Comunitarismo e Liberalismo na Filosofia do Direito de...

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Faculdade Mineira de Direito Adail Ribeiro Motta Comunitarismo e Liberalismo na Filosofia do Direito de Hegel: Um estudo sobre o lugar da filosofia política hegeliana frente aos pressupostos comunitaristas e liberais Belo Horizonte 2006 Adail Ribeiro Motta

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Faculdade Mineira de Direito

Adail Ribeiro Motta

Comunitarismo e Liberalismo na Filosofia do Direito de Hegel: Um estudo sobre o lugar da filosofia política hegeliana

frente aos pressupostos comunitaristas e liberais

Belo Horizonte 2006

Adail Ribeiro Motta

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Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Faculdade Mineira de Direito

Comunitarismo e Liberalismo na Filosofia do Direito de Hegel: Um estudo sobre o lugar da filosofia política hegeliana

frente aos pressupostos comunitaristas e liberais

Dissertação de conclusão de curso apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito junto ao Curso de Pós-graduação em Direito da PUC Minas. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo

Belo Horizonte 2006

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FICHA CATALOGRÁFICA

Motta, Adail Ribeiro M921f Comunitarismo e liberalismo na filosofia política de Hegel: um estudo sobre o lugar da filosofia política hegeliana frente aos pressupostos comunitaristas e liberais / Adail Ribeiro Motta. Belo Horizonte, 2006. 200f. Orientador: Marcelo Campos Galuppo Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Bibliografia

1. Direito (Filosofia). 2. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, $d 1770-1831. Princípios da Filosofia Política. 3. Liberalismo. 4. Comunidade. I. Galuppo, Marcelo Campos. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. IV. Título.

CDU: 340.12

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Dissertação de Mestrado para obtenção do título de Mestre em Direito apresentada à Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, por Adail Ribeiro Motta, intitulada Comunitarismo e Liberalismo na Filosofia do Direito de Hegel: Um estudo sobre o lugar da filosofia política hegeliana frente aos pressupostos comunitaristas e liberais, e ___________________________________ em __________________________, perante banca composta pelos professores Prof. Dr. Marcelo Campos Galuppo (orientador) Prof. Dr. Lucas Alvarenga Gontijo (PUC Minas) Prof. Dr. Célio Paduani (Fundação Universidade de Itaúna)

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Dedico este estudo à minha mãe que sempre me incentivou, sendo, sempre, a

pessoa que me impulsionou em direção aos estudos. Este trabalho é efeito de sua dedicação ao filho.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Marcelo C. Galuppo, pela orientação e paciência, mais ainda, pelo modelo acadêmico a ser seguido.

Meus agradecimentos a Adriana, namorada, amiga e companheira, meu modelo de caráter, a quem dedico, além deste trabalho, todo meu amor.

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“‘Ao redor de dois pontos candentes, gira toda a vida do gênero humano: o indivíduo e a coletividade. Compreender a relação entre ambos, unir harmoniosamente essas duas grandes potências que determinam o curso da história, pertence aos maiores e mais árduos problemas com que a ciência e a vida se defrontam. Na ação, como no pensamento, prepondera ora um, ora outro dentre esses fatores.’”

Georg Jellinek

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RESUMO

Nosso objetivo na presente trabalho é realizar um estudo do que podemos chamar das duas grandes matrizes teóricas do pensamento político: o comunitarismo e o liberalismo, através da leitura de Aristóteles, Santo Tomás de Aquino, Alasdair MacIntyre e Michael Walzer, entre os comunitaristas e, Locke, Kant, John Rawls e Robert Nozick entre os liberais, e cotejar os pressupostos de ambas com a filosofia política de Hegel. O trabalho propõe o estudo dos conceitos políticos hegelianos (principalmente na obra Princípios da Filosofia do Direito), procurando apreender o lugar que conceitos como sociedade civil, família e Estado ocupam na filosofia jurídica e política de Hegel, em contraposição aos pressupostos comunitaristas e liberais. Estudar como se processa a dialética hegeliana, significa, tentar compreender a própria relação entre o indivíduo e o Estado, relação esta que sempre esteve em pauta nas questões filosóficas acerca do Estado moderno. Em nossa atualidade caracterizada pela política da globalização, o estudo dessa relação é ainda mais premente. A filosofia jurídica de Hegel é uma “ferramenta” poderosa a ser utilizada para enfrentar essa questão.

A relação entre o Estado e a sociedade é um tema fundamental em toda a sociologia e filosofia política, tal fato fica claro se tivermos em mente as obras de Hobbes, Locke e Rousseau. Enquanto predominavam formas pré-capitalistas de produção, nas quais o mercado não era ainda a fonte institucional básica que orientava o campo econômico e de apropriação do excedente, a esfera pública não se distinguia da esfera privada, e o problema da afirmação do aparelho estatal frente à realidade social, ou a dialética inversa, não existia. Quando a separação das esferas pública e privada apresentam-se distendidas, surge a questão teórica e prática da construção do Estado, de sua idéia e fonte filosófica, frente a uma sociedade fragmentada. Daí o estudo dos pressupostos comunitaristas e liberais. A obra filosófica de Hegel oferece, de maneira original e profunda, um quadro coeso acerca da dinâmica estatal, pois no pensamento de Hegel, através de sua dialética, podemos encontrar a caracterização original dos conceitos de Estado, sociedade civil e família. O presente trabalho, portanto, busca apreender o lugar desta filosofia na dicotomia existente entre as matrizes comunitarista e liberal.

1- Direito (filosofia) 2- Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 3- Liberalismo 4- Comunitarismo

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ABSTRACT

Our objective in the present research is to study what we consider to be two of the great theories of political thought: Communitarism and Liberalism. We will study them through the works of Aristotle, St. Tomás de Aquino, Alasdair MacIntyre and Michael Walzer representing the Communitarism and through Locke, Kant, John Rawls and Robert Nozick representing the Liberalism. We will then compare both theories with Hegel’s Philosophy of Politics. The present work will study, then, the political concepts in Hegel (specially those found in Elements of the Philosophy of Right), trying to place the concepts of Civil Society, family and State in Hegel’s political and juridical philosophy, compared to the ideas in both Communitarism and Liberalism. To study Hegel’s dialectic is to try to understand the relationship between the individual and the State, as this relationship is always a very important subject in philosophical questions about modern State. Nowadays, with the phenomena of globalization, this study is even more important. Hegel’s philosophy of law is a powerful “tool” to be used in the present research.

If we keep in mind the works of Hobbes, Locke and Russeau, it’s clear that the relationship between the individual and the State is a fundamental subject in both sociology and philosophy of politics.While in the pre-capitalist ways of production, in which the State wasn’t the basic institutional source that oriented the economic field of seizure of surplus, there wasn’t a clear distinction between the public and private spheres, and the problem of the State’s apparatus in the context of social reality didn’t exist at all. With the individualization of the public and private spheres, arises the subject of both theoretical and practical questions about the State’s construction, of its philosophical source in a fragmented society, hence the study of communitarism and liberalism. Hegel’s philosophical work offers, in an original way, a solid idea on State’s dynamics. In his thinking, through his dialectic, we can find the original characterization of the concepts of State, civil society and family. The present research will try to apprehend the place of such philosophy in the dichotomy found when comparing communitarism and liberalism.

1- Right (philosophy) 2- Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 3- Liberalism 4- Communitarism

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LISTA DE ABREVIATURAS Ex.- Exemplo Ed.- Editor Org. - Organizador S.l - Sine loco

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................12 1- As matrizes e Hegel..................................................................................................12 CAPÍTULO I A MATRIZ COMUNITARISTA.............................................................................. 15 1- ARISTÓTELES..................................................................................................... 15 1.1 Linhas gerais......................................................................................................... 15 1.2 Ética e política...................................................................................................... 15 1.3 A amizade.............................................................................................................. 25 1.4 Teoria social.......................................................................................................... 28 2- SANTO TOMÁS DE AQUINO............................................................................ 31 2.1 Teoria do conhecimento....................................................................................... 31 2.2 Justiça.................................................................................................................... 39 2.3 Teoria social.......................................................................................................... 43 3- MICHAEL WALZER............................................................................................ 45 3.1 Linhas gerais......................................................................................................... 45 3.2 Justiça distributiva............................................................................................... 46 3.3 As esferas da justiça............................................................................................. 50 4- ALASDAIR MACINTYRE................................................................................... 53 4.1 Virtude................................................................................................................... 53 4.2 Narrativa e tradição............................................................................................. 55 CAPÍTULO II A MATRIZ LIBERAL............................................................................................... 58 1- LINHAS GERAIS.................................................................................................. 58 2- JOHN LOCKE....................................................................................................... 60 2.1 Base filosófica........................................................................................................ 60 2.2 Contraponto político............................................................................................ 63 2.3 Primeiro tratado................................................................................................... 66 2.4 Segundo tratado.................................................................................................... 67 3- IMMANUEL KANT.............................................................................................. 70 3.1 Liberdade.............................................................................................................. 70 3.2 Contrato social...................................................................................................... 79 3.3 Estado.................................................................................................................... 81 4- JOHN RAWLS....................................................................................................... 83 4.1 Linhas gerais......................................................................................................... 83 4.2 O contrato e Kant................................................................................................. 84 4.3 O justo e o bem..................................................................................................... 95 5- ROBERT NOZICK............................................................................................... 98 5.1 Linhas gerais......................................................................................................... 98 5.2 Estado mínimo...................................................................................................... 100 CAPÍTULO III A OPOSIÇÃO ENTRE COMUNITARISTAS E LIBERAIS................................ 109

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1- AS MATRIZES...................................................................................................... 109 2- A OPOSIÇÃO ENTRE O JUSTO E O BEM...................................................... 111 3- AS CRÍTICAS COMUNITARISTAS.................................................................. 116 3.1 Crítica antropológica............................................................................................ 116 3.2 Crítica sociológica................................................................................................. 121 4- VISÕES ANTAGÔNICAS DE ESTADO............................................................ 124 4.1 O Estado no liberalismo....................................................................................... 124 4.2 A crítica comunitarista......................................................................................... 126 4.3 A contrapartida liberal........................................................................................ 129 4.4 A questão da liberdade......................................................................................... 131 CAPÍTULO IV A FILOSOFIA POLÍTICA DE HEGEL................................................................... 134 1- APRESENTAÇÃO.................................................................................................. 134 2- A DIALÉTICA HEGELIANA............................................................................... 137 3- PRIMEIROS PASSOS............................................................................................ 141 4- A IDÉIA DA MORALIDADE OBJETIVA.......................................................... 143 5- A FAMÍLIA............................................................................................................. 146 5.1 O casamento........................................................................................................... 147 5.2 Educação dos filhos............................................................................................... 150 5.3 Dissolução da família............................................................................................. 151 6- A SOCIEDADE CIVIL........................................................................................... 153 6.1 O sistema das carências (necessidades) .............................................................. 154 6.2 Jurisdição............................................................................................................... 158 6.3 Administração e corporação................................................................................. 161 6.4 Passagem para o Estado........................................................................................ 162 7- O ESTADO.............................................................................................................. 164 7.1 Linhas gerais..... .................................................................................................... 164 7.2 A liberdade............................................................................................................. 166 7.3 A constituição......................................................................................................... 171 8- Retrabalhando Hegel............................................................................................... 175 8.1 Linhas gerais.......................................................................................................... 175 8.2 No caminho aristotélico......................................................................................... 177 8.3 Retrabalhando o Estado........................................................................................ 180 CONCLUSÃO............................................................................................................. 183 1- HEGEL E O LIBERALISMO............................................................................... 183 2- HEGEL E O COMUNITARISMO....................................................................... 186 3- O LUGAR DA FILOSOFIA POLÍTICA HEGELIANA.................................... 187 REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 191

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APRESENTAÇÃO

1- As matrizes e Hegel:

Desde o momento histórico em que surge o Estado moderno, o problema da relação entre

o aparelho estatal e a liberdade torna-se central para a sociologia e a filosofia política, o problema

da relação do indivíduo com o a sociedade, das partes com o todo se configura como um dos

temas mais importantes do pensamento político e filosófico. Acreditamos que a problematização

deste tema no pensamento hegeliano, pode ser estudado como uma contribuição para a reflexão

acerca da relação entre Estado e liberdade.

O presente trabalho tem como tema a questão da polaridade entre comunitarismo e

liberalismo e, conseqüentemente, o estudo sobre o lugar que a Filosofia do Direito de Hegel

ocupa frente a essa dicotomia.

A relação problemática que existe entre o comunitarismo e liberalismo na fundamentação

do Estado de Direito nos oferece formas diversas de ver e compreender o lugar do indivíduo na

sociedade. A idéia básica do comunitarismo é a tese da prioridade do bem sobre o justo e a

tentativa de identificar o bem com o próprio padrão da vida comunitária. Ao contrário do

comunitarismo, o liberalismo busca estabelecer uma prioridade da liberdade sobre a igualdade e

do justo sobre o bem.

O problema do presente estudo se apresenta inserido na problematização entre liberalismo

e comunitarismo. De que forma o pensamento hegeliano oferece uma forma original de

compreender a tensão entre os dois paradigmas e, desta forma, entre individualismo e

organicismo?

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O pensamento hegeliano pode ser visto como um pensamento original para o intento de compreender a tensão existente entre comunitarismo e liberalismo através do advento do Estado de Direito. A fim de buscar o fundamento para essa idéia, o presente estudo apresenta um panorama do que se convencionou chamar de comunitarismo, através do pensamento de dois autores clássicos, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e, dois autores modernos, Michael Walzer e Alasdair MacIntyre. Metodologicamente procedemos da mesma forma no estudo da matriz liberal, através do estudo de Locke, Kant, John Rawls e Robert Nozick. No terceiro capítulo deste trabalho buscamos compreender mais detalhadamente a tensão existente entre comunitarismo e liberalismo e, nos capítulos finais, apresentamos a filosofia de Hegel e buscamos comprender o local em que esta se insere na dicotomia apresnetada.

O Estado em Hegel pode ser visto como um instrumento que, dialeticamente, pode estar entre o conflito desses dois paradigmas e, conseqüentemente, entre individualismo e organicismo, ao enxergar que ele, Estado, não é primordialmente um dispositivo para satisfazer as nossas necessidades ou desejos, ele nos tornaria seres humanos plenos, “o fim racional do homem é a vida no Estado” (§75, Princípios da Filosofia do Direito). Hegel rejeita o contraste radical entre o Estado e o indivíduo, a relação entre eles será mediada por várias instituições, como a família e a sociedade civil. O Estado faz do indivíduo um cidadão, dialeticamente ele devolve os indivíduos à unidade, retirando-os da dispersão nos interesses privados promovidos pela sociedade civil, superando, desta forma, o liberalismo e o individualismo, estando além deles.

Ao mesmo tempo, de forma dialética, o Estado em Hegel garante a liberdade do indivíduo

e sua singularidade, garantindo, através da lei, a realização de cada indivíduo. O Estado é um

campo que possui uma unidade comparável à da família, mas não se baseia, como a família, em

amor e sentimento, no Estado o sentimento desaparece, nele estamos conscientes da unidade

como lei, em contraste com a família e a sociedade civil, o Estado está associado à

autoconsciência, e só em um ambiente assim a particularidade de cada indivíduo pode ser

dialeticamente garantida. Nas palavras de Hegel: “O Estado como realidade em ato da vontade

substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o

racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a

liberdade obtém o seu valor supremo.” (§258, Princípios da Filosofia do Direito).

O presente estudo busca compreender, portanto, o local em que o conceito de Estado e as demais idéias hegelianas se inserem frente à dicotomia comunitarista e

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liberal. Comunitarismo e liberalismo são formas de pensar e estruturar a relação entre o indivíduo e a sociedade, o estudo busca compreender quais são as características que identificam essas formas de pensar o campo político, buscando apresentar a visão dos autores que mais influenciaram as duas matrizes teóricas, para, desta forma, compreender o lugar da filosofia política hegeliana.

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prática, ou seja, o seu “bem”. Já este (o bem), como em Aristóteles, é visto como aquilo que agrada a comunidade geral, idéia matriz do comunitarismo. A MATRIZ COMUNITARISTA

1- ARISTÓTELES

1.1) Linhas gerais:

O comunitarismo é o conjunto de idéias, uma matriz de reflexão e de ação, a primeira

matriz que procura fundamentar o que seja o Direito e o Estado. A matriz comunitarista é muito

ampla e rica em contribuições e idéias de vários autores, mas podemos traçar uma linha teórica

sustentável desta matriz com base nos pensamentos de Aristóteles, São Tomás de Aquino e, na

contemporaneidade, Michael Walzer e Alasdair MacIntyre, a seleção destes quatros autores é

feita não só pela importância e influência que o pensamento dos mesmos exerce, mas, também,

pelo próprio conteúdo de seus questionamentos que perpassa de maneira profunda o tema que

escolhemos como fonte deste trabalho, qual seja, a relação entre indivíduo e Estado e o lugar da

filosofia de Hegel entre as matrizes comunitarista e liberal.

O ponto de partida da teorização comunitarista é a idéia de que o todo é superior à parte, a

comunidade possui uma supremacia sobre o indivíduo. Este ponto de partida é o que podemos

ver na obra de Aristóteles ao estudarmos toda a teorização acerca da polis.

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1.2) Ética e política: Aristóteles trabalha com dois conceitos centrais em sua metafísica, as idéias

intuitivas de ato (energheia) e potência (dynamis). O ato é o ser plenamente realizado, já a potência refere-se a possibilidades. A potência é a ausência da forma. Por isso Aristóteles se recusa a definir o que são ato e potência, o ato possui uma prioridade sobre a potência, pois não poderíamos ter contato com a potência em si, teríamos que voltar ao ato do qual é potência para estabelecer tal contato.

Segundo Aristóteles, o bem é aquilo a que cada coisa tende, podemos compreender que o existir em potência tende à existência em ato. O ato é o existir da coisa, mas não da mesma forma como quando dizemos que existe em potência.

Ensina Aristóteles; um ser só realiza a dinâmica da potência para o ato observando um conjunto de condições inserido em um lugar propício. Nas palavras do Prof. Marcelo Campos Galuppo1: “existem lugares naturais propícios à atualização de cada ser” (GALUPPO, 2003). O lugar propício à atualização do homem é a polis: para Aristóteles somente os seres que participam da polis são homens de fato, ou seja é, única e exclusivamente através da atividade política que o homem vai da existência potencial para a existência atual. O cerne da idéia comunitarista se encontra aqui, neste sentido que se diz que o que define o homem é a polis. Nas palavras de Aristóteles:

[...] a cidade faz parte das coisas da natureza,o homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em sociedade, e que aquele que, por instinto , e não porque qualquer circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. Porque ele é ávido de combates, e, como aves de rapina, incapaz de se submeter a qualquer obediência. (ARISTÓTELES, 1997, §9, p.14)

A polis é a comunidade natural, nesta comunidade se consagra o impulso que

direciona os homens uns aos outros, para Aristóteles, o homem não é a única espécie sociável, na História dos Animais2 (1969, 487b-488a) ele separa duas espécies,que seriam as gregárias (agelaia) e as solitárias (monodika), o homem faria parte das duas espécies, pois alguns vivem num convívio sociável e outros se mantêm solitários, dentro destas duas espécies encontrariam-se aquelas que são definidas em uma vida sociável (politika) e outras que viveriam de modo esparso (sporadika); as abelhas, as formigas e os homens se encontrariam no tipo de espécie destinada à vida sociável. O que distinguiria o homem das demais categorias do mundo animal é que somente sua espécie pode atingir a forma mais

1 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.. 2 ARISTÓTELES. Histoire des animaux. 1969.

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perfeita da vida social, a vida política (politikon), distinguindo, assim, a sociabilidade do simples gregarismo. Na Política (1997), Aristóteles diz:

Claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. A natureza, dizemos, nada faz em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concebida aos outros animais. Estes chegam a experimentar sensações de dor e de prazer, e a se fazer compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por fim fazer compreender o que é útil ou prejudicial, e, em conseqüência, o que é justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado. (ARISTÓTELES, 1997, §10, p.14)

A idéia de que a comunidade, o tecido social, a polis, satisfaz o ser humano,

se desenvolve através da primeira comunidade organizada, que é a família. Em sua obra Política (1997), Aristóteles expõe a idéia de que o lar se torna o local da plena realização dos desejos do cotidiano, realizando o bem-estar dos cônjuges, não é uma união baseada apenas em mútua assistência e atração natural existente entre os sexos. Transportando essa idéia, e evoluindo até a polis, vemos que esta se forma para permitir que o indivíduo viva e exista, permitindo o bem viver, que se configura como a finalidade de qualquer associação humana, a casa, a fratria, a comunidade e a polis, nas palavras de Aristóteles:

A sociedade constituída por diversos pequenos burgos forma uma cidade completa, com todos os meios de se abastecer por si, e tendo atingido, por assim dizer, o fim que se propôs. Nascida principalmente da necessidade de viver, ela subsiste para uma vida feliz. Eis por que toda cidade se integra na natureza, pois foi a própria natureza que formou as primeiras sociedades: ora, a natureza era o fim dessas sociedades; e a natureza é o verdadeiro fim de todas as coisas. Dizemos pois dos diferentes seres, que eles se acham integrados na natureza quando tenham atingido todo o desenvolvimento que lhes é peculiar. Além disso, o fim para o qual cada ser foi criado, é de cada um bastar-se a si mesmo; ora, a condição de se bastar a si próprio é o ideal de todo indivíduo, e o que de melhor pode existir para ele (ARISTÓTELES, 1997, §8, p.14)

É interessante notar que Aristóteles compara muitas vezes a cidade a um

animal, no qual as partes, os indivíduos ou famílias, não podem ser separadas da totalidade, é o que ele deixa claro na Política quando diz:

[...] o Estado está na ordem da natureza e antes do indivíduo; porque, se cada indivíduo isolado não se basta a si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo. Ora, aquele que não pode viver em sociedade, ou que de nada precisa por bastar-se a si próprio, não faz parte do Estado; é um bruto ou um deus. A natureza compele assim todos os homens a se associarem. (ARISTÓTELES, 1997, §11, p.15)

Os seres naturais são definidos por Aristóteles na Física (1999) como “seres

tendo em si mesmos um princípio de movimento e de repouso” (192b), ou tendo um impulso natural em direção à mudança; porém, Aristóteles nunca menciona as cidades quando enumera os seres naturais. O importante é ressaltar que a cidade

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pode ser vista como “natural”, não porque teria as características de um “ser natural”, mas porque é a atualização, feita pelo próprio homem, da sua “natureza” política, ou seja, a realização de sua essência.

No comunitarismo podemos notar a primazia do “bem” sobre o “justo”. Para Aristóteles, o bem é o conceito central da ética,“o bem é aquilo a que cada coisa tende” 3 (ARISTÓTELES, 1992). Nas palavras do Prof. Marcelo Campos Galuppo4:

[...] cada coisa busca realizar, da forma mais plena e natural possível, seu próprio ser, e é nesta tendência que encontramos o bem de algo. O bem tem uma força atrativa que excede os limites da própria ética e domina, de modo finalístico, tudo o que existe. (GALUPPO, 2003)

Cada coisa busca se desenvolver de forma completa enquanto ser e, é nessa dinâmica que podemos apreender a idéia do “bem”, desta forma, em um exemplo aristotélico: a pedra que é lançada para cima tenderia sempre a cair, pois seu local natural é a terra5, já que ela, pedra, é feita principalmente de terra; da mesma forma, o homem tende sempre ao seu bem, que se encontra e se realiza na polis, na comunidade política, e esse bem é a felicidade (eudaimonia) que é, por sua vez, a realização completa e definitiva do ser do homem.

A felicidade é a finalidade da ação humana. Aristóteles discute o que seja a felicidade, diferenciando-a do prazer e da riqueza, vê a primeira como algo menor digno de espíritos vulgares, e vê a segunda como algo inútil que deveria ser compreendida apenas como um meio para se atingir o determinado fim. Nas palavras de Aristóteles na Ética a Nicômaco:

Algumas pessoas, de fato, pensam que a felicidade é excelência, outras que ela é discernimento, outras que é uma espécie de sabedoria; outras que, ainda, pensam que ela é tudo isto, ou uma destas noções em conjunto com o prazer, ou sem que lhe falte o prazer, enquanto outras, finalmente acrescentam a prosperidade exterior. Alguns destes pontos de vista vêm sendo sustentados por muita gente, e há muito tempo, e outros por umas poucas pessoas eminentes, e não é provável que nem aquelas nem estas estejam inteiramente enganadas; é mais plausível que elas estejam certas ao menos quanto a alguns dos pontos, ou até quanto à maioria deles. Nossa definição é condizente com a opinião dos que identificam a felicidade com a excelência ou com alguma forma de excelência, pois a felicidade é a atividade conforme a excelência. (ARISTÓTELES, 1992, 1098b, p.26)

E mais à frente em seu texto, Aristóteles completa a idéia sobre a felicidade:

Mas evidentemente, como já dissemos, a felicidade também requer bens exteriores, pois é impossível, ou na melhor das hipóteses não é fácil, praticar belas ações sem os instrumentos próprios. Em muitas ações usamos amigos e riquezas e poder político como instrumentos, e há certas coisas cuja falta empana a felicidade – boa estirpe, bons

3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1992. 4 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 5 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1992.

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filhos, beleza – pois o homem de má aparência, ou mal nascido, ou só no mundo e sem filhos, tem poucas possibilidades der ser feliz, e tê-las-á ainda menores se seus filhos e amigos forem irremediavelmente maus ou se, tendo tido bons filhos e amigos, estes tiverem morrido. Como dissemos, então, a felicidade parece requerer o complemento desta ventura, e é por isto que algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a identifiquem com a excelência. (ARISTÓTELES, 1992, 1099b, p.27)

O estudo das virtudes (excelências) é um ponto central da filosofia política de Aristóteles,

pois liga o campo político ao campo ético. Segundo Aristóteles, existem dois tipos de virtudes: as

virtudes intelectuais e as morais. Das primeiras, Dianoéticas, porque se ensinam pela instrução,

fazem parte a Sophia (saber) e a Phronesis (sabedoria). Estas virtudes são também conhecidas

como competências intelectuais e incluem o conhecimento científico relevante; aptidões técnicas

e experiências adequadas; a inteligência; a capacidade de discernimento e bom senso prático. Por

outro lado, as virtudes morais são as virtudes éticas ou competências morais, ou seja,

desenvolvem-se através do hábito, da educação e da prática. Entre elas encontram-se a

honestidade, a moderação, a coragem, a justiça, o amor, a fidelidade e o humor. Nas palavras de

Aristóteles, a distinção é assim definida:

A excelência também se diferencia em duas espécies, de acordo com esta subdivisão, pois dizemos que certas formas de excelência são intelectuais e outras são morais (a sabedoria, a inteligência e o discernimento, por exemplo, são formas de excelência intelectual, e a liberalidade e a moderação, por exemplo, são formas de excelência moral). Realmente, falando sobre o caráter de uma pessoa não dizemos que ela é sábia ou inteligente, e sim que ela é jovial, ou amável ou moderada, mas louvamos uma pessoa sábia por sua disposição de espírito, e chamamos de formas de excelência as disposições de espírito louváveis. (ARISTÓTELES, 1992, 1103a, p.33)

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E completando a idéia no Livro II:

[...] há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação, da palavra “hábito”. É evidente, portanto, que nenhuma das várias formas de excelência moral se constitui em nós por natureza, pois nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito (ARISTÓTELES, 1992, 1103b, p.35)

A natureza nos criou como seres capazes de agir de forma virtuosa, mas esta capacidade necessita ser colocada em prática pela ação, o hábito criará em nós as virtudes como disposição, como diz Aristóteles: “nem por natureza, nem contrariamente à natureza a excelência moral é engendrada em nós, mas a natureza nos dá a capacidade de recebê-la, e esta capacidade se aperfeiçoa com o hábito” (ARISTÓTELES, 1992, 1103b, p.35). É através das virtudes que nos tornamos virtuosos, da mesma forma, os homens serão justos não por compreenderem o que é que a justiça, mas por praticarem atos justos, e o local dessa prática é a comunidade política. Quando se adquire uma virtude, age-se de acordo com ela sem esforço e com prazer, porque, segundo Aristóteles, estaríamos agindo de acordo com uma segunda natureza. A virtude pode ser vista como um hábito, que se aperfeiçoa com a prática reiterada por parte do agente.

Um ponto importante no estudo da virtude aristotélica é a questão da Mesótes (meio termo), pois, entre dois pólos opostos e distintos, a virtude se encontra no meio. Nas palavras de Aristóteles:

A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determina). Trata-se de um estado intermediário, porque nas várias formas de deficiência moral há falta ou excesso do que é conveniente tanto nas emoções quanto nas ações, enquanto a excelência moral encontra e prefere o meio termo. Logo, a respeito do que ela é, ou seja, a definição que expressa a sua essência, a excelência moral é um meio termo, mas com referência ao que é melhor e conforme ao bem ela é um extremo (ARISTÓTELES, 1992, 1107a, p.42)

Os exemplos que Aristóteles enumera nos dão uma boa idéia sobre essa

questão: assim, a virtude se encontra no meio entre a covardia e a temeridade, sendo definida pela coragem; no meio entre a prodigalidade e a avareza, sendo,

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virtude, a liberalidade ou generosidade. Por estar no meio, a virtude não deve ser apreendida como mediocridade ou mediania, ela é o centro de excelência.

Em sua obra Ética a Nicômaco, após o estudo das virtudes, Aristóteles busca compreender a questão da justiça. De fato, é uma questão que se insere na compreensão do comunitarismo, pois é um conceito e uma idéia de confluência entre a ética e a política, pois, sendo uma virtude, a justiça deve ser exercitada no plano político. Como vimos na idéia de virtude, a justiça também está no meio, é também uma idéia inserida na questão de meio-termo, enquanto que a injustiça está nos extremos. Diz Aristóteles:

Observamos que, segundo dizem todas as pessoas, a justiça é a disposição da alma graças à qual elas se dispõem a fazer o que é justo, a agir justamente e a desejar o que é justo; de maneira idêntica, diz-se que a injustiça é a disposição da alma graças à qual elas agem injustamente e desejam o que é injusto (ARISTÓTELES, 1992, 1129a, p.91)

E mais adiante, ainda no Livro V, Aristóteles completa a idéia de justiça como proporcionalidade, dizendo que “O justo nesta acepção é, portanto, o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade” (ARISTÓTELES, 1992, 1331b, p.97). A justiça, neste sentido, pode ser vista como uma disposição que habitaria o homem, através do ato contínuo, e o permitiria ter a capacidade de ser um distribuidor correto de ações justas, atribuindo a cada um o que é seu6. Tudo aquilo que é capaz de criar ou resguardar a felicidade da comunidade política é entendido como justo. O justo propicia uma vida conforme as leis e a equidade.

No comunitarismo-aristotélico, os conceitos éticos e políticos encontram-se condicionados entre si, o bem de cada indivíduo se transfigura no bem geral da comunidade política, pois é realizado socialmente, não existe aqui um pacto em que o indivíduo abdica de sua felicidade pessoal para a realização do bem maior, o bem da comunidade; o homem, ao contrário, só se realiza plenamente em sociedade.

Aristóteles quer mostrar que apenas os seres humanos que participam efetivamente dos destinos da comunidade política, podem ser definidos como homens7. É na dinâmica social, no convívio da polis que o homem se desenvolve naturalmente, da potência ao ato, é no caminho social que o homem desenvolve os juízos éticos, através da dinâmica da sociabilidade aparecerá as noções do justo e do injusto e, por fim, a realização da eudaimonia, da felicidade. O ideário comunitarista, observado na filosofia política de Aristóteles, implica, definitivamente, uma primazia do todo sobre a parte, o todo social não é um conjunto formado por partes, pelo simples fato de que, descolado do todo, não existe o homem em si; o ser que se encontra fora da cidade não possui a categoria de “homem”. Na Política (1997), Aristóteles diz: 6 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1992, p.58. 7 Essa assertiva mostra que os escravos, as mulheres e os estrangeiros não podem ser definidos e vistos como homens, pois não participam dos desígnios da polis.

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Na ordem da natureza, o Estado se coloca antes da família e antes de cada indivíduo, pois que o todo deve forçosamente, ser colocado antes da parte. Erguei o todo; dele não ficará mais nem pé nem mão, a não ser no nome, como se poderá dizer, por exemplo, uma mão separada do corpo não mais será mão além do nome. Todas as coisas se definem pelas suas funções; e desde o momento em que elas percam os seus característicos, já não se poderá dizer que sejam as mesmas; apenas ficam compreendidas sob a mesma denominação. [...] porque se o homem, tendo atingido a sua perfeição, é o mais excelente de todos os animais, também é o pior quando vive isolado, sem leis e sem preconceitos. Terrível calamidade é a injustiça que tem armas na mão. As armas que a natureza dá ao homem, são a prudência e a virtude. Sem virtude, ele é o mais ímpio e o mais feroz de todos os seres vivos; mais não sabe, por sua vergonha, que amar e comer. A justiça é base da sociedade. Chama-se julgamento a aplicação do que é justo (ARISTÓTELES, 1997, p.15)

No pensamento de Aristóteles, a sociabilidade e o agir político são partes da

segunda natureza humana, e é a amizade que realiza o contato associativo do tecido social. ��� ������� �� ��� ��� ���� ��� ������� ����� �������� ������������������������������������������������� ��������������������������������������������� �������� �������������������������� ����������������������� ����������������� ������������������ ������ ���!��"� �� ��� �����������������!������������������������������������������������������������������" Até em uma atividade extremamente individual, como é o agir contemplativo, a amizade é um elemento primordial, pois, somente dentro da atividade política é que o homem se constitui como tal. A sociabilidade está baseada na amizade que condiciona a existência da própria justiça dentro da comunidade política.

A idéia é a de que a amizade carrega em si a dinâmica da semelhança e, através dela, a interação entre os cidadãos produz uma relação justa, pois, com a amizade não existiria o interesse e a vontade de prejudicar. Em uma relação comunitária, baseada na amizade, o relacionamento possui um caráter de reciprocidade eqüitativa advindo do auxílio entre os iguais. Quando Aristóteles fala da amizade ele quer dizer sempre que é uma forma de relacionamento social que existe exclusivamente entre pessoas virtuosas, pois, a amizade, tanto quanto a idéia do justo, é realizada no interior da comunidade política; só se realiza e se potencializa através da relação com o outro; a idéia de alteridade é o conceito chave aqui. Sendo assim, cada comunidade diferente possuiria uma forma diferente de relação de amizade, mas é importante notar que toda comunidade simples está inserida na comunidade política, que abarca as comunidades menores. Toda comunidade possui um bem particular, e na comunidade política não é diferente, mas por ser a reunião das comunidades particulares, o seu bem é comunal. Tendo por base essa dinâmica da amizade, podemos apreender um movimento gradativo na filosofia política de Aristóteles que vai do particular ao geral, da amizade limitada aos particulares à amizade comunal e ao bem geral. O

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que nos leva a compreender que o homem inserido na polis não é um elemento colocado em um jogo regido por uma autoridade é, sim, um agente ativo relacionado com seus concidadãos, isso pode ser compreendido como liberdade política, com o cuidado de não enxergar aqui a defesa de uma garantia dos interesses de cada particular contra a possível cobiça dos outros, como é a tese de grande parte dos contratualistas, a base do comunitarismo aristotélico é a noção de que a comunidade política é ato comum e não apenas um todo organizado. Por fim, podemos ver que, para Aristóteles, é a educação que permite a construção efetiva dessa comunidade política com um caráter unitário, através dela os cidadãos conseguem enxergar que o seu agir extrapola a noção da subsistência em direção à felicidade. A cidade apenas pode ser definida como comunidade política ao se tornar comunidade ética, que realiza o cidadão em uma vida ativa, que o torna, efetivamente, um homem. Só somos homens, de forma completa e plena, na polis, pois, é na polis que o bem do homem, a felicidade, se realiza.

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1.3.) A amizade:

Procurando repassar as características do comunitarismo na filosofia de Aristóteles, mais especificamente em sua teorização social e política, é importante voltarmos na questão da amizade, pois se trata de um forte elemento de ligação para a compreensão de como se dá o advento da comunidade política. Segundo Aristóteles, no Livro VIII da Ética a Nicômaco (1992):

Cabe-nos examinar a natureza da amizade, pois ela é uma forma de excelência moral ou é concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária na vida, De fato, ninguém deseja viver sem amigos, mesmo dispondo de todos os outros bens; achamos até que as pessoas ricas e as ocupantes de altos cargos e as detentoras do poder são as que mais necessitam de amigos; realmente, de que serve a prosperidade sem a oportunidade de fazer benefícios, que se manifesta principalmente e em sua mais louvável forma em relação aos amigos? Ou então, como pode a prosperidade ser protegida e preservada sem amigos? Quanto maior ela for, mais exposta estará aos riscos. [...] Além disso, os amigos estimulam as pessoas na plenitude de suas forças à prática de ações nobilitantes. [...] A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça; efetivamente, a concórdia parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram assegurá-la mais que tudo, ao mesmo tempo que repelem tanto quanto possível o facciosismo, que é a inimizade nas cidades. Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa (ARISTÓTELES, 1992, 1154a, p.153-154)

A amizade é um conceito intimamente ligado à virtude e a felicidade, ou

seja, estritamente ligado ao campo ético, pois, torna a interação uma relação justa, na medida em que esta passa a ser uma dinâmica desprovida de todo interesse e vontade de prejudicar a parte envolvida, o sentimento envolvido na amizade, segundo Aristóteles, é a reciprocidade, a espontaneidade e, por isso, o filósofo dedica seu estudo na Ética a Nicômaco, pois a amizade é uma das bases do co-existir social, como colocou Aristóteles na citação acima.

Como dissemos anteriormente, a amizade está ligada à virtude, na medida em que, quando Aristóteles teoriza sobre a amizade, a forma vislumbrada por ele é aquela existente entre pessoas virtuosas, pois, esta é a mais desinteressada e a mais perfeita, isso porque existem outras formas semelhantes à dinâmica da amizade, baseadas na utilidade que o outro possa ter para a parte interessada ou baseada no prazer que a companhia de um dá ao outro, porém, a forma verdadeira de amizade é aquela que une dois homens virtuosos com base na própria virtude. Nas palavras de Aristóteles:

A amizade perfeita é a existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelência moral; neste caso, cada uma das pessoas quer bem à outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si mesmas. Então as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles são amigas no sentido mais amplo, pois querem bem por causa da própria natureza dos amigos, e não por acidente, logo,

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sua amizade durará enquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é uma coisa duradoura. (ARISTÓTELES, 1992, 1156b, p.156)

Devemos compreender a idéia de “virtude” como aquilo através do que o

homem realiza, de forma plena e completa, a sua natureza, sendo uma relação de alteridade, de dinâmica com o outro. A amizade deve estar baseada no equilíbrio entre doação e entrega.

Para a compreensão das características do comunitarismo, o importante é perceber que a amizade é um fator necessário para a felicidade do homem, na medida em que, para Aristóteles, a sociabilidade é a própria felicidade, pois em Aristóteles, felicidade é realização dos fins da vida, que só se torna possível no “social”. Mais uma vez em Ética a Nicômaco, Aristóteles expressa de forma completa essa idéia de uma sociabilidade natural, uma das bases do comunitarismo:

Outra questão muito debatida é saber se uma pessoa feliz necessita ou não de amigos. Diz-se que as pessoas sumamente felizes e auto-suficientes não necessitam de amigos, pois elas já têm as coisas boas e portanto, sendo auto-suficientes, não necessitam de qualquer outra coisa, ao passo que a função de um amigo, que é um outro “eu”, é proporcionar as coisas que a própria pessoa não pode obter. Daí o verso: Se a sorte é favorável, por que ter amigos?. Mas parece estranho que os que atribuem todo o bem ao homem feliz não lhe concedam amigos, coisa que parece ser o maior dos bens externos. Se, na verdade, é próprio do amigo antes fazer o bem do que recebê-lo, e se é próprio do homem bom e da virtude beneficiar, e é mais belo fazer o bem aos amigos do que aos estranhos, então o homem virtuoso terá necessidade de pessoas que recebam os benefícios. Por isso buscam-se amigos, embora se tenha mais necessidade deles na fortuna ou no infortúnio, enquanto o desafortunado precisa de que se beneficie, o afortunado precisa de pessoas a quem possa beneficiar. E é absurdo fazer o homem feliz um solitário; ninguém, de fato, escolheria ter todos os bens para si só; com efeito, o homem é um ser político e naturalmente levado à vida em sociedade. E esta característica também existe no homem feliz; pois ele possui os bens naturais. E é claro que é melhor passar o dia com pessoas amigas e convenientes do que com pessoas estranhas e quaisquer; por isso o homem feliz tem necessidade de amigos. (ARISTÓTELES, 1992, 1169b, p.185)

A felicidade do homem está garantida com base na amizade, que se realiza

em sociedade, pois, tanto quanto o justo, a amizade se perfaz em comunidade, se realiza e se pratica com o outro.

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1.4.) Teoria social:

Como vimos, então, na dinâmica da amizade, o homem só é feliz em sociedade, pois é incapaz de viver isolado, necessitando de estabelecer relação com seus pares. Dessa idéia é que Aristóteles afirma que o bem na polis é mais belo e mais completo que o bem individual.

A polis, portanto, dá sentido e realiza as outras partes componentes do todo (família e conjunto das vilas). A polis, como dissemos anteriormente, é ontologicamente superior ao indivíduo, como diz Galuppo8:

Aristóteles se mostra claramente disposto a aceitar que entre o homem e a sociedade política existe uma relação análoga. Para Aristóteles, o estado é como um organismo em funcionamento, que é metafisicamente prévio a, ou mais substantivo que, o indivíduo que nele vive. (GALUPPO, 2003)

O “todo” precede as partes, pois o todo oferece sentido às partes. A polis dá sentido ao homem, como vimos anteriormente.

Para completar essa teorização comunitarista, de primazia do todo sobre a parte, de realização plena do homem na polis, Aristóteles trabalha a idéia de que a educação do cidadão é uma função do todo (como foi visto na primeira parte desse estudo). Desta forma, a polis deverá fornecer a educação, primeiramente, do corpo através dos impulsos, dos instintos e dos apetites, para se concluir com a dinâmica educacional da alma racional. Os cidadãos seriam educados na polis de um modo igualitário, para serem capazes de, quando jovens, obedecer e, quando idosos, comandar, esta educação deveria sempre ter como meta a formação de homens bons, realizando o ideal estabelecido na ética. Nas palavras de Aristóteles na Política (1997):

A cidade é virtuosa, não por obra do acaso, mas da ciência e da vontade. No entanto, uma república só pode ser virtuosa quando os próprios cidadãos que tomam parte no governo são virtuosos; ora, em nosso sistema, todos os cidadãos tomam parte do governo. Assim, trata-se de ver como um homem pode tornar-se virtuoso. Sendo possível formar na virtude todos os homens ao mesmo tempo, sem tomar à parte cada cidadão, tal é o melhor partido; porque o geral arrasta o particular. Três coisas fazem os homens bons e virtuosos: a natureza, os costumes e a razão. Primeiramente, é preciso que a natureza faça nascer homem e não outra espécie qualquer de animal. É preciso também que ela dê certas qualidades de alma e de corpo. Muitas dessas qualidades não têm utilidade alguma; porque os costumes fazem com que elas mudem e se modifiquem. Os costumes desenvolvem, por vezes, as qualidades naturais, dando-lhes uma tendência para o bem ou para o mal. Os outros animais seguem principalmente o instinto da natureza; alguns mesmo, em pequeno número, obedecem ao império dos costumes. O homem segue a natureza e os

8 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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costumes. É preciso, pois, que haja acordo e harmonia entre as três coisas (ARISTÓTELES, 1997, p.154-155)

Outro conceito que se liga e impulsiona a dinâmica ética inserida na polis, e

que nos permite uma maior compreensão da questão comunitarista, é a phronesis, que Aristóteles analisa no Livro VI da Ética a Nicômaco. Segundo Aristóteles, a phronesis é a sabedoria prática. Um esforço de reflexão que pretende melhorar a ação do homem. Tem como objetivo descrever claramente os fenômenos da ação humana, principalmente pelo exame dialético das opiniões dos homens sobre esses fenômenos e não apenas descobrir os princípios imutáveis da ação e as causas. Considera que, a partir da opinião (doxa) é possível atingir o conhecimento (episteme). Para Gadamer9, a phronesis, está entre o logos e o ethos.

