocorre durante, e não após o encerramento do trabalho de campo. O uso do audiovisual e tecnologias hipermídia em redes sociais nos provoca a participar de um processo coletivo de reflexividade a partir de imagens que são trocadas através de telefones e computadores pessoais pelos nativos da pesquisa, imagens que evidentemente, servem a outros propósitos para além da etnografia. 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Este texto resulta de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto "Lugares Acontecem: mapeamento em hipermídia de itinerários, práticas cotidianas e percepções ambientais na produção da paisagem urbana”, financiado pelo CNPQ – Edital MCTI/CNPQ/Universal 14/2014.

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Compartilhando imagens, peixes e habilidades1

Rafael Devos

UFSC

Resumo: Este trabalho apresenta experimentações em hipermídia com coletivos de

pesca, através do engajamento da câmera em técnicas corporais e cadeias operatórias

implicadas nas práticas de vigia de cardumes, navegação de canoas não motorizadas e

arrasto de rede na praia. Com montagens em videos, panoramas interativos e paisagens

sonoras online a pesquisa se inseriu em meio às trocas de pescadores que compartilham

imagens com smartphones da presença dos cardumes nas praias e no mar, em meio a

um sistema de cognição distribuída, junto à comunicação pelo rádio e outras formas

tradicionais de obter e confirmar “notícias de peixe”, em um monitoramento coletivo

dos cardumes na paisagem costeira de Santa Catarina. De forma mais ampla, o trabalho

sugere entender o uso de “novas tecnologias”, hipermídia, sem dissociá-las da

tecnicidade de práticas coletivas e sistemas de conhecimento artesanais.

Palavras-chave: imagem, pesca, hipermídia, percepção ambiental

A contribuição deste texto ao debate da mesa redonda “Antropologia Visual e

Hipermídia: práticas de pesquisa entre a circulação das imagens e a inscrição

etnográfica” parte de uma experiência de pesquisa de campo, com a produção de

imagens de pesca artesanal, compartilhadas na internet2. Meu objetivo aqui é pensar

uma relação entre imagem, etnografia e hipermídia que ocorre durante, e não após o

encerramento do trabalho de campo. O uso do audiovisual e tecnologias hipermídia em

redes sociais nos provoca a participar de um processo coletivo de reflexividade a partir

de imagens que são trocadas através de telefones e computadores pessoais pelos nativos

da pesquisa, imagens que evidentemente, servem a outros propósitos para além da

etnografia. 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB. 2 Este texto resulta de pesquisas desenvolvidas no âmbito do Projeto "Lugares Acontecem: mapeamento em hipermídia de itinerários, práticas cotidianas e percepções ambientais na produção da paisagem urbana”, financiado pelo CNPQ – Edital MCTI/CNPQ/Universal 14/2014.

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Gostaria de contribuir a este debate com algumas reflexões que tenho realizado

com colegas da UFSC, e também com outros colegas do GT de antropologia da técnica,

pensando como câmeras portáteis, celulares, aplicativos, radio comunicadores,

webcams são instrumentos articulados às práticas e habilidades importantes na cadeia

operatória da pesca artesanal. Tais práticas são pensadas aqui para além do seu aspecto

econômico, refletindo sobre seu aspecto ecológico, destacando-se sua eficácia técnica

nos conhecimentos e relações com o ambiente litorâneo.

Imagem 1: foto compartilhada durante a temporada 2016. Autor: Gabriel Constâncio. Fonte:

http://www.facebook.com. Último acesso em 20/06/2016.

Reflito aqui sobre a eficácia das práticas dos pescadores em acompanhar o

movimento dos cardumes na costa oceânica, de antecipar a entrada dos cardumes em

um espaço possível de captura pelas suas redes, o que motivou nossa pesquisa em curso

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desde 2013, nas praias da cidade de Florianópolis, ilha e capital de Santa Catarina. Da

pesquisa participam meus colegas, os professores Gabriel Coutinho Barbosa e Viviane

Vedana, para a qual também já colaboraram estudantes de graduação e pós-graduação

da UFSC.

Imagem 2: site do projeto - http://verpeixe.tumblr.com/ último acesso em 20/06/2016.

