CONCEITUAL - ABD | Associação Brasileira de Designers de … · A cozinha, avisou Andrea Bisker,...

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#07 AGOSTO/SETEMBRO 2013 CONCEITUAL re-pensar >

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CAPA Pensando Fora da Caixa, tema do Conad 2013, inspira esta sétima edição da ABD Conceitual. Arte da capa: André Poli

*

Publishers André Poli e Roberta Queiroz

Consultoria Editorial Eduardo Logullo | Marcos Guinoza

Conselho Editorial Renata Amaral, Carolina Szabó, Jéthero Cardoso,

Roberto Negrete e Alex Lipszyc

Diretora Executiva ABD Maria Cecília Giacaglia

Redação e Reportagem Marcella Aquila

Colaboradores Edson D’Aguano, Jéthero Cardoso, Mônica Barbosa, Ronald Kapaz

Diretor de Arte Marcos Guinoza

Editor de Fotografia Renato Elkis

Jornalista Responsável Marcos Guinoza MTB 31683

Revisão Luciana Sanches

Publicidade

Diretor Comercial Marcelo Damado

[email protected]

VELVET EDITORA LTDA 11 3082 4275

www.velveteditora.com.br

ABD Associação Brasileira de Designers de Interiores

www.abd.org.br

TRIÊNIO 2013/2015

Presidência: Renata Duarte Amaral

Vice-presidência: Marcia Regina de Souza Kalil, Ricardo Caminada,

Bianka Mugnatto, Jéthero Cardoso Miranda e Renata Duarte

Conselho Deliberativo - Membros Efetivos: Carolina Szabó (SP), Carlos Alexandre

Dumont (MG), Paula Neder de Lima (RJ), Francesca Alzati (SP),

Silvana Carminati (SP), Mauricio Peres Queiroz dos Santos (SP), Luiz Saldanha

Marinho Filho (RJ), Alexander Jonathan Lipszyc (SP), Renata Maria Florenzano (SP),

Jaqueline Miranda Frauches (MG), Rosangela Larcipretti (SP), Jocelen Aparecida

Bergamo (SP), Flavia Nogueira da Gama Chueire (RJ), Lucy Amicón (SP) e

Elisa Gontijo (SP). Conselho Deliberativo - Suplentes: Nicolau da Silva

Nasser (SP) e Paula Almeida (SP). Conselho Fiscal - Membros Efetivos:

Fabianne Nodari Brandalise (PR), Catia Maria Bacellar (BA), Maria Fernanda Pitti (SP),

Delma Morais Macedo (BA) e Maria Luiza Junqueira da Cunha (SP).

Conselho Fiscal - Suplente: Daniela Marim (SP). Consultor: William Bennett

AGOSTO/SETEMBRO 2013

CONCEITUAL#07

Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade

dos autores e não refletem a opinião da revista.Selo

6 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

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Do

UG

LAS

GAR

CIA

TransgredirAmigos,A oitava edição do Conad (Congresso Nacional de

Design de Interiores) foi um tremendo sucesso! O evento aconteceu entre os dias 3 e 5 de julho, e o tema escolhido para nortear palestras e debates foi uma expressão que, nos últimos anos, tornou-se bastante comum – principal-mente no mundo dos negócios: Pensando Fora da Caixa.

Falam que essa expressão surgiu nos Estados Uni-dos – think outside the box – lá na década de 1970. Mas ninguém sabe ao certo quem a criou. O que importa, no entanto, é seu significado.

“Pensar fora da caixa” é incitar o pensamento cria-tivo, fugir do óbvio e da mesmice, ir além dos padrões es-tabelecidos. Em uma palavra: transgredir.

A tal “caixa”, nesse sentido, simboliza a rigidez, a restrição, o pensamento “quadrado” e sem imaginação que não combinam em nada com profissionais que tra-balham com a criatividade – como, por exemplo, nós, os designers de interiores.

E foi baseado no tema do Conad que pensamos

Obra da série Matuto ao Cubo, de Rodrigo Bueno

* EDITORIAL

esta ABD Conceitual. Nesta sétima edição, falamos sobre

a simbologia das cores e os tons que colorem o Brasil e o

mundo em 2013. Entrevistamos o designer e arquiteto ita-

liano Simone Micheli e o consultor americano Ken Nisch

– ambos palestrantes no congresso.

A cozinha, avisou Andrea Bisker, do WGSN, no

Conad, é hoje a “protagonista da casa”, e a sala de jantar

deve desaparecer. A importância da cozinha na convivência

entre as pessoas está na matéria que fala sobre esse

ambiente que retoma seu espaço de rainha do lar.

Em outra reportagem, conversamos com José Ro-

berto Muratori sobre automação residencial e a casa do

futuro. E, para finalizar, explicamos por que os ambientes

de trabalho se transformam cada vez mais em espaços

abertos e fluidos, sem estações individuais.

Para ler, é só abrir a “caixa” e virar a página.

