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2. Orientações complementares 2.1 Para ler e interpretar obras de arte Há bem mais coisas que a Arte explica do que palavras para explicar a Arte. Almada Negreiros (1893-1970) Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir. Descartes (1596-1650) II11GP_F02

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2. Orientações complementares2.1 Para ler e interpretar obras de arte

Há bem mais coisas que a Arte explica do que palavras para explicar a Arte.

Almada Negreiros (1893-1970)

Viver sem filosofar é o que se chama ter os olhos fechados sem nunca os haver tentado abrir.

Descartes (1596-1650)

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18 Ideias & Imagens | Guia do Professor

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1. Caravaggio, Judite e Holofernes, c. 1599, óleo sobre tela, 144 x 195 cm

ver doc. 46, p. 54 do Manual

Holofernes estava caído sobre a cama «por estar afogado em vinho». Judite avançou em direção à cama e apossou-se da sua cimitarra; «aproximando--se da cama, agarrou-o pela cabeleira e disse: "Forti-fica-me neste dia, Senhor Deus de Israel". Desferiu-lhe, com todo o vigor, dois golpes no pescoço e arrancou--lhe a cabeça... Saiu e entregou a cabeça de Holofernes à criada que a meteu no saco de provisões.»

Esta narrativa da morte do tirano é-nos contada na Bíblia, no Livro de Judite. Por ter desaparecido o texto original, este episódio bíblico do povo de Israel, difícil de datar com exatidão, é considerado como apócrifo pelos Judeus e pelos protestantes, mas foi recuperado por São Jerónimo na sua tradução latina da Bíblia (Vulgata). Quando, por volta de 1599, Caravaggio reproduz a cena, procura seguir a versão bíblica, mas não deixou a criada à espera no exterior, pintou-a ao lado de Judite. O pintor consegue assim explorar habilmente o contraste entre a cor de pêssego da sua heroína e a pele enrugada da velha mulher.

Judite, a viúva «muito bela» e rica «a quem nada podia ser apontado», abandonara as vestes do luto, vestira a melhor roupa e dirigira-se ao campo do ini-migo para salvar o seu povo. O exército assírio coman-dado por Holofernes cercara a cidade de Betulia. Tomados pelo desespero, os Judeus estavam prontos a render-se quando a jovem mulher partiu para seduzir o inimigo. Depois do ato sangrento, as tropas assírias fugiram em pânico; Israel estava salvo e Judite regres-sou da tenda do general libertino sem ser manchada pelo pecado. «Tu és a coroa de Jerusalém, Tu és a ale-gria de Israel, Tu és a glória do nosso povo.» Foi com estas palavras que o supremo sacerdote glorificou a heroína […].

Holofernes assinou a sentença de morte ao querer obrigar os Judeus a adorarem o rei assírio Nabucodo-nosor em vez de Jeová. Holofernes era um pagão e Judite executou o assassinato para maior glória do seu – único e verdadeiro – Deus.

A motivação para o ato de Judite tinha grande atualidade no fim do século XVI, altura em que Caravaggio pintava o quadro em Roma. Na época, a luta contra a heresia, se necessária pelo fogo e pelo gládio, constituía a preocupação central na capital do mundo católico. Estava-se em plena Contrarreforma. A Igreja tentava reconquistar os reinos que se haviam afastado durante a primeira metade do século XVI. A Inglaterra, a Suécia e algumas partes dos Países Bai-xos, da França, da Alemanha e da Suíça tinham seguido Lutero, Calvino ou Zwingli, não reconhecendo mais a autoridade do Papa e deixando de enviar para Roma o produto do dízimo […].

[O artista desta obra foi] Michelangelo da Merisi, nascido em 1571, na aldeia lombarda de Caravaggio, perto de Bergamo, cujo nome mais tarde adotou. Tendo chegado a Roma no princípio dos anos 90 […]. Em pouco tempo Caravaggio conquista reputação internacional. Em 1598-99 recebe a primeira enco-menda importante – a decoração de uma capela […].

É nesta altura que pinta Judite, a sua primeira figura feminina, sedutora e erótica, apesar de decente-mente vestida. Caravaggio nunca pintou um nu femi-nino. É possível que o pintor se sentisse atraído pela ambivalência da heroína, simultaneamente piedosa e assassina do homem […].

A maior parte dos artistas representaram Judite após cometer o ato. Caravaggio, pelo contrário, mos-tra o momento preciso da degolação: a vítima ainda vive, a cabeça está apenas meio separada do corpo. Os olhos ainda não estão baços e exprimem o terror da morte. Da boca muito aberta escapa um grito. Cara-vaggio procura o efeito teatral que alia o choque ao horror, um género de dramaturgia também apreciado pelo seu contemporâneo inglês William Shakespeare […]. Todas estas crueldades não figuravam apenas sobre a tela dos pintores ou no teatro; os artistas con-frontavam-se com elas na vida quotidiana, quer na Inglaterra isabelina quer na Roma da Contrarreforma […].

Em 1603, [o artista] pinta «O Sacrifício de Isaac» por Abraão; na «Degolação de São João Baptista» (1608), que se encontra na Catedral de Valetta, em Malta, aparece a única assinatura conhecida de Cara-vaggio, podendo ler-se na obra muito estragada «F Michel A», escrito com a tinta usada para pintar o sangue que escorre da garganta do mártir. Em 1610, num outro quadro, a cabeça de São João Batista rea-parece entre as mãos de Salomé e numa obra mais tardia de Caravaggio, David apresenta a cabeça de Golias.

Os contemporâneos do pintor mostravam-se sur-preendidos pela parecença de Golias com Caravaggio, de quem se dizia ter «a pele escura, os olhos ameaçado-res, sobrancelhas grossas e espessos cabelos negros». A personagem Holofernes que grita e sofre poderia ser um autorretrato de Caravaggio que por masoquismo se quisesse identificar como vítima de uma violência brutal.

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Rapidamente celebrizado pelas suas obras, Caravaggio gozava da proteção dos monsenhores e dos cardeais. Tinha no entanto muita dificuldade em satisfazer os seus gostos. Na decoração das igrejas, não seguia as normas fixadas pelo Concílio de Trento que estipulavam que, embora as representações pic-tóricas das Sagradas Escrituras devessem servir para a educação das massas ignorantes, o trabalho artístico teria de permanecer digno e aristocrático. Caravaggio transgrediu os imperativos desse «decorum» pintando santos de pés sujos e representando a Virgem Maria afogada e inchada como se tivesse sido retirada da água.

Simultaneamente, Caravaggio infringia o ideal de beleza do Renascimento. Via e mostrava o mundo de uma maneira nova e realista. As suas obras aprecia-das e muito bem pagas por um número reduzido de conhecedores chocavam muitos dos seus contempo-râneos. Em vez de copiar os modelos convencionais, Caravaggio pintava diretamente com modelos vivos e não esquecia as pregas e os sulcos da face nem as rugas que denunciam o trabalho de toda uma vida. «Está demasiado natural» foi tudo o que o colega

Annibale Carraci foi capaz de dizer ao ver o quadro de Judite. É nessa obra que aparece pela primeira vez o plano de fundo escuro, negro como as trevas, defronte do qual as figuras se destacam, iluminadas por uma luz artificial e sepulcral. Esses dois elementos tornar--se-ão característicos da obra de Caravaggio.

O facto de os quadros tratarem, sem cessar, de tre-vas e violências pode ter origem no carácter do artista […]. Em quase todos os quadros de Caravaggio encontram-se espadas, punhais e facas. Tal como o sangue e as degolações, as armas formam uma espé-cie de leitmotiv sádico da sua obra […].

Várias das obras do pintor foram rejeitadas pelos dignitários da Igreja com base em incorreções teológi-cas […]. Vítima do delírio da perseguição, passou os últimos anos a fugir, deixando atrás de si obras-primas que virão a ter uma influência decisiva na pintura europeia do século XVII. Morreu no exílio em 1610, e, como escreve um contemporâneo, tão «solitário e miserável como tinha vivido».

