Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

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Page 1: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

AutorasMarta Morais da CostaSilvana Oliveira

Concepções, Estruturas

e Fundamentos do Texto Literário

2009

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C837 Costa, Marta Morais da.

Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário.

/ Marta Morais da Costa. Silvana Oliveira. — Curitiba: IESDE

Brasil S.A., 2009.

200 p.

ISBN: 978-85-7638-814-2

1. Gêneros literários 2. Analise do discurso narrativo 3. Estrutu-

ralismo (Analise literária) I. Titulo II. Oliveira, Silvana

CDD 801.95

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Sumário

Literatura e crítica literária | 7O que é literatura? | 7Os muitos conceitos de literatura | 8Funções da literatura | 9Funções da Teoria Literária | 10Funções da crítica literária | 11O papel do crítico literário | 11

O valor na literatura | 17A crítica literária e as outras instituições | 17O julgamento crítico | 18Os critérios de valoração da obra literária | 19A metodologia do discurso crítico | 20O que é um clássico? | 21

Natureza do fenômeno literário | 27Os conceitos do discurso literário | 27O discurso literário: características | 32

Gêneros literários: conceituação histórica | 39O que é gênero literário? | 39O conceito na Antigüidade Clássica e na Idade Média | 41O conceito no Renascimento | 43O conceito no Romantismo | 43Conceitos ao longo dos séculos XIX e XX | 44A perspectiva da atualidade | 46

Gêneros literários: o lírico | 51O que é poesia lírica? | 51A concepção musical da Antigüidade | 54Lirismo, subjetividade e sentimento | 56Lirismo e visualidade | 58

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Gêneros literários: o épico ou narrativo | 67O que é o gênero épico? | 67Preceitos aristotélicos sobre a epopéia | 69A passagem do épico ao romance | 70Os tipos de epopéia | 72

Gêneros literários: o dramático | 79A teoria aristotélica do trágico | 80A dramaturgia épica | 83As duas linguagens do gênero dramático | 85Texto dramático e texto cênico | 87Formas principais do gênero dramático | 88

Gêneros literários: o ensaístico | 99O gênero de fronteira | 99O ensaio | 100A crítica literária e suas funções | 102O ensaio no discurso literário: a metaficção e metapoesia | 103

A linguagem poética: poema X poesia | 111O objeto e funções da poesia | 111A metáfora e a metonímia | 117Poemas de forma fixa | 119

A estrutura da narrativa: romance | 133Nascimento e evolução do romance | 133Ficção e realidade | 135Tipologia do romance | 137

A estrutura da narrativa: conto e novela | 151Características do conto e da novela | 151A ação e a representação da realidade no texto narrativo | 155Tipologia da narrativa curta | 159

A estrutura da narrativa: crônica e ensaio | 165Crônica, tempo e realidade | 165A importância literária da crônica | 167O ensaio como literatura | 172

Gabarito | 181

Referências | 193

Anotações | 199

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Apresentação

O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram, explícita ou implicitamente, a criação de textos literários ao lon­go da história da cultura. Assim, uma disciplina que se proponha a investi­gar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer informações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes gêneros e subgêneros, bem como a classifica­ção e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros.

O primeiro objetivo da disciplina é apresentar as linhas gerais que definem os três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico e o dramáti­co. Ao mesmo tempo, os conteúdos mostram que essa classificação não é definitiva e permanente, em especial na atualidade, momento em que a cultura e a literatura passam por alterações profundas dos paradigmas da ciência e da arte.

Um segundo objetivo é o de tratar em forma mais minuciosa as prin­cipais características desses três gêneros e as possíveis classificações de subgêneros que eles contêm. Para atender a esse objetivo, também são tratados tópicos teóricos que abordam os aspectos de identidade de cada gênero, seja os relativos aos conteúdos e à contextualização histórica , seja aqueles que dizem respeito aos aspectos discursivos.

Um terceiro objetivo é o de apresentar as idéias manifestas em tex­tos literários, com sua transcrição parcial, acompanhada de comentários sintéticos e objetivos. Privilegia­se, portanto, o estudo do texto literário como base para melhor compreensão das idéias teóricas expostas. Afinal, a literatura é composta pelos textos literários; a teoria lhes é posterior e explicativa.

Um último objetivo é o de expandir o sentido da leitura da litera­tura para outras expressões artísticas, criando relações entre literatura e artes, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema. A intenção é favorecer a ampliação do sentido da literatura para integrá­la à cultura humana e ao momento histórico.

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A tarefa de atingir a esses objetivos permite que, em cada assunto tratado, as informações trazidas favoreçam a reflexão do leitor e o desejo de conhecer melhor as obras citadas. Estas constituem uma biblioteca mínima para o aprofundamento dos tópicos desenvolvidos, dado que a aprendizagem integral se faz também com a continuidade dos estu­dos, fora dos limites da orientação do profissional docente, quando o estudante se lança, por desejo e vontade próprios, à leitura e à pesquisa complementares.

Por fim, a Teoria da Literatura que trata dos gêneros literários au­xilia fortemente na compreensão do fato literário e nas razões que orien­taram os escritores a criar poemas, narrativas e peças de teatro filiados de alguma maneira a textos anteriores e a concepções discursivas que foram se repetindo ao longo dos tempos. É a permanência da algumas características que, guardadas as devidas proporções e contextualiza­ções, continuam a direcionar o pensamento criativo ou a ser combatidas por esse pensamento, na busca de novas formas de expressão escrita.

A leitura de poemas, peças teatrais ou narrativas, realizada com o embasamento teórico correspondente e atualizado, cresce e se dina­miza, capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os tex­tos literários, prioritariamente, e depois com o mundo que esses textos apresentam, representam e presentificam. Porque teoria e prática são os fundamentos da aprendizagem, do conhecimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.