Renata Amaral, presidente da ABDfoto

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8 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

* SUMÁRIO

10 A CASA. O ACASOA morada molda o comportamento? A morada muda o ocasional? Traduz o pensamento?

16COR-RESPONDÊNCIAA sua cor preferida e os tons que colorem o mundo: verde-esmeralda e verde-limão

40 TUDO JUNTO & MISTURADOA transformação dos ambientes de trabalho em espaços de estímulo e convivência coletiva

22 MÚLTIPLOEm entrevista, o designer e arquiteto italiano Simone Micheli fala sobre vida, arte e obra

26 HOTSPOTComer, prazer, viver: a cozinha retoma seu espaço de rainha do lar

48 DESENHANDO ESTRATÉGIASO consultor americano Ken Nisch explica a relação do design com o varejo

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14 E AÍ, BELEZA?O que é legítimo é o que representa essencialmente o belo

20 MUDAR É POSSÍVELO timing da mesmice já era. Chegou a vez da mudança. Por Edson D’Aguano

32 DO ARQUITETO AO CONSTRUTOR DE IMAGENSA personalidade da marca e sua expressão pelo desenho do espaço. Por Ronald Kapaz

34 CASA ONLINEJosé Roberto Muratori fala sobre automação residencial e a casa do futuro

38 SER FEIO ESTÁ POR FORAConsiderações sobre o novo conceito de beleza. Por Mônica Barbosa

46 O EFÊMERO E O ETERNOAs diferenças entre design de interiores e arquitetura. Por Jéthero Cardoso

54 CADEIRA VIVAPeças de mobiliário se transformam em vasos na arte engajada de Rodrigo Bueno

ACESSOS AOS SIGNIFICADOS DO MORAR

A CASA | O ACASOPoR EDUARDO LOGULLOACESSOS AOS

SIGNIFICADOS DO MORAR

A MORADA MOLDA O COMPORTAMENTO?

A MORADA MUDA O OCASIONAL?

A CASA TRADUz O PENSAMENTO?

A CASA UNE O ACASO E A NECESSIDADE?

A TOCA DIz DO ENTOCADO?

COMO SE TOCAR DE QUE SE PRECISA PENSAR FORA DA TOCA, FORA

DA TOChA, FORA DA PORTA?

ABRA A PORTA E A JANELA. E VEM VER O SOL NASCER.

* INSIDE

ARtE ANDRÉ POLI

O quarto é o início da expansão da ideia de se guardar.

Foi: o abrigo deu start ao interior.

Será: do interior veio o externo.

Sim. Sim. Sim. Cada vez mais se torna claro que a mo-

rada participa papéis cruciais para expressar/moldar uma socie-

dade, de modo global ou local. Sim. Sim. Sim.

O comportamento humano em relação ao espaço in-

terior será sempre o principal ponto de partida para qualquer

conceito de ambientes internos, conforto, sonho, proteção,

abrigo, inovação.

O termo “inovação”, por exemplo, em alguns momentos

pode ser uma palavra vazia. Mas sabemos que ela estala/resvala

na noção de originalidade, visão, desejo e conquista – as épocas

costumam trazer suas inovações (ou suas destruições traves-

tidas de inovação, como acontece nos países em que sistema

financeiro e mercado regem os fluxos sociais. Precisamos dar

nomes aos bois? No. No. No.).

Imagem e espaço. Uma construção terá sempre essa

dualidade. Imagem e espaço. E para ter sentido, a imagem tem

que ser gerada por meio do uso do espaço, através daquilo que

nós, um bando de corpos pensantes, nos movemos por dentro,

através, em volta e por dentro.

Dentro do dentro é que o discurso pessoal/impessoal

se revela – ou se torna – definitivo, brilhante, dissonante, bobo,

ralo, grandioso, marcante, cristalino, límpido, pesado, errôneo,

simplista, exagerado, equivocado, abandonado, tosco, torto,

troncho, descampado, destampado, camp.

A barafunda dessa barra pode ser funda. Como o local

que habitamos afeta o nosso comportamento? O afeto se en-

cerra no acaso da casa?

A morada, o abrigo, o epicentro de seu/meu mundo

deve levar a novas plataformas de pensar, para descobrir aspec-

tos novos de nós próprios. O próprio, no sentido de revelação

pessoal, traz a propriedade. E o que faz as pessoas escolherem

novas plataformas de vida, de morada, de habitação?

Seres humanos se comunicam o tempo todo com tudo

aquilo que está próximo de tudo e de todos que buscam tudo

aquilo o tempo todo. Constantemente deciframos, avaliamos

e fazemos escolhas baseadas na comunicação e no feedback

advindo de pessoas e acontecimentos e saberes e lugares e

olhares e gostares e falares e citares e andares e passares.

Escolher processos de vida pela vida afora são como as

decisões que fazemos na internet: interferir, aceitar, envolver-se,

rejeitar, salvar, disponibilizar, surpreender-se, atirar longe, evitar,

bloquear, imaginar, alegrar-se, desligar-se.

Cada morada/casa/toca fala/toca/ouve de modo

simultâneo. Talvez por isso os projetos comecem em

situações concretas: ali desponta algo. O que virá

depois cabe a nós moldar. Ou, como dizia

Lygia Clark, “somos o molde; a você cabe

o sopro”.

Cabe a cada um varrer o

inútil, varrer o melancólico, var-

rer o supérfluo, varrer o fake, varrer

o passadismo, varrer as referências do

erro. Re-mover. Sim. Sim. Caber onde que-

remos caber. Caber onde desejamos caber. In-

ventar cabimentos. Sair. Pular fora. Mirar onde poucos

miram. Mirar na miragem.