Rose-Marie & Rainer Hagen, Os Segredos das Obras-Primas da Pintura, Tomo 1, Colónia: Taschen, 2003

2. Diego Velásquez, As Fiandeiras ou A Fábula de Aracné, 1657, óleo sobre tela, 2,20 x 2,89 m (Museu do Prado)

Esquema compositivo da obra.

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A. Investigações técnicas e formais

Tela com imprimação e pintura feita de pigmentos diluídos em óleo. […]

Velásquez, conhecedor das técnicas de pintura ita-lianas, flamengas e espanholas, produz livremente as técnicas para os seus fins na pintura. Emprega fundos pardos, vermelhos e cinzentos. Sobre o fundo, do qual conserva o efeito, emprega a técnica de pintura direta.

ResultadoÓleo sobre tela de 2,20 m x 2,89 m. Estas dimen-

sões de origem reduziram-se posteriormente devido a um incêndio ocorrido em 1734. Para reparar os danos, juntaram-se tiras nas partes laterais e na parte supe-rior da tela, sem que o quadro tenha, no entanto, per-dido a verosimilhança.

Representação formalFormalmente, Velásquez distribui a tela em dois

ambientes que delimita em compartimentos. Efetua a representação de interiores através de uma perspetiva aérea, ainda que também a linear esteja presente, quer dizer, define o espaço através da luz e da cor.

Utiliza dois focos de luz: um exterior e artificial que ilumina em primeiro plano a principal figura da direita, e outro no compartimento do fundo que, sendo prove-niente de uma suposta janela, a ilumina com luz solar direta. O resto da obra disposta à margem dos focos permanece na penumbra, ao modo de claro-escuro.

Dominam as cores cálidas, especialmente verme-lhos e pardos. A proporção das figuras e outros ele-mentos correspondem à realidade. As figuras, nas suas posições, recordam as renascentistas.

Utilização e combinação dos elementosA composição do tema ordena-se a partir das dia-

gonais do quadro, que tem como ponto central um dos aspetos principais da representação e que coincide com a figura de Aracne. O eixo de simetria vertical divide em duas partes, nas quais se traçam outras duas diagonais que saem da parte inferior do referido eixo e terminam nos ângulos superiores respetivos. As diagonais, como elemento significativo da composição, perfilam através das figuras, objetos e tons de claro-escuro.

A luz é outro elemento relevante na composição que, além de reforçar a distribuição geométrica, esta-belece espaços e delimita a ordem de importância das figuras. Assim se cria um ritmo que se inicia à direita com a figura iluminada, seguindo em direção ao cen-tro, para passar logo para a figura da esquerda e depois ao resto do quadro.

Com o claro-escuro e a cor cálida e avermelhada cria-se uma atmosfera de ficção que, com a utilização de algum tom complementar, suaviza e equilibra a abundância dos tons cálidos.

Tema representadoNa obra encontra-se, em primeiro plano, um grupo

de cinco mulheres a trabalhar: das três centrais uma fia, outra carda e uma terceira doba, enquanto as duas laterais realizam um trabalho auxiliar. Todas estão representadas como era usual na pintura de género, com vestidos que refletem o seu trabalho e condição social.

A oficina onde trabalham encontra-se na penum-bra e, na parede do fundo, abre-se outro comparti-mento mais iluminado ao qual se acede por dois degraus. Aí, em primeiro plano, três damas ataviadas segundo a moda da corte contemplam uma cena. Uma delas está situada junto à viola. Ocupando toda a parede do fundo, há um tapete que representa o mito do Rapto de Europa, perante o qual duas personagens realizam uma passagem de outro mito, o de Aracné, como se se tratasse de uma representação teatral.

Esta obra chama-se As Fiandeiras e era conhecida como a Tapeçaria de Santa Isabel.

Conteúdo social/ Significado (leitura dos símbolos)

A pintura apresenta dois mundos, o do trabalho e o do ócio. No mundo do trabalho oferece-se uma cena laboral e de costumes, com materiais, instrumentos e mobiliário próprios de uma oficina artesanal de fiadei-ras. No mundo do ócio desenvolve-se outra cena onde algumas damas, seguramente da nobreza, contem-plam uma representação frente a uma tapeçaria. Ao mobiliário desta cena corresponde uma cadeira rica-mente trabalhada, um instrumento musical, ou viola de «gamba», e uma tapeçaria que reproduz uma pin-tura de Ticiano ou Rubens.

Estes dois mundos, tanto pela simbologia descrita como pelos seus ambientes de luz, estabelecem duas categorias sociais e artísticas.

O tema contém um programa iconográfico onde se representam dois mitos: no compartimento do fundo está representado o de Aracné, jovem da Lídia, habilíssima tecedeira e bordadeira que um dia, com sobranceria, chega a desafiar Atena, sua deusa patrona. Ainda que a deusa, transformando-se em anciã, tenha tentado persuadi-la e incutir-lhe modés-tia, Aracné insiste no seu desafio. Atena faz um tapete onde representa os deuses olímpicos e os castigos que infligem aos mortais que os desafiam, e Aracné res-ponde-lhe com outro, o rapto de Europa, no qual figura uma das debilidades de Zeus. Encolerizada, Atena dá-lhe um golpe com a sua lançadeira, razão pela qual Aracné, humilhada, tenta enforcar-se. A deusa salva-a, mas transforma-a em aranha, animal que continuamente fia e tece as suas teias.

Às três fiandeiras centrais corresponderia o mito de As Miníades, que são Alcítoe, Arsipe e Leucipe, filhas do

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rei Mínias, que ficam em casa a fiar, enquanto as demais mulheres do reino saem para prestar culto a Dioniso. O deus toma a forma de uma donzela e apre-senta-se perante elas para as exortar a saírem e cele-brarem o culto, porém sem o conseguir. Como castigo, foram transformadas em morcegos.

A existência destes dois mitos na criação de Velás-quez define-se tanto pelos aspetos formais, que corres- pondem a representações de outros artistas, como pelo seu conteúdo moral.

Dos mitos não escolhe as metamorfoses nem outras passagens, mas o paralelismo simbólico do desafio no momento antes do castigo, quer dizer, Aracné apresenta o seu tapete do rapto de Europa a Palas Atena e esta reage com uma atitude de reprova-ção. Ao mesmo tempo, as três fiandeiras com os instru-mentos correspondentes às filhas de Mínias encon- tram-se a trabalhar em vez de festejar Dioniso.

Os aspetos dos dois mitos que Velásquez reproduz eram característicos de representações artísticas do século XVI, correspondentes a gravuras de Dolce que ilustram as Metamorfoses de Ovídio. […]

Avaliação históricaDiego Velásquez nasce em Sevilha, no final do

século XVI. Ingressa na oficina de Herrera, o Velho, e, algum tempo depois, o seu pai firma com o pintor Fran-cisco Pacheco um contrato para lhe ensinar a arte da pintura durante seis anos. Com ele inicia-se no mundo da pintura e da corte. Em 1623, é nomeado pintor do rei e estabelece-se em Madrid, onde em 1628 conhece Rubens. Um ano depois, Velásquez viaja até Itália e visita Milão, Veneza e Roma, onde permanece um ano. A sua viagem a Itália permite-lhe conhecer os grandes artistas italianos, ficando particularmente impressio-nado com Ticiano. Em 1649, volta a deslocar-se a Itália onde, além de expor obras suas no Panteão, adquire pinturas para o rei Felipe IV, tal como na anterior via-gem. Uns anos depois do seu regresso, em 1656, pinta As Meninas e, um ano mais tarde, As Fiandeiras.

Além de pintor do rei, Velásquez tem na corte nume-rosos cargos e ocupações, que procura acumular. O objetivo da sua ambição é conseguir um título de nobreza e para isso faz muitos esforços e solicita inter-venções do rei e do Papa. Devido ao seu cargo de apo-sentador da corte, Velásquez visitava com frequência a Real Manufatura de Santa Isabel, lugar que segura-mente viria a influenciar a conceção de As Fiandeiras.