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Literatura e crítica literáriaSilvana Oliveira*

O objetivo desta aula é estabecer relações entre a produção literária e a crítica que se encarrega de sua interpretação. A literatura ganha sentido no momento em que determinado público especializado dela se ocupa e propõe interpretações e leituras que devem se sustentar nos elementos de composição das obras. Assim é que a crítica literária se propõe como uma instituição que valida e, ao mesmo tempo, justifica a existência disso a que chamamos literatura. Estudaremos, portanto, as relações existentes entre a produção literária e a produção do discurso crítico sobre a literatura.

O que é literatura?As discussões deste tópico concentram­se no tema Teoria Literária ou Teoria da Literatura. São

reflexões que têm preocupado o ser humano desde que houve consciência do processo criativo a que chamamos “literatura”. A pergunta que abre esta aula – o que é literatura? – vem sendo feita há mais de 2 500 anos. Isso mesmo! Não com essas palavras, é claro. Os gregos antigos, por exemplo, já se dedica­vam a pensar sobre aquelas manifestações do “espírito” que não tinham uma função muito clara, como as narrativas contadas de uns para os outros, ou as declamações com temas alegres ou tristes que emo­cionam os ouvintes, ou ainda as encenações teatrais que tanto interessavam ao público da época.

Platão e Aristóteles foram os primeiros a querer organizar toda essa produção humana a que hoje damos o nome de literatura. É preciso lembrar que no momento em que os gregos viviam e pensavam a literatura, as coisas não eram como nós as conhecemos hoje. Obviamente, não existia o livro impresso e as manifestações literárias se davam oralmente; as narrativas e os poemas eram declamados por ho­mens conhecidos como aedos ou rapsodos, cuja função era a de fazer circular oralmente – por meio de declamações públicas – essas composições entre o maior número possível de pessoas. O registro que temos dos textos daquela época é bastante posterior ao momento em que eles foram compostos.

As noções sobre o que é literatura variam bastante de acordo com a época, mas não podemos negar que boa parte das idéias de Platão e Aristóteles ainda vale e nos fornece as bases para responder

* Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Licenciada em Letras pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

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a essa pergunta. Afinal, não podemos esquecer que nossa cultura é herança que recebemos dos gregos antigos!

Como já deve ter ficado claro para todos, estabelecer o conceito de literatura não é nada simples: dependemos de contextos históricos, referências culturais e esforço teórico!

Além disso, fica claro de início que a noção de literatura está diretamente relacionada à arte. Pois a literatura é compreendida, de modo geral, como o exercício artístico da linguagem.

Muito mais coerente é falar em conceitos de literatura, no plural! Pois assim podemos pensar em toda a diversidade de produção artística que se utiliza da linguagem verbal sem deixar nada de fora!

Sendo assim vamos a eles, aos conceitos de literatura.

Os muitos conceitos de literaturaSegundo importantes e tradicionais estudiosos, como Soares Amora e Hênio Tavares, podemos

pensar os conceitos de literatura em dois grandes blocos históricos, ou seja, em duas eras, a Clássica e a Moderna.

A Era Clássica vai desde a época de Platão e Aristóteles, os primeiros teóricos da literatura, até o século XVIII; a Era Moderna vem desde o Romantismo até os nossos dias. Algumas pessoas já falam em Era Pós­Moderna, mas essa é uma conversa para mais tarde!

Na Era Clássica, primeiramente há uma preocupação em estabelecer um conceito relacionado à forma com que a linguagem é utilizada para se dizer que determinada composição é arte literária ou não. Em segundo lugar, os antigos falam no conteúdo quando se estabelece que a arte literária é a arte que cria, pela palavra, uma imitação da realidade.

Disso podemos concluir que, para os clássicos, ou seja, para os gregos antigos, a literatura é um uso especial da linguagem com o objetivo de criar uma imitação da realidade.

Aqui temos três aspectos que merecem destaque:

Observe que se trata de um uso da :::: linguagem, ou seja, é preciso que uma determinada língua seja o suporte para a composição desta obra que será considerada literatura.

Esse uso especial da :::: linguagem é direcionado para a criação, ou seja, a literatura não é como a História que tem a pretensão de registrar a verdade dos fatos. A literatura cria ficção, não está interessada no registro da verdade imediata.

Essa criação se dá na medida em que imita a realidade. Aqui temos a idéia de imitação (ou ::::mimese, estudada por Aristóteles) que estabelece que a literatura tenha como referência a imi­tação da realidade. Isso quer dizer que, mesmo sendo criação, a literatura precisa se referenciar na realidade, imitando­a.

Para os clássicos, ou seja, para os gregos antigos, a literatura é um uso especial da linguagem com o objetivo de criar uma imitação da realidade.

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9|Literatura e crítica literária

Na Era Moderna, a literatura passa a ser compreendida de maneira mais ampla como o conjunto da produção escrita. Isso se deve, principalmente, ao advento da imprensa (Johann Gensfleish Guten­berg – 1397­1468 – provavelmente inventou as primeiras técnicas de impressão em papel em 1442).

Funções da literaturaAlém do aspecto relacionado ao texto impresso, nessa época a literatura passa a ter uma relação mais

direta com a idéia de ficção, de criação e se afasta um pouco da noção clássica de imitação da realidade.

A figura do artista criador torna­se muito importante nesse período; é da sua mente e da sua in­tuição que nasce a criação de uma realidade que não precisa estar tão presa à realidade empírica, isto é, a realidade que o “senso comum” admite como sendo a única.

Podemos dizer que nessa época acredita­se que ao artista cabe a visão das coisas como ainda não foram vistas e como são verdadeiramente.

