Composição: Ricardo F. da Silva Supervisão: SissaJacoby ... · venção dos aparelhos...

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> Comunicação de massa Comunicação de massa: Democracia Capa: Marco Cena Composição: Ricardo F. da Silva Supervisão: Sissa Jacoby 1985 Todos os direitos reservados pela Editora Mercado Aberto Uda. Rua Santos Dumont, 1186 -Fone (0512) 228822 90230 Porto Alegre - RS Impressão: Gráfica Editora Pallotti FICHA CATALOGRÁFICA C741 Comunicação e transição democrática [por] Mauro Salles [ et al, ] Org. José Marques de Melo. Por- to Alegre, Mercado Aberto/Intercom, 1985. 320 p. (Novas Perspectivas, 16) CDU 659.3 6593: 321.7 o Indiees alfabéticos para catálogo sistemático: 659.3 659.3: 321.7 Bibliotecária responsável: Rejane Raffo KIaes CRB-I0!586.

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>Comunicação de massaComunicação de massa: Democracia

Capa: Marco CenaComposição: Ricardo F. da Silva

Supervisão: Sissa Jacoby

1985

Todos os direitos reservados pelaEditora Mercado Aberto Uda.

Rua Santos Dumont, 1186 -Fone (0512) 22882290230 Porto Alegre - RS

Impressão: Gráfica Editora Pallotti

FICHA CATALOGRÁFICA

C741 Comunicação e transição democrática [por] MauroSalles [ et al, ] Org. José Marques de Melo. Por-to Alegre, Mercado Aberto/Intercom, 1985.

320 p. (Novas Perspectivas, 16)

CDU 659.36593: 321.7

o

Indiees alfabéticos para catálogo sistemático:

659.3659.3: 321.7

Bibliotecária responsável: Rejane Raffo KIaes CRB-I0!586.

ESTADO E MEIOS DE COMUNICAÇAO NO BRASIL

JOSÉ NILO TAVARES •

o Documento Básico do Ciclo revela algumas preocupações emrelação ao futuro da nossa sociedade que me parecem extremamentepertinentes. Assim destaca a presença ostensiva do Estado nos meios decomunicação e a debilidade das instituições que constituem a sociedadecivil brasileira, acentuando textualmente: "Os que imaginam possíveismudanças radicais na estrutura da sociedade brasileira relegam essasquestões a segundo plano, julgando-as menores diante dos problemaspolíticos e econômicos .... Ao contrário, estas são algumas das ques-tões mais importantes para a viabilização de um projeto político demo-crático entre nós. Enquanto não forem compreendidas, não poderão sersuperadas. E enquanto não forem superadas, dificilmente um projetopolítico democrático terá condições de êxito, inclusive porque, graçasa todas as suas idiossincrasias, o Brasil tornou-se uma sociedade muitodependente do que seu povo consome, em termos de informação polí-tica, dos meios de comunicação".

Partilhando desta apreensão e tomando-a como ponto de partidapara as reflexões que trago ao Ciclo, gostaria de desenvolver 'a minha pa-lestra em dois sentidos: analisando o documento básico e explicitando omeu ponto de vista sobre os argumentos nele desenvolvido, adicionan-do ao debate algumas questões que julgo fundamentais em relação aotema que me foi proposto e que, em grande medida, o documento omi-te. Embora as minhas observações resultem de estudos e leituras da pro-dução científica de vários colegas que têm se dedicado â temática, dis-penso as citações bibliográficas, procurando imprimir uma fluência maisespontânea ao pensamento.

*Livre-Docente em Ciência Política, lecionou nas universidades federal e católicade Minas Gerais. em Belo Horizonte. até 1964. Professor de Ciência Política noscursos de graduação da Universidade Federal Fluminense. 'da PUC-RJ. e de pós-graduação na Universidade Santa Ürsula e Faculdades Bennett. Autor de várioslivros. entre os quais Conciliaçâo e Radicalizaçâo Politica no Brasil (Vozes) eMarx,o Socialismo e o Brasil (Civilização Brasileira). Atualmente é o coordenador doCentro de-Memória do Jornalismo Brasileiro, da ABI.