No litoral sul do Brasil e sobretudo no litoral de Santa Catarina, nos meses de

maio a julho vive-se intensamente a temporada de pesca da tainha. Trata-se de um

fenômeno sazonal que insere novos ritmos na paisagem litorânea, com a chegada de

ventos frios, correntes de água gelada, cardumes de milhares de tainhas seguidos de

golfinhos, pinguins, baleias, gaivotas e urubus, que se encontram com coletivos de

pescadores, redes e embarcações. As tainhas ganham destaque aparecendo na praia, nas

ondas, nas peixarias, nos restaurantes, em memes do facebook, em vídeos e fotos que

circulam no whatsapp, em reportagens de tv e jornal.

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Imagem 3: compartilhada durante a temporada 2016. Fonte: http://tainhanarede.blogspot.com.br. Último

acesso em 20/06/2016.

Imagem 4: foto compartilhada durante a temporada 2016. Fonte: http://www.facebook.com. Último

acesso em 20/06/2016.

A pesca toma o lugar até então ocupado por banhistas, surfistas, turistas. A

previsão do tempo está atenta aos ventos que trazem tempo frio e chuvoso, ao invés de

sol e calor. Os boletins de ondas diários dão lugar aos boletins de peixe. É o que os

coletivos de pesca procuram saber: em qual praia, em qual direção os cardumes de

tainha “se mostraram”, onde vão aparecer em seguida, onde pode dar peixe, hoje.

A prática da vigia é a base deste conhecimento do ambiente litorâneo. Na pesca

artesanal, com canoas a remo e redes de arrastão na praia, a vigia é o começo de todo o

esforço de pesca. Ao longo da costa, valendo-se de seu relevo e disposição em relação

ao mar e à incidência de correntes marinhas, são reerguidos alguns postos de

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observação em locais apropriados para se perceber no mar a eventual presença de

peixes. Destinados a abrigar os vigias do nascer ao pôr do sol, durante toda a

temporada, esses postos são constituídos de bancos, palanques e mesmo pequenos

barracos situados uns ao longo da praia, sobre a areia e em dunas, outros sobre pedras e

encostas de morros. Nas praias mais extensas alguns dos vigias podem ficar

percorrendo-a a pé, de bicicleta ou motocicleta durante todo o dia.

Posicionados a vários metros de distância do mar, os vigias são os camaradas de

pesca que enxergam fugazes manifestações dos velozes peixes, que se mostram muito

brevemente na extensão do oceano. Através desta habilidade perceptiva, os bons vigias

sabem avaliar o número aproximado de peixes no cardume (entre dezenas, centenas ou

milhares), diferenciar a espécie do cardume (entre tainhas, anchovas, bonitos,

manjuvas) e estimar sua velocidade e direção. Em suas interações com a praia, com os

ventos, o mar e as ondas, os vigias desvendam o ambiente e percebem suas variações,

ritmos e movimentos que indicam a presença das tainhas e os meios de cercá-las. Os

vigias têm um papel importante na sincronização dos movimentos de canoas e redes

com os movimentos de águas e cardumes, cabendo a eles orientar os demais pescadores

na canoa e na praia sobre como lançar a rede: o momento de saída, a direção e a

velocidade a seguir com a canoa, a abertura da curva a ser feita e o retorno à praia, a

linha desenhada pela rede na água e o posicionamento do copo, parte central da malha

da rede, que é retirada por último da água com a maioria dos peixes cercados. Do

desempenho do vigia pode depender a diferença significativa entre matar algumas

poucas dezenas ou milhares de tainhas em um único lanço com a rede. A cadeia

operatória da pesca na praia começa, portanto, com a prática da vigia, e desta depende.

Embora o vigia seja reconhecido como a autoridade para assegurar a informação

correta sobre os cardumes na praia, seu saber se dá em relação às manifestações de

muitos agentes que podem ser pensados em um sistema técnico, no qual as imagens

compartilhadas somam-se às informações sobre o ambiente, com atenção especial às

ações dos peixes. As tainhas “se mostram” de várias maneiras. Quando há correntes de

sul e a água fica “limpa”, manifestam-se na forma de manchas avermelhadas em

contraste com a claridade do mar. Se a água está “suja”, mas o vento é de calmaria,

mostram-se melhor na forma de aguadas, arrepios, agitações na superfície do mar. Em

águas agitadas, aparecem saltando ou correndo dentre as ondas, refletindo raios solares.

