Comunicação IV EPHIS - Sodomia e Inquisição - Processo de Marcos Tavares
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Comunicação IV EPHIS – 2015
ST 7: História e Inquisição: história inquisitorial, fontes inquisitoriais e suas aplicações nos estudos sobre religião, política e sociedade
Título: Sodomia na Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil: o caso do mameluco
Marcos Tavares – 1592-1593.
Cássio Bruno de Araujo Rocha
Doutorando em História Social da Cultura
Universidade Federal de Minas Gerais
Esta comunicação objetiva analisar o processo inquisitorial movido contra o
jovem mameluco Marcos Tavares pelo visitador Heitor Furtado de Mendonça durante a
Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil por crime de sodomia. Serão dois
os focos de análise do processo. O primeiro diz respeito às práticas sexuais desviantes
do réu e a análises de gênero que podem ser feitas pelo historiador a partir das narrativas
contidas no processo. Sendo ainda jovem, Marco Tavares, que tinha 22 anos ao ser
processado, praticara a sodomia com dois irmãos (Antônio e Sebastião de Aguiar) em
diversas oportunidades – crime que, através da denúncia dos irmãos, o conduziu às
barras do Santo Ofício. Os relatos das denúncias e das confissões são ricos em detalhes
acerca das circunstâncias dos encontros sexuais entre os jovens, o que permite
desdobrar uma história das condições concretas de certos tipos de relacionamentos
homoeróticos na Salvador seiscentista. Mais profundamente, o caráter narrativo do
documento permite levantar questões sobre a performatividade de gênero desenvolvida
pelos sujeitos envolvidos no processo – com destaque para a figura de Marcos Tavares.
Ademais, as práticas sexuais dos três rapazes permitem comentar alguns significados
das categorias sodomia e sodomita no período. O segundo foco de análise da
comunicação será sobre o desenvolvimento do processo. Debruçar-me-ei sobre as partes
do processo montado pelo visitador para pensar a profundidade de ação da Primeira
Visitação na América portuguesa. A historiografia sobre esta Visitação destaca sua
maior força no agir persecutório, o que teria justificado, aos olhos do visitador (mas não
necessariamente aos da Inquisição de Lisboa) sua grande extensão temporal. Procurarei
contextualizar o fato de Heitor Furtado ter movido um processo completo (inclusive
com condenação e grave penalização do réu – açoitamento público e degredo) com as
características próprias e peculiares da Primeira Visitação.
O processo movido por Heitor Furtado de Mendonça contra Marcos Tavares
inicia-se com a confissão dos irmãos Antônio e Sebastião de Aguiar sobre suas cópulas
nefandas com Marcos Tavares, mameluco que vivia em sua casa prestando serviço ao
pai (Pero de Aguiar) dos irmãos. É preciso notar que as confissões foram feitas
separadamente e em datas bastante distantes uma da outra. Antônio confessou-se ao dia
5 de fevereiro de 1592 e Sebastião ao 26 de agosto de 1591. Por sua precedência
temporal, começarei a análise com a confissão de Sebastião.
Sebastião de Aguiar, cristão-velho de 17 ou 18 anos ao se confessar, filho de
Pero de Aguiar e de sua mulher Constância de Aguiar, confessou vários pecados de
cunho homoerótico ao visitador. Confessou ter mantido tocamentos desonestos com o
irmão Antônio de Aguiar em duas ocasiões e também com Marcos Tavares. Sua
descrição dos atos indica que os tocamentos foram tentativas de penetração anal entre
ele e os parceiros, penetração que não foi bem-sucedida devido à pouca idade do
confessante no período – estes tocamentos ocorreram 6 anos antes (1586) e ele teria por
volta de 11 anos. É também a sua pouca idade que Sebastião credita o fato de não ter
tido polução em nenhuma dessas ocasiões. Ele ainda denunciou ter testemunhado a
prática da sodomia entre seu irmão Antônio e Marcos, tendo-os sentido na prática
nefanda, pois os três compartilhavam a mesma cama, duas ou três vezes. Mais
gravemente, ele confessou ter praticado a sodomia, como agente e paciente, alguns anos
depois, contando já 15 anos, com Antônio Lopez, um bacharel em Artes que em
algumas ocasiões dormira em sua casa. Estando já mais amadurecido, Sebastião e
Antônio Lopez folgaram no pecado nefando duas ou três vezes, revezando-se na
penetração e tendo polução.1
Foi a denúncia de Antônio de Aguiar, contudo, que incriminou mais gravemente
Marcos Tavares perante a Inquisição – e talvez seja por isso que o seu traslado seja o
ponto inicial do documento do processo. Antônio confessou ter praticado a sodomia
perfeita – isto é, cópula anal com penetração in vaso – algumas 15 ou 20 vezes com
Marcos Tavares ao longo de um mês. O sexo entre eles, como também relatou
Sebastião, foi sempre na cama dos irmãos na casa do pai deles enquanto os três
dormiam juntos, havendo um revezamento entre eles nas posições de ativo e de
paciente. O grande número de cópulas sodomíticas, cada uma delas um pecado mortal e
passível em teoria da pena máxima, provavelmente foi o que levou Heitor Furtado a
instaurar o processo contra Marcos, que, diferentemente dos dois irmãos, não confessou
seus pecados. Somados todos estes elementos, Marcos era um forte suspeito de ser réu
contumaz e negativo.