Aristóteles inicia dizendo que é possível chegarmos à definição de phronesis se for considerado quais são as pessoas dotadas desta forma de excelência (o phronimos). Que seriam as pessoas capazes de bem deliberar sobre a espécie de coisas que nos levariam a viver bem de um modo geral.

Com referência ao discernimento, chegaremos à sua definição se considerarmos quais são as pessoas dotadas desta forma de excelência. Pensa-se que é característico de uma pessoa de discernimento ser capaz de deliberar bem acerca do que é bom e conveniente para si mesma, não em relação a um aspecto particular – por exemplo, quando se quer saber quais as espécies de coisas que concorrem para a saúde e para o vigor físico -, e sim acerca das espécies de coisas que nos levam a viver bem de um modo geral. A evidência disto é o fato de dizermos que uma pessoa é dotada de discernimento em relação a algum aspecto particular quando ela calcula bem com vistas a algum objetivo bom, diferente daqueles que são o objetivo de uma arte qualquer. Conseqüentemente, no sentido mais geral a pessoa capaz de bem deliberar é dotada de discernimento (ARISTÓTELES, 1992, 1140 a, p.116)

Segundo Aristóteles, ninguém delibera sobre coisas invariáveis, nem delibera

sobre ações que não podem ser praticadas: “O discernimento deve ser então uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com os bens humanos” (ARISTÓTELES, 1992, p.117). O autor também coloca, que discernimento não é um conhecimento científico e nem uma arte:

[...] o discernimento não pode ser conhecimento científico nem arte, ele não pode ser ciência porque aquilo que se refere às ações admite variações, nem arte, porque agir e fazer são coisas de espécies diferentes. A alternativa restante, então, é que ele é uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas com as coisas boas ou más para os seres humanos (ARISTÓTELES, 1992, 1140a, p.117)

No Livro VI da Ética a Nicômaco, Aristóteles diz que:

[...] a excelência moral é uma disposição da alma relacionada com a escolha, e a escolha é o desejo deliberado, segue-se que, para que a escolha seja boa, tanto a razão deve ser verdadeira quanto o desejo deve ser correto, e este deve buscar exatamente o

9 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método : traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 1998, p.54.

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que aquela determina. Este tipo de pensamento e de percepção da verdade é de natureza prática; quanto ao pensamento contemplativo, que não é nem prático nem produtivo, o bom e o mau funcionamento são respectivamente a percepção da verdade e a impressão da falsidade; com efeito, esta é função de toda a parte intelectual do homem, enquanto o bom funcionamento da inteligência prática é a percepção da verdade conforme ao desejo correto (ARISTÓTELES, 1992, 1139b, p.114)

Aristóteles diz também que “a origem da ação é a escolha, e a origem da

escolha está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim” (ARISTÓTELES, 1992, p.114), de forma que a escolha (proairesis) “é a razão desiderativa ou desejo raciocinativo” (ARISTÓTELES, 1992, p.114). Desta forma:

[...] se o princípio (arque) do movimento da práxis é a decisão e o princípio da decisão é o desejo (oréxis), razão e desejo articulam-se em indissolúvel unidade no ponto de partida do agir ético, aquela como forma e esta como causa motriz do movimento imanente ou da enérgéia do agir. Aristóteles é levado, dessa sorte, a implantar profundamente a phronesis, seja na inteligência prática (nous), seja no desejo (oréxis)

(VAZ, 1988, p.123)10

Aristóteles diz que “a função de uma pessoa se realiza somente de acordo

com o discernimento e com a excelência moral, porquanto a excelência moral nos faz perseguir o objetivo certo e o discernimento nos leva a recorrer aos meios certos” (ARISTÓTELES, 1992, 1144a, p.125), ou seja, a phronesis, sendo encarada como a virtude do intelecto que visa a ação, direciona o desejo, que é um elemento essencial da decisão (proairesis), resultando em uma ação moral visando a um fim determinado.

Podemos então compreender a importância do conceito de phronesis para a dinâmica da polis, na medida em que é através dela que se torna possível a direção boa de si e da cidade. Como diz Aristóteles ao verificar que Péricles possui discernimento:

É por esta razão que pensamos que Péricles tem discernimento, porque podem ver o que é bom para si mesmos e para os homens em geral; consideramos que as pessoas capazes de fazer isto são capazes de bem dirigir as suas casas e cidades. É esta explicação do nome “moderação”, que significa “preservar o discernimento”. O que a moderação preserva é a nossa convicção quanto ao nosso bem (ARISTÓTELES, 1992, 1140b, p.117)

10 VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de filosofia. 1988.

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1- SANTO TOMÁS DE AQUINO 2.1.) Teoria do conhecimento:

A filosofia tomista está intimamente estruturada sobre os conceitos do pensamento aristotélico. A doutrina de Santo Tomás de Aquino pode ser vista como uma nova estrutura de conhecimento que buscou unir fé e razão, seu pensamento é racional, metódico e logicamente explicado, como é o pensamento de Aristóteles.

Devemos partir da idéia de justiça inserida na filosofia tomista para verificarmos como o pensamento de Santo Tomás de Aquino trabalha os conceitos políticos e, desta forma, compreendermos a contribuição filosófica feita à matriz comunitarista.

O estudo da justiça foi extensamente trabalhado no texto da Suma Teológica, bem detalhadamente entre as questões LVII e LXXIX da Segunda Parte da obra. Tal estudo está consubstanciado no estudo da lex, onde a lei eterna não é a mesma que a lei divina, nas palavras de Miguel Reale:

O elemento mais alto da filosofia jurídico-moral tomista é a lex aeterna, expressão mesma da razão divina, inseparável dela, que governa todo o universo, como um fim ao qual o universo tende. A idéia de lex aeterna não deve ser confundida com a de lex divina, ou revelada, a qual é uma expressão da primeira, a mais alta forma de sua participação aos homens, porque dada por Deus, como no exemplo das Sagradas Escrituras. (REALE, 1994, p.57)

O percurso filosófico que encontramos até chegarmos à idéia de justiça deve

muito de sua base intelectual ao pensamento de Aristóteles. Vejamos: o ser humano para Santo Tomás na Suma Teológica é composto de corpo e alma (anima), o corpo é a matéria perene que auxilia no processo de desenvolvimento da alma. Da mesma forma que podemos ver na teorização aristotélica, aqui, na filosofia tomista, a alma está para o corpo, como a potência está para o ato. É importante, contudo, notar que, embora, a alma propicie vida para o homem, os animais também possuem alma. A alma preenche de vida não só o homem, mas também os animais e os vegetais, porém, essas almas possuem potências e faculdades distintas que permitem diferenciar os seres na escala natural. O que podemos verificar nesta passagem da Suma Teológica:

Chamamos alma ao princípio primeiro da vida. Embora algum corpo possa ser um certo princípio da vida, como o coração o é no animal, contudo não pode ser o princípio primeiro da vida de qualquer corpo. Ora, é manifesto que, ser princípio da vida ou vivente não cabe ao corpo como tal; do contrário todo corpo seria vivo ou princípio da vida. Logo, só cabe a um certo corpo como tal ser vivo, ou ainda, princípio da vida.

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Ora, o que torna esse corpo atualmente tal é algum princípio, chamado o seu ato. Por onde, a alma, princípio primeiro da vida, não é corpo, mas o ato dele, assim como o calor, princípio da calefação, não é corpo, mas em ato do corpo (TOMÁS DE AQUINO, 1954, I, q.75, a.1).�

Santo Tomás, então, estabelece assim na Suma Teológica11 estas diferenças,

com base em três tipos de alma: 1- alma vegetativa: é a alma que habita os vegetais, seres que

executam de forma autônoma suas atividades desconhecendo tanto a forma como a finalidades da mesma,

2- alma sensitiva: é a alma que habita os animais, seres que já possuem sensibilidade, o que os propicia a executarem e apreenderem a forma de agir. Ponto este que os diferencia dos vegetais,

3- alma intelectual: é a alma que habita o ser humano, que habita o animal racional que é o homem, ser que executa atividades e, diferentemente dos vegetais e dos animais, possui a capacidade de compreender e apreender tanto a forma como o fim de suas ações. A faculdade intelectual é o que torna o homem um ser diferenciado em relação aos outros seres que possuem alma.

É importante notar, que com respeito à alma do homem, Santo Tomás entende que ela é espiritual e sem matéria, o que quer dizer em suas palavras:

A alma não tem matéria, o que se pode duplamente provar. Primeiro, pela natureza da alma, em comum, que a torna forma de certo corpo. Ora, ou a alma é, em si, forma total ou parcial. Se total, é impossível tenha, como parte, a matéria, considerada esta última como ser somente potência; pois, a forma, como tal, sendo ato, o que é puramente potencial não pode ser parte deste, pois, a potência repugna ao ato, dividida, como é, por oposição a ele. Se parcial, essa parte a consideraremos como alma; e a matéria, de que é o ato primário, como o primeiro animado. Segundo, especialmente, pela natureza da alma humana, enquanto intelectiva. Pois, é manifesto, tudo o que é recebido por outro ser, o é ao modo desse ser recipiente. Assim, o que é conhecido, o é do modo pelo qual a sua forma está no conhecente. Ora, a alma intelectiva conhece as coisas em a natureza absoluta delas, p. ex., uma pedra enquanto absolutamente pedra. Por onde, a forma da pedra, na sua razão formal própria, está absolutamente na alma intelectiva. Logo, esta é forma absoluta e não algo composto de matéria e forma; pois, se o fosse, as formas das coisas ela as receberia como individuais; e assim não conheceria senão o singular, como se dá com as potências sensitivas, que recebem as formas das coisas num órgão corpóreo; pois a matéria é o princípio da individuação das formas. Resulta, portanto, que a alma intelectiva e toda substância intelectual conhecedora das formas, absolutamente, carece da composição de forma e matéria (TOMÁS DE AQUINO, 1954., I, q. 75, a. 5)

O homem é, pois, matéria e forma, sendo esta a alma. Eis uma tese que

Tomás de Aquino tomou novamente a Aristóteles. A idéia pode parecer paradoxal, porque, de uma parte a alma era evidentemente individual, o que parecia dar-se por conta da matéria; de outra, ela operava com independência racional, o que parecia 11 TOMÁS, de Aquino. Suma teológica. 1954.

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estar por conta de uma iluminação a partir do alto. Entretanto, diz Santo Tomás de Aquino:

Aquilo que faz primariamente, com que um ser opere, é a forma do ser ao qual se atribui a operação . O que torna um ser atual também fá-lo agir. Ora, é manifesto que a alma é o princípio primário da vida do corpo. E como a vida se manifesta por operações diversas nos diversos graus de viventes, aquilo que produz, primariamente, cada uma das obras da vida é a alma. Pois é pela alma que, primariamente nos nutrimos, sentimos, movemo-nos localmente e, semelhantemente, inteligimos. Logo, o princípio pelo qual primariamente inteligimos, quer se chame intelecto, quer alma intelectiva, é a forma do corpo. E tal é a demonstração de Aristóteles (TOMÁS DE AQUINO, 1954, I, q.76, a.1).

Santo Tomás esclarece a idéia de que a alma, ainda que sendo forma do

corpo, pode ser racional. Substancialmente unida, parte das operações se exercem unidas, isto é, organicamente, e parte não:

Devemos notar que, quanto mais nobre for a forma, tanto mais dominará a matéria corpórea, tanto menos nesta estará imersa e tanto mais a excederá pela sua operação ou virtude; por onde, vemos que a forma do corpo misto tem uma certa operação não causada pelas qualidades elementares. E quanto mais avançarmos em a nobreza das formas, tanto mais veremos a virtude da forma exceder à matéria elementar; assim, a alma vegetativa é mais que a forma do metal e a alma sensível, mais que a vegetativa. Ora, a alma humana é a última, em a nobreza das formas. Por onde, excede, pela sua forma, à matéria corpórea, na medida mesma em que tem operação e uma virtude, das quais de nenhum modo participa a matéria corpórea. E essa virtude se chama intelecto (TOMÁS DE AQUINO, 1954, I, q.76, a.1).

Mais à frente no texto da Suma teológica, diz o autor, completando a idéia:

A alma humana está unida à matéria [...] Porém, é separada quanto à virtude intelectiva, porque essa não é virtude de nenhum órgão corpóreo, como a virtude visiva, ato dos olhos; pois, inteligir é ato que se não pode exercer por um órgão corpóreo, como se exerce a visão. Está, porém, na matéria, porque a alma mesma, a que pertence tal virtude, é forma do corpo e o termo da geração humana(TOMÁS DE AQUINO, 1954, I, q.86, a.1)

Para Santo Tomás de Aquino, o corpo humano só tem uma forma, a da alma.

Todas as formas, que o corpo por ventura tenha, são assumidas pela mesma e única forma, a alma. Atribuiu, pois, Tomás de Aquino à alma um sentido efetivamente amplo. Trata-se da mais completa aplicação da teoria da matéria e forma aplicada ao ser humano. O argumento procede da seguinte maneira: uma vez admitida a alma como forma substancial do corpo, não resta senão admiti-la como forma única, porque a forma substancial dá o ser em absoluto. Nas palavras de Tomás de Aquino:

Como a forma substancial é que dá o ser substancial, cada coisa tem só uma forma substancial. Logo, é impossível que haja no homem alguma outra forma substancial, além da alma inteletiva. Se se admitisse, com os platônicos, que a alma inteletiva não está unida ao corpo, como forma, mas só como motor, seria necessário admitir, no homem, outra forma substancial, que constituísse, no seu ser, o corpo, movido pela alma (...) A forma substancial, porém, dá o ser absoluto. Por isso, com a sua

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adveniência, um ser é gerado, pura e simplesmente; e pelo seu desaparecimento, fica pura e simplesmente corrompido... Deve-se admitir que além da alma inteletiva, nenhuma outra forma substancial há no homem(TOMÁS DE AQUINO, 1954, q.76, a.4)

Após essa compreensão da idéia de alma, devemos compreender a dinâmica

da razão, já que é ela que particulariza o homem que viverá em uma comunidade. Razão entendida aqui como capacidade de discernir, de operar escolhas e proceder com a capacidade de julgar o que é bom. A razão na filosofia tomista é o fator responsável por adquirir conhecimento das coisas com base na experiência sensível, ou seja, através do ato de interagir com o “real”; a gnoseologia tomista, é importante destacar, se constrói a partir da experiência sensível. A gnoseologia tomista nos mostra qual é a base filosófica da relação do homem com seu meio e, conseqüentemente, como foi colocado anteriormente, com a comunidade política; assim, vemos que as sensações são os instrumentos que apreendem o conhecimento, parte-se da materialidade das coisas para apreender o abstrato, parte-se do particular para apreender o geral, da experiência para a capacidade de conceituar as coisas, ou seja, o conhecimento é produzido pela interação com o “real”. As sensações são o caminho que deve ser percorrido para se adquirir o conhecimento, porém, as experiências sensoriais não produzem o conhecimento por si só, existe a necessidade do uso da razão nesse processo de conhecimento, nessa gnoseologia. Com base no uso racional das experiências adquiridas, o homem consegue diferenciar quais os fins corretos que devem ser vislumbrados, para, assim, escolher quais os meios corretos devem ser utilizados para alcançar os fins escolhidos. Essa possibilidade de escolha está inserida no contexto da chamada verdade real, que é o verdadeiro bem, e a verdade aparente, que é a aparência falsa do bem; existe o livre-arbítrio humano, é ele que capacita o homem a julgar o que é certo e justo. A atividade ética entra justamente aqui, pois é através dela que o homem, utilizando a razão prática, pode discernir o mal do bem em seus atos, para, assim, atingir o bem, como vimos também no pensamento de Aristóteles. É importante salientar que o ato moral ao qual o homem incorre, de afastamento do mal e escolha do bem, deve ser compreendido como uma atividade racional onde os meios mais adequados para atingir os melhores fins, são escolhidos pelo homem com base na experiência adquirida. Na filosofia tomista, portanto, é a razão prática que sustenta a possibilidade da existência do convívio social, a existência da comunidade. Outra similitude que podemos verificar em relação ao pensamento aristotélico encontra-se na idéia tomista de que a garantia de continuidade da sociedade está na prudente forma de governar com vistas para o bem comum. Só uma autoridade comprometida em agir de acordo com os meios adequados para a realização de um bem geral e comunitário opera com base na ética.

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A ética se relaciona e se faz presente sobre a razão prática, sobre o agir, seja um “agir” individual, familiar ou social, e para compreender essa idéia, devemos compreender o conceito de sinderese, encontrado em Tomás de Aquino, e aproximá-lo ao conceito aristotélico de phronesis. Como vimos na seção anterior, para Aristóteles (Ética a Nicômaco, Livro VI), os conhecimentos hauridos pelas ciências, de caráter demonstrativo, devem decorrer de primeiros princípios. Estes logicamente não podem ser objeto de um conhecimento científico, pois só pode ser cientificamente conhecido o que é passível de demonstração e os primeiros princípios representam a base para toda e qualquer demonstração. Também não podem ser considerados pela arte e pela prudência, que versam sobre coisas.

Tomás de Aquino, na questão em que discute a sinderese nas Questões Disputadas “sobre a verdade” 12 (1999), explica a existência do conceito, com base em Aristóteles (q. 16, art. 2). É importante citarmos toda essa parte, para buscarmos compreender a doutrina sobre a sinderese:

É preciso dizer que a natureza em todas as suas obras tem a intenção do bem e quer a conservação de tudo o que se faz pela operação natural; é por esta razão que em todas as suas obras os princípios sempre são permanentes e imutáveis, mantendo a sua retidão. 'É necessário que os princípios permaneçam eternamente', lemos no livro I da Física. Nada estável, com efeito, nada certo haveria no que procede dos princípios se eles próprios não pudessem ser firmemente estabelecidos. Daí que todas as coisas mutáveis reduzam-se a algum primeiro imutável. Daí, igualmente, que todo conhecimento especulativo derive de um tipo de conhecimento absolutamente certo que escapa a todo risco de erro, qual seja, o conhecimento dos primeiros princípios universais, à luz dos quais qualquer outro conhecimento pode ser controlado, em virtude dos quais toda verdade é reconhecida e todo erro rejeitado e nos quais nenhum erro poderia surgir sem que desaparecesse a certeza em todos os conhecimentos ulteriores. Portanto, se queremos que haja alguma retidão no domínio do agir humano, deve haver necessariamente algum princípio permanente que seja de uma retidão inabalável, em relação ao qual todas as ações humanas possam ser examinadas de tal modo que este princípio permanente resista a todo mal e afirme todo bem. Tal é a sinderese, que tem por ofício protestar contra o mal e incitar ao bem (TOMÁS DE AQUINO, 1964, q. 16, art. 2)

A certa altura de seu texto, Tomás de Aquino trata de esclarecer que a

sinderese não se identifica com a razão superior nem com a razão inferior, mas designa uma realidade comum a uma e a outra.

[...] alguns conteúdos pertencem a razões eternas - por exemplo: que é preciso obedecer a Deus - e outros pertencem a razões inferiores - por exemplo: que é preciso viver em conformidade com a razão. Mas a sinderese e a razão superior têm cada uma a sua maneira própria de considerar as realidades imutáveis. Pois há um tipo de imutabilidade que corresponde á natureza do imutável: este é o caso das realidades divinas, e é assim, dizemos, que a razão superior prende-se às realidades imutáveis. Existe também uma espécie de imutabilidade que corresponde ao caráter necessário de uma verdade, seja embora no domínio das realidades sujeitas à mudança. Por exemplo, esta verdade - o todo é maior do que a parte - é imutável mesmo no domínio das coisas mutáveis. Ora, é

12 TOMÁS, de Aquino. Verdade e conhecimento. 1999.

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deste modo que dizemos que a sinderese prende-se ao imutável (TOMÁS DE AQUINO, 1954, q. 16, art. 1).

Podemos então compreender os princípios fundamentais do conceito de

sinderese em Tomás de Aquino. São princípios evidentes, indemonstráveis, imutáveis, presentes em qualquer juízo prático, de amplíssima generalidade. São, deste modo, diretamente provenientes da sinderese as formulações de que devemos fazer o bem e evitar o mal e devemos viver e agir conforme a razão. A sinderese, portanto, se aproxima do conceito de phronesis, que vimos em Aristóteles, na medida em que, atua, para ser o agente, de modo que estabeleça o fim da razão

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2.2.) Justiça: É com base na idéia da sinderese que podemos compreender o conceito de justiça na filosofia tomista. A idéia de justiça é conseqüência dos conceitos éticos observados na filosofia tomista, significando a reiteração de atos que buscam determinados fins. A justiça é vista como uma virtude, como diz Tomás de Aquino respondendo, justamente se a justiça é uma virtude na Suma Teológica:

Virtude humana é aquela que faz bons o ato humano, e o mesmo homem; e isto é próprio de justiça. Pois a ação humana torna-se boa ao seguir a regra da razão, segundo a qual são retos os atos humanos. Portanto, já que a justiça torna retas as operações humanas, é evidente que torna boa a ação humana, e como diz Túlio em Dos Ofícios, livro 1, sob o título Da Justiça: “Os homens fazem-se bons principalmente pela justiça”, e, por isso, acrescenta aí mesmo: “Nela dá-se o mais refulgente esplendor da virtude (TOMÁS DE AQUINO, 1990, q.58, art.3º, p.21)

Sendo uma virtude, ela está no meio entre extremos antagônicos, sendo a possibilidade de dar a cada um o que é seu por direito, nem dar mais e nem menos, é a justa medida, um meio. Nas palavras de Tomás de Aquino: “Ora, chama-se nosso o que nos é devido por uma igualdade proporcional. Por onde, o ato próprio da justiça não consiste senão em dar cada um o que lhe pertence” (1964, q.58, art.9º, p.31). Completando a idéia, diz o autor no artigo seguinte, seguindo os preceitos de mesotés de Aristóteles:

Por onde, a mediedade da justiça consiste numa certa proporção de igualdade entre a nossa obra externa e uma outra pessoa. Ora, o igual é uma mediedade real entre o mais e o menos, como diz Aristóteles. Logo, a mediedade da justiça é real (TOMÁS DE AQUINO, 1954, q.58, art.10º, p.36)

Em Santo Tomás de Aquino, o ato de justiça é dar a cada um o que lhe pertence, como ele mesmo diz:

Como dissemos, a matéria da justiça é a ação exterior enquanto a mesma, ou a coisa sobre que se exercita, guarda a devida proporção com a outra pessoa a que se ordena a justiça. Isto equivale a dizer que há que dar a cada pessoa o que lhe pertence, segundo o que se lhe deve, numa proporção de equidade. Portanto, é próprio do ato de justiça dar a cada um o que lhe pertence (TOMÁS DE AQUINO, 1954, q.58, art.11º, p. 37)

A justiça se relaciona com a atividade da razão prática, pois, é a razão prática

(através do hábito) que conseguirá discernir o que é devido a cada um, através da sinderese (que aqui, mais uma vez, se aproxima da prhonesis aristotélica), como podemos ver na resposta à questão 58 da Suma Teológica, em seu primeiro artigo: Se é correta a definição de justiça tomada como a vontade constante e perfeita de respeitar o direito de cada um:

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A definição proposta de justiça é correta se for bem entendida. Pois, sendo a virtude um hábito, que atua como princípio dos atos bons, é preciso que a virtude se defina pelo ato bom acerca da matéria de tal virtude. E a justiça refere-se a todas aquelas coisas que pertencem ao outro; esta é a sua matéria, como se dirá mais adiante. Por isso, o ato de justiça explica-se ao expor a sua matéria e o seu objeto, quando se diz “o dar a cada um o que lhe pertence, segundo o seu direito”. Porque diz Isidoro nas Etimologias, livro 10, que “justo é aquele que observa o direito”. E para que um ato de qualquer matéria seja virtuoso, exige-se que seja voluntário, firme e estável; porque, diz o filósofo na Ética, livro 2, cap.4, que para o ato virtuoso se exige primeiramente que “se execute conscientemente”; em segundo lugar, “escolhendo-o, e conforme um fim devido”; em terceiro lugar, “que atue permanentemente”. O primeiro está incluído no segundo, pois “tudo quanto se faz por ignorância é voluntário”, como diz a Ética, livro 3, cap.1. Por isso, na definição coloca-se primeiramente a vontade, para mostrar que o ato de justiça tem que ser voluntário, e acrescenta-se a constância e a perpetuidade para indicar a firmeza do ato. Portanto, a definição indicada é completa; ainda que explicando que o ato ocorre pelo hábito, posto que se especifica pelo ato e se reduz ao ato. Mas se alguém quisesse expressar essa definição numa forma mais correta, poderia dizer que “justiça é um hábito segundo o qual cada um dá ao outro o que lhe pertence segundo o direito, permanecendo nele com uma vontade constante e perpétua”. Esta definição é equivalente à que o filósofo apresenta na Ética, livro 5, cap. 5, dizendo que justiça é “o hábito segundo o qual alguém atua ao escolher o que é justo. (TOMÁS DE AQUINO, 1990, q.58, art.1º, p.16-17)

A idéia de justiça na teoria tomista oferece várias teorizações sobre o que seja a lei. Santo Tomás fala da lei eterna, natural e humana.

Para Santo Tomás, há três espécies de leis, a lei eterna, a lei natural e a lei humana, a primeira, de natureza divina, conhecida parcialmente pelo homem mediante suas manifestações, a segunda, conhecida pelo homem através da razão, a terceira criada pelo homem (CRETELLA JUNIOR, 2003, p. 53).

Essa é a idéia de Santo Tomás; a lei natural é a que rege toda a natureza, a lei comum do ser humano, essa lei é resultado da lei natural e, é comum a todos os homens e animais, diferentemente da lei humana que é um complexo que busca ser reflexo do conteúdo encontrado nas demais leis (divina e natural):

Ora, aprender as coisas de um modo absoluto não só pode o homem, mas também os outros animais. Por onde, o direito chamado natural, no primeiro sentido, é-nos comum com os animais. Porém, do direito natural assim concebido afasta-se o direito das gentes, como diz o jurisconsulto; porque aquele é comum a todos os animais e este, só aos homens entre si (TOMÁS DE AQUINO, 1954, q.LVII, art.III)

É importante diferenciarmos e apreendermos as espécies de lei encontradas na filosofia tomista para verificarmos como a idéia de justiça é uma idéia comunitarista. Assim, vemos que a lei eterna é emanada de Deus e não incorre nas subjetividades da lei humana, porém, é importante distinguir entre a lei eterna e a lei divina. Como diz Tomás de Aquino:

Chama-se direito divino o que foi divinamente emanado. E ele abrange, em parte, o justo natural, mas cuja justiça escapa aos homens; e, em parte, o justo por instituição divina

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[...] A justiça, implicando a igualdade, não podemos dar a Deus uma paga equivalente; por onde, não podemos, propriamente falando, dar a Deus o que é justo. E, por isso, a lei divina não se chama propriamente direito (ius), mas fas, porque basta para Deus, o cumprirmos (TOMÁS DE AQUINO, 1954, q. LVII, art. II-III)

Como foi colocado por Reale anteriormente, verificamos que a lei eterna é a

expressão da razão divina, desta forma a lei divina deve ser vista como expressão da lei eterna. A lei eterna possui uma capacidade de ordenamento do todo universal. Já a lei natural é uma conseqüência da lei eterna.

As disposições de direito humano não podem derrogar as do direito natural ou do direito divino. Ora, pela ordem natural, instituída pela providência divina, as coisas inferiores são ordenadas à satisfação das necessidades humanas (TOMÁS DE AQUINO, 1990, Segunda Parte, q.LXV, art. VII)

Essa teorização nos importa na medida em que conduz à lei humana, esta,

representa a efetivação, ou a positivação, da lei natural, a lei humana possui o papel de positivar o que a lei natural estabelece. Nas palavras de Santo Tomás de Aquino:

A vontade humana, em virtude de um consentimento comum, pode determinar o justo, em coisas que por si mesmas em nada repugnam à justiça natural. E a tal aplica o direito positivo. Por isso, o Filósofo diz que o justo legal é o que, ao princípio, pode ser indiferentemente de um modo ou outro; mas uma vez estabelecido, deve permanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natural não pode a vontade humana torná-lo justo. Por exemplo, se estatuísse que é lícito furtar ou adulterar. Por isso, diz a Escritura: Ai dos que estabelecem leis ambíguas. (TOMÁS DE AQUINO, 1990, Segunda Parte, q.LVII, art.II)

O Conceito tomista de justiça, essa disposição permanente do espírito pela qual se atribui a cada qual o seu direito, traz o incipiente conceito de justiça social. É o que se pode perceber tendo-se em vista o conceito de justiça legal ou, as obrigações e deveres de cada qual, com o todo social de que é parte integrante. Santo Tomás, também, sanciona e absorve os conceitos aristotélicos de justiça comutativa. É o que podemos verificar tendo-se em mente a leitura da questão 61 da Suma Teológica, quando o filósofo responde: se está bem feita a divisão da justiça em distributiva e comutativa, verificamos que a justiça comutativa é aquela que regula as relações entre os particulares e justiça distributiva é aquela que regula, por sua vez, a distribuição proporcional dos bens comuns.

Como dissemos, a justiça particular dirige-se a uma pessoa particular, que em relação à comunidade é como uma parte para o todo. Mas podemo-nos referir a uma parte de duas maneiras: primeiro, como uma parte se relaciona com outra, assim se relaciona uma pessoa privada com outra; em tal caso dá-se a justiça comutativa, a qual regula as relações mútuas entre pessoas privadas. Segunda, como o todo se relaciona com uma das partes, assim se relaciona o comunitário com cada um dos indivíduos; e é a justiça distributiva a que regula tal relação que consiste na distribuição proporcional dos bens comuns. Portanto, existem duas espécies de justiça: uma comutativa e outra distributiva. (TOMÁS DE AQUINO, 1990, Segunda Parte, q.61, art. 1º)

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O que procuramos destacar nesta seção sobre a justiça em Santo Tomás de Aquino, é a importância deste conceito em sua filosofia e a contribuição que se pode perceber para os pressupostos da matriz comunitarista, seguindo, por sua vez, os pressupostos de Aristóteles. Neste sentido verificamos que o conceito de justiça na filosofia de Tomás de Aquino está próximo a característica de ser a mais “sublime” das virtudes morais, justamente por uma característica comunitarista, que é ser o bem do outro. Nas palavras de Tomás de Aquino:

Se tratarmos da justiça legal, é evidente, que sobressai das outras virtudes morais, enquanto ao seu fim, que é bem comum e é mais sublime do que o bem particular. Por isso, diz o filósofo na Ética, livro 5, cap.1: “A justiça, parece a mais preclara das virtudes e nem a alvorada nem o crepúsculo são mais luminosos do que ela”. Mas também a justiça particular se distingue das outras virtudes, por um duplo motivo: o primeiro, por causa do sujeito, porque radica na parte mais elevada da alma, que é o apetite racional, ou seja, a vontade; pelo contrário, as outras virtudes morais radicam no apetite sensitivo, como também as paixões, que são a matéria das outras virtudes morais. O segundo, por parte do objeto, porque as outras virtudes são dignas por razão do homem virtuoso; pelo contrário, a justiça é-o porque o homem virtuoso abre-se aos outros. Portanto, de certo modo, a justiça é o bem do outro, como diz a Ética. Livro 5, cap.1. Por isso diz o filósofo na retórica, livro 1, cap.9: “Necessariamente as virtudes morais são aquelas que prestam maior serviço aos outros; porque a virtude é uma força benfeitora. Assim, louvamos os fortes e os justos; porque os fortes prestam o seu serviço na guerra e os justos na guerra e na paz (TOMÁS DE AQUINO, 1990, Segunda Parte, q.58, art.12º)

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2.3.) Teoria social:

Após a teorização acerca do conceito de justiça, podemos apreender o conteúdo filosófico-tomista referente ao Direito e ao Estado. Linhas gerais que nos proporcionarão um entendimento conclusivo sobre o comunitarismo em Santo Tomás de Aquino.

Recapitulando, pudemos ver que, com base em uma compreensão aristotélica do homem (ser racional e político) Santo Tomás reflete sobre a ordem jurídica, a justiça é vista como proporção e mediação baseada, como vimos anteriormente, na idéia da alteridade. Essa idéia de proporcionalidade vista na justiça é a mais clara influência aristotélica no pensamento de Santo Tomás. Na teorização comunitarista-tomista, há uma defesa da idéia de um justo equilíbrio entre o desejo da sociedade e o desejo das partes que a compõem, sendo que as partes devem dar à comunidade o que é devido para a realização do bem comum, idéia que podemos perceber na teorização que o filósofo faz sobre a questão da justiça distributiva:

1. Á primeira dificuldade responde-se que, assim como se recomenda a moderação na generosidade das pessoas particulares, e se considera mau o esbanjamento, também há que ter uma certa moderação na distribuição dos bens comuns. Precisamente para isso é que serve a justiça distributiva. 2. À segunda, que como a parte e o todo são em certo sentido a mesma coisa, assim também de algum modo o que pertence ao todo pertence à parte. Portanto, quando se distribui algo comum entre os particulares, de algum modo cada um recebe o que é seu. (TOMÁS DE AQUINO, 1996, Segunda Parte, q.58, art1º)

Santo Tomás de Aquino compreende o Direito como a apreensão de forma

objetiva do justo que estabelece, de forma plena, o local do homem na sociedade e, como vimos, esse conjunto jurídico é um princípio racional e prático que se aplica ao todo social através da lei positivada, esta, por sua vez, está ligada a uma lei eterna e perfeita, cuja finalidade é a realização do bem geral e comum. É na Segunda Parte da Suma Teológica que Santo Tomás apresenta de forma detalhada sua filosofia social, tratando da maneira pela qual o homem deve voltar a Deus; para ele esse retorno ao divino deve ser feito através da lei. A lei ordena o bem comum. Nas palavras de Santo Tomás:

Sendo o fim último da vida humana a felicidade ou a beatitude, há de por força, a lei dizer respeito, em máximo grau, à ordem da beatitude. Demais a parte ordenando-se para o todo, como o imperfeito para o perfeito; e sendo cada homem parte da comunidade perfeita, necessária e propriamente, há de a lei dizer respeito à ordem para a felicidade comum. (TOMAS DE AQUINO, 1954, Segunda Parte, q.LVIII)

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Devemos compreender a sociedade tomista como uma união coesa das partes, união que visa um objetivo comum, que seria a realização coletiva, que é um fim transcendente, superior às energias particulares dos seres.

Como Aristóteles, Santo Tomás vê o homem como um animal social, que realiza sua tarefa como parte do conjunto divino, em sociedade, é natural ao homem viver em sociedade, pois, fora dela ele não conseguiria se manter e se realizar enquanto homem. Neste sentido é que Santo Tomás compreende o advento do Estado e do Governo. Na medida em que, para ele, seja natural que o homem viva em uma coletividade, que possua uma natureza social, é necessário que “haja, entre os homens, alguém por quem seja governada a multidão” (TOMÁS DE AQUINO, 1954, Segunda Parte, q.LX). Existindo um todo ordenado, há a necessidade de existir um fator que direcione esse ordenamento. O Estado na filosofia tomista é, também, um produto natural, produto que é conseqüência da natureza social do homem e busca garantir o bem comum.

Como escreveu Galuppo13 (2005): “A tese básica do comunitarismo é a tese da prioridade do bem sobre o justo [...] e a opção do comunitarismo consiste, geralmente, em identificar o bem com o próprio padrão da vida comunitária.” Essa tese é o centro da matriz comunitarista que podemos chamar de clássica, aqui ilustrada por Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.

13 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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3- MICHAEL WALZER

3.1) Linhas gerais:

O início do texto Comunitarismo e Liberalismo na Fundamentação do Estado

Democrático de Direito e o Problema da Tolerância do Prof. Galuppo nos servirá de norte

teórico na fundamentação das características do comunitarismo contemporâneo (exemplificado

neste estudo por Michael Walzer e Alasdair MacIntyre) e da própria matriz liberal. Diz

Galuppo14:

Toda sociedade se funda sobre acordos, sejam eles frutos de uma tradição ou de uma decisão racional, sejam eles conscientes ou não. A questão não é, propriamente, se há um acordo ou pacto que funda a vida social, mas em que tipo de acordo ela se funda, ou seja, qual é a natureza de tal acordo, como ele ocorre e em que consiste e, mais precisamente, de que modo concebe a relação entre o indivíduo e a totalidade social. As respostas a estas perguntas indicam a existência de duas matrizes teóricas concorrentes que procuram fundamentar o que seja o Direito e o Estado como resultado de tais acordos, chamadas de Comunitarismo e de Liberalismo. (GALUPPO, 2003)

Vimos como a filosofia aristotélica e tomista concebem a relação entre o indivíduo e a

totalidade social, abrindo a possibilidade de apreendermos a teorização básica do comunitarismo

clássico. Agora a questão de como se dá o acordo que organiza a comunidade nos será útil para

apreendermos o que podemos chamar de comunitarismo moderno. Assim, vamos partir para o

estudo do pensamento de Michael Walzer, mais especificamente um estudo sobre o curso que

Walzer ministrou em Harvard, e que em 1983 se transformou no livro As Esferas da Justiça

(1997).

14 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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O livro assim que publicado foi visto como uma poderosa defesa da igualdade política e de uma

sociedade livre da dominação, inclusive de uma dominação que o autor enxergava ser possível: a

dominação exercida por alguma noção de um bem social específico.

3.2) Justiça distributiva:

Para Michael Walzer não existe a possibilidade de que indivíduos que se encontrem fora

de uma relação comunitária possam criar uma realidade que comporte a justiça social, pois a

idéia de justiça está condicionado à maneira pela qual a comunidade define seus bens e, segundo

Walzer, não há bens que não possam ser definidos como sociais, pois todos são bens resultantes

de um processo cultural, em que a comunidade lhes conferiu valor. Nas palavras do autor de As

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Esferas da Justiça:

Todos os bens que a justiça distributiva considera são bens sociais. Não são e nem devem ser valorados pelas suas particularidades. Alguns objetos domésticos são apreciados por razões particulares ou sentimentais, mas apenas em culturas onde o sentimento se ligue a tais objetos. Um belo dia de sol, o aroma da grama recém cortada, a emoção diante de uma vista da cidade: são bens que possuem valor de acordo com as idéias da pessoa, estão, portanto, sujeitos a um processo mais amplo de concepção e

criação (WALZER, 1997, p.21, tradução nossa)15

Até os bens básicos são valorados de acordo com a comunidade, ou seja, não deixam de

ser culturais também:

Não existe um só conjunto de bens básicos ou primários concebidos para todos os campos morais e materiais – o bem, um conjunto assim teria que ser concebido em termos tão abstratos, que seria de utilidade restrita raciocinar sobre as formas particulares de distribuição – Inclusive a gama das necessidades, se pensarmos nas de caráter físico e as de caráter moral, é muito ampla e as hierarquizações são diversas. Um mesmo bem necessário, e um que sempre como a comida, por exemplo, em diversos locais possuem significados díspares. (WALZER, 1997, p.22, tradução

nossa)16

Para Walzer vivemos em uma comunidade distributiva, e nos encontramos em sociedade

para compartilhar e produzir bens através de uma divisão do trabalho, porém, existem várias

formas de se distribuir os bens, ou seja, existem diferentes formas de comunidades que

estabelecem diferentes formas de distribuição social17. Walzer observa que é necessário que se

estude os bens e suas formas de distribuição em suas várias formas associativas ao longo da

15 Todos los bienes que la justicia distributiva considera son bienes sociales. No son ni han de ser valorados por sus peculiaridades exclusivas. No stoy seguro de que haya otra clase de bienes, pero me propongo dejar abierto la cuestión. Algunos objetos domésticos son apreciados por razones privadas o sentimentales, pero sólo en culturas donde el sentimiento generalmente se añade a tales objetos. Una hermosa puesta de sol, el aroma del heno recién cortado, la emoción por una vista urbana: se trata de bienes valorados de acuerdo con las ideas de sus inventores, sino que están sujetos a un proceso más amplio de concepción y creación 16 No existe un solo conjunto de bienes básicos o primarios concebile para todos los mundos morales y materiales – o bien, un conjunto así tendría que ser concebido em términos tan abstractos, que sería de época utilidad al reflexionar sobre las particulares formas de la distribución – Incluso la gama de las necesidades, si tomadas en cuenta las de carácter físico y las de carácter moral, es muy amplia y las jerarquizaciones son muy diversas. Un mismo bien necesario, y uno que siempre es necesario la comida por ejemplo, conllevan significados diversos en diversos lugares 17 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.23.

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história, para, assim, compreendermos uma nova idéia de comunitarismo18; tendo em conta que a

história mostra uma imensa variedade de acordos e ideologias que sustentaram alguma forma de

justiça distributiva.

Se os bens sociais não são uniformes nas diferentes comunidades, a própria idéia de

justiça distributiva é plural, não é um princípio uniforme que pode ser aplicado às várias

comunidades. O sistema de trocas que define uma comunidade possui um caráter histórico, o

modo como se distribui os bens sociais muda com o tempo. Nas palavras de Walzer:

Os significados sociais possuem caráter histórico, como as distribuições. Estas sejam justas ou injustas, mudam através do tempo. Ainda mais que certos bens básicos possuem o que poderíamos chamar de estruturas normativas particulares, reiteradas através do tempo e do espaço – embora não através de todo tempo e de todo espaço.

(WALZER, 1997, p.23, tradução nossa)19

Para explicar como é complicado determinar o que seja o bem social de uma comunidade,

Walzer trabalha a idéia de “dominação” e “monopólio”. Segundo o autor certos critérios podem

(e historicamente pode-se comprovar) influenciar esferas sociais distintas das que naturalmente

tal critério estaria inserido em sua dinâmica particular20, um exemplo é o “dinheiro” que pode

influenciar decisões no mundo acadêmico ou no campo político. O monopólio seria a tentativa de

se explorar a dominação de certos critérios, erigindo um bem geral e o mantendo à base da força

na comunidade. Diz o autor:

Sem detrimento de toda complexidade de suas configurações distributivas, a maioria das sociedades se organiza de acordo com o que poderíamos chamar de uma versão social da norma fundamental: um bem ou um conjunto de bens é dominante e determina valores em todas as esferas da distribuição. Tal bem ou conjunto de bens é geralmente monopolizado, e seu valor mantido pela força pela coesão de quem os possui. Chamo

18 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.26. 19 Los significados sociales posuem carácter histórico, al igual que las distribuciones. Éstas, justas e injustas, cambian a través Del tiempo. Aún más, ciertos bienes básicos posuem lo que podríamos considerar estructuras normativas características, reiteradas a través del tiempo y del espacio – aunque no a través de todo tiempo ni de todo espacio. 20 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.26.

