Comunidade imaginada

21
Ano III, Num 02 Edição Julho – Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com 129 Comunidade imaginada sonora: a Rádio Nacional e o engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de França Pereira 1 Resumo Este artigo tem por objetivo fazer uma reflexão sobre o papel da Rádio Nacional na construção da identidade brasileira, sobretudo no período do Estado Novo (1937-1945). Partimos do conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson para compreendermos como o sentimento de nação é despertado e cultivado por diversos dispositivos midiáticos. Faremos uma discussão sobre as características da linguagem radiofônica que possibilitam o estabelecimento da comunidade imaginada sonora. Em seguida, faremos um breve histórico do desenvolvimento da Rádio Nacional e seu estabelecimento como um dos principais veículos de comunicação do país neste contexto. Por fim, trataremos de alguns aspectos da programação da Rádio Nacional que contribuíram para o engendramento da identidade nacional na ditadura do Estado Novo. Palavras-chave: Rádio Nacional, Identidade e Estado Novo. 1. Comunidade imaginada sonora As diferentes comunidades nacionais comportam uma série de significados, ou sistemas de representação, através dos quais seus membros se identificam. A nação não é concreta ou definida por extensão territorial, ela é possível por um sentimento e uma imaginação comungados por um número significativo de pessoas. Benedict Anderson em Nação e Consciência Nacional (1989, p.14) define a nação como “uma 1 Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Mestre em Comunicação, na linha de Comunicação e Identidades, pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFJF (2011). Atualmente integra o grupo de pesquisa Processos Comunicacionais, Educação e Recepção, vinculado ao PPGCom-UFJF. Pesquisadora-bolsista do Centro de Pesquisas Sociais (UFJF) e FAPEMIG. Email: [email protected]

description

Artigo sobre comunidade imaginada sonora.

Transcript of Comunidade imaginada

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    129

    Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o engendramento da

    identidade brasileira no Estado Novo

    Maria Fernanda de Frana Pereira1

    Resumo

    Este artigo tem por objetivo fazer uma reflexo sobre o papel da Rdio Nacional na construo

    da identidade brasileira, sobretudo no perodo do Estado Novo (1937-1945). Partimos do

    conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson para compreendermos como o

    sentimento de nao despertado e cultivado por diversos dispositivos miditicos. Faremos

    uma discusso sobre as caractersticas da linguagem radiofnica que possibilitam o

    estabelecimento da comunidade imaginada sonora. Em seguida, faremos um breve histrico

    do desenvolvimento da Rdio Nacional e seu estabelecimento como um dos principais veculos

    de comunicao do pas neste contexto. Por fim, trataremos de alguns aspectos da

    programao da Rdio Nacional que contriburam para o engendramento da identidade

    nacional na ditadura do Estado Novo.

    Palavras-chave: Rdio Nacional, Identidade e Estado Novo.

    1. Comunidade imaginada sonora

    As diferentes comunidades nacionais comportam uma srie de significados, ou

    sistemas de representao, atravs dos quais seus membros se identificam. A nao

    no concreta ou definida por extenso territorial, ela possvel por um sentimento e

    uma imaginao comungados por um nmero significativo de pessoas. Benedict

    Anderson em Nao e Conscincia Nacional (1989, p.14) define a nao como uma

    1 Graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2008). Mestre em Comunicao,

    na linha de Comunicao e Identidades, pelo Programa de Ps-graduao em Comunicao da UFJF

    (2011). Atualmente integra o grupo de pesquisa Processos Comunicacionais, Educao e Recepo,

    vinculado ao PPGCom-UFJF. Pesquisadora-bolsista do Centro de Pesquisas Sociais (UFJF) e FAPEMIG.

    Email: [email protected]

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    comunidade poltica imaginada e imaginada como implicitamente limitada e

    soberana.

    As comunidades nacionais so politicamente imaginadas porque at os

    membros da mais pequena nao nunca conhecero, nunca encontraro e nunca

    ouviro falar da maioria dos outros membros dessa mesma nao, mas, ainda assim,

    na mente de cada um existe a imagem da sua comunho (ANDERSON, 1989, p.14).

    Com dimenses continentais e o alto ndice de analfabetismo, o rdio propicia, pela

    primeira vez, a sensao de unidade nacional amplificada no Brasil. Por mais que

    falemos do largo alcance do rdio, temos que considerar que em vrias regies do pas

    este sentimento demorou a ser conhecido, e ainda ousamos dizer que nem mesmo

    hoje foi compartilhado por todos brasileiros.

    Isto porque o que ser brasileiro uma construo discursiva hegemnica

    partilhada por um grande nmero de pessoas, mas no necessariamente esses

    indivduos se identificam com os elementos eleitos e ressaltados na caracterizao

    desta identidade. O outro ponto, que embora j tenhamos superado a comunicao

    de massa e estejamos imersos na cultura das mdias2, a comunicao ainda no

    superou certas barreiras, como a desigualdade social, que faz com que muitos no

    tenham acesso informao. Ou seja, em situaes extremas, mas ainda existentes, o

    capital e a cultura restringem o poder ao consumo miditico.

    As caractersticas do rdio permitiram que na fase de interseco do Estado

    Novo (1937-1945) com a Era de Ouro do Rdio (dcadas de 1940 e 1950) fossem

    articuladas narrativas identitrias sobre a brasilidade. Em seu trabalho A Informao

    no Rdio, Ortriwano (1985, p.78-81) elenca como peculiaridades deste veculo a

    linguagem oral, penetrao, mobilidade do emissor e do receptor, baixo custo de

    2 De acordo com a Lucia Santaella (2007, p.125), a cultura das mdias apresenta como principal

    caracterstica permitir a escolha e o consumo mais personalizado e individualizado das mensagens, em

    oposio ao consumo massivo.