Agravando ainda mais as culpas do mameluco, Antônio denunciou ter sentido,
em duas ocasiões, enquanto dormia na cama ao lado do irmão Sebastião e do próprio
Marcos, os dois últimos manterem conversação desonesta, com tocamentos que o
levaram a suspeitar que os dois também praticavam o nefando entre si. Todavia,
Antônio fez a ressalva de não ter certeza se Sebastião e Marcos de fato consumaram a
sodomia.
1 Processo de Marcos Tavares, fl. 8-16.
Durante os três interrogatórios a que foi submetido pelo visitador, Marcos
Tavares hesitou em confessar toda a extensão de sua prática sodomítica com Antônio de
Aguiar. Na primeira sessão de interrogatório, Marcos confessou ter consumado o
pecado nefando apenas duas vezes com Antônio de Aguiar (no mesmo cenário descrito
por este em sua confissão), uma vez como agente, uma como paciente – e também se
recusou a afirmar que qualquer um deles teve polução interna ao outro. No segundo, ele
confessou outras duas cópulas com Antônio, desta feita, contudo, em um cenário
diverso, no mato enquanto passeavam. É importante ressaltar que, em todos os seus
depoimentos ao visitador, Marcos negou ter praticado a sodomia com Sebastião de
Aguiar, o mais jovem dos dois irmãos.
A partir das circunstâncias envolvendo as cópulas sodomíticas confessadas pelas
personagens, é possível traçar algumas observações. Em primeiro lugar, as narrativas
não parecem sugerir que a prática erótica mantida entre os três jovens rapazes tenha
representado para eles mais do que um perigoso e culposo prazer. Perigoso porque a
sodomia era um crime que recaía sob a jurisdição inquisitorial e deixava os que a
praticavam à mercê da pena capital de morte na fogueira.
É importante distinguir entre as modalidades de sodomia admitidas pela
Inquisição portuguesa no período aqui abordado. Após uma longa trajetória de flutuação
conceitual, datando desde o início da Era cristã, o pecado nefando (aquele do qual não
se pode dizer o nome) da sodomia assumiu, na Idade Moderna, uma significação
ambígua, mas também estável. A estabilidade diz da sua posição como forma
especialmente torpe e grave do pecado da Luxúria, o que acarretou sua equiparação, nas
Ordenações do Reino, ao crime de lesa-majestade – daí a severidade extrema das penas
a ela associadas. A ambiguidade da sodomia diz respeito à descrição do que de fato era
este pecado.
A partir dos séculos XI e XII, começou um movimento de ascensão da sodomia
na escala de gravidade dos pecados organizada pelos sábios da Escolástica. Sua
definição, ainda incerta, envolvia então todos os atos de desvio da genitalidade no sexo,
tanto entre parceiros iguais, como entre diferentes – e o sexo anal continuava sendo sua
forma mais detestável. Entre os séculos XIII e XIV, assume a posição de pecado mais
grave, confundindo-se muitas vezes com o pecado da bestialidade – o copular com
animais.
