Conceitos - Curitiba Metropole Corporativa

download Conceitos - Curitiba Metropole Corporativa

of 21

description

Conceitos urbanísticos sobre a cidade de Curitiba

Transcript of Conceitos - Curitiba Metropole Corporativa

  • XII ENCONTRO DA ASSOCIAO NACIONAL DE PS-GRADUAO E PESQUISA EMPLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL21 a 25 de maio de 2007Belm - Par - Brasil

    CURITIBA, METRPOLE CORPORATIVA: FRONTEIRAS DA DESIGUALDADE

    Simone Aparecida Polli (UFRJ/IPPUR)

  • 1Curitiba, Metrpole Corporativa: Fronteiras da Desigualdade.

    Resumo

    Este trabalho refletir sobre as mudanas ocorridas nas periferias metropolitanas, que

    configuram um espao marcado pelo acirramento das desigualdades sociais e pelos contrastes

    urbanos. A dualidade centro-periferia no suficiente para explicar o espao metropolitano e

    as suas dinmicas. As rugosidades, oriundas do padro anterior, imbricam-se nas

    transformaes recentes dos espaos subdesenvolvidos, produzindo novas desordens/ordens.

    O Condomnio fechado Alphaville Graciosa e a ocupao irregular Vila Zumbi dos Palmares

    representam, de forma mais ntida, a conformao da segregao. Novos conceitos e modos

    de vida esto em disputa, agentes entram em cena na governabilidade metropolitana e pactos

    so constantemente feitos e refeitos. A ordem instituda na periferia tem forte poder de

    colonizar o territrio, ou melhor, impor estratgias de dominao e de extrair (ou desfrutar)

    do lugar suas qualidades. Milton Santos explica que nesse cenrio as cidades no explodem

    pela ao simultnea de processos relacionados economia urbana e s estruturas de

    enquadramento sociocultural, que condicionam as aes da vida urbana. E, nesse crculo

    vicioso, a pobreza apresenta seus mecanismos de dominao fazendo com que a populao

    tenha dificuldade de discernir os reais motivos que encobrem determinados interesses.

  • 2Curitiba, Metrpole Corporativa: Fronteiras da Desigualdade1.

    1. As fronteiras da desigualdade em Curitiba

    A forma de produo das cidades brasileiras est longe de oferecer condies e

    oportunidades eqitativas a seus habitantes. A expanso das periferias comprova as

    desigualdades, agregando, alm da distncia fsica, a distncia social no que concerne

    qualidade de vida.

    A histria de 40 anos de planejamento urbano de Curitiba repete o modelo elitizado da

    cidade brasileira, os ranos histricos dos privilgios concentrados nas mos de poucos,

    produzindo e reproduzindo a desigualdade. Assim, as diretrizes e aes do planejamento

    urbano implementadas em Curitiba restringiram-se ao municpio-plo, no sendo capazes de

    enfrentar a complexidade metropolitana. Alm disso, imagens emblemticas foram associadas

    ao xito desse planejamento, tais como, cidade-modelo, cidade de todas as gentes, capital

    ecolgica, cidade sorriso, cidade vitrine do Brasil. A cidade emerge no cenrio

    internacional associando suas polticas projeo na escala mundial e as questes sociais so

    consideradas residuais.

    A trajetria do planejamento urbano implementado em Curitiba reafirma a

    desigualdade e refora o efeito polarizador da capital nas relaes entre municipalidades

    (centro-periferia), desconsiderando a escala metropolitana. Historicamente, a rea

    metropolitana foi afetada pelas relaes de poder e pelos instrumentos de poltica urbana

    utilizados em Curitiba e, mais recentemente, tem sido afetada pelo planejamento estratgico e

    pelo city marketing aplicado capital. As demais municipalidades, que almejam o sucesso,

    copiam as polticas idealizadas para a cidade-modelo, numa relao mimtica que leva a

    refletir sobre as relaes de poder e interdependncia entre o municpio-plo (Curitiba) e os

    perifricos. necessrio observar a periferia e compreender aqueles que foram destitudos

    dos benefcios da modernizao e que se encontram inseridos na ordem que corresponde ao

    risco ambiental, segregao e favela de periferia.

    Jos de Souza Martins, refletindo sobre a situao de fronteira, quando trata do

    conflito de terras entre latifundirios e tribos indgenas, afirma que possvel reconhecer as

    relaes conflituosas e o desencontro dos tempos histricos entre os grupos sociais

    envolvidos. preciso entender como esses grupos olham a si e aos outros e como convivem

    no mesmo territrio. Sem aceitar a radicalidade do confronto que define a situao social da

  • 3fronteira, no se pode desvendar as fundamentais relaes sociolgicas que essa radicalidade

    pode fazer (MARTINS, 1997, p.17).

    Segundo o autor, a fronteira de modo algum se reduz fronteira geogrfica, e sim s

    fronteiras em muitos e diferentes sentidos: fronteira da civilizao, fronteira espacial,

    fronteira de culturas e vises de mundo, fronteira de etnias, fronteira da Histria e da

    historicidade do homem e, sobretudo, fronteira do humano. Ela pode assumir diferentes

    sentidos: fronteira conflito entre territorialidades, o eu e o outro; o cenrio de intolerncia,

    ambio e morte; tambm lugar da elaborao de uma residual concepo de esperana;

    ponto-limite dos territrios que se redefinem continuamente, disputados de diferentes modos

    por diferentes grupos humanos; linha que separa cultura e natureza, o homem do animal, o

    que humano e o que no . Fronteira essencialmente o lugar da alteridade. Lugar de

    descoberta do outro e do desencontro. No apenas o desencontro e o conflito decorrentes das

    diferentes concepes de vida, mas o desencontro das temporalidades histricas (Ibid,

    p.150).

    nesta fronteira entre municpios, na transio entre bairros qualificados e a periferia

    carente, nas situaes e modos de vidas desiguais, nas polticas e na aplicao diferenciada

    dos recursos que se encontra o objeto de anlise. nesse espao que se pode observar como

    as sociedades se formam se organizam e se reproduzem. Na fronteira do humano,

    encontramos o outro.

    Decorrem da as questes motivadoras deste trabalho: Como conseguem conviver

    tanta pobreza e riqueza, lado a lado no territrio? Quais so as mscaras que naturalizam

    tamanha desigualdade? Qual a ordem que o planejamento urbano de Curitiba produziu? Por

    que a metrpole no explode?

    2. Zumbi dos Palmares e Alphaville Graciosa, pares opostos de um projeto de metrpole.

    A partir da dcada de 90, identifica-se na grande Curitiba a proliferao de

    condomnios fechados de alto luxo ao lado de grandes ocupaes irregulares (j existentes)

    em reas de proteo ambiental, reas de manancial, de abastecimento. Os loteamentos

    Alphaville Graciosa e a Vila Zumbi dos Palmares, localizados um ao lado do outro, na Regio

    Metropolitana de Curitiba, so exemplos dessa nova conformao das periferias urbanas, da

    exacerbao da desigualdade, condensando uma srie de conflitos e tenses latentes no

    convvio entre seus moradores. As transformaes das periferias urbanas so a expresso mais

    ntida da ordem/desordem e da desigualdade manifesta no territrio.