O tom de morar. O bem-bom de morar. O zoom

de morar. O morar ali, morar aqui, morar lá. Morar: sinalizar

conhecimentos. Morar: (re)produzir conhecimentos. Morar:

(re)processar-se. Morar: não se processar demais. Morar:

transparecer. Morar: quase para desaparecer. Morar: receber-

se. Morar: distribuir divisões. Morar: descobrir ideais de estética.

Morar: introduzir estéticas inesperadas. Morar: assimilar

contribuições. Morar: associar conhecimentos. Morar: (des)

concentrar ideias. Morar: lembrar que uma boa ideia nem

sempre leva a outra boa ideia. Mora na filosofia: pra que rimar

amor e dor? Morar é rimar gostar com estar. Morar. Sair. Morar.

Sair. Morar. Sair. Depois ficar. Bem.

habitar. Viver. Morar. Entrar. Desentranhar. habitar por-

que se vive e porque não se quer morrer. habitar porque se

sabe que um dia se morre e porque o abrigo nos protege da

morte. O hábito habita o abrigo. O abrigo mora no hábito. habi-

to, logo vivo. Penso, logo habito. Vivo, logo me abrigo.

habite-se. habite-me. Sem habituar-se. Sem maus

hábitos. Com bons jogos da fantasia. Com olhos de outsider.

Sem os dramas modernos da alienação, mas com os insights

sobre a natureza da liberdade. Liberdade que seja a intensi-

dade de querer e que surge em qualquer circunstância que

tentem nos limitar e nos estimular a querer (viver) mais. O ca-

racol sabe a concha que tem. A concha leva o caracol aonde

o caracol quer chegar.

DURANTE OS TRêS DIAS do Conad 2013, mais de 700 profissionais do design de interiores se deixaram contaminar pela atmosfera efervescente de ideias e discussões em torno do tema Pensando Fora da Caixa. Acredito que a palavra que melhor sintetiza esse tema é legitimidade. Afinal, “sair da caixa” não é brincadeira. É preciso, antes de tudo, muita coragem, e, depois, uma boa dose de embasamento e bagagem repertorial para se aventurar na abertura de novos horizontes. Certamente, a meta da ABD, ao trazer para o debate um tema tão ousado, não seria “brincar de ser diferente”.

A escolha teve como guia a busca por uma nova ma-neira de pensar o design de interiores. Em tempos de mudan-ças permanentes, os ambientes devem acompanhar com a mesma rapidez as transformações no modo de vida, sem que, em nome da estética, percam-se a funcionalidade e o conforto. Ao mesmo tempo, uma nova estética – do conforto e da fun-cionalidade – pode e deve ser criada. E foram exatamente essas questões que vi sendo geradas e debatidas durante o con-gresso: medidas do viver + menores e novos m² + espaços do desconhecido + o método criativo de Simone Micheli + revolu-ções no design de interiores corporativo com Ken Nisch + brain

branding de Edson D’Aguano + pesquisas de cores da Suvinil + etc........................................................... + uma grande preocupação com a beleza: o grande objetivo do desejo contemporâneo.

Na medida em que o design se alastra – tendo como meta conquistar as ruas, empresas e marcas – estabelece pa-râmetros para que se possa desejar sempre o mais belo. Em um tempo de mais independência e maiores individualidades, quando as expressões interiores passam a ser mais respeitadas e valorizadas e o termo “customizado” passa a ser quase obriga-tório, seria possível fixar um consenso para a beleza? Essa foi a pergunta que mais ecoou na minha mente durante o Conad. E as respostas que ouvi de pessoas experientes no assunto, apesar de coerentes, pareceram-me ainda como uma ressonância vinda de dentro da caixa: “A beleza está nos olhos de quem vê”. Será?

Para apreender a beleza é preciso ter repertório. Acre-dito que o conhecimento pode contribuir para um refinamen-to no olhar. Não se trata de diploma, necessariamente, mas de curiosidade, de vontade de conhecer. Penso que, nessa direção, o próprio Conad foi o maior exemplo de busca pela beleza. E aproveito o mote, levantado e investigado durante o evento, para chamar a atenção para a questão da legitimidade da be-

E AÍ, BELEZA?

14 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

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PoR ANDRÉ POLI

E AÍ, BELEZA? Aquilo que é verdadeiro, íntegro e,

portanto, legítimo, é o que representa essencialmente o belo

leza. Sob o meu ponto de vista, aquilo que é verdadeiro, íntegro e, portanto, legítimo, é o que representa essencialmente o belo. A mulher elegante, cuidadosa nas suas escolhas, que cultiva a sua existência interior tanto quanto a exterior, é bela ou se torna bela. Aquelas entretidas apenas com as formas aparentes e que desconsideram o cultivo de sua essência são fakes e vazias.

Por mais estranhamento que cause a cultura do funk e da laje, é possível enxergar beleza quando o modo de vestir, dançar, falar compõe um todo, um modo de ser, legítimo, de uma parcela da sociedade que transparece, em seus atos, sua experiência de vida, a herança da sua educação, de suas des-graças e glórias. Essas experiências lapidam sua existência. Mas, quando isso vem embrulhado para presente com modismos vazios, perde-se o brilho e a legitimidade se esvai. Quando digo “modismo”, quero dizer “copismo” e todos os “ismos”, ou mesmo as ataduras de “bom gosto”.