Para compreender a obra de Velásquez, tanto no seu aspeto formal como iconográfico, é importante mencionar que possuía uma extensa e rica biblioteca com livros de ciências físicas e naturais, medicina e matemáticas, anatomia, arquitetura e pintura. Entre eles figuravam obras de Leonardo da Vinci, Vasari, Alberti, Miguel Ângelo, Dürer, Vitrúvio, Palladio e os

espanhóis Francisco Pacheco e Juan de Arfe. Dispunha também de tratados alegóricos como a Iconologia, de Ripa, e as Metamorfoses, de Ovídio, obras que importa ter em conta, especialmente ao analisar As Fiandeiras.

Em Espanha, no século XVII, a Coroa vai-se afun-dando progressivamente, enquanto paralelamente flo-resce o Século de Ouro da pintura e da literatura. […]

Em Velásquez não se encontra um eco direto do declínio da grande potência hispânica, mas em con-trapartida reflete mitos sociais, como o demonstra a sua preocupação pela fidalguia. O seu interesse cultu-ral manifesta-se através das suas invenções e conquis-tas técnicas e temáticas, em consonância com as tendências filosóficas do século em que vive, represen-tadas por Descartes, Spinoza e Leibniz, bem como pelas correntes literárias dos espanhóis Cervantes, Cal-derón, Lope de Vega, Quevedo e Gracián.

Velásquez realiza o quadro As Fiandeiras e As Meni-nas na fase final da sua vida, pouco antes de Felipe IV lhe conceder a insígnia de uma ordem militar. Para poder aceder a tal dignidade submete-se a uma difícil comprovação que demonstra a pureza do seu sangue e o mérito para tal distinção. Em finais de 1659, o rei con-cede-lhe a fidalguia para que possa receber a insígnia de Santiago, apesar de não ser considerado nobre. […]

Conclusão(ões)As Fiandeiras é uma obra que faz parte do Barroco

internacional, ligado a Caravaggio e Rubens. A Cara-vaggio corresponde o tratamento da luz e o ambiente realista e de costumes do primeiro plano. A Rubens, o tema mitológico e cortesão de influências venezianas do compartimento do fundo.

Velásquez utiliza a linguagem plástica do Barroco, mostrando um instante como uma representação tea-tral de um facto quotidiano, e um mito com projeção ao infinito, patente no aposento do fundo. Por sua vez, a composição é aberta, sem padrões a delimitá-la e o espectador participa daquilo que acontece no quadro.

Velásquez inclui, além disso, inovações e caracte-rísticas próprias, como o movimento, a pincelada e a perspetiva aérea.

As Fiandeiras é um expoente completo tanto do Barroco espanhol como do Barroco internacional.

J. J. I. Rufach, M. L. P. Pena e A. S. Toà, Método para a Interpre-tação de Obras de Arte. Lisboa: Planeta Editora, 1992

B. Outros argumentos para a interpretação de As Fiandeiras

Uma vez mais Velásquez trata um assunto mitoló-gico como se de um tema de género se tratasse, apro-ximando o mito da realidade quotidiana. Tradicio- nalmente acreditava-se que a pintura representava a

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oficina de fiar e de enovelar da fábrica de tapetes de Santa Isabel de Madrid, até que D. Diego Angulo inter-pretou corretamente o tema, no que foi corroborado por D. Maria Luisa Caturla que encontrou o documento em que a tela figurava como “A fábula de Aracné”.

Trata-se, seguindo a narração de Ovídio nas suas Metamorfoses, da disputa de Palas Atena (a figura de capacete), deusa que presidia às artes e ofícios, com Aracné, famosa tecedeira da Lídia, sobre qual das duas realizava o melhor tapete: em síntese, é uma questão de orgulho, de uma mortal desafiando uma deusa.

Velásquez, nesta obra que acaba cerca de 1657, orga-nizou numa só cena diversos momentos de narração (o quadro dentro do quadro), se bem que tudo esteja unido visualmente por tons harmoniosos e pela luz.

A composição está dividida em dois planos, reser-vando-se o 1.º às figuras em contraluz, dado que a ilu-minação penetra pela abertura na parede do fundo, lugar onde se desenvolve o 2.º episódio da narração. No 1.º plano, onde se representa a oficina, as trabalha-doras preparam os fios para a fabricação do tapete. Nas duas diagonais contrapostas situam-se as quatro protagonistas que apresentavam complexos jogos de escorços. A luz cai, à direita, sobre as costas da jovem que movimenta o garbo, enquanto a mulher mais velha, à esquerda, faz girar a roda de fiar a toda a velo-cidade e por isso não se veem os raios da roda (a

sensação de movimento, que não é mais que uma mancha, é já dada por Velásquez, séculos antes do futurismo e da fotografia). A disposição das duas mulheres de frente lembra as dos dois ignudos de Miguel Ângelo, na abóbada da Capela Sistina.

No centro e como transição para o 2.º plano, uma mulher em contraluz baixa-se para apanhar um objeto. Ao fundo, no centro, tem lugar a cena que dá o título à obra: o momento em que Atena, tendo con-templado o tapete que Aracné fez, levanta o braço com a espada para transformar a tecedeira numa aranha.

A técnica de Velásquez atinge a plenitude utili-zando uma pincelada livre que cria volume e dilui con-tornos, plasmando na tela a atmosfera interposta entre objetos, personagens e espectadores, em per-feita harmonia.

A cena tem sido interpretada como uma alegoria da nobreza da pintura e das faculdades divinas do artista. Pode ler-se como uma descrição do processo criativo, que é constituído por uma fase manual, mais mecânica e humilde de realização e outra intelectual, que, tendo uma natureza divina, requer ser iluminado pela luz da ideia e necessita de ser “julgado” para ser valorizado.

Mar Sánchez Ramón, Guia Breve, Museu del Prado. Madrid: Ed. Aldeasa, 2002

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3. João Antunes, Igreja de Santa Engrácia, Lisboa, c. 1682/1690-1966

A Igreja de Santa Engrácia, em Lisboa, assinala o início das grandes construções e afirma o novo estilo. No entanto, a sua história é atribulada […]. No local existiu uma primeira igreja. […] Em noite de temporal de 1681 a nova capela-mor desmorona-se e arrasta consigo o corpo da velha igreja, decidindo-se então, e após audição de arquitetos, fazer-se uma igreja com-pletamente de novo. A Irmandade abriu concurso para a planta da nova obra tendo sido vencedor o arquiteto João Antunes. Santa Engrácia surpreende imediatamente pela planta 3 , um quadrado em que os ângulos são assinalados por torreões, definindo interiormente um plano centralizado sob cúpula (só recentemente foi concluída) e em forma de cruz grega […]. Apesar de a primeira pedra ter sido lançada em 1682 por D. Pedro II, na década de 80 as obras pratica-mente não avançavam. […] Cremos que o início real das obras se situará em 1690, e ao longo da década terá sido construída a maior parte do edifício.

Só em 1690, o país inicia a recuperação de uma grave crise comercial que a quebra açucareira provo-cara. “Os anos de 1690 a 1705 foram de incontestável incremento e prosperidade mercantil para Portugal”

(V. M. Godinho). Os anos de paz e a resolução defini-tiva do problema sucessório (o futuro D. João V nasceu em 1689 e será declarado herdeiro do trono) trazem ao país, e à corte, a tranquilidade necessária ao delinear de um programa construtivo. Santa Engrácia é por isso um sinal anunciador de uma mudança conjuntu-ral – desde logo pela planta, inspirada certamente na proposta de Bramante para São Pedro de Roma e que, figurando no tratado de Sérlio, conhecerá ampla divulgação […].

À escala lisboeta seriam estes também os desíg-nios propostos por João Antunes. Se a planta acusa a influência de Bramante, logo aqui pressentimos o fas-cínio que a arquitetura romana não deixará de exercer no Barroco em Portugal […]. Como São Pedro, tam-bém Santa Engrácia é construção que se impõe sobre a malha urbana. Kubler, pitorescamente, achava-a, mais que uma igreja, um farol para a navegação do Tejo […]. Santa Engrácia situa-se numa plataforma da encosta de Santa Clara, com admirável paisagem sobre o Tejo e a margem sul – e sabe-se da importân-cia que para os arquitetos barrocos tinham os enqua-dramentos naturais e urbanos das suas obras.

2. Orientações complementares

Fachada principal.

Planta.