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    131

    produo e aquisio do aparelho receptor, imediatismo, instantaneidade,

    sensorialidade e autonomia. Alguns destes elementos foram adquiridos mais

    tardiamente com os avanos tecnolgicos, no entanto, destacaremos os que afetaram

    de maneira direta o modo de vida e a relao de percepo de mundo das pessoas.

    A oralidade permite a incluso da populao analfabeta na recepo de

    contedos, enquanto o impresso e a televiso (em certos momentos) limitam a

    comunicao com este pblico. De acordo com Federico (1982, p. 60), o censo de 1950

    registrou que na dcada anterior 61,80% da populao total do Brasil era analfabeta.

    Em contrapartida, em 1933, na capital federal j havia cerca de 50 mil aparelhos

    receptores de rdio. Logo, a comunicao que era privilgio de uma minoria composta,

    em geral, pela elite econmica e pelos intelectuais, com o advento do rdio, passou a

    ser de usufruto das camadas populares.

    No que tange a penetrao, o rdio se configura como meio mais eficiente por

    superar com maior facilidade barreiras geogrficas, podendo alcanar os lugares mais

    longnquos e cobrir um vasto territrio. Ao mesmo tempo em que pode oferecer

    alcance nacional, tambm pode se dedicar cobertura regional. veculo de alcance

    universal, que pode levar sua mensagem a qualquer parte do globo, no mesmo

    instante unindo populaes antpodas o rdio entretanto de uma natureza

    eminentemente regional, quanto a sua principal audincia (BELTRO, 1968, p. 114).

    Por ser fisicamente menos complexo que os outros veculos, o imediatismo do

    rdio permite que os fatos sejam transmitidos no instante em que ocorrem ou se

    desenrolam. A instantaneidade exige que o ouvinte esteja atento no momento da

    recepo da mensagem, porque ela demasiadamente efmera, e em contraposio,

    o impresso oferece uma informao mais perene, que permite vrias leituras e a

    recepo mais fixada.

    A sensorialidade requer que os ouvintes envoltos apenas em sonoridade

    (palavra, msica e rudo) criem ou projetem imagens mentais. Ortriwano (1985, p.80)

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    afirma que o rdio envolve o ouvinte, fazendo-o participar por meio da criao de um

    dilogo mental com o emissor. E ao mesmo tempo, desperta a imaginao atravs

    da emocionalidade das palavras e dos recursos de sonoplastia, permitindo que as

    mensagens tenham nuances individuais, de acordo com as expectativas de cada um.

    Com estas caractersticas, a potencialidade do rdio comeou a ser utilizada

    para diversas finalidades: educativas, comerciais, polticas e culturais e todos estes

    componentes foram essenciais para que a houvesse a integrao no s entre os

    brasileiros, mas em outras comunidades nacionais.

    Canclini (1998, p.256) afirma que na Amrica Latina as transformaes

    promovidas pelos meios modernos de comunicao se entrelaam com a integrao

    das naes. O autor alega que o rdio foi decisivo para que cada pas latino-

    americano deixasse de ser um pas de pases, ao resgatar de forma solidria as

    culturas orais de diversas regies e incorporar as vulgaridades proliferantes nos

    centros urbanos. A ideia de nao imposta pelo sentimento e cotidianidade.

    Por meio da explorao da sensoralidade, as ondas radiofnicas estabelecem

    um elo coletivo e afetivo entre o transmissor/locutor e a populao, convocando todos

    a participarem da vida nacional. O importante no era exatamente o que era passado

    de contedo e sim, o modo como era transmitido, permitindo a explorao de

    sensaes e emoes favoravis para o comprometimento poltico dos ouvintes. O

    rdio permitia uma encenao de carter simblico e envolvente, estratagemas de

    iluso participativa e de criao de um imaginrio homogneo de comunidade

    nacional (LENHARO, 1986, p. 42.).

    Em um relato apaixonado, Saint-Clair Lopes, pesquisador e radialista, que

    vivenciou a Era de Ouro do Rdio brasileiro, nos fornece atravs de sua viso o

    impacto causado pela propagao do rdio no pas:

    Os nossos patrcios, distribudos numa enorme extenso territorial e

    separados por inmeras dificuldades fsicas, nunca mais sentiram-se

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    133

    ss ou isolados das grandes comunidades nacionais. A radiodifuso

    brasileira exerceu o papel de convocadora da massa brasileira para o

    processo de integrao total; reatamos conhecimentos que a

    distncia estava fazendo esquecidos; ultrapassamos barreiras,

    galgamos obstculos e pelas estradas areas estabelecemos um

    intercmbio espiritual como jamais fora feito desde a Descoberta. As

    comunicaes to precrias foram compensadas pela rpida

    penetrao da radiodifuso, favorecendo a intimidade entre as

    diversas regies do pas. E mais: integradas na comunho,

    despertamos as populaes para horizontes mais amplos: a

    comunho universal. O mundo abriu suas portas, oferecendo novas

    perspectivas ao homem. O conhecimento deixou de ser privilgio de

    alguns para tornar acessvel a todos, graas ao milagre das estradas

    areas que conduzem silenciosamente as harmonias. (LOPES, 1970,

    p. 44)

