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12 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento A aplicação da biotecnologia à produção de compostos naturais biologicamente ativos Marcia Pletschi Universidade Federal de Alagoas CCEN - Departamento de Química Laboratório de Biotecnologia de Produtos Naturais Compostos naturais biologicamente ativos m composto é biologica- mente ativo quando exerce uma ação específica sobre um determinado ser vivo, seja ele animal, vegetal ou microrganismo. Uma vasta gama de compostos orgânicos naturais de origem vegetal, produtos do metabolismo primário e secundário, é biologicamente ativa, isto é, tem ação tranqüilizante, anal- gésica, antiinflamatória, citotóxica, anti- concepcional, antimicrobiana, antiviral, fungicida, inseticida etc. Estes compostos são usados para as mais diversas finalida- des, tanto na terapêutica médica, para prevenir ou curar doenças, como na in- dústria de cosméticos e de alimentos, servindo como aromatizantes, flavorizantes ou antioxidantes. Os produtos naturais vegetais perten- cem a cinco grandes classes químicas: os carboidratos, os lipídios, os compostos nitrogenados (aminoácidos, peptídios, pro- teínas e glicosidios cianogênicos e alcalóides), os terpenóides e os fenilpropanóides. Entre estes incontáveis produtos, destacam-se centenas de princí- pios ativos: segundo o Phytochemical Dictionary (Harborne & Baxter, 1993), o número de compostos com atividade bio- lógica bem caracterizada totaliza 2.793. Este artigo tem por objetivo mostrar como a biotecnologia pode contribuir para a produção de compostos vegetais úteis, com ênfase especial naqueles que apresentam propriedades medicinais. A importância das plantas na medicina naturalista e moderna A maioria das pessoas definiria plan- ta medicinal como sendo aquela erva colhida no fundo do quintal ou no campo, com a qual pode-se fazer um chá, uma tintura ou uma pomada. A utilização de plantas no tratamento das doenças é con- siderada "natural" e faz parte da prática da medicina herborística, com origem nas tradições milenares da China e Índia. Esta forma de tratamento é usada no mundo inteiro, principalmente pela população ru- ral e mais carente. Paralelamente, existe a medicina mo- derna surgida nos laboratórios das compa- nhias farmacêuticas, a qual, ao contrário do que muitos pensam, não é totalmente sintética. Atualmente, metade dos 25 medi- camentos mais vendidos no mundo tem sua origem em produtos naturais de plantas (incluindo os fungos). Assim, as compa- nhias farmacêuticas, da mesma maneira que os herboristas, dependem parcialmen- te da natureza para produzir as drogas que são vendidas nas farmácias. Um exemplo que ilustra bem esta dependência é o taxol, um complexo diterpeno isolado original- mente da casca da árvore Taxus brevifolia, o qual apresenta potentes propriedades anticancerígenas. Esta substância está pre- sente na árvore em diminutas quantidades (cerca de 100mg/kg de casca seca), de modo que para a produção de um grama de taxol são necessárias três árvores. O crescimento vagoroso, a baixa estatura, a casca fina e a escassa distribuição das árvores são outros fatores que limitam a disponibilidade de taxol, além do que a remoção da casca resulta na morte da planta. Para contornar todos estes proble- mas, fontes alternativas de taxol e métodos para sua síntese total vêm sendo investiga- dos intensivamente. A síntese total do taxol representou um verdadeiro desafio para os químicos nos últimos anos, devido à com- plexidade da molécula, sendo que recente- mente foram publicados dois métodos di- ferentes, cuja aplicação industrial está lon- ge de ser viável por causa das inúmeras etapas de reação e do alto custo de produ- ção. O taxol também pode ser sintetizado a partir de substâncias análogas extraídas de outras espécies de Taxus mais abundantes (síntese parcial) e, possivelmente, no futu- ro, esta metodologia substituirá o processo extrativo da casca da T. brevifolia, usado no momento pela indústria (Theodoridis & Verpoorte, 1996). Muitas pessoas acreditam que as dro- gas sintéticas, devido ao fato de não serem retiradas da natureza, podem provocar no organismo reações adversas. Convém lem- brar, entretanto, que muitas drogas não são produtos da invenção dos químicos, mas imitações da estrutura ou do modo de ação de um composto encontrado numa planta. A lista de substâncias sintéticas baseadas em substâncias naturais é longa, mas o exemplo mais familiar é o caso da aspirina (analgésico e antitérmico), cujo princípio ativo, o ácido acetilsalicílico, era original- mente obtido da Filipendula ulmaria (anti- gamente conhecida como Spiraea filipendula, daí o nome aspirina). Resumindo, a medicina herborística emprega a planta inteira, partes da planta, ou uma mistura de extratos vegetais oriun- dos de diferentes plantas, enquanto que a medicina moderna emprega um composto puro, com propriedades químicas e bioló- gicas bem definidas. Os processos de produção das drogas modernas A tecnologia apropriada para a obten- ção de drogas depende do tipo de substân- cia química desejada. Generalizando, nós podemos dizer que existem quatro proces- sos de produção de compostos naturais de plantas: a síntese química total, a extração e purificação de plantas silvestres ou culti- vadas, os processos biotecnológicos e os processos combinados de técnicas. Por- tanto, a biotecnologia representa uma alter- nativa de produção e, por isso, deve ser entendida dentro de um contexto global, no qual ela tem um papel de destaque devido à sofisticação das técnicas utiliza- das. A síntese química total só é viável economicamente quando o composto de interesse possui uma estrutura simples, com nenhum ou poucos centros quirais, o que não é o caso de muitos produtos naturais. As reservas vegetais nativas, ape- sar de serem a única opção para certas drogas como o taxol, não são inesgotáveis