A igreja só foi concluída em 1966, quando lhe foi acrescentado o tambor e a cúpula, a balaustrada, toda a estatuária, os cenotáfios e a sua função de Panteão Nacional.

Vista áerea.

Perspetiva do interior.

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Acresce que Santa Engrácia se situava então no limite oriental de Lisboa, inserida num bairro novo de cariz aristocrático que se delineava fora da apertada malha medieval da velha cidade, a qual dificultava a renova-ção. Os novos arranjos urbanísticos procuravam sobretudo áreas livres onde era mais fácil romper com estruturas do passado. […] O projeto de Santa Engrá-cia considerou esta nova realidade emergente, procu-rando instaurar poder ordenador sobre o casario circundante e ser seu símbolo anunciador.

Com Santa Engrácia, e pela primeira vez, assiste-se em Portugal à manifestação do ideal barroco romano convertido numa linguagem internacionalizada. A planta é desde logo uma citação histórica e clássica, que a presença das ordens reforça. No portal do vestí-bulo definem-se colunas salomónicas com capitéis de ordem compósita, ordem que se repete nas pilastras do interior. As ordens serão utilizadas sobretudo em obras reais ou de círculos próximos da corte e o repor-tório clássico é um emblema de poder, uma manifes-tação erudita, tanto mais eficaz quanto se afasta do gosto popular. Os valores clássicos presentes na obra e assumidos por João Antunes distanciam-se no entanto da dimensão humana de cariz renascentista ou da crise de valores do Maneirismo. São uma herança cultural, uma referência histórica. Mas Santa Engrácia é, pelas proporções e volumetria, uma obra barroca fundamentalmente.

Externamente 1 e 2 a igreja apresenta uma novidade rara – a ondulação dos alçados, geradora de dinamismo visual e proporcionando contrastes de claro-escuro. Tal proposta pressupõe informações sobre a obra de Borromini cuja influência é menor entre nós que a de Bernini. A ondulação dos alçados é um facto surpreendente: nada o fazia prever em obras anteriores e a sua materialização só se explica por importação de influências. Fenómeno revolucionário, proporciona o ritmo côncavo-convexo-côncavo. Nesta perspetiva a influência de Santa Engrácia é quase nula e incompreendida. A alternância entre côncavo e convexo distribui-se pelas quatro fachadas, embora a fachada principal seja naturalmente assi-nalada por maior força decorativa de elementos extraídos do reportório clássico. As restantes fachadas são pesadas massas ondulantes de decoração prati-camente inexistente.

A obra barroca assume e desenvolve a importân-cia que a arquitetura europeia confere à fachada prin-cipal. Santa Engrácia confirma essa constante. A sua fachada principal é pontuada lateralmente pela pre-sumível base de duas torres, enquadrando o ritmo da parte central. Ritmo e variedade são também propos-tos pela alternância de frontões, janelas e nichos. Qua-tro colunas gigantes introduzem a galilé, contraponto

visual escuro à claridade geral da fachada. A porta principal (da galilé ou vestíbulo) é ladeada por colu-nas torsas acentuando a ideia de movimento que o edifício no seu conjunto propõe.

O interior 4 é anunciado pelo vestíbulo, onde se rasgam portas de recorte clássico. […] A decoração de talha e azulejo está ausente, ao contrário do verificado nas pequenas igrejas longitudinais das ordens religio-sas do período anterior. O mármore (material "nobre" e caro, e utilizado sobretudo em obras reais) de colora-ção rosa, amarelo e cinza, distribui-se pelo interior, não de modo aditivo mas inserido na ordenação geral pro-posta pela arquitetura. Harmonizando-se com a cor clara do calcário, os mármores definem o tom alegre, quase jovial, deste interior que propõe valores profanos para comprazimento dos olhos. A decoração marmó-rea de Santa Engrácia anuncia Mafra, onde os tons de rosa caracterizaram a policromia da igreja, que assume toda a sua plenitude em dias de sol intenso. Também em Santa Engrácia o colorido dos mármores pressupu-nha profusa iluminação assegurada por amplos jane-lões e pela presumível cúpula. A racionalidade e o prestígio histórico da planta conjugavam-se com os valores sensíveis da decoração numa simbiose que o Barroco sempre perseguiu. O interior pressupunha ampla utilização pública […]. Procurava-se dirigir mul-tidões, captá-las emotiva e sensivelmente. Santa Engrácia propunha um envolvimento em dispersão visual. A escala não humana da obra completava o efeito geral a que as quatro meias cúpulas (construí-das) e a cúpula central (não realizada) emprestavam pela escala um efeito de grande peso visual.

Mas a importância e o significado de Santa Engrá-cia têm de procurar-se também no percurso aciden-tado da sua construção. As obras decorreram com lentidão e algumas paragens. Em 1712, data da morte de João Antunes, achava-se ainda incompleta, tendo as obras continuado sob a direção de Manuel de Couto (1657-c.1730). As primeiras décadas do século XVIII serão decisivas para a arquitetura barroca. Em 1717, iniciam-se as obras de Mafra, que mobilizam enormes recursos humanos e materiais e que em parte poderão explicar o desinteresse de D. João V em com-pletar Santa Engrácia, apesar de se inserir na corrente estética oficial. Também a falta de recursos da Irman-dade para uma obra de tais dimensões, a par da estru-tural vocação nacional pelo inacabado, são fatores a considerar. […].

Obra de qualidade, Santa Engrácia afirma o arran-que definitivo da arquitetura barroca e mostra a importância fundamental que João Antunes teve nesse processo.

José Fernandes Pereira, Arquitetura Barroca. Lisboa: Biblioteca Breve, 1992

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4. A Ópera de Paris

ver Análise de Obra, p. 145 do Manual

Escadaria principal da Ópera Garnier.

A. O produto mais sumptuoso do segundo Impé-rio foi a Ópera de Paris. Projetado por Garnier, este edi-fício apresenta duas qualidades: o sentido do urbanismo e o sentido da oportunidade. A planta apresenta uma dificuldade, devido a estar destinada a um local multifacetado: o ponto de convergência de três boulevards. Não podia ter traseiras, porque todas as fachadas se tornam importantes do ponto de vista arquitetónico. A solução patenteia a tradição da École des Beaux-Arts no seu ponto mais alto e mais bri-lhante. Todos os eixos estão desenvolvidos de modo a valorizar o mais possível cada parte da planta. A maciez do edifício fá-lo sobressair na paisagem de Paris. No interior, a escadaria enorme, os mármores riquíssimos, os lustres, as amplas perspetivas dos foyers e promenades, tudo se conjuga para o cenário de uma ocasião única, de um momento particular. Esta é uma faceta do génio de França.

R. Furneaux Jordan, História da Arquitetura no Ocidente. Lisboa: Editorial Verbo, 1985

B. Catedral mundana da civilização, segundo Théophile Gautier, que muito a admirava, a Ópera de Paris é considerada, hoje em dia, a obra maior de arte e da arquitetura do século XIX. Esta representa, com

efeito, este “ecletismo” tão depreciado até há bem pouco tempo, mas cujo conceito é, todavia, já melhor compreendido nos dias de hoje. Para melhor atingir este objetivo, é necessário não isolar o edifício do seu contexto urbano, o de uma cidade de Paris submetida à influência de Haussmann, nem de três séculos e meio de evolução da arquitetura ocidental, cuja diversidade sintetiza a vários níveis.

Para o parisiense atual, o termo “ópera” significa um quarteirão situado nas grandes avenidas, que oferece ao turista e ao citadino o comércio de luxo, os bancos inter-nacionais e os grandes armazéns. O edifício, que impõe a sua enorme silhueta colorida logo a partir dos postos de venda de bilhetes do Louvre, convida a algo seme-lhante a um vaivém espiritual entre a vida trepidante que o rodeia incessantemente e aquela outra vida, noturna e misteriosa para o não iniciado, que é a do inte-rior. De perto, o exterior deste edifício sumptuoso ergue--se majestoso, cuja fachada revela apenas a si mesma o fluxo e refluxo das entradas e saídas do espetáculo. É tal a importância conferida à fachada da Ópera, que o seu arquiteto, Garnier, a encarava como sendo a parte mais típica e mais pessoal da obra em termos globais. A histó-ria da arquitetura do teatro no mundo confirma esta ori-ginalidade: a obra-prima de Garnier viria a transfor- mar-se num arquétipo.