  • 4 Nesse perodo, marcado pelas transformaes decorrentes da internacionalizao da

    metrpole de Curitiba, verifica-se a agudizao da segregao na periferia, aprofundando as

    desigualdades e tornando a articulao entre as fraes do tecido urbano mais complexo. As

    periferias urbanas so o exemplo mais cabal da valorizao desigual dos homens e dos

    lugares (ALMEIDA, 2003, p. 218). A periferia transformada caracterizada por relaes

    como descritas por Lechner:

    A fase contempornea do capitalismo, desejada imaterial e ubqua, cria enclaves com dotao mxima de amenidades; impede a sociabilidade interclassista; coloniza a rede urbana atravs de redes de servios que destroem a singularidade dos lugares; rompe os pactos sociais que orientavam as polticas pblicas inclusivas; aumenta a concorrncia intracapitalista, impossibilitando a permanncia de atividades econmicas com razes culturais profundas; desinstitucionaliza relaes sociais, impossibilitando a previso do futuro e aumenta o medo individualmente vivenciado (LECHNER, apud RIBEIRO, 2005, p. 100).

    Alinha-se nesse artigo reflexes sobre as relaes conflitivas, o desencontro de tempos

    histricos, a desigualdade dos projetos, os universos sociais distintos, a forma como se d a

    relao com o Estado e como se manifesta a ordem/desordem metropolitana em Curitiba.

    Zumbi e Alphaville esto em situao de fronteira, espacial, do humano, da civilizao,

    fronteira em muitos e diferentes sentidos. Por meio da comparao entre os parmetros

    construtivos e de urbanizao, mostra-se o afastamento entre seus mundos, completamente

    distintos e isolados.

    Tabela 1- Parmetros de urbanizao entre Alphaville e Zumbi dos Palmares

    ALPHAVILLE GRACIOSA ZUMBI DOS PALMARES

    Tipologia de ocupaoCondomnio fechado, aprovado como loteamento, inaugurado em 2000.

    Ocupao irregular, existente h 14 anos

    Estgio atualEm processo de consolidao, com aproximadamente 600 moradores

    Em processo de regularizao fundiria financiada pelo governo do Estado

    O novo estilo de vida Marginalidade

    Melhor estilo de vida ViolnciaViva em Alpha Trfico de drogasProximidade com o centro urbano; Roubo, desmanche de carros

    Imagens Associadas

    Um conceito nico de empreendimento: qualidade de vida.

    Precrias condies de vida

    rea ocupada 2,5 milhes de m 500 mil m

    Populao total 6.500 habitantes 6.649 habitantes

    Nmero de lotes e habitaes

    1.218 lotes 1.797 habitaes existentes

    Densidade 2.400 hab/km13.298 hab/km (5,5 vezes mais que em Alphaville)

    rea do loterea mnima de 550 m, (maioria 700 m, chegando a mais de 1.000m)

    no mximo at 200 m (4 a 8 vezes menor que em Alphaville)

  • 5rea mnima da residncia

    200 m

    varivel: 52% das famlias com casas de 30 a 60 m ou, se considerarmos a pesquisa, a rea mnima encontrada: 15 m; sobrados propostos no projeto de regularizao: 40 m (4,4 vezes a mais)

    Taxa de ocupao 40% 60% a 100% (ocupao total)

    Permeabilidade50% (o tratamento superficial dos lotes primorosamente cuidado em Alphaville)

    parmetro varivel conforme o nmero de construes por lote, no mx 5%

    Infra-estrutura Completamente instalada Luz e guaVias asfaltadas 100% 0%

    rea verde1,0 milho de m de rea verde; rea verde por morador: 165 m/morador

    35 mil m de faixa de preservao do parque linear do Rio Palmital recuperar

    reas de uso comum 630. 000 m (rea de lazer) 3.800 m (campo de futebol)

    Perodo analisadoA partir de 1990, novas formas urbanas alteram o ento contedo da periferia

    A partir de 1970, inicia-se o processo de periferizao em Curitiba

    Feies espaciais Centro e periferia se fragmentam centro-periferia

    Localizao dos grupos sociais

    Os diferentes grupos sociais esto prximos, mas no se comunicam, classes coexistem, mas no se tocam.

    os pobres concentravam-se na periferia precria e distante e os ricos nos centros urbanos, legalizados e bem equipados

    Espaos pblicosAnonimato e individualismo, espaos privatizados, espao do carro.

    reas de lazer pblicas, mas com restries ao uso pelo domnio do territrio por grupos de traficantes.

    Configurao espacial

    Negao da cidade, espao privatizado, espetculo, cidade toda enquanto mercadoria, cidade fragmentada, enclausurada.

    Cidade dispersa, periferizao.

    Arquitetura das habitaes

    Estilo livre, com predominncia na arquitetura clssica e moderna (regras do manual de construo em Alphaville)

    Autoconstruo/mutiro

    Relao com os rgos pblicos

    Participao direta- nvel Estadual, influncia nas esferas de deciso

    Clientelismo, paternalismo

    Valores imobilirios do terreno

    Antes: R$ 3,00/m ps-empreendimento: R$ 180,00/m

    Mercado informal: R$8,00/m ps-incio da regularizao, R$ 20,00/m, valor da desapropriao: R$ 7,00m

    Com relao tipologia urbanstica, observa-se que Alphaville caracteriza-se como

    um condomnio fechado, mas foi aprovado legalmente como um loteamento. Assim, de

    acordo com a Lei Federal 6766/79 e suas emendas, existem no seu interior reas pblicas e

    institucionais, que sero doadas ao municpio, destinadas para uso da coletividade e cuja

    manuteno de responsabilidade da Prefeitura. Parte dessa rea destina-se ao sistema virio

    e, conforme avaliao interna da Prefeitura, no h maiores prejuzos para a cidade. Mas

    importante questionar quem, de fato, poder usufruir dos 878 mil m de rea pblica previstos

    no projeto do Condomnio Alphaville Graciosa. E dos 457 mil m previstos como rea verde

    pblica? H que se observar os efeitos negativos para a cidade, relacionados ao extremo auto-

    isolamento e impossibilidade dos moradores vizinhos de utilizao dos espaos pblicos,

    das reas verdes, de circulao e de sociabilizao com os moradores do condomnio.

  • 6Demonstra-se enfim, que a implantao do condomnio acirra o processo de auto-segregao

    e isolamento.

    Zumbi, como ocupao irregular, tambm limita a cidadania dos seus moradores. A

    segregao, nesse caso, no desejada, mas sim imposta. grande a discriminao vivida

    pela populao, sendo o local considerado um lugar, uma vila, apenas por seus moradores.