Outros animais, como golfinhos que perseguem os cardumes de tainha, confirmam sua

presença. Já pássaros que mergulham para capturar pequenos peixes indicam a presença

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de cardumes de outras espécies. Embarcações que lançam suas redes em locais distantes

da praia indicam, além da presença de um cardume, a provável direção que tomarão os

peixes que escapam da rede, a depender da direção do vento e das correntes marítimas.

O mesmo vale para os peixes que são vistos ou cercados em outras praias, aqueles que

escapam podem se direcionar ao espaço de captura de outra parelha. Mais do que ver os

peixes, os vigias estimam mudanças na formação e movimentação de vários cardumes

ao longo da costa.

São padrões de relações, na forma como Gregory Bateson (1972) entende tal

conhecimento ecológico, que depende mais de revelação do que de representação. Cada

nova manifestação no ambiente acrescenta diferenças nestes padrões de relações, que o

vigia considera ao tomar sua decisão do momento certo de anunciar o lanço, pois

mesmo o ruído da entrada da canoa no mar, o agito dos camaradas na praia e a

colocação da rede informam também ao cardume que precisa escapar. As tainhas

também vigiam o ambiente e os pescadores. Neste sistema complexo que se assemelha

ao que Hutchins (2001) chama de cognição distribuída, mesmo as imagens que circulam

nas redes sociais de tainhas capturadas em outras praias são apreciadas como novos

sinais de possíveis atualizações nestes padrões de relações, tendo assim, sua parte na

cadeia operatória que resulta em uma nova captura.

Imagem 5: foto compartilhada durante a temporada 2016. Fonte: http://www.facebook.com. Último

acesso em 20/06/2016.

Não há oposição entre novas tecnologias e a técnica da pesca artesanal, neste

caso. A pesca segue artesanal, apostando na eficácia da vigia, da canoa não motorizada

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e do corpo coletivo de pescadores e redes no arrastão na praia. Antes de aprofundar tal

reflexão, um breve relato de um dia de trabalho de campo e uma sequencia em vídeo

apresentam em detalhes este sistema em ação:

Imagem 6: foto a partir de webcam de boletim das ondas. Fonte: http://inparadise.com.br/boletim-das-

ondas/barra-da-lagoa-ao-vivo. Último acesso em 20/06/2016.

“Enquanto nos direcionamos para o campo, consulto no smartphone duas

webcams posicionadas estrategicamente na praia da Barra da Lagoa. Disponibilizadas

por websites ligados ao turismo e ao surfe, elas mostram ao vivo a movimentação nas

primeiras horas do dia, em dois pontos da praia. Nas imagens é possível ver o que já

acompanhei em vários momentos do trabalho de campo: a observação do mar nas

primeiras luzes do dia, a chegada dos camaradas em frente ao rancho de pesca, o

posicionamento da canoa na beira do mar. Consulto no mesmo site e em outros a

previsão do clima e sobretudo dos ventos – direção, velocidade e hora prevista de

alterações. O vento fraco de norte indica calmaria, pouca intensidade, assim como as

imagens dos pescadores na praia pela webcam não denunciam a presença de cardumes

para o lanço. Se muitos pescadores se concentram na volta da canoa, ou apontam para o

mar, é sinal de peixe. Não é o caso nesse dia.

No ponto de vigia do Baía, em meio às dunas, passam logo cedo moradores do

bairro, querendo trocar “notícias de peixe”. Baía conta que viu apenas alguns peixes

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pulando nas ondas. Seu vizinho informa o que um primo lhe contou: na praia do

Santinho, ao norte da Barra da Lagoa, capturaram naquela manhã uma manta de 2000

tainhas. Baía avalia que com o leve vento de norte, os peixes que escaparam da rede no