A beleza está na legitimidade de cada um – e assumir essa máxima foi a grande contribuição trazida pelo Conad. Quando as disputas se acirram e as batalhas são travadas por uma maior coerência na política, nunca uma palavra teve tanta força, em todos os campos, quanto legitimidade.

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A sua cor preferida e os tons que colorem o mundo PoR MARCOS GUINOZA

COR-RES-PONDÊNCIA

Tempotest Floral, 100% acrílico, na Donatelli Tecidos. Ao lado, cabide de parede

Arrow e regador Alessi Diva, na Benedixt

A sua cor preferida e os tons que colorem o mundo

COR-RES-PONDÊNCIA

COR É LUz. Ou comprimentos de onda que o olho humano as-simila e o cérebro interpreta e transforma em cor et cetera e tal. Mas cor não é apenas luz. Cor também é informação, código, lin-guagem, meio de expressar uma ideia.

Quer um exemplo? Vamos lá:Para representar o passado, geralmente, usamos tons

pastel amarelados e sujos, como palha, ocre e sépia, remetendo ao papel ou tecido envelhecido. Já o futuro surge em cores limpas e frias: branco (em razão da luz intensa), prata (dos objetos tecno-lógicos), verde (da informática) e azul (do infinito).

Basta observar por aí: o passado é pesado como pirâmi-de; o futuro, leve como fibra de carbono.

É preciso também se ligar no aspecto cultural das cores. No Ocidente, de modo geral, a cor rosa simboliza o feminino; na Coreia, significa confiança; na África do Sul, está relacionada com a pobreza. E se, para os alemães, amarelo é inveja, para egípcios e etíopes, amarelo é luto.

Ainda tem a questão biofísica das cores, de como so-mos afetados inconscientemente por elas. Dizem – e a ciência comprova – que cada cor provoca uma sensação diferente nas pessoas. Vermelho estimula, verde relaxa, azul acolhe e assim por diante. Até a cor preferida de cada um muda com o passar dos anos, podendo representar o que mais existe na pessoa ou o que mais lhe falta.

Cor, como se vê, é bem mais do que simples questão de gosto. Por trás de uma escolha, há razões – conscientes ou não.

MUNDO-ALDEIA

hoje, no entanto, ninguém precisa escolher cor nenhu-ma. Pode, se assim desejar, apenas seguir as tendências aponta-das pelo mercado para ficar atualizado. No mundo-aldeia, tudo influencia tudo e, de repente, tudo vira quase uma coisa só.

Em relação à cor, a Pantone elegeu o verde-esmeralda, código 17-5641, como a cor de 2013, e é só fazer uma rápida pesquisa no Google para comprovar que o verde-esmeralda, de fato, coloriu o planeta. A questão é: foi a Pantone que influenciou as decisões do mercado por essa cor ou o mundo já se “esverde-ava” e a empresa apenas captou essa tendência?

As duas coisas.Para chegar à definição da Cor do Ano, a Pantone

explica que “varre o mundo à procura de influências”. Esse trabalho inclui pesquisas em diferentes áreas: indústria do entretenimento, filmes que ainda estão em produção, coleções de arte que estão viajando o planeta, obras de novos artistas influentes, melhores destinos de viagens, novas texturas e efeitos que terão impacto sobre a cor, tecnologias e até grandes eventos esportivos.

Finalizada essa “varredura”, a Pantone desvenda e anuncia a Cor do Ano e, ao divulgá-la para o mundo, acaba po-tencializando seu uso.

Claro, isso só acontece porque a Pantone não é uma marca qualquer, mas uma autoridade no assunto. Aliás, este ano a empresa comemora 50 anos de invenções cromáticas.

A história da Pantone teve início em 1962, quando Lawrence herbert assumiu o controle de uma pequena empresa em que trabalhava. Localizada na cidade de Manoochie, no estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos, a companhia fabricava cartões de cores para a indústria de cosméticos.

A grande virada ocorreu um ano depois, em setembro de 1963, quando herbert desenvolveu o primeiro Pantone Ma-tching System – o hoje famoso Guia Pantone, um catálogo de cores que permite visualizar e reproduzir com exatidão as tona-lidades que serão aplicadas em produtos de vários segmentos: moda, design, arquitetura, design de interiores, embalagens.

Outra boa sacada de herbert foi utilizar um sistema numérico para identificar as cores Pantone, uniformizando seu uso. Afinal, números são números aqui, no Sri Lanka, em qual-quer lugar.

Referência mundial, as cores Pantone são citadas até na legislação de alguns países. O parlamento da Escócia, por exemplo, estabeleceu que sua bandeira deve ser confeccionada com Pantone 300. Canadá e Coreia do Sul também indicam as cores da empresa para uso em seus símbolos nacionais.

TENDÊNCIAS CROMÁTICAS

Desde 2000, o Pantone Color Institute elege a Cor do Ano. Na primeira edição, a tonalidade escolhida foi o Pantone 15-4020, intitulada cerúleo – ou, como ensina o Houaiss, “cor azul como o mar ou o céu em dias claros”. No ano passado, sob o código 17-1463, surgiu o tangerine tango: “Um laranja com muita profundidade”. E, em 2013, o verde-esmeralda.

