Comunidades radicais - John Driver

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Há alguns séculos, a espiritualidade protestante tornou-se individualista e privatizante, promovendo dimensões de religiosidade mais subjetivas, interiores e invisíveis da fé. A espiritualidade dos primeiros discípulos de Jesus envolvia todas as dimensões da vida orientadas e animadas pelo próprio exemplo encarnacional de Cristo. Trata-se de uma espiritualidade integral do seguimento de Jesus, profundamente enraizada na graça de Deus, fortalecida pelo impulso de seu Espírito, nutrida e compartilhada numa convivência radical da fé na comunidade messiânica, e encarnada na missão de Deus no mundo. Comunidades radicais aponta para essa espiritualidade cristã do primeiro século, recuperada de forma notável pela espiritualidade anabatista da Reforma Radical do século dezesseis, e nos convida a encarná-la em nossas comunidades cristãs do século vinte e um.

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Comunidades Radicais

Espiritualidade cristã de ontem para hoje

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John Driver

Comunidades Radicais

Espiritualidade cristã de ontem para hoje

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Copyright © Ediciones Kairós 2007Título Original: Convivencia radical: espiritualidad para el siglo 21 © Editora Novos Diálogos, 2011

Equipe EditorialClemir Fernandes | Flávio Conrado | Wagner Guimarães

Capa e DiagramaçãoOliverartelucas

TraduçãoFlávio Conrado e Wagner Guimarães

Os textos das referências bíblicas foram extraídas da versão Almeida Revis-ta e Atualizada (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicações específicas.Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Publicado no Brasil com autorização e com todos os direitos reservados.

Editora Novos DiálogosCaixa Postal 24.127Rio de Janeiro - RJCEP 20.550-970Site: www.novosdialogos.comTwitter: @NovosDialogosFacebook.com/novosdialogos

Driver, John Comunidades radicais : espiritualidade cristã de ontem para hoje / John Driver .- Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2011.

88p. ; 21cm. (Coleção Teologia na América Latina).

ISBN: 978-85-64181-19-9

1. Espiritualidade (Teologia). 2.Anabatistas -----História. 3. Teologia. I. Título. II.Série.

CDD 248.4

Índice para catálogo sistemático:1. Anabatistas: História: 230.43

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Sumário

Apresentação à edição argentina ........................ 7

Apresentação à edição brasileira ........................ 15

Introdução ....................................................... 21

Capítulo 1Espiritualidade cristã do primeiro século – Primeira parte .................................................. 25

Capítulo 2Espiritualidade cristã do primeiro século – Segunda parte .................................................. 37

Capítulo 3Espiritualidade anabatista do século 16 – Primeira parte .................................................. 45

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Capítulo 4Espiritualidade anabatista do século 16 Segunda parte .................................................. 59

Capítulo 5Espiritualidades do século 21 – anabatistas em diálogo com outras tradições ............................ 69

Conclusão ........................................................ 79

Bibliografia ...................................................... 83

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APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO ARGENTINA

DesDe meaDos Do século quarto até o começo do século dezesseis a única forma possível de ser cristão e ser igreja no Oci-dente era ser católico apostólico romano, isto é, conformar-se ao pensamento único e inquestionável do Papa e do Magistério da Igreja Católica.

Existiram, no entanto, ao longo de mais de onze séculos, muitos cristãos que, embora obrigados a se conformar ao sis-tema, não se conformavam: eram conscientes do enorme con-traste que existia entre o conformismo escravizante do modelo vigente e os ensinos transformadores e libertadores de Jesus de Nazaré.

Estes cristãos tentaram trabalhar, de diferentes maneiras, para transformar a realidade imperante. Porém, a rigidez e a intole-rância do pensamento e da estrutura hierárquica da Igreja Ca-tólica daqueles séculos tornavam impossível a compreensão e aceitação de tais desacordos. A prática de amor que Jesus propôs

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a seus seguidores não era a pauta moral que regia a convivência intraeclesial: todos os que tentavam mudar eram silenciados atra-vés da perseguição, da tortura, do desterro ou do assassinato.