    Diante dessas potencialidades e possibilidades, os impactos do rdio na vida

    nacional e poltica brasileira durante as dcadas de 1930 a 1950 so incontestveis. O

    veculo fomenta o desenvolvimento da indstria cultural influenciando a indstria

    fonogrfica, a carreira de artistas, o cinema, as revistas especializadas, a publicidade e

    at o mundo do esporte, construindo mitos e olimpianos. Assim como cria o mercado

    consumidor ao colocar em conexo produtos e compradores, ensinando como usar e

    incitando a necessidade de tais mercadorias. O rdio assumiu o papel de educador das

    massas ao transmitir aulas sobre histria e geografia do Brasil, literatura, higiene

    pessoal e boas maneiras. E, alm de ditar modas, o rdio enlaava os indivduos e os

    vinculava s massas, estabelecendo os laos sociais entre os cidados e permitindo a

    integrao nacional do pas. Ser, sobretudo, esta ltima capacidade do rdio

    explorada pelo regime do Estado Novo para a construo discursiva da identidade

    nacional, que impactar decisivamente na vida poltica e cultural brasileira.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    2. A programao da Rdio Nacional: criando os laos da comunidade

    imaginada Brasil

    A Rdio Nacional do Rio de Janeiro iniciou suas atividades em 12 de setembro

    de 1936, ocupando a frequncia da antiga Rdio Philips, sob o comando da empresa

    jornalstica A Noite. Devido m administrao e ao endividamento, Geraldo Rocha,

    dono da organizao comunicacional, se viu forado a recorrer ao financiamento de

    capital estrangeiro da Brazil Railway Company pertencente ao empresrio

    estadunidense Percival Farquhar3, que passou a controlar os jornais A Noite e A Manh

    (SP) e as revistas Noite Ilustrada, Carioca e Vamos Ler, alm da estao de rdio.

    Antes mesmo de uma inteno poltica para a emissora, sua estrutura fsica j

    revelava o poderio do alcance almejado. Geograficamente, a Rdio Nacional

    demonstrava estar disposta a ocupar um lugar no topo do setor, os estdios foram

    implantados no 19 andar do prdio nmero 07 da Praa Mau, no arranha-cu de 22

    andares (o mais alto do pas) que estava sendo erguido pelo grupo A Noite. Com isso, a

    abrangncia do sinal sonoro da estao se configuraria como um dos melhores da

    capital e, posteriormente, favoreceria o alcance no mbito nacional.

    O Estado Novo, sob alegao da importncia estratgica para a nao,

    incorpora, em 08 de maro de 1940, pelo decreto n 2.073, as empresas do grupo

    Brazil Railway Company ao Patrimnio da Unio. Segundo Jambeiro (2003, p. 109),

    esses empreendimentos eram considerados relevantes para a utilidade pblica e para

    o interesse do pas. Dessa forma, ao estatizar esta empresa estrangeira, Getlio

    Vargas garantia soberania dos bens nacionais e fortaleceria sua poltica nacionalista.

    3 A Brazil Railway Company direcionava seus tentculos para diversas reas da economia nacional,

    principalmente para os servios concessionrios do governo. Alm das ferrovias (Companhia Estrada de

    Ferro So Paulo-Rio Grande e Madera-Mamor), estavam na mira de Farquhar o transporte de bondes,

    os servios de gs, luz, telefones, a explorao de minrios e o setor comunicacional.

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    135

    Na rea comunicacional, o destino do impresso e do rdio foi diametral. Os

    jornais transformaram-se em uma espcie de dirio oficial, excessivamente formal e

    desinteressante, foram fadados ao abandono de seus antigos leitores. O Estado Novo e

    sua mquina de propaganda, atentos importncia do rdio para a difuso da sua

    ideologia e para a construo de sentimentos nacionalistas entre os brasileiros, agiram

    de modo inverso com a Nacional, fazendo-a cada vez mais atrativa e,

    consequentemente, elevando seus ndices de audincia, desbancando a liderana no

    Rio de Janeiro da Rdio Mayrink Veiga, usufruda desde 1934, e ao longo deste decnio

    assumiu a ponta em todo Brasil.

    Como veremos a seguir, a alterao deste quadro pode ser atribuda a dois

    fatos. A Rdio Nacional ao ser encampada continuou a receber investimentos dos

    anunciantes e a vender seu espao publicitrio para empresas privadas. O que na

    verdade aumentou a renda da emissora, foi a entrada de capital estatal, o que a

    transformava em uma adversria invencvel. Com mais recursos que suas

    concorrentes, a rdio investiu fortemente na contratao de dolos e competentes

    funcionrios tcnicos, na qualidade e variedade da programao e nas instalaes e

    equipamentos.

    Importante destacarmos, que embora acreditemos que o processo de

    encampao do grupo A Noite tenha sido motivada pela poltica nacionalista do

    governo Vargas, j que um conglomerado estrangeiro atuando em diversos setores

    contrariava esses ideais e tambm devido s divergncias entre Farquhar e o

    presidente da Repblica; a justificativa oficial para que as empresas fossem estatizadas

    eram as dvidas que o grupo possua com o Estado. A incorporao da estao foi

    certeira para o governo, pois a emissora j despontava entre as preferidas pelo pblico

    e tinha um nome que atendia poltica nacionalista estado-novista.

    Em o Almanaque da Rdio Nacional, Ronaldo Conde Aguiar (2007) tambm

    defende que a encampao da Rdio Nacional atendia a certos objetivos polticos

    governamentais: de integrao nacional, de consolidao da identidade brasileira e de

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    projeo de uma imagem positiva no exterior. Ao levar para vrios e distantes pontos

    do pas um conjunto de mensagens, o presidente acreditava estar influenciando a

    formao de uma identidade nacional. Segundo o autor, isto justificaria o fato de que

    a emissora estatal procurou, desde logo, tornar-se um veculo de divulgao de

    autores nacionais e da msica popular brasileira para dentro e para fora do pas

    (AGUIAR, 2007, p.22).

    O presidente Getlio Vargas utilizou o rdio para se aproximar da populao. O

    Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), sob a chefia de Lourival Fontes, era o

    rgo responsvel pela censura e distribuio da propaganda estatal em todos os

    meios de comunicao e pela produo do informativo dirio Hora do Brasil. As outras

    emissoras do governo tinham o papel ideolgico mais definido e a programao mais

    incisiva para atuar neste sentido. Na Rdio Nacional, a presena do ditador era mais

    diluda e disfarada, o que parece ter assegurado o xito da emissora em relao aos

    outros veculos oficiais (impresso ou radiofnico). Quanto mais dotada de oficialidade

    e formalismo, a comunicao com o pblico no funcionava, fato que ocorreu com a

    Hora do Brasil e o jornal impresso A Noite.