Explica Leatrice Eiseman, diretora executiva do Pantone Color Institute: “O verde é a cor mais abundante na natureza. O olho humano vê mais verde do que qualquer outra cor no espectro. Simbolicamente, o verde-esmeralda traz em si uma sensação de renovação, clareza e rejuvenescimento, que é tão importante no mundo complexo de hoje”.

Outra empresa, a Suvinil, também realiza um estudo mundial de tendências cromáticas e adapta suas descobertas para a realidade brasileira, especificamente para as áreas de arquitetura e design de interiores. Para 2013, a empresa criou

uma paleta com 31 cores divididas em três temas: Óptico, Eté-reo, Biológico – tendo o verde-limão como cor central.

Verde-limão é cor camaleônica. Adquire tonalidades diferentes ao longo do dia em virtude das variações de ilumina-ção provocadas pela luz do sol. É a cor-síntese da proposta da Suvinil: refletir sobre a transitoriedade. Na vida, tudo é transitó-rio, inclusive a decoração da casa, que muda à medida que seus moradores mudam.

Segundo Ana Kreutzer, designer de cores da Suvinil, o verde-limão já coloriu as passarelas da moda, mas, no design de interiores, seu uso é inédito. É a reinvenção da cor, que, de tempos em tempos, ganha novos significados e aplicações.

POR QUE NÃO?

Aderir ou não à cor da moda é decisão de cada um. Ser livre é poder ser, vestir, comer, ir, pensar, viver do jeito que se quer. Mas, excetuando-se o lado perverso de provocar mais desejos do que as pessoas necessitam, essas indicações de ten-dências, do que é ou será moda, servem também para chaco-alhar certezas, desafiar gostos e hábitos estabelecidos, propor novas possibilidades de mundo.

Por que não? Por que não verde-esmeralda ou verde-li-mão? Por que não pensar fora da caixa, em que nos sentimos seguros e confortáveis, e transgredir, experimentando novos sabores, texturas, caminhos, indagações, cores?

“Viver no escuro”, dentro da sua cor de costume, é moleza. Complicado é ir contra as próprias convicções e se reinventar. “No escuro, todas as cores concordam”, escreveu o filósofo e ensaísta inglês Francis Bacon.

# pantonebr.com.br / suvinil.com.br

18 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

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S DIvU

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ão

Por que não pensar fora da caixa, em que nos sentimos

seguros e confortáveis, e transgredir, experimentando novos

sabores, texturas, caminhos, indagações, cores ?

Papel de parede com elementos naturais, lavável, da coleção Silence, na Wallcovering. Ao lado, cubo de apoio lateral com acabamento em Laca Brilho, na Estar Móveis

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S DIvU

LGAç

ão

REzA A LENDA que o futuro irá atropelar, sem remorsos, as em-presas e os profissionais que resistirem em viver e atuar com base na mesmice do passado – ainda que, teimosa e erronea-mente, acobertados pelo presente traiçoeiro que é “até o talo”.

Paradoxalmente, num mundo cada vez mais não linear, apenas as ideias não lineares serão capazes de criar resultados de valor para esses profissionais (arquitetos, designers e decora-dores), desde que naveguem estrategicamente pensando “fora da caixa”, em novos mares ou no “oceano azul”. O livro Blue Oce-an sinaliza cases fantásticos dentro do contexto pró-mudanças. O Cirque du Soleil que o diga. “Pró-change” total.

Para prosperar, portanto, na “Era da Mudança”, já canta-da em prosa e verso também como a “Era do Design Criativo”, será necessário adotar uma agenda inédita de ações radicais, estratégicas e diferenciadas, recheadas de audácia e inovação, revolucionárias emocionalmente como tal, para atender os an-seios do consumidor cada vez mais exigente, carente e especu-lativo. Mais que um desafio fundamental com que hoje se depa-ram as empresas e os profissionais, penso que é, e será, uma sina (ad eternum) reinventar a si próprio e suas marcas (produtos e

insights), não apenas em tempos de turbulências (como as quais estamos vivendo internacionalmente), mas contínua e sistemati-camente, sabe-se lá até quando, em nosso país.

Imagino que, a rigor, e sob a ótica do mercado mundial no segmento da decoração de interiores, durante muitas déca-das não houve progresso na gestão do design criativo e menos ainda no lifestyle das pessoas, apenas ciclos comportamentais. Os anos se sucediam, o mix de produtos chegava e partia. O mercado pró-consumo estético e decorativo não melhorava, repetia-se sucessivamente num padrão rotineiro frustrante e infindável. Não havia uma previsibilidade de futuro, pois o futuro não se distinguia do passado, gerando um caos psicológico na gestão corporativa das empresas e/ou das marcas e produtos do nosso “mundinho home decor”. A vedete, claro, era o produ-to, o produto, o produto e o produto. Tudo sempre igual. Todos fazendo, fabricando e “decorando” tudo igual. Mesmice total e absoluta. “Porre à parte”, alguma coisa precisava acontecer para quebrar a gestalt do status quo, que já exibia um ar sepulcral de “sinal dos tempos”.