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Programa específico da arquitetura antiga greco--romana, o teatro, enquanto monumento urbano, só muito tardiamente viria a aparecer na arquitetura moderna. Concebida como um interior, inicialmente, a sala de espetáculos não era mais do que uma dependência do palácio ou do edifício público. A Itália dos séculos XVI e XVII viria a conceber modelos para toda a Europa, ao passo que no decorrer do século XVIII os arquitetos franceses se dedicaram a aperfei-çoar a sua aparência exterior. Transformado em edifí-cio público, ao mesmo nível que a sede municipal, o teatro passava a integrar-se definitivamente nas diversas atividades permanentes da vida urbana, até se transformar num dos símbolos máximos da civili-zação das Luzes […].

A localização da Ópera foi escolhida pessoal-mente por Haussmann, […] que declarava: “jamais interrompi o traçado de uma via fosse esta qual fosse, nem de uma artéria de Paris, sem antes me preocupar com a perspetiva que lhe poderíamos conferir”. […] Virado na direção do Louvre e das Tulherias,

residência de Napoleão III, o novo edifício […] estava destinado a transformar-se em algo semelhante a um salão mundano, onde a corte marcava encontro com a cidade […].

Entre os 170 desafortunados concorrentes para a elaboração do seu projeto figurava Garnier, o vence-dor […]. Os melhores artistas da época procederam à interpretação dos seus desenhos em pintura, mosaico, bronze, mármore, estuque…

Jamais o génio criador de um arquiteto se havia imposto com tamanha autoridade e audácia (em particular, na relação entre a estrutura metálica do conjunto e a pompa dos espaços paradoxalmente pesados e luminosos), mas também pela minúcia. A unidade absoluta da arquitetura e da decoração, con-cebida pelo mestre de obras, força a nossa admira-ção; a qualidade da execução testemunha o talento dos artesãos e dos artistas deste último terço do século XIX.

Daniel Rabreau, A Ópera de Paris, in O Grande Atlas da Arqui-tetura Mundial. Alphabooks Publishers, 1988

ver doc. 45, p. 151 do Manual

5. Théodore Géricault - A Jangada de Medusa

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Esquema compositivo.

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Metodologia a adotar:1.º CLASSIFICAÇÃO/IDENTIFICAÇÃO

Autor da obra – Théodore GéricaultNome – A Jangada de MedusaTema – Acontecimento da épocaLocalização atual – Museu do LouvreData da execução – 1818-19Dimensões – 491 x 717cmTécnicas e materiais – óleo sobre tela

2.º CONTEXTO/ENQUADRAMENTO

– No seu tempo – A Jangada de Medusa é uma pintura romântica pela sua estrutura dinâmica, agitada e dramática; pela utilização de cores sombrias, pelo tratamento das volumetrias e das formas muito acentuadas, pelos contrastes de cor e de luz e sombra.

– No conjunto da produção do artista – é a obra maior e mais conhecida do pintor. Géricault foi o pintor do dramático; da loucura; da Natureza animal e humana.

3.º ANÁLISE TEMÁTICA

Género temático – Tema inspirado num aconte-cimento heroico da época.

Em 1816, uma fragata francesa chamada Medusa naufragou próximo da costa do Senegal.

Não havia botes salva-vidas para todos e, por isso, com os restos do navio, os sobreviventes cons-truíram uma jangada para cerca de 150 pessoas.

A tempestade arrastou a jangada para mar alto onde permaneceu à deriva durante mais de 27 dias, sem rumo, sem água potável e sem alimentos.

A dramática experiência dos sobreviventes impressionou o pintor Théodore Géricault e moti-vou-o a pintar um quadro. No processo de realiza-ção da obra, o autor fez inúmeros estudos e usou detalhes muito objetivos para a sua realização.

Para compor a sua obra entrevistou os sobrevi-ventes, visitou os doentes e viu os mortos.

Horrorizado, reproduziu a realidade humana e íntima dos sobreviventes.

A Jangada de Medusa retrata não somente o naufrágio da fragata, ocorrido a 2 de julho de 1816, mas acima de tudo um acontecimento da época que comoveu a França e trouxe repercussões que tocaram o mais profundo da alma humana.

Os sobreviventes podem ver-se retratados na pintura em várias atitudes, nos momentos mais dra-máticos e cruciais do acontecimento.

Os corpos de alguns sobreviventes estão deita-dos, em abandono, sem reação à morte. Outros mostram-se esperançados, mas alheios aos demais. Limitam-se a aguardar. Têm um olhar perdido, dis-tante, no vazio.

Mas outros ainda mantêm uma réstia de espe-rança. Agitam as camisas que tiraram do próprio corpo, fixando o olhar num ponto da linha do hori-zonte. Agitam os braços para não passarem

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despercebidos. Mas o que se vê no horizonte é ape-nas um minúsculo ponto carregado de incertezas.

Nesta obra a jangada simboliza a Terra.Os tripulantes representam a Humanidade e as

atitudes de cada um perante a vida.A estrutura da composição foi feita através das

medianas (linhas horizontais e verticais), das diago-nais e outras verticais e oblíquas do plano.

4.º ANÁLISE TÉCNICA, FORMAL E/OU PLÁSTICA

A organização formal é clássica, feita por duas estruturas piramidais.

As personagens assumem posições variadas, umas agitadas levantando os braços para o alto em atitudes de desespero e outras em abandono e desalento.

Os corpos foram representados em escorço reforçando o dramatismo da cena. A perspetiva foi um dos recursos representativos utilizados para amplificar a dor e o desespero.

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6. A temática da paisagem na pintura românticaEm Caspar David Friedrich (1774-1840):

Este autor pintou preferencialmente paisagens desertas, inóspitas e agrestes, em que a presença humana, quando existe, aparece como opositora à Natureza, isto é, como alguém que lhe é estranho e a observa “de fora”, como espetáculo. Por isso as suas personagens encontram-se representadas de costas e/ou em contraluz, na mesma postura que os espec-tadores dos seus quadros olhando a paisagem pintada.

Em John Constable (1776-1837):

Este pintor foi o mais naturalista dos paisagistas românticos porque as suas paisagens refletem com maior veracidade as formas, cores e ambiências da realidade. No entanto, pelas composições e pela ilu-minação, as suas obras atestam uma visão idílica e bucólica da Natureza, captada de modo sensível e emotivo pelo pintor, o que se pode também com-provar pelos enquadramentos escolhidos.

Em William Turner (1775-1851):

Turner pintou sobretudo paisagens marinhas, em grandes enquadramentos, com a linha de horizonte muito baixa de modo a fazer sobressair os céus, onde regista com particular atenção e expressividade os efeitos de luz e cor, em diferentes condições climáti-cas e em diferentes ambientes atmosféricos (chuva, neve, nevoeiro, fumo...). Esta característica faz dele um precursor do Impressionismo.

As suas paisagens estão sempre povoadas, mas as pessoas nelas incluídas desempenham um papel muito secundário na composição, passando quase despercebidas no meio dos enquadramentos, como se da paisagem fossem parte integrante.

Caspar David Friedrich, O Naufrágio do Esperança ou Mar de Gelo, 1823-24, óleo sobre tela, 126,9 x 96,7 cm.

John Constable, A Catedral de Salisbúria, 1823, óleo sobre tela, 87,6 x 111,8 cm.

William Turner, A Explosão do Vesúvio, 1817, aguarela, 28,6 x 39,7 cm.

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7. Van Gogh sobre a intencionalidade da sua execução plástica

Retrato do Dr. Gachet, 1890, óleo sobre tela, 58 x 67 cm (Museu d'Orsay, Paris).

Café à Noite, 1888, óleo sobre tela, 70 x 89 cm (Galeria de Arte da Universidade de Yale, EUA).