Em 31 de outubro de 1517, o monge e professor universitário alemão Martinho Lutero permitiu-se desafiar a ordem estabele-cida manifestando seu protesto público contra o que ele e muitos outros consideravam desvios espirituais, teológicos e pastorais da Igreja Católica de então. Sua ação, apoiada pelo poder político dos príncipes da Alemanha, marcou o início do que a história denomina a Reforma Protestante do século dezesseis.

A Igreja Católica da Baixa Idade Média se opôs e não permi-tiu uma reforma em seu seio. Lutero foi perseguido e excomun-gado, e seus seguidores — a quem chamava de “evangélicos”, por sua intenção de que fossem leais apenas ao evangelho — foram rotulados (zombeteiramente) como “protestantes”.

A Reforma Protestante original também é chamada Refor-ma Magisterial — ou “protestantismo clássico”, nas palavras do teólogo menonita John Howard Yoder — pelo papel decisivo que desempenharam nela a “magistratura” dos vereadores, dos príncipes e dos reis junto ao “magistério” dos reformadores e te-ólogos como Martinho Lutero, Ulrico Zwinglio e João Calvino. As igrejas que surgiram da Reforma Magisterial foram as igrejas luteranas e as igrejas reformadas1.

Alguns membros de algumas dessas igrejas — e também da Igreja Católica —, impulsionados pela presença transformadora do Espírito de Deus no seguimento comprometido de Jesus de Nazaré — à luz da leitura da Bíblia em seus próprios idiomas e de alguns ensinos dos reformadores magisteriais — assinalavam que a Reforma havia ficado na metade do caminho e que se ne-

1 A Igreja da Inglaterra — Anglicana — também se abriu à influência da Reforma Protestante. Mais tarde, na Escócia, nascia a Igreja Presbiteriana, fruto também da Reforma.

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9Apresentação à edição argentina

cessitava uma reforma mais “radical”, que chegasse até à raiz não só da teologia — a teoria — mas também da espiritualidade — a prática — e, sobretudo, da forma como se concebia a igreja.

Movido por esse espírito, nasceu em 21 de janeiro de 1525 o movimento anabatista — apelido pejorativo dado pelos seus opositores porque o traço visível mais destacado do movimento era que seus integrantes se batizavam como gesto de invalidação do batismo infantil. Com os anabatistas começou a Reforma Ra-dical: uma força popular de vanguarda, composta principalmen-te por camponeses, artesãos e mulheres, decidida a encarnar um estilo de vida comunitário que se assemelhava ao modelo da igreja do primeiro século.

Para os anabatistas, a última palavra não era a do Papa, nem a do teólogo, nem a do pastor, mas a do evangelho de Jesus conti-do na Bíblia, lida e interpretada na e pela comunidade de fé. Eles vivenciavam e entendiam a igreja não como uma instituição mas como uma congregação horizontal de irmãos e irmãs em Cristo, sem hierarquias e separada do estado. Concebiam-na como uma comunidade integrada voluntariamente por cristãos comprome-tidos através do batismo de crentes, e acompanhada por pastores que não eram a autoridade nem os iluminados mas os servidores que facilitavam uma pastoral mútua — de “uns aos outros” — na qual o sacerdócio, o laicato e o ministério de todos os crentes fosse uma realidade visível. Esta eclesiologia era tão nova e tinha implicações políticas tão radicais nesse contexto social e cultural que alguns historiadores caracterizaram os anabatistas como os revolucionários do século dezesseis, os bolcheviques do século dezesseis ou a ala esquerda da Reforma.

Um dos integrantes do movimento anabatista foi Menno Si-mons (1496-1561), ex-sacerdote católico holandês que, a partir de 30 de janeiro de 1536, converteu-se em um dos reformadores radicais mais destacados e influentes dos Países Baixos. Diferen-

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temente dos reformadores magisteriais, Menno Simons não se destacou por ser um grande teólogo. Sua contribuição mais sig-nificativa foi a de ser um grande pastor — acompanhante pasto-ral de vanguarda — que promoveu o nascimento e o desenvolvi-mento de verdadeiras comunidades eclesiais de base na Europa da Baixa Idade Média: comunidades “menonitas” que encarnavam uma espiritualidade alternativa e comprometida, cujos valores e práticas deixam-se ver nestas suas memoráveis palavras:

A verdadeira fé evangélica não pode permanecer adormecida, mas se manifesta em toda Justiça e nas obras de Amor (...) Veste os nus, dá de comer aos famintos, consola os tristes, dá abrigo aos destituídos, ajuda e consola os aflitos, busca os per-didos, socorre os feridos, cura os enfermos (...) torna-se tudo para todos2 (tradução nossa).