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12 Biotecnologia Ciência & Desenvolvimento

A aplicação da biotecnologia à produção de compostos naturais biologicamente ativos

Marcia Pletschi

Universidade Federal de Alagoas

CCEN - Departamento de Química

Laboratório de Biotecnologia de Produtos Naturais

Compostos naturaisbiologicamente ativos

m composto é biologica-mente ativo quando exerceuma ação específica sobreum determinado ser vivo,seja ele animal, vegetal oumicrorganismo. Uma vasta

gama de compostos orgânicos naturais deorigem vegetal, produtos do metabolismoprimário e secundário, é biologicamenteativa, isto é, tem ação tranqüilizante, anal-gésica, antiinflamatória, citotóxica, anti-concepcional, antimicrobiana, antiviral,fungicida, inseticida etc. Estes compostossão usados para as mais diversas finalida-des, tanto na terapêutica médica, paraprevenir ou curar doenças, como na in-dústria de cosméticos e de alimentos,servindo como aromatizantes, flavorizantesou antioxidantes.

Os produtos naturais vegetais perten-cem a cinco grandes classes químicas: oscarboidratos, os lipídios, os compostosnitrogenados (aminoácidos, peptídios, pro-teínas e glicosidios cianogênicos ealcalóides), os terpenóides e osfenilpropanóides. Entre estes incontáveisprodutos, destacam-se centenas de princí-pios ativos: segundo o PhytochemicalDictionary (Harborne & Baxter, 1993), onúmero de compostos com atividade bio-lógica bem caracterizada totaliza 2.793.

Este artigo tem por objetivo mostrarcomo a biotecnologia pode contribuirpara a produção de compostos vegetaisúteis, com ênfase especial naqueles queapresentam propriedades medicinais.

A importância das plantas na

medicina naturalista e moderna

A maioria das pessoas definiria plan-ta medicinal como sendo aquela ervacolhida no fundo do quintal ou no campo,com a qual pode-se fazer um chá, umatintura ou uma pomada. A utilização deplantas no tratamento das doenças é con-siderada "natural" e faz parte da prática damedicina herborística, com origem nastradições milenares da China e Índia. Esta

forma de tratamento é usada no mundointeiro, principalmente pela população ru-ral e mais carente.