O aspecto mais importante dessa noção de literatura é o fato de que a realidade passa a ser con­siderada de múltiplas formas. Não é mais possível falar em uma única realidade. Cada artista concebe o mundo a partir da sua subjetividade, da sua intuição e sua obra é um retrato livre dessa interioridade.

Segundo Antoine Compagnon, no seu livro O Demônio da Teoria (2003, p. 31), “no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém”.

O mesmo autor diz ainda que “o sentido moderno de literatura (romance, teatro e poesia) é in­separável do romantismo, isto é, da afirmação da relatividade histórica e geográfica do bom gosto, em oposição à doutrina clássica da eternidade e da universalidade do cânone estético” (p. 32).

Trocando em miúdos, podemos dizer que hoje em dia a noção de literatura está diretamente ligada à época em que essa mesma literatura foi produzida. O que não foi considerado literatura há 200 anos, hoje pode muito bem ser considerado como obra literária, e assim por diante. Não há mais a cren­ça como havia na concepção clássica, de que a literatura abrangia obras eternas e de valor universal.

Podemos dizer que a literatura existe em relação à época em que foi produzida e também em relação ao país em que apareceu.

Antoine Compagnon (2003, p. 35), um dos teóricos mais respeitados hoje em dia, nos lembra que

as definições de literatura segundo sua função parecem relativamente estáveis, quer essa função seja compreendida como individual ou social, privada ou pública. Aristóteles falava de katharsis (“catarse”), ou de purgação, ou de purifica­ção de emoções como o temor e a piedade. É uma noção difícil de determinar, mas ela diz respeito a uma experiência especial das paixões ligada à arte poética. Aristóteles, além disso, colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de dulce et utile.

Devemos concordar que, quanto à função, as definições de literatura são mesmo bastante está­veis. Quando pensamos em para que serve a literatura ainda recuperamos as idéias de Aristóteles e elas nos servem bastante bem para compreender o fenômeno da arte da palavra.

Entretanto, quanto à sua diversidade, nos nossos dias, o conceito de literatura tornou­se bastante problemático, já que temos uma variedade tão grande de produção escrita que qualquer um de nós fica

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confuso diante do último romance do Paulo Coelho, da seqüência de aventuras de Harry Potter ou da biografia de Elvis Presley. Isso tudo é literatura?

Seria mais fácil se só os livros consagrados, os ditos clássicos, fossem considerados como literatu-ra, mas não podemos ignorar toda a variedade de produção escrita que circula em ambiente literário. A questão da qualidade dessas obras torna­se, então, urgente. Como saberemos quais são as obras que atendem ao bom uso da linguagem, como rezaram os gregos? Como saberemos quais obras têm valor estético, ou seja, têm beleza artística?

E aí é que entra a teoria, novamente... A reflexão teórica sobre a realização da obra literária poderá nos apontar um “norte” no sentido de estabelecer valores: valores estéticos, valores morais, valores de permanência, de ruptura, valores que possam nos autorizar a reconhecer tais obras como manifesta­ções artísticas do humano na palavra.

Funções da Teoria LiteráriaPara falar de Teoria Literária temos que antes compreender o que é teoria. Podemos concordar tam­

bém que para grande parte dos problemas do dia­a­dia existe uma série de soluções já testadas e apro­vadas por uma maioria de pessoas. Claro que temos de levar em conta que a “maioria” que decide qual a melhor forma de resolver um problema é sempre a maioria que “pode mais”, não é? Há sempre aqueles que não são consultados para dar sua opinião, pois não “podem nada” na ordem do dia. Entre os que po­dem mais e acabam determinando qual a melhor forma de resolver a maioria dos problemas do cotidiano estão aqueles que têm dinheiro, que têm poder, que sabem falar, escrever e outras coisas mais.

Então, o conjunto de soluções testadas e aprovadas para os problemas vividos em uma sociedade é o que podemos chamar de senso comum. Uma espécie de acordo que fazemos para viver em sociedade.

Uma pessoa pode passar a vida inteira resolvendo todos os problemas que se apresentam para ela usando aquilo que o senso comum determina. Mas um belo dia essa pessoa pode querer pensar um pouquinho mais sobre diferentes formas de resolver problemas na sua vida e aí essa pessoa estará se transformando num teórico!

A partir desse momento, a pessoa pode não aceitar mais tão facilmente as soluções ditadas pelo senso comum. Ela estará muito interessada em pensar por si mesma e, quem sabe, inventar modos mui­to originais de enfrentar a realidade.

Vejam que com um exercício livre do pensamento podemos nos transformar em teóricos e pen­sar sobre a realidade criando teorias sobre ela. Uma teoria, como resultado do exercício de pensar sobre a realidade, contestando as idéias já prontas e as soluções já dadas para os problemas que enfrentamos nas várias esferas da vida, precisa ser verificada na realidade.

Quando nos interessamos por pensar e criar teorias, estamos, de várias formas, combatendo pre­conceitos, pois passaremos a criar conceitos novos, sobre os quais teremos pensado bastante.

Para o teórico Antoine Compagnon (2003, p. 19), algumas distinções são necessárias: primeira­mente, quem diz teoria pressupõe uma prática, diante da qual uma teoria se coloca ou a qual elabora uma teoria. Segundo o autor, nas ruas de Gênova, algumas salas trazem este letreiro: “Sala de teoria”. Não se faz aí Teoria da Literatura, mas ensina­se o código de trânsito: a teoria é, pois, o código da direção.

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11|Literatura e crítica literária

Diante disso, podemos perguntar: Qual é a prática que a Teoria da Literatura codifica, isto é, orga­niza mais do que regulamente? Não é, parece, a própria literatura (ou a criação literária) – a Teoria da Li­teratura não ensina a escrever romances ou poemas; na verdade a Teoria Literária estabelece os modos pelos quais os estudos literários podem organizar­se. Pode­se dizer, enfim, que a Teoria Literária instrui os estudos literários, ou estudos da literatura.