Fato é que, hoje, felizmente, a “Era da Mesmice” acabou.

muDAR É POSSÍvEL O timing da mesmice já era. Entram em campo a hora e a vez da mudança

PoR EDSON D’AGUANO

Edson D’Aguano é diretor-presidente da Consultive Branding, professor e consultor em Gestão de Marcas do Luxo. Apresentou a palestra Design, Criatividade e o Novo Luxo, no Conad

Sob a ótica do mercado mundial no segmento da decoração de interiores,

durante muitas décadas não houve progresso na gestão do design criativo e

menos ainda no lifestyle das pessoas“

há quem diga que ela nasceu nos anos 1970, chegou à exu-berante adolescência durante os 1980, alcançou a maturida-de nos 1990 e morreu de velhice precoce na alvorada do ano 2000. Ulalá!

Então, eis que emergiu nos anos 2000, especialmente no Brasil, uma fé inabalável, em que o design (inimigo mortal do óbvio) não só seria possível como também inevitável. A ex-pectativa e a crença na duração dos resultados positivos de valor aumentariam numa melhoria contínua de desempenho por meio do crescimento sustentado dos indicadores de alta performance. Os índices de propensão de ganho e consumo da população aumentariam. As classes B e C ganhariam des-taque social.

O lifestyle dessas pessoas ganharia uma nova dimen-são pró-qualidade de vida sob a ótica do conforto material e da estética visual. Nasce assim um novo nicho de mercado. Entra em campo o novo luxo, ou o luxo aspiracional, também conhecido mundialmente como um novo segmento de mer-cado, batizado de “masstígio” (produtos e serviços de prestígio

massificáveis para classe média/média alta, a preços altos, mas não proibitivos).

Mudar é possível. Mais do que isso. Na “Era Pós-Mesmice”, com direito a mudanças revolucionárias (by audácia e inovação), a informação custaria zero. O conhecimento se tornaria muito maior, e a sabedoria, maior ainda. Nada haveria que não pudesse ser melhorado, inovado, alterado, renovado e reinventado (a criatividade agradece), em especial no mercado homewear. O produto de hegemonia partidária e individualizada deixaria de reinar sozinho ditando regras e conceitos utilitários. Uma mudança mórbida aparece como por encanto. Entra em campo a fusão do lifestyle com o fashionstyle. Corpo e casa passam a ser almas gêmeas univitelinas. Beleza de um, estética do outro.

simone micheli

Arquiteto, designer de interiores, mobiliário, paisagista, designer gráfico, artista multimídia, imaginador de cidades. Quando o assunto é espaço, ele não se prende a rótulos nem se limita a campos específicos de atuação – arrisca sonhar e realizar os riscos que coloca no papel. Autor de trabalhos que, em alguns casos, podem parecer mais

instalações – como o Atomic Spa ou o restaurante Mi-Sha – e de outros que se encaixam mais no que se espera de um trabalho de “arquitetura”

– a sua própria casa, na Toscana, por exemplo – Micheli jamais abre mão de um dado incomum, que foge às expectativas e surpreende. Autointitulado “herói da arquitetura”, ele esteve em São Paulo para participar do último Conad e conversou com a ABD Conceitual sobre vida, arte, obra e perspectivas para o futuro, no presente.

múLTIPLO

22 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

PoR MARCELLA AQUILA

>>> pensando fora da caixa O meu trabalho se pauta pela criação de histórias e, nessa direção, pensar fora da caixa é, para mim, tentar realizar uma obra de arte – e é o que tento fazer toda vez que realizo um trabalho, seja de design, interior ou gráfico. Pensar fora da caixa para mim é criar uma nova história para o nosso tempo. Uma história que olhe para o passado e que, ao mesmo tempo, seja mais sustentável, mais ecocompetitiva, mais diferente não apenas no papel, mas também para o contexto em que se estabelece. hoje o projeto deve ser mais ético – menos e não mais – e, assim, acredito que pensar fora da caixa significa fazer uma revolução sobre o modo de se perceber e sentir o espaço. Significa retirar elementos, estabelecer novos, pensar a disposição desses elementos no espaço, mas não apenas em termos de múltiplas linguagens. Quer dizer, cada arquiteto tem a sua linguagem particular, algo a mais, algo a menos, mas a questão não é essa. Pensar fora da caixa significa criar uma nova história para um novo futuro.

simone micheli

B4 Hotel, em Milão

>>> motivações Mudar o presente. Realizar um espaço para pessoas, para uma nova vida para as pessoas. Você desenha, você trabalha, mas penso que na vida é importante transformar a situação que nos rodeia. Eu gosto muito de compor o espaço usando a luz. Minha arquite-tura é como escultura. Sou mais escultor e menos arquiteto. Essa foi a razão pela qual comecei a estudar arquitetura, pois, na minha opinião, o arquiteto é um artista. Para mim a arquitetura estabelece um link com o mundo da escultura e do design de luz.