Paralelamente, existe a medicina mo-derna surgida nos laboratórios das compa-nhias farmacêuticas, a qual, ao contráriodo que muitos pensam, não é totalmentesintética. Atualmente, metade dos 25 medi-camentos mais vendidos no mundo temsua origem em produtos naturais de plantas(incluindo os fungos). Assim, as compa-nhias farmacêuticas, da mesma maneiraque os herboristas, dependem parcialmen-te da natureza para produzir as drogas quesão vendidas nas farmácias. Um exemploque ilustra bem esta dependência é o taxol,um complexo diterpeno isolado original-mente da casca da árvore Taxus brevifolia,o qual apresenta potentes propriedadesanticancerígenas. Esta substância está pre-sente na árvore em diminutas quantidades(cerca de 100mg/kg de casca seca), demodo que para a produção de um gramade taxol são necessárias três árvores. Ocrescimento vagoroso, a baixa estatura, acasca fina e a escassa distribuição dasárvores são outros fatores que limitam adisponibilidade de taxol, além do que aremoção da casca resulta na morte daplanta. Para contornar todos estes proble-mas, fontes alternativas de taxol e métodospara sua síntese total vêm sendo investiga-dos intensivamente. A síntese total do taxolrepresentou um verdadeiro desafio para osquímicos nos últimos anos, devido à com-plexidade da molécula, sendo que recente-mente foram publicados dois métodos di-ferentes, cuja aplicação industrial está lon-ge de ser viável por causa das inúmerasetapas de reação e do alto custo de produ-ção. O taxol também pode ser sintetizado apartir de substâncias análogas extraídas deoutras espécies de Taxus mais abundantes(síntese parcial) e, possivelmente, no futu-ro, esta metodologia substituirá o processoextrativo da casca da T. brevifolia, usadono momento pela indústria (Theodoridis &Verpoorte, 1996).

Muitas pessoas acreditam que as dro-

gas sintéticas, devido ao fato de não seremretiradas da natureza, podem provocar noorganismo reações adversas. Convém lem-brar, entretanto, que muitas drogas não sãoprodutos da invenção dos químicos, masimitações da estrutura ou do modo de açãode um composto encontrado numa planta.A lista de substâncias sintéticas baseadasem substâncias naturais é longa, mas oexemplo mais familiar é o caso da aspirina(analgésico e antitérmico), cujo princípioativo, o ácido acetilsalicílico, era original-mente obtido da Filipendula ulmaria (anti-gamente conhecida como Spiraeafilipendula, daí o nome aspirina).

Resumindo, a medicina herborísticaemprega a planta inteira, partes da planta,ou uma mistura de extratos vegetais oriun-dos de diferentes plantas, enquanto que amedicina moderna emprega um compostopuro, com propriedades químicas e bioló-gicas bem definidas.

Os processos de produção das

drogas modernas

A tecnologia apropriada para a obten-ção de drogas depende do tipo de substân-cia química desejada. Generalizando, nóspodemos dizer que existem quatro proces-sos de produção de compostos naturais deplantas: a síntese química total, a extraçãoe purificação de plantas silvestres ou culti-vadas, os processos biotecnológicos e osprocessos combinados de técnicas. Por-tanto, a biotecnologia representa uma alter-nativa de produção e, por isso, deve serentendida dentro de um contexto global,no qual ela tem um papel de destaquedevido à sofisticação das técnicas utiliza-das.

A síntese química total só é viáveleconomicamente quando o composto deinteresse possui uma estrutura simples,com nenhum ou poucos centros quirais, oque não é o caso de muitos produtosnaturais. As reservas vegetais nativas, ape-sar de serem a única opção para certasdrogas como o taxol, não são inesgotáveis