A Teoria Literária é um discurso, ou melhor, uma construção discursiva da qual participam muitos agentes, dentre os quais se destacam os autores e os leitores. Ela se configura como uma proposta de interpretação do fenômeno literário. Assim é que temos diversos movimentos teóricos importantes que buscam dar conta da produção literária. É comum dizer que a Teoria Literária “corre atrás” da produção literária para compreender seus mecanismos de realização do modo mais eficiente possível.

Funções da crítica literáriaA crítica literária utiliza­se da Teoria Literária. Isso significa dizer que a crítica literária precisa da

teoria; vimos que a teoria se configura como uma proposta de interpretação da obra literária; a crítica, por outro lado, dirá se essa interpretação é válida, ou seja, se o que a obra diz e o modo como diz são válidos como expressão artística.

Todos nós já nos perguntamos um dia por que Machado de Assis é um autor tão importante na história da literatura. Quem disse que ele é importante? De certa forma, foi a crítica literária que disse isso. É claro que não disse sozinha; outras instituições importantes participaram desse julgamento: a escola e a universidade.

A crítica literária divide com a escola e com a universidade a função de julgar a produção literária de seu tempo. Ao realizar esse julgamento, a crítica estabelece, simultaneamente, o que cada época julga importante em termos artísticos e culturais.

O papel do crítico literárioSegundo Machado de Assis (1999, p. 40­41), no seu famoso ensaio “O ideal do crítico”, a ciência e

a consciência são as duas condições principais para se exercer a crítica. Ainda mais:

A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção, e a sua convicção deve formar­se tão pura e tão alta que não sofra a ação das circunstâncias externas. [...] Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é­o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade.

Na perspectiva de Machado de Assis, o crítico literário é uma espécie de missionário que dirá a verdade, nada mais do que a verdade, sobre determinada obra literária. O papel do crítico é portar­se como um juiz, ou seja, ele deve julgar o valor da obra literária.

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Para um outro crítico literário importante, Antonio Candido (2000, p. 31), o papel do crítico pode ser compreendido da seguinte forma:

Toda crítica viva – isto é, que empenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor – parte de uma impressão para chegar a um juízo. [...] Entre impressão e juízo, o trabalho paciente da elaboração, como uma espécie de moinho, tritura a impressão, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbítrio se reduza em benefício da objetividade, e o juízo resulte aceitável pelos leitores.

Também para Antonio Candido o crítico deve ser um “árbitro objetivo” capaz de julgar o valor da obra artística por meio de dois mecanismos básicos – a impressão e o juízo. Enquanto Machado de As­sis fala em “ciência”, Antonio Candido fala em “impressão”; mas precisamos entender que a “impressão” adequada sobre determinada obra necessita do conhecimento, ou seja, da ciência.

Temos, então, que o papel do crítico literário é julgar – por meio dos conhecimentos que a Teoria Literária estabelece – o valor da obra de literatura.

Texto complementar

Ideal do crítico(ASSIS, 1999)

Exercer a crítica afigura­se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes.

São óbvias as conseqüências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol seguro, cor­rem o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo. O poeta oscilará entre as sentenças mal concebidas do crítico e os arestos caprichados da opinião; nenhuma luz, nenhum conselho, nada lhe mostrará o caminho que deve seguir – e a morte próxima será o prêmio definitivo das suas fadi­gas e das suas lutas.

Chegamos já a estas tristes conseqüências? Não quero proferir um juízo, que seria temerário, mas qualquer pode notar com que largos intervalos aparecem as boas obras, e como são raras as publicações seladas por um talento verdadeiro. Quereis mudar esta situação aflitiva? Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada – será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feios; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença – essas três chagas da crítica de hoje –, ponde em lugar deles a sinceridade, a solicitude e justiça – é só assim que teremos uma grande literatura.

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13|Literatura e crítica literária

É claro que essa crítica, destinada a produzir tamanha reforma, deve­se exigir as condições e as virtudes que faltam à crítica dominante – e para melhor definir o meu pensamento, eis o que eu exigiria no crítico do futuro.

O crítico atualmente aceito não prima pela ciência literária; creio até que uma das condições para desempenhar tão curioso papel é despreocupar­se de todas as questões que entendem com o domínio da imaginação. Outra, entretanto, deve ser a marcha do crítico; longe de resumir em duas linhas – cujas frases já o tipógrafo as tem feitas – o julgamento de uma obra, cumpre­lhe meditar profundamente sobre ela, procurar­lhe o sentido íntimo, aplicar­lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção. Deste modo as conclu­sões do crítico servem tanto à obra concluída como à obra em embrião. Crítica é análise – a crítica que não analisa é a mais cômoda, mas não pode pretender a ser fecunda.

Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura super­ficial dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento, pode­se, é verdade, fascinar o público, mediante uma fraseologia que se emprega sempre para louvar ou deprimir; mas no ânimo daqueles para quem uma frase nada vale, desde que não traz uma idéia, esse meio é im­potente, e essa crítica negativa.

Não compreendo o crítico sem consciência. A ciência e a consciência, eis as duas condições principais para exercer a crítica. A crítica útil e verdadeira será aquela que, em vez de modelar as suas sentenças por um interesse, quer seja o interesse do ódio, quer o da adulação ou da simpatia, procure reproduzir unicamente os juízos da sua consciência. Ela deve ser sincera, sob pena se ser nula. Não lhe é dado defender nem os seus interesses pessoais, nem os alheios, mas somente a sua convicção, e a sua convicção deve formar­se tão pura e tão alta que não sofra a ação das circuns­tâncias externas. Pouco lhe deve importar as simpatias ou antipatias dos outros; um sorriso compla­cente, se pode ser recebido e retribuído com outro, não deve determinar, como a espada de Breno, o peso da balança; acima de tudo, dos sorrisos e das desatenções, está o dever de dizer a verdade, e em caso de dúvida, antes calá­la, que negá­la.