    Vinculada a essa segregao esto as imagens associadas a cada um dos espaos. De

    um lado, o condomnio Alphaville, que j se transformou em um produto presente em todas as

    regies do Brasil, vende bens pblicos (contato com a natureza), segurana e um novo estilo

    de vida (buscando assemelhar-se ao estilo americano). Do outro, Zumbi dos Palmares,

    associado pobreza, violncia e marginalidade. Alm disso, o estigma criado causa todo o

    tipo de discriminao, fator responsvel pela reproduo da pobreza.

    Bourdieu (1997) denomina a distino fortemente enraizada na sociedade de violncia

    simblica, em que o espao social exerce um poder que classifica, discrimina e rotula. E essa

    dimenso simblica, da luta de classes, refora as formas hegemnicas de percepo e

    apreciao do mundo, por meio de categorias mentais e hierarquias que distinguem e

    discriminam o outro. A imagem de opulncia de Alphaville refora o seu poder, ao mesmo

    tempo em que exerce uma violncia simblica ao classificar e rebaixar o outro (Zumbi dos

    Palmares), criando mecanismos de dominao simblica.

    Apesar de ter praticamente o mesmo nmero de habitantes (6.500), o territrio

    ocupado por Alphaville cinco vezes maior que o de Zumbi dos Palmares. A densidade em

    Zumbi (13.298 hab/km) chega a cerca de 5,5 vezes a de Alphaville. Apesar disso, no h

    medidas previstas para limitar o adensamento de Zumbi, que tende a aumentar, enquanto a

    populao de Alphaville projetada, isto , s chegar ao mximo aps 100% de ocupao.

    Em Alphaville, o nmero de lotes praticamente o mesmo de Zumbi dos Palmares. A rea de

    cada lote em Alphaville pelo menos 4 vezes maior que em Zumbi, variando de 700 m a

    1.000 m, contra 200 m a 60 m, o que repercute tambm no tamanho das residncias. Em

    Alphaville as casas tm, no mnimo, 200 m de rea construda, enquanto em Zumbi dos

    Palmares, o tamanho mdio das moradias 5 vezes menor (40 m). A densidade construtiva

    maior (variando de 60% a 100% do terreno) e o solo turfoso em Zumbi fazem com que a rea

    apresente obstculos drenagem das guas de chuva. J em Alphaville, os padres

    urbansticos estabelecidos de no mximo 40% de taxa de ocupao e 50% de permeabilidade

    garantem a drenagem e a ocupao adequada do lote. Esses dados indicam a precariedade das

    condies de vida em Zumbi e a violncia contida na desigual forma de ocupao do espao2.

  • 7O modo de vida estimulado pelos condomnios fechados, que no senso comum

    aparecem como inofensivos, radicaliza as desigualdades sociais e constri verdadeiras ilhas

    da fantasia. Esses empreendimentos comportam-se como enclaves fechados, desvinculados

    de qualquer compromisso com o lugar. So portadores dos cdigos de uma forma-contedo

    globalizada, implantando-se, em grandes extenses, como verdadeiros aliengenas.

    Entretanto, correspondem viso hoje dominante do excelente negcio e do investimento

    capaz de promover localidades economicamente deprimidas.

    Como alerta Ribeiro (2005), essas formas tm forte poder de colonizar o territrio,

    ou melhor, de impor estratgias de dominao do seu entorno e de extrair (ou desfrutar com

    exclusividade) as amenidades dos lugares em que se instalam. Afinal, a sua principal

    estratgia baseia-se na privatizao de recursos territorializados. Para tanto, so escolhidos os

    lugares, antes prioritariamente destinados aos pobres, que garantiro o lucro extraordinrio. A

    partir de ento, o grupo empresarial aciona todos os instrumentos que esto ao seu alcance

    para conquistar e controlar a localizao eleita, fixando os seus usos e determinando o seu

    futuro. Como instrumentos dessa conquista, Alphaville pode ter utilizado armas que esto

    mais a seu alcance: a influncia junto aos rgos pblicos; a flexibilizao da legislao; e a

    participao no planejamento. No perodo ps-implantao, continua exercendo o controle do

    territrio, por meio de formas de dominao simblica do lugar e do Outro. A continuidade

    dessa dominao encontra-se garantida pelos desdobramentos empresariais do

    empreendimento e, tambm, pela preservao de atividades administrativas contnuas. O

    empreendedor de Alphaville diferencia-se dos tradicionais porque permanecem no

    empreendimento mesmo aps produzir e incorporar o loteamento, administrando seu

    condomnio.

    As formas socioespaciais correspondentes ltima modernizao so eivadas de

    contedo tcnico-cientfico-informacional, que correspondem a estratgias territoriais de

    longo curso. Constituem, de fato, reais concrees de novas formas de exerccio do poder, que

    atropelam a histria e as caractersticas do lugar em que se instalam. Esses empreendimentos,

    alm de impactarem fortemente o imaginrio urbano, fortalecem seu poder de interveno na

    esfera pblica, por representarem reais snteses da administrao bem-sucedida, que responde

    ao medo e aos anseios de auto-segregao das classes mdia e alta, ou seja, daqueles

    segmentos sociais que detm grande influncia nas esferas de poder.

    Em termos mais amplos, pode-se dizer que os condomnios fechados so um produto

    completo de ltima gerao, exercem poder em sua prpria rea (impondo determinados

    comportamentos aos moradores), sobre o Estado e sobre o Outro. O alto grau de segregao e

  • 8isolamento evidencia crescente desolidarizao das classes mdia-alta e alta em relao s

    carncias urbanas vividas pelas classes populares. Alis, o contato dirio com estas classes

    indesejado e, cada vez mais, temido. A conjugao desses processos alerta-nos para as

    conseqncias sociais do enfraquecimento do Estado e a mudana sofrida por uma srie de

    conceitos (tais como cidadania, cidade, espao pblico)devido a presso da nova ordem

    difundida na atual fase do capitalismo. Como Harvey, acredita-se que:

    Essa nova sociabilidade acomoda-se perfeitamente aos requisitos de competitividade e produtividade comum flexibilizao do mercado de trabalho, de bens e de capitais, com tambm responde no plano ideolgico pela (re) totalizao do espao homogneo que radicaliza a disperso dos corpos (segregao territorial) e a desintegrao da vida social (trabalho, cultura, ludicidade, sexo, prazer e gozo). Em funo desse novo/velho projeto de hegemonia social, que a cidade democrtica deve abrir-se s novidades e acatar a volatilidade, efemeridade de modas, produtos, tcnicas de produo, processos de trabalho, idias e ideologias, valores e prticas estabelecidas (HARVEY apud BARBOSA, 2002, p. 102).

    No pretende-se aqui questionar a riqueza, mas sim a desigualdade, a forma perversa

    como ela se manifesta e suas implicaes. A diferena na forma de urbanizao dos dois

    lugares conduz suas populaes a caminhos opostos, a mundos completamente distintos e

    reproduo ampliada das desigualdades. Como falar em democracia, cidadania, direitos,

    trabalho, oportunidades, educao, sade e qualidade de vida em realidades to dspares?