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de bem dominante quando os indivíduos que os possuem, pelo efeito de possuí-los, podem dispor de outra gama de bens. É monopolizado quando um só homem ou uma só mulher, um monarca no reino do valor – ou um grupo de homens e mulheres, conseguem oligarquizar de forma eficaz contra qualquer outro rival. (WALZER, 1997,

p.24, tradução nossa)21

Para Walzer a normalidade social e a justiça distributiva só podem ser garantidas se

observarmos os critérios distintos de cada comunidade autônoma, ele dá alguns exemplos em sua

obra22: na esfera da educação o critério que deve ser observado é o mérito, na esfera da saúde

pública a necessidade e na esfera política, o critério a ser observado seria o consentimento. Como

ele diz, a inobservância dessa pluralidade de critérios leva à tirania e à existência de monarcas23.

Walzer procura mostrar que não há como erigir um critério geral que serviria de base para a

justiça dentro de uma comunidade. Ele discute alguns exemplos, alguns critérios que poderíamos

pensar como critérios gerais, mas nenhum possui esse potencial de generalidade24. Walzer analisa

por exemplo o critério de necessidade e de mérito. A questão da necessidade seria um critério

aceitável para dar garantia a alguns bens sociais, mas o autor esclarece que não há como

assegurar poder político invocando o critério da necessidade25, também não há como distribuir

honrarias, reputação e fama, por exemplo, com base na “necessidade”.

Quanto ao critério do “mérito”, Walzer diz que uma sociedade meritocrática traria mais

problemas do que soluções26, existiriam campos em que o mérito não se aplica, como é o caso do

amor e da dinâmica do afeto entre os seres, é o que explica Walzer:

21 Sin detrimento de toda la complejidad de sus configuraciones distributivas, la mayoria de las sociedades se organizan de acuerdo con lo que podríamos considerar una versión social de la norma fundamental: un bien o un conjunto de bienes es dominante y determinante de valor en todas las esferas de la distribución. Tal bien o conjunto de bienes es comúnmente monopolizado, y su valor mantenido por la fuerza ya la cohesión de quienes lo poseen. Llamo a un bien dominante si los individuos que lo poseen, por el hecho de poseerlo, pueden disponer de otra amplia gama de bienes. Es monopolizado cuando un solo hombre o una sola mujer, un monarca en el reino del valor – o un grupo de hombres y mujeres, unos oligarcas-lo acaparan eficazmente ante cualquier otro rival. 22 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.237. 23 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.24. 24 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.236. 25 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.238. 26 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.238.

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Geralmente se pensa que os laços de parentesco e os relacionamentos afetivos constituem um domínio que está além do alcance da justiça distributiva. Se os julgarmos como outras categorias, o bem nos ensinará que não pode ser objeto de juízo algum. Os indivíduos amam da melhor forma que podem e seus sentimentos não podem

ser redistribuídos. (WALZER, 1997, p.238, tradução nossa)27

Não existiria, também, um órgão capaz de unificar em si a capacidade de distribuir e

julgar a questão do mérito na sociedade, o que inviabilizaria a justiça distributiva. São critérios

insuficientes, portanto, para poderem ser generalizados. Como diz Walzer:

Na distribuição da maioria dos bens sociais, o merecimento desempenha um pequeno papel. Inclusive no caso do cargo e da educação, possui um papel mínimo e indireto. [...] Contudo, o merecimento não é descartado porque é um adjetivo que não se aplique adequadamente a homens e mulheres individuais: pode e é. Os partidários da igualdade muitas vezes se sentem obrigados a negar a realidade do merecimento. (WALZER,

1997, p.271, tradução nossa)28

27 Comúnmente se piensa que los lazos de parentesco y las relaciones sexuales constituyen un dominio más allá del alcance de la justicia distributiva. Se les juzga con otras categorías, o bien se nos enseña que no pueden ser objeto de juicio alguno. Los individuos aman lo mejor que pueden y sus sentimientos no pueden ser redistribuidos 28 En la distribución de la mayoría de los bienes sociales, el merecimiento desempeña un pequeño papel. Incluso en el caso del cargo y la educación, figura sólo mínima e indirectamente. [...] Sin embargo, el merecimiento no es descartado debido a que ele adjetivo merecedor no pueda aplicarse o no se aplique adecuadamente a hombres y mujeres individuales: puede y la hace. Los partidarios de la igualdad a menudo se han sentido obligados a negar la realidad del merecimiento.

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3.3) As esferas da justiça:

Por não podermos eleger um critério como geral de distribuição, Walzer propõe em sua

obra a idéia de esferas de justiça, que seriam campos em que existiriam critérios específicos que

determinariam o “justo”, sendo que o “injusto” seria a intromissão dos critérios de outras esferas.

Assim, o autor crê que existem várias esferas que possuem seus critérios específicos, que não

podem ser vistas como critérios gerais, Walzer estabelece várias esferas29:

-esfera do dinheiro

-esfera da profissão

-esfera do trabalho

-esfera da educação

-esfera do ócio

-esfera do amor e do afeto

-esfera do sagrado

-esfera do poder político

A visão comunitarista de Walzer coloca essa variedade de esferas, que é resultado da

variedade de critérios e que, por sua vez, implica na incapacidade de se determinar um bem social

geral. Desta forma, como os critérios para a distribuição dos bens sociais, os próprios bens, são

relativos e únicos de cada comunidade histórica. Walzer cita como exemplo, a própria polis

grega30 onde a provisão comum era um fator assegurado pela comunidade, porém quando os bens

considerados os mais necessários mudaram de foco, deixando de assim serem vistos pela

comunidade, foram substituídos por outros. Conclui Walzer que a justiça também é um fator

29 WALZER. Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.67. 30 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.95.

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relativo, ligado diretamente aos significados sociais, uma construção do engenho humano e, por

isso, está circunscrita ás comunidades concretas que compartilham um mesmo aparato cultural.

Nas palavras de Walzer:

A justiça é relativa aos significados sociais. Desta forma, a relatividade da justiça de desprende da clássica definição não-relativa: dar a cada qual o seu devido, como minha proposta: distribuir os bens por razões “internas”. Trata-se de definições formais que requerem um complemento histórico, como me empenhei em mostrar. Não podemos dizer que isso deve ser dado a tal ou qual pessoa até que saibamos como estas pessoas se relacionam entre si por meio das coisas que fazem e distribuem; o adjetivo justo não determina a vida essencial das sociedades que descreve, somente a modifica. Há um número infinito de vidas possíveis, configuradas por um número infinito de culturas, religiões, visões políticas, condições geográficas, etc., possíveis. Uma determinada sociedade é justa se sua vida essencial é vivida de certa maneira fiel às noções

compartilhadas de seus membros. (WALZER, 1997, p.322, tradução nossa)31

No pensamento de Walzer vemos que o indivíduo desde o seu nascimento já se vê

inserido em uma dinâmica social, já está inserido em uma comunidade ao nascer, por mais que

pareça óbvio tal idéia, ela possui as implicações que Walzer procura alertar.

Voltando ao texto de Galuppo32 e, à questão colocada sobre a natureza do pacto social,

podemos ver que no comunitarismo de Walzer os pactos ou acordos sociais são únicos e

diferenciados em cada sociedade, pois cada comunidade possui suas tradições e seu caráter

histórico33. O autor vislumbra uma multiplicidade de bens sociais, bens estes que pertencem a um

sistema de significações compartilhado pela comunidade.

31 La justicia es relativa a los significados sociales. Por cierto, la relatividad de la justicia se desprende de la clásica definición no-relativa: dar a cada quién lo suyo, como de mi propuesta: distribuir los bienes por razones “internas”. Se trata de definiciones formales que requieren un complemento histórico, como me he empeñado en mostrar. No podemos decir que esto se le debe a tal o a cual persona hasta que sepamos cómo se relacionan estas personas entre sí por medio de las cosas que hacen y distribuyen; el adjetivo justo no determina la vida esencial de las sociedades que describe, tan sólo la modifica. Hay un número infinito de vidas posibles, configuradas por un número infinito de culturas, religiones, lineamentos políticos, condiciones geográficas, etc., posibles. Una sociedad determina es justa si su vida esencial es vivida de cierta manera fiel a las nociones compartidas de sus miembros. 32 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 33 WALZER. Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.25.

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O comunitarismo de Walzer implica, portanto, em um conceito de pluralismo. As várias

esferas de justiça é que determinarão, especificamente para aquela comunidade em questão, o que

é o bem (sendo que a sociedade moderna é plural): “há várias formas de se realizar a vida boa”34

(GALUPPO, 2003)

34 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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4- ALASDAIR MACINTYRE

Começamos este estudo apresentando a matriz comunitarista em sua vertente aristotélica

e, finalizamos essa parte, voltando aos fundamentos do pensamento de Aristóteles, através de

Alasdair MacIntyre. Filósofo britânico, nascido na Escócia e educado na Inglaterra. Buscaremos

apreender os princípios básicos de seu comunitarismo, principalmente, com base em sua obra

Depois da Virtude (2001).

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4.1) Virtude:

Para o comunitarismo contemporâneo o estudo que MacIntyre desenvolve sobre os

conceitos de “virtude” e “tradição” são fundamentais. Idéia central do comunitarismo

contemporâneo é a perspectiva de MacIntyre de que é falsa a idéia de um sujeito individualizado

no campo moral e capaz, portanto, de dar sentido à sua existência independente do outro e do

processo histórico.

Para o autor de Depois da Virtude, toda tentativa moderna de enxergar a vida humana

como um bloco unitário capaz de proporcionar virtudes acaba fracassando, devido a dois fatores,

um social e outro filosófico35. O obstáculo social encontra-se na própria idéia de “modernidade”,

que subdivide os papéis sociais do indivíduo em categorias múltiplas e estanques36, “portanto, o

trabalho fica afastado do lazer, a vida privada afastada da pública, a vida empresarial afastada da

pessoal” (MACINTYRE, 2001, p.343). Desta forma, socialmente vivemos fragmentados, e é

impossível realizar a virtude em um fragmento social. O obstáculo filosófico que MacIntyre

apresenta se divide, no que ele chama de duas tendências: a primeira encontrada na filosofia

analítica, uma forma atomista de analisar a atividade humana e outra encontrada no

existencialismo que desvincula o ser dos seus papéis sociais37, que retira o conteúdo e a

significação desses papéis. Nesta perspectiva MacIntyre discute e apresenta o pensamento de

Jean-Paul Sartre em sua obra A Náusea (1983). Para Sartre os atos humanos são desprovidos de

sentido, é o que descobre a personagem principal de A Náusea, Roquentim, este percebe que não

adianta apresentar a vida dos ser humanos como uma narrativa, parra assim tentar lhe oferecer

inteligibilidade, não existirão histórias verdadeiras, pois “a vida humana consiste em ações que

35 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude, 2001, p.342. 36 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.342. 37 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.344.

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não levam a lugar nenhum” (MacIntyre, 2001, p.360). Para Roquentim os atos humanos são

ininteligíveis, e a descoberta disto é que causa a náusea na personagem38. Um nauseante existir

sem sentido. Roquentim não sente apenas náusea, mas um desespero ao constatar que as ações

humanas não possuem sentido e o mundo não possui razão de ser39. Como podemos verificar

nessa passagem:

Sequer se podia perguntar de onde saía aquilo, tudo aquilo, nem como era possível que existisse um mundo ao invés de coisa alguma. Aquilo não tinha sentido, o mundo estava presente em toda parte, à frente, atrás. Antes dele não houvera nada. Nada. Não houvera um momento em que ele não pudesse existir. Era isso que me irritava: obviamente não havia nenhuma razão para que aquela lava corrediça existisse. Mas não era possível que não existisse. Isso era impossível: para imaginar o nada, era preciso estar já ali, em pleno mundo, vivo e de olhos bem abertos. (SARTRE, 1983, p.198)

O que vemos nessa passagem é o obstáculo filosófico que MacIntyre coloca. Ao olhar

para a raiz de um castanheiro, Roquentim foi repentinamente tomado por aquilo que significa

existir40, a reação da personagem de Sartre não é de admiração, sequer de espanto, mas de náusea

diante da opacidade da simples existência. Como bem diz Hannah Arendt, “é esse estar-aí

completamente sem sentido que faz o herói ficar nauseado” (ARENDT, 1991, p.112).

Ao analisar a obra de Sartre, MacIntyre ensina que ao se enxergar o eu separado de seus

papéis sociais ele perde, de fato, sua inteligibilidade41. Não existiria uma ação humana

desvinculada da história de vida do ser, do contrário a realidade (o mundo como coloca Sartre)

não teria mesmo sentido. MacIntyre introduz, portanto, a questão da narrativa42.

38 GABRIEL, Leo. Filosofia de la existencia: Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e Sartre. 1974, p.310. 39 GABRIEL, Leo. Filosofia de la existencia: Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e Sartre. 1974, p.310. 40 ARENDT, Hannah. A vida do espírito: O pensar, o querer, o julgar. 1991, p.111. 41 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.346. 42 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.346.

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4.2) Narrativa e tradição:

A idéia de narrativa é o fator que confere inteligibilidade a um ato e, por conseqüência, à

vida do indivíduo, só compreendemos uma história apreendendo sua narrativa, seu contexto;

MacIntyre chama esse “contexto narrativo” de cenário. Como diz Galuppo43:

A idéia de narrativa é essencial para atribuirmos sentido a um ato (e a vida, seja a nossa, seja alheia: sempre vemos a vida como um história narrada). Imagine-se a situação de alguém que ouve, pela metade, uma conversa (ou assiste a um filme): a capacidade de compreende-la dependerá da capacidade de inseri-la em uma narrativa (ou, como se diz popularmente, no contexto). (GALUPPO, 2005)

43 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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Não é possível caracterizar o comportamento humano sem nos atermos às intenções, e estas não

podem ser compreendidas desvinculadas dos cenários.

Uso aqui a palavra “cenário” como termo relativamente abrangente. O cenário social pode ser uma instituição, pode ser o que chamo de prática, ou um meio de algum tipo humano. Mas é fundamental idéia de cenário, conforme o meu entendimento, que o cenário tenha uma história, uma história dentro da qual as histórias de cada gente não sejam apenas, mas tenham de ser, situadas simplesmente porque, sem o cenário e suas mudanças com o passar do tempo, a história do agente e suas mudanças com o tempo serão ininteligíveis (MACINTYRE, 2001, p.347)

A vida do ser é uma narrativa inserida em um contexto, em um cenário e, só

compreendemos essa vida, só conferimos inteligibilidade a essa vida, na medida em que

compreendemos a narrativa e compreendemos a vida do outro. Mais uma vez a alteridade, esse

fator profundamente comunitarista tem um papel essencial na dinâmica social.

Como podemos conferir essa inteligibilidade à nossa vida e, desta forma, escapar da

náusea que acometeu a personagem de Sartre44? Para MacIntyre é através da tradição que

podemos fazer isso45. A tradição fornece os primeiros referenciais para a construção do eu, sem

ela o “eu” estaria condenado realmente como romanceou Sartre, a tradição constrói o “eu”

através de expectativas de vida e crenças compartilhadas46. Para MacIntyre o homem é um

animal contador de histórias e ao mesmo tempo, personagem de várias histórias, é a tradição que

vislumbra e constrói no sujeito o seu “eu social”. Como diz MacIntyre:

É ouvindo histórias sobre madrastas malvadas, crianças perdidas, reis bons, filhos caçulas que não recebem herança, mas precisam vencer na vida e filhos mais velhos que desperdiçam sua herança numa vida desregrada e vão para o exílio viver com porcos, que as crianças aprendem ou aprendem equivocadamente o que é um filho e o que é um pai, qual pode ser o elenco da peça dentro da qual nasceram e como é o mundo lá fora.

44 SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 1983, p.198. 45 MACINTYRE. Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.365. 46 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.366.

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Privar as crianças dessas histórias é deixa-las sem script, ansiosas, hesitantes tanto nas ações quanto nas palavras. Por conseguinte, não há como nos oferecer entendimento de sociedade nenhuma, inclusive da nossa, a não ser por intermédio do estoque de histórias que constituem seus primeiros recursos dramáticos. (MACINTYRE, 2001, p.364)

Esse referencial de crenças e histórias possui um papel fundamental na educação do

indivíduo para as virtudes, pois, “da identidade do eu, que se desenvolve no contexto de uma

tradição, emerge o conceito de virtude47” (GALUPPO, 2005). O Indivíduo saberá como alcançar

o bem em uma comunidade através das virtudes.

Com essa idéia de virtude ligada ao conceito de tradição é que MacIntyre explica que a

unidade da vida individual é a unidade da narrativa, da própria história individual inserida em

uma tradição, sendo as virtudes, portanto, as disposições que sustentam e capacitam o indivíduo

para atingir os bens, e através dessa busca pelo bem, o indivíduo se desenvolve cada vez mais na

capacidade de conhecer o bem.

Voltando à questão determinante pela qual demos início a esta teorização, a saber, como o

comunitarismo vislumbra o acordo que organiza a comunidade, podemos ver que na teorização

comunitarista de MacIntyre esse acordo é fruto da própria tradição, não há como isolar o eu da

comunidade.

[...] a história da minha está sempre contida na história das comunidades que deram origem à minha identidade. Nasci com um passado, e tentar me isolar desse passado, à maneira individualista, é deformar meus relacionamentos presentes. A posse de uma identidade histórica e a posse de uma identidade social coincidem. (MACINTYRE, 2001, p.371)

47 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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Como diz o autor no capítulo A Justiça como uma virtude: concepções em mudança48,

não parece possível partir de um indivíduo isolado para construir princípios éticos e modelos de

virtude sólidos, devemos então, definir um indivíduo não como um ser livre para construir sua

vida, mas como um ser enraizado em um contexto histórico que dá sentido e sua vida.

48 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001.

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A MATRIZ LIBERAL 1- LINHAS GERAIS: Diferentemente do que vimos na matriz comunitarista, com base nos autores

estudados, no liberalismo as questões sobre a liberdade e igualdade são compreendidas de formas distintas. Na matriz liberal o justo está sobreposto ao bem. Devemos compreender esse antagonismo teórico, apresentando em linhas gerais, primeiramente, a história da formação do liberalismo.

O liberalismo é um produto moderno, resultado de vários fatores históricos, uma nova forma de pensar, um conjunto de formulações teóricas resultantes de processos históricos de ruptura. Quando falamos de ruptura, pensamos em fatos históricos que fizeram emergir novas teorias sociais. Como faz Galuppo49, podemos também apreender que existem três grandes processos de ruptura para o advento do liberalismo. São eles: a Revolução Científica, as Grandes Navegações e a Reforma Protestante. Esses três fatores constroem uma nova realidade para o indivíduo, fornecendo um campo fértil para o surgimento das idéias liberais.

A revolução no campo científico pode ser vislumbrada a partir do século XVI. Muitas teorias até esse ponto histórico que eram aceitas e não discutidas, passam por um processo de questionamento e transformação. Os trabalhos de Copérnico, Galileu e Kepler revolucionam a astronomia; os avanços teóricos de Fermat e Descartes revolucionam a matemática, e os de Newton redimensionam toda a física. Porém o mais significativo é que nesse período estabeleceram-se as bases do método científico moderno. Como diz John Henry: “a partir dos estudos de Descartes e de Locke, o empirismo e a sistematização passaram a ser considerados os pilares da ciência moderna.” (HENRY, 1998, p.24)

Podemos constatar que o Renascimento traz um novo impulso para as pesquisas científicas, baseado justamente no uso da razão e na experimentação, fatores que levam Galileu Galilei a contestar o geocentrismo de Ptolomeu e defender o heliocentrismo de Copérnico, “e suas observações lhe permitiram verificar que a terra girava em torno do Sol, confirmando o heliocentrismo.” (HENRY, 1998, p.57), com isto deixamos de estar inseridos no centro do universo; ao ter uma nova visão cosmológica, a antiga metafísica entra em colapso justamente com a ética aristotélica (base do comunistarismo), pois “não somente estamos fora do centro do universo, como também os conceitos aristotélicos em

49 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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que o modelo ptolomaico se baseia era (cientificamente) incorreto50” (GALLUPO, 2003).

Já as grandes navegações tiveram seu início no século XV, quando os Europeus começam a desenvolver o comércio entre a Europa e o Oriente. Desde a Antiguidade a história do Ocidente esteve restrita à navegação no Mediterrâneo. É nesse período que ocorre a exploração do Atlântico, desmoronando a idéia de que a civilização européia seria o único referencial da humanidade; a Europa deixa de ser o centro cultural, o que coloca em xeque a segunda grande certeza clássica.

É com a Reforma Protestante que acontece a ruptura da terceira grande certeza, a certeza da autoridade religiosa. Devemos compreender que a base sobre a qual se construiu o liberalismo foi a reivindicação de direitos, sejam eles religiosos, políticos ou econômicos. A cultura moderna pode ser associada a um irromper de direitos individuais; a liberdade está intimamente relacionada com a gênese da civilização moderna e, conseqüentemente, com a matriz liberal. E foi Lutero quem abriu caminho para o individualismo no campo religioso e que, desta forma, se espalhou pelo campo social e político. O tema protestante da inviolabilidade de consciência foi uma contribuição fortíssima e decisiva para a teoria liberal. Mas como diz Galuppo em seu texto51, o homem não é capaz de construir sua história sem referenciais para a sua conduta, “nós, individual ou coletivamente, precisamos de centros que orientem a nossa ação”( GALUPPO, 2003), precisamos de algo para colocar no lugar das certezas que a Reforma, as Grandes Navegações e a Revolução Cientifica derrubaram. E esse algo passa a ser o próprio indivíduo, o próprio sujeito é convertido, na modernidade liberal, em seu próprio referencial, o centro é o indivíduo.

O liberalismo desconstrói a certeza aristotélica de um bem geral capaz de fundamentar a sociedade. Com o subjetivismo liberal não se vê mais a existência do “todo social” como um fator natural, o homem passa a ser visto como anterior à sociedade. Contrariando o comunitarismo, o justo passa a ter prioridade sobre o bem; se o homem é a unidade originária, devemos encontrar algo que, a partir do sujeito, possa construir a junção social. Esse algo será o contrato, que veremos teorizado, primeiramente, na filosofia liberal de Locke.

50 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 51 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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2- JOHN LOCKE 2.1) Base filosófica: Contrário a toda teorização comunitarista-aristotélica de que a cidade é um

fato natural e, portanto, anterior ao indivíduo, é que nasce o liberalismo. Hobbes foi o primeiro filósofo influente a romper com a idéia de ordem natural em sua obra Leviatã, ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil (1988), construindo sua teorização partindo do indivíduo e enxergando na comunidade uma coleção de indivíduos52. Locke seguiria o princípio dessas idéias.

Para se compreender o fundamento do liberalismo de Locke é importante verificar quais foram as raízes filosóficas que propiciaram um afastamento da teorização do comunitarismo-aristotélico. As grandes influências filosóficas que permitiram o surgimento de um pensamento liberal foram a filosofia de Descartes e o empirismo.

O empirismo vê na experiência o critério que garante a veracidade de toda afirmação, a base é a defesa de uma forma de saber que deriva da experiência sensível e dos dados colhidos na experiência, ou seja, todo conhecimento é resultado das percepções sensíveis que se adquire do plano real. Os empiristas não acreditavam que fosse possível adquirir conhecimento de uma forma inata, sem base experimental. Com o empirismo há uma transferência de bases do saber, o indivíduo e suas sensações ou impressões passam a ser o núcleo do conhecimento. É o subjetivismo na teoria do conhecimento, uma idéia central para o surgimento do liberalismo e sua ênfase no indivíduo.

Já em Descartes é que encontramos a formulação completa do “conceito moderno de indivíduo”, um fator de influencia básica para o surgimento do pensamento liberal, pois “na gênese do liberalismo está a idéia moderna de Sujeito e de Indivíduo.53” (GALUPPO, 2003b). A filosofia de Descartes está ligada às rupturas que vimos anteriormente: a Reforma de Lutero, as Grandes Navegações e a Revolução Científica. Podemos aliar a essas grandes transformações na forma do pensar, o movimento renascentista, que na arte possui o mesmo potencial de transformação, pois, ao retomar os valores da Antiguidade clássica, dá ênfase a uma cultura leiga, secular e com inspiração pagã frente à arte sacra que predominava na Idade Média. O pensamento de Descartes, portanto, é fruto dessa modernidade que rompe com a tradição, que enfrenta a autoridade da fé com base na razão humana e, enfrenta as instituições seculares enaltecendo a idéia do indivíduo. Descartes passa a contestar a autoridade do conhecimento que a tradição

52 HOBBES, Thomas. Leviatã ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1988, p.57. 53 GALUPPO, Marcelo. O que são Direitos fundamentais?. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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defende54, tendo um o novo “saber”, advindo da revolução científica, principalmente com Copérnico, Kepler e Galileu. A dúvida do indivíduo frente ao real passa a ser a base do conhecimento científico55 e, não mais, a forma tradicional de se adquirir conhecimento. Nas palavras de Descartes:

Desde a infância nutri-me das letras, e, por me haver persuadido de que por meio delas se podia adquirir um conhecimento claro e seguro de tudo o que é útil à vida, sentia um imenso desejo de apreendê-los. Mas, logo que terminei todos esses anos de estudos (ao cabo dos quais se costuma ser recebido na classe dos doutos), mudei inteiramente de opinião. Achava-me com tantas dúvidas e indecisões, que me parecia não ter obtido outro proveito, ao procurar instruir-me, senão o de ter revelado cada vez mais a minha ignorância. E, no entanto, eu estudava numa das mais célebres escolas da Europa, onde pensava existir homens sábios, se é que existiam em algum lugar da Terra. (DESCARTES, Meditações Metafísicas, 1985, 1ª Parte, p.25)

A expressão “penso, logo existo”56 é, talvez, a mais difundida na história da

filosofia, essa expressão é a base do fundamento pelo qual Descartes constrói sua teoria do conhecimento. Nas Meditações Metafísicas (2000), o filósofo procura provar a existência da alma e sua imortalidade, e a existência de Deus, além, da possibilidade do saber científico. O ceticismo nos diz que é sempre possível duvidar de um princípio, Descartes tentará nas Meditações Metafísicas refutar o pensamento cético e abrir espaço para a possibilidade de conhecimento. Para empreender essa tarefa, segundo Galuppo57, Descartes:

[...] adota um método segundo o qual é preciso evitar todo procedimento que, alguma vez, o conduziu a erro, porque não possuímos um teste ou critério para saber se, em um dado contexto, um mecanismo, falível em algumas circunstâncias, falhará ou não. Este é o fundamento da dúvida metódica de Descartes. Assim como algumas vezes os sentidos, a imaginação, e mesmo, em alguns casos, o pensamento o conduziram ao erro, é preciso evitar tais mecanismos se queremos provar algo. Descartes deve duvidar de que estejamos acordados, da existência do mundo sensível, dos entes matemáticos, e mesmo de um Deus que nos proveu da capacidade de conhecê-lo. No entanto, há algo de que Descartes não pode duvidar: que ele duvida, e que, portanto, pensa, e que, enquanto duvida, enquanto pensa, ele precisa existir. (GALUPPO, 2003b)

Para Descartes só podemos ter certeza da existência da substância pensante,

só sabemos que existe uma coisa que pensa (res cogitas) (nas meditações seguintes, Descartes provará, também, que podemos saber que há corpos e que há um Deus). Existe o indivíduo e é através dele que poderemos adquirir conhecimento, mesmo que seja através do método da dúvida. Esse individualismo passa a ser a base central da teoria do conhecimento na modernidade e, conseqüentemente, será a base da concepção da existência de direitos naturais. Esta base será, também, o caminho pelo qual o pensamento de Locke será traçado. 54 DESCARTES, René. Discurso do método; meditações ; objeções e respostas ; as paixões da alma ; cartas. 1985. 55 HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência. 1998, p. 37. 56 DESCARTES, René. Meditações metafísicas. 2000, p.64. 57 GALUPPO, Marcelo. O que são Direitos fundamentais?. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005..

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2.2) Contraponto político: Para compreendermos o pensamento liberal de Locke, devemos apreender,

primeiramente, a filosofia de Hobbes, pois seu pensamento possui uma importância sistemática para Locke e, através das divergências conceituais, clareia muito o pensamento deste.

Na verdade, a obra Dois Tratados Sobre o Governo de Locke foi escrita para refutar o seu contemporâneo Robert Filmer, autor de Patriarca, ou sobre o poder natural dos reis, como coloca Peter Laslett na introdução da edição brasileira de Dois Tratados Sobre o Governo (1998), “Filmer influenciou Locke à maneira como todos os homens influenciam aqueles que elegem refutá-los. Foi ele, e não o próprio Locke, e decididamente não Hobbes, quem estabeleceu os termos de sua argumentação.” (1998, p.98). Porém é o pensamento de Hobbes que nos oferece, através da contraposição de idéias, a apreensão do pensamento liberal em Locke.

Hobbes possui uma concepção negativa e pessimista da natureza humana, ele crê que o homem é naturalmente agressivo e propício à guerra contra seu semelhante58, esta seria, precisamente, a concepção do Estado de natureza de Hobbes. O estado natural seria o estado de guerra de todos contra todos, o homem é o pior inimigo do homem e, dominado pelos seus desejos, não se furtaria em destruir o obstáculo humano que aparecesse. Nas palavras de Hobbes no Leviatã:

[...] os homens não tiram prazer algum da companhia um dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer) quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou de subestimação [...]. De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. (HOBBES, 1999, Primeira Parte, Cap.XIII, p.75)

O poder soberano passa a existir para impedir o estado de natureza e, desta

forma, tornar possível a interação entre os sujeitos. Por meio de um contrato social, passa a existir a comunidade59, sendo que os indivíduos nesse contrato abrem mão de parte de seus direitos em favor de um soberano60. Para Hobbes o poder deve ser exercido de forma soberana, só assim ele é, verdadeiramente, eficaz61. Somente um ser que detenha plenos poderes pode simbolizar e efetivar a verdadeira unidade do

58 HOBBES, Thomas. Leviatã ou, matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1999. 59 HOBBES, Thomas. Leviatã ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1999. 60 HOBBES, Thomas. Leviatã ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1999, p.107. 61 HOBBES, Thomas. Leviatã ou, Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. 1999, p.107.

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todo, o filósofo denomina esse “todo soberano” de Leviatã, que é mais do que uma simples reunião de vontades, segundo Hobbes:

[...] é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações. Feito isso, á multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim, civitas. (HOBBES, 1979, Segunda Parte, Cap.XVII, p.105).

É importante destacar que embora Hobbes teorize sobre a necessidade da

existência da comunidade, suas teses são antiaristotélicas e, conseqüentemente, o afastam da matriz comunitarista, como diz Renato Janine Ribeiro62:

Pois bem, Hobbes é consciente da dimensão drástica desta tese radicalmente antiaristotélica. Estamos acostumados a acreditar em nossa natureza social. É justamente porque temos esta ilusão, por certo, que nos tornamos incapazes de criar um mínimo de sociedade: Hobbes lida com tal paradoxo, que mais tarde será retomado por Freud, segundo o qual, se queremos ter sociedade, devemos estar atentos ao que há de anti-social em nossas pulsões (Freud) ou em nossas posturas e estratégias; se quisermos ter amor, devemos ter noção do ódio. Não se constrói a sociedade sobre a base de uma sociabilidade que não existe. Para que a mesma seja construída é preciso funda-la no que efetivamente existe, quer dizer, nem em uma natureza sociável, nem sequer em uma natureza anti-social, mas em uma desconfiança radicalizada e racional. Com certeza, construir a sociedade sobre a base de uma sociabilidade inexistente é pior do que simplesmente não construí-la; pois a inexistência, neste caso, significa que existe a sociabilidade como quimera, como ilusão e, por outro lado, depositar a crença nela é multiplicar os problemas. Caso eu busque construir um edifício sem cimento ou sem tijolos, nem sequer será possível levanta-lo. Nada será construído. Porém, na vida social, se eu construo uma sociedade com auto-engano, potencializo intermináveis novos enganos. (RIBEIRO, 2000, tradução nossa)63

62 RIBEIRO, Renato Janine. Thomas Hobbes o la paz contra el clero. Disponível em <http://www.renatojanine.pro.br/FiloPol/hobbes2.html >. Acesso em: 05 de jan. 2006. 63 Ahora bien, Hobbes es conciente de la dimensión estremecedora de esa tesis radicalmente antiaristotélica. Estamos acostumbrados a creer en nuestra naturaleza sociable. Es justamente porque tenemos esta ilusión, por cierto, que nos tornamos incapaces de generar un mínimo de sociedad: Hobbes lidia con tal paradoja, que más tarde será retomada por Freud, según la cual, si queremos tener sociedad, debemos estar atentos a lo que hay de antisocial en nuestras pulsiones (Freud) o en nuestras posturas y estrategias; si queremos tener amor, debemos tener noción del odio. No se construye la sociedad sobre la base de una sociabilidad que no existe. Para que ella sea erigida es preciso fundarla en lo que efectivamente existe, es decir, ni en una naturaleza sociable, ni siquiera en una naturaleza antisocial, sino en una desconfianza radicalizada y racional. Por cierto, construir la sociedad sobre la base de una sociabilidad inexistente es peor que simplemente no construirla; porque la inexistencia, para el caso, significa que existe la sociabilidad como quimera, como ilusión y, por lo tanto, depositar la creencia en ella es multiplicar los problemas. Si intento construir un edificio sin cemento o sin ladrillos, ni siquiera se podrá levantarlo. No se construiría nada. Pero en la vida social, si construyo una sociedad con autoengaño, engendro una potencia interminable de nuevos engaños.

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2.3) Primeiro Tratado: Diferentemente de Hobbes, podemos verificar uma visão mais complacente

em Locke em relação à natureza humana, ele enxerga um entendimento mútuo entre homens para fundamentar a sociedade64. Locke seguiu o princípio teórico de Hobbes quanto à idéia do contratualismo, mas rechaçou a base política absolutista.

Como foi dito anteriormente, Locke escreve sua obra de cunho liberal para se contrapor às idéias de Robert Filmer (Patriarcha, or the natural power of kings65), a obra em questão é Dois Tratados Sobre o Governo, sendo que o “Segundo Tratado” é o que contêm as idéias mais influentes para a matriz liberal. Robert Filmer buscava justificar o poder absoluto dos reis. Filmer utilizava argumentos contidos nas sagradas escrituras, onde segundo ele, o direito de poder paterno está justificado no Princípio da Herança de paternidade deixada por Deus para Adão, como diz Santilllan Fernandez66. Ficava desta forma definida a relação política na sociedade, ou seja, o patriarca, enquanto herdeiro de Adão, constituía-se no grande governante terreno67. Fazia-se a relação direta entre o céu e a terra, princípio teológico.

No primeiro tratado o autor busca oferecer uma crítica contundente à idéia de poder patriarcal defendida por Filmer, vemos que em Locke a liberdade de uma comunidade era um bem natural, um dom divino oferecido aos indivíduos. É o que podemos ilustrar, de forma completa e clara, com essa passagem do primeiro tratado:

[...] se a criação, que nada outorgou senão uma existência, não fez de Adão príncipe de sua descendência, se Adão, em Gn 1,28, não foi constituído senhor da humanidade nem lhe foi dado nenhum domínio privado com a exclusão de seus filhos, mas tão-somente um direito e um poder sobre a terra e as criaturas inferiores em comum com os filhos dos homens; se tampouco em Gn 3,16 Deus conferiu a Adão algum poder político sobre sua mulher e filhos, mas apenas sujeitou Eva a Adão como castigo ou predisse a submissão do sexo frágil na administração dos interesses comuns da família, sem que conferisse com isso a Adão, como esposo, o poder de vida e de morte que necessariamente pertence ao magistrado; se, por gerarem os filhos, não adquirem os pais semelhante poder sobre eles; e se o preceito “Honra a teu pai e tua mãe” não confere tal poder, mas apenas impõe um respeito devido em igual medida a todos os pais, quer sejam estes súditos ou não, assim á mãe como ao pai; se tudo isso é como tal, segundo julgo ser evidente por tudo quanto foi dito, o homem dispõe de uma liberdade natural; [...] pois todos aqueles que compartilham a mesma natureza comum, as mesmas faculdades e poderes, são iguais por natureza e devem participar dos mesmos direitos e privilégios comuns. (LOCKE, 1998, Livro I, Cap.VI, p.271).

64.LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, p.187. 65 FILMER, Robert. “Patriarcha” and other writings. 1991. 66 SANTILLAN FERNANDEZ, José F. Locke y Kant: ensayos de filosofia política. 1992, p.35. 67 SANTILLAN FERNANDEZ, José F. Locke y Kant: ensayos de filosofia política. 1992, p.35.

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Para Locke o poder monárquico não era um soberano todo poderoso, cujo poder emanava de forma patriarcal, era um poder apenas necessário e não um poder natural68, existia para a proteção das liberdades dos cidadãos69, essas liberdades individuais eram, sim, naturais70 e, mais do isso, eram um presente de Deus.

68 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, p.195. 69 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, p.195. 70 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, p.196.

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2.4) Segundo Tratado: Na teorização de Locke os indivíduos procuram construir uma garantia para

si, uma garantia que possa manter a liberdade individual, essa garantia é constituída através da sociedade. O contrato social em Locke é idealizado para construir uma sociedade garantidora dos direitos naturais do homem71. O homem se encontra em um estado de natureza onde todos são livres e iguais72, é o Estado em que, segundo Locke:

[...] todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas de modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir licença ou depender da vontade de qualquer outro homem. Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer. (LOCKE, 1998, Livro II, Cap.I, p.379)

Locke faz uma ressalva importante em sua teorização acerca do estado de natureza, que, embora, seja um estado de plena liberdade, esta não se confunde com permissividade, o indivíduo no estado de natureza tem que respeitar os direitos naturais do outro, sob pena de sofrer punição de qualquer outro homem. Em suas palavras:

Mas, embora seja esse, um estado de liberdade, não é um estado de licenciosidade; embora o homem nesse estado tenha uma liberdade incontrolável para dispor de sua pessoa ou posses, não tem liberdade para destruir-se ou a qualquer criatura em sua posse, a menos que um uso mais nobre que a sua mera conservação desta o exija. O estado de natureza, tem para governá-lo uma lei da natureza, que a todos obriga; e a razão, em que a lei consiste, ensina a todos aqueles que a consultem que, sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria prejudicar a outrem em sua vida. (LOCKE, 1998, Livro II, cap.II, p.384)

Sendo possuidor de direitos, tendo no estado de natureza uma lei natural que deve ser obrigatória para todos e a razão como guia universal, podemos fazer como ensina Galuppo73, e perguntar: “Por que o homem prefere sair desse Estado de Natureza e criar uma sociedade, ou um Estado, que necessariamente restringe e limita sua liberdade natural?” (GALUPPO, 2003b). Podemos verificar que o motivo encontrado na teorização de Locke é a “incerteza”. Os homens entram em um contrato gerador de uma sociedade e de um Estado, porque não possuem um modo de conviver com a eterna incerteza e receio de serem vítimas de injustiça de

71 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, p 380. 72 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, p 379. 73 GALUPPO, Marcelo. O que são Direitos fundamentais?. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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terceiros74. Porém, esse contrato não dá ao Estado poderes absolutos como em Hobbes, não há uma transferência por parte dos indivíduos de sua integridade física, sobre a posse de sua propriedade e de sua liberdade em geral.

Pois, como todo poder concedido em confiança para se alcançar um determinado fim está limitado por esse mesmo fim, sempre que este é manifestamente negligenciado, ou contrariado, o encargo confiado deve necessariamente ser retirado e voltar o poder às mãos daqueles que o concederam, que podem depositá-lo de novo onde quer que julguem ser melhor para a sua garantia e segurança. (LOCKE, 1998, Livro II, Cap.XIII, p.518)

A base de sustentação do contrato e da sociedade é o consentimento e a

confiança75, através do consentimento existirá a legitimidade do Estado e, através da confiança, se fundamentará a relação entre os governados e os governantes, sendo que os direitos essenciais do indivíduo limitarão a ação estatal76. Segundo Oliveiros Litrento:

Locke levanta toda a estrutura de um verdadeiro sistema constitucional, expondo os direitos do povo como uma unidade comunitária e os dos cidadãos como indivíduos independentes na sociedade em que vivem. Daí sua teoria da divisão dos poderes, racionalizando, limitando o poder e o arbítrio do Estado, dirigindo-o a garantir os direitos fundamentais. (LITRENTO, 1980, p.156)

Podemos, então, apreender a doutrina liberal de Locke, onde o indivíduo

possibilita a construção do Estado para, primeiramente, conservar os direitos naturais: a vida, a propriedade e a liberdade. O direito à propriedade, é que coloca Locke como um dos primeiros representantes de um Estado liberal. Ao construir esse Estado, como vimos, os indivíduos não renunciam aos direitos naturais (ao contrário de Hobbes), o Estado aqui criado é a autoridade que garante a existência dos direitos naturais, pois, não havendo essa autoridade, cada indivíduo pode ser juiz em causa própria e pode refutar uma ofensa sofrida de maneira que extrapole os limites da razão77.

A doutrina jusnaturalista de Locke pode ser definida como a base do liberalismo nascente, onde o Estado formado não é uma substituição do estado de natureza e, sim, o fator que conserva o melhor desse estado. Aqui se liga o pensamento de Kant, que veremos a seguir.

74 LOCKE, John. Dois Tratados sobre o Governo. 1998, Livro II, p.517. 75 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, p.508. 76 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, p.511. 77 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, cap.II.

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3- IMMANUEL KANT 3.1) Liberdade: É a partir da idéia de primazia do conceito de justo sobre o conceito de bem

que podemos começar a compreender a contribuição da filosofia kantiana para o liberalismo. Vimos que um dos fatores conceituais do liberalismo é a precedência do justo sobre o bem, contrariamente ao comunitarismo. O pensamento político de Kant é um poderoso fundamento para a idéia liberal de prioridade do indivíduo frente ao Estado. Em Kant, justiça é liberdade (observando-se o fato que seja igualmente distribuída), os homens se reuniram e constituíram uma sociedade e um poder estatal para garantir o livre desenvolvimento do sujeito, as normas e condutas sociais e estatais existem para assegurar que a liberdade do indivíduo não seja violada por outrem.

A prioridade é a idéia do justo. Kant está preocupado em determinar o que é um ordenamento justo, este se constitui quando o aparelho estatal consegue garantir uma plena esfera de liberdade individual para que cada um possa desenvolver sua personalidade.

Para compreendermos a doutrina político-social de Kant, que é uma influência filosófica seminal para o liberalismo, temos que estudar a noção de liberdade no pensamento kantiano. Antes, porém, devemos apreender alguns conceitos bastante utilizados por Kant em sua teoria do conhecimento, para melhor compreendermos sua visão ética.