Com tais princípios, eu compreendo que é difícil viver; mas a crítica não é uma profissão de rosas, e se o é, é­o somente no que respeita à satisfação íntima de dizer a verdade.

Das duas condições indicadas acima decorrem naturalmente outras, tão necessárias como elas, ao exercício da crítica. A coerência é uma dessas condições, e só pode praticá­la o crítico verdadeira­mente consciencioso. Com efeito, se o crítico, na manifestação de seus juízos, deixa­se impressionar por circunstâncias estranhas às questões literárias, há que cair freqüentemente na contradição, e os seus juízos de hoje serão a condenação das suas apreciações de ontem. Sem uma coerência perfeita, as suas sentenças perdem todo o vislumbre de autoridade, e abatendo­se à condição de ventoinha, movida ao sopro de todos os interesses e de todos os caprichos, o crítico fica sendo unicamente o oráculo dos seus inconscientes aduladores.

O crítico deve ser independente – independente em tudo e de tudo – , independente da vai­dade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser independente das sugestões do orgulho, e das imposições do amor­próprio. A profissão do crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários –, e neste ponto a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do

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crítico seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: – “É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas”.

A tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e encaminhar as inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as condições de fecundo e duradouro.

É preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno das diferenças de escola: se as prefe­rências do crítico são pela escola romântica, cumpre não condenar, só por isso, as obras­primas que a tradição clássica nos legou, nem as obras meditadas que a musa moderna inspira; do mesmo modo devem os clássicos fazer justiça às boas obras daqueles. Pode haver um homem de bem no corpo de um maometano, pode haver uma verdade na obra de um realista. A minha admiração pelo Cid não me fez obscurecer as belezas de Ruy Blas. A crítica que, para não ter o trabalho de meditar e aprofun­dar, se limitasse a uma proscrição em massa, seria a crítica da destruição e do aniquilamento.

Será necessário dizer que uma das condições da crítica deve ser a urbanidade? Uma crítica que, para a expressão das suas idéias, só encontra fórmulas ásperas pode perder as esperanças de influir e dirigir. Para muita gente será esse o meio de provar independência; mas os olhos experimentados farão muito pouco caso de uma independência que precisa sair da sala para mostrar que existe.

Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz. Se a delicadeza das maneiras é um dever de todo homem que vive entre homens, com mais razão é um dever do crítico, e o crítico deve ser delicado por excelência. Como a sua obrigação é dizer a verdade, e dizê­la ao que há de mais suscetível neste mundo, que é a vaidade dos poetas, cumpre­lhe, a ele sobretudo, não esquecer nunca esse dever. De outro modo, o crítico passará o limite da discussão literária, para cair no terreno das questões pessoais; mudará o campo das idéias, em campo de palavras, de doestos, de recriminações – se acaso uma boa dose de sangue frio, da parte do adversário, não tornar impossível esse espetáculo indecente.

Tais são as condições, as virtudes e os deveres dos que se destinam à análise literária; se a tudo isto juntarmos uma última virtude, a virtude da perseverança, teremos completado o ideal do crítico.

Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, descarná­lo, aprofundá­lo, até en­contrar­lhe a alma, indagar contentemente as leis do belo, tudo isso com a mão na consciência e a convicção nos lábios, adotar uma regra definida, a fim de não cair na contradição, ser franco sem as­pereza, independente sem injustiça, tarefa nobre é essa que mais de um talento podia desempenhar, se se quisesse aplicar exclusivamente a ela. No meu entender é mesmo uma obrigação de todo aque­le que se sentir com força de tentar a grande obra da análise conscienciosa, solícita e verdadeira.

Os resultados seriam imediatos e fecundos. As obras que passassem do cérebro do poeta para a consciência do crítico, em vez de serem tratadas conforme o seu bom ou mau humor, seriam su­jeitas a uma análise severa, mas útil; o conselho substituiria a intolerância, a fórmula urbana entraria no lugar da expressão rústica – a imparcialidade daria leis, no lugar do capricho, da indiferença e da superficialidade.

Isto pelo que respeita aos poetas. Quanto à crítica dominante, como não se poderia sustentar por si, ou procuraria entrar na estrada dos deveres difíceis, mas nobres, ou ficaria reduzida a con­quistar de si própria os aplausos que lhe negassem as inteligências esclarecidas.

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15|Literatura e crítica literária

Se esta reforma, que eu sonho, sem esperanças de uma realização próxima, viesse mudar a situação atual das coisas, que talentos novos! Que novos escritos! Que estímulos! Que ambições! A arte tomaria novos aspectos aos olhos dos estreantes; as leis poéticas – tão confundidas hoje, e tão caprichosas – seriam as únicas pelas quais se aferisse o merecimento de produções – e a literatura, alimentada ainda hoje por algum talento corajoso e bem encaminhado, veria nascer para ela um dia de florescimento e prosperidade. Tudo isso depende da crítica. Que ela apareça, convencida e resoluta – e a sua obra será a melhor obra dos nossos dias.

Estudos literários1. Considere a noção de mimese como os clássicos a concebiam e assinale a alternativa correta.

a) Mimese significa o ato da criação literária.

b) A realidade era concebida pelos clássicos como mimese.

c) Mimese e arte literária são sinônimos.

d) A mimese não é um requisito para a criação literária.

e) A imitação da realidade consiste na mimese.

2. Assinale a alternativa que corresponde à função da Teoria Literária.

a) Orientar a produção literária.

b) Regrar o modo como os escritores devem produzir.

c) Interpretar a produção literária de cada época.

d) Propor julgamento para a produção literária.

e) Estabelecer os limites da produção literária.