Os anabatistas-menonitas foram brutalmente perseguidos, desterrados, torturados e assassinados igualmente por católicos e protestantes magisteriais. A prática do amor que Jesus propôs a seus seguidores continuava sendo ignorada como pauta moral para reger a convivência intereclesial. A rigidez, a intolerância, o preconceito e o abuso espiritual, psicológico, corporal, familiar, social e ecológico foram a origem daquele grito corajoso de liberta-ção. Durante os primeiros 25 anos do movimento, mais de 2500 anabatistas experimentaram o martírio: a metade de um total de 5000 mártires que a perseguição religiosa produziu durante o século dezesseis na Europa.

Ter padecido o desamor e a violência em grande escala foi uma das causas pelas quais muitas comunidades anabatistas--menonitas foram ensimesmando-se e, com o passar do tempo, adquirindo alguns comportamentos sectários. Ao mesmo tempo, entretanto, também foi um dos fatores que levou muitas outras

2 Menno Simons, citado em Driver, 1997.

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comunidades de fé a transformarem o fruto de seus sofrimen-tos em um dos principais carismas pelos quais se reconhece os anabatistas-menonitas em seus quase cinco séculos de história: ser cristãos pacificadores, comprometidos com todo tipo de ações não-violentas em favor de uma convivência radical no amor au-têntico de Cristo, que sempre promove o Bem, a Liberdade, a Verdade, a Justiça e a Paz nas relações intra e interpessoais, intra e intereclesiais e internacionais. Tudo isto, em fidelidade aos ensi-nos de Jesus nas Bem-aventuranças do Sermão do Monte: “Bem--aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5.9).

Atualmente, os cristãos de tradição anabatista-menonita são mais de 1,3 milhão em 66 nações dos cinco continentes. É la-mentável que para muitos — talvez para a maioria — ser cristão pacificador converteu-se em uma declaração sacralizada na teoria, mas quase ausente na prática. Diante da urgente necessidade de contribuir para a construçao de uma cultura de paz no mundo, muitas igrejas anabatistas-menonitas perderam sua identidade fundacional e não são nem pacifistas nem pacificadoras: seguem ensimesmadas, presas a preconceitos interconfessionais e em con-flitos interpessoais que perduram sem solução por décadas, e im-potentes para dar uma contribuição humanizadora que ajude na prevenção e na resolução pacífica de conflitos na convivência das famílias, igrejas e sociedade.

Apesar disso, há uma minoria crescente em todo o mundo de anabatistas-menonitas com abertura ecumênica, que estão traba-lhando pela atualização do espírito anabatista-menonita original. Estas irmãs e irmãos em Cristo creem que os vínculos interecle-siais, interdenominacionais, interconfessionais — e mesmo in-ter-religiosos — estão evoluindo e constituem o campo indicado por Deus para a convivência radical da espiritualidade cristã e anabatista.

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Atualmente a relação dos anabatistas-menonitas “ecumêni-cos” com outros protestantes e católicos é de unidade na diver-sidade, e de respeito, cooperação e enriquecimento mútuos; e a pacificação das relações humanas é priorizada na pastoral e na missão de suas comunidades de fé. Assim o demonstra o traba-lho que desenvolvem o Congresso Mundial Menonita (CMM) e o Comitê Central Menonita (CCM). Assim o demonstram as igrejas menonitas da Holanda, do norte da Alemanha e do Congo, que são membros plenos do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), e algumas igrejas e instituições menonitas do Canadá e Estados Unidos. Assim o demonstra o Centro Cris-tão Justapaz e seu trabalho pela justiça, a paz e a ação não-vio-lenta na Colômbia. Assim o demonstra a contundente adesão do CMI à proposta de Fernando Enns, da Associação das Igre-jas Menonitas da Alemanha, para que os anos de 2001-2010 fossem a Década para a Superação da Violência na agenda do trabalho ecumênico em todo o mundo. Assim o demonstra a qualidade dos vínculos interpessoais de todas aquelas comunida-des anabatistas-menonitas cuja razão de ser — traduzida em seu agir cotidiano — não consiste em programas e pressupos-tos institucionais, mas simplesmente em “viver cultivando uma relação de Amor: com Deus, consigo mesmo, com o próximo e com o meio ambiente”3.