    De acordo com Ronaldo Conde Aguiar (2007, p.22), Vargas jamais utilizou a

    Rdio Nacional como veculo de divulgao pessoal e se o tivesse feito, a PRE-8 teria se

    degradado e no teria chegado ao ponto que chegou. Em Por trs das ondas da Rdio

    Nacional, a sociloga Miriam Goldfeder, ao analisar os programas de auditrio da

    emissora e a disputa entre as Rainhas do Rdio Emilinha Borba e Marlene sob o vis

    gramsciano, atribui rdio o papel de condutora hegemnica das classes populares.

    Esta emissora deveria atuar como um mecanismo de CONTROLE

    SOCIAL, destinado a manter as expectativas sociais dentro dos

    limites compatveis com o sistema como um todo. Este controle se

    exerceria, no entanto, de forma implcita, parcial e difusa, ao

    contrrio dos mecanismos propriamente polticos, atravs de uma

    forma determinada de distribuio de bens e valores de participao

    e obedincia. O que a Rdio Nacional propagava, em ltima

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    137

    instncia, no era a excelncia de um modelo poltico, mas a

    legitimidade de um tipo de sociedade e de um quadro de valores

    ticos. (GOLDFEDER, 1980, p.40)

    Para Miriam Goldfeder (1980), a Rdio Nacional como prtica cultural, com

    autonomia e atuao especfica, agiria no conjunto dos mecanismos de legitimao

    ideolgica acionados direta ou indiretamente pelo sistema de dominao poltica,

    objetivando a reiterao do quadro geral dos valores dominantes do perodo. Ou seja,

    a Rdio Nacional sem vestir diretamente a camisa do governo e com considervel

    penetrao no pas, conseguiu mais efetivamente fortalecer o elo com a populao e,

    de forma indireta, propagar os ideais nacionalistas do Estado Novo, dando mais

    consistncia ao discurso identitrio e ao sentimento da brasilidade. E para atingir tal

    objetivo, a Nacional no poupou esforos, contratou os melhores radialistas e os mais

    famosos msicos e cantores.

    O sucesso da Rdio Nacional atribudo boa administrao de Gilberto

    Andrade, que assumiu a chefia da emissora logo aps a sua encampao. Embora

    contasse com o capital do governo, Gilberto Andrade buscava seguir uma linha

    profissional e mercadolgica, guiado por sua capacidade de inovao. Para isso,

    Gilberto Andrade criou processo seletivo para os profissionais do rdio, os candidatos,

    em qualquer rea de atuao, deveriam fazer testes ou provas prticas de

    conhecimento, acompanhados e avaliados por uma comisso de alto nvel. Dessa

    forma, o dirigente combatia o famoso pistolo e o nepotismo nas contrataes da

    emissora. Com habilidade e firmeza, Gilberto Andrade soube criar uma barreira na

    Rdio Nacional, impedindo que as famosas cartas de apresentao maculassem os

    critrios tcnicos e de competncia que havia estabelecido para os processos de

    contratao (AGUIAR, 2007, p.23)4.

    Outra importante iniciativa foi a criao da Seo de Estatsticas da Nacional,

    cujo objetivo era mensurar a audincia e a receptividade dos programas da emissora,

    4 Este modelo de seleo e contrao passou a ser seguido pelas demais emissoras.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    constituindo-se como verdadeiro termmetro do sucesso. Em Rdio Nacional - O Brasil

    em Sintonia, para Sonia Virginia Moreira e Luiz Carlos Saroldi (1984, p.27) esta era

    uma idia que colocava em grficos e nmeros os programas e horrios a serem

    oferecidos aos anunciantes. O preo do espao publicitrio vendido s empresas

    variava conforme a audincia de determinado programa e sua eficcia comunicativa.

    Segundo Moreira e Saroldi (1984, p.29), esta prtica funcionou e atraiu novos

    anunciantes que escolhiam mais programas e artistas para patrocinar, assim injetando

    cada vez mais capital e fortalecendo a hegemonia da rdio.

    Gilberto Andrade tratou de montar uma equipe de colaboradores eficiente,

    contando com nomes como o de Jos Mauro (diretor artstico e produtor), Almirante

    (apresentador, produtor e cantor), Vtor Costa (diretor geral e de radioteatro), Paulo

    Tapajs (cantor e produtor), Radams Gnatalli (maestro), Haroldo Barbosa (diretor,

    roteirista, compositor e humorista) e Celso Guimares (ator). Aps a encampao a

    estrutura da Nacional cresceu de forma acentuada, como revela a pesquisadora Gisela

    Ortriwano:

    A gigantesca organizao valia-se de dez maestros, 124 msicos, 33

    locutores, 55 radioatores, 39 radioatrizes, 52 cantores, 44 cantoras,

    18 produtores, 13 reprteres, 24 redatores, quatro secretrios de

    redao e aproximadamente 240 funcionrios administrativos.

    Contava com seis estdios, um auditrio para 500 lugares,

    conseguindo cobrir todo o territrio at o exterior com seu sinal que

    chegava a atingir a Amrica do Norte, a Europa e a frica.