Duas preocupações parecem embasar o documento, relacionadascom o que poderíamos chamar de uma Teoria do Estado brasileiro e deuma Teoria da Sociedade brasileira, tendo em vista particularmente asua estrutura de classes. Essas vertentes desembocam, evidentemente,no amplo estuário da indústria cultural ou, mais especificamente, dosmeios de comunicação e seus produtos.

Os fundamentos científicos do documento remetem-nos, implici-tamente, a Hegel, Marx e Gramsci, o qual, entre 1915 e 1937, data desua morte nos cárceres fascistas, retomou as linhas mestras do pensamen-to marxista, incorporando-lhe a importante contribuição de Lenin, como objetivo de captar as grandes tendências do seu tempo, da sua socieda-de e orientar-se na prática política italiana.

As questões do Estado e da Sociedade Civil, bem como a da hege-monia e a da ideologia, tiveram em Gramsci um tratamento analíticoprofundo e original, resultando em sua contribuição básica ao marxis-mo. A ciência da história e da sociedade, fundada por Marx, enriquece-se com Gramsci e abre novas e ricas perspectivas para a compreensãodo processo do capitalismo no século XX, particularmente em sua fasenazi-fascista.

Para nós brasileiros a obra de Gramsci assume importância muitoespecial, não obstante as dificuldades que possa suscitar em virtude dascondições extremamente difíceis em que foi construída e do quase totaldesconhecimento existente, em nosso mundo acadêmico e científico,do trabalho colossal de Lenin. E quem não conhece Lenin muito dificil-mente poderá entender Gramsci.

A importância especial de Gramsci, para nós, reside nro apenasna sua contemporaneidade mas, principalmente, em nossa identidade.Em nenhum clássico marxista encontramos análises tão pertinentes paraa nossa realidade como em Gramsci. E pouquíssimas sociedades apre-sentam traços tão semelhantes aos nossos como a sociedade italiana daprimeira metade do século. Ainda em nossos dias debruçar sobre a so-ciedade italiana é um exercício extremamente salutar para o cientistasocial brasileiro e o militante político.

A vulgarização da sua obra, no entanto, como ocorreu, aliás, comMarx e Engels, à época da difusão do seu -pensarnento nas vagas da Se-gunda Internacional, está criando algumas ciladas para os desavisados.As ciladas do historicismo e do idealismo, por exemplo. O historicismoiludindo-nos com uma visão de continuidade histórica e impedindo-nos decompreender, por vezes, os processos de ruptura; e o idealismo, de sa-bor croceano, levando-nos a enfocar, muitas vezes, a ideologia desvincu-lando-a do seu contexto real, das condições materiais da sua existência.

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Não acho que o texto básico incorra necessariamente nesses des-vios, não obstante me pareça, em algumas passagens, desavisado. Assim,por exemplo, naquela passagem em que capitalismo e burguesia são en-trevistos como entidades autônomas e o capitalismo parece assumir umaexistência própria, como sistema ou modo de produção, independentedos seus agentes reais. Aqui desvincula-se o objetivo do subjetivo, rom-pendo-se uma unidade dialética ã moda idealista. Compreende-se, noentanto, que as limitações de espaço e tempo impostas a um documentoque pretende ser básico, suscitador de questões, leve os seus autores ainevitáveis sínteses e simplificações.

As teses contidas no documento básico que destacamos para dis-cussão seriam as seguintes:

1 - Como justificar, no Brasil, os conflitos entre Estado e indús-tria cultural, se ambos defendem os interesses dos mesmos grupos so-ciais?

2 ~ Nos países capitalistas centrais a indústria cultural é parteintegrante e efetiva da Sociedade Civil, o mesmo não ocorrendo no Bra-sil.

3 - São impensáveis nos países capitalistas centrais o empregoda censura policíal, o controle económico dos meios de comunicação ea Ingerência política do Estado sobre eles.

4 - Estado e Sociedade Civil, embora resguardando a sua espe-cificidade, pertencem a um mesmo sistema de poder que garante a re-produção ideológica capaz de assegurar a manutenção da hegemoniaburguesa.

