Compulsão na atualidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica Trabalho de conclusão de curso Seminário NEPECC Julio Vertzman, Regina Herzog e Tereza Pinheiro. Orientadora: Simone Perelson

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIROPrograma de Ps-graduao em Teoria PsicanalticaTrabalho de concluso de cursoSeminrio NEPECCJulio Vertzman, Regina Herzog e Tereza Pinheiro.Orientadora: Simone Perelson

Ludmilla Tassano PitrowskyJaneiro 2015IntroduoJ se sabe h algum tempo da necessidade de pensar a clinica psicanaltica para alm das definies dualistas de transferncia e contratransferncia, sujeito e objeto. O que ocorre no espao analtico compreende uma riqueza de possibilidades para alm dessas definies quase cartesianas. Desde tericos como Ferenczi, Balint, Winnicott, Klein, entre outros, temos questionamentos diversos a respeito do vnculo transferencial, principalmente em casos considerados mais graves.Porm, admitir um trabalho analtico que inclui o vnculo e a sensibilidade do analista implica uma coragem a mais na formao do profissional. H quem diga que o trabalho com crianas ou com casos mais graves no para qualquer boa inteno, que necessita de muito mais preparo e at mesmo ousadia. Arrisco-me a concordar, principalmente a partir da pratica clinica, que coloca mais desafios e perguntas do que respostas e definies. Principalmente se levarmos em considerao a pertinncia dos estudos referentes a casos mais graves, que nem se configuram como uma psicose e tambm no se apresentam como uma neurose bem delimitada. Importante salientar que Freud quando teorizou a respeito do setting e da transferncia estava repleto de argumentos referentes a clinica das neuroses, pois ele mesmo no tratou de casos graves ou de crianas, deixando esta tarefa para outros clnicos como o prprio Ferenczi. Mas Freud, como sempre, instigado pelas dificuldades clnicas e questionamentos pessoais, enriquece sua metapsicologia na tentativa de dar conta de fenmenos no abarcados por suas proposies anteriores. E assim so os textos na evoluo da teoria psicanaltica, grandes questionamentos e propostas de renovao e adaptao da teoria aos casos clnicos, e no ao contrrio, como algumas vezes somos impelidos a fazer. Textos como Sobre o narcisismo, uma introduo (1914), Luto e melancolia (1917 [1915]) e Alm do princpio do prazer (1920), so claras tentativas de desestruturao e restruturao de um alicerce terico em constante trabalho. E assim deve continuar a Psicanlise, em constante construo, sempre questionando a teoria a partir das dificuldades clnicas. Sendo assim, casos caractersticos da contemporaneidade devem justamente propor algumas rearrumaes tericas e at mesmo o retorno a textos freudianos, mas com um olhar diferenciado. Como no caso deste trabalho, que traremos a proposta de pensar um caso de compulso muito mais prximo de uma clnica da melancolia, de relaes narcsicas, do que da clnica da neurose obsessiva. Pensaremos tambm, como dito anteriormente, a forma com que os construtos de transferncia e contratransferncia so insuficientes para abarcar os fenmenos clnicos presentes em determinados casos. Pois, importante pensarmos que esses casos de difcil manejo, alm de fazer os analistas debruarem sobre a teoria em busca de respostas, demandam dele tambm um posicionamento diferente no setting analtico.Em casos em que os sintomas compulsivos sendo possvel inclusive questionar se podem ser chamados de sintomas no sentido de uma consequncia do recalque no ocorrem em decorrncia dos pensamentos obsessivos, como a psiquiatria e at mesmo a psicanlise acreditava. Mas, de fato, apontam para a necessidade de pensarmos menos em diagnose e mais em tipos de vincula: vnculos narcsicos que apelam para formaes melanclicas e identificaes desestruturantes estariam na base de tais casos clnicos, deslocando o analista do setting construdo para a clnica da neurose, em que a transferncia uma reedio edpica, as formaes so de base histrica ou obsessiva, e as identificaes seriam construtoras de um aparato egico.Neste sentido, a partir de uma demanda clnica principalmente voltada para a questo do vnculo analtico, da insuficincia dos conceitos transferenciais, se faz necessrio repensar a estrutura do setting e suas possiblidades. Para isto, aps uma breve exposio terica, ser trazida uma vinheta clnica de um caso ainda em andamento que personifica tal dificuldade e expe importantes discusses a respeito de construtos tericos muito caros teoria psicanaltica.