Santinho podem se deslocar para a Barra da Lagoa. É o que ele informa ao vigia

Leandro pelo radio, fique atento, pode correr um magote, cardume entre dezenas e

poucas centenas de tainhas. Outro vizinho se interessa pela notícia, e corre para buscar

sua tarrafa em casa, pode aparecer peixe na praia, o que é bom para a pesca com a rede

grande da canoa, mas também para a pequena tarrafa. Uma embarcação é vista ao longe,

partindo do canal que liga a Lagoa da Conceição ao mar. Pela cor e tamanho da

embarcação, os vigias sabem quem são os pescadores a bordo. É gente que entende do

assunto. Comentam a direção que a embarcação adota: norte, confirmando a notícia

recebida pela manhã. Mas outros barcos no horizonte seguem para sul, colocando novas

suposições de onde pode haver peixe. O vigia Marquinhos mostra no telefone fotos que

recebeu pelo whatsapp, do maior lanço até agora da temporada, ocorrido dias atrás na

praia do Farol de Santa Marta, em Laguna, ao sul de Santa Catarina: 40 toneladas de

peixe! Se entrasse um vento sul forte, durante um ou dois dias, os cardumes que vêm do

sul poderiam chegar até à costa de Florianópolis, sejam de Laguna, 100km distante, seja

do litoral do Rio Grande do Sul, 800km distante, da boca da Lagoa dos Patos, onde os

filhotes de tainha crescem durante o ano, antes de saírem em grupos de milhares para a

desova na época da temporada de pesca. Seu movimento atravessando o litoral da

Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e São Paulo é avaliado

constantemente entre os pescadores, durante a vigia. Pelo rádio, chegam informações do

patrão da canoa, Chinho. Capturaram naquela manhã na praia do Santinho 2000 tainhas,

na praia dos Ingleses 600 e na praia da Lagoinha, 1.800 tainhas. Todas ao norte, em

Florianópolis.

As tainhas começam a se mostrar em pequenas quantidades na beira da praia.

Em frente ao rancho de pesca, os pescadores começam a se reunir lentamente em torno

da canoa, na expectativa de iniciar o lanço da rede. Nos aproximamos, equipamentos a

postos, na espera para gravar o lanço. Chinho mostra em seu smartphone os grupos de

pesca no whatsapp de que participa, todos rigorosamente fechados – só pescador!

“Turma da tainha SC”, grupo de pescadores de todas as modalidades – com canoa a

remo, motorizados, de grande ou pequeno porte, amadores. “Bota a canoa”, grupo

exclusivo de patrões de canoas não motorizadas de pesca tradicional, das praias da

cidade de Florianópolis e regiões próximas. “Informações de pesca”, grupo que alguns

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vigias de praia, pescadores embarcados e amigos articularam. Mas até mesmo o grupo

de “boletim das ondas”, vira um espaço de notícias sobre as condições do mar para

pesca, mais do que para o surfe, que passa a ser proibido na maioria das praias da ilha

durante a temporada. Nos grupos são trocadas piadas, memes, provocações entre

amigos, mas principalmente informações diárias das condições do clima, do mar e os

sucessos com a pescaria de cada parelha, o coletivo de pescadores, embarcações e redes.

- A gente mente um pouquinho - alerta Chinho, para desconfiar das quantidades

capturadas, que são sempre arredondadas em uma porcentagem a mais. A confirmação

da quantidade vem depois, na pesagem em toneladas quando passa-se de milhares de

peixes. A notícia do peixe é dada durante ou depois da captura, nunca antes. Se há peixe

no mar, sinalizado pelos vigias, os pescadores disfarçam a tensão até o momento certo.

Evitam apontar para o mar, ou fazer muita agitação. Assim como vigiam os peixes,

vigiam os outros pescadores e por eles são vigiados, pelo movimento no mar à

distância, pela internet, pelo telefone, pelo rádio. Com um binóculo gigante, Miguel

observa uma embarcação ao longe, para norte – Está jogando a rede, viram peixe lá! O

binóculo é para olhar os barcos, mas o peixe, só o vigia vê. Os cardumes que se

aproximam da praia são disputados pelas parelhas não motorizadas que fazem o cerco

na beira da praia e pelas pequenas embarcações, que podem fazer a captura a partir de

150 metros do litoral. O cardume precisa portanto entrar no espaço de captura, para se

lançar a rede. Mas o lanço com a canoa a remo, e mais ainda com o barco motorizado

pode espantar o cardume, pois as tainhas, espertas, vigiam os pescadores, os barcos e a

praia. Desviam sua rota imediatamente, e para superar esse corpo coletivo que é o

cardume, o movimento da parelha precisa também de ritmo e sincronia.”