S - Se Estado e Sociedade Civil são aspectos indissociáveis deuma só realidade como explicar, analiticamente, que se possa separarum do outro? A separação seria Simples artifício da burguesia, no senti-do de afirmar a neutralidade do Estado e, assim, assegurar a sua hege-monia?

6 - Em que medida e de que maneira os meios de comunicaçãoconstituem parte da sociedade civil, em quase todas as formações sociaiscapi talistas?

7 - O Estado burguês talvez não deveria confundir-se com o Es-tado capitalista, desde que não existe para defender os interesses da bur-guesia ou dos sujeitos individuais pertencentes à burguesia, mas sim paradefender os interesses do capitalismo e garantir sua sobrevivência.

8 - As contradições e conflitos entre o Estado e a burguesia,naturais e previsíveis, ocorreriam com intensidade e freqüência excessi-vas no caso brasileiro. Uma explicação possível para o fenômeno seria ainserção dependente na ordem capitalista internacional, do Brasil, eantes que aqui se houvesse constituído um modo de produção capítalis-

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ta autónomo. Tal situação explicaria, inclusive, as interferências abusi-vamente extraordinárias do Estado na vida da indústria cultural.

9 - As relações de classes e as próprias classes sociais no Brasilsão frágeis, carecem das dimensões estruturais e dos dinamismos societã-rios que, nos países centrais, são indispensáveis para a estabilidade etransformação equilibrada da ordem social.

10 - Em virtude da debilidade das classes (inclusive das domi-nantes) e de sua fraqueza, recorre-se, no Brasil, com freqüência à inter-venção dos aparelhos repressivos do Estado para garantir a ordem. 80.mente assim a burguesia conseguiria impor a sua hegemonia. Também asinstituições da sociedade civil são fracas e frouxas as relações entre elas.

11 - Conseqüentemente, amplia-se a influência do Estado sobreos meios de comunicação e é comum o fato de o Estado apelar para osmeios de comunicação como instrumentos de sua legitimação, de di-fusor da sua ideologia e de embasador do seu poder.

Assim como se torna difícil falar em uma Teoria Geral do Estado,torna-se igualmente problemático falar em uma Teoria Geral do Estadobrasileiro, não obstante esteja fora de dúvidas a tese da existência deuma história do Estado no Brasil. A partir desta história, evidentemen-te, pode-se depreender a estrutura e o funcionamento do Estado, nopaís, em várias fases históricas, traçando-se, inclusive, um quadro analí-tico das características da instituição.

O Estado patrimonial, que domina o Império; o Estado oligãrqui-?O da Primeira República; o Estado de transição, ou o Estado Novo, quese afirma no período compreendido entre as duas Guerras Mundiais; oEstado populista e o Estado autocrático-militar constituem modalida-des de organização e desempenho estatal concretamente situadas.

Existem variações de conteúdo e de forma, historicamente deter-minadas, entre essas modalidades, embora persistam, no seu interior,traços técnicos mais ou menos duráveis. A aristocracia rural e a econo-mia escravocrata monocultora que imprimem conteúdo ao Estado patri-monial, por exemplo, não teriam muito a ver com as oligarquias rurais ea economia capitalista atrasada que dão substrato ao Estado oligárqui-co. Distanciando a visão, percebemos com maior clareza, por exemplo,a profunda diferença entre o Estado patrimonial e o Estado populista.

Do ponto de vista da forma, as variações poderiam parecer maissutis. A análise das Constituições que, em geral, dão o arcabouço técni-co formal da organização política estatal, mostraria, por exemplo, apersistência do sistema de divisão de poderes, ou do princípio da so-berania popular, ao longo dos anos. No entanto, alterou-se substancial-mente o sistema e modificou-se profundamente o princípio e o critério

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da prática, mais uma vez, apresenta-se como o instrumento eficaz paradiscernir os elementos meramente técnico-formais.