Assim o demonstra, finalmente, o conteúdo de Convivência Radical, este novo livro de John Driver, nosso querido irmão mais velho e mestre, que nos convida a encarnar uma espirituali-dade para o século vinte e um, redescobrindo a herança humaniza-

3 Declaração-lema que faz cinco anos expressa o compromisso espiritual e a vocação para a paz da Igreja Evangélica Menonita de Trenque Lauquen, a segunda igreja menonita de fala hispana mais antiga do mundo (fundada em 1920). Foi num retiro espiritual dessa comunidade de fé em novembro de 2003 — junto a irmãos e irmãs de outras igrejas — que John Driver compar-tilhou as reflexões que deram forma a este livro.

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13Apresentação à edição argentina

dora da espiritualidade cristã do primeiro século e da espiritualida-de anabatista da Reforma Radical do século dezesseis.

Guillermo C. FontIgreja Evangélica Menonita de Trenque Lauquen

Buenos Aires, Argentina, janeiro de 2007

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APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA

No “Caminho” da espiritualidade, com os irma~os radicais do se culo dezesseis e do nosso se culo.

espiritualiDaDe é palavra que retorna fortemente nos nossos tempos em que as crises do planeta tornam a nossa exis-tência literalmente irrespirável. A palavra “espírito” nos remete à respiração, ao movimento do ar que anima a vida e que tem ori-gem, segundo muitas tradições religiosas, na própria respiração divina. Portanto, espiritualidade é o nosso jeito próprio de res-pirar o ar da existência que inclui o corpo, mas que o ultrapassa, enquanto transcendência própria do ser humano. Modo de se incluir, respirando, na respiração de Deus.

A espiritualidade cristã carrega um jeito de ser que remon-ta à figura histórica de Jesus de Nazaré e às comunidades que se reúnem ao redor de sua memória e de sua presença mística, valor simbólico que cria marcas profundas em seus seguidores.

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Essas comunidades são diversas e passam por transformações his-tóricas, regidas por circunstâncias de valor teológico, mas cujos referenciais sócio-políticos vão determinar um grande e comple-xo número de relações. Grandes estruturas vão sendo gradativa-mente organizadas, como abrigos de pequenas comunidades e repetidos movimentos, o que garante continuidade e novidade a todo esse trajeto.

Nesse âmbito, o século dezesseis ocupa um lugar singular. Lembrado através da chamada “Reforma”, rompimento institu-cional provocado pelas famosas noventa e cinco teses do monge agostiniano Martinho Lutero, pode ser considerado século berço de nossa mais recente história cristã, matriz de nosso cristianismo atual. Entretanto, é bom lembrar que esse século se constitui em uma multiplicidade de movimentos, confluentes e divergentes, controversos e complexos, que a palavra “Reforma”, enquanto discurso e imagem, não consegue exaurir.

Um movimento “católico” e um movimento “protestante”, polarização absoluta dentro da experiência cristã, não é tão polar; e muito menos absoluto. De certo modo, todas as configura-ções consideradas cristãs que se expressam nessa época decisiva encontram ressonância, ou teológica, ou litúrgica ou organiza-cional, nas diversas experiências de comunidades cristãs atuais, oficializadas ou independentes.

Dentro desse patrimônio simbólico, os movimentos chama-dos de Reforma Radical constituem talvez a contribuição mais efetiva. Movimentos esquecidos pela história oficial, engolidos talvez pela dicotomia hegemônica “protestantes-católicos”, cris-talizada muito mais por fatores políticos ou sociológicos, do que pelas questões teológicas aduzidas no tempo e ao longo do tempo. Na nossa ambivalência cristã, protestantes e católicos in-corporaram paradoxalmente fatores e tendências presentes nos movimentos radicais, os quais criticaram e aos quais se opuseram

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17Apresentação à edição brasileira

com uma veemência onde a violência esteve presente de modo a nos deixar perplexos.