Kant divide os juízos, em analíticos e sintéticos. Os juízos podem ser vistos como um sujeito lógico do qual se diz algo e um predicado, este, é o que se diz do referido sujeito. Ao separar os juízos em analítico e sintético, o filósofo compreende os primeiros como resultado da postura que toma parte do sujeito como predicado, abdicando da base da experiência, por isso todos os juízos analíticos são a priori, ou seja, a lógica desses juízos é dada sem a base experimental. Como diz Kant:

Não se pode duvidar de que todos os nossos conhecimentos começam com a experiência, porque, com efeito, como haveria de exercitar-se a faculdade de se conhecer, se não fosse pelos objetos que, excitando os nossos sentidos, de uma parte, produzem por si mesmos representações, e de outra parte, impulsionam a nossa inteligência a compará-los entre si, a reuni-los ou separá-los, e deste modo à elaboração da matéria informe das impressões sensíveis para esse conhecimento das coisas que se denomina experiência? No tempo, pois, nenhum conhecimento precede a experiência, todos começam por ela. Mas se é verdade que os conhecimentos derivam da experiência, alguns há, no entanto, que não têm essa origem exclusiva, pois poderemos admitir que o nosso conhecimento empírico seja um composto daquilo que recebemos das impressões e daquilo que a nossa faculdade cognoscitiva lhe adiciona (estimulada somente pelas impressões dos sentidos); aditamento que propriamente não distinguimos senão mediante uma longa prática que nos habilite a separar esses dois elementos” (KANT, Crítica da Razão Pura, 1980, p.25)

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Em uma proposição analítica, o sujeito contém em si o predicado, são juízos universais, porque sua lógica independe de tempo e lugar, são a priori na medida em que não se originam da experiência, são frutos do que em Kant é a razão pura. Razão que existe independente da experiência. Juízos analíticos, podemos compreender que são assim definidos (“analíticos”) porque a constatação de sua veracidade se dá através da análise do próprio conceito. Nas palavras do filósofo:

Em todos os juízos em que se concebe a relação de um sujeito com um predicado (considerando só os juízos afirmativos, pois nos negativos é mais fácil fazer, depois, a aplicação), esta relação é possível de dois modos: ou o predicado B pertence ao sujeito A como algo nele contido (de um modo tácito), ou B é completamente estranho ao conceito A, se bem se ache enlaçado com ele. No primeiro caso chamo ao juízo analítico, no segundo, sintético. Os juízos analíticos (afirmativos) são, pois, aqueles em que o enlace do sujeito com o predicado se concebe por identidade; aqueles, ao contrário, cujo enlace é sem identidade, devem chamar-se juízos sintéticos. Poder-se-ia também denominar os primeiros de juízos explicativos, e aos segundos, de juízos extensivos, pelo motivo de que aqueles nada aditam ao sujeito pelo atributo, apenas decompondo o sujeito em conceitos parciais compreendidos e concebidos (ainda que tacitamente) no mesmo, enquanto que, pelo contrário, os últimos acrescentam ao conceito do sujeito um predicado que não era de modo algum pensado naquele e que não se obteria por nenhuma decomposição.Quando digo, por exemplo: “todos os corpos são extensos”, formulo um juízo analítico, porque não tenho que sair do conceito de corpo para achar unida a ele a extensão, e só tenho que decompô-lo, quer dizer, só necessito tornar-me cônscio da diversidade que pensamos sempre em dito conceito para encontrar o predicado; é portanto um juízo analítico. Pelo contrário, quando digo: “todos os corpos são pesados”, já o predicado é algo completamente distinto do que em geral penso no simples conceito de corpo. A adição de tal atributo dá, pois, um juízo sintético. Os juízos da experiência, como tais, são todos sintéticos (KANT,Crítica da Razão Pura, 1980, p.25)

É importante notar que Kant usa indiferentemente o termo "a priori" e o

termo "puro". Razão pura é razão a priori; intuição pura é intuição a priori. A verdade, neste tipo de proposição, é evidente, porque afirmar o inverso seria fazer a proposição contraditória. Tais proposições são chamadas analíticas porque a verdade é descoberta pela análise do próprio conceito. A proposição analítica é a verdadeira, porque diz algo necessário, inescapável, de que não se pode fugir de admitir, conclusão obrigatória, contra o que não se pode levantar uma contradição. Kant diz que o juízo analítico não faz avançar o conhecimento porque fica dentro dos conceitos da mesma proposição, e nada avança além dos dados desses conceitos. O juízo analítico está fundado no princípio de identidade e não é mais do que uma tautologia; repete no predicado aquilo que já está enunciado no sujeito. Os juízos sintéticos, diferentemente, são aqueles em que não se pode chegar à verdade por pura análise de suas proposições. Os juízos sintéticos, as proposições sintéticas, são resultado de se "juntar" (síntese) os fatos, ou dados, da experiência. As proposições ou juízos sintéticos unem o conceito expresso pelo predicado ao conceito do sujeito, e nos informa alguma coisa de novo. Na proposição "A casa é verde", preciso ver a casa para confirmar que é, de fato, verde. Os juízos sintéticos

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são feitos com fundamento na experiência, na percepção sensível. Nos juízos sintéticos, o conceito do predicado não está contido no conceito do sujeito. Como, por exemplo, quando dizemos que as ondas eletromagnéticas produzem em nós a sensação do calor e igualmente dilatam os corpos. Como diz Kant:

Porque seria absurdo fundar um juízo analítico na experiência, pois para formá-lo não preciso sair do meu conceito e, por conseguinte não me é necessário o testemunho da experiência. Por exemplo: “um corpo é extenso” é uma proposição “a priori” e não um juízo da experiência porque antes de dirigir-me à experiência, tenho já em meu conceito todas as condições do juízo; só me resta, segundo o princípio de contradição, tirar o predicado do sujeito e ao mesmo tempo chegar a ter consciência da necessidade do juízo, necessidade que jamais a experiência poderá subministrar-me. Pelo contrário, embora eu não tire do conceito de corpo em geral o predicado pesado, indica, sem embargo, aquele conceito um objetivo da experiência, uma parte da experiência total, à qual posso ainda aditar outra parte da mesma como pertencente a ela. Posso reconhecer antes, analiticamente, o conceito de corpo pelas propriedades da extensão, impenetrabilidade, forma, as quais são todas pensadas neste conceito. Mas se amplio meu conhecimento e observo a experiência que me proporcionou o conceito de corpo, encontro enlaçada constantemente com todas as anteriores propriedades e de gravidade (o peso), que adito sinteticamente, como predicado, àquele conceito (KANT, 1980, p.47)

A ética para Kant é o espaço da razão prática, devemos compreender que esta

razão para o filósofo é a razão aplicada à ação, à prática e ao campo moral. No sistema ético de Kant a razão é a autoridade no campo moral, é a razão que regula e estabelece a ação moral, pois a moral não dependeria dos impulsos e tendências naturais ou baseadas na experiência sensível. Como diz Joaquim Carlos Salgado:

A lei moral não é deduzida, nem induzida de dado algum empírico; é uma proposição a priori. Se é a priori na precedência, origina-se diretamente da razão, considerando-a Kant um fato da razão, porque, sendo a razão originariamente legisladora, dela temos imediata consciência. (SALGADO, 1986, p.205)

Toda ação para Kant deve surgir a partir de um sentido de dever, esse sentido

deve ser emanado da razão e, para qualquer ação ser considerada moral, ela não deve ser executada porque o sujeito apenas obedeceu a lei ou um costume, ou porque agiu apenas por interesse. Kant elaborou dois tipos de mandamentos dados pela razão, são eles que especificam todo ato que aparece à consciência moral do ser humano, ele denomina a fórmula desses mandamentos da razão de imperativos. Sobre os imperativos, diz Salgado:

[...] aparece como imperativo, como mandamento, na esfera do ser racional que pertence ao mundo sensível, ou seja, para o homem. O imperativo é, portanto, a forma de um princípio ou a expressão da lei para o ser humano. A lei moral só se transmuta em dever ser (sollen), para o ser que se constitui de razão e sensibilidade, de liberdade e de necessidade. O dever ser ( e por isso o imperativo) não tem sentido para um ser puramente racional ou cuja vontade fosse exclusivamente pura; somente o ser cuja vontade pode ser perturbada pelos impulsos e inclinações sensíveis pode ser destinatário de um comando que se expresse na forma imperativa: “Tu deves”. Isto, justamente, porque pode ocorrer

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que não realize a lei moral, enquanto que, para um ser puramente racional, não a realizar de forma absoluta e sempre, seria impossível. (SALGADO, 1986, p.211)

Kant estabelece dois tipos de imperativos, os hipotéticos e os categóricos. Os

imperativos hipotéticos, estão sujeitos a uma condição, referem-se a atos que buscam evitar uma conseqüência indesejada (ou a produzir uma desejada) ou seja, os imperativos hipotéticos estabelecem uma dinâmica de ação que busca atingir um fim específico; ao contrário, os imperativos categóricos estabelecem uma dinâmica de ação que existe simplesmente por causa de sua própria correção. Como diz Kant:

[...] há um imperativo que, sem basear como condição em nenhum outro propósito para chegar a certo comportamento, determina imediatamente esse comportamento. Tal imperativo é categórico. Não se relaciona com a matéria da ação e com o que dela possa resultar, mas com a forma e com o princípio de que ela mesma deriva; e o essencialmente bom da ação reside na disposição [Gesinnung] que se nutre por ela, seja qual for o resultado. Esse imperativo pode se denominar imperativo da moralidade. (KANT, Crítica da Razão Prática, 1959, p.47)

A lei moral aparece como mandamento, como imperativo, como expressão

do dever ser para o homem, para o ser racional. Nas palavras do filósofo:

[...] no homem, a lei possui, no primeiro caso, a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado, sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensíveis, não se pode supor nele uma vontade santa, isto é, tal que não lhe fosse possível esboçar qualquer máxima em contraposição à lei moral. Para aqueles seres a lei moral, portanto, é um imperativo que manda categoricamente, porque a lei é incondicionada. A relação de tal vontade com essa lei é de dependência (Abhängigkeit) sob o nome de obrigação (Verbindlichkeit), significa uma compulsão (Nötigung), ainda quando só exercitada pela razão comum e por sua lei objetiva para uma ação, por isso denominada dever (KANT, Crítica da Razão Prática, 1959, p.60)

Já um ser possuidor de uma vontade santa agiria sempre como se “deve” agir, não existiria a obrigação moral, pois, esta opera na posição entre a razão e o desejo. É o que diz Kant nesta passagem da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1991):

Uma vontade perfeitamente boa estaria, portanto, igualmente sob leis objetivas (do bem), mas não se poderia representar como obrigada a ações conforme à lei, pois que pela sua constituição subjetiva só pode ser determinada pela representação do bem. Por isso, os imperativos não valem para a vontade divina nem, em geral, para uma vontade santa; o dever [sollen] não tem aqui lugar adequado, porque o querer coincide já por si, necessariamente, com a lei. Por isso, os imperativos não são mais do que fórmulas para exprimir a relação entre as leis objetivas do querer em geral e a imperfeição subjetiva da vontade desse ou daquele ser racional da vontade humana, por exemplo. (KANT, 1991, p.45)

Com isso, conclui Salgado:

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“Como o homem é formado de razão e natureza (esta como impulsos e inclinações), de parte inteligível e de parte sensível, é necessário que esta se submeta à esfera racional e que a razão domine totalmente a região sensível humana, para que seus atos sejam morais.” (SALGADO, 1986, p.209)

Portanto, a lei moral em Kant surge na esfera humana como lei da vontade sendo motivada pelo dever, surge como imperativo para uma vontade sujeita a impulsos sensíveis.

Devemos concluir, portanto, que o imperativo categórico é a base própria da moralidade na filosofia kantiana, pois delimita o que é uma ação moral, compreendendo que esta é movida apenas pelo respeito à lei, e por nenhuma inclinação e, que na conduta moral, todo impulso subjetivo deve ser incluído. Kant descreveu dessa forma, dentre outras, o imperativo categórico: “age só segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 1959, p.51), ou seja, agir de tal maneira que o motivo que tenha nos levado a agir tenha plena capacidade de se tornar uma lei aplicável a todos. Kant explica detalhadamente essa idéia desta forma:

[...] a regra diz aqui que deve proceder de certo modo absoluto. A regra prática é, portanto, incondicionada, sendo, por conseqüência, representada como proposição categoricamente a priori, em virtude da qual a vontade é determinada, objetiva, absoluta e imediatamente (pela mesma regra prática que, aqui, evidentemente é lei). Com efeito, a razão pura, em si mesma prática, aqui resulta imediatamente legisladora. A vontade é concebida como independente de condições empíricas e, por conseguinte, como vontade pura, determinada mediante a simples forma da lei, sendo esse motivo de determinação considerado como a suprema condição de todas as máximas. O caso é bastante singular, não tendo equivalente no restante do conhecimento prático. O pensamento a priori de uma legislação universal resulta, tal qual é, simplesmente problemático, apresentando-se diante de nós como lei incondicionada, sem tomas nada de empréstimo à experiência ou a uma vontade exterior qualquer. Não é, também, um preceito segundo o qual uma ação deva ocorrer, mediante a a qual fosse possível um efeito desejado (porque, então, a regra seria sempre condicionada fisicamente), mas sim, uma regra que determina apenas a vontade a priori em relação à forma de suas máximas. (...) A consciência dessa lei fundamental pode ser denominada um ato da razão, porque não podemos inferi-la de dados antecedentes da razão, como seja da consciência da liberdade (porque esta consciência não se revela anteriormente) impondo-se por si mesma a nós como proposição sintética a priori, a qual não se fundamenta em qualquer intenção, seja pura ou empírica (KANT, Crítica da Razão Prática, 1959, p.59)

Em Kant, o ato moral tem de nascer da própria vontade que, concebida como desprovida

de conteúdo e não se determinando por nada do exterior, mas por si mesma é vontade pura. Por

isso ela mesma cria a lei a que se submete, a qual não é dada de fora por algum objeto ainda que

esse seja concebido como bem supremo. Assim, os princípios desta moral partem do próprio

sujeito, sem contudo poder ser considerada subjetiva, já que não são ditados pela sensibilidade,

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tratam-se de conceitos derivados da vontade pura ou "a priori" da razão. E como diz Juan

Bonaccini:

Ao agir sobre tal ordem o homem cria princípios universais que devem ser seguidos por todos. Agindo eticamente o homem não age por si próprio mas por toda a humanidade. Desta forma, a moral (ética no sentido estrito) kantiana é visualizada sob uma ótica formal, sem prescrição de nenhum conteúdo. O dever moral é formal (dever por dever), agindo-se apenas por respeito ao dever (BONACCINI, Kant e o problema da coisa em si no idealismo alemão: sua atualidade e relevância para a compreensão do problema da filosofia, 2003, p.116)

Neste ponto é que devemos empreender o estudo da liberdade em Kant

(princípio formativo da matriz liberal), pois, a condição básica para que toda a ação humana seja apenas determinada pela razão é, precisamente, a liberdade, pois a ação livre é aquela que não é perturbada pelos sentidos, que decorre apenas da razão. A liberdade, portanto, funciona como um pressuposto para a existência do campo moral. Toda ética kantiana se encontra sob esse pressuposto de que, através da liberdade do indivíduo, é que a razão pode estabelecer como deve ser sua conduta, tornando possível, assim, a vida moral. Voltando às palavras de Kant:

[...] a moralidade nos serve de lei somente enquanto somos seres racionais, ela tem de valor também para todos os seres racionais; e como não pode se derivar senão da propriedade da liberdade, a liberdade tem de ser demonstrada como propriedade da vontade de todos os seres racionais. (KANT, Crítica da Razão Prática, 1959, p.80)

Kant considera a liberdade da vontade de duas formas: primeiramente como

fenômeno e, desta forma, inserida no mundo sensível fenomênico, onde a vontade não é absolutamente livre, pois, as ações possuem suas causas determinadas; já, no mundo inteligível, a vontade é livre, está determinada apenas pelo dever e visa a prática do bem, é onde se liga o fator “liberdade”. Aqui Kant fala da liberdade interna78, e é o que devemos compreender, ou seja, a liberdade que diz respeito ao campo moral, uma liberdade moral por assim dizer, que propicia nossa adaptação às leis emanadas da nossa própria razão. Diz Norberto Bobbio:

Se por liberdade se entende, numa das acepções mais comuns, a faculdade de se fazer algo sem ser coagido ou liberdade como “não-coação”, ou como “liberdade de...” [...], liberdade moral é a liberdade dos impedimentos que provêm de nós mesmos (as inclinações, as paixões, os interesses), é liberação interior, esforço de adequação à lei eliminando os obstáculos que derivam da nossa faculdade de desejar. (BOBBIO, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, 1992, p.59)

A idéia de liberdade se liga à idéia de vontade; o sujeito está incluído no

mundo sensível fenomênico, mas sua razão se encontra no mundo inteligível, onde

78 Liberdade externa se refere ao campo da justiça e do direito, como veremos adiante.

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a moral passa a ser possível graças à liberdade. É o que fica claro nesta passagem da Crítica da Razão Prática:

O conceito de liberdade, na medida em que sua realidade é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa, e todos os outros conceitos [...], a sua possibilidade é provada pelo fato de a liberdade der efetiva; com efeito, esta idéia revela-se mediante a lei moral (KANT, 1959, p.12)

O dever ser do homem ocorre através da liberdade e, esta, só é compreendida através da lei moral:

A lei moral é colocada em primeiro lugar por uma questão de método; só através dela é que é possível conhecer a liberdade. O dever ser decorre da liberdade, ou: o homem deve, porque é livre. A diferença essencial entre a ética clássica e a ética kantiana está no conceito de liberdade como autonomia; para Kant o bem que obriga não é algo que está fora da vontade, mas é a própria vontade que é boa em si mesma. (SALGADO, 1986, p.249)

A autonomia da vontade pode ser vista como a base da ética kantiana e,

como diz Kant, essa autonomia é a qualidade que a vontade possui de se configurar, independente de uma qualidade qualquer dos objetivos do dever, em lei para si mesma. A idéia de liberdade em Kant é a idéia de autonomia da razão, sendo o que possibilita a existência da lei moral.

Podemos verificar a importância fundamental desta teorização kantiana para o desenvolvimento do liberalismo, na medida em que estabelece o homem como um ser racional e livre no mundo inteligível, (pois a liberdade é qualidade de todo ser racional)79 considera, também, a vontade deste homem como uma vontade capaz de construir leis universais , uma vontade que não busca alcançar fins que se encontram externamente80.

Essa idéia de que o homem é fim em si mesmo, porque desfruta de liberdade e porque a finalidade da razão é se estabelecer no campo moral81, implicará, no pensamento de Kant, o reconhecimento do outro como igual, ou seja, o outro também é um ser racional que possui sua liberdade e não poderá ser tratado nunca apenas como meio e, sim, sempre como fim em si mesmo. Essa teorização possui implicações profundas para a matriz liberal, na medida em que a liberdade passa a caracterizar o homem, tudo que impede a liberdade individual será visto como injusto.

Justo é somente a ação, sob cuja máxima a liberdade de arbítrio de cada um pode coexistir com a liberdade de todos. A liberdade é a condição de toda vida moral e, portanto, também do direito. Nenhum direito e nenhum dever tem sua origem noutra coisa senão na liberdade. (SALGADO, 1986, p.253)

79 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. 1959, Livro I, cap. II. 80 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. 1959, Livro I, cap. II. 81 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 1991, Cap. III.

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3.2) Contrato social: Kant racionaliza a doutrina do contrato social, retira a idéia contratualista do

campo sociológico e a coloca no campo normativo, o contrato é visto como uma idéia regulativa e, não mais, da maneira clássica, uma idéia constitutiva. Para os jusnaturalistas o contrato podia ser visto como um fato histórico, Kant não compactua com esse pensamento, para ele o contrato é uma idéia advinda da razão, seria uma idéia matriz a ser usada para a compreensão racionalizada do Estado. A passagem do estado de natureza para o estado civil é, segundo Kant, um dever, é uma exigência moral, é o que o filósofo explica no que ele chama de postulado do direito público, que estabelece que o ser racional, baseado na relação de coexistência estabelecida com o outro, deve sair do estado de natureza para adentrar em um estado jurídico. Para melhor compreender a idéia de Kant quanto ao contrato, podemos pontuar as diferenças básicas ao pensamento de Locke, que vimos no início do estudo da matriz Liberal.

Vimos que para Locke o homem sai do estado de natureza de forma calculada, onde o estado de natureza se configura como um local que pode causar mal ao homem, em Kant o estado de natureza é um estado injusto e o homem abandona este estado obedecendo a uma lei moral82. O homem ao abandonar o estado de natureza, e adentrar no estado civil, busca permitir que sua liberdade possa coexistir com a liberdade do outro, o que em si é uma ação baseada em um dever moral – se configura em uma ação moral no sentido kantiano – ou seja, uma ação que não possui o intuito de satisfazer interesses individuais e, sim, de buscar um estado que não seja injusto como é o estado de natureza. O Estado de natureza em Kant é um campo de contradições e incertezas, devendo-se, portanto, criar um estado em que prevaleça uma vontade certa que possa delimitar, de maneira justa, as vontades individuais, ao mesmo tempo em que respeite a liberdade do ser racional. Como diz Salgado:

O suporte de tal contrato e do mesmo Estado é a liberdade. E não só a liberdade enquanto possibilita gerar o dever e a responsabilidade de cada um, que se traduz na limitação do seu arbítrio, mas liberdade como razão de ser e como fim do pacto social. Não é simplesmente a vida social o objeto do pacto – pois esta existiria no estado de natureza – mas a possibilidade da própria liberdade na vida social é que é o seu objetivo, visto que seria uma sem-razão falar em liberdade sem a garantia dessa liberdade, na relação com o outro, na sociedade. (SALGADO, 1986, p.294)

Para melhor compreendermos a influência da filosofia kantiana para o

liberalismo, devemos repisar este ponto: através do pacto social o homem abandona o estado de natureza e adentra ao estado civil, para que, assim, possa garantir sua

82 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 1991, Cap. III.

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relação com o outro, para garantir a relação de sua liberdade com a dos outros, o que é um dever moral para Kant.

O contrato social na filosofia kantiana não é uma realidade histórica, o que o filósofo busca definir é que o surgimento do Estado não é fruto de um consenso entre as vontades individuais, um fato ocorrido em determinado momento da história da civilização humana, o surgimento do Estado pode ter se dado por outras vias, ou seja, o contrato fruto do consenso deve funcionar como um ideal, um ideal racional. É nesse sentido que Kant racionaliza a doutrina do contrato social. Nas palavras do filosófo:

O ato por meio do qual o próprio povo se constitui em Estado, ou melhor, a simples idéia deste ato, que só ela já permite conceber a sua legitimidade, é o contrato originário, segundo o qual todos do povo deixam a liberdade externa para retomá-la novamente, já como membros de um corpo comum, ou seja, como membros do povo enquanto Estado. Não se pode dizer que o homem no Estado tenha sacrificado a um certo fim uma parte da sua liberdade externa inata, mas que abandonou completamente a liberdade selvagem e desenfreada para encontrar novamente a sua liberdade, em geral não diminuída numa dependência legal, ou seja, num estado jurídico, porque essa dependência surge da sua própria vontade de legislar. (KANT, A Metafísica dos Costumes, 2003, p.202)

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3.3) Estado: Na filosofia de Kant, o Estado é uma conseqüência racional advinda da

relação entre os seres humanos. E qual seria a principal função do Estado? A resposta a esta pergunta se configura na principal contribuição da filosofia kantiana para a matriz liberal no seu campo político; a resposta que podemos encontrar na filosofia de Kant (principalmente em sua obra Metafísica dos Costumes) é: garantir a liberdade do indivíduo, como podemos constatar de forma clara nesta passagem:

Com relação à felicidade, não é possível formular princípio algum válido universalmente para fazer leis, porque, seja as condições do tempo, seja também as representações contrastantes e sempre mutáveis daquilo em que uma pessoa coloca a sua felicidade (e ninguém pode prescrever onde ele deve colocá-la), tornam impossível qualquer princípio estável, e por si mesmo, inepto para ser o princípio de uma legislação. A máxima: salus publica, suprema civitatis lex est permanece em sua validez imutável e em sua autoridade; mas o bem público, que acima de tudo, deve ser levado em consideração, é precisamente a constituição legal que garante a cada um sua liberdade através da lei; com isso continua lícito para ele buscar sua própria felicidade por meio do caminho que lhe parece melhor, sempre que não viole a liberdade geral em conformidade com a lei e, portanto, o direito dos outros consorciados (KANT, 2003, p.297)

Quando falamos de garantir a liberdade, devemos ter em mente que é tanto

liberdade como autonomia, no sentido de que sou livre porque estou submetido a leis que eu próprio criei, quanto liberdade como não-impedimento, no sentido de que eu não encontre obstáculos ao meu agir dentro de uma certa esfera. Nas palavras de Kant em A Paz Perpétua (1989): “Melhor é definir a minha liberdade externa (ou seja jurídica) como a faculdade de não obedecer a outras leis externas, a não ser àquelas a que pude dar o meu consenso” (KANT, 1989, p.78)

A idéia de Kant sobre a função do Estado se confunde com a própria noção liberal que se desenvolverá depois de Kant, essa concepção que estabelece que o fim do Estado é o desenvolvimento da liberdade individual, é a principal concepção política da matriz liberal.

É importante notar que essa concepção política trás em si uma profunda diferenciação filosófica em comparação com a matriz comunitarista, pois, na medida que se estabelece que o fim do Estado é garantir a liberdade individual, fica claro que o aparelho estatal não possui um fim próprio, ele não existe para promover um bem geral e universal, o Estado existe para garantir a liberdade individual e, assim, garantir que cada sujeito possa alcançar os fins que estabeleçam para si próprios. O Estado liberal que possui uma base filosófica no pensamento de Kant, não busca garantir uma virtude universal, não se preocupa com o bem, mas com o justo, e o

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justo se confunde com a liberdade externa, ou seja, é a constituição legal que garantirá a liberdade através da lei, e esta liberdade, propiciará a cada um alcançar sua felicidade de forma distinta, cada sujeito pode procurar realizar os objetivos que escolher, aí se encontra a justiça, e esta tem primazia sobre a noção de bem. O Estado em Kant não é um mecanismo que produzirá, por si, a felicidade para o ser racional, para o filósofo, cada ser racional coloca a felicidade em bens distintos, a felicidade é encontrada de forma pessoal, não há como determinar um bem garantidor da felicidade geral.

Outro fator importante do pensamento de Kant, e que se transforma em base filosófica do liberalismo, é o constitucionalismo estatal83, o mecanismo utilizado pelo Estado para garantir a liberdade do indivíduo é a constituição legal84. A constituição, por meio da lei, garante que a liberdade do indivíduo seja vivida, permitindo, desta forma, que cada um alcance sua felicidade pessoal.

83 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2003, p.297. 84 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. 2003, p.297.

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4- JOHN RAWLS 4.1) Linhas gerais: A passagem da obra O Liberalismo – Antigo e Moderno (1991) de José

Guilherme Merquior, que citamos a seguir, ilustra bem o que propomos apresentar na segunda metade desta explanação sobre a matriz liberal, que é a influência moderna do pensamento liberal de Rawls, através do seu ideário contratualista e, logo em seguida, o pensamento de Robert Nozick. Tal procedimento possui sua lógica e justificação em si mesmas, o estudo de Ralws deve ser feito logo após a apresentação que fizemos dos pensamentos de Locke e Kant, para, desta forma, apreendermos as idéias de Rawls com base na teoria contratualista dos clássicos. Diz Merquior:

Por volta de 1970, estando o ar ainda impregnado do voluntarismo romântico das revoltas estudantis, havia espaço para uma nova espécie de discurso neoliberal: a linguagem dos direitos e do contrato social. Seu tom, no gigantesco tratado de John Rawls Uma Teoria da Justiça (1971), foi acolhido como o novo evangelho dos liberais. E logo o tranqüilo Rousseau de Harvard fez sensação quando sua fórmula liberal foi ruidosamente contestada, em nome do individualismo libertário, pela teoria de direitos de Robert Nozick.” (MERQUIOR, 1991, p.2005)

O estudo sobre o pensamento de Nozick é conseqüência da apresentação da

teoria de Rawls, pois, Robert Nozick desenvolve suas idéias como uma forma de contestação à teoria de Rawls. Esses são os dois pensamentos que ilustram bem o teor filosófico da matriz liberal moderna.

Nestas linhas gerais é importante salientar, desde já, a importante influência do pensamento de Rawls, que ultrapassou os limites do mundo acadêmico na medida em que, construiu uma filosofia liberal que refletia sobre os interesses do indivíduo, mas que buscava, também, refletir sobre as instituições sociais. A teoria da justiça de Rawls buscava estruturar o indivíduo, mas não o desvinculava do contexto social existente. Sua principal obra é Uma Teoria da Justiça de 1971, e as principais influências filosóficas ao seu trabalho podem ser encontradas em Hobbes, Locke, Hume e, principalmente, na filosofia kantiana; como pensamento a ser contestado podemos citar a teoria de Jeremy Benthan e seu utilitarismo, que veremos mais a frente.

Em sua principal obra, Rawls procura apresentar e defender sua teoria de justiça como equidade, seria a forma mais correta e aplicável de justiça para uma democracia constitucional, como diz o autor.

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4.2) O contrato e Kant: O ponto de partida da teorização de John Rawls é a crítica ao utilitarismo,

cujo principal pensador foi Jeremy Bentham. Para este, a idéia de direitos naturais, principalmente no pensamento de Locke, era um despropósito, uma idéia sem fundamento e conteúdo. Bentham propunha um conteúdo para os princípios reguladores de nossa conduta, esse conteúdo seria “uma regra de utilidade, sempre correspondendo à razão e logo igualada à maior felicidade do maior número” (MERQUIOR, 1991, p.79). Para Rawls, o utilitarismo e sua idéia do que seja a justiça, identificada com a regra da maioria, não é conveniente para fundamentar as democracias constitucionais, pois nas palavras de Rawls:

Pode ser conveniente mas não é justo que alguns tenham menos para que outros possam prosperar. Mas não há injustiça nos benefícios maiores conseguidos por uns poucos desde que a situação dos menos afortunados seja com isso melhorada. A idéia intuitiva é a de que , pelo fato de o bem-estar de todos depender de um sistema de cooperação sem o qual ninguém pode ter uma vida satisfatória, a divisão de vantagens deveria acontecer de modo a suscitar a cooperação voluntária de todos os participantes, incluindo-se os menos bem situados. No entanto, só se pode esperar isso se forem propostos termos razoáveis (RAWLS, 2002, p.16)

Tendo isso em mente o filósofo norte-americano busca desenvolver uma

concepção de justiça que tenha, ao mesmo tempo, uma ênfase moral para as democracias constitucionais. Essa teorização se desenvolverá na idéia de justiça como equidade. A idéia de justiça como equidade, segundo Rawls, tem sua base filosófica na teoria clássica do contrato social que vimos, principalmente, em Locke e Kant, mas também em Rousseau.

Desse ponto em diante veremos como a obra de Rawls é profundamente influenciada pelo pensamento de Kant, que vimos anteriormente. Rawls busca em sua obra apreender, desenvolver e organizar a idéia de justiça encontrada no contratualismo, para poder empregá-la frente à teoria utilitária.

Rawls defende a idéia de que uma sociedade estruturada possui uma concepção pública de justiça e não empreende apenas o bem de seus membros constitutivos por si só, como ele deixa claro logo no início de sua obra, quando diz que:

Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem mesmo o bem-estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros. Não permite que os sacrifícios impostos a uns poucos tenham menos valor que o total maior das vantagens desfrutadas por muitos. Portanto numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados pela justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de interesses sociais (RAWLS, 2002, p.4)

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Uma sociedade estruturada possui uma concordância compartilhada pelos constituintes dos princípios de justiça, que são observados pelas instituições sociais. Cada um agindo com justiça em uma sociedade bem-ordenada, como diz Rawls, haverá uma manutenção de instituições justas, pois para Rawls, a sociedade se configura como um sistema de cooperação entre indivíduos que buscam vantagens mútuas dessa cooperação. Esse sistema de cooperação que abrange os indivíduos possui como características o conflito e a identidade de interesses, esta identidade existe na melhoria de vida que surge da cooperação e o conflito surge da distribuição dos bens, onde quem tem maior participação possuirá mais bens. A necessidade de princípios de justiça surge após identificar-se esse conceito, buscando ordenar a sociedade. Nas palavras de Rawls:

Digamos agora que uma sociedade é bem-ordenada não apenas quando está planejada para promover o bem de seus membros mas quando é também efetivamente regulada por uma concepção pública de justiça. Isto é, trata-se de uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e (2) as instituições sociais básicas geralmente satisfazem , e geralmente se sabe que satisfazem, esses princípios. Neste caso, embora os homens possam fazer excessivas exigências mútuas, eles contudo reconhecem um ponto de vista comum a partir do qual suas reivindicações podem ser julgadas. Se a inclinação dos homens ao interesse próprio torna necessária a vigilância de uns sobre os outros, seu sentido público de justiça torna possível a sua associação segura. Entre indivíduos com objetivos e propósitos dispares uma concepção partilhada de justiça estabelece os vínculos da convivência cívica; o desejo geral de injustiça limita a persecução de outros fins. Pode-se imaginar uma concepção da justiça como constituindo a carta fundamental de uma associação humana bem-ordenada (RAWLS, 2002, p.5)

Para apreender uma concepção de justiça, que será o fundamento dessa

sociedade bem-ordenada, Rawls utiliza a doutrina do contrato social. Como diz o autor de Uma Teoria da Justiça:

Meu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios da justiça eu chamarei de justiça como equidade. (RAWLS, 2002, p.12)

É através de um consenso original que surgirá essa justiça como equidade,

entendida, portanto, como um conjunto de princípios de justiça, que fornecerão uma estrutura básica à sociedade85. Como diz o autor, em uma posição original de igualdade entre os sujeitos, se determinará os princípios constitutivos da 85 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.5.

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sociedade86. Essa idéia de posição original se assemelha ao estado de natureza da doutrina do contrato social, na medida em que, nas palavras de autor:

Essa posição original não é, obviamente, concebida como uma situação histórica real, muito menos como uma condição primitiva da cultura. É entendida como uma situação puramente hipotética caracterizada de modo a conduzir a uma certa concepção de justiça. Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua classe ou o status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força, e coisas semelhantes. Eu até presumirei que as partes não conhecem suas concepções do bem ou suas propensões psicológicas particulares (RAWLS, 2002, p.13)

Devemos compreender, portanto, essa posição original como uma situação

hipotética, e não uma situação histórica real, onde os homens estabeleceram uma associação que busca a realização de diversos fins sociais e alcançar a justiça. Como diz Rawls:

[...] para formular uma concepção completa do justo, as partes na posição original devem escolher, numa ordem definida, não apenas uma concepção da justiça, mas também os princípios que acompanham cada um dos conceitos principais subordinados ao conceito de justo. (RAWLS, 2002, p.118)

Para ser possível esse intento, de alcançar tais resultados, Rawls apresenta o principal fator nesta posição original, que é o véu da ignorância87. Na posição original há uma igualdade entre os sujeitos e os princípios eleitos por estes, serão princípios justos, para que isso seja possível há de se extirpar todos os fatores que possam gerar disputas entre os sujeitos, diz Rawls:

Ninguém conhece a sua situação na sociedade nem os seus dotes naturais, e portanto ninguém tem a possibilidade de formular princípios sob medida para favorecer a si próprio. Podemos imaginar que um dos contratantes ameace não dar o seu assentimento a não ser que os outros concordem com princípios que lhe são favoráveis. Mas, como ele sabe quais são os princípios que lhe interessam especialmente? O mesmo se aplica à formação de coalizões: se um grupo decidisse se coligar como beneficiar a si próprio na escolha dos princípios (RAWLS, 2002, p.150)

O mecanismo que torna isso possível é o véu de ignorância, pois, com este mecanismo os sujeitos ignoram sua posição real dentro da sociedade da qual fazem parte, ignoram a idéia que possuem do que seja o bem, ignoram suas próprias características psicológicas que poderiam influenciar, ignoram também sua posição econômica e política e o nível de civilização e cultura atingido pela sociedade que pertencem. Essas restrições são de suma importância, pois segundo Rawls, são elas que tornam possível a elaboração de uma teoria da justiça. O véu da ignorância é o mecanismo que permite o surgimento de uma concepção geral de justiça. Nas palavras do autor: 86 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.9. 87 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.147.

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As restrições impostas às informações particulares na posição original são, portanto, de fundamental importância. Sem elas não seríamos capazes de elaborar nenhuma teoria da justiça. Teríamos de nos contentar com uma fórmula vaga afirmando que a justiça é aquilo com o que concordaríamos, sem podermos dizer muito, talvez nada, sobre a substância do próprio acordo. As restrições formais do conceito de justo, que se aplicam diretamente aos princípios, não são suficientes para o nosso propósito. O véu da ignorância possibilita a escolha unânime de uma concepção particular da justiça. Sem esses limites impostos ao conhecimento, o problema da negociação na posição original se tornaria insolúvel (RAWLS, 2002, p.151)

Segundo Rawls é importante compreender que a posição original não é uma

reunião de todos os seres racionais é, sim, um “guia natural” para o homem, e este guia só poderia ser apreendido através do véu de ignorância, ele é o mecanismo que tornaria possível a posição original ser “interpretada de modo que possamos, a qualquer tempo, adotar a sua perspectiva.” (RAWLS, 2002, p.149). O véu da ignorância é uma fonte de garantia para que os princípios eleitos pelos sujeitos não se modifiquem, sejam sempre os mesmos, o véu é o próprio guia a que se refere Rawls, um guia para os procedimentos que devemos tomar no processo de escolha de princípios para se estruturar a sociedade. O mecanismo do véu de ignorância é o principal fator de imparcialidade quando os sujeitos se encontram na posição original, ele elimina as contingências, que poderiam tornar o resultado injusto, e garantem que os acordos sejam eqüitativos na posição original. Nas palavras de Rawls:

Se for permitido um conhecimento das particularidades, o resultado será influenciado por contingências arbitrárias. Como já foi observado, dar a cada um de acordo com seu poder de ameaçar não é um princípio de justiça. Para que a posição original gere acordos justos, as partes devem estar situadas de forma eqüitativa e devem ser tratadas de forma igual como pessoas éticas. A arbitrariedade do mundo deve ser corrigida por um ajuste da circunstância da posição contratual inicial. (RAWLS, 2002, p.152)

Essa é a idéia que se deve ressaltar no pensamento contratualista de Rawls, a

idéia de que devemos compreender a equidade na medida em que os princípios de justiça são escolhidos pelos sujeitos que se encontram em uma posição original de igualdade. O filósofo norte-americano elabora dois princípios de justiça como equidade escolhidos na posição original. Como coloca Ricardo Carvalho em seu artigo O conceito de justiça de Rawls88:

Existiriam dois princípios nessa situação. O primeiro exige igualdade na repartição dos direitos e deveres básicos, enquanto que o segundo propõe que as desigualdades sociais e econômicas, por exemplo, as desigualdades de riqueza e autoridade, somente são justas se produzem benefícios compensadores para todos e, em particular, aos membros menos avantajados da sociedade. (CARVALHO, 2004)

88 CARVALHO, Ricardo. O conceito de justiça de Rawls, 2004. Disponível em <http:// www.criticanarede.com/pol_rawls.html>. Acesso em: 18 de dez. 2005.

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Como podemos ver, é uma idéia profundamente liberal conecta a uma preocupação social. Rawls defende a idéia de liberdades básicas e iguais para todos os seres racionais, além de uma total igualdade de oportunidades distribuídas de forma eqüitativa, além disso, o autor tem em mente o bom funcionamento econômico da sociedade e, desta forma, estabelece que existirão desigualdades sociais, mas que devem ser suportadas na medida em que forneçam uma forma de melhoria para os mais necessitados. Rawls teoriza desta forma:

Apesar de nada garantir que as desigualdades não serão significativas, há uma tendência persistente para que elas sejam niveladas, através do aumento da disponibilidade da habilitação especializada e até de uma ampliação de oportunidades. As condições estabelecidas pelos outros princípios asseguram que as disparidades que provavelmente resultarão, serão muito menores que as diferenças que os homens muitas vezes toleram no passado.(RAWLS, 2002, p.170)

Em defesa dessa idéia, Rawls lança mão também de outro importante

conceito em sua obra, que é a regra maximin, segundo o autor “A regra maximin determina que classifiquemos as alternativas em vista de seu pior resultado possível: devemos adotar a alternativa cujo pior resultado seja superior aos piores resultados das outras.” (RAWLS, 2000, p.165)

Exemplificando essa regra dentro da teoria de Rawls, devemos pensar no caso da pessoa na situação original, ela pode imaginar que seu lugar na sociedade será escolhido pelo seu mais forte concorrente, desta forma, ela deve escolher a alternativa em que o pior resultado seja o melhor se comparado aos outros possíveis resultados ruins, tendo-se em mente que o cerne do processo é a escolha da situação mínima, do “menos pior”, ou seja do melhor para o mínimo. Essa idéia, como assevera Ricardo Carvalho89, diz que a realização da justiça social é viável, na medida em que:

[...] nos diz que devemos hierarquizar as alternativas conforme os piores resultados possíveis: havemos de adotar a alternativa cujo resultado seja superior ao pior dos resultados das outras alternativas. A regra maximum minimorum quer dizer, o mais do mesmo, isto é, que em certas circunstâncias de justiça social, dever-se-á escolher o menor dos males, sobretudo quando se trata de situações econômico-sociais. Essa tese de Rawls tem como fundamento a doutrina dos utilitaristas, que ele considera, deve ser restrita pelos princípios de igual liberdade e justa igualdade de oportunidades, que asseguram as liberdades básicas (CARVALHO, 2004)

O que vemos é uma defesa teórica para um dos pilares do liberalismo político que é o princípio da diferença no qual, segundo Rawls, seria uma ação racional a escolha de um princípio que no geral auxilie os mais desfavorecidos quando o sujeito se encontrar sob o véu da ignorância, desconhecendo o local que ocupa em sociedade,

89 CARVALHO, Ricardo. O conceito de justiça de Rawls, 2004. Disponível em <http:// www.criticanarede.com/pol_rawls.html>. Acesso em: 18 de dez. 2005.