Se essa tipologia do Estado brasileiro mo deixa de possibilitaruma compreensão mais profunda da realidade estatal, capaz de orientar-nos teórica e praticamente, está longe contudo de constituir-se numaTeoria do Estado brasileiro, ou seja, num conjunto de conhecimentoscapaz de estabelecer relações de causalidades mais ou menos rigorosas,suscetíveis de generalização. As múltiplas determinações que dão subs-tância ao concreto transformam-se e articulam-se de maneira infinita,sendo insuscetíveis de apreensão estática, e assim ocorre com oconcretopolítico e estatal.

Essas considerações foram levantadas a propósito. do texto básico,em suas referências ao Estado brasileiro ou, indiretamente, ao Estado,em geral. E poderiam, em suas conotações mais amplas, ser estendidas àSociedade (Civil) brasileira e à Sociedade (Civil) em geraL Quando nosreferimos ao Estado e à Sociedade .Civil torna-se obrigatório que os si-tuemos concretamente, historicamente, e os conceitos analíticos utiliza-dos deverão ser, eles próprios, concretos, capazes de apreender as múlti-plas determinações da realidade que procuram capturar.

Acredito que a maior parte das considerações do texto básicosejam pertinentes para dar conta da realidade social e política brasileirano período do regime autocrático-militar em ocaso. Deste sistema depoder que, embora se confunda com o próprio Estado, não determinou,mas foi determinado pela Sociedade Civil, entendida como aquele cam-po em que se estabelecem as relações entre as forças sociais e onde sedesenvolvem as relações sociais de produção (Tese 4). O golpe militar de1964 resultou de um processo nítido de contradições sociais e o seudesdobramento correspondeu a necessidades históricas precisas, aindaque não indispensáveis fatalísticamente.

A análise valorativa do Estado e de sua intervenção nas institui-ções socíaís=- e na indústria de bens culturais -, que se desprende dotexto, por outro lado, tem como paradigma, certamente, o Estado auto-crático-militar, não obstante possa ser estendida a outras conjunturas.O texto sugere, por exemplo, que a intervenção do Estado seja semprenegativa e revela, por vezes, uma .ponta de inveja em relação a "socieda-des livres, de imprensa livre".

Que sociedades, que imprensa? Uma análise concreta das socieda-des capitalistas centrais alimentaria a inveja, o saudosismo antecipado?Mesmo nos Estados Unidos, o campeão do "mundo livre", para um"New York Times" quantos "Fortunes" existem? Watergate seria a regraou a exceção? Na Inglaterra, consegue sobreviver a imprensa "livre", en-raizada e mantida pela Sociedade Civil? Não faz muito, o professor

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Milliband, em livro traduzido no Brasil, sobre o Estado nas sociedadescapitalistas avançadas ou centrais, revelava com perícia o envolvimentodos meios de comunicação com o mundo dos negócios e, inclusive, como Estado que o representa, em última instância.

Na França, hoje, é crescente a tendência para a concentração dapropriedade dos meios de comunicação e o grupo de Robert Hersant,amplamente favorecido pelo governo de Giscard, controla seis socieda-des, responsáveis pela edição de "Figaro " "Aurore", "Havre Presse ' edezenas de jornais provinciais e revistas especializadas que monopoli-zam, quase, setores importantes do mercado 'cultural do país. Se existeali uma legislação que prevê do poder público ajuda â imprensa indepen-dente, desde 1881, foi, no entanto, à sombra do Estado que cresceram,nos últimos anos, os grupos monopolistas da opinião pública, a pontode o governo Mitterrand não contar com o apoio de um único grandejornal de massas, excetuando L 'Humanité, em suas edições dominicais.

Na Itália, um dos dez países capitalistas em produto interno brutomais avançados do mundo, se deixarmos de lado a imprensa comunista,e, em parte, a imprensa socialista, que constituem exceções no panora-ma do universo capitalista, a situação não difere muito da do Brasil. Asgrandes revistas, a começar do "Expresso", e os grandes jornais, a come-çar d-o "Corriere della Sera" e da "Stampa", ou são propriedade dasgrandes empresas, ou mantêm-se graças ao apoio estatal. O caso do"Corriere", nos últimos anos, talvez se constitua no exemplo mais dra-mático e o depoimento de Cavallarí, editor do jornal até dois meses atrás,publicado em "Panorama" (agosto), é altamente revelador (Tese 2).