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Imagem 7: vídeo disponível no site do projeto. http://verpeixe.tumblr.com. Último acesso em

20/06/2016.

As imagens que realizamos na pesquisa são feitas a partir de um engajamento

nesta mesma cadeia operatória da pesca, pois estamos submetidos à mesma

temporalidade entre os momentos de espera e vigia e o vigor do momento do lanço,

adotando as mesmas formas dos pescadores chegarem até o cardume, através do cerco

com a rede. São imagens que se inserem em um fluxo de imagens que são trocadas entre

eles, em que o desafio é conseguir fotografar ou gravar a maior quantidade de peixes na

praia, e seus efeitos nas comunidades onde a tainha circula. As imagens alimentam o

ciclo dessas práticas, informando novas possibilidades para o próximo cerco.

Imagem 8: foto de um lanço de 37 mil tainhas, em Bombinhas, SC, compartilhada durante a temporada

2016. Autor: Santiago Asef. Fonte: http://www.facebook.com. Último acesso em 20/06/2016.

É neste sentido que me refiro à inserção dos smartphones e sistemas de

comunicação por rádio nas práticas da pesca artesanal como uma continuidade dessa

técnica, entendida por Marcel Mauss (2003) como tradicional e eficaz. Seu componente

tradicional implica na sua realização e transmissão de forma coletiva, em meio à

socialidade e às trocas entre os pescadores em suas redes de parentesco e vizinhança.

Tradicional e eficaz na forma como essa modalidade de pesca mantém as relações entre

os coletivos de pescadores e destes com a praia e os peixes. Se as modalidades de pesca

industrial são mais eficazes em capturar toneladas de peixes longe do litoral, a pesca

artesanal é mais eficaz em trazer para a praia os cardumes e também os moradores da

cidade. A reciprocidade para com quem participa do esforço do lanço agrega um valor e

um sabor diferente ao peixe fresco, com areia da praia, que circula de forma diferente

nas trocas entre vizinhos e clientes.

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Imagem 9: foto compartilhada durante a temporada 2016. Fonte: aplicativo whatsapp. 17/05/2016.

Como nos aponta Manuela Carneiro da Cunha, os saberes tradicionais de

comunidades como estas não são um nome diferente, uma classificação diferente de um

recurso natural, mas antes, formas diversas de conhecer e se relacionar com o ambiente,

capazes de perceber outras nuances do comportamento social dos peixes nas suas

relações com este mesmo ambiente.

Entender essa ampliação da prática da vigia na praia como um sistema de

monitoramento dos cardumes no litoral de Santa Catarina implica entender que se trata

de um conhecimento que é menos sobre a espécie das tainhas e sua natureza, e mais

sobre as relações dos cardumes com cada uma das praias conhecidas pelos pescadores

em suas especificidades na maneira como são voltadas para norte, leste ou sul e

expostas aos ventos e correntes destas direções, com grande extensão ou formato de

pequenas baías, rodeadas por dunas ou por costões, próximas da entrada de lagoas e

rios, tendo cada curva e cada pedra nomeadas a partir da pesca: “Saragaço”, “Ponta do

Marisco”, “Vigia do Paço”, “Pedra da Baleia”, “Vigia da Cruz”, “Ponta do Siliveira”,

entre outros tantos.

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Em contato com outros pescadores da costa sul do Brasil, comentam que

grandes mantas de tainha foram vistas no litoral do Rio Grande do Sul, que escaparam

dos barcos em Rio Grande, que vieram das águas frias do Uruguai, ou ainda, que

chegaram até os Estados ao Norte de Santa Catarina. É como se o vigia enxergasse

muito mais do que a praia à sua frente, vigiando o movimento das tainhas por

quilômetros no oceano, aguardando sua passagem em frente ao seu ponto de vigia,

torcendo para que os cardumes escapem de outras redes.

Imagem 10: compartilhada durante a temporada 2016. Fonte: http://tainhanarede.blogspot.com.br.

Último acesso em 20/06/2016.