    (ORTRIWANO, 1985, p.18)

    Com todos estes aparatos, a emissora no s deveria atuar para gerar coeso e

    integrao nacional, mas tambm para a divulgao da imagem do nosso pas no

    exterior. Nas prprias palavras de Gilberto Andrade a Rdio Nacional a voz do Brasil

    que vai falar ao mundo, para dizer aos povos civilizados do universo o que aqui se faz

    em prol dessa civilizao. a msica brasileira que ser difundida atravs dos recantos

    mais distantes do globo, exibindo toda a sua beleza e todo seu esplendor (MOREIRA e

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    139

    SAROLDI, 1984, p.48). Em 31 de dezembro 1942, com antenas5 apontadas para EUA,

    Europa e sia, a estao passava a transmitir programas dirios em quatro idiomas,

    fazendo a divulgao da msica e do folclore brasileiro e propaganda dos principais

    produtos do pas, na poca o caf, algodo borracha e madeira. Segundo Moreira e

    Saroldi (1984, p.48), a partir de 1943, a Rdio Nacional comea a receber cartas dos

    mais longnquos lugares do mundo: Alasca, frica do Sul, Sua, Inglaterra, ndia, Nova

    Zelndia e Japo.

    Logo aps o processo de encampamento, a Rdio Nacional, para se adequar

    poltica de construo da nacionalidade brasileira, ganhou sua prpria orquestra sob a

    regncia do maestro Radams Gnattali, com repertrio musical telrico, tambm

    adicionou instrumentos nativos como cavaquinho, violo e os percussivos. A inteno

    da Orquestra Brasileira era oferecer msica brasileira o mesmo tratamento e

    qualidade tcnica dado s composies internacionais. A estao tambm contava

    com outras orquestras, mas esta, sem dvida, foi a principal delas.

    A contratao de Almirante, um dos mais famosos radialistas da poca, foi de

    significativa contribuio para cumprimento da linha governamental de construo de

    uma cultura e uma identidade nacional. Alm de exmio conhecedor da msica

    brasileira, Almirante foi importante articulador entre a cultura popular e massiva e

    entre a cultura branca e negra, contribuindo para o processo de nacionalizao do

    samba; pesquisador das coisas brasileiras, afirmando-se na procura constante do

    folclore e da cultura popular (MOREIRA e SARODI, 1984, p.35), produziu e apresentou

    programas com contedos nacionais, cujo objetivo era descortinar a diversidade

    sonora brasileira e, de uma forma geral, cultural6.

    5 Cinco das oito antenas instaladas estavam apontadas para esses pases, contando ainda com uma

    estao de ondas curtas de 50 quilowatts de potncia instaladas pela RCA Victor, que tambm tinha

    como objetivo a melhoria do servio radiofnico dentro do territrio nacional.

    6 Dentro da linha nacionalista, podemos citar os programas Curiosidades Musicais, Aquarela Brasileira,

    Instantneos Sonoros do Brasil, A Cano Antiga e A histria do Rio pela msica.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    Outras aes foram institudas para popularizao da Rdio Nacional. O

    jornalismo da emissora, atravs do Reprter Esso7, desenvolveu uma linguagem

    prpria e compatvel com o universo radiofnico, transformando-se em padro de

    qualidade para o radiojornalismo at os dias atuais. Tambm foram criadas as

    radionovelas, verso popular e de mais fcil acesso que radioteatros que existiam

    desde os primeiros anos do rdio no pas. Com mais recursos financeiros oriundo dos

    patrocinadores, as radionovelas investiram em diversos atrativos narrativos.

    A Nacional tambm realizava concursos musicais e eleies para escolha de

    melhor(a) cantor(a) do Rdio ou melhor(a) ator/atriz. Promovidos pela estao, com

    apoio direto do Estado Novo, era o DIP quem fazia a apurao e os resultados eram

    transmitidos dentro da Hora do Brasil, esta iniciativa visava suprir participao do

    povo nas decises polticas, funcionando como momento de catarse para a

    necessidade do exerccio da democracia.

    7 Marco na histria da radiodifuso, mas tambm do jornalismo brasileiro, este jornal foi ao ar pela

    primeira vez em agosto de 1941 e permaneceu por 27 anos, encerrando seus servios em 1968.

    Inicialmente, voltou-se para a cobertura da guerra, baseando-se nos releases e notas distribudas pelas

    agncias de notcias estadunidenses, com o tempo enviou seus prprios correspondentes para o

    exterior, que retransmitiam as informaes via telefone. Cabe ressaltar que em julho de 1942, o

    Reprter Esso, segundo Sonia Virginia Moreira (1991, p. 27), era transmitido por mais quatro emissoras:

    Rdio Record (SP), Rdio Inconfidncia (MG), Rdio Farroupilha (RS) e a Rdio Clube de Pernambuco.

    Com quatro edies dirias, o informativo entrava ao ar pontualmente s 8:00, 12:55, 19:55 e 22:55

    horas, e o slogan a testemunha ocular da histria, o Reprter Esso e o seu locutor mais famoso,

    Heron Domingues, desenvolveram uma tcnica e um estilo de locuo jornalstica imitados pelos seus

    companheiros de profisso em praticamente todas as emissoras brasileiras (MOREIRA, 1991, p.27). O

    fazer jornalsticos dentro das rdios tambm aprimoraram-se com o abandono do sistema tesoura e

    cola, desenvolvendo-se a linguagem e redao apropriada para o meio. Em 1948, Heron Domingues

    implanta na Rdio Nacional a Seo de Jornais Falados e Reportagens, uma redao especializada em

    radiojornalismo.

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    141

    Meses aps a queda de Getlio Vargas, Gilberto Andrade, em 16 de maro de

    1946, pede desligamento do seu cargo na Rdio Nacional8. A emissora ainda viveria

    parte da sua Era de Ouro at o final da dcada de 1950. Curiosamente, no foi outra

    estao que desbancou a hegemonia da Rdio Nacional, mas sim um outro meio de

    comunicao, a televiso, que se fortaleceu no fim dos anos 1950 e incio da dcada de

    19609.

    Aps a fase de superao da improvisao e da inexperincia e com a

    fabricao de aparelhos televisores no Brasil, que baixava os custos, a televiso passou

    atrair astros e estrelas do rdio que migraram de um meio para o outro em busca do

    melhor cast e tambm diante da possibilidade de mostrar sua imagem.