Não sei se alguém falou já, à tua frente, da cor sugestiva. Dar-te-ei um exemplo: eu vou fazer o retrato de um amigo, um artista, um sonhador. Esse homem será louro e eu desejo reproduzir no quadro toda a minha admiração, todo o amor que tenho por ele. Começarei, portanto, por pintá-lo como ele é, tão fiel-mente quanto possível. Mas o quadro não fica pronto ainda. Para o acabar, vou tornar-me um colorista arbi-trário: exagero o louro dos cabelos e chego aos tons laranja, ao amarelo-cromo, à cor de limão, clara. Por detrás da cabeça pinto, em vez da habitual parede de um quarto vulgar, o infinito. Faço um fundo azul mais forte de que sou capaz e, assim, a cabeça loura e lumi-nosa sobre o plano de fundo recebe da riqueza do azul um efeito místico, como uma estrela no azul profundo do céu.

Van Gogh, Cartas a seu irmão, em: W. Hesse, Documentos para a Compreensão da Pintura Moderna.

Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.

Tentei [no quadro Café à Noite] com o vermelho e com o verde exprimir as terríveis paixões dos homens. É uma cor que não é literalmente verdadeira, do ponto de vista do realismo, é uma ilusão de ótica, mas é uma cor sugestiva que exprime que o café é um local onde uma pessoa fica enlouquecida e pode tornar--se criminosa. Tentei isso pelo contraste do rosa-suave com um vermelho-rútilo e um vermelho-escuro cor de vinho; por um verde-amarelo e um verde-veronese, que contrastam com um verde-amarelo e um severo verde-cinzento. Tudo isto exprime a atmosfera de um mundo sub-terrâneo incandescente, um pálido sofri-mento, a escuridão que domina por sobre tudo aquilo que dorme.

Van Gogh, Cartas a seu irmão em: W. Hesse, Documentos para a Compreensão da

Pintura Moderna. Lisboa: Ed. Livros do Brasil, s/d.

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Começo com o nu deitado, representando uma ra- pariga “kanaca”, sem outra intenção que não seja pintar um nu; ao mesmo tempo, porém, que uma certa expres-são de medo da rapariga me atrai e me obriga a pensar no espírito e na maneira de ser dos “kanakis”. Isso sugere-me o emprego de uma cor sombria, triste, assus-tadora, que impressione como um dobre a finados.

Na colcha da cama, o amarelo ganha um carácter particular; ele sugere a ideia da luz artificial na noite e substitui assim a luz de um candeeiro, que seria dema-siado banal (os “kanakis” deixam sempre durante a noite uma luz a arder, com medo dos espíritos). O amarelo forma também uma transição entre outras duas cores e completa o acorde musical do quadro.

O sentido decorativo leva-me a semear o pano do fundo com flores, as quais recebem cores semelhantes a fosforescências na noite, pois só agora se condensa a parte “literária” do quadro: as fosforescências notur-nas significam para o indígena que o espírito dos mor-tos está presente. O medo da rapariga está agora teoricamente explicado.

A parte musical – linhas ondulantes, acordes de laranja e amarelo, azul e violeta e suas respetivas decomposições, iluminadas por centelhas esverdeadas – torna-se um equivalente da parte literária: o espírito de um vivo ligado com o espírito de um morto.

Paul Gauguin, Avant et Après, Paris, 1903

Guião de exploração da imagem e do texto:

1. Gauguin afirma que começou a pintar este qua-dro com a intenção de “fazer um nu”. O que o fez mudar de ideia?

2. Que expressão notou ele no rosto da rapariga? Como justifica essa expressão?

3. Por causa da expressão da rapariga, o quadro dei-xou de ser um simples nu. Que passou, então, a ser? Que nos pintou Gauguin?

4. Em que fundamenta ele esse “novo” tema?

5. Gauguin induz-nos a “ler” esse novo tema através da sua execução plástica. Explicite e comprove usando exemplos da imagem.

6. Ainda segundo Gauguin, a obra possui “uma parte (ou sentido) literária” e uma “parte musical”. O que entende por uma e por outra?

7. Como construiu ele, na tela, a parte literária? E a parte musical?

8. O novo tema do quadro é real? Onde foi Gauguin encontrá-lo?

9. Podemos chamar esta obra de simbolista? Justifi-que a sua resposta.

8. Paul Gauguin explicando-se a si próprio

Manao Tupapau (O Espírito do Morto Vigia), 1892, Taiti, Polinésia Francesa, óleo sobre tela, 73 x 92 cm (Galeria Albright-Knox, Buffalo, EUA).

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9. Rodin, A Porta do Inferno, 1880-1917, bronze, 635 x 400 x 85 cm (Museu Rodin, Paris)

Foi em 1900, na Belle Époque, […] que Rodin levantou o pano da sua famosa Porta do Inferno, em que o humanismo prometeico fez ecoar as descober-tas de Freud sobre o inconsciente e o instinto sexual recalcado. Através desta obra monumental e essen-cial, Rodin abre um mundo novo para a arte. Ele está para a escultura como Van Gogh, Gauguin e Cézanne estão para a pintura.

Num tempo em que a escultura parecia ter perdido todo o seu espírito, foi ele o primeiro a reatar com o Cin-quecento. Continuou a grande lição do Renascimento iniciada por Miguel Ângelo, transmitindo-a às gerações seguintes […]. O próprio Rodin precisou: “Caminho pela antiguidade mais recuada. Pretendo ligar o passado ao presente, retomar a recordação, julgar e chegar a com-pletar. Os homens são conduzidos por símbolos. É dife-rente de ser conduzido por mensagens. A verdade e a grandeza eram o que preocupava Rodin e a Porta do Inferno constitui uma verdadeira matriz onde as suas criações inspiradas no Inferno de Dante, nas Metamor-foses de Ovídio e em As Flores do Mal de Baudelaire apenas existem através desta “vontade de poder” e desta capacidade inventiva, caras a Nietzsche. Rodin é um Miguel Ângelo que teria escutado Wagner…

“Mas esta porta não está acabada”, criticamos nós. E o escultor defende-se: “E as catedrais de França estão acabadas?”

É sobretudo esta subversiva Porta do Inferno, onde se contraem e se flagram seres tão amorosos quanto desesperados, que põe fim, de uma só vez, ao acade- mismo insípido que reinava há muito na escultura. Alguns dos seus antecessores, tais como Houdon ou Carpeaux, tinham já submetido a plástica à expressão do material e do psicológico. Mas Rodin vem acrescen-tar, e isso é que é inovador, o poder de transpor para a plástica até mesmo as tensões confusas e passionais da realidade interior. […] Em 1906, Rodin confidenciou a Bourdelle, seu discípulo: “A minha libertação do acade-mismo fez-se por intermédio de Miguel Ângelo que, ao ensinar-me (através da observação das suas obras) regras diametralmente opostas às que tinha aprendido (escola de Ingres), me libertou… Foi ele que me esten-deu a sua mão poderosa. Foi por essa ponte que passei de um ciclo para outro…”

Daí em diante, Rodin pôde lançar-se às suas obras--primas, não permitindo que os seus modelos adotas-sem poses académicas, mas sim que circulassem livremente pelo ateliê. A sua Idade do Bronze (1875-76) provocou, desde logo, pela flexibilidade e pela força na moldagem do tema, admiração em alguns e dúvidas noutros: a obra é demasiado perfeita! É o escândalo da sobremodelagem. […] [Quanto à Porta do Inferno], Rodin meteu imediatamente mãos à obra [após a enco-menda em 1889], lendo e relendo a Divina Comédia, escurecendo centenas de páginas do bloco de esboços, elaborando dezenas de maquetes e estudando atenta-mente os modelos existentes desse género: as portas do Baptistério de Florença e, mais em particular, a de Ghi-berti, conhecida como “As Portas do Paraíso”. Dante, disse Rodin então, “não é somente um visionário e um escritor. É também um escultor…”

[…] o Pensador representa o próprio poeta. Mas, depressa Rodin extravasa o tema e introduz personagens que revelam também uma influência baudelairiana. A sua intenção é, declaradamente, criar um universo, exe-cutar um friso de paixões e sentimentos da Humanidade. Este trabalho imenso passará a ser o reservatório de for-mas ao qual Rodin irá constantemente recorrer para dar origem a toda uma série de grupos e de estátuas “indivi-dualizadas”, que se irão impondo como outras tantas obras-primas dotadas de vida própria. […]

O seu ateliê transformou-se numa verdadeira fábrica onde trabalhavam mais de cinquenta praticantes, desde moldadores a canteiros de mármore, e não eram só des-conhecidos, já que figuravam entre eles Maillol, Bourdelle e Camille Claudell.