3. Quais as instituições que promovem o julgamento da obra literária?

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O valor na literaturaSilvana Oliveira

Há uma expectativa e uma esperança sempre presentes quando um leitor entra numa livraria para comprar um livro ou mesmo quando abre um jornal para consultar a lista dos mais vendidos. O leitor es­pera que o livro que ele vai escolher a partir desses dois cenários – a livraria e o jornal – sejam bons.

Ora, quem dirá a ele qual o livro que deve ser escolhido? Os especialistas. No caso do livro literário, espera­se que os especialistas da crítica literária sejam capazes de dizer quais são os bons livros, ou seja, aqueles que merecem ser lidos.

A discussão sobre o valor na literatura envolve, pelo menos, dois princípios: o valor da literatura, de modo geral, e o valor da obra, de modo específico.

A crítica literária e as outras instituiçõesQuando nos referimos aos especialistas da área de literatura, estamos pensando em professores

e pesquisadores de literatura e também nos críticos literários. Esses profissionais atuam, principalmen­te, em três instituições sociais que, a rigor, definem e creditam o valor de uma obra literária: a escola, a universidade (ou academia) e a imprensa.

A escola representa aqui a instituição responsável pela formação básica do cidadão, desde a Edu­cação Infantil até o Ensino Médio. É na escola que a criança e o jovem entendem o que é o livro e como ele funciona socialmente; os livros que a escola acolhe em suas classes é valorado a priori, ou seja, o livro que chega à classe escolar carrega consigo um valor formativo; ele é, literalmente, um clássico – o livro das classes escolares.

A universidade (ou academia) representa o ambiente em que o conhecimento é produzido e ava­liado sem as determinações externas, sejam de ordem social ou econômica. Embora não possamos dizer que as universidades são ilhas isoladas do resto do mundo, é lá que o estudioso encontra o ambiente propício para produzir conhecimento e valor protegido das imposições e interesses de outra ordem. Dentro das universidades se produz a avaliação teórica dos textos literários e, simultaneamente, a siste­matização daquilo que se produz em literatura. A avaliação e a sistematização da literatura, produzidas dentro da universidade, orientam a ação de professores e especialistas que atuam na escola. Assim é que as duas instituições – escola e universidade – devem estar em constante diálogo e mútua colaboração.

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18 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

A imprensa acolhe o discurso crítico sobre a literatura. As revistas, os jornais, os programas de televisão e também a internet são suportes em que o discurso crítico se apóia para chegar ao grande público. O processo para alcançar cada um desses meios é bastante diverso; sabemos que, para escrever em uma revista especializada em literatura, o crítico literário precisa ser reconhecido como profissional, e em jornais de importante circulação se dá o mesmo. Já na internet, qualquer um de nós pode postar a sua avaliação crítica de qualquer obra sem nenhuma restrição. A diversidade dos meios em que a crí­tica literária circula amplia seu alcance e seu poder de avaliação. Ao pensarmos em determinado livro é comum que a base para o julgamento do seu valor seja a opinião expressa de determinado crítico em uma revista, um jornal, programa de televisão ou mesmo na internet.

O julgamento críticoAntoine Compagnon (2003) afirma que o público espera que os profissionais da literatura lhe

digam quais são os bons e quais são os maus livros; que os julguem, separem o joio do trigo, fixem o cânone.

Cânone literário é o conjunto das grandes obras clássicas, aquelas cujo valor não pode ser ques­tionado, pois já está consolidado na cultura de determinada sociedade. Um exemplo para a literatura brasileira é Machado de Assis; ele já pertence ao cânone literário brasileiro, ou seja, o valor da sua obra não pode, ou pelo menos não deve, ser questionado. O mesmo não acontece com a obra de um autor como Paulo Coelho, cuja avaliação especializada ainda não se consolidou; há aqueles que julgam mal a obra do autor, mas há também aqueles que querem ver nela algum valor.

Os leitores, de modo geral, confiam na avaliação crítica que resulta dos discursos produzidos na escola, na universidade e na imprensa; entretanto, o público espera também que se diga por que este livro é bom e este outro é ruim. Será possível para as instituições julgarem o valor de uma obra sem limitarem­se às noções de gosto?

Por muito tempo, a idéia do bom e do belo como critérios absolutos para a valoração de uma obra artística funcionaram exclusivamente. Por outro lado, houve, em vários momentos da história da literatura, a produção de obras em que o belo e o bom foram substituídos pelo horror. O Romantismo, por exemplo, quando passa a encenar a morte em todas as suas possibilidades, traz para a discussão do valor literário a questão do horror.

Obras como Frankestein, de Mary Shelley, ou Drácula, de Bram Stocker, não podem ser julgadas pelo critério do bom e do belo. O Romantismo trouxe outros elementos para a análise do valor da obra literária e tornou mais problemático o julgamento crítico de tal obra.

O valor da literatura em si mesmoA literatura é um conceito que se estabeleceu como tal a partir do século XVII; até então literatura

era entendida como tudo aquilo que congregava o conhecimento, sem separação entre o que era cria­ção e o que era ciência. É preciso entender, sobretudo, que literatura, desde sempre, esteve associada à civilização; conhecimento e arte para civilizar.

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19|O valor na literatura

A partir do momento que literatura passa a designar os textos criativos, seja poesia ou prosa, há a associação com a arte e com a humanização do ser. Nesse sentido, literatura guarda um valor em si mesma, ou seja, é por meio da literatura e dos valores éticos e morais que ela veicula que nós nos reconhecemos como humanos, no prazer e no sofrimento.