    Consequentemente a audincia e os patrocinadores fizeram o mesmo movimento. O

    rdio foi obrigado a reinventar-se, delegando televiso a funo de veculo

    eminentemente nacional e incorporando definitivamente o localismo como uma das

    suas caractersticas principais. Com isso, a Rdio Nacional no se adaptou aos novos

    ditames, perdeu audincia e caiu no ostracismo.

    3. A trilha sonora brasileira

    A Rdio Nacional contava com grande acervo de partituras e de discos com

    gravaes feitas pela prpria emissora de seus programas e de seus artistas, alm de

    8 Esta pesquisa restringe-se ao perodo histrico do Estado Novo (1937-1945) e sua ao poltica e

    ideolgica para a construo do nacionalismo e de referncias identitrias da brasilidade, por isso no

    nos prolongaremos na histria da Rdio Nacional.

    9 Segundo Federico (1982, p.79), a Nacional do Rio de Janeiro foi a primeira emissora da Amrica do Sul

    a realizar experincias com a televiso, em 1946, quando efetivou a transmisso experimental dos seus

    estdios com o programa Rua 42. Motivado por interesses polticos e econmicos, o ento presidente

    da repblica Juscelino Kubitschek (1956-1961) que no queria se indispor com baro da comunicao

    Assis Chateaubriand, com medo de uma propaganda negativa do seu governo, transferiu o projeto da

    criao da TV Nacional para Braslia, mas a ideia nunca saiu do papel.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    uma discoteca com grande variedade musical. Este arquivo era utilizado para a

    produo de jingles, abertura e encerramento de programas e efeitos sonoros para

    radioteatro e radionovela, que demandavam pesquisas e escolhas criteriosas das

    msicas, coerentes com as caractersticas e emoes de cada cena (AGUIAR, 2007,

    p.40).

    A Diviso Musical administrada por Haroldo Barbosa era composta por

    cantores(as), conjuntos vocais, msicos, maestros e orquestras. De acordo com Aguiar

    (2007, p.40), a Rdio Nacional tinha como norma utilizar, nos seus programas musicais,

    apenas apresentaes ao vivo. Isto impulsionou a pesquisa e a melhoria da qualidade

    sonora radiofnica, cuja finalidade era eliminar rudos e possveis distores da

    mediao eletrnica do sinal. Segundo Federico (1982, p.78), a partir dessas

    preocupaes, surgia uma msica essencialmente radiofnica criada em termos

    laboratoriais e experimentais, para dar forma s abstraes da mediao ou colorir e

    dar uma medida sonora intencional.

    A indstria fonogrfica tambm se beneficiou dos talentos revelados pela

    emissora que tinha o trabalho de garimpar, educar e afinar os diamantes brutos

    dos shows de calouros e transform-los em verdadeiros astros e estrelas. Com a

    popularidade da Rdio Nacional, o novo cantor(a) caia nas graas do pblico, e criava

    um atalho para a gravao e lanamento em disco de suas canes.

    (...) a influncia da Rdio Nacional na msica brasileira no se

    limitava ao que era produzido em seus estdios ou no palco-

    auditrio. Tambm ali estava o celeiro de novas ideias e sons, de

    talentos capazes de fornecer alimento fome da indstria do disco,

    ou crescente demanda de um mercado interno para o filme

    nacional, ainda dependentes das chanchadas da Atlntida.

    (MOREIRA e SAROLDI, 1984, p.70)

    Em 1945, os programas musicais ocupavam 42,3% da programao semanal da

    Rdio Nacional. Segundo o prprio diretor da emissora Gilberto Andrade (apud

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    143

    MOREIRA e SAROLDI, 1984, p.54), os programas de msica variada correspondiam

    26,9%, os dedicados somente msica popular brasileira 11% e os programas de

    msica clssica e semiclssica detinham 4,4%. Importante ressaltarmos que com a

    implementao da poltica da boa-vizinhana, a partir dos anos 1940, o Brasil comea

    sofrer presso e influncia musical estadunidense e, em contrapartida, est no auge do

    nacionalismo estado-novista.

    O programa Um milho de melodias o exemplo mximo da presena de

    produtos comerciais estadunidense na radiofonia brasileira. Estreado em 6 de janeiro

    de 1943, geralmente apresentava duas msicas atuais, duas antigas e trs msicas

    estrangeiras de grande sucesso. Contudo, o astro principal deste programa no eram

    os cantores ou a Orquestra Brasileira, mas sim seu patrocinador, a Coca-Cola, que

    estava lanando a marca de refrigerante no mercado nacional. Para Aguiar (2007,

    p.40), Um milho de melodias foi o mais famoso programa musical brasileiro, fato que

    revela o poderio do marketing desta empresa no pas j nos anos de 194010. A Coca-

    Cola tambm patrocinava o programa musical A pausa que refresca.

    A marca de usque Old Parr, seguindo o modelo de patrocnio da Coca-Cola,

    tinha o programa A Revista Old Parr, que combinava msica, humor e um pouco de

    histria do Rio de Janeiro. Outro musical que investia em um repertrio internacional

    era Dona Msica, este programa tinha um tom didtico, atravs do dilogo entre um

    reprter e a Dona Msica (personagem), eram apresentadas e comentadas msicas de

    diversas partes do mundo, podendo ter como temas, por exemplo, A cano italiana

    ou Viena, cidade das canes. A Rdio Nacional tinha uma trilogia de programas,

    patrocinada pela companhia area Pan American World Airways, sendo que dois

    10

    Em O Imperialismo Sedutor A americanizao do Brasil na poca da Segunda Guerra (2005), o

    historiador Antonio Pedro Tota relata desde a disputa poltica entre o americanismo e germanismo no

    Estado Novo at adoo da Poltica Boa-Vizinhana, destrinchando os mais diversos mecanismos

    empregados pelos EUA para a difuso de sua ideologia e cultura no Brasil durante o perodo da Segunda

    Guerra Mundial.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    destes programas eram destinados a msica estrangeira: Aquarelas das Amricas, que

    trazia canes das trs Amricas, como o tango argentino, rumba cubana e o jazz

    estadunidense; Aquarelas do Mundo apresentava msicas estrangeiras (exceto das

    Amricas) a partir de temas como Cidades que cantam, Viagem pelas canes do

    Velho Mundo ou Estranhas danas que no danamos, que trazia as msicas e as

    danas orientais, tipo rabe, chinesa ou russa.