Muitos nem sequer sabemos que houve reformas ao lado da “Reforma”. Grupos atuais como os menonitas são herdeiros di-retos desses tempos. No momento atual, em que a crise planetá-ria atinge todos os setores da vida, estes grupos têm o dever e a responsabilidade de avivar a nossa memória e nos informar sobre esses movimentos. As reformas radicais são as mais esquecidas pela história oficial. Olhadas com suspeita por reformados e não reformados, constantemente perseguidas por ambos, tendo os seus principais líderes torturados e martirizados, não se conten-tavam em atingir uma certa distinção do cristianismo católico romano vigente, mas pretendiam seguir até as raízes teológicas e organizacionais, mexendo profundamente nas reservas simbóli-cas e vivenciais do aparato cristão.

Este livro, apresentado ao público pela editora Novos Diálo-gos, traz com simplicidade os ecos de um momento da história que ainda hoje tem consequências. Nomes pouco lembrados e datas não comemoradas atravessaram tempos e atingiram cír-culos inusitados, produzindo uma forte influência nas igrejas de todos os tempos e lugares; influência nem sempre notada e muito pouco medida porque teólogos, pensadores e pesqui-sadores têm a tendência de se ocupar especialmente com a história hegemônica, às vezes reforçando inadvertidamente as versões oficiais.

O título, Comunidades radicais: espiritualidade de ontem para hoje, apóia-se em algumas das principais ênfases desses grupos. Buscar a raiz do cristianismo para revitalizar a árvore da história seria o sentido do ser radical. Nas raízes, o movimento de comu-nidades autônomas, mas articuladas, experimentando uma con-vivência que abolia diferenças econômicas, sociais e genéricas, não somente no discurso teológico, mas especialmente na ten-

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tativa prática, guiados pelos textos do evangelho e pela presença ativa de Jesus, através de seu Espírito.

Radicais também nas relações com o estado, vivendo pacifi-camente, mas mais do que isso, não aceitando participar da vio-lência da guerra e recusando pagar impostos que contribuíssem para a guerra ou para a injustiça. Sua espiritualidade radical, por-tanto, se atualizava em uma militância pacifista, contra qualquer tipo de violência, mesmo que fosse exercida como “guerra justa” ou como violência em “defesa da fé” ou dos fiéis.

Nesses termos, fica claro que a proposta de analisar a espiri-tualidade anabatista do século dezesseis é urgente para o nosso século atual. A religião, nos dias de hoje, tem provocado into-lerância, conflitos e guerras, ou tem autorizado e justificado a violência em diversas instâncias. Em nome de Deus, pessoas têm sido exploradas, discriminadas e até assassinadas. Parte signifi-cativa do cristianismo atual não leva “evangelho”, boas notícias, mas “disangelho”, péssimas notícias. A desigualdade, a intolerân-cia, o autoritarismo, o sectarismo tornaram-se sistêmicos, parte integrante de estruturas cristãs monumentais.

Esta reflexão do teólogo menonita John Driver nos dá a opor-tunidade de rever nossa própria espiritualidade. Não penso nisso como o encontro da resposta à nossa procura interior e comu-nitária, mas como um gracioso momento de examinar nossas perguntas. Talvez precisemos de novas questões e elas estejam ao nosso redor, na agenda do século, como se apresenta hoje, e na nossa história, enquanto vibração provocada pelas questões levantadas por antigos cristãos. Tão antigos quanto os anaba-tistas do século dezesseis ou como as primeiras comunidades de seguidores de Jesus de Nazaré.

Se espiritualidade significa respirar o hálito de Deus, po-demos encontrar na respiração de antigos irmãos, o ritmo e a profundidade para medir a nossa própria respiração. Aprender

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19Apresentação à edição brasileira

a respirar é necessidade de caminhante e, se todos pertencemos ao “Caminho”, devemos estar atentos aos companheiros de ca-minhadas passadas e presentes. Os irmãos anabatistas respiravam a “brisa de Deus”, o Espírito, nas pegadas de Jesus, no desejo de sempre melhor caminhar. Os caminhos de hoje não são os mesmos de ontem e o ar que inspiramos está literal e simbolica-mente poluído. Isso pode significar novas perguntas, mas talvez aprendamos melhor a formulá-las se examinarmos as perguntas que as comunidades anabatistas do século dezesseis tiveram a coragem de fazer.