Deste período até o século XVIII, os significados da sodomia oscilaram, nos
saberes teológicos, entre uma definição centrada na morfologia do ato (a cópula anal
com ejaculação interna) ou no homoerotismo (sendo mais perfeita a relação entre
homens e entre mulheres). São Tomás de Aquino a considerou uma das quatro
clamantia peccata (pecados que clamam ao céu), definindo-a como a cópula entre
pessoas do mesmo sexo e considerando o sexo anal entre dois homens com ejaculação
interior sua forma mais perfeita – logo mais grave. Segundo Ronaldo Vainfas, “os
saberes eruditos não limitaram sua concepção de sodomia à cópula anal, mas,
prisioneiros desta última, ficaram a meio caminho da posterior definição de
homossexualidade”.2
Assim, ao final do século XVI, a Inquisição portuguesa entendia a sodomia
como o pecado de uma pessoa copular com outra do mesmo sexo, sendo a sua forma
mais perfeita e mais grave o sexo anal com pessoa do mesmo sexo com ejaculação
interna. Outras duas formas de sodomia eram também reconhecidas. Aquela imperfeita,
quando um homem penetrava uma mulher pelo vaso traseiro, e a sodomia foeminarum,
o sexo praticado entre duas mulheres, com a utilização ou não de um instrumento
penetrante exterior. Tais definições, vale destacar, não eram fixas e levantavam dúvidas
2 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados, p.147.
entre os inquisidores quando se deparavam com casos concretos. Os casos de sodomia
entre mulheres (que não poderiam, a princípio, penetrar uma a outra no ânus) foram
especialmente desconcertantes para a Inquisição portuguesa. A dúvida era tão profunda
- estariam estas mulheres realmente praticando a sodomia ou o pecado de molície
(masturbação) entre si? Lembrando que a molície não era de jurisdição inquisitorial,
mas episcopal – que a sodomia foeminarum terminou por ser excluída do rol de crimes
perseguidos pela Inquisição de Portugal em 1646.
Em suas narrativas, Antônio e Sebastião de Aguiar e Marcos Tavares não
demonstram tomar a sodomia que praticaram entre si como condição determinante de
suas identidades. Antes, assumiram-na como atos pecaminosos pelos quais pediam
perdão, clemência e misericórdia ao visitador. Antônio de Aguiar inclusive confessa não
saber a gravidade atribuída ao pecado pela Igreja, alegando tal como uma débil
justificativa para seus atos.
A confissão do irmão caçula traz elementos que ajudam a pensar o lugar que a
sodomia poderia ocupar na constituição da identidade de gênero destes rapazes. Sendo
todos muito jovens, eram os três provavelmente inexperientes nas práticas eróticas, de
modo que a troca de carícias entre si pode ter cumprido a função cultural de instruí-los
nesta dimensão importante da vivência do gênero masculino. A função erótico-
pedagógica do sexo entre jovens rapazes na cultura luso-brasileira ademais já foi
ressaltada inclusive por Gilberto Freyre em seu clássico Casa grande & senzala:
Em ambos – no menino de engenho, como no sertanejo – a
experiência física do amor se antecipa no abuso de animais e até
de plantas (...) São práticas que para o sertanejo suprem até a
adolescência, às vezes até mesmo ao casamento, a falta ou
escassez de prostituição doméstica ou pública – as amas, as
mulatas, os moleques de casa, as mulheres públicas – de que tão
cedo se contaminam os meninos nos engenhos e nas cidades do
litoral. [grifos nossos]3
Se a sodomia foi uma aula para Sebastião (tendo sido na prática com o irmão e
com Marcos ou por testemunhado a cópula destes dois em sua cama), ele logo passou os
ensinamentos adiante, como demonstra sua confissão. Pois, além dos tocamentos com o
irmão e as tentativas de penetração com Marcos, Sebastião também confessou ter
praticado a sodomia alguns anos depois (quando já tinha 15 anos) com um hóspede de
seu pai, o bacharel em Artes Antônio Lopez, carioca que fora a Bahia se fazer clérigo.
Com este quarto personagem, Sebastião confessou ter praticado a sodomia duas ou três
vezes. Não há contudo, relatos de qualquer ação da Inquisição contra Antônio Lopez,
tendo sido Sebastião perdoado por fazer confissão na Graça.
Quanto ao desenvolvimento do processo de Marcos Tavares, algumas
pontuações se fazem necessárias. Um primeiro ponto é que tudo leva a crer que Heitor
Furtado de Mendonça instaurou o processo devido à gravidade do relato confessado por
Antônio de Aguiar. Quinze ou vinte cópulas sodomíticas foram com certeza mais do
que o austero visitador poderia suportar, resultando na ordem de prisão de Marcos
expedida a 16 de julho de 1593.