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e o extrativismo puro e simples tem conse-qüências nefastas no que diz respeito àconservação das espécies de interesse.Muitos princípios ativos valiosos são obti-dos de plantas cultivadas, como por exem-plo a morfina (analgésico, narcótico esedativo potente) e a codeína (usado con-tra a tosse), que provêm das plantações dePapaver somniferum (Papaveraceae) daAustrália; a digoxina (usada no tratamentode doenças cardíacas), que provém daDigitalis lanata (Scrophulariaceae), cultiva-da principalmente na Holanda; a pilocarpina(usada no tratamento do glaucoma) que seorigina das plantações de Pilocarpusmicrophyllus (Rutaceae) no Brasil; e avincristina e vinblastina (usada no trata-mento da leucemia) são extraídas da plantaornamental Catharanthus roseus(Apocynaceae), cultivada na Tanzânia eEstados Unidos. Os processosbiotecnológicos utilizam técnicas in vitro,rigorosamente controladas, para a culturade células, tecidos e órgãos vegetais ou deplantas íntegras, técnicas estas que sãousadas durante todo o processo de produ-ção ou durante certos estágios de produ-ção. Finalmente, as mais variadas combina-ções dos processos descritos podem serusadas para a obtenção de drogas maiselaboradas. Por exemplo, os esteróidesantiinflamatórios e anticoncepcionais sãoderivados semi-sintéticos de precursores(alcalóides esteroidais) extraídos de espéci-es de Dioscorea; o etoposídeo (usado notratamento do câncer de pulmão e daleucemia mielocítica) é derivado dapodofilotoxina, obtida do Podophyllumpeltatum, uma espécie ameaçada de extinçãonos Estados Unidos e Himalaia.

A contribuição da biotecnologia à

produção de metabólitos

secundários bioativos

A biotecnologia oferece três estratégi-as para a produção de compostos bioativos:os processos fermentativos, no qual ocrescimento da biomassa e a biossíntese doproduto ocorrem em biorreatores; amicropropagação, através da qual clonesselecionados pelas suas característicasfenotípicas e livres de patógenos são pro-pagados em condições assépticas e rigoro-samente controladas; e a engenharia gené-tica, que objetiva a alteração do genomadas células através da introdução de novosgenes e a conseqüente obtenção de célu-las, órgãos e plantas transgênicas comcaracterísticas bioquímicas alteradas.

Processos fermentativos

Há duas décadas, aproximadamente,supunha-se que as células derivadas deuma determinada espécie vegetal e mantidasno estado não-organizado (cultura in vitrode células) poderiam produzir os mesmos

compostos que a planta-mãe, e que estaforma de cultivo poderia substituir as fon-tes tradicionais. Acreditava-se que este tipode tecnologia asseguraria aos países ricos osuprimento constante de certos produtosnaturais de alto valor comercial, cuja dispo-nibilidade é limitada pelas dificuldadespolíticas ou geográficas dos países forne-cedores. No entanto, verificou-se que asculturas de células não produzem muitosdos compostos de interesse, ou, se produ-zem, normalmente as quantidades são in-feriores àquelas encontradas na planta ín-tegra. Isso acontece porque a produção demetabólitos secundários é conseqüênciade processos bioquímicos altamente regu-lados e inter-relacionados, ou seja, é resul-tado da integração dos processos debiossíntese, degradação, transporte e acu-mulação do produto. Para que um determi-nado composto seja acumulado é precisoque os tecidos que o produzem conte-nham os precursores metabólicos destecomposto, as enzimas adequadas paraconvertê-los no produto e as estruturasonde o mesmo ficará armazenado e, quan-do este último requisito não for atendido, ocomposto em questão deve ser transporta-do a órgãos específicos.

Certos monoterpenóides importantescomercialmente, como por exemplo 1,8-cineol e mentona, são sintetizados a partirdo mevalonato e acumulados nos pêlosglandulares que existem na superfície dasfolhas de várias espécies de Pelargonium(Geraniaceae), mas não são detectados emculturas de células não-organizadas (calose suspensões celulares). Embora o genomadestas células seja o mesmo das células dostecidos da planta que os originaram, osgenes que codificam a síntese das enzimasda rota terpenóide encontram-se inativos,isto é, não são expressos. A ausência deestruturas de acumulação nos calos, ouseja, os pêlos glandulares, é outra razãopara a não-acumulação destesmonoterpenóides. Ao contrário, quando ascélulas são regeneradas em brotos folhares,estes acumulam 1,8-cineol e mentona emquantidades semelhantes às folhas da plantanormal, porque nos mesmos ocorre a ex-pressão dos genes envolvidos na biossíntesedos referidos compostos e as estruturas deacumulação estão presentes (Charlwoodand Moustou, 1988).