Marcos MonteiroFilósofo, teólogo e pastor da Comunidade

de Jesus em Feira de Santana

Feira de Santana, 07 de dezembro de 2011.

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INTRODUÇÃO

a partir Das últimas décadas do século vinte, e no que já percorremos do século vinte e um, o tema da espiritualidade cristã voltou a ocupar um lugar mais destacado no pensamento protestante. Mas não foi sempre assim.

Nós evangélicos tínhamos ouvido apenas sobre aquela espiri-tualidade católica cujos melhores representantes eram os monges trapistas ou as monjas do claustro, ou outras das muitas ordens religiosas da Igreja Católica. Com a rejeição protestante às or-dens católicas na Reforma do século dezesseis, temos a tendência de menosprezar — ou recusar por completo — estas e outras expressões similares de espiritualidade.

Em contrapartida, falávamos em termos de “vida devocional” para nos referirmos às atividades destinadas a cultivar em “nossa alma” as dimensões interiores e invisíveis de nossa fé. Percebía-mos a espiritualidade como uma espécie de energia potente, mas invisível, que servia de apoio e de ânimo para nossa vida cristã no mundo.

No entanto, não apenas este conceito interior e espiritualizan-te da espiritualidade predominou. Nos últimos séculos, a espiri-tualidade protestante tendeu a ser também fundamentalmente

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individualista e privatizante. Mesmo a espiritualidade congrega-cional — expressa na oração em comunidade, no estudo bíblico e no culto — tendeu a orientar-se para a edificação dos membros individualmente em vez de integrá-los à convivência e missão comunitárias de uma autêntica comunidade de fé.

Entretanto, a espiritualidade dos primeiros discípulos de Je-sus envolvia todos os aspectos da vida. Para compreender a es-piritualidade à luz da Bíblia será necessário superar essas falsas dicotomias que nos dividem em duas partes: a espiritual, interior e ultramundana; e a material, exterior e mundana. A espirituali-dade cristã não consiste em uma vida de contemplação em vez de ação, nem de recolhimento em contraste com uma plena parti-cipação na sociedade. Trata-se, antes, de que todas as dimensões da vida estejam orientadas e animadas pelo próprio Espírito de Jesus.

Por isso dedicamos os dois primeiros capítulos deste livro a uma revisão da espiritualidade cristã do primeiro século. Ali en-contramos uma espiritualidade holística de seguimento de Je-sus, sob o impulso de seu Espírito e no contexto da convivência radical da fé na comunidade messiânica. É uma espiritualidade profundamente enraizada na graça de Deus, nutrida e comparti-lhada na convivência da comunidade de fé e encarnada na mis-são de Deus no mundo.

Nos dois capítulos seguintes descrevemos os traços que ca-racterizavam a espiritualidade anabatista do século dezesseis. O movimento anabatista é apenas um entre os muitos movimentos de reforma radical que foram surgindo ao longo da história cris-tã. Sendo suas raízes orientadas para Jesus e para a comunidade cristã primitiva do primeiro século, estes movimentos recupera-ram de forma notável — em suas próprias vivências e em seus próprios contextos históricos — espiritualidades notadamente similares às que caracterizavam as comunidades cristãs do pri-

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23Introdução

meiro século. Uma lista destes movimentos incluiria grupos tão diversos como os valdenses e os franciscanos dos séculos doze e treze, os quakers do século dezessete, os pentecostais clássicos do início do século vinte, as comunidades eclesiais de base, e muito outros.

Finalmente concluímos nosso breve estudo com um capítulo destinado a refletir sobre as possibilidades de diálogo ecumênico entre distintas espiritualidades do século vinte e um — com di-versas visões, vivências e convicções —, especialmente entre a es-piritualidade anabatista e outras espiritualidades cristãs. Temos a obrigação de praticar constantemente o diálogo fraterno ecumê-nico com cristãos de outras tradições. Rechaçamos a falsa ideia de que a apostasia ou a heresia são permanentes ou hereditárias: do mesmo modo que a fé autêntica não se herda, tampouco se her-da automaticamente a heresia. Portanto, devemos dialogar com cristãos que viveram outra história e que têm outras maneiras de pensar e agir, mesmo que seus antepassados, em outros lugares e épocas, possam ter perseguido nossos antepassados espirituais.