    Apresentado por Almirante, o terceiro programa a compor a trilogia era

    Aquarelas do Brasil11, que veiculava exclusivamente msicas do folclore brasileiro.

    Temas especficos da cultura popular eram pesquisados e a partir disso montavam-se

    os programas como O bumba meu boi, Escolas de samba, Frevos e Maracatus,

    Festas de So Joo, Boiadeiros at mesmo Velrios e rezas para defuntos. O

    programa Curiosidades Musicais e Instantneos Sonoros do Brasil, tambm

    apresentados por Almirante, seguiam essa mesma vertente nacionalista, ambos

    trazendo cena a cultura dos afrodescendentes com programas dedicados aos negros,

    a lenda de Chico Rey, quilombos, congadas e a capoeira e a cultura nordestina e

    nortista abordando temas a seca do nordeste, cantigas de cegos, o engenho ou o

    desafio nortista.

    O programa Quando Canta o Brasil, idealizado por Paulo Tapajs, era um

    desfile exclusivo de msicas brasileiras, incluindo msicas regionais (AGUIAR, 2007,

    p.42). Estes quatro programas mencionados acima foram os principais a comporem o

    quadro da Rdio Nacional, cuja preocupao central era a divulgao do conhecimento

    sobre a msica e a cultura popular brasileira. Outro programa que atuou neste

    sentindo tambm, porm com um contedo especfico, foi o Alma do Serto,

    programa dirio de Renato Murce, que veiculava modas de viola, canes sertanejas,

    cenas caipiras e poesia caipira.

    11

    Mesmo ttulo do samba de exaltao de Ary Barroso.

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    145

    A listagem dos programas musicais da Rdio Nacional extensa, aqui

    mencionamos os quais julgamos os mais contributivos para a divulgao da pluralidade

    cultural brasileira e para a construo da identidade nacional, uma vez que esses

    programas colocavam em conexo a populao do pas e socializava diversos

    elementos culturais at ento restritos a uma classe social, regio ou segmento tnico.

    Consideraes finais

    Como podemos verificar, a programao da Rdio Nacional era orientada no

    sentido de tentar colocar os brasileiros em conexo para a construo do sentimento

    de pertencimento e de brasilidade. A terica Yvana Fechine, em seu texto Espao

    Urbano, Televiso e Interao, argumenta que a televiso funciona como lugar de

    interao e experincia urbana, atravs do contgio de uma transmisso ao vivo ou da

    instaurao de uma intimidade mediada. A partir desta leitura, transferimos seu

    pensamento para o rdio, pois este meio de comunicao que inicia o processo de

    colocar diversas pessoas de locais diferentes em vinculao, construindo desta forma

    um espao simblico. Trata-se de um espao que s possui existncia no momento

    mesmo em que se d a transmisso. Por meio dela, ocorre a conexo que, ao colocar

    todos os participantes em um mesmo agora, transforma todas as suas distintas

    posies espaciais fsicas em um mesmo aqui (FECHINE, 2006, p.41).

    O rdio permitiu a representao auditiva da comunidade imaginada brasileira,

    penetrando nas camadas mais populares e analfabetas, em que o impresso no

    penetrava. Isso foi possivel, segundo Fechine (2006, p.42), pelo contgio, ou seja, a

    co-presena entre os actantes a partir da qual o estado de um passa ao diretamente ao

    outro, fazendo-os ser uns em relao aos outros.

    Deste modo, a Rdio Nacional foi pioneira na representao auditiva da

    comunidade imaginada brasileira, ao colocar em conexo grande nmero da

    populao e dos mais distintos e distantes pontos do pas, sempre orientada pela idia

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    de integrao nacional e de valorizao da brasilidade. O socilogo Renato Ortiz, em A

    Moderna Tradio Brasileira, questiona o poder poltico e comunicativo da emissora,

    uma vez que a radiodifuso brasileira seria caracterizada pelo localismo e a

    programao da Nacional no daria conta da diversidade cultural brasileira.

    (...) o sonho do Estado totalitrio de construir um sistema radiofnico

    em nvel nacional se desfaz diante da impossibilidade material de

    realiz-lo. Isso significa que a radiodifuso brasileira no adquire a

    forma de rede, o que favorece o desenvolvimento da radiofonia local.

    O que acontecia era que algumas emissoras mais potentes se

    limitavam a irradiar seus programas a partir de sua base geogrfica,

    mas elas no se constituam em centro integrador da diversidade

    nacional. Simplesmente podiam ser captadas de acordo com o

    padro de recepo em cada lugar. (ORTIZ, 1988, p.54)

    De acordo com Renato Ortiz (1988), a Rdio Nacional praticamente no era

    escutada na cidade de So Paulo, onde a Rdio Record e a Difusora operavam numa

    frequncia que bloqueava sua penetrao. Outro fato curioso que as emissoras

    paulistas reapresentavam as radionovelas cariocas com elenco prprio, valorizando o

    cromatismo e sotaque local. De fato no acreditamos na onipotncia da Rdio

    Nacional, mas por outro lado no podemos negar seu pioneirismo no engendramento

    discursivo da identidade brasileira, alm da sua programao ter se tornando

    paradigma do rdio, modelos a serem imitados por outras emissoras. Se por um lado a

    radiodifuso brasileira carrega como marca o localismo, pelo menos neste perodo de

    estudo, este localismo foi passvel de ser nacionalizado. Como explicar a

    transformao de um gnero musical carioca, o samba, em referncia da brasilidade?