Estou de acordo em que devamos todos nós, militantes engajadosno processo de transformação da sociedade brasileira, denunciar as milformas de controle que os governos, no Estado populista ou no Estadoautoritário-militar, exercem sobre os meios de comunicação. Não deve,contudo, limitar-se aí a nossa ação , se quisermos preservar a coerênciae ir às raízes da questão: o poder econômico das empresas que fazemparte da Sociedade Civil, a interferência das corporações transnacionaise a ação que o sistema financeiro internacional exercem sobre os meiosde comunicação, no Brasil, equiparam-se e superam mesmo as -doEs-tado.

Retomo aqui uma das teses centrais do documento básico, que éaquela relacionada com a articulação entre o Estado e a Sociedade CiviLSe já enunciamos o nosso entendimento sobre o conceito de SociedadeCivil, gostaríamos de fazer o mesmo em relação ao do Estado, o!gaJ?-i-zação política inerente ao modo de produção capitalista, desempenhan-do, pelo menos, três funções essenciais 'ao contexto: a). a de ~.rgão decoesão dos níveis econômico-social e político-ideológico das formações

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sociais e como Ioeus onde se condensam as suas contradições, b) a deaparelho autonomizado de governo, em estreita ligação com um grupoespecializado e privilegiado que monopoliza a gestão estatal, c) a de ins-trumento organizador do processo de produção, das normas jurídicasreguladoras da propriedade e do comércio e do sistema ideológico,político e social.

Se o Estado é uma decorrência do modo capitalista de produçãoe, como organização política, é determinado pelas condições gerais daSociedade (Civil), mantém com ela, no entanto, uma relação de interde-pendência e reciprocidade". E bastante conhecido, por exemplo, o papelque o Estado moderno desempenhou na consolidação do modo de pro-dução capitalista, unificando, congregando, protegendo. Não podemos,assim, pensar o Estado sem a Sociedade (Civil) e a Sociedade (Civil) semo Estado, esclarecendo aqui que vemos a Sociedade Civil como a socie-dade burguesa (bürgerliche Gesellschaft).

Exercitando-se em uma sociedade dividida em classes sociais edesenvolvendo o seu papel de coesão, o Estado, ainda que defendendoos interesses fundamentais da burguesia como um todo, a longo prazo,vê-se freqüentemente levado a contraria-la, parcialmente e a curto oumédio prazos. A função coesiva exerce-se em duplo sentido: no sentidodas classes antagônicas da sociedade sobre a qual impera e no sentido dahomogeneização das classes que o controlam. Não se trata aqui de opora burguesia aos sujeitos individuais pertencentes à burguesia (Tese 7),mas de confrontar as várias fracções em que se divide a burguesia e,inclusive, os vários grupos no interior das fracções.

Estamos de acordo em que a oposição entre o individual e o cole-tivo constituiu-se num falso problema das ciências sociais, dividindodesses os seus primórdios Durkheims e Tardes. As classes são fundamen-talmente sociais, como o são a consciência e a ação política, não obstan-te exercida por indiví~uos físicos.

Por outro lado, nem sempre, e muito menos a cada momento, éexplícita e manifesta a consciência de classe ou a consciência dos inte-resses de classe, e raramente essa consciência é genérica, comum a todosos integrantes de uma classe social, na sociedade capitalista.

No Estado, justamente, aparece o grupo especializado e privilegia-do que monopoliza a sua gestão, em estreita relação, contudo, com achamada classe dirigente, isto é, a parcela mais lúcida e mais conscientedas classes dominantes. E a esse poderoso grupo especializado e privile-giado os clássicos do marxismo opunham o partido revolucionário coma sua direção e os seus militantes: a vanguarda revolucionária das classesdominadas.

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Nesta perspectiva parece-nos mais adequado referirmo-nos a umalógica do sistema, a uma lógica do comportamento estatal, ao invés dedemonizarmos o sentido das ações políticas (Tese 5).

O processo de conscientização das classes sociais, das suas frac-ções, grupos e integrantes, por outro lado, não é linear e homogêneo,dependendo fundamentalmente da sua posição na estrutura social, doscondicionamentos históricos e da sua prática política. E não devemosnos esquecer que a consciência econômica e a consciência política declasse não constituem manifestações simultâneas.