Gilles Néret, Auguste Rodin. Colónia: Ed. Tashen, 1997

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10. Antoní Gaudí, Casa Batló (1905-06), Barcelona, Espanha

ver doc. 119, p. 184 do Manual

Vista interior e exterior da grande janela do salão principal.

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A Casa Batló é um edifício modernista que pos-sui a marca da genialidade do seu projetista, o arquiteto catalão Antoní Gaudí. Foi reconstruída a partir de um imóvel preexistente datado de 1875, a pedido de Joseph Batló, um rico aristocrata. Os pisos inferiores destinavam-se à habitação da famí-lia do senhor Batló e os superiores foram arrenda-dos. Este imóvel situa-se no Passeig de Gràcia, no coração da cidade de Barcelona, capital da Catalunha.

Vista do exterior, a fachada parece ter sido cons-truída com “caveiras e ossos”. As caveiras (há quem diga que são máscaras) são na realidade as varandas e os “ossos” os pilares de apoio. Por isso, em Barcelona é conhecida por “Casa dos ossos”. Olhando de frente para o edifício observamos uma fachada original,

fantástica e imaginativa, feita de paredes onduladas em pedra ou em argamassa coberta por frag-mentos de mosaicos e de vidros coloridos que refletem e filtram a luz solar. Daí ser considerada uma obra-prima da arquitetura, na forma, na cor e na luz. O ondulado da superfície e o recorte superior do telhado pa- recem a coluna vertebral de um animal fantástico (um dragão?).

A “coluna” (dorso) é composta por enormes placas de cerâmica vidrada que mudam de cor, de acordo com a posição do obser-vador e a incidência luminosa.

Toda a casa possui um per-manente diálogo entre a luz e a cor. A claraboia central, por exemplo, deixa passar uma “cas-cata de luz” e é composta por enormes estruturas de ferro e placas de vidro. A luz natural fil-trada pelos vitrais das janelas e as formas orgânicas de paredes, portas e janelas, em tons de ver-des e azuis, fazem com que os interiores lembrem o mundo aquático. O exterior é alegre, feito de alegorias com cores orgânicas cheias de simbolismo.

As grades das varandas são em forma de máscara (ou será uma caveira?) feitas em ferro fundido e forjado numa só peça.

As janelas são feitas de madeira moldurada e abrem e fecham com contrapesos.

As varandas exteriores do 1.º piso ou piso nobre incluem pilares delgados talhados em forma de osso.

Esse andar foi a casa onde viveram os Batló e foi aí que o arquiteto deu “asas” à sua capacidade inven-tiva. Criou paredes ondulantes autónomas em rela-ção às do exterior. Decorou salas. Construiu uma escadaria toda em madeira esculpida e corrimões, maçanetas de portas e elementos decorativos ergo-nómicos que cativam os visitantes e os conduzem a partir da entrada.

Todos os projetos foram executados até ao por-menor sendo verdadeiras peças de design, de espaço, de forma, de cor e de luz.

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11. Kirchner, Toilette. Mulher ao Espelho, 1912-1920, óleo sobre tela,

100,5 x 75,5 cm (Museu Nacional de Arte Moderna, Centro Georges Pompidou, Paris)

A impressão imediata que este quadro nos transmite, quando o observamos, é a de desequilí-brio, de instabilidade. Tudo parece concebido nesse sentido.

A postura da mulher é de uma certa firmeza, mas o seu frente a frente com o espelho inclinado está numa perspetiva no mínimo forçada. E não é a ordem dos objetos que está alterada, é a composi-ção da obra.

Curiosamente, o único objeto que possui uma estrutra vertical, o toucador, está de tal modo dese-nhado que, apesar da sua forma retangular e conse-quentemente estável, nos parece distorcido; isto porque as horizontais e verticais do retângulo azul que ele forma no 1.º plano não são de modo algum paralelas aos bordos da tela, provocando-nos assim a sensação de desequilíbrio.

Apercebemo-nos também que há um movi-mento arredondado que parte do cotovelo es- querdo da mulher, segue em direção ao espelho e

continua através dele até ao toucador (linha a-b). Este movimento está reforçado visualmente pela forma interna do toucador (linha c-d); este movi-mento é o responsável maior pela sensação de desestabilização que o quadro nos transmite.

Contudo, a composição do quadro orienta-se sobretudo por triangulações, isto é, um sistema de encontros de linhas oblíquas. Os braços da mulher penteando os cabelos formam uma forte diagonal que atravessa a tela do canto superior esquerdo para o canto inferior direito (linha a-b). A tela encon-tra-se igualmente atravessada por uma diagonal contrária, a que vai das pernas da mulher ao canto direito do espelho (linha c-d). Outra oblíqua deses-tabilizante é a formada pelo espelho, assente, em posição precária, sobre um livro (linha e-f ).

A figura da mulher é composta por uma série de “triângulos”: um formado pelos braços levanta-dos e pelo tronco visto de costas e apertado num corpete branco, também ele triangular (triângulo

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azul); outro composto pelas ancas e pelas pernas fletidas (triângulo amarelo); o próprio tamborete onde a figura feminina se senta tem a forma de triângulo assente sobre o vértice (triângulo verde).

Outra observação relevante diz respeito à rela-ção dos objetos representados (mulher, espelho, toucador) com o fundo, o cenário que os enquadra. As linhas que os delimitam em relação ao espaço que lhes está adjacente, à direita e à esquerda, são linhas quebradas e angulosas que reforçam o carác-ter instável da composição (linhas amarelas).

Mas porque quis o pintor passar-nos esta forte sensação de instabilidade e desconforto?

O cenário, sumariamente apontado (espelho pro-visoriamente apoiado num livro, poucos objetos sobre o toucador), faz-nos pensar numa existência também precária ou caótica, que vive do momento fugaz.

Os contrastes cromáticos – ocres, amarelo-azul, branco-preto, vermelho-verde – reforçam essa sensação.

A resposta talvez esteja na relação da mulher com o espelho. Quando olhamos a sua figura de costas, de cintura fina, tronco direito e braços levan-tados, ajeitando os cabelos, pensamos em alguém jovem e “coquette”, num ato de embelezamento pessoal. Todavia, a figura que vemos no espelho, tem o rosto cansado e abatido, a cabeça enterrada entre os ombros flácidos e arqueados, e os braços caídos numa postura de desânimo.

A mulher que vemos de costas ao espelho não é a mesma que o reflexo do espelho nos (e lhe) devolve.

Qual será a verdadeira? Que pretendeu Kirchner “contar-nos”? Que relação existe entre estas duas mulheres: a que vemos de costas e a do espelho?

12. Wassily Kandinsky, Com O Arco Negro, 1912, óleo sobre tela, 188 x 196 cm

(Museu Nacional de Arte Moderna, Centro Georges Pompidou, Paris)

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Com O Arco Negro é uma obra duplamente importante: ela representa uma mudança de rumo no itinerário artístico de Kandinsky e, ao mesmo tempo, uma alteração fundamental na sua maneira de conceber a arte, o seu papel e o seu espaço. [...]

Kandinsky realizou esta obra numa época já for-temente marcada pela efervescência da Arte Nova, nascida no último decénio do século anterior [...], e pela agitação ainda mais recente das vanguardas dos “ismos”: fauvismo, expressionismo, futurismo, cubis- mo. Se fosse preciso resumir numa frase o que preocu-pava estes movimentos [...], poderíamos citar Maurice Denis que dizia que um quadro, antes de representar este ou aquele objeto, ”é, essencialmente, uma super-fície plana, recoberta de cores, colocadas por uma certa ordem”.

Já os impressionistas, e depois Cézanne, Gauguin e Van Gogh haviam sido assaltados por este carácter duplo com o qual a arte era cada vez mais confron-tada: de um lado a representação dos objetos da Natureza, e, do outro, as exigências próprias da orga-nização em formas e cores, de uma superfície plana que se pretende animar.