    Existe alguma forma de coexistncia entre mundos to distintos? Quais so as conseqncias,

    para a totalidade metropolitana, da configurao desses espaos?

    Zumbi dos Palmares e Alphaville Graciosa so a materializao dos contrastes entre

    formas e modos de vida incompatveis. Neles, vemos presente o confronto entre tempos

    histricos diversos, devido s origens e classes, s realidades distintas. Interesses e modos de

    vida se confrontam na fronteira do territrio ocupado. Cada modo de vida contm um espao/

    temporalidade diferente e no se vive o mesmo tempo histrico, tornando a Vila Zumbi

    subordinada a processos dominantes que tm ritmos distintos dos seus.

    Diante dessas distines, volta-se a Bourdieu (1997), quando se refere dimenso

    simblica e estrutura do espao social. O autor diz que as oposies espaciais so entendidas

    como manifestaes espontneas do espao social e ainda afirma:

    No h espao, em uma sociedade hierarquizada, que no seja hierarquizado e que no exprima as hierarquias e as distncias sociais, sob uma forma deformada e dissimulada, pelo efeito de naturalizao que a inscrio durvel das realidades sociais num mundo natural acarreta [...] (1997, p. 160).

    Casos como a de Zumbi dos Palmares e do Condomnio Alphaville Graciosa

    convivendo lado a lado, sem comunicao ou qualquer outra forma de integrao so

  • 9situaes j naturalizadas na periferia metropolitana. Bourdieu (1997), ao tratar do efeito do

    territrio na reproduo das desigualdades sociais, introduz o simblico nas estruturas mentais

    que classificam e orientam as distines, afirmando

    As grandes oposies sociais objetivadas no espao fsico tendem a se reproduzir nos espritos e na linguagem sob a forma de oposies constitutivas de um princpio de viso e de diviso, isto , enquanto categorias de percepo e de apreciao ou de estruturas mentais (ibid, 162).

    Alm do abismo entre o patamar de urbanizao dos dois lugares, h forte presena do

    poder simblico, que reproduz as desigualdades sociais e a pobreza em Zumbi dos Palmares

    O capital permite manter distncia as pessoas e as coisas indesejveis ao mesmo tempo em que se aproxima de pessoas e coisas desejveis [...] facilitando ou favorecendo aacumulao de capital social. Inversamente, os que no possuem capital so mantidos distncia, seja fsica, seja simbolicamente, dos bens socialmente mais raros, e condenados a estar ao lado das pessoas ou dos bens mais indesejveis e menos raros. A falta de capital intensifica a experincia da finitude: ela prende a um lugar (ibid, p. 164).

    A agudizao das contradies urbanas no espao a demonstrao mais clara de que

    foras concentracionistas, de escalas mais abrangentes, interferem no territrio, estimulando

    decises polticas e investimentos que mutilam a cidadania, naturalizando a pobreza e

    incentivando a excluso social. A colonizao do Outro baseia-se no uso de armas como

    formas geogrficas e estruturas mentais, carregadas de violncia simblica (BOURDIEU,

    1997).

    Os condomnios fechados e os conjuntos habitacionais destinados aos pobres

    representam opostos simtricos na hierarquia social e espacial, mas correspondem aos

    mesmos intuitos de materializao (preservao) da sociedade de classes. Guetos iguais3

    expressam a radicalidade da desigualdade e, como esto geograficamente localizados lado a

    lado, expressam a radical aceitao da estrutura social. A prpria pobreza (ou a espoliao

    urbana) constitui-se num mecanismo de dominao, fazendo com que no seja plenamente

    compreendido pelas camadas populares, os determinantes responsveis por suas condies

    urbanas de vida. Afinal, at mesmo as tenses territoriais, em sua visibilidade mais imediata,

    so encobertas por discursos e imagens que escondem interesses econmicos e polticos.

    3. A Tecnoesfera e a Psicoesfera na Naturalizao da Pobreza

    Os contrastes analisados, Zumbi e Alphaville Graciosa, inseridos em espao de fronteira,

    aparentemente convivem sem conflitos. O fato chama ateno pela desigualdade de projetos e situaes,

    justapostas. Como os moradores de Zumbi podem aceitar tal disparidade? Dessa forma, ser necessrio

  • 10

    refletir como esses grupos vem a si mesmos e ao outro. Essas relaes expressam a vida em sociedade,

    em que, para um, prevalece a luta pela sobrevivncia, enquanto, para outro, o consumismo e a

    acumulao sem limites.

    Baseado em Milton Santos (1990) e suas reflexes sobre o instvel equilbrio em que

    vivem as cidades, busca-se responder a questes como: Por que as metrpoles no explodem?

    Como conseguem conviver tanta pobreza e riqueza lado a lado? Quais so as mscaras que

    encobrem tamanha desigualdade?

    Segundo o autor, a vida urbana condicionada pela operao simultnea de processos

    tcnicos relacionados economia urbana (tecnoesfera) e de estruturas de enquadramento

    sociocultural (psicoesfera). O primeiro movimento diz respeito a consecutivas adaptaes que

    a economia urbana realiza para adaptar-se a novas condies de produo com os devidos

    prejuzos para a vida do trabalhador. segunda esfera, Milton Santos associa os sistemas de

    ao correspondentes e as estruturas de enquadramento socioculturais.

    Em relao tecnoesfera, Santos explica que:

    Os espaos da globalizao apresentam cargas diferentes de contedo tcnico, de contedo informacional, de contedo comunicacional. Os lugares, pois, se definem pela sua densidade tcnica, pela sua densidade informacional, pela sua densidade comunicacional, atributos que interpenetram e cuja fuso os caracteriza e distingue (2004, p. 257).

    A consolidao de uma nova etapa produtiva na Grande Curitiba, com a instalao das

    montadoras automobilsticas, marca o avano dos circuitos superiores da economia urbana,

    ligados modernizao tecnolgica, com empresas estrangeiras que geram nmero limitado

    de empregos, beneficiando poucas famlias. Em relao a tecnosfera, nos ensina Santos:

    [...] a economia urbana se adapta, segmentando-se por meio do paralelismo de atividades com os mais diversos nveis de capitalizao, tecnologia e organizao, criando oportunidades de trabalho que no haveria se apenas existissem as empresas modernas (1990, p. 185).

    Em Curitiba, essa segmentao e diversificao do mercado ocorre, fazendo com que

    outros tipos de empresas menos modernas tambm se estabeleam na metrpole, dinamizando

    a economia e oferecendo mais empregos e novas relaes de trabalho, atraindo populaes

    que buscam oportunidades de trabalho. Porm, os postos criados so, na maioria das vezes,

    insuficientes, rotativos e mal pagos.

    Em Zumbi dos Palmares, a populao exerce atividades econmicas relacionadas ao

    comrcio para servir prpria Vila, atividades de catao e reciclagem do lixo (15%) e

    empregos de baixa qualificao (emprego domstico, jardinagem, servios de segurana).

  • 11

    Com o subemprego crescem tambm as periferias. As periferias so a expresso da excluso

    social e geogrfica de grandes parcelas da populao submetidas sucessivas modernizaes

    do territrio (Almeida, 2003 p. 230).