Existem inúmeros exemplos de com-postos produzidos por culturas de células,como mostra a tabela 1, porém a aplicaçãodesta tecnologia em escala comercial não éviável na maioria dos casos. Os dois únicosexemplos de compostos produzidos co-mercialmente através de fermentação são oalcalóide isoquinolínico berberina (pigmen-to vermelho com propriedades bactericidasusado principalmente nos cremes dentais)e a naftoquinona shikonina (pigmento ver-melho usado em cosméticos). Ambos sãoproduzidos industrialmente no Japão por

culturas de células selecionadas de Coptisjaponica e Lithospermum erythrorhizon,respectivamente.

As culturas de brotos folhares e raízespossibilitam a produção de substânciasque são sintetizadas e acumuladas nestesórgãos, sendo que dentro da segundacategoria destaca-se a cultura de raízestransformadas pela Agrobacteriumrhizogenes (as tabelas 2 e 3 mostram exem-plos de compostos acumulados em taisculturas). Esta bactéria é um organismopatogênico que provoca a formação detumores (raízes) nos sítios de infecção. Osmecanismos responsáveis pela formaçãodestas raízes não serão discutidos em deta-lhes neste artigo, mas podemos dizer, resu-midamente, que os mesmos ocorrem devi-do à transferência de um segmento deDNA, da bactéria para a planta. Este seg-mento de DNA contém vários genes, entreos quais aqueles responsáveis pela síntesede aminoácidos essenciais para a bactéria(opinas) e outros responsáveis pela síntesede enzimas envolvidas na formação deauxinas ativas (indevidamente denomina-das fito-hormônios), as quais atuam noprocesso de rizogênese. As culturas deraízes transformadas pela A. rhizogenesapresentam muitas vantagens sobre as cul-turas de células e de raízes normais não-transformadas, como maior estabilidadegenética, crescimento mais rápido e, emmuitos casos, produtividade aumentada demetabólitos secundários. Uma revisão com-pleta sobre o potencial biotecnológico dasraízes transformadas será publicado breve-mente por integrantes da nossa equipe(Argôlo et al., 1997).

A tecnologia de fermentação para ostipos de culturas mencionados acima evo-luiu a partir dos reatores para microrganis-mos, e biorreatores mais apropriados paracélulas e órgãos vegetais foram desenvolvi-dos (para maiores informações sugerimosconsultar Scragg, 1993-Plant Cell Bioreactors,em Plant Cell and Tissue Culture). As prin-cipais desvantagens deste processo são oalto custo de investimento necessário paraa instalação dos equipamentos industriais,a manutenção da mão-de-obra especi-alizada e a manutenção das condições deprodução que exigem controle rígido detemperatura e luminosidade, bem comomeios de cultura balanceados em termosde sais minerais, vitaminas e reguladores decrescimento. No caso das raízes transfor-madas, os biorreatores são mais simples eas condições de cultura menos exigentes, oque amplia as possibilidades de explora-ção industrial deste tipo de cultura.

Micropropagação

Outra estratégia para a produção decompostos biologicamente ativos é a sele-ção de clones altamente produtores e suapropagação in vitro. A micropropagação

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oferece muitas vantagens para a práticaagrícola, como a maior rapidez na obten-ção de um grande número de mudas e aerradicação das pragas e doenças da cultu-ra, principais responsáveis pela baixa pro-dutividade da planta. A clonagem in vitro éparticularmente útil para a conservação deespécies ameaçadas e a propagação deespécies recalcitrantes ou de ciclo de vidalongo.