Contudo, no primeiro decénio do século, este aspeto tomou uma importância infinitamente maior; com efeito, os artistas mais sensíveis à necessidade de uma reformulação da arte estavam preocupados com a redução do motivo, com a sua deslocação ou até com o seu desaparecimento, anunciado nas obras da época. Estava, pois, em perspetiva, a questão do fim da arte tal como havia sido entendida até então e o nascimento de uma outra, desconhecida, que se bas-tava com as suas próprias coordenadas [...], isto é, uma arte abstrata. [...].

Ora, foi justamente Kandinsky o primeiro a afron-tar esse problema e a encontrar-lhe uma solução. E Com O Arco Negro pertence inteiramente a este momento de charneira entre a pintuta figurativa e a pintura abstrata.

[...] Este quadro enquadra-se na categoria de “com-posição”, mas é significativo de um trabalho que alia a liberdade de intuição ao rigor da construção. O seu título define na perfeição a ideia do movimento que um quadro impõe ao olhar. O arco negro é o único plano negro da obra que se inscreve como uma super-fície nitidamente delimitada, destacando-se sobre a parte mais clara do fundo. Ele chama imediatamente o olhar. Mas mesmo que não o fizesse, a grande man-cha arredondada que lhe está próxima, de cor verme-lha – a cor mais intensa da obra –, fá-lo-ia só por si.

É a partir do “arco negro” que o nosso passeio visual pela obra se organiza. O efeito “pesado” da sua forma escura sobre o fundo claro não deixa de o rela-cionar com a forma azul massiva que lhe fica abaixo.

Mas o olhar segue o arco, curvado por cima da grande forma monolítica vermelha, impondo-lhe o seu con-torno sem nada alterar. Em seguida, ele vai perder-se no caos gráfico da forma laranja, em baixo, à direita; e, de lá, partem algumas linhas pretas que nos “condu-zem” à forma azul, à esquerda.

Na sua curvatura, o arco perpassa e une, num movimento circular, as três formas essenciais que compõem a obra. Formas que se demarcam do fundo claro. Notemos que esse fundo poderá produzir um certo efeito de perspetiva, no alto à esquerda, onde uma mancha azul, em ângulo, nos prefigura algo para além de um horizonte sugerido pelo grafismo a negro.

Estas três formas não têm a mesma configuração. A do alto é calma, delimitada com precisão, serena-mente fixa e “flutuante” sobre um fundo fugidio. Em contraste, a forma azul está contorcionada, criando um universo autónomo e agitado pelo movimento das linhas que laceram a massa. Esta mancha é igual-mente golpeada pelo verde luminoso e quebrada pelo azul quase negro que lhe está sobreposto; ela é diversa e movimentada dentro dela própria. Por seu lado, a forma da direita está como que invadida, ou, se assim o preferirmos, cheia da matéria que faz o fundo da tela. Ela é, por isso, aberta [...].

Assim, a partir destas três formas que estruturam o todo, movimentos contraditórios, mais ou menos vio-lentos, rápidos, agitam a tela. E é um verdadeiro com-bate que aí se trava, mesmo quando o conjunto encontra o seu equilíbrio [...]. Um antagonismo atra-vessa esta pintura que parece, ao mesmo tempo, dar livre curso ao gesto improvisado e espontâneo, mas também ao de mestre. O nosso olhar fica preso num enrolamento, uma cadeia de forças, ou retido por sub-tis vibrações, cuja eficácia – isto é, a capacidade para produzir uma emoção – depende, em simultâneo, da intuição do pintor e do seu poder para organizar cien-tificamente as relações plásticas: cores, formas, linhas, brilho, textura.

Poderíamos evidentemente prosseguir a descrição deste quadro até ao detalhe [...] O “passeio” poderia continuar. Mas já no ponto onde nos encontramos nos é possível vislumbrar o propósito de Kandinsky [...], salientar as possibilidades infinitas de fazer viver uma superfície, antes amorfa, mas onde agora se vão arti-cular fortemente a objetividade das formas e a subjeti-vidade do movimento.

Claude Amey, 25 Tableaux Modernes Expliqués. França: Éditions Marabout, 1994

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372. Orientações complementares

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13. Miró, Interior Holandês I, 1928 (MoMA, Nova Iorque, EUA)

Em 1928, Miró fez uma rápida visita à Holanda e ficou intrigado com o realismo das pinturas de género holandesas do século XVII que analisou no Rijksmuseum de Amesterdão.

Do Rijksmuseum Miró trouxe reproduções e postais e, já em Paris, inspirou-se neles para criar uma série de obras a que chamou Interiores Holandeses.

O Interior Holandês I (em cima, à direita) inspirou--se diretamente no Tocador de Alaúde de Sorg (em cima, à esquerda). A obra de Sorg mostra-nos um casal, junto a uma mesa, num típico interior holan-dês do século XVII. Estão perto de uma ampla janela aberta de onde se avista a cidade.

No quadro de Miró, o interior mantém-se, bem como o cão, o gato, a janela, o homem que toca alaúde, o quadro na parede do fundo. Mas há, tam-bém, numerosas inovações: a mulher desapareceu, um sapo persegue um inseto, uma faca descasca sozinha uma maçã, um morcego volteia na sala, no chão aparece uma grande pegada negra.

O interior da casa, antes sossegado, calmo e orde-nado, parece agora varrido por uma agitação caótica, que tem tanto de divertida e irónica quanto de enig-mática. Uma multidão de animais, plantas e peque-nos objetos parecem bailar pela sala, ao som da música do alaúde. A obra evidencia a imaginação e a criatividade, a um tempo infantil e genial, de Miró.

Técnica e estilisticamente, a arte de Miró é o resul-tado de um processo de simplificação da linguagem pictórica. A cor é plana, sem modelação e reduz-se quase às primárias – vermelho, amarelo e azul –, separadas entre si pelo branco e pelo preto. As for-mas, construídas pela cor, são planas e abstratizantes. Por vezes, entre as formas há linhas (ora retilíneas, ora sinuosas) que interligam e dão unidade às formas. A composição é intuitiva e recorre ao equilíbrio entre linhas e manchas-formas de cor.

Foi com estes caracteres que Miró criou a sua lin-guagem pictórica. Nela, os objetos não aparecem como são na Natureza , mas como sígnos simples do seu universo interior.

Hendrick Sorg (1610/11-1670), O Tocador de Alaúde, 1661, óleo sobre tela, 51,5 x 38,5 cm (Rijksmuseum, Amesterdão).

Miró, Interior Holandês I, 1928, óleo sobre tela, 92 x 73 cm.

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14. Edward Hopper, Notívagos (ou Aves da Noite), 1942, óleo sobre tela,

84,1 x 152, 4 cm (Art Institute de Chicago, EUA)

O tema da obra é uma cena noturna em Nova Iorque, onde as ruas desertas se enchem de som-bras e de solidão. O seu espaço vazio é ainda mais inquietante quando preenchido pela inquietante escuridão.

A composição baseia-se numa cunha (a esquina do café ou bar) que avança pela tela, da direita para a esquerda, contrapondo-se à fieira de lojas (fechadas, escuras e vazias) do outro lado da rua.

No interior do bar (uma caixa de vidro e luz, na escuridão), o foco luminoso localiza-se no casal e no criado do bar. O homem e a mulher sentam-se juntos ao balcão. Mas, quando os olhamos mais demoradamente, percebemos que não há comu-nicação entre eles. Ambas as personagens estão

absortas em si mesmas. O isolamento entre eles afigura-se-nos total, apesar das mãos que quase parecem tocar-se.

No outro canto do balcão, um homem de cos-tas, meio envolvido pela sombra, equilibra a com-posição, ao mesmo tempo que fornece ao quadro uma espécie de tensão constrangedora.

Quando confrontaram Hopper com esta estra-nha solidão que emana da obra, ele negou que ela tivesse sido propositada.

Esta obra é uma das mais famosas do autor, tal-vez por conseguir captar, de forma completa, o espí-rito dos americanos da sua época. Uma geração acabada de sair da Grande Depressão dos Anos 30 que enfrentava já a violência da 2.ª Grande Guerra.

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