    Como conseqncia, na mesma metrpole convivem espaos como os de Zumbi e

    Alphaville, que, apesar de contemporneos, apresentam contedos sociais e densidades

    tcnicas radicalmente distintos, o que corresponde a experincias urbanas diferentes, apesar

    da aparente simultaneidade de tempos sociais.

    Quanto psicoesfera, Milton Santos associa os sistemas de ao correspondentes e as

    estruturas de enquadramento socioculturais:

    Chamemos de sistema de ao deliberada queles instrumentos elaborados na superestrutura do sistema social destinados a conter, pela persuaso ou pela fora, os mpetos de ao dos que se situam nas camadas mais pobres. Chamemos de estruturas de enquadramento aqueles elementos do sistema social cuja eficcia, no sentido de imprimir comportamentos passivos, pertencem prpria lgica do sistema e cuja ao, desse modo, at pode ser considerada como espontnea, mas no inocente (1990, p. 188).

    Conforme exemplifica o autor, a cidadania mutilada, as formas de representao

    enviesadas e o trabalho de certas organizaes no governamentais so exemplos de sistemas

    de ao deliberada. Assim como podem ser citados o consumo e o crdito como estruturas de

    enquadramento. A cidadania mutilada no decorre somente das leis injustas, mas est

    relacionada ao lugar onde se vive, que faz dos pobres mais pobres:

    [...] o cidado mutilado induzido a uma interpretao naturalista de sua situao de inferioridade j que os bairros pobres se definem como aqueles onde h todo tipo de carncias... Dessa maneira, no a cidade capitalista que injusta para com o pobre, mas sua prpria pobreza, carncia que pode ser suprida, segundo a ideologia dominante, por meio do trabalho... (ibid).

    O contato com as famlias de Zumbi por meio do projeto Olha Aqui4 mostrou o quanto

    a cidadania mutilada no cotidiano, pela precariedade das relaes familiares, pela

    dificuldade de expresso e pela inexistncia de relaes ou manifestaes coletivas. Nessas

    condies, perde-se a noo dos direitos individuais ou coletivos e, como os moradores so

    pobres, qualquer colaborao vista como caridade, mesmo que provenha dos rgos

    pblicos. Os sistemas de enquadramento manifestam-se em Zumbi dos Palmares por meio do

    clientelismo, das lideranas cooptadas e carismticas.

    Milton Santos cita as doenas mentais como estrutura de enquadramento sociocultural:

    [...] as doenas mentais e os desequilbrios emocionais se alastram como praga entre os pobres, sendo, porm, extremamente menos importantes que as situaes de

  • 12

    carncia de todo os tipos, inclusive as mltiplas carncias orgnicas resultantes, inclusive da desnutrio (1990, p. 189).

    Verifica-se em Zumbi uma grande proliferao de igrejas/seitas, com cerca de

    dezesseis denominaes diferentes apenas no interior da vila. As igrejas so as formas de

    associativismo reconhecidas entre os moradores, apesar de funcionarem isoladamente e

    atenderem apenas aos seus prprios fiis. Surgem como forma de alvio pobreza e como

    caminho na busca de reconhecimento e identidade, muitas vezes perdidos pelo fato de terem

    sido desfeitos os laos com os lugares de origem. Milton Santos alerta para o fato de que as

    igrejas podem estimular comportamentos passivos: [...] ampliar a base de sustentao

    ideolgica do sistema, pregando a desvalorizao da esfera social e cultural e, implicitamente,

    da esfera poltica (ibid).

    Pode-se reconhecer, ainda que de forma preliminar, que Alphaville utiliza-se do

    Centro de Convivncia da Graciosa, implantado em Zumbi dos Palmares, para fortalecer a sua

    influncia no entorno imediato e a sua imagem, ou seja, como mecanismo de dominao

    simblica. Esse centro, portanto, poderia ser compreendido, como sugere Milton Santos,

    como uma estrutura de enquadramento. A construo, no territrio vizinho, recorda

    permanentemente Alphaville5, estimulando a aceitao do empreendimento, da situao de

    desigualdade e, conseqentemente, da pobreza. Dessa forma, a imagem positiva e o prestgio

    promovem Alphaville a posio de colaboradores e solidrios para com o Outro (Zumbi).

    Em Zumbi dos Palmares verifica-se que a vida cotidiana, o isolamento, a falta de

    oportunidades so alguns dos mecanismos de reproduo, no seu interior, da prpria condio

    de pobreza. H forte reconhecimento do lugar onde vivem, no entanto o mesmo no acontece

    com a cidade ou outros lugares, que os moradores de Zumbi pouco conhecem. Tudo isso

    limita as possibilidades de mudana, de sada da condio atual e de percepo dos prprios

    mecanismos que os oprimem.

    4. A nova ordem metropolitana: o projeto bsico de regularizao

    A regularizao fundiria transformou-se em prtica amplamente aplicada em vrios

    assentamentos em todo o Brasil, mas est repleta de contradies e significados mltiplos. Apesar de

    fazer parte do iderio da reforma urbana, que combate a relocao de populaes carentes, em muitos

    casos pode-se transformar em uma mquina de produzir excluso e ampliar a segregao. Trata-se de

    um projeto poltico em disputa: tanto [...] dos mais progressistas, onde a ilegalidade fundiria e

    urbanstica so elementos da no-cidadania, aos mais conservadores, como, por exemplo, a viso de

  • 13

    cunho ambientalista, onde a ilegalidade urbana responsabilizada pela degradao ambiental (LAGO,

    2005).

    O projeto de regularizao em Zumbi dos Palmares entendido como potencial gnese

    de uma nova ordem, porque se levanta a hiptese de que est em formao um novo pacto na

    periferia, uma articulao entre Estado e empresrios. Este pacto contribui na construo da

    periferia desejada, aquela que corresponda a seus interesses, com o objetivo de controlar ou

    manter uma ordem, na qual seja proporcionado o alvio pobreza, o embelezamento e

    melhoramentos, caso isso seja do interesse dos novos empreendimentos da economia

    globalizada.

    Desde 2004, a Vila Zumbi dos Palmares passa por um processo de regularizao

    fundiria e urbanstica. A rea foi desapropriada pelo Governo do Estado e repassada para a

    Companhia de Habitao do Paran (Cohapar), que est implantando um plano de

    reassentamento, integrante do programa habitacional Direito de Morar. Sem um plano

    habitacional mais amplo para a RMC, o governo do Estado decidiu investir um montante de

    R$ 20 milhes na regularizao fundiria do local, tornando-se este o carro-chefe dos

    trabalhos da Companhia.

    A apresentao do projeto de regularizao da Vila Zumbi dos Palmares como carro-

    chefe da Cohapar, a sua veiculao na mdia, o grau de integrao interinstitucional (Sanepar,

    Sedu, Suderhsa, IAP6, Prefeitura Municipal de Colombo) e a mobilizao tcnica (arquitetos,

    assistentes sociais, advogados) induzem a pensar que a companhia tem como objetivo alar

    esse projeto-piloto ao status de uma best-practice, projetando imagem positiva do governo

    e do lugar (nesta matria que Curitiba era considerada negligente).