Discusso tericaA hiptese diagnstica que acompanha o caso que ser trazido adiante seria uma melancolia com manifestaes de comportamento compulsivo. Desta forma, uma leitura mais atenta ao texto freudiano de 1915, publicado em 1917, Luto e melancolia nos traz uma compreenso mais clara do que se pode pensar deste caso clnico especfico. Para isso, traremos o texto de Thomas Ogden de 2004 Uma nova leitura das origens da teoria das relaes objetais, pois mostra como, a partir de uma leitura mais atenta do texto freudiano sobre a melancolia, temos elementos fundamentais pra pensa casos caractersticos da contemporaneidade.Segundo Ogden, em 1915, Freud estava comeando a desenvolver a linha de raciocnio que o levar a teorizar a respeito da teoria das relaes objetais, termo definido por Ogden da seguinte forma:Uso o termo das relaes objetais pra me referir a um grupo de teorias psicanalticas, que tm em comum um conjunto de metforas articuladas de forma aberta e que se referem aos efeitos intrapsquicos e interpessoais do relacionamento entre objetos internos inconscientes (isto , partes inconscientes cindidas da personalidade) (Ogden, 2004, p.85).Ou seja, a partir deste texto, seguindo a trilha do Sobre o narcisismo: uma introduo de 1914, que Freud comea a delinear uma estrutura psquica de forma a entender a presena de objetos internos ou instncias: id, ego e superego. A partir deste momento, a relao entre esses objetos e a forma com que esta relao se apresenta na vida do sujeito ser o modo principal de pensar a dinmica do comportamento humano. Ainda, o autor interpreta o modo de escrever de Freud como uma indicao de um pensamento ainda em construo, apresentando algumas vezes at as suas dvidas em relao ao que est raciocinando.Porm, a ltima parte dessa definio de Ogden que deve ser analisada com um pouco mais de cuidado, pois quando ele traz a possibilidade de entender os objetos internos atravs de um olhar voltado para a relao interpessoal para alm da intrapsquica, Ogden apresenta a importncia do vnculo no estudo das patologias. Desta forma, parece mais interessante pensar na leitura no texto sobre a patologia da melancolia em termos de vnculo melanclico, ou at vnculo narcsico, como conclui no desenvolvimento final do texto. Como sabemos, Freud utiliza-se do luto como meio de comparao de um afeto normal e um patolgico, - que seria melancolia - mas alm disso, faz uso do entendimento metapsicolgico que j possui para demonstrar a existncia de um tipo de defesa de natureza diferente da do recalque: a ciso da personalidade, ou do ego. Pois, a perda na melancolia, diferentemente do luto, ocorre inconscientemente, como podemos observar na passagem a seguir:Assim sendo, somos levados, de alguma forma, a relacionar a melancolia com uma perda objetal que foi retirada da conscincia, diferentemente do que ocorre no luto, no qual nada relativo perda inconsciente (Freud, 1917[1915], p. 245).

Neste sentido, Ogden afirma que Freud introduz a ideia da existncia de dois aspectos inconscientes na perda objetal na melancolia: a natureza do vnculo melanclico com o objeto e a alterao do ego como reao perda. Ou seja, existe algo no vnculo que o melanclico faz com determinados objetos que no permite, diante de alguma perda, que se faa o luto, mas sim, exige uma mudana na personalidade do sujeito, uma ciso egica para no permitir que se conclua o processo da perda realisticamente. Essa natureza do vnculo melanclico ser explicada por Freud atravs do narcisismo, entendendo no sujeito melanclico uma incapacidade de reconhecer a alteridade do objeto. Desta forma, entende-se que o melanclico aquele que sofreu uma falha na constituio narcsica primitiva, impossibilitando-o de construir vnculos calcados na realidade da alteridade. Neste sentido, em resposta a dor da perda, Freud diz que h uma regresso defensiva a formas mais primitivas de relao objetal, substituindo a relao tridimensional com o objeto externo mortal com uma relao bidimensional com um objeto interno, fora do tempo.Outra caracterstica fundamental do vnculo melanclico a ambivalncia, marcada pela mescla entre amor ertico e dio. O sadismo, ento, se apresenta de forma determinante, compondo a relao objetal melanclica de forma bem singular. Isso explicaria, segundo Ogden, a durabilidade das relaes internas patolgicas:A fidelidade ao objeto interno mau (aquele que odeia e que odiado) frequentemente associada tanto estabilidade da estrutura patolgica da organizao da personalidade do paciente, quanto a alguns dos mais intrincados impasses na transferncia/contratransferncia que encontramos no trabalho analtico (Ogden, 2004, p.93).