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pois, o mesmo sujeito intui que ele pode estar em algum momento ocupando o local do menos favorecido por causa de alguma circunstancia social. Com a apresentação desses conceitos da teoria da justiça de Rawls podemos apreender melhor o caráter filosófico de seu contratualismo e sua ligação com o pensamento de Kant. Verificamos que no pensamento kantiano, o contrato social se estabelece como um dever moral imposto aos homens que são fins em si mesmos, o homem sai do Estado de Natureza para garantir sua liberdade, já que o estado civil possui sua base nos princípios a priori da liberdade de cada homem e, como vimos no constitucionalismo kantiano, uma constituição possui sua legitimidade no fato de sua base filosófica advir de um contrato originário; contrato esse, que garante aos homens sua natureza de seres racionais e detentores de liberdade. Podemos verificar que, como o próprio Kant, seu contratualismo não é um fato histórico e, sim, uma idéia, um conceito puro da razão, ou seja, um exercício da racionalidade humana que visa estabelecer critérios regulativos para a formação da sociedade. Na teoria contratualista de Rawls encontramos também esse mesmo caráter liberal da filosofia de Kant. Em Rawls o contrato também é uma idéia, um exercício hipotético que busca, da mesma forma, orientar e estruturar a sociedade nas questões da justiça. O contrato é uma idéia que possui um caráter regulador baseado em princípios eleitos, observando certas restrições neste processo de escolha. O contratualismo de Rawls, portanto, possui uma forte ligação com a teoria do contrato de Kant, na medida em que buscam funcionar como esquemas orientadores para os seres racionais que vão interagir em sociedade. Como diz Rawls:

Deveríamos ver uma teoria da justiça como um esquema orientador destinado a enfocar as nossas sensibilidades morais e colocar diante das nossas capacidades intuitivas problemas mais limitados e administráveis para julgarmos. Os princípios da justiça identificam certas considerações como sendo moralmente pertinentes e as regras de prioridade indicam a precedência apropriada quando elas conflitam entre si, enquanto a concepção da posição original define a idéia subjacente que deve informar as nossas ponderações. Se o esquema como um todo parece, ao refletirmos, esclarecer e ordenar os nossos pensamentos, e se tende a reduzir dissensões e a alinhar convicções divergentes, já fez tudo o que se pode razoavelmente esperar. Entendidas como partes de uma estrutura que de fato parece útil, as numerosas simplificações podem ser vistas como provisoriamente justificadas (RAWLS, 2002, p.56)

Há uma relação forte entre a filosofia de Kant e a de Rawls, o filósofo norte-

americano busca construir sua teoria utilizando as idéias kantianas de: Imperativo Categórico – o véu de ignorância da filosofia de Rawls garante que o homem possa escolher princípios regulativos de forma natural sem contingências; o que está ligado, acredita Rawls:

� à teorização do imperativo categórico, na medida em que para relacionar toda a argumentação aos dois princípios de justiça que ele elabora, Rawls parte da idéia de que as partes relacionadas em sociedade não conhecem seus objetivos particulares, conheceriam apenas suas preferências por bens

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primários, racionalmente desejáveis. Esta dinâmica, para Rawls, possui uma analogia com a teorização do imperativo categórico, na medida em que ao contrário dos imperativos hipotéticos, os categóricos são aplicáveis aos seres racionais, independentes dos seus objetivos particulares. Nas palavras de Rawls:

Os princípios da justiça também se apresentam como análogos aos imperativos categóricos. Por imperativo categórico Kant entende um princípio de conduta que se aplica a uma pessoa em virtude de sua natureza de ser racional igual e livre. A validade do princípio não pressupõe que se tenha um desejo ou um objetivo particular. Ao passo que um hipotético imperativo pressupõe, por contraste, tal fato: ele nos leva a dar certos passos como meios eficazes para conseguirmos um objetivo específico. Quer se trate de um desejo voltado para alguma determinada coisa, quer se trate de um desejo de algo mais genérico, como certos tipos de sentimentos agradáveis ou prazeres, o imperativo correspondente é hipotético. Sua aplicabilidade depende de se ter um objetivo que não constitui uma condição necessária para alguém ser um indivíduo humano racional. O argumento a favor dos dois princípios da justiça não supõe que as partes têm objetivos particulares, mas apenas que elas desejam certos bens primários. São coisas que é racional desejar, independentemente de outros desejos. Assim, dada a natureza humana, deseja-la faz parte de ser racional; embora se presuma que cada um tenha alguma concepção da felicidade, nada se sabe sobre os objetivos finais de cada um (RAWLS, 2002, p.277)

� e autonomia, para Kant, o homem é autônomo na medida em que sua ação é

baseada apenas em princípios escolhidos por ele mesmo enquanto ser racional, não sendo influenciado por outras contingências; em Rawls, com o véu da ignorância, os homens elegem certos princípios, escolhidos em uma posição original, ignorando outras contingências e garantindo sua autonomia. Diz Rawls:

Kant acreditava, julgo eu, que uma pessoa age de modo autônomo quando os princípios de suas ações são escolhidos por ela como a expressão mais adequada possível de sua natureza de ser racional igual e livre. Os princípios que norteiam suas ações não são adotados por causa de sua posição social ou de seus dotes naturais, ou em vista do tipo particular de sociedade em que ela vive ou das coisas específicas que venha a querer. Agir com base em tais princípios é agir de modo heterônomo. Ora, o véu da ignorância priva as pessoas que ocupam a posição original do conhecimento que as capacitaria a escolher princípios heterônomos. As partes chegam às suas escolhas em conjunto, na condição de pessoas racionais iguais e livres, sabendo apenas da existência daquelas circunstâncias que originam a necessidade de princípios de justiça (RAWLS, 2002, p.276)

O que Rawls busca fazer é utilizar os procedimentos do imperativo categórico e de autonomia, reestruturar os conceitos em sua teoria da justiça, mantendo o princípio de universalidade dessas proposições, mas, retirando a fundamentação metafísica e o dualismo entre nôumenos e fenômenos. Nas palavras de Rawls:

Mas a minha interpretação kantiana não tem a intenção de ser uma interpretação da doutrina de Kant propriamente dita, mas sim da justiça como equidade. A visão de Kant

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é marcada por várias dicotomias, em especial, as dicotomias entre o necessário e o contingente, a forma e o conteúdo, a razão e o desejo, os nôumenos e os fenômenos. Para muitos abandonar essas dicotomias, tais quais como foram entendidas por ele, é abandonar o caráter distintivo de sua teoria. Meu modo de ver é diferente. Sua concepção moral tem uma estrutura característica que é mais claramente discernível quando esses dualismos não são tomados no sentido que ele lhes atribui, mas sim quando eles são remodelados e sua força moral é reformulada no âmbito de uma teoria empírica. (RAWLS, 2002, p.282)

Ao apresentarmos aqui a teorização de Rawls e sua analogia com a idéia

contratualista em Kant, devemos ter em mente que Rawls buscou retomar tanto o contratualismo de Rousseau, quanto o de Locke, que vimos no início deste capítulo. Diz Rawls:

Meu objetivo é apresentar uma concepção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como um contrato que introduz uma sociedade particular ou que estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade são objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subseqüentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governo que se podem estabelecer (RAWLS, 2002, p.12)

Para Rawls existe uma grande aproximação de sua teoria sobre o direito à

igualdade e a teorização contratualista de Locke. Para Locke o caminho para se abandonar o Estado de natureza, que é ameaçado sempre pelo estado de guerra e inimizade90, é o surgimento do governo civil. Para Locke este surge desta forma:

A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança. Conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela (LOCKE, 1998, p.71)

Para Rawls sua teorização acerca do direito à igualdade possui características

de uma teoria jusnaturalista como a de Locke, na medida em que vê o direito à igualdade como um direito natural, sendo que esse direito seria garantido aos seres racionais independentemente das convenções sociais e normas legais. Diz Rawls:

A adequação do termo “natural” está no fato de ele sugerir a contraposição entre os direitos identificados pela teoria da justiça e os direitos definidos pela lei e pelos costumes. Mas, mais do que isso, o conceito de direitos naturais inclui a idéia de que esses direitos são atribuídos em primeiro lugar às pessoas, e que lhes é conferido um peso especial. Reivindicações facilmente superadas por outros valores não constituem direitos naturais. Ora, os direitos protegidos pelo primeiro princípio têm essas duas características, em vista das regras de prioridade. Assim, a justiça como equidade tem

90 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, p.40.

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as marcas características de uma teoria dos direitos naturais (RAWLS, 2002, Nota 31, p. 698)

4.3) O Justo e o Bem: Na conclusão desta seção voltamos à questão fundamental que vimos nas

seções anteriores da matriz liberal, que é a prioridade do justo sobre o bem. Veremos como Rawls trabalha essa idéia.

Seguindo a diretriz liberal que estabelece uma prioridade do conceito de justo sobre o conceito de bem, Rawls entende que o conceito de justo é anterior ao conceito de bem. Nas palavras do filósofo norte-americano:

A razão para proceder assim é que, na justiça como equidade, o conceito de justo é anterior ao conceito que define o que é o bem. Contrariamente ao que ocorre com as teorias teleológicas, algo é bom apenas se se adequar modos de vida que são consistentes com os princípios da justiça já disponíveis. (RAWLS, 2002, p.438)

A questão da primazia do conceito de justo sobre o bem em Rawls está

vinculada, principalmente, à idéia de que para participarmos plenamente da vida e da atividade coletiva, devemos confirmar o sentimento de justiça, para depois abrir espaço e viabilidade para a questão do bem. Nas palavras de Rawls:

Uma segunda diferença entre o justo e o bom é que, em geral, é uma boa coisa que as concepções dos indivíduos acerca de seu bem devam diferir de forma significativa, enquanto o mesmo não acontece para as concepções do justo. Em uma sociedade bem-organizada, os cidadãos defendem os mesmos princípios do justo, e tentam atingir os mesmos juízos em casos particulares. Esses princípios devem estabelecer uma ordenação definitiva entre as reivindicações mútuas e conflitantes dos indivíduos, e é essencial que essa ordenação seja identificável a partir do ponto de vista de todos, apesar de que, na prática, possa ser difícil a aceitação por parte de todos. Por outro lado, os indivíduos encontram o seu bem de diferentes modos, e muitas coisas que são boas para uma pessoa podem não o ser para outros (RAWLS, 2002, p.496)

Para Rawls não há como, filosoficamente, definir um fim concreto para a

ação humana e elegê-la como o bem supremo, a busca e a realização da felicidade dependem, não da realização de um único bem e, sim, da realização de diversos bens. O bem de uma pessoa seria “a execução bem-sucedida de um plano racional de vida, e seus bens menores como as respectivas partes”(RAWLS, 2002, p.479) e, desta forma, existindo diversos planos racionais de vida, existiriam diversos bens para os indivíduos. Seguindo essa teorização, é que Rawls define o que seria um bom ato e uma boa ação. Um bom ato é aquele em que o agente possui a liberdade de praticar ou não praticar, não incorrendo sobre ele nenhuma obrigação ou “dever natural”, e que “promove e tem a intenção de promover o bem de outra pessoa”

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(RAWLS, 2002, p.485), já a boa ação seria, portanto, o ato bom praticado por um agente comprometido com o bem de uma outra pessoa.

A teoria da justiça de Rawls busca fornecer uma escolha e aceitação de princípios de justiça com base em uma situação filosófica que é a posição originária, ou seja, esses princípios deverão ser escolhidos baseados nas convicções de justiça em que todos os agentes estejam em uma situação de equilíbrio91 e, segundo Rawls, esse problema não existe para uma teoria do bem, pois:

[...] não há necessidade de um acordo sobre os princípios da escolha racional. Como cada pessoa é livre para planejar a sua vida como quiser (contanto que suas intenções sejam consistentes com os princípios da justiça); não se exige unanimidade sobre os padrões de racionalidade. Tudo que a teoria da justiça supõe é que, na análise restrita do bem, os critérios evidentes da escolha racional são suficientes para explicar a preferência pelos bens primários. (RAWLS, 2002, p.495)

Em sua obra O Liberalismo Político (2000) Rawls elabora uma lista de bens

primários que, segundo ele, pode ser dividida em cinco categorias: 1- os direitos e liberdade fundamentais, 2- liberdade de movimento e livre escolha, o autor complementa dizendo

que estariam inseridas “num contexto de oportunidades diversificadas”. (RAWLS, 2000, p.228),

3- poderes e prerrogativas de cargos e posições de responsabilidade nas instituições políticas e econômicas,

4- renda e riqueza, 5- bases sociais do auto-respeito.

Esses seriam os bens primários caracterizados, principalmente, por liberdades fundamentais e livre-oportunidade para todos, já o que ele chama de bases sociais do auto-respeito seriam “explicadas pela estrutura e conteúdo de instituições justas, conjugadas às características da cultura política pública” (RAWLS, 2000, p.229). O importante a salientar é que esta teorização de Rawls não aceita que os bens possam ser colocados e impostos aos seres racionais simplesmente pelo seu conteúdo, eles tem que ser o resultado de um acordo feito na posição original, e as diretrizes desse acordo são a racionalidade e a justiça. As pessoas possuem a liberdade de determinar o seu bem e, para Rawls, essa liberdade que faz gerar uma diversidade de concepções do que seja o bem é favorável ao desenvolvimento social, pois, a sociedade de indivíduos se beneficia dos vários talentos e habilidades das pessoas, que não poderiam ser encontrados em um único ser humano; outro benefício é colateral a este, é que por não termos em nós as mesmas habilidades e talentos, acabamos nos satisfazendo nas atividades interativas. Assim, na medida em que os planos de vida dos indivíduos sejam diferentes, e os objetivos

91 RAWLS, John. Uma teoria da justiça, 2002, p.147.

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pretendidos, em conseqüência, sejam diversos, uma forma diversificada de bens será escolhida, o que é altamente positivo para Rawls92. Bem para Rawls é a satisfação do desejo de cada indivíduo, o ser humano aspira à felicidade, mas esta não é um fator único e comum a todos, é através da posse e desfrute de certos bens conjugados com o desenvolvimento pessoal que o homem alcança a felicidade, porém todo esse processo só se torna possível através da justiça, ela é a virtude social que garante as liberdades individuais e garante a repartição dos bens. Nas palavras de Rawls:

Devido ao fato de essa sociedade ser uma união social composta de uniões sociais, ela implementa, num grau elevado, as várias formas de atividade humana; e dada a natureza social dos seres humanos, o fato de nossas potencialidades e inclinações irem muito além do que pode ser manifestado por uma única vida, dependemos dos esforços cooperativos dos outros não apenas como meios de atingirmos o bem-estar, mas também para fruirmos nossas faculdades latentes. E com um certo sucesso geral, cada um desfruta a maior riqueza e diversidade da atividade coletiva. No entanto, para participar plenamente dessa vida, devemos reconhecer os princípios de sua concepção normativa, e isso significa que devemos confirmar nosso sentimento de justiça. Para apreciar algo como nosso, nós lhe devemos alguma lealdade. O que reúne os esforços de uma sociedade em uma única união social é a aceitação e o reconhecimento mútuos dos princípios da justiça (RAWLS, 2002, p.636)

Por isso, Rawls diz claramente que existe uma prioridade do justo sobre o conceito de bem, o que é, como colocamos anteriormente, o cerne filosófico do liberalismo. É o que ele define de forma completa nesta passagem de sua obra O Liberalismo Político:

A idéia da prioridade do justo é um elemento essencial daquilo que denominei “liberalismo político” e tem um papel central na justiça como equidade na condição de uma das manifestações dessa visão. Essa prioridade pode gerar mal-entendidos: pode-se pensar por exemplo, que ela implica que uma concepção política liberal de justiça não pode utilizar absolutamente nenhuma idéia do bem, com exceção, talvez, daquelas que são puramente instrumentais; ou então daquelas que são uma questão de preferência ou de opção individual. Isso não é correto, uma vez que o direito e o bem são complementares: nenhuma concepção de justiça pode basear-se inteiramente em um ou em outro; antes, é preciso combiná-los de uma forma bem definida. A prioridade do justo não nega isso.(RAWLS, 2000, p.220)

92 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.496.

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5- ROBERT NOZICK 5.1) Linhas gerais: Finalizando a leitura do liberalismo em sua vertente moderna é interessante apresentarmos o pensamento do norte-americano Robert Nozick, sendo que, seu pensamento é uma forte defesa de um liberalismo político radical, que o coloca até como crítico do liberalismo de Rawls, pois, este último, principalmente na segunda parte de Uma Teoria da Justiça, considera viável e legítimo, em um sistema liberal, a distribuição da riqueza e de certos bens93; há no pensamento de Rawls uma preocupação com que ele chama de “membros menos avantajados da sociedade”94, como um libertário radical, Nozick discorda profundamente dessa tese de preocupação social inserida nessa vertente liberal. Estudando seu pensamento poderemos compreender a base da doutrina liberal contemporânea. Nozick estudou nas universidades americanas de Columbia e Princeton, onde obteve seu Mestrado e Doutorado, e foi, também, em Princeton que Robert Nozick tomou contato com o ideário neoliberal, e com um grupo político norte-americano conhecido como libertarianos que, embora, seja um grupo político que possui várias correntes, se caracteriza por ser um grupo defensor de princípios básicos do liberalismo político e econômico modernos: principalmente, a primazia do livre-mercado e a legitimidade da propriedade privada e da acumulação individual de riqueza95. A principal obra de Nozick, e fonte do estudo nessa seção, é Anarquia, Estado e Utopia de 1974. Como diz Merquior:

O objetivo de Anarquia, Estado e Utopia consiste em desenvolver uma defesa do Estado mínimo em duas frentes. Contra os anarquistas, que não querem saber de qualquer Estado, Nozick empenha-se em demonstrar que pode haver um Estado legítimo compatível com a liberdade. Contra os antiindividualistas, por outro lado, ele quer demonstrar que o bom Estado não precisa cercear os direitos individuais naturais. (MERQUIOR, 1991, p.209)

Nozick inicia sua obra fazendo, justamente, como colocou Merquior, um estudo sobre a teorização anarquista e o papel do Estado, buscando refutar a idéia de que o aparelho estatal é, intrinsecamente, imoral, porque viola direitos individuais. Segundo o autor essa idéia não se sustenta, pois, o Estado nasceria de forma quase voluntária, mesmo em um momento de anarquia, e o Estado não é um aparelho que precise necessariamente violar direitos individuais96.

93 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.303. 94 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.303. 95 PAUL, Jeffrey. Reading Nozick: essays on “Anarchy, State and utopia”. 1982, p.57. 96 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.131.

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Anarquia, Estado e Utopia apresenta duas grandes e importantes teorizações para o liberalismo, que Merquior chama de “radical”, ou para o neoliberalismo, que são: a justificativa do Estado mínimo97 e o ataque à qualquer idéia de que um Estado mais amplo possa ser justificável98, são essas teorizações, que explicam muito bem as características filosóficas do liberalismo de Nozick, que buscaremos compreender a seguir.

É interessante notar que, o próprio autor tinha em mente, a idéia de que sua empreitada filosófica poderia produzir rejeições amplas, e ser, até mesmo, considerada desumana em relação aos sofrimentos de muitos que poderiam ficar à margem do Estado. Nozick coloca, de maneira clara, essa idéia no prefácio de sua obra, e diz que:

[...] numerosas pessoas rejeitarão imediatamente nossas conclusões, tendo certeza de que não querem acreditar em algo aparentemente tão desumano em relação às necessidades e sofrimentos dos demais. Conheço bem essa reação, pois eu mesmo a senti quando comecei a estudar essas questões. Embora com relutância, descobri que estava ficando convencido pelas (como são muitas vezes chamadas nestes dias) opiniões libertárias, devido a numerosas considerações e argumentos. (NOZICK, 1991, p.10)

97 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.42. 98 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.174.

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5.2) Estado Mínimo: O pensamento de Robert Nozick pode ser visto como o desenvolvimento do liberalismo político clássico, que teoriza a favor de uma limitação do poder estatal e a defesa da primazia dos interesses e direitos do indivíduo perante a esfera estatal99. Com vários argumentos no decorrer da primeira parte de sua obra, Nozick produz uma forte defesa da teorização liberal clássica que vê o Estado como um todo organizado que detêm o monopólio da força, e cujo objetivo é a proteção do direito do indivíduo. A conclusão que Nozick apresenta, logo no início de Anarquia, Estado e Utopia, sobre as funções do Estado, conclusão que ele procurará embasar no transcorrer da obra, é que:

[...] um Estado mínimo, limitado às funções restritas de proteção contra a força. O roubo, a fraude, de fiscalização do cumprimento de contratos e assim por diante justifica-se; que o Estado mais amplo violará os direitos das pessoas de não serem forçadas a fazer certas coisas, e que não se justifica; e que o Estado mínimo é tanto inspirador quanto certo. (NOZICK, 1991, p.9)

Nozick constrói suas idéias liberais, sobre o papel e o lugar do Estado, a partir da teoria de Locke sobre o estado de natureza e os direitos naturais100. Porém, ao contrário de Locke, Nozick não defende um contratualismo que preza o surgimento do aparelho estatal, como conseqüência de um acordo voluntário dos indivíduos, o autor procura um outro caminho para chegar à defesa do Estado mínimo, para isso, ele procura dar uma outra explicação para a gênese da autoridade dentro do estado de natureza, essa outra explicação ele chama de teoria “de mão invisível101”, segundo essa teoria, seria algo previsível que, dentro do estado de natureza, surgissem associações não-estatais de ajuda mútua e, devido às leis do mercado, em um dado momento, uma dessas associações se encontraria em uma posição dominante frente às demais102. Essa é, segundo Nozick, uma explicação de “mão invisível”, pois, mostra que o que pode parecer ser resultado do trabalho pensado e executado por alguém, na verdade, não foi produto do trabalho de ninguém.

99 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.114. 100 A teorização de Robert Nozick aparece como finalização dessa leitura do liberalismo, justamente, por ser o pensamento contemporâneo que funciona como a visualização didática do que vimos em Kant primeiramente, depois em Locke, de onde ele começa a teorizar sobre o Estado, em seguida, vimos a filosofia de Rawls, que servirá, também, para compreendermos as críticas de Nozick àquele. Portanto, ao estudarmos o pensamento de Robert Nozick, estamos estruturando a linha de autores que escolhemos apresentar para apreender as principais características do liberalismo. 101 Essa idéia de “mão invisível” é famosa dentro da teoria liberal e foi cunhada e utilizada pelo filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) que, em sua obra A Riqueza das Nações, defendeu a idéia de que o indivíduo que busca alcançar seus próprios interesses acaba elevando a riqueza econômica da sociedade, mesmo que essa não tenha sido a sua intenção, através da mão invisível do mercado. 102 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.31.

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A agência de proteção que surge dentro do estado de natureza, e alcança uma posição dominante, produz o que Nozick chama de “Estado ultramínimo”. Em suas palavras:

O Estado guarda-noturno da teoria liberal clássica, limitado às funções de proteger seus cidadãos contra a violência, o roubo, a fraude e à fiscalização do cumprimento de contratos, etc., é aparentemente redistributivo. Podemos imaginar pelo menos um arranjo social intermediário entre o plano de associações de proteção privadas e o Estado guarda-noturno. Uma vez que este último é muitas vezes denominado de estado mínimo, designaremos essa outra versão como Estado ultramínimo. O Estado ultramínimo (...) proporciona serviços de proteção e cumprimento de leis apenas àqueles que adquirem suas apólices de proteção e respeito às leis. (NOZICK, 1991, p.42)

Segundo o autor norte-americano, pessoas que não adquiram junto ao monopólio um contrato de proteção não receberiam essa mesma proteção. Isso ocorreria porque:

O Estado (guarda-noturno) mínimo equivale ao Estado ultramínimo, combinado com um plano de cupões (claramente redistributivo) friedmanesco, financiado pela receita de impostos (a). De acordo com esse plano todas as pessoas ou algumas delas (por exemplo, as que se encontram em estado de necessidade) recebem comprovantes financiados por impostos que podem ser usados apenas para que comprem uma apólice de proteção ao Estado ultramínimo (NOZICK, 1991, p.42)

Para Nozick é lógico que essa agência de proteção que alcançou, através da mão invisível do mercado, uma posição dominante, busque proibir àqueles que não estão sob sua jurisdição, fazer justiça de forma particular, oferecendo, para isso, um amparo gratuito103; ao agir desta forma o Estado ultramínimo se transforma em Estado mínimo sem violar os direitos de ninguém, segundo Nozick isso se daria da seguinte forma:

Nossa explicação desse monopólio de facto é uma explicação de ação de mão invisível. Se o Estado é uma instituição que (1) tem o direito de impor o respeito a direitos, proibir a aplicação privada perigosa de justiça, proferir julgamentos sobre procedimentos privados, etc., e (2) é efetivamente o operador único do direito em um território geográfico em (1), então, ao oferecer uma explicação por efeito da mão invisível de (2), embora não de (1), explicamos parcialmente, à maneira da mão invisível, a existência do Estado. Ou mais exatamente: explicamos parcialmente à maneira da mão invisível a existência do Estado ultramínimo. Qual a explicação de como surge o Estado mínimo? A associação de proteção dominante, que detém o elemento monopolista, está moralmente obrigada a compensar pelas desvantagens que impõe àqueles que proíbe de atividades em causa própria contra os seus clientes. Contudo, ela, na verdade, pode deixar de pagar essa compensação. Os que controlam um Estado ultramínimo estão moralmente obrigados a transformá-lo em estado mínimo, mas podem resolver não agir assim. Supomos que de maneira geral as pessoas farão aquilo que estão moralmente obrigadas a fazer. Explicar como um Estado poderia emergir do estado de natureza sem violar os direitos de ninguém refuta as objeções do anarquista, baseadas em princípios (NOZICK, 1991, p.136)

103 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.67.

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Podemos perceber como essa teorização de Nozick é profundamente liberal, pois, se preocupa, fundamentalmente, em construir toda uma elaboração estatal a partir do indivíduo e seus direitos. Desta forma, é que Nozick diz que a criação do Estado mínimo é uma criação moral. Diz ele:

[...] a primeira transição – de um sistema de agências privadas de proteção para um Estado ultramínimo – ocorrerá mediante um processo de mão invisível, em uma maneira moralmente permissível que não viola o direito de ninguém. Em seguida argumentaremos que a transição do Estado ultramínimo para o mínimo tem moralmente que ocorrer. Seria moralmente intolerável que pessoas mantivessem o monopólio no Estado ultramínimo sem fornecer serviços de proteção a todos, mesmo que isso requeresse uma “redistribuição” específica. Os operadores do Estado ultramínimo estão moralmente obrigados a criar o Estado mínimo. (NOZICK, 1991, p.68)

A teorização de Nozick é profundamente liberal e totalmente dissociada dos pressupostos do comunitarismo, que vimos na primeira parte deste trabalho, pois, a primazia do justo sobre o bem se apóia, exclusivamente, na liberdade do indivíduo. É assim que Nozick constrói sua idéia de Estado como uma associação livre de proteção dos indivíduos, e de defesa dos direitos fundamentais; o Estado, que surge naturalmente, busca impedir que os indivíduos façam justiça por si mesmos. O Estado, que surge na teoria de Nozick, é menor do que as exigências do indivíduo, o Estado deve observar sempre a idéia de que tudo que o indivíduo adquiriu de forma justa é legítimo, deve sempre defender e proteger essa prerrogativa do indivíduo. Para Nozick, qualquer função excedente que o Estado se atribua é injusta, pois, a idéia de justo se liga, intrinsecamente, à noção de liberdade do indivíduo104. Como diz Norberto Bobbio, a conclusão “é que o Estado mínimo, embora sendo mínimo, é o estado mais extenso que se possa conceber: qualquer outro estado é imoral” (BOBBIO, 1994, p.91). Na tradição liberal podemos inserir Nozick como um radical defensor da liberdade, afinal toda a teorização acerca da gênese do Estado mínimo é uma grande tentativa de sustentar a primazia da autonomia e da igualdade moral dos indivíduos, buscando, sempre, proteger a idéia de que cada indivíduo possui o direito primordial de realizar seu ideal de uma vida boa105. E para garantir a plena realização do indivíduo, através dos caminhos que ele escolheu para si mesmo, não deve existir a menor interferência do Estado na vida social, além de suas atribuições mínimas nem a redistribuição estatal de riquezas geradas é aceita por Nozick106, como colocamos no início dessa seção, este é um dos principais fatores de diferenciação do pensamento de Nozick e Rawls. Se tivermos em mente que toda a segunda parte de Uma Teoria da Justiça de John Rawls é a teorização sobre o resultado dos talentos individuais como

104 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.259. 105 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.181. 106 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.247.

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produtos sociais e, o caráter legítimo da distribuição de riquezas, poderemos enxergar como Nozick discorda profundamente dessa idéia de redistribuição social. Nozick admira o trabalho de Rawls, mas procura discordar e retrabalhar o ponto da justiça distributiva, como ele diz:

O A Theory of Justice é um trabalho vigoroso, profundo, sutil, amplo, sistemático sobre filosofia política e moral como nunca se viu igual desde as obras de John Stuart Mill. É uma fonte de idéias esclarecedoras integradas em um belo conjunto. Os filósofos políticos têm agora ou de trabalhar com a teoria de Rawls ou explicar por que não o fazem. (NOZICK, 1991, p.202)

E nesse ponto Nozick procura explicar que discorda de Rawls na questão da existência de uma necessidade de justiça distributiva na dinâmica da cooperação social. Nozick se pergunta:

Por que a cooperação social cria o problema da justiça distributiva? Não haveria problema de justiça e nenhuma necessidade de uma teoria de justiça, se não houvesse absolutamente cooperação social, cada pessoa obtendo sua parcela exclusivamente por seus próprios esforços? Se supomos, como Rawls parece fazer, que essa situação não coloca questões de justiça distributiva, então, em virtude de que fatos da cooperação social essas questões emergem? O que é que há na cooperação social que gera problema de justiça? (NOZICK, 1991, p.204)

Como libertário radical, Nozick não encontra resposta para essa pergunta. Para ele a cooperação social não produz dificuldade e desarranjos sociais que seriam passíveis de uma justiça distributiva. Como diz Merquior, Nozick é um “mestre do raciocínio conjectural” (1991, p.209), e para explicar seu ponto de vista sobre a questão da justiça distributiva, ele elabora algumas conjecturas, assim, ele cria a parábola dos dez Robinson Crusoé, cada um estaria em sua respectiva ilha, trabalhando sozinho. Com essa parábola, Nozick procura mostrar como é problemático afirmar, peremptoriamente, que não há reivindicações conflitantes onde não exista cooperação social. Em suas palavras:

Se houvesse dez Robinson Crusoé, cada um trabalhando sozinho durante dois anos em ilhas separadas, que descobrissem que cada um existia, e os fatos de suas diferentes parcelas, através de comunicação de rádio com transmissores deixados nos locais 20 anos antes, não poderiam eles apresentar reivindicações uns aos outros, supondo que fosse possível transferir bens de uma ilha para outra? (NOZICK, 1991, p.204)

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Outra conjectura que Nozick constrói é ainda mais reveladora de seu liberalismo radical em contraponto ao de John Rawls; é a idéia que podemos chamar de “sociedade metade cega”107. Segundo Nozick seria absurdo defendermos que em uma sociedade onde a metade da população é desprovida de um olho, os transplantes feitos através da outra metade normal sejam obrigatórios, seguindo um princípio de justiça distributiva. É importante e esclarecedor essa parte da obra de Nozick, onde ele diz:

Por que devem diferenças entre pessoas ser justificadas? Por que pensar que temos que mudar, remediar ou compensar qualquer desigualdade que possa ser mudada, remediada ou compensada? Talvez seja nessa dimensão que entra a cooperação social: embora não haja presunção de igualdade entre todas as pessoas (em digamos, bens primários ou coisas que interessam às pessoas), talvez ela exista entre pessoas que cooperam entre si. Mas é difícil encontrar uma justificativa para isso. Certamente nem todas as pessoas que cooperam entre si concordam explicitamente com essa presunção como uma das condições da ação mútua. (NOZICK, 1991, p.240)

Como diz Bobbio, a teoria de Nozick está inteiramente baseada em alguns

princípios do direito privado, os quais especificam que “todo indivíduo tem direito de possuir tudo o que adquiriu justamente (ou princípio de justiça na aquisição) e tudo o que adquiriu justamente do proprietário precedente (princípio de justiça na transparência” (NOZICK, 1991, p.90). Para Nozick a legitimidade de qualquer formação social encontra-se, única e exclusivamente, na questão do consentimento voluntário das partes formadoras de um “tecido” social, por isso, o único Estado legítimo, e suportável, é o Estado mínimo, o qual não interfere na vida dos indivíduos e deixa sempre aberto a possibilidade de escolha, feita pelo sujeito individual, dentro do campo social.

Podemos verificar porque Merquior diz que Nozick é um liberal-radical, o filósofo norte-americano produz uma teoria da primazia do justo sobre o bem, onde o justo só se realiza através do indivíduo, o justo está ligado a cada indivíduo isolado e à idéia de que nada (nenhum Estado ou aparelho estatal) restringirá e interferirá na liberdade do indivíduo.

Após o estudo dos quatro autores, podemos notar algumas diferenças pontuais nas características liberais que apreendemos de suas teorizações, mas podemos (o que é mais importante para o presente estudo) após a apresentação dos autores buscar as linhas gerais do que chamamos de matriz liberal.

Vimos que Locke seguiu de certa forma os princípios teóricos de Hobbes ao manter as características contratualistas em sua filosofia política, abandonando as idéias absolutistas daqueles. No primeiro tratado Locke buscou estabelecer uma refutação da tese patriarcal108, já o Segundo Tratado separa os tipos de domínio,

107 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.238. 108 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, p.271.

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separando os poderes paternal e despótico e abrindo espaço para o estudo do poder civil109, que surgiria do consentimento.

Os dois tratados de Locke desenvolveram uma teoria do consentimento baseada na legitimidade do governo, e uma teoria da confiança110 que elabora uma teoria sobre o relacionamento recíproco entre governantes e súditos. Essas características serão encontradas em todas teorizações liberais posteriores.

Já em Kant pudemos observar a concepção liberal do Estado, buscando apreender em seu pensamento uma das fortes e influentes características à matriz liberal, que é a idéia de liberdade em seu pensamento111, a concepção profundamente liberal que estabelece a não existência de uma regra geral de felicidade, sendo esta algo de pessoal e, desta forma, não caberia ao Estado formular princípio algum válido universalmente para estabelecer leis e normas112.

Posteriormente, vimos como Rawls teoriza, justamente sobre a influência destes dois autores e que em sua obra filosófica reverbera uma das principais características da matriz liberal, que é a idéia da prioridade do justo sobre o bem113, utilizando e retrabalhando a idéia kantiana que colocamos aqui, de defesa do princípio liberal de que cada pessoa é livre para planejar sua vida como quiser, não existindo uma categoria de bem universal que se sobrepusesse sobre o conceito do justo114.

Por fim vimos como essas características liberais aparecem no trabalho de Robert Nozick115, vimos que o autor norte-americano avança na questão da defesa da liberdade individual e na relação do indivíduo com o Estado, enxergando que não há razão filosófica e moral para a existência de um Estado que vá além do mínimo116.

Após a apresentação destes quatro autores e o estudo das contribuições dadas pela filosofia política dos mesmos à matriz liberal, podemos tentar estabelecer algumas características principais do liberalismo. Como dissemos no começo deste capítulo, o liberalismo busca desconstruir a certeza aristotélica de um bem geral que seja capaz de fundamentar a sociedade, a idéia da primazia da liberdade individual não permite a existência de uma concepção “natural” da mesma sociedade, o indivíduo passa a vir antes do social.

No liberalismo o justo tem prioridade sobre o bem, e isto quer dizer que (tendo o homem como unidade originária) existe algo que a partir do indivíduo

109 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, p.379. 110 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo, p.518. 111 KANT, A metafísica dos costumes. 2003, p.202. 112 KANT, A metafísica dos costumes. 2003, p.297. 113 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.5. 114 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.495. 115 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991. 116 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.9.

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constrói o “tecido social”, como vimos nos autores estudados117, esse algo é o contrato, a concepção contratualista.

No plano da relação entre o indivíduo e o Estado as características da visão liberal delimitam a

esfera privada em relação à pública, de modo que o indivíduo usufrua de uma liberdade protegida de

ingerências do poder estatal, e esta liberdade, de acordo com a matriz liberal, deverá ser a mais ampla

possível, na medida entre o interesse individual e o interesse coletivo.

117 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, p.497

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A OPOSIÇÃO ENTRE COMUNITARISTAS E LIBERAIS 1- As matrizes: Na terceira parte de nosso estudo buscaremos identificar, expor e

compreender o conflito filosófico existente entre o que chamamos de matriz liberal e matriz comunitarista, buscando compreender as críticas que os comunitaristas modernos fazem aos liberais e, conseqüentemente, apreender as diferenças conceituais e teóricas existentes entre as duas matrizes.

Antes, porém, é importante pontuar que essas diferenças teóricas não são apreendidas de forma “acabada” na realidade política, não devemos acreditar que exista uma única postura liberal e um único modo de pensar comunitarista, é importante fazermos essa ressalva, para não incorrermos no erro de acreditar que há em cada uma dessas matrizes teóricas, um único conjunto de princípios a serem aplicados no campo político. Temos que ter em mente que a tradição liberal, por exemplo, não é homogênea.

Como vimos no capítulo dedicado à matriz liberal, existem princípios e idéias que unem e se desenvolvem no pensamento de Locke, Kant, Rawls e Nozick, mas há também diferenças conceituais, que nos levam a poder falar de liberalismo radical, que desenvolve e teoriza mais sobre a questão da individualidade frente ao Estado, ou de liberalismo moderado, que seria mais aberto aos fatores sociais e culturais da cena política. No debate liberal moderno podemos identificar duas heranças118 apontadas por José Guilherme Merquior em sua obra já citada: O Liberalismo - Antigo e Moderno (1991); existe um ideário liberal herdeiro da filosofia hobbesiana, que preconiza a idéia de que a função do Estado encontra-se apenas na ação de assegurar a dinâmica de coexistência do indivíduo com o outro dentro de uma sociedade contratualista, a outra “escola liberal”, podemos chamar assim, é herdeira da filosofia de Kant, enxerga uma função moral para o Estado, é a idéia de garantir para cada indivíduo a liberdade de escolha, cada indivíduo elegerá sua idéia do que seja uma vida boa, e Estado é o instrumento que garante essa liberdade de escolha119.

Tendo-se em mente essa ressalva, exemplificada pelo ideário liberal, e que evita que caiamos em abstrações infundadas, mantendo sempre em mente que ao se unir o pensamento de vários autores estamos estabelecendo uma generalização com uma função didática, como diz Marcelo Galluppo120:

118 MERQUIOR, José Guilherme. O Liberalismo – antigo e moderno. 1991, p.36. 119 KANT, A metafísica dos costumes. 2003, p.202 120 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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Evidentemente, tais matrizes são generalizações tanto de características que podemos encontrar nas comunidades e nas sociedades que se desenvolveram no ocidente quanto de idealizações conceituais que se fizeram destas mesmas comunidades e sociedades ao longo da história do pensamento político. Este alerta é importante para lembrar o leitor que elas funcionam como um tipo ideal de função expressamente interpretativa, que visa compreender os acordos que se realizam no interior de um grupo social. (GALUPPO, 2003)

Observando essa ressalva weberiana que Galuppo aponta, podemos, em seguida, estabelecer os princípios gerais encontrados no pensamento dos comunitaristas e dos liberais para, desta forma, nos auxiliar na compreensão dos fatores e críticas que opõem as duas matrizes. Como vimos no transcorrer da apresentação do pensamento de Aristóteles, São Tomás de Aquino, MacIntyre e Walzer, a característica central que pode ser apreendida na matriz comunitarista é a idéia de que o todo viria antes das partes, o indivíduo é considerado parte integrante de uma comunidade política, vimos isso de forma acentuada em Aristóteles e São Tomás de Aquino, e de forma retrabalhada com idéias e conceitos modernos, em MacIntyre e Walzer. Na visão comunitarista a vida política da comunidade está intimamente ligada à cooperação social, ligada ao indivíduo, este possui deveres éticos para com a comunidade, esta por sua vez está organizada com base na idéia de bem comum. Esse é, precisamente, o princípio geral de distinção entre comunitaristas e liberais: a idéia de bem comum como fator organizacional da comunidade. O que vimos pontualmente durante toda a apresentação dos capítulos precedentes e, que veremos a seguir, agora com a base expositiva das duas primeiras seções.

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2- A OPOSIÇÃO ENTRE O JUSTO E O BEM: Na oposição existente entre as teses comunitaristas e liberais, o valor dado

aos conceitos de bem e de justo é, talvez, o tema definidor das duas visões filosóficas, é o fator que distingue as matrizes. O local que a idéia de bem e de justo ocupa em ambas teorias é o princípio gerador e construtivo de qualquer pensamento filosófico vinculado a elas, seja o pensamento de Rawls ou de Walzer. É importante salientar que, historicamente, a oposição existente entre os conceitos de bem e de justo é um dos principais temas da filosofia política121.

Durante toda a apresentação da matriz comunitarista observamos a defesa de uma visão teleológica, ou seja, a idéia da primazia do bem sobre o justo, como vimos no primeiro capítulo desse trabalho, nessa visão teleológica a comunidade é o que define o homem, o indivíduo passa a “ter sentido” na vida comunitária; seguindo a visão aristotélica, parte do homem para deduzir as virtudes necessárias para um ideal de vida, ou seja, a partir de Aristóteles122, vimos que o pensamento comunitarista busca deduzir o telos a partir da natureza humana123. No comunitarismo o bem é definido antes que o justo e, após Aristóteles, com o pensamento de Walzer124 e MacIntyre125, observamos uma defesa dessa noção de primazia do bem sobre o justo. Como define bem Chantal Mouffe126, os comunistaristas: “[...]afirmam que não se pode definir o justo antes que o bem, pois só através de nossa participação em uma comunidade, que define o bem, é que podemos ter sentido do justo e uma concepção da justiça.” (MOUFFE, 1998, tradução nossa)127

Como diz Jorge Eduardo Navarrete Poblete128 em artigo intitulado Liberdades, Comunitaristas y Republicanos (2001), para o comunitarismo a primazia do bem sobre o justo é dada pela idéia de que os fins a que o sujeito está destinado não são, necessariamente, definidos pelo próprio sujeito:

[...] nós, seres humanos, estamos destinados a fins que não necessariamente foram dados por nós mesmos e, portanto, a relação entre o justo e o bem deve ser traçada em favor deste último. Segundo esta tese, a possibilidade de ascender ao conhecimento do bem e da virtude, seja por quais meios forem (a razão, a religião ou a interpretação

121 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 122 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 1992, §9, p.14. 123 ARISTÓTELES. A Política. 1995, §10, p.14. 124 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997. 125 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001. 126 MOUFFE, Chantal. El Liberalismo norteamericano y sus críticos. 1998. Disponível em http://www.elpais.es/articulo/elpbabens. Acesso em: 05 de jan. 2006. 127 [...] afirman que no se puede definir al derecho antes que el bien, pues sólo a través de nuestra participación en una comunidad que define al bien podemos tener un sentido del derecho y una concepción de la justicia. 128 POBLETE, Jorge Eduardo Navarrete. Liberdades, Comunitaristas y Republicanos. 2001. Disponível em: <http://www.red21.cl/op22.pdf>. Acesso em 05 de jan. 2006.

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histórica) compromete que o desenho das instituições básicas deva favorecer esse fim específico. (POBLETE, 2001, tradução nossa)129

Vimos como, historicamente, se deu a gênese do pensamento político liberal,

que através das rupturas com o pensamento pré-iluminista passa a defender uma visão política deontológica, ou seja, de prioridade do justo sobre o bem. E como diz Galuppo, o liberalismo “se constitui por críticas e oposição” ao comunitarismo130. Se por um lado a matriz comunitarista se desenvolve a partir do pensamento de Aristóteles, o liberalismo é herdeiro do pensamento de Locke e Kant, e no plano econômico, de Adam Smith131.

Kant constrói sua filosofia política a partir da idéia de uma regra racional que estaria dimensionada no indivíduo, e constrói uma ética que, como vimos, está restrita ao conhecimento e possível aplicação de leis a priori do pensamento que teriam a função de fundamentar o comportamento moral do sujeito, ou seja, Kant procura estabelecer uma lei moral com base racional apenas.

Após a dissolução dos centros orientadores da vida antiga (como diz Galuppo, até o século XV “a vida era orientada por referenciais tidos como evidentes132”) surge uma grande gama de concepções do que seja o bem. Com o advento da revolução Científica, das Grandes Navegações e da Reforma Protestante, a discussão política passa a ter outras questões imediatas, há um crescente abandono das concepções do bem e um crescente debate moderno sobre as noções de autonomia moral e de liberdade individual, de onde o pensamento de Kant lança as linhas principais para o liberalismo nascente.

Com o advento das idéias liberais em Locke133 e Kant134, mas também em Descartes135, há uma inversão deontológica, ocorre a visão de primazia do justo sobre o bem, começa a se compreender que o justo não pode derivar-se de qualquer concepção particular do que seja o bem136, como diz Chantal Mouffe:

[...] para os liberais de influência kantiana como Rawls a propriedade do justo sobre o bem significa não só que não se pode sacrificar os direitos individuais em nome do bem-estar geral, mas também que os princípios da justiça não podem ser derivados de

129 [...] los seres humanos estamos destinados a fines que no necessariamente han sido dados por nosotros mismos y, por lo tanto, la relación entre lo justo y lo bueno debe ser trazada a favor de esta última. Según esta tesis, la posibilidad de acceder al conocimiento de lo bueno y la virtud, sea por los medios que sea (la razón, la religión o la interpretación histórica) compromete que el diseño de instituciones básicas deba favorecer ese fin específico. 130 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 131 SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas. 1983. 132 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 133 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998. 134 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. 1959. 135 DESCARTES, René. Discurso do método ; meditações ; objeções e respostas ; as paixões da alma ; cartas. 1983 136 MOUFFE, Chantal. El Liberalismo norteamericano y sus críticos. 1998. Disponível em http://www.elpais.es/articulo/elpbabens. Acesso em: 05 de jan. 2006.