>>> materiais O material de que mais gosto é o espelho, porque reflete tudo. O espelho reflete todas as cores. O espelho, para mim, é fantástico, e penso sempre nesse elemento quando quero criar uma emoção diferente para o espaço. Também gosto muito da forma curva, da forma contínua e das cores vibrantes e branca. Não sei por quê. Acho que nos nossos dias contemporâneos tão atribulados precisamos sorrir para criar novas histórias para um futuro novo. Prefiro os materiais naturais, mas para as formas curvas uso um pouco de material sintético.

24 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

Atomic Spa Suisse, centro de bem-estar no hotel Exedra Milano

>>> passado - presente Meus projetos estabelecem esse link do passado com o presente, mas esse link é evidenciado sempre pelo contraste. Nunca penso “no passado” quando trabalho com o passado. Quando trabalho com o ancestral, coloco no projeto elementos que nascem na minha cabeça, e esses elementos são frutos do nosso tempo. Nunca uso elementos que se parecem com o antigo. Para mim é importante o passado em relação com o superpresente. Por exemplo, em Lucca, na Toscana, tem um muro de proteção que cerca toda a cidade an-tiga. O muro é construído com tijolos vermelhos, e muitos dos habitantes que se estabeleceram em frente ao muro criaram um tipo de arquitetura com tijolos vermelhos. Acho que esse não é o melhor caminho. Eles construíram com o mesmo material, com a mesma cor, quando deveriam ter feito algo diferente e não similar para tentar se parecer com o antigo. há um arquiteto que construiu um edifício em Viena, na frente da catedral da cidade, com espelhos, e a catedral é refletida nesse novo edifício. Essa sim é a maneira mais

interessante de se construir um mix entre o passado e o presente. Os novos materiais, os materiais tecnológicos, têm essa capacidade de, por contraste,

conectar com o passado – a sensação do novo e a sensação do antigo por contraste. Quando penso sobre a cidade, eu a considero como um pedaço de papel em que podemos desenhar a cada dia uma cena e depois outra e compor com o espectador, passo a passo, uma porção de novas histórias – diferentes histórias e não histórias iguais. Projetei há dois anos um restaurante, o Mi-Sha, em um espaço secular e que tinha como proposta a convivência entre duas culturas – a chinesa e a italiana. Mas não fundi as duas. Organizei o espaço de uma maneira que se possa perceber tanto uma quanto a outra de modos distintos. Usei, por exemplo, projeções nas pare-des em que aparecem imagens de situações urbanas chinesas e, três minutos depois, italianas.

Você pode comer tanto um rolinho primavera quanto um prato típico italiano; tomar uma xícara de chá ou tomar uma taça de Brunello di Montalcino. Não misturados, fundidos, mas separados.

Você experimenta histórias diferentes em um mesmo espaço, percebe que duas experiências podem ser simultâneas sem que seja necessário serem fundidas. Penso que é fundamental colocar as diferenças rela-cionadas, mas não apagá-las, fundindo-as.

>>> conadPara mim foi uma ótima experiência, interes-sante porque são muitas pessoas refletindo sobre o presente e o futuro do design de interiores. E existe uma ampla rede para se discutir as possibilidades para o futuro. Na nossa época o importante é a rede, e o Co-nad é uma grande rede.

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Quando um arquiteto tenta realizar uma obra, muitas vezes os administradores impõem

barreiras difíceis de ultrapassar e o arquiteto ou designer precisa lutar pelo seu projeto“

>>> inspirações Para mim inspiração não é olhar as formas das obras-primas de arquitetos ou designers. É olhar para a história do passado, por exemplo. Gosto muito dos artistas do período de 1400, como Masaccio e Brunelleschi. É evidente que conheço o trabalho de meus colegas, conheço os trabalhos históricos de arquitetos e designers do mundo todo e acho que na minha arte há um pedacinho de cada um, mas não pretendo que o meu trabalho seja similar a essa ou aquela obra ou período. Gosto muito dos anos 1960 também. Você pode ver que nos meus trabalhos há uma relação com esse período, mas com diferenças, porque, quando crio um espaço, tento me livrar do estilo para criar uma história nova. A inspiração nasce quando olho para o céu, o mar, as nuvens ou quando falo com meus filhos, com minha mulher ou quando faço amor com minha mulher. São muitas situações diferentes e não algo que está ligado à moda do momento.

>>> futuro A tecnologia transforma a vida a cada dia. Penso que o futuro do design será o não design. Por exemplo, hoje nos preocupamos em desenhar diferentes formas para o telefone, os vidros, as cadeiras. No futuro viveremos em bolhas de tela, quer dizer, na minha imaginação, em vez de você pegar um telefone para falar com alguém, bastará estender a mão e levá-la aos ouvidos. Acho que no futuro não sentaremos em cadeiras, será outra história, porque penso que o importante não será o mundo material, mas o próprio aspecto corporal das pessoas que contará.

>>> herói da arquiteturaherói da arquitetura porque sou um gladiador. Quando falo com o prefeito da cidade, um político, o representante de uma comunidade, tenho que ser um gladiador porque preci-so defender os meus sonhos, quero lutar pelos meus sonhos. Quando um arquiteto tenta realizar uma obra, muitas vezes os administradores impõem barreiras difíceis de ultrapassar e o arquiteto ou designer precisa lutar pelo seu projeto. Quero realizar meus sonhos e, por isso, brigo por eles.