A consciência da homogeneidade dos interesses políticos constituiuma conquista máxima para a burguesia e raramente se dá no processohistórico real. A sua concretização exige, inclusive, múltiplas condiçõesideológicas, políticas, económicas e até mesmo o grau de consciência eo grau de organização dos próprios adversários.

A partir dessas reflexões não muito sistemáticas creio haver esta-belecido algumas premissas que contribuam para o esclarecimento dealgumas questões levantadas no texto básico, relacionadas com a articu-lação entre burguesia e Estado, Estado e Sociedade Civil, contradiçãoentre as classes sociais.

As análises comparativas freqüentemente são "perigosas; se permi-tem ilações enriquecedoras para a compreensão de sociedades separadasno tempo e no espaço, constituem armadilhas que prendem o analistae impedem-no de movimentar-se para o conhecimento da realidade.

A história do pensamento político brasileiro oferece vários exem-plos para meditação e podemos mesmo dizer que, no passado, a óticapara a visão da nossa sociedade voltava-se-muito mais para fora do quepara dentro. Os exemplos da Europa e dos Estados Unidos estavam per-manentemente no bolso dos homens públicos e dos estudiosos.

Constituíram-se exceções, neste particular, as análises de umJoaquim Nabuco, "Tavares Bastos, Alberto Torres e, mais recentemente,apesar dos vieses, de um Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, GuerreiroRamos etc. E nós ainda hoje, freqüentemente, deixamo-nos seduzirpelos modelos de fora, aventurando-nos, com técnicas modernas, é ver-dade, em exercícios imaginativos de comparação.

Levanto algumas questões para debates: será mesmo que as con-tradições e os conflitos entre a burguesia e o Estado ocorreriam commaior frequência e intensidade no Brasil do que no resto do mundo?Que critérios adotamos para avaliar a "fragilidade" das classes sociais noBrasil e que conseqüências teria esta "fragilidade" em nosso processosocial? O que significa dizer que as classes sociais, no Brasil, carecem""das dimensões estruturais e dos dinamismos societários que, nos paísescentrais, são indispensáveis para a estabilidade e transformação equili-

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brada da ordem social"? As intervenções dos aparelhos repressivos doEstado devem-se, fundamentalmente, à debilidade das classes sociais?A hegemonia da burguesia somente é imposta pela força das armas?Se ,assim é, de que "hegemonia" falamos? O conceito de "ditadura"não seria mais adequado?

Acredito que, não obstante a crise do sistema universitário brasi-leiro e o obscurantismo que por mais de vinte anos reinou sobre o país,as ciências sociais no Brasil atingiram um alto grau de desenvolvimentoe que em poucos países do mundo ocidental capitalista encontraremostamanha vitalidade em termos de pesquisas, de cursos e, até mesmo, deescolas e universidades. E até mesmo a produção cultural apresentaperspectivas promissoras, a serem entendidas e exploradas.

Assim, parece-me que vivemos um momento histórico em quequase todas as condições estão já criadas para um impulso decisivo nacompreensão e explicação teórica da nossa realidade social e na supera-ção do nosso atraso.

Precisamos, contudo, libertar-nos das amarras colonialistas quenos prendem, vivermos e pensarmos a nossa realidade com os nossos pése as nossas cabeças, jogarmos longe os preconceitos que nos tolhem e osmitos que nos amedrontam.

Sabemos que a cultura e a ciência são universais e que o isolamen-to cultural limita -e embrutece. Mas não se trata disto, trata-se de con-

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cretizarmos essa cultura numa situação nacional concreta. De entender-mos o nosso povo, a nossa sociedade e .caminhar com eles. E essas tare-fas não serão reàlízadas 'lá fora, pelos de' fora. É um empreendimentonosso, das novas gerações, -

E.assim retornamos ao princípio; à importância dos meios de co-municaçãc; hoje em dia. À questão da viabilização de um projeto demo-crático e, acrescentamos, nacional, entre nós.

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Rio de Janeiro, 31 de agosto de 1984.

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