Quando nos referimos a uma literatura nacional, por exemplo, estamos falando de um conjunto de obras que congrega o pensamento e os valores produzidos e cultivados por determinado grupo so­cial. Por mais que o conceito de literatura nacional possa ser problemático, não há como negar que ele funciona para espelhar o ideário de um grupo social e cultural. É só pensarmos em obras como Iracema, de José de Alencar; Os Lusíadas, de Camões; ou Macunaíma, de Mário de Andrade, para concordarmos que a literatura carrega os valores que determinado grupo social, em determinado tempo, julga necessá­rios para que um povo se reconheça e possa dizer­se a si mesmo frente ao grande conjunto do mundo.

O valor específico de uma obraPara que uma obra possa receber a atenção especial das instituições que promovem o julgamen­

to crítico, ela precisa da abordagem da Teoria Literária.

Em cada tempo, a teoria elabora proposições de análise que se encarregarão da tarefa do julga­mento crítico. É claro que as teorias também estão submetidas às determinações históricas e aos movi­mentos da cultura. Nesse sentido é que não se pode afirmar que esta teoria é melhor que aquela. A teoria é, antes de tudo, reflexiva, e ela mesma pode ser questionada.

Uma obra abordada por determinada corrente teórica pode ser julgada como de pouco valor, mas uma outra corrente pode atribuir­lhe valor baseada em critérios diferentes e surpreender o especialista com pontos de vista bastante variados.

A obra literária, no limite, deve suportar diferentes abordagens. Esse seria o valor mais permanen­te de uma obra, ou seja, sua capacidade de suportar e sustentar diferentes abordagens.

Os critérios de valoração da obra literáriaPara que um texto passe a ter o status de literatura, é preciso que haja um consenso de algumas

instituições importantes dentro de uma sociedade. Se pensarmos no mundo clássico, ou seja, nos gre­gos antigos, percebemos que, para que uma obra daquele período passasse para a história como litera­tura, foi preciso que houvesse uma apreciação generalizada que envolveu público e especialistas.

Podemos dizer que isso acontece hoje também. Quando uma obra é apresentada numa socieda­de, ela é apreciada pelo público leitor, pela crítica especializada, pela escola (como instituição social) e pela academia (universidades). Só depois dessa apreciação – que pode levar muito tempo – é que uma obra ganha status de literatura.

Os critérios são, portanto, historicamente construídos. Pensemos no romance, por exemplo. Quan­do essa modalidade literária apareceu formalmente em fins do século XVIII, houve muita resistência em considerar aquelas produções narrativas tão próximas da oralidade como literatura. Os romances eram

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20 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

narrativas cujos temas se afastavam dos temas nobres e provocavam certo desconforto em um mundo em que apenas aquilo que se considerava grandioso merecia ser chamado de arte ou literatura.

A produção do romance romântico é muito variada; desde romances de horror até romances eróticos foram produzidos nesse período e todos circulavam de modo a receberem atenção especial do público leitor e dos especialistas. Foi preciso muito tempo para que obras como Werther, de Goethe, ganhassem o status de clássico.

Compagnon (2003, p. 227) nos lembra que:

A avaliação dos textos literários (sua comparação, sua classificação, sua hierarquização) deve ser diferenciada do valor da literatura em si mesmo. Mas é claro que os dois problemas não são independentes: um mesmo critério de valor (por exemplo, o estranhamento, ou a complexidade, ou a obscuridade, ou a pureza) preside, em geral, à distinção entre textos literários e não­literários, e à classificação dos textos literários entre si.

Como vimos, Compagnon relaciona os critérios de valor para o texto literário como operacio­nais tanto para se dizer o que é literatura quanto para se estabelecer o grau de valor entre as obras literárias.

Isso significa dizer que se pode julgar um texto em comparação com outro. Podemos dizer, então, que o romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, é mais literário do que o romance A Mo-reninha, de Joaquim Manuel de Macedo? A resposta para essa questão é: sim, podemos, desde que dei­xemos claro qual foi o critério que nos autorizou a esse julgamento. Se tomarmos o critério da complexi-dade, veremos que, no caso do primeiro romance, há um processo mais elaborado na composição dos elementos da narrativa; portanto, se demonstrarmos essa complexidade satisfatoriamente, estaremos autorizados a dizer que Grande Sertão: Veredas é um romance melhor realizado do que A Moreninha.

Segundo Zaponne e Wielewicki (2005), até o século XVIII, o público leitor era claramente defini­do: havia a “sociedade polida” – intelectualizada e interessada, tanto pelas artes, quanto pela manuten­ção de valores morais –, e os incapazes de ler, dedicados ao trabalho braçal, com os quais a produção literária, grosso modo, não precisava se preocupar. A partir daí, entretanto, vai surgindo uma classe de leitores intermediária, que não é mais formada de “pessoas influentes”, bem versadas nas discussões culturais e intelectuais, nem pelos analfabetos que não conseguem ler coisa alguma. Os autores apon­tam para o fato de que essa nova classe de leitores é alfabetizada, mas não faz o mesmo sentido da leitura feita pelas “pessoas influentes”, intelectualizadas, a quem a literatura se dirigia antes. Assim, o crítico literário dirige­se a um público que, como ele, trabalha para viver, mas não está inserido nas for­mas de diálogo intelectualizado polido das elites. O crítico então precisa se preocupar com questões mais próximas da realidade social dos novos leitores e, também, explicar porque determinadas obras devem e merecem ser lidas.

A metodologia do discurso críticoA crítica literária, como qualquer esforço em busca do conhecimento, é também a busca de uma

verdade. E também como a ciência, a crítica é constantemente revista e reformulada, pois não existe nem atua num campo imutável; todos vemos ao nosso redor obras que não recebiam nenhuma aten­ção no passado sendo agora abordadas seriamente pela crítica. O estudo dos textos de autoria feminina é um exemplo claro do movimento constante que o discurso crítico realiza em direção à produção e também sobre si mesmo.