Um exemplo de planta medicinal cujamicropropagação em escala comercial re-sultaria em enorme benefício social éArtemisia annua, uma planta de origemchinesa, que produz o sesquiterpenóideartemisinina. Esta é uma das mais potentesdrogas antimalariais conhecidas e reco-mendada pela Organização Mundial daSaúde para o tratamento dos casos demalária cerebral, cujo agente, o Plasmodiumfalciparum, se tornou resistente às drogasderivadas da quinina. A artemisinina énormalmente encontrada nas folhas einflorescências da planta em quantidadesmuito baixas (aproximadamente 0,5% dopeso seco), mas que podem ser aumenta-das quando plantas selecionadas dentro deuma população são microclonadas in vitro.(Jain et al., 1996; Gupta et al., 1996). Anecessidade de artemisinina é muito gran-de devido à vasta distribuição geográficada malária e à gravidade dos casos, osquais aumentaram assustadoramente nosúltimos anos. Porém, como a fonte princi-pal desta droga ainda é a planta íntegra, amesma não se encontra facilmente dispo-nível no mercado, além de ser bastantecara.

Entre outros exemplos de plantas me-dicinais que podem ser facilmentemicropropagadas e posteriormenteaclimatizadas, podemos citar: Coleusforskohlii (Sharma et al., 1991), fonte deforskolina (atividade cardiovascular); Aloevera (Roy e Sarkar, 1991), fonte de um gel

muito rico em água, polissacarídeos eantraquinonas com propriedades laxativase cicatrizantes (muito usado como hidratanteem produtos cosméticos); Camptothecaacuminata (Jain e Nessler, 1996), fonte decamptotecina (atividade anticâncer e anti-retroviral); e Valeriana edulis ssp. procera(Enciso-Rodrigues, 1997), fonte devalepotriatos (propriedades sedativa, tran-qüilizante e antidepressiva).

Como se pode ver, a micropropagaçãotambém pode ser aplicada às espéciesvegetais produtoras de princípios ativosúteis e ser explorada economicamente, damesma forma que a micropropagação deespécies leguminosas, frutíferas, florestaise ornamentais.

Engenharia Genética

A mais interessante e promissora áreada biotecnologia vegetal, na qual existemuito interesse atualmente, é o melhora-mento genético através da transferência degenes e a conseqüente obtenção de plantastransgênicas com características fenotípicas,fisiológicas ou bioquímicas alteradas, maisvantajosas sob o ponto de vistasocioeconômico.

As técnicas usadas pela engenhariagenética foram abordadas anteriormentenesta revista (Gander e Marcellino, 1997) e,por esta razão, concentraremos nossa aten-ção apenas na sua aplicação. Através destatecnologia é possível:

a) aumentar a atividade de uma enzimareguladora numa rota biossintética já exis-tente na planta e, desta forma, regularpositivamente a produção de um determi-nado composto (sobreexpressão de genesconstitutivos);

b) introduzir uma nova rotabiossintética na planta (expressão de genesnão-existentes normalmente);

c) suprimir parcialmente ou completa-

mente a produção de compostosindesejados, através da inibição da(s)enzima(s) catalisadora(s) de uma determi-nada porção de uma rota (supressão datranscrição do gene ou antisense RNA).

A inserção de genes que codificamenzimas reguladoras de rotas metabólicas(no sentido normal de transcrição ou nosentido inverso) nos permite estimular oubloquear o fluxo de carbono (precursores)ao longo das intrincadas ramificações dometabolismo.

Um dos exemplos mais ilustrativos deengenharia metabólica foi a transferência,para protoplastos de tabaco (Nicotianatabacum), de uma seqüência de DNA ob-tida do amendoim (Arachis hypogaea) quecodifica uma das enzimas (estilbeno sintase)responsável pela formação da fitoalexinaresveratrol (composto envolvido no meca-nismo de defesa da planta contra o ataquede fungos). As plantas transgênicas detabaco regeneradas dos protoplastos pas-saram a produzir resveratrol, a partir dedois substratos muitos comuns (p-coumarilCoenzima A e malonato), toda vez queeram atacadas pelo fungo Botrytis cinerea.Este trabalho, realizado por Hain e colabo-radores (1990), provou ser possível armaruma determinada planta com mecanismosquímicos naturais de defesa, através daintrodução de uma rota metabólica atéentão inexistente nesta planta. Outro exem-plo foi a introdução na Atropa belladonnade cópias extras da seqüência de DNA quecodifica a enzima hiosciamina-6-b-hidroxilase, obtida de Hyoscyamus niger(Yun et al., 1992). Esta manipulação resul-tou em plantas que convertem praticamen-te toda hiosciamina (um alcalóide comatividade anticolinérgica, mas que provocaefeitos colaterais indesejáveis) emescopolamina, a qual é mais potente doque a hiosciamina, porém bem mais tolerá-vel. O aumento da produção de