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uma concepção particular do que seja uma vida boa. Este é o princípio do liberalismo, segundo o qual não pode existir uma só concepção da eudaimonia, do bem-estar, que possa impor-se sobre as demais, mas que cada um deve ter a possibilidade de buscar a sua própria felicidade como queira, colocar para si mesmo seus próprios objetivos e tratar de realizá-los de seu jeito. (MOUFFE, 1998, tradução nossa)137

Vale citar logo em seguida a esse trecho de El Liberalismo Norteamericano y

sus Críticos (1998) de Chantal Mouffe, um trecho do texto de Galuppo138 que completa a idéia deontológica do liberalismo, ao expor o papel da eudaimonia na filosofia aristotélica:

Em Aristóteles este bem é entendido como sendo a felicidade, a eudaimonia. O prazer egoísta e individualista do homem moderno não é um sucedâneo da eudaimonia grega. Como explica Pohlenz, “na alma do povo [grego] estava enraizada profundamente a aspiração a ver coincidir o valor íntimo do homem e a sua situação exterior”, e nesta coincidência consiste a felicidade. A felicidade (eudaimonia) é a realização plena do ser do homem, ou seja, de seu bem. (GALUPPO, 2003)

O liberalismo com sua forte noção e defesa do indivíduo não abre espaço

para uma só concepção de felicidade e, conseqüentemente, de bem social. A idéia liberal deontológica é a de que os princípios de justiça não podem ser escolhidos em uma sociedade tendo-se como base uma concepção específica do bem, a idéia é justamente o contrário dessa noção, ao se escolher princípios de justiça específicos há uma, conseqüente, escolha entre diferentes concepções de bem. O comunitarismo moderno (exemplificado e apresentado nesse estudo pelo pensamento de Walzer e MacIntyre) questiona justamente essa inversão ocorrida no liberalismo de prioridade do justo sobre o bem. O comunitarismo moderno questiona se essa inversão filosófica foi um progresso ou um retrocesso social, pois, para o comunitarismo moderno, os destinatários dos valores são ou as comunidades ou as comunidades políticas e não o indivíduo139.

A crítica contemporânea dos comunitaristas estabelece-se sobre o tema do individuo e sua relação com a sociedade, concebendo o indivíduo imerso em uma dinâmica histórica e cultural que, por vezes, determina seu modo de pensar, ao contrário da filosofia individualista do liberalismo. É o que apresenta, de maneira clara e didática, essa passagem do texto de Poblete140:

137 [...] para los liberales de tipo kantiano como Rawls la prioridad del derecho sobre el bien significa no sólo que no se pueden sacrificar los derechos individuales en nombre del bienestar general, sino también que los principios de la justicia no pueden ser derivados de una concepción particular de lo que es bueno en la vida. Este es el principio del liberalismo según el cual no puede existir una sola concepción de la eudaimonia, del bienestar, que pueda imponerse a todos, sino que cada uno debe tener la posibilidad de buscar su felicidad como le parezca, fizarse a sí mismo sus propios objetivos y tratar de realizarlos a su manera. 138 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 139 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.23. 140 POBLETE, Jorge Eduardo Navarrete. Liberdades, Comunitaristas y Republicanos. 2001. Disponível em: <http://www.red21.cl/op22.pdf>. Acesso em 05 de jan. 2006.

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Nascido no começo dos anos 80 na América do Norte (Estados Unidos e Canadá), o comunitarismo se constitui em um movimento intelectual difuso, não compacto, que serve de “refúgio” para um número extenso de intelectuais que possuem como denominador comum a crítica ao movimento liberal de inspiração kantiana. (POBLETE, 2001, tradução nossa)141

São essas críticas que o comunitarismo moderno faz142, que veremos a seguir.

141 Nacido a comienzos de los años ochenta en Norteamérica (Estado Unidos y Canadá), el comunitarismo constituye un movimiento intelectual difuso, no compacto, que ha servido de “paraguas” para un vasto numero de intelectuales que han tenido como denominador común la crítica al movimiento liberal de inspiración kantiana. 142 Em seu texto Liberales, Comunitaristas y Republicanos, o autor denomina de comunitarismo a filosofia desenvolvida, principalmente, por Walzer e MacIntyre, em nosso trabalho fazemos como vários outros autores e identificados o comunitarismo a partir da filosofia de Aristóteles.

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3 – AS CRÍTICAS COMUNITARISTAS 3.1) Crítica antropológica: Além da discussão existente entre o justo e o bem, comunitaristas e liberais

possuem visões antagônicas sobre o lugar do indivíduo e sua inserção na comunidade, e essa discussão abre espaço para as críticas do comunitarismo moderno (baseado, principalmente, em MacIntyre e Walzer) críticas antropológicas e críticas normativas. Tanto liberais quanto comunitaristas possuem concepções antropológicas distintas143.

A concepção ética que Aristóteles construiu pressupõe, como de resto todas concepções éticas, uma dada antropologia, ou seja, uma teoria sobre o que seja o homem. No caso da antropologia aristotélica, estabelece-se uma primazia do todo sobre a parte. Não podemos definir a realização do bem do homem, ou seja, a eudaimonia, sem nos remetermos à própria comunidade. (GALUPPO, 2003)

Já sobre a antropologia liberal, completa Galuppo; no mesmo texto:

Também o liberalismo implica numa antropologia. Só que aqui a antropologia é invertida. Ele afirma uma primazia, uma preexistência ontológica e histórica do indivíduo em relação à comunidade. (GALUPPO, 2003)

E, realmente, é o que verificamos no pensamento das duas matrizes: concepções antropológicas distintas. O liberalismo tem seu pensamento político marcado por um individualismo que valoriza o sujeito em detrimento à comunidade, eivado de posições filosóficas totalmente contrárias a um coletivismo político que priorize a comunidade em detrimento do indivíduo. Os comunitaristas modernos criticam essa concepção antropológica liberal. Para filósofos como MacIntyre e Walzer a crítica é feita à concepção liberal de um indivíduo totalmente desvinculado da dinâmica comunitária, um indivíduo atomizado144. O princípio antropológico do liberalismo é o de que o indivíduo não pode ser definido como sujeito tendo como base sua relação com o campo social, através de suas várias formas: cultura, política, religião ou economia, não é a relação travada entre o sujeito e qualquer desses campos sociais que o define. O indivíduo liberal é antropologicamente livre, pode procurar não se relacionar com qualquer tipo de convicção da comunidade, é, precisamente, a liberdade que define o sujeito liberal145. Para os comunitaristas modernos essa antropologia liberal é um erro, e um erro perigoso para o “tecido social”. É um erro porque vê a liberdade do 143 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 144 SUÁREZ LLANOS, Maria Leonor. La teoría comunitarista y la filosofía política. Presupuestos y aspectos críticos. 2001, p.75. 145 LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 1998, Livro II, Cap.I, p.379.

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homem como um fator inerente ao ser humano, não vendo que o que realmente dá sentido à existência do indivíduo é o conjunto de inter-relações sociais e, esse conjunto social, já faz parte da cultura a qual o indivíduo pertence, esse conjunto é anterior ao indivíduo146. É importante verificar que é precisamente por isso que o comunitarismo requer um perfeccionismo ético, como diz André Berten, citado por Galuppo147:

Por isso o comunitarismo desaguará no perfeccionismo. A expressão é usada por André Berten para se referir ao fato de que uma grande preocupação de grande parte dos comunitaristas é exatamente com a existência de uma concepção particular e precisa de felicidade, que depende da realização de alguns fatores para que ela se realize. E estes fatores, por sua vez, demandam uma vida virtuosa perfeita, estritamente vinculada e dirigida por esta idéia de que as virtudes não passam de meios para se atingir o bem do homem, o que nos remete, mais uma vez, à idéia grega de virtude. (GALUPPO, 2003)

Os comunitaristas modernos, como diz Galuppo no final dessa citação, buscam uma forma de dinâmica social para a modernidade, baseando-se nas características da sociedade grega, buscando oferecer uma base aristotélica para a teorização. A crítica comunitarista feita à teoria antropológica do liberalismo encontra-se concentrada na idéia do que define o indivíduo, para o comunitarismo, portanto, o que define o sujeito não é fruto de escolhas aleatórias e “livres” que esse sujeito possa fazer, a existência desse sujeito é fruto, sim, de uma dinâmica indivíduo-comunidade, dentro de um campo cultural que precede esse sujeito148. Os comunitaristas querem mostrar que até esse indivíduo livre e “auto-determinante” do liberalismo é resultado de uma dinâmica de socialização com seus vários fatores econômicos, éticos, políticos e religiosos que o condicionam149. Para a matriz comunitarista, então, o sujeito atomizado do liberalismo é um erro conceitual e, como dissemos, um erro perigoso, pois, possui o efeito de enfraquecer o campo cultural de várias comunidades ao bater de frente com identidades nacionais que possam ser um entrave ao individualismo, na medida em que o liberalismo possui uma pretensão universalizante. O liberalismo e seu modo de ver antropológico acabam sendo um obstáculo para a diversidade cultural, pois entendem que o liberalismo resvala para a defesa de um indivíduo desvinculado do campo cultural, de suas raízes, abrindo espaço para uma unidade cultural que não respeitaria as diversidades culturais dos povos; o liberalismo, para esta crítica comunitarista, defenderia um ser desencarnado e descomprometido, mas capaz de escolher os fins e os valores que orientam sua vida. Esta teorização é, segundo os comunitarista modernos, desvinculada da realidade, pois a identidade do homem 146 MACINTYRE. Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.364. 147 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 148 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.23. 149 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.24.

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não é algo inato150. É o que diz, precisamente, Charles Taylor151, para quem a visão liberal do sujeito é “atomística”152, pois afirma o caráter auto-suficiente do indivíduo, constituindo um real empobrecimento em relação à noção aristotélica do homem153. MacIntyre procura oferecer uma teoria diametralmente oposta a esse modo de ver antropológico do liberalismo, que defende uma preexistência “ontológica e histórica do indivíduo em relação à comunidade” como diz Galuppo154. MacIntyre, com base na filosofia aristotélica, defende, no transcorrer de sua obra, a idéia de que o indivíduo não está desvinculado do social que o cerca155, que a existência do sujeito só adquire significado quando pode ser vista como uma narrativa histórica156, e essa narrativa só tem sentido dentro de uma comunidade, que por sua vez, está inserida em uma comunidade global157, como diz Galuppo158.

As conversas e a vida são narrativas encenadas por nós, que somos, antes de tudo, seus atores. Da possibilidade de entendermos nossa vida como uma narrativa depende o compreendermos a vida (a narrativa) dos outros. E a vida real se difere da ficção exatamente porque na vida real vivemos a história antes de contá-la (ou de narrá-la) (GALUPPO, 2005)

A crítica comunitarista ao atomismo antropológico do liberalismo está,

portanto, centrada na idéia aristotélica de valorização do campo político, entendido como uma ordem de interação de valores morais adquiridos coletivamente., sendo que a relação entre os indivíduos em sociedade atinge uma harmonia através da amizade, sendo esta a virtude, o fator que faz funcionar socialmente a relação entre indivíduos. Chantal Mouffe explica bem essa idéia crítica do comunitarismo, de revalorização do campo político como forma de legitimar o indivíduo159:

À concepção liberal do indivíduo, os autores comunitários opõem a imagem do cidadão que se encontra na tradição do republicanismo cívico. Contrariamente ao liberalismo, esta tradição proporciona, de fato, uma linguagem que permite pensar a política de uma maneira que não seja instrumental. Sendo que desempenhou um papel importante na cultura política norte-americana do século XVII e que não desapareceu completamente, trata-se, desta forma, de revivê-la e desenvolver aos norte-americanos a capacidade de articular suas experiências e conceber sua identidade em termos de sua participação

150 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.21. 151 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.18. 152 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.18. 153 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.24. 154 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 155 MACINTYRE. Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.371. 156 MACINTYRE. Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.364. 157 MACINTYRE. Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.371. 158 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 159 MOUFFE, Chantal. El Liberalismo norteamericano y sus críticos. 1998. Disponível em http://www.elpais.es/articulo/elpbabens. Acesso em: 05 de jan. 2006.

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ativa em uma comunidade política. Os comunitaristas vêem a solução para crises de legitimidade que afeta o sistema democrático em uma revalorização da esfera da política e em uma reabilitação da noção de “virtude política” (MOUFFE. 1998, tradução nossa)160

A visão comunitarista de defesa e valorização do social como forma de constituir a identidade do indivíduo, não deve ser vista de maneira radical. A orientação histórica e cultural que o indivíduo recebe não o pré-determina, pois existiria sempre a possibilidade do surgimento de novos valores devido a originalidade e empreendimento do ser humano161; essa orientação fornece um sentido à existência do indivíduo, os comunitaristas modernos defendem a idéia de que as sociedades contemporâneas fornecem aos indivíduos mecanismos (que são condicionados cultural e historicamente) para que estes possam construir a sua identidade. Para essa crítica comunitarista162, não é possível, portanto, subsistir uma ordem social baseada em um contrato, pois contratos podem ser dissolvidos, a idéia é a de que o justo não é anterior ao bem. Como diz Chantal Mouffe163:

De fato, na concepção deontológica, a primazia da justiça não descreve somente uma prioridade moral, mas também uma forma privilegiada de justificação. O justo é anterior ao bem, não só porque suas exigências possuem prioridade, mas porque seus princípios se derivam de maneira independente. Mas para que o justo seja anterior ao bem seria necessário que o sujeito pudesse ter uma identidade definida anteriormente aos valores e aos objetivos que vai buscar. De fato, é a capacidade de escolher (e não as escolhas que faz) que define o referido sujeito. Se não, jamais pode existir fins que sejam constitutivos da identidade do sujeito, nega-se assim a possibilidade de participar em uma comunidade onde a definição mesma do que é está em jogo. (MOUFFE, 1998, tradução nossa)164

160 A la concepción liberal del individuo, los autores comunitarios oponen la imagen del ciudadano que se encuentra en la tradición del republicanismo cívico. Contrariamente al liberalismo, esta tradición proporciona, en efecto, un lenguaje que permite pensar la política de una manera no instrumental. Puesto que ha desempeñado un papel importante en la cultura política norteamericana del siglo XVII y que no ha desaparecido completamente, se tratará entonces de revivificarla y desenvolver de esta manera a los norteamericanos la capacidad de articular sus experiencias y concebir su identidad en términos de su participación activa en una comunidad política. Los comunitarios ven la solución para la crisis de legitimidad que afecta al sistema democrático en una revalorización de la esfera de la política y en una rehabilitación de la noción de “virtud política” 161 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.38. 162 SANDEL, Michael J. Liberalism and the limits of justice. 1982. 163 MOUFFE, Chantal. El Liberalismo norteamericano y sus críticos. 1998. Disponível em http://www.elpais.es/articulo/elpbabens. Acesso em: 05 de jan. 2006. 164 En efecto, em la concepción deontológica, la primacía de la justicia no describe solamente uma prioridad moral sino también uma forma privilegiada de justificación. El derecho es anterior al bien, no sólo porque sua exigencias tienen prioridad, sino porque sus principios se derivan de manera independiente. Pero para que ele derecho sea anterior al bien sería necesario que el sujeto que pueda tener una identidad definida anteriormente a los valores y a los objetivos que va elegir. En efecto, es la capacidad de elegir (y nos las elecciones que realiza) la que define semejante sujeto. Si no, no pueden existir jamás, fines que sean constitutivos de la identidad del sujeto, se le niega así la posibilidad de participar en una comunidad donde la definición misma de lo que él es está en juego

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3.2) Crítica sociológica: O cerne da crítica sociológica empreendida pelo comunitarismo é a idéia da

sociedade resultante de um contrato, a idéia do contratualismo liberal. O contratualismo liberal de Locke e, depois, Rawls é o fator que o

comunitarismo vê como permissivo, a concepção sociológica que geraria desagregação em uma comunidade. Para o comunitarismo é impossível que ocorra a construção de um tecido social com base na reunião de vontades individuais, pois o ordenamento social só seria sustentável se o indivíduo reconhecesse um conjunto de normas que existe antes dele. A concepção contratualista falharia, justamente, neste ponto central de sustentabilidade social, ao defender que o indivíduo “existe” antes do Estado e que este último é fruto de um acordo que pode ser dissolvido por aquele. Esta crítica sociológica está, como dissemos, intimamente, ligada à crítica antropológica, na medida em que a base de ambas é a defesa de uma concepção valorativa da comunidade. Como diz Jorge Eduardo Navarrete Poblete165:

[...] a matriz comunitarista sustenta que os destinatários dos valores são as sociedades ou comunidades políticas e não os indivíduos. Estas comunidades, com suas tradições, histórias e culturas influenciam e modificam os direitos e a moral, sem a possibilidade de que existam cânones éticos universais, objetivos e desvinculados da história. Segundo, que a justiça (como dever) da que Kant e seus ilustres seguidores se ocupam, é uma virtude secundária (ou de um momento posterior), que deverá operar só depois de que virtudes como a solidariedade, a lealdade ou o respeito mútuo hajam fracassado (como dizia Aristóteles: quando os homens são amigos, não requerem de justiça). [...] Por último, e como conseqüência do exposto anteriormente, em Kant e no liberalismo há uma concepção de homem abstrato que não existe e uma idéia de ser humano, desumanizado e sem virtudes que não é desejável. (POBLETE, 2001, tradução nossa)166

Segundo Poblete, nesta citação, há na teoria liberal uma concepção de

“homem abstrato que não existe e uma idéia de ser humano desumanizado e sem virtudes”, justamente porque, sociologicamente, o liberalismo e sua concepção contratualista colocam o indivíduo como anterior ao Estado, o que construiria uma comunidade formada por indivíduos sem valores comunitários. A única função do campo político seria garantir a segurança do indivíduo e garantir os seus direitos de maneira geral.

165 POBLETE, Jorge Eduardo Navarrete. Liberdades, Comunitaristas y Republicanos. 2001. Disponível em: <http://www.red21.cl/op22.pdf>. Acesso em 05 de jan. 2006. 166 [...] la corriente comunitaria sostiene que los destinatarios de los valores son las sociedades o comunidades políticas y no los individuos. Dichas comunidades, con sus tradiciones, historias y culturas influyen y modifican los derechos y la moral, sin la posibilidad de que existan cánones éticos universales, objetivos y ahistóricos. Segundo, que la justicia (como deber) de la que Kant y sus ilustrados seguidores se ocupan, es una virtud remedial ( o de segundo momento), que debería operar sólo después de que virtudes como la solidariedad, la lealtad o el respeto mutuo hayan fracasado (como decía Aristóteles: cuando los hombres son amigos, no requieren de la justicia). [...] Por ultimo, y como consecuencia de todo lo anterior, detrás de Kant y el liberalismo hay una concepción de un hombre abstracto que no existe y una idea de ser humano, deshumanizado y sin virtudes que no es deseable.

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Por outro lado, é importante notar que essa crítica comunitarista foi apreendida pela teoria liberal e contestada, principalmente, com o pensamento de Rawls,podemos ver que, embora em Rawls o contrato origine a sociedade justa, os valores não são comunitários, mas puramente racionais (véu da ignorância). Porém, Rawls propõe, ao longo de Uma Teoria da Justiça, um modelo de instituição para a comunidade, sem abandonar a idéia de que a comunidade é formada, também, por outros fatores, como: religião, família e economia. Essa comunidade liberal construída na teoria de Rawls não é, também, um espelho da crítica sociológica, quando esta denuncia o conjunto de egoísmo como formador de uma sociedade, a sociedade que Rawls teoriza em sua obra, não é uma associação formada pelo egoísmo dos constituintes, o pacto social em Rawls possui uma carga moral. Para Rawls a sociedade está unida através das considerações morais partilhadas relativamente à liberdade igualitária de todos. A sociedade liberal bem-organizada em Rawls é aquela em que os princípios de justiça são justificados pelos cidadãos de forma pública, abrindo espaço, assim, para uma sociedade justa.

O que legitimaria a comunidade liberal seria o reconhecimento que os indivíduos dão ao pacto social que a criou167, sendo que a base desse pacto é a garantia de que todos terão a maior chance de se auto-realizar dentro de parâmetros os mais eqüitativos possíveis168. Portanto, o pacto social não seria um instrumento de união dos egoísmos dos indivíduos, pois, o indivíduo em Rawls é um sujeito moral. Como coloca Chantal Mouffe169:

De forma contrária ao liberalismo, Rawls não concebe a pessoa como um puro indivíduo racional que busca exclusivamente seu bem-estar, mas como uma pessoa moral suscetível, não só de ação “racional” (entendida como ação instrumental que aponta ao próprio interesse), mas também do que se chama ação “justa”, que implica em considerações morais e sentido de justiça na organização da cooperação social. É um método designado por ele de “construtivismo kantiano”, a fim de indicar que opera com uma concepção da pessoa, á maneira kantiana, como pessoa moral livre e igual. (MOUFFE, 1998, tradução nossa)170

Com base nas críticas comunitaristas, Rawls pôde retrabalhar o pensamento

kantiano em sua teoria e nos apresentar uma nova concepção de sociedade liberal, os princípios de justiça seriam justificados pelos próprios constituintes da sociedade, ou seja, haveria um abandono de um egoísmo sociológico, a sociedade não se uniria com base nos interesses privados e, sim, pelas considerações morais

167 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.148. 168 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.170. 169 MOUFFE, Chantal. El Liberalismo norteamericano y sus críticos. 1998. Disponível em http://www.elpais.es/articulo/elpbabens. Acesso em: 05 de jan. 2006. 170 Contrariamente al utilitarismo, Rawls no concibe a la persona como un puro individuo racional que busca exclusivamente su bienestar, sino como una persona moral susceptible, no sólo de acción “racional” (entendida como acción instrumental que apunta al propio interés), sino también de lo que se llama acción “razonable”, que implica consideraciones morales y sentido de la justicia en la organización de la cooperación social. Es un método que él designa con el término de “constructivismo kantiano”, a fin de indicar que opera con una concepción de la persona concebida, a la manera kantiana, como persona moral libre y igual.

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dos cidadãos com base na liberdade geral do indivíduo, ou seja, mantêm-se o individualismo normativo (afinal, o pensamento de Rawls é liberal), o indivíduo não deixaria de ser o núcleo formador do pacto social e da comunidade.

Tanto a crítica antropológica, quanto a crítica sociológica feitas pelo comunitarismo moderno tornam possível uma melhor apreensão do conflito de idéias existente entre as matrizes liberal e comunitarista.

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4- VISÕES ANTAGÔNICAS DE ESTADO 4.1) O Estado no liberalismo: Como resultado das críticas modernas ao pensamento liberal podemos

verificar uma visão antagônica sobre as funções do aparelho estatal existentes nas duas matrizes. Para melhor compreendermos essa divisão filosófica é interessante recapitularmos como cada matriz enxerga o papel do Estado, começaremos pelo pensamento liberal, para seguir a metodologia que adotamos nesta terceira parte do trabalho, de apresentar a crítica moderna do comunitarismo ao liberalismo, para uma melhor compreensão do conflito de idéias das duas matrizes.

Como colocamos na parte desse estudo que tratou da contribuição do pensamento de Kant ao liberalismo, na filosofia política do pensador alemão a função central do Estado é a fonte de garantia da liberdade individual. Essa concepção kantiana de primazia da liberdade individual será trabalhada posteriormente por todos pensadores liberais.

Para o pensamento liberal que se desenvolveu pós-Kant, se consolida a concepção de ação mínima do Estado. A função do aparelho Estatal deve se limitar a garantir os direitos individuais da liberdade política. Ou como diz Milton Friedman em outras palavras:

Tanto nos jogos quanto na sociedade, nenhum conjunto de regras pode prevalecer, a não ser que a maioria dos participantes as obedeça durante a maior parte do tempo, sem a necessidade de sanções externas, a não ser, portanto, que exista um consenso social subjacente. Mas, não podemos contar somente com o costume ou com esse consenso para interpretar e pôr as regras em vigor; é necessário um árbitro. Esses são, pois, os papéis básicos do Estado numa sociedade livre – prover os meios para modificar as regras, regular as diferenças sobre seu significado, e garantir o cumprimento das regras por aqueles que, de outra forma, não se submeteriam a elas. (FRIEDMAN, 1985, p.31)

Os liberais constatam que a sociedade contemporânea é plural e complexa171

e, por isso, defendem a idéia de não-intervenção estatal172, pois, qualquer intervenção é vista como limitadora do princípio da liberdade individual. O papel do Estado que fica claro, na visão do liberalismo, é garantir um alto grau de autonomia e igualdade de oportunidades para os indivíduos173. O Estado liberal é um Estado neutro, no sentido de não impor nenhuma concepção de bem à comunidade, por isso, o Estado liberal é anti-perfeccionista, no sentido de não existir uma preocupação e uma concepção particular de felicidade174, o que imporia

171 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.28. 172 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.9. 173 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.9. 174 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.29.

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aos indivíduos comportamentos e regras que estariam de acordo com essa concepção.Como diz Galuppo175:

[...] o liberalismo afirma que nós não temos um ethos único e capaz de estruturar a nossa sociedade. E, portanto, o grande desafio desse ponto de vista do liberalismo é: como nós podemos tornar a sociedade possível? Porque para a tradição aristotélica era natural essa organização. Ela era anterior ao homem. Agora, como o homem passa a ser a unidade originária, é preciso então encontrar um mecanismo capaz de permitir a integração dos planos de ação. Esse mecanismo vai ser a idéia de contrato. (GALUPPO, 2003)

Como vimos, o liberalismo propõe como forma de socialização uma base contratualista, propõe um modelo institucional com mecanismos formais para tornar viável a integração social176, e essa integração só é possível, se partirmos de um formalismo universalista177.

A integração só é possível se nós partirmos de um formalismo universalista. Como cada um de nós tem um projeto de vida diferente, nós não podemos, materialmente, estabelecer critérios que nos unam. Os mecanismos que o liberalismo vai desenvolver são mecanismos formais, mecanismos baseados na igualdade, na liberdade, mas encarados apenas de forma formal.( GALUPPO,. 2003)

175 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 176 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. 1991, p.502. 177 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005.

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4.2) A crítica comunitarista:

Como colocamos na parte em que estudamos a crítica antropológica, citando Galuppo (2003), o comunitarismo, ao contrário do pensamento liberal, “desaguará no perfeccionismo”178. Esta idéia fica clara quando observamos a concepção de Estado da visão comunitarista.

A crítica comunitarista enxerga o Estado liberal como uma concepção que limita as características da dinâmica existente entre o indivíduo e a sociedade179. Para o comunitarismo, o Estado liberal acaba por agredir as múltiplas identidades coletivas existentes, pois, ao se basear a integração social, simplesmente em um formalismo universalista, o liberalismo passa a rejeitar os valores comuns compartilhados por uma comunidade, o que causaria desagregação política180.

Essa crítica pode ser bem observada no pensamento de MacIntyre181, que exemplifica bem a idéia comunitarista que se opõe à liberal, de que a liberdade é um processo de apreensão que o indivíduo trabalha dentro de uma comunidade, através de valores que existem antes dele182. Para MacIntyre o indivíduo se desenvolve dentro de um contexto pré-existente, onde os valores da tradição são apreendidos183.

A tradição confere inteligibilidade à vida do indivíduo184, é através dela que o indivíduo apreende seus primeiros referenciais para construção do seu “eu”185. O Estado na visão comunitária é agregador neste sentido e, não desagregador como no liberalismo, pois, como diz Galuppo186, “da identidade do eu, que se desenvolve no contexto da tradição, emerge o conceito de virtude” (GALUPPO, 2005). O Estado, portanto, em uma visão comunitarista, não possui uma função, meramente, formal, pois, como citamos Poblete, os destinatários dos valores tradicionais são as sociedades (ou as comunidades políticas) e não os indivíduos187. “Estas 178 GALUPPO, Marcelo. Comunitarismo e Liberalismo na fundamentação do Estado Democrático de Direito e o problema da tolerância. Belo Horizonte, 2003. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 179 SUÁREZ LLANOS, Maria Leonor. La teoría Comunitarista y la filosofía política. Presupuestos y aspectos críticos. 2001, p.83. 180 SUÁREZ LLANOS, Maria Leonor. La teoría Comunitarista y la filosofía política. Presupuestos y aspectos críticos. 2001, p.83. 181 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001. p.371. 182 WALZER, Michael. Las esferas de la justicia. 1997, p.24. 183 MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. 2001, p.372. 184 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 185 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 186 GALUPPO, Marcelo. Orientações para a leitura de “As Virtudes, a unidade da vida e o conceito detTradição”, do livro Depois da virtude, de Alasdair MacIntyre. Belo Horizonte, 2005. Disponível em <http://marcelogaluppo.sites.uol.com.br/index.htm>. Acesso em: 15 de dez. 2005. 187 WALZER, Michel. Las esferas de la justicia, p.23.

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comunidades, com suas tradições, histórias e culturas influenciam e modificam os direitos e a moral, sem a possibilidade de que existam cânones éticos universais, objetivos e desvinculados da história.” (POBLETE, 2001, tradução nossa)188

Jesús Carlos Gonzáles Caballero (2002) em seu texto La Política de Aristóteles y el Comunitarsimo: Reflexión Crítica Sobre la Sociedad Civil189, fornece uma concepção de sociedade que exemplifica bem a visão política crítica do comunitarismo, influenciado, basicamente por Arsitóteles e MacIntyre e, que vale citar como forma de compreendermos essa discussão:

Da minha parte, e em consonância com a doutrina comunitarista e republicana cujo paradigma se caracteriza pela aplicação de uma “regra de ouro” consistente em descrever uma boa sociedade como aquela que tem em conta tanto as virtudes sociais como os direitos individuais, entendo que a sociedade civil não deve ser nem um simples ordenamento administrativo, nem só esse espaço social que não cobre o Estado, nem muito menos um aglomerado de pessoas com a única aspiração narcisista de desenvolvimento pessoal, mas que deve ser, contudo, um ordenamento de interação de valores morais adquiridos coletivamente. (CABALLERO, 2002, tradução nossa)190

Para finalizar, é importante compreender que a crítica comunitarista feita ao

formalismo estatal da filosofia liberal é absolvida pela própria matriz liberal com sua diversidade de pensamento. Temos que ter sempre em mente, como dissemos no início desta seção, que a matriz liberal, embora compartilhe concepções clássicas do que seja o indivíduo e sua relação com o Estado, não é uniforme em todo seu ideário. Por isso, podemos notar que um filósofo liberal como Rawls, introduz em seu pensamento político uma preocupação social, que abre espaço para discussões e idéias de bem dentro das preocupações do Estado. Temos que ter em mente que o conflito de idéias entre as duas matrizes não é estanque, as discussões e concepções políticas são múltiplas, o que procuramos é apresentar as linhas principais que propiciam visões antagônicas entre as duas matrizes, tendo como base teórica de cada uma dessas matrizes os pensamentos de Aristóteles e Kant.

188 Dichas comunidades, com sus tradiciones, historias y culturas influyen y m los derechos y la moral, sin la posibilidad de que existan cánones éticos universales, objetivos y ahistóricos. 189 CABALLERO, Jesús Carlos Gonzáles. La Política de Aristóteles y el Comunitarsimo: reflexión crítica sobre la sociedad civil.2002. Disponível em: http://www.uc3m.es/uc3m. Acesso em: 05 de jan.2006. 190 Por mi parte, y en consonancia con la doctrina comunitarista y republicanista mayoria cuyo paradigma se caracteriza por la aplicación de una “regla de oro” consistente en describir una buena sociedad como aquella que tiene en cuenta tanto las virtudes sociales como los derechos individuales, entiendo que la sociedad civil no debe ser ni un simple orden administrativo, ni sólo ese espacio social que no cubre el Estado, ni mucho menos un conglomerado de pablación con la única aspiración pancista del desarrollo personal, sino que debe ser además un orden de interacción de valores morales adquiridos colectivamente.

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4.3) A contrapartida liberal: Após estudarmos as críticas que o comunitarismo moderno faz ao liberalismo

e seus pressupostos, devemos apresentar a contrapartida liberal, apreender melhor as características da matriz liberal, principalmente sobre as críticas antropológica e sociológica feitas pelo comunitarismo, que enxergam no ideário liberal a defesa de um indivíduo atomizado e desvinculado de valores pré-existentes de uma comunidade191.

Rawls em textos mais recentes trabalha a idéia de que a socialização não está desvinculada de valores comunitários192, sua idéia e sua proposta é construir um modelo institucional para uma comunidade política, e nesta comunidade a existência de formas comunitárias de sociabilidade não é negada, formas como família, religião e outras instituições193.

A sociabilidade liberal que Rawls concebe não corresponde à imagem dada pela crítica comunitarista, esta sociedade não é uma associação estabelecida através de um contrato entre indivíduos egoístas que buscam através do pacto social, apenas a satisfação de seus interesses privados. É o que defende, também, Charles Larmore (1993) que, assim como Rawls, busca fornecer ao pacto social uma significação moral, para Larmore a legitimação deste pacto se encontraria no próprio reconhecimento dado pelos cidadãos194, sendo que esse pacto procura, sim, possibilitar de forma eqüitativa que cada um realize a sua concepção de “vida boa”, o seu “bem”. Como diz o próprio Rawls em sua obra Uma Teoria da Justiça:

No início (§1), caracterizei uma sociedade bem-organizada como aquela estruturada para promover o bem de seus membros e efetivamente regulada por uma concepção comum da justiça. Assim, trata-se de uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios da justiça, e cujas instituições sociais básicas

satisfazem esses princípiosPara Rawls a sociedade liberal não é fruto de uma concepção egoística, ela não está ligada por considerações relativas ao interesse particular de cada um, o que a mantêm interligada são as considerações morais partilhadas relativamente à liberdade igualitária de todos195.

Rawls diz mesmo que uma sociedade liberal bem organizada não é apenas uma sociedade onde as instituições estão em conformidade com certos princípios de justiça, mas sim é uma sociedade bem-organizada quando esses mesmos princípios são justificados de maneira pública pelos cidadãos. Nas palavras de Rawls:

191 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994. 192 BERTEN, André. DA SILVEIRA, Pablo. POURTOIS, Hervé. Libéraux et Communautariens. 1997, p.244. 193 BERTEN, André. DA SILVEIRA, Pablo. POURTOIS, Hervé. Libéraux et Communautariens. 1997, p.245. 194 LARMORE, Charles. Modernite et morale. 1993, p.102. 195 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.504.

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Uma sociedade bem-ordenada também é regulada por sua concepção pública da justiça. Esse fato implica que os seus membros têm um desejo forte e normalmente efetivo de agir em conformidade com os princípios da justiça. Como uma sociedade bem-organizada perdura ao longo do tempo, a sua concepção de justiça é provavelmente estável: ou seja, quando as instituições são justas (da forma definida por esta concepção), os indivíduos que participam dessas organizações adquirem o senso correspondente de justiça, e o desejo de fazer a sua parte para mantê-las, Uma concepção da justiça é mais estável que outra se o senso de justiça que tende a gerar for mais forte e tiver maior probabilidade de sobrepujar inclinações perturbadoras, e se as instituições que ela permite não fomentam impulsos e tentações tão fortes no sentido de agir de forma injusta. A estabilidade de uma concepção depende de um equilíbrio de motivos: o senso de justiça que ela cultiva e os objetivos que encoraja devem normalmente ser mais fortes que as propensões para a injustiça. Para estimarmos a estabilidade de uma concepção da justiça (e a sociedade bem-ordenada por ela definida), devemos examinar a força relativa dessas tendências opostas (RAWLS, 2002, p.504-505)

Portanto, o liberalismo moderno não aceita a crítica sociológica e antropológica feita pelo comunitarismo, ao contrário, os liberais estabelecem sua crítica aos comunitaristas, que em sua visão prendem a ética a questões de conteúdo existencial demasiado subjetivas (no sentido de se tomar por orientação a felicidade, por exemplo)196. Desta forma, para os liberais a primazia do justo sobre o bem oferece uma justificação moral mais sólida do que o pressuposto comunitarista, pois não depende de pressupostos empíricos, sendo mais aplicável em um mundo onde a obrigação moral deve coabitar com uma pluralidade crescente de concepções do bem197.

196 LARMORE, Charles E. Modernite et morale. 1993, p.79. 197 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.479.

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4.4) A questão da liberdade: A questão da liberdade é importante para as duas matrizes, podemos, no

entanto utilizar o pensamento de Isaiah Berlin198, e distinguir duas concepções de liberdade: concepção negativa e concepção positiva. A concepção positiva vê a liberdade como uma libertação em relação a qualquer coação social, a concepção negativa pensa a liberdade como auto-realização do indivíduo, que se realiza em um determinado contexto social199. A matriz liberal em contraposição à matriz comunitarista se liga mais a concepção negativa de liberdade. Daí a crítica comunitarista à visão de Estado dos liberais.

Para a crítica comunitarista, um Estado que se configure como simples instrumento de garantia de direitos, acaba por agredir as múltiplas identidades coletivas existentes, como vimos anteriormente200.

O liberalismo não aceita tal crítica também. A reflexão dos pensadores liberais contemporâneos parte de uma constatação empírica: as sociedades contemporâneas são altamente plurais e complexas, e qualquer tentativa de buscar uma simplificação (buscando um bem universal) irá violar o princípio da igualdade201. Desta forma, o poder político deve ser neutro em suas finalidades e justificações. O papel do Estado deve estar limitado a garantia dos direitos individuais e de princípios de justiça que derivam do imperativo de igual liberdade para todos202. Isto implica, sustentam os liberais, que o poder de coação exercido pelo Estado tem que ser legitimado por aqueles que sofrem a coação. Lendo Rawls, por exemplo, percebemos que o Estado deve conseguir suscitar no indivíduo um sentido específico de justiça que lhe permita reconhecer como politicamente aceitável uma decisão203.

Portanto, contrário à crítica comunitarista, os liberais reconhecem uma significação moral às instituições políticas, no sentido de que sua finalidade legítima é assegurar a todos os membros de uma sociedade um grau máximo de autonomia e igualdade204.

O que os liberais defendem de acordo com a concepção de liberdade que possuem é que as sociedades modernas são pluralistas, os indivíduos que compõem essa sociedade possuem diferentes concepções do que seja uma “boa vida”, desta forma, para uma comunidade política respeitar tosos os membros que a compõem,

198 BERTEN, André. DA SILVEIRA, Pablo. POURTOIS, Hervé. Libéraux et Communautariens, p.237. 199 BERTEN, André. DA SILVEIRA, Pablo. POURTOIS, Hervé. Libéraux et Communautariens, p.237. 200POBLETE, Jorge Eduardo Navarrete. Liberdades, Comunitaristas y Republicanos. 2001. Disponível em: <http://www.red21.cl/op22.pdf>. Acesso em 05 de jan. 2006.. 201 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 1982, p.175. 202 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 1982, p.175. 203 RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. 2000, p.388. 204 FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 1982, p.31.

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ela não pode fazer como a visão comunitarista e favorecer uma concepção particular do que seja uma boa vida, do que seja o bem.

É esta concepção que leva uma vertente do liberalismo a defender um Estado mínimo205 que não intervenha nas concepções de bem desenvolvidas pelos indivíduos, mas também a uma posição liberal mais moderada, que vislumbra uma cultura pública partilhada206. Portanto, as críticas comunitaristas são rechaçadas pelas vertentes liberais, e em contrapartida mesmo, os liberais criticam a simplificação que as críticas sociológicas fazem à idéia liberal da relação entre o justo e o bem207, enxergando no ideário liberal a existência de um indivíduo atomizado208, totalmente desvinculado de participação em uma vida pública. Para

205 NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e utopia. 1991, p.9. 206 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 2002, p.476. 207 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.23. 208 TAYLOR, Charles. La ética de la autenticidad. 1994, p.23.

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A FILOSOFIA POLÍTICA DE HEGEL 1- Apresentação: Recapitulando o percurso que trilhamos até aqui, buscamos compreender a

filosofia política que caracteriza a matriz comunitarista e a matriz liberal; posteriormente, apresentamos o conflito de idéias inerentes às duas matrizes.

Revendo o caminho trilhado, tendo como base o pensamento dos filósofos apresentados, notamos uma ausência que influenciou muitas elaborações filosóficas da modernidade: o pensamento de Hegel.

Hegel nasceu em 1770, em Stuttgart, no mesmo ano em que Kant ministrava sua aula inaugural na Universidade de Königsberg. Como vimos na segunda parte desse trabalho, Kant incrementou uma tradição filosófica alemã de sistematização racional, o que influenciou o pensamento de Hegel. Porém, na época que Hegel inicia sua atividade filosófica, que influenciaria de forma profunda o pensamento filosófico do século XX, toda a Europa estava envolvida em sua maior transformação desde o Renascimento, o movimento iluminista, gerando politicamente a Revolução Francesa de 1789. Como diz Denis Rosenfield:

Hegel considerava como tarefa da filosofia apreender o seu tempo no pensamento, tempo este de transformações que modificaram profundamente a realidade social e política, econômica e cultural. Ele foi testemunha de uma época que, num curto período, viu nascer a Revolução Francesa, o terror jacobino, as guerras napoleônicas, o sentimento nacionalista na Alemanha, a modernização dos Estados alemães, o capitalismo industrial inglês, o sistema político representativo da Inglaterra, para não falar de um ambiente intelectual que fervilhava de pensadores importantes e de intensas discussões. Aquilo que se convencionou chamar de “idealismo alemão” data dessa época e de um pouco antes, 50 anos, por assim dizer, que marcaram de forma definitiva o pensamento moderno.” (ROSENFIELD, Política e Liberdade em Hegel, 1995, p.5)

O pensamento de Hegel é marcante na história da filosofia moderna, pois é o

ponto culminante do idealismo alemão, como diz Jean Hyppolite, em sua obra Introdução à Filosofia da História de Hegel (1971), Hegel propôs ultrapassar os sistemas de Fichte, Schelling e do próprio Kant.

O idealismo alemão tentou substituir o direito extraído da razão humana por uma base concretamente objetiva, ou seja, sem recorrer à idéia do direito natural como base de sustentação. E essa base objetiva que o pensamento alemão buscava, seria encontrada nos elementos de um devir histórico, com a evolução dos costumes do povo, o que se chamou de espírito do povo (Volksgeist).

Os pensadores do idealismo alemão pretendiam como recurso objetivo um reencontro com o espírito do povo, que ao longo da evolução histórica da sociedade, teria se mantido fiel às tradições. Segundo Hartmann208, é o que busca Fichte em sua obra Discursos à Nação Alemã, buscando as raízes do nacionalismo

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alemão, e Schelling, que foi no início de sua sistematização filosófica um discípulo de Fichte. Na filosofia de Schelling se destaca um espírito objetivo emanado da alma do povo, um espírito que não é racional e, sim, inconsciente, e por surgir da alma do povo, forneceria uma pureza natural para as estruturas sociais e políticas208.

O pensamento de Hegel se liga a esse idealismo historicista alemão, porém, a construção filosófica hegeliana é mais sistemática, o pensamento de Hegel transcende os quadros da filosofia do direito e a própria concepção historicista alemã. Para Hegel a filosofia deveria descrever o devir do Espírito, o seu desdobramento em formas sucessivas, sendo através desta evolução que o Espírito tomaria consciência de si208. Este desenvolvimento do absoluto é dialético.

[...] a superação das várias formas do pensamento e do ser, que se confundem, resultam de contradições que se resolvem por sínteses, as quais, noutros momentos, se defrontam com novas contradições. Assim, cada momento do desenvolvimento do espírito traz em si sua própria negação ou antítese, impondo-se uma nova síntese, tendente a superar a contradição surgida. Para Hegel o processo dialético é ontológico e universal. Diz respeito não somente ao “espírito subjetivo”, mas a todo mundo do ser e do dever-ser, abrangendo os movimentos da matéria, as formações orgânicas e as criações espirituais. (WEBER, 1993, p.25).