Em seus dois primeiros interrogatórios, como foi visto, o réu hesitou em admitir
todas as cópulas sodomíticas já confessadas por Antônio de Aguiar. De um lado, é
compreensível a hesitação de Marcos, dada a gravidade do pecado, confessar toda a
extensão de seus crimes poderia levá-lo à fogueira. Por outro lado, a hesitação do réu
3 FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala. P. 211-212.
pode ter sido interpretada pelo visitador como um sinal de sua obstinação em manter-se
afastado das leis da Igreja, em desafio à autoridade da Inquisição – o que, como ver-se-á
a seguir, pode ter contribuído para a severidade da sentença.
Tendo sido constantemente admoestado pelo visitador a fazer confissão
completa de seus pecados nas duas primeiras sessões de interrogatório, Marcos, que,
devido ao segredo processual típico dos procedimentos inquisitoriais, não sabia que fora
denunciado pelos irmãos Aguiar, desespera-se e confessa mais do que pretendia ouvir
Heitor Furtado. Não sabendo do que estava sendo acusado, o réu denuncia crimes
praticados pela mãe Iria Alvrez. Ele relata que a mãe se envolvera com o movimento de
revolta indígena, taxado pela Igreja e pela Inquisição portuguesas como herética, da
Santidade do sertão do Jaguaribe. Além disso, denuncia uma suposta bigamia por parte
da mãe.
Não há como saber se o visitador preocupou-se em averiguar ou se tomou
qualquer providência em relação a estas denúncias. A única pista presente no
documento é uma anotação lateral que afirma que a mãe do réu residia então em
Pernambuco na casa do genro, um mestre de açúcar, casado com sua filha Isabel. A
aparente despreocupação do visitador com o relato de envolvimento da mãe de Marcos
com a Santidade do Jaguaribe aponta para uma barreira cultural que impedia ao
visitador de perceber a gravidade deste movimento. Segundo Vainfas, Heitor Furtado se
quedou perplexo diante de relatos como este, estando despreparado para julgá-los.4
Tais denúncias, como era de se esperar, não apaziguaram o visitador. De modo
que o réu foi submetido a uma terceira sessão de interrogatório. Neste ponto, após
quinze dias de aprisionamento, Marcos Tavares cedeu e fez enfim confissão completa,
nos termos descritos na forma seguinte pelo notário Manuel Francisco
4 VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. P. 168-169.
(...) Se affirma et reSolue he que elle tem pecca/ do o djtto peccado nefando Sodomjtico/com o djtto Antoniº dagujar, ora Sendo/ agente ora pacjente alguãs qujnZe/ VeZes por todas pouco mais ou menos.5
Tendo obtido a confissão completa, o visitador considerou logo os autos
conclusos – tendo feito apenas a concessão de conceder um curador ao réu, que era
menor de idade. Ao julgarem o caso, os réus não titubearam em considerar Marcos
Tavares culpado do nefando pecado da sodomia, porém com os atenuantes de ser menor
de idade e mameluco. Estas duas condições agiam a favor do réu por criarem a
possibilidade de seu não entendimento completo das leis da Igreja que puniam o
nefando, de modo a minorar suas culpas.
Não obstante os atenuantes, a pena de Marcos Tavares foi severa. Ele foi
condenado a sair em ato público descalço, desbarretado, cingido por uma corda e com
uma vela acesa na mão, a ser açoitado (40 vezes, segundo testemunho posterior do
meirinho disto encarregado) publicamente pelas ruas de Salvador, ao degredo por dez
anos em Sergipe e a pagar as custas do processo (o que era de praxe). A sentença foi
expedida ao dia 11 de agosto e publicada na Sé a 15 do mesmo mês do ano de 1593.
O processo de Marcos Tavares, em conclusão, comporta questionamentos
importantes acerca das vivências sexuais e de gênero de homens na Bahia de finais do
século XVI – permitindo deslocar noções essencialistas das identidades homoeróticas -,
bem como dos modos como o visitador Heitor Furtado de Mendonça comandou o
funcionamento da Inquisição durante a Primeira Visitação do Santo Ofício – mais
preocupado em perseguir comportamentos heréticos (ou assimiláveis à heresia) já
conhecidos na Europa (no caso, a sodomia), do que reconhecer a alteridade das práticas
religiosas coloniais ou indígenas que questionavam a autoridade portuguesa na América
– como a Santidade do Jaguaribe.
5 Processo de Marcos Tavares, fl. 42.