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escopolamina nas plantas transgênicas deA. belladonna foi aproximadamente 24vezes maior que nas plantas não-transgênicas. Finalizando, nós gostaríamosde mencionar o trabalho que nossa equipevem desenvolvendo com a A. annua, oqual objetiva melhorar a produção deartemisinina na planta. Recentemente, ob-teve-se calos transgênicos de A. annuacapazes de produzir este sesquiterpenóidenuma quantidade cinco vezes maior que ascélulas das culturas de calos originais,através da inserção de cópias extras dogene para a 3-metil-glutaril Coenzima Aredutase (HMGR), uma das enzimas regu-ladoras da rota terpenóide (Vergawe et al.,1997). Atualmente, estamos trabalhando nosentido de obtermos plantas de A. annuatransgênicas para HMGR, capazes de pro-duzir artemisinina em quantidades superi-ores àquelas normalmente encontradas.

Os casos descritos acima mostramcomo as rotas biossintéticas podem serreguladas através da manipulação das suasenzimas, com implicações positivas para aprodução de determinados compostos me-dicinalmente valiosos. Atualmente, conse-gue-se manipular apenas parte das rotasmetabólicas, através da inserção de um oudois genes ao mesmo tempo, mas prova-velmente num futuro próximo seremoscapazes de modificá-las completamente.

Conclusão e perspectivas futuras

Acima foram discutidos o estado dearte na produção biotecnológica de produ-tos naturais e a viabilidade da aplicaçãodeste processo em escala comercial. Apósesta breve análise, resta-nos perguntar quaissão as perspectivas futuras para estatecnologia e qual é a estratégia política eeconômica mais adequada para o Brasilcom relação a esta questão. A resposta paraa primeira pergunta é que a produçãoindustrial de compostos secundários é pre-sentemente uma área de intensa atividadee continuará assim nos próximos anos,devido à crescente demanda por novosprodutos naturais. A engenharia genéticaabriu novos caminhos para a obtenção devariedades diferentes de plantas com ca-racterísticas bioquímicas superiores àque-las das variedades existentes, e estatecnologia é igualmente aplicável à mani-pulação de plantas que acumulammetabólitos secundários. Quanto à segun-da questão, esta deve ser examinada combase nos recursos florestais e agrícolas donosso país. Estima-se que das 500 milespécies de plantas existentes no planeta,16% encontram-se na Região Amazônicabrasileira, menos de 10% foram estudadasquimicamente e apenas um pequeno nú-mero teve suas propriedades biológicascaracterizadas. Isto significa que uma gran-de quantidade de compostos bioativosainda não foi descoberta e, possivelmente,

nunca será, porque este magnífico recursoestá se esgotando rapidamente por contada abertura de novas áreas agrícolas. Aagricultura brasileira sempre teve por obje-tivo a obtenção de produtos primários,principalmente cereais, mas como demons-trado pelos exemplos acima, existem gran-des possibilidades para uma agriculturaalternativa baseada na produção de com-postos naturais de alto valor no mercadointernacional. O Brasil, naturalmente, tem adupla vantagem de contar com uma floraexuberante e uma extensa superfície fértil earável.

Cabe às autoridades brasileiras atuarmais efetivamente nesta área, promovendo

e incentivando a produção ecomercialização de compostos secundári-os valiosos. Com o advento das modernastécnicas da biotecnologia, abriu-se umajanela de oportunidade para o Brasil obtera liderança no mercado de produtos natu-rais. Qualquer que seja a política do gover-no com relação à pesquisa em biotecnologia,esta deve levar em consideração a necessi-dade de se melhorar os conhecimentossobre os valiosos princípios ativos escondi-dos na flora brasileira e também a necessi-dade de se preservar aquelas espécies que,aparentemente, não têm valor no momen-to, mas que podem muito bem ter valor nofuturo.