    Acima de tudo, observa-se que, com a regularizao, os rgos pblicos retomaro o

    controle de um territrio onde no era permitido o acesso ou a interveno governamental.

    Trata-se do estabelecimento da ordem num espao de desordem e desregulamentao.

    Historicamente, as relaes entre Estado e Vila Zumbi dos Palmares sempre foram bastante

    tensas, frente ao descaso do poder pblico s carncias dos moradores. Aps 14 anos de

    ocupao irregular, as fortes intervenes locais estabelecem novas relaes podendo ser

    caracterizadas por doses de clientelismo7. A forma como o projeto de regularizao

    enunciado nos meios de comunicao, faz entender que o Estado pode estar utilizando o

    projeto para promoo poltica, o que impede a aceitao da interveno como uma conquista

    dos moradores. A constante publicizao do nome do presidente da Cohapar e do governador

    do Estado reafirma o interesse na conduo poltica do projeto, gerando a despolitizao dos

    moradores. O grande destaque desses nomes, em termos de imagem poltica das

  • 14

    transformaes, esconde as articulaes de determinados grupos econmicos que disputam

    parcelas do poder e da riqueza da cidade. Esta a repetio de uma estratgia que, em

    Curitiba, vincula o planejamento urbano a um projeto poltico bem sucedido (OLIVEIRA,

    2000).

    O clientelismo marca, de maneira bastante expressiva, as relaes interpessoais como

    caminho de acesso ao poder. Percebe-se que na Regio Metropolitana de Curitiba no

    diferente. Famlias tradicionais alternam-se no poder, com campanhas polticas financiadas

    por grandes empresrios locais, que envolvem compromissos amplos (benefcios urbansticos,

    flexibilidade na legislao, rapidez e agilidade em processos, etc.) para todo o mandato.

    A regularizao de Zumbi dos Palmares interfere, por meio do Estado, na construo

    poltica do territrio, na medida em que favorece a formao de grupos sociais homogneos e

    a sua concentrao no espao urbano. possvel aproximar essa distncia entre as polticas

    anunciadas e as polticas efetivamente realizadas, por meio de uma observao mais detida

    dos interesses envolvidos, dos atores e seus papis, das alianas polticas e das

    territorialidades em construo.

    Dada a complexidade do projeto de regularizao, que exige para a sua concretizao

    uma srie de aes conectadas que garantam a viabilidade socioeconmica-espacial, observa-

    se que, na prtica, a preocupao central com a regularizao urbanstica. Essa orientao

    transparece na concepo do projeto e nos recursos humanos, organizacionais e financeiros

    investidos. Por outro lado, observa-se que o cuidado para com as questes territoriais muito

    superior ao dedicado s prticas organizacionais e sociais de sustentao do projeto. Os

    projetos previstos de desenvolvimento comunitrio esto sendo implantados de forma

    insuficiente, o que denota um ntido interesse no planejamento fsico-territorial, que

    importantssimo, mas no suficiente. duvidosa a existncia de uma efetiva vontade de

    consolidar Zumbi como uma vila, ou de promover processos participativos mais amplos que

    garantam a experincia da cidadania em vrios sentidos. Ganhar visibilidade poltica,

    consolidar uma best practice, higienizar o local, promover o embelezamento, instituir uma

    ordem, seguir os ditames internacionais do alvio pobreza, tudo, enfim, parece favorecer

    uma estratgia promocional da interveno urbana.

    Por outro lado, importante analisar tambm a relao entre Estado e Alphaville que

    emerge por meio da participao, cada vez mais forte, dos agentes privados8 na definio de

    prioridades do planejamento urbano. As formas de parceria entre o poder pblico e grandes

    corporaes tm permitido suntuosas operaes no espao urbano. Nesses casos, o poder

    pblico fornece o que poderamos denominar de antecipaes (informaes excepcionais,

  • 15

    mudana na legislao, obras de infra-estrutura urbana etc.) que favorecem e multiplicam os

    benefcios incorporados por determinados agentes sociais. A implantao de Alphaville, as

    melhorias virias, a mudana da legislao da rea da Unidade Territorial de Planejamento

    (UTP) e o progressivo investimento pblico impulsionaram a produo imobiliria na regio.

    Novos condomnios residenciais esto sendo implantados, dinamizando o comrcio e os

    servios. Podemos citar, ainda, o monoplio no transporte pblico, as concesses de estradas

    e as facilidades na instalao de indstrias como processos que hoje apiam a consolidao da

    metrpole corporativa. Estas operaes tm acontecido em toda a metrpole, mas chama-se a

    ateno para a poro leste da periferia metropolitana, prevista nos planos regionais como

    rea de preservao ambiental.

    Como Ribeiro e Dias (2001, p. 3), acredita-se que [...] o local tambm pode (e tem

    sido) reconhecido como contexto privilegiado da ao econmica hegemnica, na medida em

    que esta ao busca, atravs do acesso a informaes privilegiadas e de garantias totais ao

    investimento, o seu nicho de lucratividade excepcional. A regularizao trar benefcios ao

    empreendimento privado de Alphaville, visto que garantir o valor econmico e simblico do

    condomnio por meio da urbanizao e do controle do seu entorno imediato, tido at ento

    como entrave completa exeqibilidade do empreendimento.

    O impulso valorizao imobiliria exagerada pode orientar processos especulativos

    e, conseqentemente, a urbanizao extensiva. A populao tende a ocupar a cada momento

    de valorizao uma periferia mais distante. Reproduz-se, dessa forma, o crculo vicioso da

    irregularidade e da pobreza com novas formas de reconfigurao da periferia metropolitana.

    Questiona-se at que ponto um projeto, como o de regularizao de Zumbi dos Palmares,

    garantir efetivamente a sustentao das famlias no local ou mecanismos de expulso branca

    podem ser ativados pelas transformaes territoriais iniciadas a partir da implantao do

    empreendimento Alphaville.

    As taxas de valorizao imobiliria tambm so um indicativo de mudanas

    significativas na forma e no contedo da configurao da periferia, que podem se multiplicar

    no futuro prximo. Os novos empreendimentos, os deslocamentos migratrios, os servios

    associados nova composio de classe da periferia levam a um movimento de reestruturao

    da metrpole que indica a tendncia urbanizao extensiva. Observa-se que uma

    significativa poro da periferia metropolitana expande-se horizontalmente, em alguns eixos,

    ocupando espaos distantes dos centros urbanos e reproduzindo os conhecidos padres de

    precariedade. Essa ocupao acontece de forma dispersa, linear, principalmente ao longo dos

    principais eixos virios, revelia dos ditames do planejamento urbano.