exatamente neste ponto que podemos entender a relao entre os objetos internos e o trabalho analtico. Obviamente, j sabemos que a relao externa seguir os moldes das relaes internas, projetando no setting ou em qualquer outra relao significativa, os conflitos internos caractersticos do sujeito. Mas no caso do vnculo melanclico, sua estruturao psquica interna coloca ao analista a difcil tarefa de compreender a especificidade do lugar em que colocado. Pois este vinculo entre os objetos internos, a relao sdica de uma parte cindida da personalidade com a outra, por exemplo, ser projetada no vnculo com o analista. A reside a maior dificuldade no tratamento de casos de melancolia, pois alm do vnculo estabelecido possuir caractersticas de ambivalncia e sadismo, o sujeito possui grande fidelidade com o objeto interno fantasstico, no conseguindo abrir mo da posio melanclica. Para ficar mais clara est afirmao, tratemos uma breve vinheta clinica.

Vinheta Laura chega sesso com 40 minutos de atraso dizendo no querer mais fazer anlise. Chora muito dizendo como tinha sido sua ltima quinta-feira: aps uma crise de angstia muito forte, comera tudo que via pela frente at passar muito mal e vomitar. Tomou dois calmantes da me e dormiu por 17 horas seguidas. Pergunto por que no me ligou ou pediu ajuda para algum e ela me diz que ningum pode ajud-la, ningum nunca a entendeu e nem nunca quis entender. Laura, aps uma pequena pausa em silncio, diz que pensando bem, posso dizer que gostei daquela situao, senti um pouco de prazer (sic).