    O que dizer sobre os times de futebol carioca que tm torcidas espalhadas por todo

    Brasil?12

    12

    A Rdio Nacional transmitia jogos do campeonato carioca de futebol para quase todo o Brasil, o que

    fez com que principalmente nas regies Norte e Nordeste a populao criasse laos sociais e

    imaginativos com os times do Rio de Janeiro ao invs dos times locais. At mesmo em Juiz de Fora e no

    restante da Zona da Mata Mineira este fenmeno pode ser detectado, acrescentando-se tambm a

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    147

    Para autores como Moreira e Saroldi (1984), Aguiar (2007) e Ortriwano (1985),

    a Rdio Nacional desempenhou importante papel na construo da identidade

    brasileira, ora por seus programas e ora pela msica, sempre orientados pelo ideal de

    integrao nacional. Alm de ter contribudo decisivamente para o desenvolvimento

    da linguagem radiofnica brasileira em seus mais variados gneros e com seu alcance

    significativo no territrio nacional, tornou-se modelar para demais emissoras.

    Referncias bibliogrficas

    AGUIAR, Ronaldo Conde Aguiar. Almanaque da Rdio Nacional. Rio de Janeiro: Casa

    da Palavra, 2007.

    ANDERSON, Benedict. Nao e Conscincia Nacional. So Paulo: Editora tica, 1989.

    BELTRO, Luiz. Jornalismo pela televiso e pelo rdio: perspectivas. In: Revista da

    Escola de Comunicaes Culturais. So Paulo: USP, vol. 1, n. 1, 1968.

    CANCLINI, Nstor Garca. Culturas Hbridas. So Paulo: Edusp, 1998.

    FECHINE, Yvana. Espao Urbano, Televiso, Interao. In: PRYSTHON, Angela (Org).

    Imagens da Cidade: espaos urbanos na comunicao e cultura contempornea. Porto

    Alegre: Sulina, 2006. p.37-57.

    FEDERICO, Maria Elvira Bonavita. Histria da Comunicao. Rdio e TV no Brasil. Petrpolis: Vozes, 1982. GOLDFEDER, Miriam. Por trs das ondas da Rdio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e

    Terra, 1980.

    LENHARO, Acir. A Sacralizao da Poltica. Campinas: Papirus, 1986.

    LOPES, Saint-Clair. Comunicao e Radiodifuso Hoje. Rio de Janeiro: Temrio, 1970.

    varivel da proximidade local. De acordo com Aguiar (2007, p.129), nos anos dourados, as ondas da

    Nacional fizeram a integrao cultural e poltica do Brasil, como a emissora era carioca, em matria de

    futebol, ensinou ao brasileiro a torcer pelos clubes do Rio de Janeiro. Este fenmeno ainda alimentado

    pela Rede Globo, por uma questo de audincia e custos nas transmisses.

  • Comunidade imaginada sonora: a Rdio Nacional e o

    engendramento da identidade brasileira no Estado Novo Maria Fernanda de Frana Pereira

    MOREIRA, Sonia Virgnia; SAROLDI, Luiz Carlos. Rdio Nacional. O Brasil em Sintonia.

    Rio de Janeiro: Funarte/ Instituto Nacional de Msica/ Diviso de Msica Popular,

    1984.

    ORTIZ, Renato. A Moderna Tradio Brasileira. Cultura Brasileira e Indstria Cultural.

    So Paulo: Brasiliense, 1988.

    ORTRIWANO, Gisela Swetlana. A Informao no Rdio. Grupos de poder e

    determinao de contedos. So Paulo: Summus Editorial, 1985.

    SANTAELLA, Lucia. Linguagens Lquidas da Era da Mobilidade. So Paulo: Paulus, 2007.

  • Ano III, Num 02 Edio Julho Agosto 2012 ISSN: 2179-6033 http://radioleituras.wordpress.com

    149

    Abstract

    This article aims to discuss the role of the brazilian radio station, Rdio Nacional, in the

    construction of a brazilian identiry, especially in the period of the New State (1937-1945). We

    start with Benedict Anderson's concept of imagined community, trying to understand how the

    feeling of nation is awakened and cultivated by various media devices. We will discuss which

    characteristics of radio language allow the establishment of an imagined community. Then, we

    will present a brief history of the development of Rdio Nacional and its establishment as one

    of the main media channels in the country. Finally, we will discuss some aspects of the

    programming of Rdio Nacional that helped building national identity during the New State

    dictatorship.

    Keywords: Rdio Nacional, Identity, New State, Imagined Community

    Resumen

    El presente artculo tiene como objetivo reflexionar sobre el papel de la Rdio Nacional en la

    construccin de la identidad brasilea, especialmente en el perodo del Estado Novo (1937-

    1945). Comenzamos con el concepto de comunidad imaginada de Benedict Anderson para

    entender cmo el sentimiento de nacin se despierta y es cultivado por varios medios de

    comunicacin. Vamos a discutir acerca de las caractersticas del lenguaje radiofnico que

    permitan el establecimiento comunidad imaginada sonora. A continuacin, presentaremos una

    breve historia del desarrollo de la Rdio Nacional y su establecimiento como uno de los medios

    de comunicacin ms importantes del pas en este sentido. Finalmente, se discuten algunos

    aspectos de la programacin de Rdio Nacional que contribuyeron a engendrar la identidad

    nacional durante la dictadura del Estado Novo.

    Palabras Clave: Radio Nacional, Identidad, Estado Novo y Comunidad Imaginada.