Podemos destacar que a lógica hegeliana é evolucionista e dialética. O devir

resultaria da superação de uma tese à respectiva antítese. Desta forma, o direito deve ser buscado na história, pois é nela que as teses e as antíteses se formam. É importante, porém, notar o uso que Hegel faz do termo Direito, como diz Bobbio:

Na obra principal, Filosofia do Direito, o termo “direito” é usado para indicar tanto uma parte do sistema – o direito abstrato, que aliás, é o direito propriamente dito, o direito dos juristas, quanto o sistema em seu todo, incluindo, além do direito em sentido estrito, todas as matérias tradicionalmente compreendidas na filosofia prática (ou seja, economia, política e moral.) (BOBBIO, 1991, p.57)

Devido à sua importância para a Filosofia do Direito, como podemos

enquadrar o pensamento de Hegel em meio à dicotomia comunitarista e liberal? Para responder essa pergunta e para compreendermos melhor essa

apresentação que fizemos da filosofia historicista de Hegel devemos compreender, primeiramente, os conceitos primordiais encontrados na obra Princípios da Filosofia do Direito, compreender os conceitos hegelianos de família, sociedade civil e Estado, compreendendo, concomitantemente, o processo evolutivo e dialético que liga esses conceitos para, dessa forma, defendermos uma idéia fundamental que conclui esse trabalho, que é a idéia de que a filosofia política de Hegel é um pensamento original frente à matriz comunitarista e à matriz liberal.

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2- A dialética hegeliana: Hegel não procura apresentar os conceitos de forma pronta, ele busca ao longo de suas

obras construir os conceitos, para ele o conceito só pode ser apreendido através de seu processo

de formação208. No prefácio da Fenomenologia do Espírito (1974) ele trabalha essa idéia,

quando declara que a verdade é o todo, mas o todo pensado como conseqüência do caminho que

leva até a apreensão dele. Nas palavras de Hegel:

Na verdade, o Espírito nunca está em repouso, mas é concebido sempre num movimento progressivo. Mas, assim como na criança, depois de um longo e tranqüilo tempo de nutrição, a primeira respiração – um salto qualitativo – quebra essa continuidade de um progresso apenas quantitativo e nasce então a criança, assim o Espírito que se cultiva cresce lenta e silenciosamente até a nova figura e desintegra pedaço por pedaço seu mundo precedente. Apenas sintomas isolados revelam seu abalo. A frivolidade e o tédio que tomam conta do que ainda subsiste, o pressentimento indeterminado de algo desconhecido, são sos sinais precursores de que qualquer coisa diferente se aproxima. Esse lento desmoronar-se, que não alterava os traços fisionômicos do todo, é interrompido pela aurora que, num clarão, descobre de uma só vez a estrutura do novo mundo (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 1974, p.16)

Ou seja, o resultado não está dissociado do processo que o gerou. Para Hegel a dialética é concebida como o auto-desenvolvimento do objeto de estudo. Diz Hegel:

O verdadeiro é o todo. Mas o todo é somente a essência que atinge a completude por meio do seu desenvolvimento. Deve-se dizer do Absoluto que ele é essencialmente resultado e que é o que na verdade é, apenas no fim. Nisto consiste justamente sua natureza: ser algo efetivo, sujeito ou devir-de-si-mesmo (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 1974, p.19)

É interessante notar, como diz Michael Inwood (1997), que o processo dialético hegeliano foi influenciado por Kant e Fichte:

Um aspecto da dialética de Kant que impressionou Hegel é a derivação de antinomias, de duas respostas incompatíveis a uma questão (se, por exemplo, o mundo tem ou não um começo no tempo) que transcende a nossa experiência. O procedimento triádico de Fichte de uma tese (o Eu põe a si mesmo, uma antítese (o Eu põe um não-Eu) e uma síntese (O Eu põe no Eu um não-Eu divisível em oposição ao Eu divisível) também influenciou a dialética de Hegel. (INWOOD, 1997, p.100)

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Portanto, a dialética de Hegel se estabelece através de três etapas:

1- Os conceitos são considerados fixos, definidos e distintos de outros conceitos. Esta etapa é a do entendimento (HEGEL, 1974, p.55)

2- Ao refletirmos sobre os referidos conceitos, uma ou mais contradições são evidenciadas. Esta seria a etapa dialética ou negativa. (HEGEL, 1974, p.64)

3- Como resultado desse processo dialético emerge um novo conceito que apreende as características dos conceitos anteriores e resolve as contradições envolvidas no processo. (HEGEL, 1974, p.65)

Nas palavras de Hegel o processo dialético se dá, portanto, desta forma:

Nessa indicação nós vemos, portanto, apenas um movimento e vemos o seu curso da seguinte maneira: 1. Eu indico o agora e ele é afirmado como verdadeiro; eu o indico, porém, como algo que já foi ou como algo suprimido, suprimo a primeira verdade e 2. Afirmo agora como segunda verdade que ele já foi, está suprimido. 3. Mas o que foi não é; suprimo o ter-sido ou o ser-suprimido, ou seja, a segunda verdade, e, assim, nego a negação do agora e retorno à primeira afirmação, ou seja, que agora é. O agora e a indicação do agora são, portanto, constituídos de tal sorte que nem o agora nem a indicação do agora são algo simples e imediato, mas um movimento que tem em si diversos momentos. O este é posto mas é um outro que é posto e o este é suprimido, e retorna assim ao primeiro. Mas esse primeiro refletido em si não é exatamente o mesmo que era antes, ou seja, um imediato, e sim justamente um refletido em si ou simples que permanece no ser-outro o que ele é: um agora que é absolutamente muitos agora (HEGEL, Fenomenologia do Espírito, 1974, p.66)

Quando Hegel diz que o resultado do processo dialético é um “agora que é absolutamente muitos agora”, podemos notar que a categoria da simultaneidade é primordial para a compreensão da dialética, tal categoria quebra com a idéia de sucessividade linear no processo de conhecimento, abrindo espaço para o que Thadeu Weber chama de “o movimento triádico da dialética” (WEBER, 1993, 941), explicado por Hegel na passagem anterior.

Trata-se da afirmação, negação, negação da negação; tese, antítese, síntese. Elementos integrantes dessa tríade são a circularidade e o superar-conservando-guardando. Todos eles estão intimamente ligados. As diferenças se situam [...] no grau (tipo) de participação desses momentos no processo. No devir estão negados, conservados e guardados, o ser e o não-ser. Em outras palavras: na síntese, estão negadas e guardadas a tese e a antítese (WEBER, 1993, p.41)

Para melhor compreendermos essa questão da simultaneidade e,

conseqüentemente, o processo dialético de Hegel, vale citar uma passagem da Fenomenologia do Espírito que diz:

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O botão desaparece no desabrochar da flor, e poderia dizer-se que a flor o refuta; do mesmo modo que o fruto faz a flor parecer um falso ser-aí da planta, pondo-se como sua verdade em lugar da flor: essas formas não só se distinguem, mas também se repelem como incompatíveis, entre si. Porém, ao mesmo tempo, sua natureza fluida faz delas momentos da unidade orgânica, na qual, longe de se contradizerem, todos são igualmente necessários. É essa igual necessidade que constitui unicamente a vida do todo. (HEGEL, 1974, p.22)

Através desta passagem podemos apreender que a flor nega o botão como realidade física, porém, simultaneamente o conserva e, posteriormente, o eleva, já que ela (flor) não é nada mais do que as pétalas e tudo que já se encontrava como capacidade no botão; a flor eleva o botão (através da negação) à uma realidade superior.

Deste exemplo hegeliano podemos dizer que a tese (afirmação imediata) será conservada e superada na síntese, ao ser negada na antítese. A negação da negação contém em sua estrutura a afirmação e a negação. Cada síntese (negação da negação) possui em si toda a riqueza do processo, possui de uma forma simultânea.

Esse processo dialético pode parecer contraditório se nosso pensamento estiver fixo na idéia de um processo linear e não buscarmos compreender a questão da simultaneidade, e a idéia de que Hegel não procura oferecer os conceitos como dados prontos. O próprio autor alerta sobre essas questões, quando diz:

Por contraditório que pareça conceber o Absoluto essencialmente como resultado, basta no entanto uma pequena reflexão para reduzir a nada essa aparência de contradição. O começo, o princípio ou o Absoluto, tal como é enunciado primeira e imediatamente, é somente o universal. Se digo todos os animais, essa expressão tem pouco valor para uma Zoologia. Do mesmo modo as palavras do divino, do absoluto, do eterno, etc..., não podem exprimir o que nelas está contido; e na realidade, tais palavras exprimem apenas a intuição como algo imediato. Aquilo que é mais do que uma palavra desse tipo, a passagem, mesmo que seja apenas a uma proposição, contém um tornar-se-outro que deve ser retomado e é uma mediação. No entanto, é essa mediação que se constitui em objeto de horror como se, ao usa-la para algo mais do que para afirmar que ela nada é de absoluto e não tem lugar no Absoluto, se abandonasse o conhecimento absoluto. Na verdade, porém, esse horror nasce da ignorância da natureza da mediação e o do próprio conhecimento absoluto. Com efeito, a mediação nada mais é do que a igualdade consigo mesmo que a si mesma se move, ou é a reflexão em si mesmo, o momento do eu existente-para-si, a pura negatividade, ou seja, a negatividade reduzida à sua simples abstração (HEGEL, 1974, p.19)

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A dialética hegeliana é interna aos conceitos, ela demonstra as imperfeições

características daqueles, fazendo-os passar para um outro conceito elevado, mas que contêm em si as características dos conceitos negados208.

Todo esse método Hegel aplicará no transcorrer de suas obras, nos Princípios da

Filosofia do Direito (2003), por exemplo, veremos como ele aplicará a dialética (negar,

conservar e elevar) passando da família à sociedade civil e deste para o Estado.

Para alcançar tal intento, é importante destacar as obras de Hegel que mais nos auxiliaram. A obra principal, e que serviu como fonte de nosso estudo, foi sem dúvida Princípios da Filosofia do Direito, porém, com a leitura da referida obra sentimos a necessidade de entrarmos em contato com a visão mais ampla da parte histórica do pensamento de Hegel, para isto efetuamos a leitura da Introdução à História da Filosofia e, para compreendermos mais profundamente as idéias políticas inseridas nos Princípios da Filosofia do Direito, o terceiro volume da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio e a Fenomenologia do Espírito nos foram muito úteis.

Com base nessas leituras políticas pudemos buscar compreender o objetivo norteador do

pensamento hegeliano, que segundo Rosenfield em Política e Liberdade em Hegel (1995), é

estudar a dinâmica de concretização do indivíduo inserido em relações sociais208, que Hegel vê

como relações éticas. A idéia norteadora no pensamento político de Hegel que Rosenfield

destaca, seria a de que o homem se torna homem de fato quando se “concretiza dentro do social-

ético” (ROSENFIELD, 1995, p.83). Idéia que, como nota François Châtelet em O Pensamento

de Hegel (1985), é profundamente aristotélica.

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3- Primeiros passos: Como vimos no transcorrer do trabalho, a relação entre o indivíduo e o

Estado foi o principal fator de estudo de diferentes e variadas construções filosóficas, principalmente do que chamamos de matriz comunitarista – que afirma a primazia do bem sobre o justo e, em vários autores, a primazia do Estado sobre o indivíduo – e matriz liberal – que inverte o jogo dialético e defende a primazia do justo sobre o bem, do indivíduo sobre o Estado. Indivíduo e Estado apareceram para nós, no final do terceiro capítulo do presente estudo, quase como termos inversos e opostos.

Hegel não enxergava uma dicotomia entre os termos, entre o indivíduo e o Estado, em seu pensamento, Hegel busca uma abordagem completa do termo “indivíduo”, uma abordagem que una os vários campos que possam caracterizar o “indivíduo”, campo moral, religioso, social, econômico e jurídico208.

O pensamento de Hegel pode ser visto como uma busca filosófica para compreender a totalidade. A política, a estética, a metafísica e a ética são princípios da filosofia, Hegel buscou compreender todos esses princípios e uni-los em uma fusão absoluta, buscando restaurar o que a modernidade liberal separou, unir o homem com o cidadão, e a política com a moral. Seguindo a idéia aristotélica, Hegel defende a idéia de que a vida ética autêntica deve proceder com o retorno do indivíduo na vida comunitária.

A filosofia de Hegel busca compreender o seu tempo. Se por um lado a filosofia política parece se ligar completamente ao ideário comunitarista, ela possui, por outro lado, uma preocupação central com a idéia de liberdade. O pensamento de Hegel busca união e não separação de conceitos (indivíduo-Estato208). A filosofia de Hegel busca na história a compreensão de um processo de efetivação da liberdade208, para Hegel, a história não é arbitrária e nem destituída de sentido208. Na história ocorre determinações da liberdade, e Hegel busca exemplos na história, como diz Rosenfield:

Os seus exemplos mais relevantes, do ponto de vista da história política da humanidade, são a polis grega, o mundo romano, a Reforma Protestante, a Revolução Francesa e o processo específico de formação do Estado moderno. Assim, a polis e a participação política inventadas pelos gregos, a pessoa jurídica, portadora de direitos consubstanciados em leis, própria dos romanos, a relação direta do homem religioso com o absoluto, entendida, nesse sentido, como surgimento da liberdade subjetiva moderna, a realização política dessas determinações em uma nova concepção do homem como ser essencialmente livre e a organização destes diferentes elementos e direitos numa instituição que possa efetivamente assegurar a sua realização e permanência são, no conceito hegeliano, signos inconfundíveis de que o mundo dos homens, em seu percurso é, por assim dizer, a amostra do vir-a-ser da Idéia da liberdade. (ROSENFIELD, 1995, p.49)

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Desta forma o filósofo não pode instituir uma separação entre indivíduo e

Estado. Não é à toa que Hegel vê a polis como exemplo de realização da liberdade, ligando-se a estrutura filosófica aristotélica, considerando o homem um ser completamente social, gregário e ético.

Em Hegel a dimensão humana é pública e o lugar do homem (como em Aristóteles) é a cidade, a unidade do ético e do político se configura dentro da positividade do direito, garantida pelo Estado, o direito seria a própria racionalidade situando a vida comunitária como saída da vontade livre. Nas palavras de Hegel:

Essa realidade em geral, como ser-aí da vontade livre, é o “direito” que não há de ser tomado somente como o direito jurídico limitado, mas como abrangendo o ser-aí de todas as determinações da liberdade (HEGEL, Enciclopédia das Ciências em compêndio, 1995, p.281)

Toda essa idéia política de Hegel está ligada à sua idéia maior de que a história política da humanidade deve ser vista como resultado de um processo, onde a liberdade e a eticidade se realizarão. Diz Hegel que “a verdadeira liberdade, enquanto eticidade, é não ter a vontade, e sim conteúdo subjetivo, isto é, egoísta, e sim conteúdo universal” (HEGEL, 1936, p.263)

Para compreendermos como se desenvolve esse processo de efetivação da liberdade que une indivíduo e Estado, e como essa idéia original se situa frente à dicotomia das matrizes comunitarista e liberal, devemos apreender os principais conceitos políticos encontrados na filosofia hegeliana.

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4- A idéia de moralidade objetiva: A idéia de moralidade objetiva é central para podermos compreender o

sistema político de Hegel. Este conceito nos fornece a compreensão de como se dá a relação entre indivíduo e comunidade na filosofia hegeliana, ponto importantíssimo para o presente estudo, que busca compreender onde se insere o pensamento de Hegel frente à dicotomia comunitarista-liberal.

A moralidade objetiva é o campo em que se desenvolve a “moralidade social”, pois como dissemos anteriormente, o pensamento hegeliano é fortemente aristotélico, desta forma, o indivíduo alcança sua plena realização dentro da comunidade. Lendo a obra Princípios da Filosofia do Direito, verificamos que a moralidade objetiva tem como objeto a idéia de liberdade, a preocupação é com a liberdade, na moralidade objetiva a liberdade abandona o campo da objetividade, isso só se torna possível, por causa da comunidade.

Hegel, como diz Michael Inwood (1997), compartilha do pensamento kantiano que iguala ser moral a ser racional, para Hegel a moralidade é uma questão do que o indivíduo deve fazer, e esse “dever-fazer” se encontra no campo social. E se, como escreve Inwood, para Hegel “a racionalidade é o núcleo central da natureza humana e em que ser moral é, portanto, ser livre” (INWOOD, 1997, p.224), a liberdade se realiza na comunidade, através da moralidade objetiva208. É a liberdade plenamente desenvolvida208, veremos no transcorrer do trabalho, não uma liberdade baseada na individualidade, ou seja, a moralidade individual (subjetiva) se realiza na moralidade objetiva. É o que diz Hegel em suas clássicas palavras:

A moralidade objetiva é a idéia da liberdade enquanto vivente bem, que na consciência de si tem o seu saber e o seu querer e que, pela ação desta consciência, tem a sua realidade. Tal ação tem o seu fundamento em si e para si, e a sua finalidade na existência moral objetiva. É o conceito de liberdade que se tornou mundo real e adquiriu a natureza da consciência de si. (HEGEL, 2003, §142, p.141).

No parágrafo anterior, Hegel trata de maneira completa da transição da

moralidade subjetiva para a moralidade objetiva, fazendo uma nítida defesa da necessidade da objetivação da moralidade, da vontade subjetiva. No parágrafo em questão, Hegel coloca que o bem, que é a “substância universal” da liberdade, encontra-se em uma forma abstrata na moralidade subjetiva, e precisa se objetivar, da mesma forma que a moralidade subjetiva. Ou seja, o bem só adquire significado em um contexto social. Nas palavras de Hegel:

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O bem, que é a substância universal da liberdade mas ainda uma forma abstrata, apela para determinações e para um princípio de tais determinações que lhe seja idêntico, ao passo que, reciprocamente, a consciência moral, que é princípio de determinação mas apenas abstrato, apela para a universalidade e para a objetividade. Estes dois termos, cada um deles por si elevado à totalidade, revelam-se como indefinidos e devem ser determinados. Ora, a integração destas duas totalidades relativas na identidade absoluta está já em si mesma efetuada precisamente quando a certeza subjetiva de si, ao desvanecer-se no vazio, se torna idêntica à universalidade abstrata do bem. A identidade, agora concreta, do bem e da vontade subjetiva, a sua verdade, é a moralidade objetiva. (HEGEL, 2003, §141, p.138)

A idéia central para o nosso estudo surge, portanto, da especificação da

moralidade objetiva. Surge da idéia de que um ser racional dotado de uma vontade subjetiva é, necessariamente, componente de um todo social e que só dentro desse todo sua liberdade se realiza. E a liberdade é o elemento central da obra política de Hegel. Como diz o Prof. Salgado:

O elemento central da Filosofia do Direito é a idéia de liberdade. É um tratado da liberdade e essa, um apanágio de todos; é também um tratado sobre uma sociedade igualitária na medida em que, na tradição kantiana, a liberdade é o bem maior a partilhar-se igualmente ou, para Hegel, a fruir-se totalmente e não em parte. (SALGADO, 1996, p.388)

E, como dissemos, a liberdade só se realiza na moralidade objetiva, seguindo

as palavras do Prof. Salgado:

Na natureza em si ou abstratamente considerada, não se pode falar em história. Entretanto, a natureza tem como verdade o Espírito e é nele suprassumida. A liberdade por sua vez só é efetiva na história ou no momento do Espírito, na identidade do eu e do nós pela mediação do seu mundo, que pressupõe a identidade da consciência (razão, nós) com esse mundo. (SALGADO, 1996, p.389)

Aqui Salgado explica o que veremos adiante na teorização hegeliana, que

história é história do espírito que se realizará no Estado. Portanto, em Hegel, a liberdade só se realiza dentro do todo, o Estado será o desenvolvimento último desse processo. É aqui, neste ponto, que surgem perguntas que nos levam para dentro de toda tensão existente entre as matrizes comunitarista e liberal, ou seja, a questão primeira da relação indivíduo-Estado, e a questão da liberdade. Pois se, como coloca Hegel, no todo o indivíduo encontra sua libertação:

[...] na realidade o indivíduo encontra no dever é uma dupla libertação: liberta-se, por um lado, da dependência resultante dos instintos naturais e assim da opressão em que se encontra como subjetividade particular submetida à reflexão moral do dever-ser e do possível; liberta-se, por outro lado, da subjetividade indefinida que não alcança a existência nem a determinação objetiva da ação e fica encerrada em si como inativa. No dever, o indivíduo liberta-se e alcança a liberdade substancial. (HEGEL, 2003, §149, p.144)

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Então, a questão sobre a realização do indivíduo no todo não acarretaria uma

limitação da liberdade pessoal? Como diz o liberalismo, ou então: a justificação de uma “substancialidade ética”, como diz Rosenfield, não geraria, na prática, o fim das liberdades individuais?

São questões que surgem ao se tratar da realização da liberdade em uma coletividade, e que estão conectas à tensão existente entre a matriz comunitarista e a matriz liberal. Portanto, onde se insere o pensamento de Hegel, entre essas matrizes?

Para trabalhar essas questões devemos compreender como se desdobra a idéia ética em Hegel, estudando os conceitos de família, sociedade civil e Estado, para no final retornarmos à idéia de moralidade objetiva e tentar responder às perguntas formuladas, portanto, não pretendemos, aqui, ultrapassar a questão da moralidade objetiva, precisamos ao final retornar a ela, para fechar o ciclo que iniciamos.

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5- A família: A família na teoria hegeliana é a primeira fase é a fase imediata da vida ética,

e veremos que é o campo que prepara o indivíduo para a participação na sociedade civil e no Estado, “logo, ela não é um começo qualquer, mas um começo posto, pois veio a ser a unidade mais imediata da eticidade”. (ROSENFIELD, 1995, p.146). Diz Hegel sobre a família:

Como substancialidade imediata do espírito, a família determina-se pela sensibilidade de que é uma, pelo amor, de tal modo que a disposição de espírito correspondente é a consciência em si e para si e de nela existir como membro, não como pessoa para si (HEGEL, 2003, §158, p.149)

Hegel falou de amor na citação acima, esse amor é a consciência que o

indivíduo passa a ter, quando em família, passa a estabelecer contato com o outro. O indivíduo abandona e supera sua subjetividade em contato com o outro, na dinâmica da alteridade, o indivíduo, portanto, passa a se configurar como ser comunitário em família.

Para Hegel, em família o indivíduo só se torna uma determinação do todo, sendo assim, a família se configura em uma unidade coesa, uma determinação mesmo, é o que ele quer dizer quando escreve “é a consciência de si e para si e de nela existir como membro, não como pessoa para si” (HEGEL, 2003, p.149).

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5.1) O casamento: Sendo que a família é a fase inicial da vida ética, Hegel diz que ela (família)

suprime as pulsões institucionais e sensuais na instituição do casamento. É o que podemos notar nas palavras de Hegel:

O elemento moral objetivo do casamento consiste na consciência desta unidade como fim essencial, porquanto no amor, na confiança e na comunhão de toda a existência individual. Neste estado psicológico e real, o instinto natural reduz-se ao modo de um elemento da natureza destinado a apagar-se no mesmo momento em que se satisfaz, e o laço espiritual eleva-se ao seu legítimo lugar de princípio substancial, isto é, acima do acaso das paixões e gostos particulares efêmeros, e ao que é indissolúvel em si. (HEGEL, 2003, §163, p.152)

É interessante notar, como faz Rosenfield, que a concepção que Hegel possui

de família, e que influencia sua teorização sobre o tema, é muito condicionada pelos preconceitos morais de sua época208:

Em relação ao casamento, observa-se que Hegel procura criar uma terceira via a partir de duas formulações antagônicas: o casamento enquanto determinado pelos assuntos familiares e o casamento tal como se desenvolve concomitantemente à liberdade dos costumes própria do mundo moderno onde cada indivíduo escolhe segundo o seu sentimento o(a) companheiro(a) que lhe convém. Tentando reunir o que é para ele o lado substancial de cada uma destas formulações, Hegel busca constituir uma unidade familiar que possa vir a ser uma base sólida para o desdobramento da vida ética.(ROSENFIELD, 1995, p.148)

Fica clara essa idéia de Rosenfield: da busca que Hegel faz de unir as formas

de gênese do casamento, enquanto determinado pelos assuntos familiares e o baseado na escolha sentimental do indivíduo, neste parágrafo da obra Princípios da Filosofia do Direito, quando Hegel diz:

Pode acontecer que o ponto de partida subjetivo do casamento seja ou uma particular inclinação de duas pessoas ou a precaução e arranjo dos pais, etc, mas sempre o ponto de partida objetivo é o consentimento livre das pessoas e, mais precisamente, o consentimento em constituírem apenas uma pessoa, em abandonarem nesta unidade a sua personalidade natural e individual, o que, deste ponto de vista natural, é uma limitação, mas onde elas ganham a consciência de si substancial e por isso sua libertação. (HEGEL, 2003, §162, p.150)

Este talvez seja o ponto central para o nosso estudo: a idéia que Hegel coloca

de maneira clara de que na família, através do casamento o indivíduo abandona sua personalidade natural e individual, alcançando sua verdadeira consciência de si, e alcançando, conseqüentemente sua libertação. A unidade familiar será a base sobre a qual se desenvolve a vida ética. O casamento, portanto, é a fase inicial em que o indivíduo se vê em uma dinâmica comunitária. Através do amor os componentes de

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uma família concretizam a perpetuação da espécie e concretizam sua substância ética. Através dessa dinâmica é que a família se concretizará como base do Estado, pois, a individualidade de cada componente familiar é superada através da relação substancial do casamento. Para Hegel essa “superação substancial”, que ocorre com a união matrimonial, não é limitadora da liberdade individual, pois, a liberdade real se encontra na substancialidade ética, ou moral, alcançada quando os indivíduos se tornam uma só pessoa de direito através do casamento.

Na realidade que lhes é própria encontram os caracteres naturais dos dois sexos uma significação intelectual e moral. Define-se esta significação nos diferentes aspectos em que a substância moral, como conceito, em se divide para obter, a partir dessa diferença, a sua vida como unidade concreta. (HEGEL, 2003, §165,p.155)

É importante destacar essa parte para a continuidade do trabalho e, para o

estudo da filosofia hegeliana frente à dicotomia comunitarista-liberal. Hegel não busca inserir os indivíduos constitutivos de uma família em segundo plano, o que ele defende é a primazia da unidade substancial moral e ética frente à mera satisfação das contingências particulares.

Sendo o casamento um todo, uma unidade da substância moral, a superação dialética das vontades individuais, tenderíamos a pensar que Hegel enxerga-o como indissolúvel, mas não é o que acontece, Hegel vê o casamento como “apenas” a primeira forma da idéia moral objetiva, da eticidade, portanto, pode haver dissolução por causa das contingências. Nas palavras de Hegel: “[...] Assim como não pode haver coação que obrigue ao casamento, assim não há laço de direito positivo que possa manter reunidos dois indivíduos quando entre eles surgem sentimentos e ações opostas e hostis.” (HEGEL, 2003, §176, p.161).

Desta forma, o rompimento é possível, pois o casamento foi construído sob o sentimento que é vulnerável, há espaço para as contingências individuais.

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5.2) Educação dos filhos: Hegel diz que a existência dos filhos é o fator gerador e garantidor da

objetividade da unidade substancial da família. “A unidade do casamento, que, enquanto substancial, é interioridade e sentimento mas que, enquanto existência, está separada em dois sujeitos, torna-se, nos filhos, uma existência também para si e, como unidade, um objeto” (HEGEL, 2003, §173, p.159).

Ou seja, a dinâmica familiar se concretiza, através do amor que é objetivado nos filhos208. O papel que os filhos desempenham é fundamental, pois, a base da sociedade e do Estado se encontra sobre todo o processo de educação familiar (através dos filhos) como diz Rosenfield:

[...] Com efeito, é através das crianças que se efetuam não somente o movimento de reprodução física da humanidade, mas principalmente a formação imediata dos sentimentos e das convicções éticas que são o alicerce da vida ética. Graças às crianças, a unidade substancial própria do casamento torna-se mais forte. A educação das crianças transforma-se em uma questão central, pois, nelas, forma-se os futuros membros de uma comunidade. (ROSENFIELD, 1995, p.153)

Os pais possuem a obrigação moral objetiva, ou seja, ética de educar os

filhos. Diz Hegel:

Têm os filhos o direito de ser alimentados e educados pela fortuna coletiva da família. O direito dos pais ao serviço dos filhos funda-se no interesse coletivo para manter a família e a isso se limita. Do mesmo modo, o direito dos pais sobre o livre-arbítrio dos filhos é determinado pelo fim de os manter na disciplina e de os educar (HEGEL, 2003, §174, p.159)

Essa educação é o que torna os filhos indivíduos preparados para a vida comunitária. Daí a teorização de Hegel sobre o castigo, ele terá uma função “pedagógica comunitária”:

[...] O fim que os castigos têm em vista não pertence à justiça como tal, mas é de natureza subjetiva, faz parte da moralidade abstrata, é a intimidade de uma liberdade ainda encerrada na natureza e tende a desenvolver o que há na consciência das crianças e na sua vontade. (HEGEL, 2003, §174, p.160)

A educação dos filhos é fundamental então, justamente porque afasta-os das

contingências sensíveis e naturais, através da disciplina. Nas palavras de Hegel:

São as crianças em si seres livres e a sua existência é só a existência imediata dessa liberdade. Não pertencem portanto a outrem, nem aos pais, como as coisas pertencem ao seu proprietário. A sua educação oferece, do ponto de vista da família, um duplo destino positivo: primeiro, a moralidade objetiva é introduzida neles com a forma de uma impressão imediata e sem oposição, a alma vive a primeira parte de sua vida neste sentimento, no amor, na confiança e na obediência como fundamento da vida moral;

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tem a educação, depois, um destino negativo, do mesmo ponto de vista – o de conduzir as crianças desde a natureza imediata em que primitivamente se encontram para a independência e a personalidade livre e, por conseguinte, para a capacidade de saírem da unidade natural da família. (HEGEL, 2003, §175, p.160)

Aqui, portanto, já tomamos contato com uma das idéias centrais para o nosso estudo, que é a idéia de que no campo das contingências, no campo individual subjetivo, o sujeito não realiza sua liberdade, ele precisa ser “educado” com uma moralidade objetiva, onde a família é o primeiro campo e o primeiro momento de um movimento ético que se concluirá no Estado.

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5.3) Dissolução da família: Um ponto final importante a ser destacado antes do momento da sociedade

civil é a questão da dissolução da família. Hegel diz: “Como o casamento é só a primeira forma imediata da idéia moral objetiva, a sua realidade objetiva reside na intimidade da consciência e do sentimento subjetivos, e é aí que aparece o primeiro caráter contingente de sua existência” (HEGEL, 2003, §176, p.161).

Ou seja, para Hegel, a família está construída sobre bases subjetivas e contingentes, bases emotivas, o que pode gerar mudança nos componentes do casamento, levando à dissolução do mesmo. Hegel estabelece duas maneiras pelas quais a família pode entrar em um processo de dissolução: de uma forma natural e através do processo de moralidade objetiva, ou seja, através da eticidade.

A dissolução natural ocorre através da morte dos pais, dos fundadores da família208, já a dissolução gerada pelo processo ético comunitário, se dá quando os filhos abandonam sua família de origem e formam novos núcleos familiares208, a função da família é socializar os filhos e sustentar o processo comunitário, a família surge por concentração de patrimônio e de sentimentos, e o filho é alguém gerado dentro dela para sair da mesma, dissolvendo aqueles dois aspectos. Diz Hegel na Enciclopédia das Ciências Metafísicas em compêndio (1995):

[...] os filhos saem da vida concreta da família a que originariamente pertencem: tornam-se seres para si, destinados aliás a fundar uma nova família real. O matrimônio se dissolve essencialmente por força do momento natural que é a morte dos cônjuges; mas também a intimidade enquanto é mera substancialidade de sentimento, é sujeita ao acaso e à transitoriedade (HEGEL, 1936, §522, p.492)

A sociedade civil surge como espaço que absorve a família nesse processo de

dissolução, é o novo espaço ético que retrabalha a moralidade objetiva, onde a liberdade do indivíduo busca se concretizar208. A sociedade civil será formada por indivíduos independentes que alcançaram sua maioridade dentro de uma família, e justamente por isso, a sociedade civil já carrega desde sua gênese um problema conceitual, segundo Hegel, que é o fato de conciliar os interesses particulares dos indivíduos com o interesse comunitário geral. Fator determinante para a compreensão do nosso tema ao trabalhar a questão indivíduo-Estado, ou seja: como Hegel resolve o conflito indivíduo-Estado em sua filosofia política?

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6- A Sociedade Civil: A sociedade civil hegeliana deve ser de início compreendida como o campo

intermediário existente entre a família (que acabamos de ver) e o Estado (que veremos a seguir), como diz Michael Inwood:

Hegel [...] reconhece a bürgerliche Gesellschaft como uma área distinta da vida ética, em contraste com a família e o Estado, e mediando entre estes. Inclui a vida econômica da comunidade, em conjunto com as disposições legais, administrativas e sociais que asseguram o seu funcionamento normal. (INWOOD, 1997, p.295)

Como podemos ver, a sociedade civil hegeliana existe entre a família e o

Estado e é formada pelo campo legal, pela administração e pela economia. Se a sociedade civil encontra-se entre a família e o Estado, ela surge pela

dissolução daquela, que vimos no final do tópico anterior. Com a dissolução da família, através dos filhos que atingem a maioridade e do surgimento de novos núcleos familiares, surgem pessoas independentes que passam a ter a necessidade de travarem uma dinâmica de sociabilidade para satisfazerem necessidades impossíveis de serem satisfeitas individualmente através de sua liberdade, a sociedade civil surge, portanto, como campo onde existirá a possibilidade de se efetivar um convívio social e um convívio de liberdades individuais.

A pessoa emancipada que existe fora da família necessita de uma dinâmica de “sociabilidade” para se realizar, trata-se de uma superação exigida pela liberdade. As palavras de Hegel sobre esse ponto são claras, diz ele:

A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como conjunto de carências e como conjunção de necessidade natural e de vontade arbitrária constitui o primeiro princípio da sociedade civil. Mas a pessoa particular está, por essência, em relação com a análoga particularidade de outrem, de tal modo que cada uma se afirma e satisfaz por meio da outra e é ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da universalidade, que é o outro princípio. (HEGEL, 2003, §182, p.168)

E complementa essa idéia no parágrafo seguinte, quando diz:

Na sua relação assim determinada pela universalidade, o fim egoísta é a base de um sistema de dependências recíprocas no qual a subsistência, o bem-estar e a existência jurídica do indivíduo estão ligados à subsistência , ao bem-estar e á existência de todos; todos assentam e só são reais e estão assegurados nessa ligação. Pode começar por chamar-se a tal sistema o Estado extrínseco, o estado da carência e do intelecto. (HEGEL, 2003, §183, p.168)

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Hegel fala então, de uma “dependência recíproca” entre o todo, entre o

indivíduo e os outros, na dinâmica social o indivíduo será capaz de assegurar seu bem-estar e sua própria existência jurídica.

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6.1) O sistema das carências (necessidades): O conceito de “carência” (necessidade) é muito importante para a

compreensão da idéia de sociedade civil em Hegel, pois, são as carências que os indivíduos possuem que formam a sociedade civil, como os indivíduos emancipados de uma família possuem carências as mais diversas, há a necessidade de um conjunto de relações sociais e econômicas que possa suprir tais carências. A relação que os indivíduos travam em uma dinâmica social é que torna possível a resolução das carências, pois na sociedade civil encontramos uma situação em que dois princípios devem ser mediados, um é o do indivíduo enquanto particularidade de interesses; o outro é o contexto social, onde cada indivíduo possui necessidades que só podem ser satisfeitas por meio do contato com o outro. Como diz Hegel:

A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como conjunto de carências e como conjunção de necessidade natural e de vontade arbitrária constitui o primeiro princípio da sociedade civil. Mas pessoa particular está, por essência, em relação com a análoga particularidade de outrem, de tal modo que cada uma se afirma e satisfaz por meio da outra e é ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da universalidade, que é o outro princípio (HEGEL, 2003, §182, p.167)

O indivíduo, portanto, tem que passar pela mediação da “forma da

universalidade” para satisfazer suas necessidades, desta forma, o particular se torna universal, pois, me realizo através do outro que está inserido no todo. Para Hegel há um movimento dialético que produz benefícios para o “todo” através da participação individual no “social”, ou seja, quando o indivíduo produz algo para si dentro de uma comunidade, ele, na verdade está produzindo também para o “todo”. Diz Hegel:

Na sua realização assim determinada pela universalidade, o fim egoísta é a base de um sistema de dependências recíprocas no qual a subsistência, o bem-estar e a existência jurídica do indivíduo estão ligados à subsistência, ao bem-estar e á existência de todos, em todos assentam e só são reais e estão assegurados nessa ligação. Pode começar por chamar-se a tal sistema o Estado extrínseco, o Estado da carência e do intelecto (HEGEL, 2003, §183, p.168)

Ou seja, para Hegel existe a necessidade do contexto social para que o indivíduo se realize. Existe um sistema de “dependências recíprocas”, por isso, o indivíduo não pode atingir seus fins fora de uma relação com os outros.

Para Hegel, a satisfação dessas carências só pode se concretizar de maneira plena no “social”. Nas palavras de Hegel:

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Na dependência e na reciprocidade do trabalho e da satisfação das carências, a apetência subjetiva transforma-se numa contribuição para a satisfação das carências de todos os outros. Há uma tal mediação do particular pelo universal, um tal movimento dialético, que cada um, ao ganhar e produzir para sua fruição, ganha e produz para fruição dos outros. (HEGEL, 2003, §199, p.178)

Segundo Hegel os homens são “por natureza desiguais” (HEGEL, 2003, §269)

e a sociedade civil acaba “classificando” os indivíduos através das diferenças inerentes. Desta forma, as várias formas existentes em uma sociedade de troca e produção de bens acabam gerando grupos diversos que possuem interesses diversos:

Os meios infinitamente variados, bem como o movimento que os determina reciprocamente pela produção e pela troca, conduzem, por causa da universalidade imanente que possuem, a uma conjugação e a uma diferenciação em grupos gerais. Este todo adquire, então, a figura de um organismo formado por sistemas particulares de carências, técnicas e trabalhos, modos de satisfazer as carências, cultura teórica e pratica, sistemas entre os quais se repartem os indivíduos, assim se estabelecendo as diferenças em classes. (HEGEL, 2003, §201, p.180)

Estas diferenças existentes entre os indivíduos e que depois são

potencializadas em sociedade, geram as classes. O indivíduo passa a pertencer a uma classe ligada a seus interesses, após a família, o espaço de realização das carências passa a ser a classe.

Devemos destacar aqui o fato de que Hegel não defende uma separação das diferenças individuais na sociedade civil, ele trabalha o tempo todo com a idéia de que são as diferenças e os interesses individuais os fatores constituintes das classes. As desigualdades individuais são chamadas de contingentes por Hegel, pois como diz Hegel:

A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza particular, está desde logo condicionada por uma base imediata adequada (o capital); está depois condicionada pela aptidão e também pelas circunstâncias contingentes em cuja diversidade está a origem das diferenças de desenvolvimento dos dons corporais e espirituais já por natureza desiguais. Neste domínio da particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em todos os graus e associada a todas as causas contingentes e arbitrárias que porventura surjam. Conseqüência necessária é a desigualdade das fortunas e das aptidões individuais (HEGEL, 2003, §200, p.179)

Essas contingências são naturais no homem e, o autor as considera fundamentais na organização social, pois são essas contingências que garantem o movimento de geração de grupos sociais, formando um “organismo” constituído de sistemas particulares de carência. Nas palavras de Hegel:

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[...] conduzem, por causa da universalidade imanente que possuem, a uma conjugação e a uma diferenciação em grupos gerais. Este todo adquire, então, a figura de um organismo formado por sistemas particulares de carências, técnicas e trabalhos, modos de satisfazer as carências, cultura teórica e prática, sistemas entre os quais se repartem os indivíduos, assim se estabelecendo as diferenças de classes (HEGEL, 2003, §201, p.180)

É justamente esse o ponto que nos interessa e que desenvolveremos mais

adiante; como Hegel trabalha a idéia indivíduo-Estado e, conseqüentemente, de liberdade no Estado? Na teorização sobre a sociedade civil, ele já começa a responder essa indagação, justamente com a dialética entre carências e contingências, entre as necessidades e as desigualdades naturais entre os indivíduos, a liberdade combina essas duas esferas, busca combinar as carências e as contingências na formação da sociedade civil208, porém, veremos que gradualmente o pensamento de Hegel trabalha a idéia de incorporação das contingências pela carência, pela necessidade208, desta forma, os indivíduos se ligam em classes porque há uma necessidade de solucionar as carências. Ao se integrar socialmente, através das classes, o indivíduo passa a adquirir sua real existência, a ética estará justamente nos fatores profissionais que determinam os indivíduos. Ou seja, a necessidade seria maior que as contingências, e ao suprir essa necessidade o indivíduo realizaria a moral objetiva, a ética. Diz Hegel:

O indivíduo só adquire uma realidade quando entra na existência, isto é, na particularidade definida: por isso deverá ele limitar-se exclusivamente a um domínio particular da carência. Neste sistema, a disposição moral objetiva consiste na probidade e na honra profissionais [...] cada um faz de si membro de um elemento da sociedade civil, por sua determinação individual, pela sua atividade, sua aplicação e suas aptidões. É enquanto tal que cada um se mantêm e só por intermédio do universal se subsiste na vida e se é reconhecido tanto na própria representação como na dos outros. (HEGEL, 2003, §207, p.184)

Esta última passagem desse parágrafo é sintomática para o nosso estudo: “é

só através do universal se subsiste na vida e se é reconhecido tanto na própria representação como na dos outros” (HEGEL, 2003, §207, p.184), ou seja, para Hegel a existência ética do indivíduo só é possível através de uma superação dialética, o que se liga à Dialética do senhor e do escravo na Fenomenologia do Espírito, quando diz Hegel:

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Mediante essa experiência se põem uma pura consciência de-si e uma consciência que não é puramente para si, mas para um outro (...) São essenciais ambos os momentos; porém, como de início são desiguais e opostos, e ainda não resultou sua reflexão na unidade, assim os dois momentos são como duas figuras opostas da consciência: uma, a consciência independente, para a qual o ser-para-si é a essência; outra, a consciência dependente, para a qual a essência é a vida, ou o ser para um Outro. Uma é o senhor, outra é o escravo. (HEGEL, 1974, §189, p.91)

Como diz Lima Vaz em Senhor e escravo: uma parábola da filosofia

ocidental208 (2002): o senhor submete o escravo, porém, a relação entre ambos é dialética e há, portanto, uma dependência na relação, o senhor depende que o escravo reconheça-o como tal (como senhor), e por outro lado o senhor reconhece o escravo como outra consciência. Ou como coloca Roger Garaudy estudando a Fenomenologia do Espírito:

[...] a consciência de si persegue nesta “busca”, não poderia se satisfazer antes de encontrar um objeto no qual não somente ela se reconhecesse a si mesma, mas que a reconhecesse, que lhe trouxesse a confirmação de si mesma. Somente então o objeto perderá sua independência ao se negar a si mesma. O desejo finalmente não pode desejar senão a si mesmo, isto é, um outro desejo, e se fazer reconhecer por ele, a consciência de si alcança sua satisfação somente numa outra consciência de si. (GARAUDY, 1983, p.56)

E é na totalidade, objetivada no Estado, que o “princípio da particularidade”

transforma-se em universalidade, pois, “só aí encontra a sua verdade e a legitimação da sua realidade positiva” (HEGEL, 2003, §186, p.170)

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6.2) Jurisdição: Toda essa teorização sobre a sociedade civil pode ser dividida em três

grandes seções. Desta forma, a sociedade civil hegeliana se divide metodologicamente em:

a) O sistema de carências (necessidades): que vimos até aqui, e que estabelece que os indivíduos estão em uma dinâmica relacional com base em seus interesses pessoais, buscando satisfazer suas carências, porém, essas carências (necessidades) encontram-se de uma forma dependente das outras. O que gera a divisão do trabalho e o surgimento de classes (HEGEL, §189, p.173).

b) A jurisdição: ou seja a administração da justiça, e (HEGEL, §209, p.185):

c) Administração e corporação: que veremos a seguir (HEGEL, §230, p.202).