O conhecimento implicado nesta habilidade é preciso, portanto, com relação ao

ambiente. Não é uma representação, uma metáfora, uma alegoria com relação ao peixe,

mas uma inferência que corresponde à presença dos cardumes em coordenadas precisas.

Não é tanto o que é um peixe que trata tal conhecimento, seu modo de existência

importa no sentido de conhecer o que estão fazendo os peixes e como chegar até eles.

Para aprender a ver peixe na vigia, é preciso entender essa prática como revelação à

atenção do pescador, e não transmissão de conhecimento, como nos apresenta Ingold

(2010), a partir de Bateson (1972) e Gibson (1986). Revelação do conhecimento

decorrente de uma ecologia sensível, na qual o mundo se abre para o corpo através do

engajamento do vigia com as coisas e a paisagem. Este conhecimento que é parte do

fazer-se vigia é descoberto através das pistas que consegue reconhecer nas águas, marés

e ventos, nas sutis transformações do ambiente, um saber que se desenvolve na

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observação de outros pescadores, daquilo que estes mostram ao enxergar o peixe no

mar, mas também a partir de como a tainha se mostra.

Vigiar portanto é mais do que perceber com os olhos a presença do peixe em

determinado instante. Podemos situar o que é ver neste contexto, nas reflexões de James

Gibson (1986) sobre a matriz ambiental envolvida na percepção visual. A percepção

visual do vigia é um gesto que se distribui amplamente entre o ponto de vigia e os

demais lugares em relação a este. O vigia não olha apenas em perspectiva, e não é a toa

que não faz uso de binóculos ou outros instrumentos de ampliação da visão, porque sua

visão é panorâmica. Varre a área completa da praia e avalia relacionalmente o que está

acontecendo a cada instante em seu campo de visão – o que se passa com a sucessão das

ondas e as pequenas alterações que podem indicar a presença do peixe, as manchas

escuras na água que se movem seja indicando a sombra das nuvens, seja alternando

movimentos que podem indicar a presença do cardume. Avalia a direção em que tais

alterações se movem, pois precisa antecipar o momento em que um cardume entra no

espaço de captura onde a rede será lançada.

Imagem 11: foto panorâmica disponível no site do projeto. http://verpeixe.tumblr.com. Último acesso em

20/06/2016.

Para também ver e sentir os peixes, através das imagens, foi necessário fazer

como os pescadores, vigiar os movimentos diversos da paisagem, seja no mar, seja na

praia por parte dos camaradas da pesca. O desafio de capturar, com a câmera, o

encontro dos pescadores com os cardumes reproduz a mesma percepção em uma

imagem corporal, como sugere David MacDougall (2006), percorrendo a praia

horizontalmente na imagem, como o vigia, e atravessando constantemente o limite para

dentro, ou para fora d’água, alternando a posição da câmera na superfície da água na

praia. Por outro lado, foi necessário aguardar junto com eles cada mudança da

paisagem, para participar de diferentes momentos da cadeia operatória da pesca

artesanal, que implica não apenas maneiras de agir, mas ritmos na maneira de

concatenar cada gesto em relação à matéria e os ritmos de transformação do ambiente,

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na forma como entende Leroi-Gourhan (1970) as cadeias técnicas operatórias. As

imagens precisam ser feitas no mesmo esforço coletivo.

O conhecimento necessário à pesca artesanal não reside, portanto, na cabeça ou

mesmo no corpo de um indivíduo, como comenta Hutchins (2001), sobre essa cognição

distribuída entre diferentes maneiras de participar da prática da pesca (na vigia,

remando na canoa, puxando a rede na praia, etc) que implicam em diferentes maneiras

de desenvolver correspondências (INGOLD, 2013) com o movimento do cardume e do

mar, através da rede, da canoa, da beira da praia ou mesmo das notícias trocadas

diariamente.

Imagem 12: Perfil do projeto Pesca Artesanal da Tainha na região de Ibiraquera SC. Fonte:

http://www.facebook.com. Último acesso em 20/06/2016.