  • 16

    Na grande Curitiba, observa-se o crescimento para alm do municpio-plo da

    metrpole. A ocupao peri-urbana e dispersa, ao longo das rodovias, constitui uma nova

    forma de ocupao, que corresponde a uma alternativa ao preo alcanado pelos lotes na zona

    urbanizada. Os conceitos e funes do campo e da cidade so alterados com a introduo de

    novas formas de morar e relaes que alteram significativamente o contedo desses espaos.

    Ao mesmo tempo, ocorre o aumento do nmero de ocupaes irregulares em reas

    ambientalmente frgeis e mudanas na configurao do centro urbano, com escassas unidades

    habitacionais e expanso do comrcio popular. A organizao social e espacial da nova

    periferia evidencia a contigidade e a sobreposio de modelos de expanso urbana que, no

    entanto, tm fronteiras simblicas, materiais e econmicas bem marcadas.

    5. Recuperando Alguns Elementos

    Recuperando alguns elementos da discusso, pode-se dizer que no h uma

    convivncia tranqila entre os territrios marcados pelas distintas formas de apropriao no

    tempo e no lugar. Os estudos de caso e a configurao das periferias metropolitanas revelam a

    constante tenso existente entre a cidade formal e a cidade real e, tambm, a distncia entre as

    imagens idealizadas da experincia urbana e o cotidiano da maioria da populao.

    Ento por que no h protestos, ocupaes, quebra-quebras, visto o patamar alcanado

    pela injustia e pela desigualdade na configurao dos territrios? Como possvel ocultar, ou

    secundarizar nos debates pblicos, uma realidade to visvel e palpvel? Como a desigualdade

    socioespacial pode ser ignorada por aqueles que insistem em no ver a cidade real? Trata-se

    verdadeiramente de uma espcie particular de cegueira ou de formas exacerbadas de

    individualismo? Ou melhor, ser que habitar uma cidade mundialmente elogiada, ainda que

    em situao pouco favorvel, alimenta processos (pouco estudados) de auto-valorizao? A

    resposta a estas perguntas no fcil, como se supe. Mas repet-las constitui uma obrigao

    do analista, sobretudo quando confrontado com as caractersticas da modernizao excludente

    que hoje atualiza a Regio Metropolitana de Curitiba.

    O no ver constitui uma das mais fortes conseqncias do amadurecimento da

    psicoesfera, conforme definida por Santos como a psicologizao da vida social, isto , reino

    das idias, crenas, lugar da produo de um sentido, (...) fornecendo regras racionalidade

    ou estimulando o imaginrio (2004, p.256). Os olhares so dirigidos e condicionados, assim

    como as vozes so caladas por diversos instrumentos de manipulao: estruturas mentais,

    formas sociais e espaciais, ideologias, enfim, por diversos fetiches e fbulas que encobrem o

    real sentido das coisas, da materialidade, das condies de vida. Esses instrumentos, apoiados

  • 17

    pelas novas tecnologias de informao e comunicao, impedem a compreenso dos

    movimentos que organizam a totalidade urbana, que dissimulada por aqueles que pretendem

    naturalizar ou tornar regra geral determinada representao de cidade. Nesse sentido,

    concorda-se, mais uma vez, com Maricato:

    Mas a representao da cidade uma ardilosa construo ideolgica que torna a condio de cidadania um privilgio e no um direito universal: parte da cidade toma o lugar do todo. A cidade da elite representa e encobre a cidade real. Essa representao, entretanto, no tem a funo apenas de encobrir privilgios, mas possui, principalmente, um papel econmico ligado gerao e captao de renda imobiliria (2002, p.165).

    Observam-se, pelas mudanas contemporneas na periferia, que encontram-se em

    disputa, ainda que de forma pouco ntida, novos conceitos e modos de vida. Para os

    organismos internacionais, como o Banco Mundial e as agncias multilaterais, como para os

    moradores de Alphaville, a cidade entendida como a City, associando as caractersticas de

    uma cidade produtiva, empreendedora e eficiente. Por essa tica, consolidam-se as idias da

    cidade como ator poltico, como cidade-empresa ou como cidade-ptria, amplamente

    defendida por Castells e Borja (1997). A cidade , assim, considerada um [...] atrativo para

    investidores, ligados aos diferentes mercados, com interesses localizados [...] a cidade

    vendida como produto para o mercado mundial (SNCHEZ, 2003, p.548).

    Novos agentes entram em cena na arena da governabilidade metropolitanos e assim,

    novos pactos so constantemente feitos e refeitos, mesmo que no contem com o devido

    amparo legal. Em outras palavras, a denominada governabilidade envolve acordos, no

    regulados por lei, que so decididos em esferas s quais o cidado comum no tem acesso.

    Destaca-se nessa direo, a hiptese de que esteja sendo configurada uma nova periferia em

    Curitiba, correspondente aos interesses hegemnicos e materializada por meio de novas

    formas urbanas. Essa hiptese emerge da simbiose entre a concentrao das intervenes

    pblicas em Zumbi dos Palmares, o projeto de regularizao fundiria e a forma globalizada

    do condomnio Alphaville.

    A dimenso assumida pelo projeto de regularizao de Zumbi, enquanto carro-chefe

    das aes da Cohapar recorda o histrico processo de espetacularizao das intervenes

    urbanas em Curitiba. Desta forma, a noo de cidade-espetculo, dessa espetacularizao das

    intervenes urbanas, remete aos elos entre as prticas contemporneas de modernizao

    urbanstica, os interesses polticos em cena e a relao dos governos com a mdia (RIBEIRO

    1992, apud SNCHEZ, 2003, p. 488). O porte do projeto, os recursos investidos, a

    articulao entre diferentes rgos pblicos, o esforo governamental levam a acreditar que o

  • 18

    projeto coaduna-se, de forma muito favorvel, com outros projetos ainda no plenamente

    revelados.

    O planejamento urbano de Curitiba, em busca da terra sem males, expulsou para o

    anel perifrico as suas adversidades. Dessa maneira, a dialtica ordem-desordem

    constantemente refeita de acordo com os projetos do governo de planto. As prticas de

    planejamento voltam-se, cada vez mais, para a metrpole revisitada, isto , a metrpole

    embebida nos ditames do planejamento estratgico e voltada para o atendimento dos

    interesses corporativos. Nessas circunstncias, o planejamento fragmenta-se em polticas

    focalizadas, sofre forte presso do empresariado organizado e no enfrenta a complexidade

    metropolitana.

    Frente fora desse iderio, necessrio resgatar o sentido da Polis, associado a

    valores como cidadania e participao. Com o apoio desses valores, a cidade entendida

    como o lugar do debate, como afirma Lefbvre (1978), desempenhando um papel ativo,

    sempre marcado por conflitos sociais. Desconhecer os conflitos em nome de um

    pseudoconsenso negar as lutas pelo direito cidade. Portanto, necessrio colocar na

    mesa os conflitos de interesse e os projetos que permitam a transformao da realidade

    social. Como enfatiza Ribeiro: importante valorizar racionalidades alternativas, conceber

    outros iderios e projetos que fortaleam a cidade enquanto obra coletiva (2004, p.14).