>>> quem gostaria de encontrarEscolheria Deus para uma xícara de café. Sou um grande fiel e, por esse motivo, escolheria Deus. Às vezes você pensa: “Por que essa terra? Por que estou aqui?”. Talvez um café com Deus pudesse responder.

# simonemicheli.com

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26 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

HOT

SPOTComer, prazer, viver: a cozinha retoma seu espaço de rainha do lar

PoR EDUARDO LOGULLOFotoS AMÉLIE LOMBARD

28 ABD CONCEITUAL AGO/SET 2013

DESDE QUE RABELAIS publicou, em 1546, aquele que é consi-derado seu escrito mais importante, O Terceiro Livro dos Fatos e Ditos Heróicos do Bom Pantagruel, comer e prazer se asso-ciaram de modo definitivo. Nesse trabalho de gênio, a sátira do autor francês escandalizou os conservadores da época renas-centista. Os padres queriam até levá-lo aos tribunais da Inquisi-ção, só porque Rabelais inventara o imenso Pantagruel – herói que simbolizava o espírito livre, “o viver, o comer, o beber”, em relatos que unem humanismos, fatos curiosos, comilanças e nenhum preconceito.

Os tempos pantagruélicos ficaram distantes. Comilanças e orgias gastronômicas saíram de vez das práticas sociais, para

ceder lugar a outros excessos: fast-food, mastigação ansiosa, ali-mentos industrializados e refeições aceleradas, quase dementes. Comer “bem” virou quase luxo, culto, ostentação, veneração.

Para pessoas ligadas em tendências e que conside-ram chefs de cozinha como sacerdotes do paladar (as mes-mas que se alimentam mal no dia a dia), o setor imobiliário lançou imóveis com um “espaço gourmet”. Ai, ai. Ali, brincam de se lambuzar com patês e a cheirar rolhas de vinhos (por se acharem connaisseurs). “Espaços gourmet” são (e serão) terri-tórios vazios, desprovidos de verdade, revestidos por modis-mos. Quase a parábola da busca do estilo perdido que jamais será encontrado.

COZINHA SACIEDADE ANôNIMA

Vamos falar de cozinhas, o tema da matéria. Cozi-nhas reais, cozinhas que são o epicentro da casa, cozinhas pensadas para reunir amigos e fugir da atmosfera living room. Cozinhas para se manter muitos pés na cozinha, para quem gosta de panelas, de clima de boteco doméstico, de pileques bem-vindos. Cozinhas para incentivar risadas, histórias quen-tes, túneis do tempo, para discutir projetos que mudarão o mundo, promover encontros, ouvir música, debater cheiros. Tudo isso mais barulhos de talheres, aromas, cores, “bateção” de louça, “abrição” de geladeira, fila de celulares recarregan-

do, luz inteligente e até a tela de um monitor. Triste é a casa em que a cozinha vive em ponto

morto. Triste é a casa em que a cozinha existe apenas para abrigar um micro-ondas, um fogão tampado e uma gela-deira desanimada.

Feliz é a casa em que a cozinha é o hotspot. Feliz é a casa em que a cozinha fala sozinha, atraindo quem chega de modo hipnótico. “Ah, vou ficar aqui mesmo”. “Ah, sempre acho a cozinha o melhor lugar da casa para se ficar”. Ao ou-vir frases assim, sabe-se que brotou o feitiço daquela área de onde emana fogo, água, gelo, comida, bebida. A cozinha forma uma espécie de saciedade anônima. Cozinha S.A.

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MANUAL DE USO

E cuidado: uma inocente reunião na cozinha pode va-rar a noite sem que ninguém perceba. E acabar em carnaval. Por manter os convivas aproximados e grupos misturados, por isolar formalidades e provocar intimidades, aquele que consul-tar o relógio será olhado de modo feio.

O.K., transforme o jantar em almoço. Mas quem garante que os convidados vão sair em pouco tempo? Entrou na cozi-nha? Adeus, insensato mundo.

Olá, amigos do mundo. Uma cozinha-líder proporciona tons festivos, mais um jeito cozzy e convidativo (recuse-se a chamar a cozinha de “aconchegante”. Aliás, recuse-se a usar

esse termo em qualquer possibilidade). A cozinha pode ser clean, mas nada clean demais. Ou ficará parecendo cozinha de flat. Trate-a bem, permita que ela, a Santa Cozinha do Lar, receba em sua dimensão o que for de melhor para seu bolso e sua vida doméstica. Produza focos de luz indireta, convoque plantas, canteiros de temperos, livros, parangolés, detalhes tão pequenos de nós dois, pau, pedra, aço, madeira, fórmica, azulejo ou absurdos inesperados.

Cozinha, doce cozinha. Ela é a rainha do lar. O último a chegar lá é mulher do padre. Cozinha já! Coloque uma cozinha em sua vida. Cozinha: ame-a ou deixe-a. Cozinha: deixe-a se for capaz. Quem tem boca vai à cozinha. Quem tem coração também vai.

AMÉLIE LOMBARDFotógrafa especializada em gastronomia e compor-tamento, Amélie Lombard nasceu e mora em Paris, onde atua nas áreas de publicidade e jornalismo, além de produzir trabalhos autorais, como Pas-a-Pas, série de imagens que ilustram estas páginas.# amelielombard.com