Como diz Salgado:

[...] a novidade do conceito de sociedade civil em Hegel é o trabalho livre como fonte de organização dessa sociedade economicamente e, ao mesmo tempo, juridicamente. A sociedade civil tem em Hegel tudo o que se requer para descrever o Estado liberal; a liberdade de expressão, de trabalho, de mercado, etc., e uma organização garantindo essas liberdades privadas, dentre as quais as mais importantes são a do trabalho e a da propriedade. Assim sendo, a sociedade civil tem os três elementos básicos de um Estado de direito liberal: uma economia liberal, um direito privado e um aparelho para garantir as regras do jogo dos interesses individuais. (SALGADO, 1996, p.372)

A jurisdição, a administração da justiça encontrada na sociedade civil surge,

justamente, como o direito privado do qual fala o Prof. Salgado. A administração da justiça na sociedade civil é a proteção da propriedade privada, um dos elementos básicos de um Estado de direito liberal , a jurisdição possui uma função clara na teorização hegeliana, que é garantir o instituto da propriedade privada. Diferentemente da concepção tradicional, a justiça em Hegel não é um dever e um processo do Estado e, sim, da sociedade civil, a justiça, portanto, deve garantir e manter a ordem para que seja possível a realização das vontades livres do indivíduo208.

É importante notar que a jurisdição não é Estado, é sociedade civil, esta é que deve, segundo Hegel, assumir a garantia de suas próprias condições de viabilidade. Nas palavras de Hegel:

A relação recíproca das carências e do trabalho que as satisfaz reflete-se sobre si mesma, primeiro e em geral, na personalidade infinita, no direito abstrato. É, porém, o próprio domínio do relativo, a cultura, que dá existência ao direito. O direito é, então,

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algo de conhecido e reconhecido, e querido universalmente, e adquire a sua validade e realidade objetiva pela mediação desse saber e desse querer (HEGEL, 2003, §209, p.185)

Para Hegel o elemento fundamental da realidade objetiva do direito é o caráter de universalidade da lei, a jurisdição pressupõe uma educação para o pensar, pois é através do pensar que se torna possível colocar algo como universal, e só assim se torna possível satisfazer a exigência central do direito para Hegel, que é o de ser reconhecido como algo universalmente válido. Em suas palavras: “A realidade objetiva do direito está, por um lado, em existir para consciência, ser algo que se sabe, e, por outro lado, em ter a força e o valor reais e ser conhecido nesse valor universal” (HEGEL, 2003, §210, p.185)

Por isso Hegel insiste que a jurisdição é sociedade civil, pois é na sociedade civil que a jurisdição se configura como educação para o pensar, ou seja, a vontade é educada para o universal, o direito transforma-se em lei quando é conhecido como justo e válido para todos. Diz Hegel: “O que o direito é em si afirma-se na sua existência objetiva, quer dizer, define-se para a consciência pelo pensamento. É conhecido como o que, com justiça, é e vale; é a lei. Tal direito é, segundo esta determinação, o direito positivo em geral” (HEGEL, 2003, §211, p.186).

Já o aparelho que deve garantir as regras do jogo dos interesses individuais, é estudado por Hegel no tópico que ele chama de “Administração e Corporação”.

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6.3) Administração e Corporação: Quando Hegel fala Administração dentro da sociedade civil, devemos

compreender toda a administração pública. Vai da regulamentação da autoridade frente às lides que possam ocorrer em sociedade até a administração econômica e social, como diz Hegel:

É sempre possível dar-se a oposição entre os diversos interesses dos produtores e dos consumidores; e, embora, no conjunto, as corretas relações por eles mesmos sejam estabelecidas, ainda poderá ser conveniente uma regulamentação intencional superior às duas partes. (HEGEL, 2003, §236, p.204)

Desta forma o fator jurídico se configura como primordial na vida em

sociedade civil, é ele que garantirá, segundo Hegel, não só a inviolabilidade da propriedade privada (pilar do Estado liberal, como disse Salgado), mas também o bem-estar do indivíduo em geral. Hegel é bem claro nesse sentido quando diz:

No sistema das carências, a subsistência e o bem de cada particular constitui uma possibilidade cuja atualização depende do livre-arbítrio e da natureza própria de cada um, bem como do sistema objetivo das carências. Pela jurisdição, a violação da propriedade e da pessoa é castigada, mas o direito real da particularidade implica também que sejam suprimidas as contingências que ameaçam um ou outro daqueles fins, que seja garantida a segurança sem perturbações da pessoa e da propriedade, numa palavra, que o bem-estar particular seja tratado como um direito e realizado como tal. (HEGEL, 2003, §230, p.202)

Em Hegel o Estado começa a surgir a partir da sociedade civil com o advento

da corporação. Na medida em que cada membro da sociedade civil possui dons particulares ele assume ofícios diferentes, profissões variadas, e de acordo com as características inerentes à cada profissão, cada membro faz parte de determinada corporação. Para Hegel a corporação desempenha as funções que a família não pode mais desempenhar na complexidade da vida em sociedade civil, desta forma, o valor do indivíduo é medido de acordo com a corporação que pertence. Na corporação o indivíduo realiza o substancial, abandonando seus interesses particulares208, daí a importância do conceito de corporação para o advento do Estado.

A corporação incute nos indivíduos um caráter digno ligado ao todo, incute um valor que transcende os interesses individuais, o valor de pertencer a um todo, mesmo que este esteja limitado às “barreiras” da corporação.

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Na corporação, o chamado direito natural de exercer os talentos próprios e ganhar o que se possa só é limitado na medida em que tais talentos recebem um destino racional, quer dizer, na medida em que a corporação os liberta da contingência da opinião própria, tão perigosa para si e para os outros; é ela que, então os reconhece, os assegura e os ergue à dignidade de atividade consciente para um fim coletivo. (HEGEL, 2003, §254, p.214)

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6.4) Passagem para o Estado: A idéia matriz do pensamento hegeliano que estamos seguindo até aqui, é a

idéia de que no campo político para se realizar a eticidade, as necessidades (carências) vão gradativamente se sobrepondo às contingências individuais. Daí a gênese da família em um primeiro momento, e da sociedade civil, sobretudo através da corporação.

Em sociedade o indivíduo trava e constrói uma dinâmica de relacionamento com seu semelhante, essa dinâmica inter-relacional é uma carência, pois como vimos, para Hegel há um “sistema de dependências recíprocas” (HEGEL, 2003, p.185) existente entre os indivíduos, porém, há ainda, segundo Hegel, a necessidade de que essa dinâmica inter-relacional possua um nível objetivo moral, ou seja, um nível ético. A corporação propicia esse nível ético à relação do indivíduo com o social, pois, segundo Hegel, a corporação é a “segunda raiz ética do Estado, implantada na sociedade civil” (HEGEL, 2003, §255, p.214), sendo a família a primeira raiz ética; a corporação preenche na sociedade civil um espaço aberto deixado pela dissolução da família.

Porém, Hegel enxerga um limite para a corporação, ela poderia abrir caminho para a realização dos interesses apenas de seus membros constituintes208, esquecendo-se de sua relação com outras corporações, e com o social em si. Existiria, portanto, a necessidade de um controle superior, já que “o fim da corporação, que é limitado e finito, tem a sua verdade no fim universal em si e para si e na sua realidade absoluta. [...] O domínio da sociedade civil conduz, pois, ao Estado” (HEGEL, 2003, §256, p.215)

Para Hegel a sociedade civil é um campo que permite que conflitos (entre grupos ou corporações) e egoísmos proliferem, pois a universalidade ética ainda não está garantida, o Estado se faz necessário, inicialmente, como ponto regulador dessas tendências. A possibilidade de que esses conflitos aconteçam entre as corporações é uma ameaça à liberdade na visão de Hegel. O Estado surge como garantia para a plena consecução da liberdade.

A sociedade civil em Hegel é um todo altamente organizado (economia, administração, jurisdição) mas como realização da eticidade (sendo que a vida ética se dá em sociedade) é um campo ainda incompleto. O Estado buscará realizar a eticidade. Devido aos interesses diferenciado das corporações, a sociedade civil é incapaz de realizar a plena unidade dos indivíduos, a unidade que ela realiza é garantida pelo ordenamento jurídico, mas não suprime as desigualdades entre as corporações, é o Estado que realizará a plena união dos indivíduos, além de qualquer contingência, seja individual ou corporativa. Como diz Salgado:

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A sociedade civil, por si mesma, não pode realizar a unidade dos indivíduos senão analiticamente, num aglomerado de pontos iguais formalmente, mas que no jogo dos interesses diversos se tornam desiguais, só se igualando formalmente na dependência das classes uma da outra. Essa desigualdade é sustentada no próprio sistema das necessidades e garantida por uma ordem jurídica (...) O Estado é então concebido como entidade diversa dos indivíduos e da associação desses indivíduos na produção da satisfação das suas necessidades. (SALGADO, 1996, p.382)

O Estado, portanto, será o campo que realizará a eticidade208. Antes de entrar

no estudo do Estado, vale ressaltar o entendimento de Hegel sobre a questão da “eticidade”, tão fundamental para a compreensão da dinâmica estatal. Vale citar uma passagem da obra de Bobbio a esse respeito para finalizar:

Com a figura da comunidade popular, entendida como totalidade viva e histórica, cujo sujeito não é mais o indivíduo ou uma soma de indivíduos, mas uma coletividade, um todo orgânico, determinava-se e destacava-se um novo momento da vida prática, que exigia novos instrumentos conceituais. Como o produto característico de uma comunidade popular são “os costumes” (die Sitten), foi a “eticidade” (die Sittlichkeit) o novo conceito de que Hegel se valeu desde os primeiros anos para compreender e assinalar a nova realidade que se lhe revelava através da idealização da polis grega, da leitura do unsterbliches Werk de Montesquieu, da descoberta dos moeurs feita pelos escritores franceses, das sugestões que lhe advinham do contrato com a cultura do primeiro romantismo. Só que, contrariamente á direção em que iam seus inspiradores, no sentido da exaltação da riqueza vital da sociedade contra a rígida e impassível majestade do Estado, Hegel converteu a categoria da eticidade – ligando-se à tradição apenas aparentemente rechaçada do direito natural -, mais uma vez, num expediente para a sublimação do Estado. (BOBBIO, 1991, p.37)

O Estado passa a existir para realizar o indivíduo de forma plena, não existirá

para satisfazer as carências e necessidades individuais, o Estado vem para integrar o indivíduo ao todo, realizando assim, a vida ética, já que na sociedade civil o indivíduo, para Hegel, encontra-se disperso no meio de interesses privados e corporativos.

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7- O Estado 7.1) Linhas gerais: O primeiro parágrafo da parte que trata sobre o Estado na obra Princípios da

Filosofia do Direito trás a idéia fundamental do pensamento político hegeliano, ou seja, a idéia de que o Estado é a realidade em ato da idéia moral objetiva, ou seja, a realização da eticidade. Diz Hegel:

O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade. (HEGEL, 2003, §257, p.216)

Como vimos nas seções anteriores, a família e a corporação podem ser vistas

como a base ética do Estado, porém, vimos também que ambos conceitos são incapazes de realizar plenamente a moral objetiva. O ético se concretizará no Estado, o que, em si, exemplifica bem a dialética hegeliana, em que a última parte da dinâmica é a realização e a síntese explicativa dos fatores anteriores, ou seja, o Estado realiza a família e a corporação em uma totalidade. O Estado é visto como um campo que está além dos interesses corporativos encontrados na sociedade civil, um campo que não está diretamente encarregado da administração e , sim, da supervisão das funções da sociedade civil, mais uma vez compreendemos a idéia da originalidade do conceito de sociedade civil hegeliano, do qual fala Bobbio e que citamos anteriormente.

No parágrafo que abre essa seção, Hegel define o Estado como “realidade em ato da Idéia moral objetiva”, ou seja, o Estado realiza a eticidade, sendo que a família e a sociedade civil começaram a trabalhar em seu interior.

O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever. (HEGEL, 2003, §258, p.217)

O Estado em Hegel, e o parágrafo precedente revela bem isso, é o campo da

supressão da contingência, que não pôde ocorrer na família e na sociedade civil. Sendo o espírito objetivo, o Estado confere ao indivíduo uma real vida ética, pois

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suprime a contingência na vida estatal, ou seja, suprime os interesses particulares manifestados, como vimos na família primeiramente e, posteriormente, como egoísmo corporativo na sociedade civil. Como diz Inwood: “O Estado não é primordialmente um dispositivo para satisfazer as nossas necessidades ou desejos antecedentes; ele nos faz seres humanos plenos.” (INWOOD, 1997, p.124).

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7.2) A liberdade: A relação entre liberdade e Estado, nos permitirá compreender melhor o

arcabouço teórico de Hegel sobre este. Devemos compreender o que Hegel entende por liberdade e como o conceito se relaciona, portanto, com o ideal de Estado em sua filosofia política. Na nota ao parágrafo 258 Hegel oferece uma explicação dessa relação liberdade e Estado. Em suas palavras:

Contra o princípio da vontade individual, é preciso ter presentes os seguintes princípios fundamentais: a vontade objetiva é o racional em si no seu conceito, quer seja ou não conhecido do indivíduo e aceito pelo seu livre-arbítrio, e o termo oposto, o saber e o querer, a subjetividade da liberdade que só se afirma no princípio que examinamos, apenas contém um momento unilateral da idéia da vontade racional que só é verdadeiramente ela mesma quando em si também é o que é para si. (HEGEL, 2003, p.219)

Ou seja, o Estado é a totalidade ética da qual falou Inwood, sendo assim ele

possui, em sua universalidade, as liberdades individuais e, estas, só se realizam dentro da totalidade. Como diz Hegel, a subjetividade da liberdade contém apenas um “momento unilateral da idéia da vontade racional” (HEGEL, 2003, p.187), o Estado é a essência, a autoconsciência que engloba a consciência do indivíduo, mas esse “englobar” não quer dizer “suprimir”, o movimento é dialético, a totalidade ética realizada no Estado é formada também pela autoconsciência do indivíduo.

O Estado deve ser visto como concretização da eticidade, onde as contingências e as particularidades se tornam universais de acordo com o desenvolvimento dos indivíduos. E como diz Rosenfield:

É neste contexto que Hegel exige compreender a afirmação segundo a qual o Estado tem um direito soberano sobre os indivíduos, pois o Estado é somente um pensamento da cidadania concretizado nas instituições que asseguram o desdobramento deste pensamento. O mais alto dever do indivíduo é ser membro do Estado, o que significa que ele participa de um processo onde se decide o destino dos indivíduos e de todo um povo. Trata-se da intervenção consciente de cada um nos assuntos que dizem respeito à vida de todos. O mais alto dever do indivíduo consiste, então, não em submeter-se cegamente às ordens da autoridade estatal, mas em por em funcionamento o conjunto das determinações que constituem o cidadão que é, simultaneamente, homem jurídico, moral, membro da família, da sociedade e do Estado. O homem é o poder de mediar em si, conscientemente, o conjunto das determinações que formem o cidadão. (ROSENFIELD, 1995, p.218)

Sendo, portanto, como diz Rosenfield, o homem a capacidade de trabalhar

em si de forma consciente o conjunto de “determinações que formam o cidadão”, ele (homem) só poderia realizar-se eticamente no Estado.

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O indivíduo, para Hegel, não se encontra em um campo dicotômico ao

Estado, não existe, na visão hegeliana, uma separação conceitual entre indivíduo e Estado, como estamos acostumados a ver no liberalismo. A relação entre indivíduo e Estado é mediada por vários campos como a família e a corporação208. A família torna o indivíduo um membro, a corporação faz do indivíduo um sujeito de classe208 e, o Estado208, transforma-o em cidadão. Se o indivíduo é um ser moldado por várias instituições, para Hegel, não há sentido em ver o Estado como ameaça à liberdade individual, pois esta se realiza através daquele.

Com toda essa teorização uma pergunta aparece de forma pertinente, para a compreensão do nosso estudo: é possível, de fato, conciliar as vontades individuais com a vontade do Estado? Para Hegel não é só possível como é algo próprio da dinâmica da moral objetiva. O Estado é o local de integração entre os interesses individuais e o interesse do “todo”, é a “realidade em ato da liberdade”, como diz Hegel:

É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liberdade concreta consiste em a individualidade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse universal. (HEGEL, 2003, §260, p.225)

Temos que compreender que na filosofia política de Hegel o conceito de

liberdade não se liga só a possibilidade dos indivíduos particulares concretizarem suas vontades particulares, sanarem suas carências, o conceito de liberdade é mais amplo e se objetiva quando as vontades individuais estão integradas ao todo, o que se dá, mais uma vez, no Estado.

A liberdade individual, ao contrário da idéia comum acerca da filosofia hegeliana, que vê em Hegel um defensor do totalitarismo e da supressão total da liberdade dos particulares, não desaparece no Estado, a grande questão em Hegel é que ela está integrada ao todo, através do movimento dialético hegeliano, ou seja, O Estado, enquanto totalidade ética, inclui as liberdades individuais na medida em que estão conservadas (superadas) na universalidade ética estatal. O movimento dialético de Hegel requer que se compreenda a necessidade e a contingência como dois momentos que constituem um processo, ou seja, as necessidades individuais e a universalidade estão superadas no momento do Estado208, que é a síntese desse processo. É a Aufhebung hegeliana, onde os momentos anteriores se encontram como superados e guardados na síntese, o que não era possível de ocorrer na família e na sociedade civil, pois tanto a família quanto a sociedade civil ainda são campos das necessidades individuais, não se configuram como a síntese do processo dialético, nas palavras de Hegel:

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[...] A chamada pessoa moral – sociedade, comuna, família -, por mais concreta que seja, só tem personalidade como momento, de uma maneira abstrata. Não atinge, portanto, a verdade da sua existência. Pelo contrário, o Estado é precisamente a totalidade em que os momentos do conceito, através da verdade que lhes é própria, atingem a realidade (HEGEL, 2003, §279, p.256)

No Estado existem garantias jurídicas para o lugar da liberdade individual, os deveres do indivíduo não extrapolam o que o direito estabelece. Diz Hegel:

Em face do direito privado e do interesse particular, da família e da sociedade civil, o Estado é, por um lado, necessidade exterior e poder mais alto, subordinam-se-lhe as leis e os interesses daqueles domínios mas, por outro lado, é para eles fim imanente, tendo a sua força na unidade do seu último fim universal e dos interesses particulares do indivíduo, esta unidade exprime-se em terem aqueles domínios deveres para com o Estado na medida em que também têm direitos. (HEGEL, 2003, §261, p.226)

No Estado, portanto, há a síntese, a liberdade individual e a necessidade de uma totalidade ética são negadas, guardadas e superadas. Na Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1995) Hegel diz:

O Estado é a substância ética consciente de si, a reunião do princípio da família e da sociedade civil; a mesma unidade que existe na família como sentimento do amor, é a essência do Estado; a qual porém, mediante o segundo princípio da vontade que sabe e é ativo por si, recebe também a forma de universalidade sabida. Esta, como as suas determinações e que se desdobram no saber, tem por conteúdo e escopo absoluto a subjetividade que conhece; isto é, quer para si esta racionalidade (HEGEL, 1936, §535, p.502)

A idéia de liberdade em Hegel, se compreende também através do conceito

de constituição que veremos a seguir, para Hegel a constituição é resultante do espírito do povo. Em suas palavras:

A garantia de uma constituição, isto é, a necessidade de que as leis sejam racionais e a sua realização seja assegurada, é resposta no espírito de todo o povo, isto é, na determinabilidade, segundo a qual ele tem autoconsciência da sua razão (...), por conseguinte, ao mesmo tempo na organização real conforme ele, como desenvolvimento daquele princípio. A constituição pressupõe aquela consciência do espírito, e, inversamente, o espírito pressupõe a constituição; pois o espírito real, ele mesmo, só tem consciência determinada dos seus princípios, na medida em que eles são para ele como existentes (HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, 1995, §540, p.507)

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Daí o indivíduo deve ordenar sua ação de acordo com o espírito do povo do qual faz parte, não há lógica em se manifestar uma necessidade de liberdade fora do espírito do povo do qual se faz parte. Como diz Nicolai Hartmann em A Filosofia do Idealismo Alemão: “não há liberdade na filosofia hegeliana que seja viável fora do Estado e de sua constituição.” (HARTMANN, 1976, p.142). Em Hegel a constituição é o produto da história de um povo208, na constituição a cultura e a história deste povo estarão expressas e, como diz Bobbio, a constituição é o “conjunto de estruturas através do qual um povo se torna Estado” (BOBBIO, 1991, p.48) e, na dialética hegeliana, o Estado é a síntese capaz de garantir a liberdade através da superação das contingências e da necessidade. A seguinte parte da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1995) é clara nesse sentido:

O Estado, como espírito que vive, é apenas como que uma totalidade organizada e distinta em atividades particulares; as quais, procedendo de um conceito único [...], da vontade racional, produzem este perenemente como seu resultado. A constituição é tal organização do poder do Estado. Ela contém as determinações acerca do modo pelo qual o querer racional, - tanto quanto nos indivíduos é apenas em si aquele universal, - de uma parte atinge à consciência e à consciência de si mesmo e é achado; de outra parte, mediante a eficácia do governo e dos seus ramos particulares, é posto em ato e é mantido e protegido, tanto contra a subjetividade acidental do governo quanto contra a subjetividade dos particulares. A constituição é a justiça existente, como realidade da liberdade no desenvolvimento de todas as suas determinações racionais (HEGEL, 1936, §539, p.504)

Em Hegel, portanto, o conceito de liberdade deve ser compreendido em

relação com a totalidade, desta forma, a idéia de liberdade na filosofia hegeliana não se liga à matriz liberal que vimos na segunda parte deste estudo. De fato, a liberdade no sistema hegeliano está limitada, a liberdade do indivíduo particular em relação às suas contingências está limitada em relação ao Estado, porém, esse limite à liberdade individual não quer dizer supressão total. O Estado realiza o indivíduo de forma ética, portando, devemos compreender que a liberdade do indivíduo se concretiza no “social”, como coloca Amélia Valcarcell em Hegel y la Ética208 (1988), para Hegel através da constituição, que é resultado do espírito do povo, o indivíduo se integra à dinâmica social, e sua liberdade, agora, o seu livre-arbítrio tem, necessariamente, seu campo limitado pelo direito. A idéia de Hegel é que fora do Estado não há uma verdadeira liberdade, mas apenas uma satisfação imediata das carências desvinculada do campo ético, ou como diz Salgado:

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Fora do Estado, o homem estará fora da sua essência. Nele é possível, e só nele, que a razão se realize na forma da vontade. O Estado é o revelar-se do Espírito como resultado de um processo histórico pelo qual o Espírito se mostra como absoluto, como razão ou liberdade que a representação religiosa denomina de deus e que encontra o seu momento de plena realização na sociedade humana ou no seu mundo. (SALGADO, 1996, p.402)

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7.3) A Constituição: O parágrafo 275 da obra Princípios da Filosofia do Direito (2003) além de

introduzir o estudo do conceito de constituição, é um exemplo da dialética hegeliana de totalidade. Nas palavras do autor:

A constituição é racional quando o Estado determina e em si mesmo distribui a sua atividade em conformidade com o conceito, isto é, de tal modo que cada um dos poderes seja em si mesmo a totalidade. É isto obtido porque cada momento contém em si a ação dos outros momentos e porque, ao exprimirem a diferença do conceito, todos eles se mantêm em sua idealidade e só constituem um todo individual único. (HEGEL, 2003, §272, p.244)

Hegel diz que “cada momento contém em si a ação dos outros momentos”, essa idéia é a base de sua dialética, onde cada momento é “inserido” em um novo momento, porém, as características constitutivas dos momentos precedentes são reelaboradas em uma síntese no novo momento, como é o caso da família e seus momentos de inserção na sociedade civil e esta no Estado.

E é desta forma que devemos compreender o conceito de constituição em Hegel. Para o autor, a objetividade de uma constituição se concretiza quando os três poderes que constituem o Estado encontram-se em um processo de integração. O Estado estaria dividido em:

[...] a) Capacidade para definir e estabelecer o universal – poder legislativo; b)integração no geral dos domínios particulares e dos casos individuais – poder do governo; c)A subjetividade como decisão suprema da vontade – poder do príncipe. Neste se reúnem os poderes separados numa unidade individual que é a cúpula e o começo do todo que constitui a monarquia constitucional. (HEGEL, 2003, §273, p.246-247)

A constituição para Hegel é resultado de um processo208, como dissemos

acima e, desta forma, ela não é resultado de um acordo entre partes que constituem o Estado, ou seja, essa separação de poderes que vemos acima, não é o resultado de um acordo entre partes contratantes, pois ela é o produto de uma criação contínua e informal:

As leis exprimem as determinações de conteúdo da liberdade objetiva. Em primeiro lugar, para o sujeito imediato, para o seu arbítrio independente, e para o seu interesse particular, elas são limites. Mas são, em segundo lugar, a meta final absoluta e a obra universal; assim, elas são produzidas mediante as funções das diversas classes que se fracionam cada vez mais, partindo da particularização geral; e mediante toda a atividade e cuidado privado dos particulares. E, em terceiro lugar, são a substância da vontade

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livre e da disposição de ânimo; e assim se configuram como costume vigente (HEGEL, Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio, 1995, §538, p.503)

Ou seja, em Hegel a constituição se “desenvolveu” através do tempo, ninguém a “fez”, como deixa claro o autor nesta passagem da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1995):

A questão, de saber a quem e a qual autoridade e como organizada, caiba fazer uma constituição, é a mesma que perguntar a quem cabe fazer o espírito de um povo. O separar a representação de uma constituição da do espírito, como se este existe, ou tenha existido uma vez, sem possuir a constituição conforme a si, é uma opinião que demonstra somente a superficialidade com que foi pensada a conexão do espírito, da sua autoconsciência, e da sua realidade. O que se chama fazer uma constituição não aconteceu nunca na história, em razão de tal inscibilidade; como também nunca se fez um código: uma constituição desenvolve-se somente do espírito, em identidade com o desenvolvimento próprio deste (HEGEL, 1936, §540, p.508)

Para Hegel a constituição é o produto resultante da história de um povo, é o

resultado de um processo de absorção das contingências e carências individuais pela totalidade ética, através da família e da sociedade civil, até se concluir no Estado. E como diz Salgado:

Não há Estado sem constituição, embora a constituição possa não ser escrita. Um Estado sem constituição seria a própria sociedade civil, que, contudo não existe fora do Estado ou anterior ao Estado. O Estado que realiza o seu conceito, portanto, no momento superior da sua Wirklichkeit é o Estado constitucional, em que a constituição, forma superior de sistematização de toda a vida ética da comunidade, se produza como constituição escrita. (SALGADO, 1996, p.416)

Para ilustrar esse trecho de Salgado, vale citar uma passagem da

Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio de Hegel, em que ele diz:

Na existência de um povo está o seu fim substancial: ser um Estado e como tal conservar-se. Um povo sem a forma do Estado (uma população como tal) não tem história propriamente, tal como os povos que existiram antes de se constituírem em Estados e outros que ainda hoje existem como nações selvagens. (HEGEL, 1936, §549, p.520)

Desta forma, devemos compreender a constituição como a forma de

organização da totalidade, porém essa totalidade é organizada em corporações208, e não sobre o interesse de indivíduos particulares, e como tal, a constituição é o fator que unifica um todo que poderia estar dividido em grupos com interesses diferentes. A constituição em Hegel vêm a ser, portanto, como coloca Fleischmann em La Philosophie Politique de Hegel208 (1964), o ajuste de superação da sociedade civil, onde as várias partes que compõem o povo (corporações) são chamadas a cooperar para o fim do Estado, tendo como fonte organizacional a constituição208. E essa constituição, ao contrário do constitucionalismo advindo das

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teorias contratualistas, não foi gerada, ou construída, ela é o resultado, como dissemos, de uma dinâmica que vai se efetivando, é produto do espírito do povo, na medida em que as particularidades individuais vão sendo integradas à totalidade ética através da “cultura e de todo processo histórico de um povo” (HYPOLLITTE, 1995, p.45) Esse povo verá um fundamento ético à sua constituição formada através desse processo histórico, pois verá refletido na constituição o seu direito e a sua situação histórica. Portanto, essa é uma visão constitucional diversa do contratualismo que vimos, por exemplo, em Locke. Como diz Bobbio:

Como bem se sabe, um dos alvos preferidos dos ataques hegelianos são as teorias que utilizam as duas categorias do direito privado para explicar o Estado: daí a crítica, por um lado, ao patrimonial, que resolve o Estado na “propriedade” do príncipe; e a crítica, por outro lado, ao contratualismo, que funda o poder estatal no “contrato” social, e também – com ainda mais razão – àquele Estado, por assim dizer, duplamente privatista, que, segundo a teoria lockiana do governo civil, é representado como uma associação contratual em defesa da propriedade privada dos sócios. (BOBBIO, 1991, p.104)

O fator que mais nos interessa na teoria constitucionalista de Hegel é a idéia

de que as contingências individuais vão sendo absorvidas no Estado, é que a constituição é a maior manifestação desse fato. Para Hegel, segundo Fleischmann (1964) seria impossível existir o “social” se todo e qualquer indivíduo buscasse fundamentar suas vontades contra a totalidade, e isso não ocorre, porque a constituição ordena as vontades individuais de acordo com o social, o indivíduo se vê representado na constituição208. Nesse Estado constitucional hegeliano as necessidades individuais estão absorvidas dentro do espaço público, não existindo mais a idéia de necessidades individuais a serem satisfeitas fora do Estado, passa a existir, portanto, as necessidades dos indivíduos enquanto membros do Estado, enquanto membro da comunidade.208

A idéia de Hegel é que no Estado, através da constituição, a vontade coletiva é interiorizada pelos indivíduos particulares, existindo, portanto, uma coincidência entre a vontade individual e a vontade estatal.

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8- Retrabalhando Hegel 8.1) Linhas gerais: Nesta seção buscaremos revisar alguns pontos da filosofia política de Hegel

que apresentamos anteriormente, buscando compreender qual o lugar do pensamento político hegeliano frente às matrizes comunitarista e liberal.

O ponto principal que buscamos destacar é a idéia dialética hegeliana do processo de efetivação da liberdade na vida comunitária, que, por sua vez, está inserida na premissa filosófica maior de Hegel de inserção do particular no universal e do universal no particular. Toda a teorização política de Hegel busca compreender essa dinâmica de união da vontade particular com a vontade universal, segundo Châtelet (1985).

Desta forma, a dinâmica que se destaca do pensamento hegeliano para o nosso estudo está inserida nesta premissa dialética maior de Hegel entre particular e universal, o objeto principal que se destaca após todo o estudo da seção anterior é, portanto, a idéia da concretização efetiva da liberdade na vida comunitária, garantida e baseada, como vimos, pelo direito, não mais pelo sentimento, como era no conceito de família e não por interesses e contingências particulares como era na sociedade civil

Toda essa dinâmica dialética de realização da liberdade através do Estado será a base, portanto, da conclusão de nosso estudo, pois o Estado é a “culminação do processo”, como diz Rosenfield:

O Estado surge como culminação do processo de figuração do conceito, trazendo em si o movimento que o gerou. Hegel faz assim do parágrafo 262 ao 270, uma espécie de recapitulação das diferentes esferas e determinações que fazem do Estado a mais alta figura da Idéia de liberdade. Esta “recapitulação”, embora seja uma “repetição”, expõe, do ponto de vista da apresentação do texto, a concepção hegeliana do progresso, que é um avançar que se nutre de uma volta sempre reiterada ao processo de totalização lógica e figurativa da vida histórica do conceito, o qual, para chegar a si numa nova figura, efetiva o que se chama uma volta ao “fundamento ético”. Eis porque Hegel volta a considerar a família e a sociedade civil-burguesa como duas esferas finitas do movimento da Idéia de Estado. Esta relação entre o todo e as partes, entre o fim e a razão de ser, já é encontrada em Aristóteles. (ROSENFIELD, 1995, p.226)

A seguir vamos trabalhar, justamente, o que Rosenfield diz no final desta

citação, ou seja, a questão da eticidade em Hegel.

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8.2) No caminho aristotélico: Devemos destacar que Hegel, seguindo uma tradição aristotélica, enxerga o

homem como um ser gregário, ético, e que realiza essa eticidade no social208. Como vimos em Aristóteles, o lugar propício à atualização do homem é a polis, ela se configura como a comunidade natural.

A visão hegeliana deve muito a esta sistematização aristotélica, na medida em que Hegel compreende o indivíduo participante efetivamente da vida comunitária, como sendo esta a verdadeira vida ética. Assim como em Aristóteles (através, principalmente, da dinâmica da amizade), Hegel também só vê possibilidade de concretização do homem “no convívio com outros homens, através da sociabilidade” (CHÂTELET, 1985, p.85), é a dialética hegeliana do senhor e do escravo se ligando à dinâmica aristotélica da amizade.

Em Aristóteles a polis é a “realização” do projeto da família e da aldeia, ou seja, é o fim dos primeiros projetos comunitários, já a teorização hegeliana sobre família e sociedade civil, e subseqüente superação dialética operada pelo Estado, é muito próxima conceitualmente. E, como diz Rosenfield (1995), essa volta de Hegel à antiguidade clássica, a ao processo teórico da polis, não é uma repetição do que já foi escrito e pensado, mas uma nova criação, um retrabalhar de um pensamento clássico. Nas palavras de Rosenfield:

Hegel, partindo da dissociação moderna entre a liberdade individual e a comunidade política, tenta reconciliar o indivíduo com a substancialidade ética pela criação de um novo conceito de indivíduo. A reconciliação indica a unidade criada pelo dilaceramento entre o particular e o universal graças ao ato que reconhece em cada um destes termos o movimento de produção do outro. (ROSENFIELD, 1995, p.227)

Esse “reconciliar” do qual fala Rosenfield, e que Hegel busca em sua

filosofia política, ou seja, a união da qual falamos, do particular e o universal, é influenciada pelo comunitarismo aristotélico, e a apresentação que fizemos nas seções anteriores busca evidenciar este ponto. Conseqüentemente, temos que ver em Hegel, um crítico da “dissolução moderna entre a liberdade individual e a comunidade política” (HARTMANN, 1976, p.59), ou seja, um crítico das premissas filosóficas básicas do liberalismo e sua caracterização individualista.

Isto fica claro se tivermos em mente o propósito mesmo de Hegel com sua obra Princípios da Filosofia do Direito (2003). Segundo Jean Hyppolite208 (1999), Hegel buscou elaborar um estudo moderno sobre a possibilidade do indivíduo particular existir objetividade na universalidade ética.

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Hegel busca essa ligação entre a ética e a política em sua filosofia, através da

existência do direito positivo, ou seja, através de toda a teorização constitucional que vimos. Hegel buscou fundamentar uma universalidade ética e política, nesta universalidade as relações entre os homens são dependentes e superam os interesses individuais devido à criação de um todo que absorve as vontades contingências pela vontade geral, desta forma, essa universalidade supera o particular através das relações recíprocas existentes dentro da comunidade. Para Hegel, então, seguindo o princípio aristotélico, a liberdade se concretiza quando ocorre a superação dos interesses particulares, a liberdade fora da universalidade comunitária é uma falsa liberdade pois, como diz Hyppolite (1971), ora está sob a contingência da finitude da família, ora está ameaçada pelos interesses corporativos na comunidade civil. Daí a necessidade do Estado como garantidor dessa universalidade ética. O Estado realizará a verdadeira liberdade para Hegel, pois como ele diz na Introdução à História da Filosofia (1974), o indivíduo não tem sentido isoladamente, ele só possui sentido através de suas determinações históricas208, e o Estado surge da história208. Nas palavras de Hegel:

Na história política, o indivíduo, na singularidade da sua índole, do seu gênio, das suas paixões, da energia ou da fraqueza de caráter, em suma, em tudo o que caracteriza a sua individualidade, é o sujeito das ações e dos acontecimentos. Na história da filosofia, estas ações e acontecimentos, ao que parece, não têm o cunho da personalidade nem do caráter individual; deste modo, as obras são tanto mais insignes quanto mais este pensamento liberto de peculiaridade individual é, ele próprio, o sujeito criador. Primeiramente, estes atos do pensamento, enquanto pertence à história, surgem como fatos do passado e para além das nossas existência real. Na realidade, porém, tudo o que somos, somo-lo por obra da história; ou, para falar com maior exatidão, do mesmo modo que na história do pensamento o passado é apenas uma parte, assim no presente, o que possuímos de modo permanente está inseparavelmente ligado com o fato da nossa existência histórica (HEGEL, 1974, p.327)

A idéia hegeliana de primazia do todo sobre as partes, não há como negar,

detêm uma proximidade grande com as formulações comunitaristas. É interessante notar que na Introdução à História da Filosofia, como vemos acima, há uma defesa do caráter histórico-cultural formador do indivíduo, e esta idéia é similar ao fundamento da obra comunitarista de MacIntyre, Depois de Virtude, ou seja, a idéia que este defende, de que a “tradição é fundamental para compreendermos a nossa própria ação e o sentido de nossa própria história (coletiva, mas também individual) Este dado histórico é também constituído da unidade do eu”208 (GALUPPO, 2003). Esta similitude que apontamos fica mais clara ao lermos essa passagem da Introdução à História da Filosofia (1974):

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[...] aquilo que todas as gerações produziram como ciência, como patrimônio espiritual constitui uma herança acumulada pelo trabalho de todos os homens que nos precederam, um templo onde todas as gerações humanas, gratas e alegres, depuseram o que as ajudou a viver e o que elas conseguiram extrair da profundidade da natureza e do espírito. A recepção desta herança equivale ao exercício da posse dela. Ela forma a alma das sucessivas gerações, a sua substância espiritual e como que um hábito transmitido, os seus princípios, prejuízos e riquezas; e, ao mesmo tempo, tal herança degradou-se ao ponto de servir de matéria para ser transformada e elaborada pelo espírito. Desta maneira se vai modificando o patrimônio herdado, e simultaneamente se enriquece e conserva o material elaborado. (HEGEL, 1974, p.329)

Esta passagem é muito rica, pois nos mostra (além da similitude com a

filosofia de MacIntyre) como funciona a construção dialética de Hegel, onde no processo nunca há rupturas, e sim, enriquecimento e reelaboração de um princípio passado por outro, mostrando que a filosofia de Hegel busca dar conta da totalidade, e na busca pela identidade do indivíduo e seu lugar, as contradições do processo são fundidas e superadas dialeticamente.

E sem rupturas, e sim com a assimilação dialética da contradições entre a família e a sociedade civil, é que Hegel constrói sua teorização sobre o Estado, como coloca Dotti em Dialéctica y Derecho208 (1983). Portanto, seguindo a tradição aristotélica, vimos que em Hegel a liberdade, a realização do indivíduo, se dá em uma dimensão ético-política, se dá em um todo que não é a simples união das partes, mas a “realização da essência dessas partes”208 (através de tudo que Hegel coloca: história, cultura, tradição, que formam o espírito do povo). E essa forma gregária que concretiza o indivíduo através de uma superação dialética no social, necessita de um fator que ordene e lhe dê sustentação, o que não ocorre na sociedade civil, esse fator é o Estado.

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8.3) Retrabalhando o Estado: Como vimos nas seções anteriores, ao tratarmos do Estado em Hegel, existe

um processo ético que busca a superação dos interesses particulares individuais que encontramos na família e, também, busca a superação dos conflitos de interesses particulares encontrados na sociedade civil. Esse processo se concretiza quando encontra um campo que possa garantir a junção do particular no universal, esse campo, para Hegel, é o Estado.

O Estado é o campo em que o indivíduo concretiza a eticidade, através de alguns mecanismos que só o Estado possui, ou seja, a eticidade é garantida através do direito positivado que passa, então, a ser um sujeito possuidor de direitos e deveres e, como vimos, o aparelho estatal também mandatário de direitos e “sujeito” possuidor de deveres.

Devemos destacar esta postura do Estado hegeliano, como possuidor de direitos e deveres, Hegel não admite que o parelho estatal seja uma ameaça à liberdade individual, para o autor o Estado é o campo que retira da vida ética do indivíduo a possibilidade de que as contingências e os interesses egoístas atrapalhem o livre desenvolvimento do indivíduo, por isso para Hegel, o Estado é na verdade a garantia para a existência da verdadeira liberdade que só existe na universalidade. O Estado é o aparelho que gera leis e direitos que existem, segundo Hegel, para garantir a liberdade do indivíduo.

É a constituição que, como vimos, garante essa função do Estado hegeliano, de possibilitar a real existência da liberdade. Para Hegel é impossível existir a efetiva liberdade sem a normatização, a Constituição, portanto, como coloca Fleischmann (1964), ordena a universalidade, garantindo a liberdade, na medida, em que coordena o lugar das individualidades dentro do Estado, não permitindo que exista o conflito de egoísmos e, por outro lado, o arbítrio estatal.

Na Introdução à História da Filosofia Hegel deixa claro que o “valor das partes” deriva da relação “entre elas e o todo”. Nas palavras de Hegel:

O espírito exige a posse de uma representação geral do escopo e da finalidade do conjunto para saber a que deva consagrar-se. Do mesmo modo que se abarca num relance uma paisagem que se vai estreitando à medida que demoramos o olhar em cada uma das partes que a constituem, assim também o espírito deseja compreender a relação entre as filosofias particulares e a filosofia geral, porque o valor das partes singulares deriva principalmente da relação entre elas e o todo (HEGEL, 1974, p.330)

O fator, portanto, que garante coesão a essa “paisagem” que é o Estado, é a constituição, a norma, a lei, é ela que estabelece os limites das particularidades inseridas na universalidade da “paisagem”. Para Hegel, portanto, fora da norma, da Lei, estaríamos entregues às contingências e aos egoísmos208, estes sim, verdadeiras ameaças à liberdade.

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Devemos concluir, como faz Bobbio, que a questão da liberdade em Hegel se

resolve, e se concretiza, no Estado:

Só esta liberdade na totalidade é, para Hegel, a realização da liberdade, a liberdade concreta. Desde o momento

inicial do direito abstrato até o momento final do Estado, um contínuo processo de realização da liberdade conduz ao

momento conclusivo, o Estado, que é a realidade da liberdade concreta. (BOBBIO, 1991, REFERÊNCIAS:

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os liberais, os comunitaristas não procuram compreender a verdadeira concepção liberal sobre a relação entre o justo e o bem e, como diz Chantal Mouffe, a concepção liberal, na verdade, defende que:

[...] uma vez que os cidadãos se vejam a si mesmos com pessoas livres e iguais, reconhecerão que para realizarem as suas diferentes convicções de bem necessitam dos mesmos bens primários – ou seja, os mesmos direitos básicos, liberdades e oportunidades – bem como dos mesmos meios destinados a todos os fins, como rendimento, a riqueza e as mesmas bases sociais de auto-estima. (...) Segundo esta visão liberal, a cidadania é a capacidade de cada pessoa formar, rever e realizar racionalmente a sua definição de bem (MOUFFE, O Regresso do Político, 1996, p.84).