    Desta forma, o planejamento necessrio ser aquele que, reconhecendo a fora dos

    agentes envolvidos na definio dos usos da terra urbana, for capaz de fazer frente aos

    interesses dominantes e atender s necessidades da maioria. H a necessidade de uma nova

    postura do Estado que aumente o acesso aos bens e servios de consumo coletivo (transporte,

    infra-estrutura urbana, saneamento), promovendo um uso mais justo e eqitativo da terra

    equipada. Para tanto, ser necessrio um Estado capaz de abrir canais de comunicao com as

    classes populares e de fortalecer a participao democrtica na gesto urbana.

    Na situao de fronteira, em que se encontram as periferias metropolitanas, o morador

    um forte. O homem lento da periferia, categoria proposta por Milton Santos, constri a cada

    dia alternativas que garantem a sua sobrevivncia. por essa razo que a experincia popular

    pode ser alimentadora de utopias relacionadas a uma experincia urbana realmente

    democrtica e solidria. Para fazer frente ao complexo emaranhado de relaes econmicas e

    polticas que encobre a cidade real, preciso, num primeiro momento, compreender o jogo

    da cidade9, os movimentos, processos e interesses que a estruturam, recriando formas de

    organizao coletiva que virem o jogo de negativo para positivo. No projeto de construo

    de cidades mais justas, deveria constar o ensino do jogo da cidade nas escolas, nas favelas,

  • 19

    nas periferias, desmistificando os sonhos impostos, os modos elitistas de vida e permitindo,

    assim, o conhecimento dos conflitos inerentes experincia urbana e que, a todo momento,

    refazem a cidade.

    6. REFERNCIAS

    ALMEIDA, E. O processo de periferizao e uso do territrio brasileiro no atual perodo histrico. In: SOUZA, M. A. et al., Territrio brasileiro: usos e abusos. Campinas, Edies Territorial, 2003. p. 213-239.

    BARBOSA, Jorge L. O ordenamento territorial urbano na era globalizada. In: GEOGRAFIA, Programa de Ps-Graduao em (Org.) .Territrio Territrios. Niteri, 2002. p. 89-105.

    BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local e global.- Madri: Taurus, 1997.

    BOURDIEU, Pierre.Efeitos do Lugar. In: ______. (Org.). A misria do mundo. Petrpolis, RJ: Vozes, 1997.

    LAGO, Luciana Corra. Os Instrumentos da Reforma Urbana e o ideal da cidadania: as contradies em curso. In: XI ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais...Perspectivas para o territrio e a cidade. Salvador, 2005. CD ROM.

    MARICATO, Ermnia; ARANTES, Otlia; VAINER, Carlos. A cidade do pensamento nico: desmanchando consensos. 3a edio, Petrpolis: Vozes, 2002. 192 p. (Coleo Zero Esquerda).

    MARTINS, Jos de Souza. Fronteira: a degradao do outro nos confins do humano. So Paulo: Hucitec, 1997.

    OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o mito da cidade modelo. Curitiba: Editora da UFPR, 2000, 201p.

    RIBEIRO, Ana Clara Torres. Los Circuitos perversos: nuevos pobres y excludos en Amrica Latina. Revista Rostros y procesos. Marzo 2004, p.13-14.

    ______Territrio usado e humanismo concreto: o mercado socialmente necessrio. In: ______.(Org.). Formas em Crise: Utopias Necessrias. RJ: Arquimedes Edies, 2005.

    RIBEIRO, A. C. T; DIAS, L C. Escalas de Poder e Novas Formas de Gesto Urbana e Regional. In: IX ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR. Anais...tica, planejamento e construo democrtica do espao. Rio de Janeiro: 2001.

    SNCHEZ, Fernanda. A reinveno das cidades para um mercado mundial. Chapec: Argos, 2003.

    SANTOS, Milton. A metrpole: modernizao, involuo e segmentao. In: VALLADARES, L. PRETECEILLE E. Reestruturao urbana, tendncias e desafios. So Paulo. Ed. Nobel, p. 183-190, 1990.

  • 20

    ______. A natureza do espao. Tcnica e tempo. Razo e emoao. 4 ed. Reimpresso. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 2004.

    1 Este artigo decorrente da dissertao de Mestrado em Planejamento Urbano e Regional IPPUR/UFRJ,

    orientado pela prof. Ana Clara Torres Ribeiro e defendida em Maro de 2006. Contou com a colaborao e

    leitura atenta da Profa. Dra. Maria de Ftima Ribeiro de Gusmo Furtado a quem dedico especial agradecimento.

    Para ter acesso o texto completo: http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/nomedaautora.pdf.2 Neste artigo so apresentados alguns dados indicativos das desigualdades entre Zumbi dos Palmares e

    Alphaville Graciosa. Maiores informaes podem ser consultadas no documento completo da dissertao. 3 A palavra gueto utilizada em sentido figurado como sinnimo de enclave.4 O projeto Olha Aqui! teve como objetivo, promover o intercmbio entre duas comunidades, uma urbana

    (Vila Zumbi dos Palmares) e uma rural (assentamento Contestado), de modo a despertar nas crianas e nos

    adolescentes que nelas residem a capacidade de reflexo crtica sobre a realidade que as cerca. O projeto foi

    financiado pelo programa Transformando com Arte do BNDES. O projeto contemplou 100 jovens na faixa etria

    de 10 a 17 anos. Fonte: site institucional. www.coopere.net/olhaaqui. Acessado em janeiro de 2006.5 Graciosa o nome da estrada onde se localiza Alphaville. Foi remodelada com recursos do empreendimento.

    Desta forma Graciosa e Alphaville esto intimamente imbricados. 6 Companhia de Saneamento do Paran, Secretaria de Desenvolvimento Urbano, Superintendncia de

    Desenvolvimento de Recursos Hdricos e Saneamento Ambiental, Instituto Ambiental do Paran.7 Segundo Nunes, o clientelismo um sistema caracterizado por situaes paradoxais, porque envolve: (...)

    primeiro, uma combinao peculiar de desigualdade e assimetria de poder com uma aparente solidariedade

    mtua, em termos de identidade pessoal e sentimentos e obrigaes interpessoais; segundo, uma combinao de

    explorao e coero, potencial com relaes voluntrias e obrigaes mtuas imperiosas; terceiro, uma

    combinao de nfase nestas obrigaes e solidariedade com aspecto ligeiramente ilegal ou semilegal destas

    relaes (...) O ponto crtico das relaes patron-cliente , de fato, a organizao ou regulao da troca ou fluxo

    de recursos entre atores sociais. (S.N. Eisenstadt e L. Roninger).8 Para maiores informaes sobre o caso de Curitiba, consultar: (i) Oliveira, Dennison de. Curitiba e o Mito da

    Cidade Modelo; (ii) Snchez, Fernanda. A Reinveno das Cidades para o Mercado Mundial. 9 Expresso utilizada por SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Velhas novidades nos modos de urbanizao brasileiros. In: Valladares, Lcia (org.). Habitao em questo. Rio de Janeiro: Zahar, 1980.