Discusso ClnicaA dificuldade no tratamento de Laura (17), principalmente no sentido do trabalho da transferncia e na anlise dos sintomas, parece no surpreender diante da leitura do texto freudiano sobre a melancolia aliada interpretao de Ogden em seu artigo. Laura consegue se vincular, mas esse vnculo est carregado de dificuldades muito primitivas, de difcil manejo no campo das palavras. Ela coloca na analista seu dio e s vezes seu amor, projeta no setting o desamparo que vive internamente.Laura parece claramente estar presa numa dinmica melanclica, se agredindo atravs da comida, sadicamente sentindo prazer no seu prprio sofrimento e em sua solido. Essa forma melanclica de viver, carregada de pulso de morte, implica numa desvinculao do mundo externo, do mundo dos objetos reais. Laura no se relaciona com as pessoas reais, e sim com a projeo do que h internamente, esperando sempre o abandono e o desamparo como resposta a qualquer investimento que faa.A quinta-feira de Laura foi vivida por ela como um dia de angstia avassaladora, de um vazio desestruturante e uma solido sem tamanho. Na verdade, esses trs elementos parecem dizer do mesmo. Ainda, considero um deles o mais centralizador: aquele caracterizado pela palavra vazio. Vazio sim, e de muitas coisas: vazio de vnculo, vazio de vida, vazio de estima, vazio de palavras... o artifcio da comida parece apontar para esse vazio, para necessidade de preenche-lo, ou at de silenci-lo. Mas como um ato, localizado praticamente fora do campo representacional, est mais no mbito da repetio do que no das defesas egicas conhecidas.Laura parece estar sozinha em toda sua vida, pois mesmo com amigas e familiares, ningum parece chegar nem perto de conseguir entender o que se passa dentro de seu mundo de isolamento afetivo. Apesar disso, demanda afeto como um beb faminto sem um cuidador para aplacar sua angstia. Aqui aparece outra palavra que cabe muito bem numa descrio minuciosa de Laura, uma angstia impensvel, como diz Winnicott, quase que constante, um medo, um desespero, como se nada nem ningum pudesse salv-la de si mesma. Alimento ou afeto, falamos da mesma coisa em termos psquicos. Afinal, por mais hipotticas que sejam as teorias da constituio psquica dos primrdios, ainda podemos inferir que existe muito mais do que da ordem do corpreo, do sensvel, do que o do que da ordem da linguagem verbal e simblica.Laura no pede ajuda, no chama por socorro, mas no s por achar que ningum poderia entender ou resolver, mas tambm porque parece sentir alguma satisfao naquela situao. Mas do que Laura poderia gostar? Uma hiptese surge neste momento: podemos pensar num ganho secundrio veiculado ao discurso de vitimizao e auto piedade, onde seu lugar na famlia em consequncia de sua depresso justificaria essa possibilidade. Seu lugar de abandono e solido, de alguma forma, causa o olhar e provoca algum afeto aos que esto a sua volta. s vezes esse afeto a piedade, s vezes a raiva, s vezes a culpa, s vezes tambm uma dose de angstia e desespero. Parece ser desta forma que Laura consegue conquistar algum investimento, principalmente de sua me, j muito ocupada desde sempre com as crises de depresso do marido. Aqui h tambm a possiblidade de pensar numa identificao de Laura com o pai, confirmada por sua escolha homossexual.Porm, naquela quinta-feira fatdica, Laura no estava na presena de ningum de sua famlia. Naquele dia, Laura estava sozinha, apenas ela e seu ego deficiente em defesas que a estruturem minimamente para suportar seu vazio. Laura vive internamente o que vive externamente, no precisa mais dos personagens externos para arrumar a cena de seu abandono. Ela desarruma, repete e arruma de novo. Laura desperta piedade em si mesma, e atravs desse olhar conquista algum acalento interno, se ampara atravs desse afeto que funciona como um msero sopro de vida diante de tamanho estado de ruptura. Imersa na sua prpria pulso mortfera, ainda encontra um resqucio de vida, mesmo que por meio de um olhar para si mesmo to pobre. Como olhar para um beb abandonado como um mero espectador, sem nada a fazer a no ser torcer para que algum aparea e resgate o pobre de seu fim inevitvel. Parece ser dessa forma que Laura se v - ainda impotente diante do beb que reside dentro de si.A dificuldade na anlise de Laura est exatamente nesta viso que Laura tem de si e dos outros, inclusive a analista. Laura hostil, displicente, sem esperanas e sem coragem. Quando percebe estar sendo olhada e investida, precisa que seja de forma incondicional e onipotente, narcsica. Como no consegue, prefere no investir em retorno, usando do seu sadismo para afastar qualquer tentativa de construo de uma relao real. Laura se maltrata e espera ser maltratada, abandona pois espera ser abandonada, sente o desamparo, no importa onde nem com quem. Neste sentido, necessrio ao analista muito cuidado, pois Laura desperta sentimentos controversos, como em sua famlia, sendo possvel am-la e odi-la numa mesma sesso, ter pensamentos de acolhimento e rejeio no espao de 20 minutos. preciso compreender que esse o tipo e vnculo que ela pode fazer, que esta a forma de Laura ocupar um lugar numa relao. Qual ser ento a postura do analista em casos como esse, onde no se tem uma relao transferencial minimamente confortvel para o trabalho de associao e interpretaes? A boa neutralidade est parcialmente colocada em cheque e a anlise da contratransferncia no traz grandes esclarecimentos. No temos ainda a resposta para esta questo, mas temos indicaes importantes de psicanalistas interessados em buscar tais respostas. Thoms Ogden um deles, que em comum com os outros o foco na intersubjetividade, no vnculo firmado entre analista e analisando como algo da ordem de um terceiro, fora da dualidade objeto e sujeito.

BibliografiaFREUD, S. Obras Completas de Sigmund Freud, Traduo de Odilon Galloti, Isaac Izecksohn e Gladstone Parente. Rio de Janeiro, Editora Delta S. A.: 1959.

LAPLANCHE, J. (1987) A Angstia. 3 ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998.

Winnicott, D. (1958f [1949]). Memrias do nascimento, Trauma do nascimento e Ansiedade. In: Winnicott 1958a (W6)

OGDEN, T. H. Uma nova leitura das origens da teoria das relaes objetais. In: Livro anual de Psicanlise (2004), XVIII, 85-98.