Adotando a reflexão de Lemonnier (2013), é possível entender que as conversas

durante a vigia sobre as notícias de peixe, as avaliações por parte dos pescadores, as

trocas de imagens e narrativas dos dias anteriores são já a pesca acontecendo

novamente, são uma outra parte da cadeia operatória da pesca artesanal, menos

perceptível do que a sequência de gestos na praia arrastando a rede. São essas conversas

diárias, ampliadas nas redes sociais através dos aplicativos nos smartphones que

permitem ao vigia conferir outros significados diários quanto ao que acontece a sul ou

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norte da praia em que se encontra. As notícias importam também na avaliação da

“safra”, a maneira como se referem a quantidade de peixes somada de todas as

modalidades no esforço pesqueiro no litoral, levando em conta mesmo os estudos sobre

a diminuição dos estoques de peixes na Lagoa dos Patos, as polêmicas com relação à

falta de controle da pesca industrial, assuntos que também levaram os coletivos de pesca

artesanal a se posicionarem de forma diferenciada nos momentos de preparação de cada

temporada.

Quando iniciamos a pesquisa que apresento aqui, pretendia elaborar um website

reunindo imagens sobre a dinâmica da pesca em várias praias da cidade. Descobri na

etnografia que já havia vários websites onde tal dinâmica aparecia, como parte da

própria prática da pesca, publicados por membros e parceiros de vários coletivos de

pesca. Embora mantivesse a proposta de um site oficial do projeto, a partir de então,

adotamos a produção de pequenas narrativas visuais, ajustando nossa produção às

formas de uso dos pescadores de seus smartphones, por exemplo. As narrativas foram

compartilhadas com os pescadores e espalhadas por suas próprias redes sociais,

contribuindo para a reflexividade quanto aos sentidos da pesca artesanal e também para

a sua eficácia técnica. Percebi que havíamos nos tornado também fonte de notícias de

peixe, como qualquer outra pessoa que participa da socialidade da pesca, assim como

percebia a presença mais frequente de câmeras de vídeo e fotografia entre os próprios

coletivos de pesca.

Imagem 13: vídeo produzido pela pesquisa, compartilhado pelos pescadores da Barra da Lagoa durante a

temporada 2016. Fonte: http://www.facebook.com. Último acesso em 20/06/2016.

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Realizamos também exposições de fotografia e vídeo, mostras comentadas e

eventos em espaços importantes da política ambiental da cidade, sugeridos pelos

próprios pescadores, como forma de levar a outros públicos um reconhecimento de seu

sistema técnico como um conhecimento eficaz sobre a dinâmica ambiental do litoral do

sul do país.

Imagem 14: Divulgação de exposição no site do projeto. http://verpeixe.tumblr.com. Último acesso em

20/06/2016.

Organizados coletivamente, os pescadores destas modalidades artesanais de

pesca vêm conquistando na última década melhores condições de trabalho junto aos

órgãos públicos ligados aos usos da costa, na forma de leis que regulam as práticas de

pesca e também os usos da praia durante a temporada. Conquistam, a cada ano, o direito

de iniciar seus trabalhos um mês antes das modalidades industriais, assim como o

direito de uso da praia exclusivo para a pesca. A modalidade de pesca artesanal, na beira

da praia, se tornou patrimônio cultural de Santa Catarina, conforme legislação estadual

e mesmo municipal em algumas localidades da costa. O resultado tem sido uma

presença maior dos peixes nas praias, nas redes de pesca e nas trocas cotidianas entre os

moradores da cidade, seja nas ruas ou nas imagens nas redes sociais. Os links entre estas

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imagens revelam relações entre muitas praias do litoral catarinense com muitos

cardumes de tainhas e coletivos de pescadores.

Referências:

Bateson, Gregory. 1972. Steps to an Ecology of Mind. Collected Essays in

Anthropology, Psychiatry, Evolution, and Epistemology. São Franciso: Chandler. Gibson, James. 1986. The ecological approach to visual perception. Nova York:

Psychology Press. Carneiro da Cunha, Maria Manuela. 2009. “ ‘Cultura’ e cultura: conhecimentos

tradicionais e direitos intelectuais.” In Cultura com Aspas. São Paulo: Cosac & Naify. Pp.311-373.

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Ingold, Tim. 2000. The Perception of the Environment: essays on livelihood, dwelling and skill. Londres: Routledge.

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