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21|O valor na literatura

Voltando a Zaponne e Wielewicki (2005), vemos que textos considerados não­literários no passado são estudados como literatura hoje, e autores menores, ou que produzem gêneros menos respeitados, po­dem vir a ser valorizados pela academia. Assim, a crítica e a Teoria Literária estudadas nos meios acadêmicos têm papel fundamental na definição de literatura e nas possibilidades e restrições das leituras literárias.

As teorias produzidas no sentido de propor abordagens ao texto literário são apresentadas como soluções e caminhos de investigação para o fenômeno literário, mas nenhuma delas pode ser tomada em termos absolutos, pois nos dias de hoje não interessa mais uma teoria prescritiva e instrumental, e sim uma teoria reflexiva, que possa trazer para o trabalho do crítico também a reflexão sobre os limites de seu próprio discurso.

Isso quer dizer que, ao tomar uma determinada teoria ou corrente da crítica para abordar uma obra literária, é preciso também perceber quais os aspectos daquela obra que aquela teoria não pode esclarecer suficientemente. Dessa maneira, é possível perceber que qualquer coisa pode ser objeto de reflexão teórica, inclusive o próprio discurso crítico. Não queremos nos tornar chatos e sair por aí teori­zando sobre tudo a ponto de aborrecer nossos interlocutores, mas qualquer estudioso precisa conside­rar tudo aquilo que o cerca, seja no plano concreto ou no plano das idéias como matéria para reflexão. Só a partir dessa percepção da realidade é que venceremos os “dogmas” de verdade que tanto prejudi­cam o avanço do conhecimento e o próprio processo de aprendizagem.

Para nós, estudiosos da literatura, pensar teoricamente nos habilita a considerar a criação artística com a palavra, de modo a entender as condições em que as intenções com que tal obra foi produzida e, ainda, entender em que condições e com que intenções essa mesma obra foi recebida por um deter­minado leitor. Dessa discussão teórica é que resulta o conjunto de conhecimentos a que chamamos de Teoria Literária. Ou seja, já temos, diante de nós, um grande acúmulo de reflexão teórica sobre literatura e vamos estudar tudo isso.

Só que isso não significa que não nos exercitaremos teoricamente por meio dos textos teóricos já existentes. Isso quer dizer que ao lermos um texto teórico não precisamos aceitar o que ele diz como verdade absoluta. Estamos nos tornando teóricos também e ao ler teoria temos de nos posicionar cri­ticamente, de modo a operacionalizar o que lemos para elaborar nossas próprias teorias, com a ajuda daqueles que nos precederam, mas com a força do nosso pensamento também.

Como afirmam Zaponne e Wielewicki (2005), citando Eagleton (2001), a questão teórica sempre lembra a imagem da perplexidade da criança sobre práticas que ainda não lhe estão familiarizadas, levando­a a produzir questionamentos acerca daquilo que, para o adulto que já perdeu esse estranha­mento, parece óbvio. A investigação teórica permite essa redescoberta do óbvio, o desafio a práticas consideradas normais e naturais, tais como a própria associação da palavra literatura com obras já con­sagradas. A investigação teórica permite, assim, reavaliações da realidade e novas tomadas de posições. O questionamento e o estabelecimento do valor literário de uma obra passam por todo um exercício de reflexão do qual o estudioso de literatura é ator principal.

O que é um clássico?Para responder a esse questionamento, Compagnon (2003, p. 234) retoma um texto de Sainte­

Beuve, “Qu ‘Est­ce qu’um Classique” (O que é um clássico?), de 1850, em que se apresenta uma definição riquíssima que transcrevemos aqui:

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22 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Um verdadeiro clássico [...] é um autor que enriqueceu o espírito humano, que realmente aumentou seu tesouro, que lhe fez dar um passo a mais, que descobriu uma verdade moral não equívoca ou apreendeu alguma paixão eterna nesse coração em que tudo já parecia conhecido e explorado; que manifestou seu pensamento, sua observação e sua invenção, não importa de que forma, mas que é uma forma ampla e grande, fina e sensata, saudável e bela em si; que falou a todos num estilo próprio, mas que é também o de todos, num estilo novo sem neologismo, novo e antigo, facil­mente contemporâneo de todas as idades.

Para Sainte­Beuve, o clássico transcende todas as tensões e todas as contradições. Seria uma obra absoluta, entre o individual e o universal, entre o atual e o eterno, entre o local e o global, entre a tra­dição e a originalidade, entre a forma e o conteúdo. Seria a obra perfeita, a dicção absoluta do ser. Tal proposição, embora belíssima, traz uma problemática explícita, pois, sendo assim, muitas obras que vemos circular com o rótulo de clássicas deveriam ser banidas imediatamente.

Já se viu que o termo clássico se emprega o mais das vezes para obras que têm circulação garanti­da nas escolas, universidades e meios críticos reconhecidos. Essas instituições operam a um julgamento crítico que delega valor e prestígio às obras por meio de um complexo processo histórico e cultural.

Para Compagnon (2003), a definição de clássico apresentada por Sainte­Beuve é romântica e an­tiacadêmica. Para ele, a associação entre criação e tradição é a garantia mais imediata para que determi­nada obra ganhe status de clássica, da mesma forma que é muito perigoso tornar­se um clássico rápido demais. Daí a importância do processo histórico que consolida e avalia – pela ação das instituições autorizadas – o clássico.

Embora possamos falar de certo relativismo no estabelecimento dos clássicos contemporâneos, é sempre bom lembrar que é preciso confiança no discurso elaborado e consolidado pelas institui­ções responsáveis por alguma estabilidade nesse campo, da mesma forma que é preciso trabalhar no sentido de garantir a confiabilidade dessas instituições.

Texto complementar

Um exercício teórico: leitura e análise do conto “O Burrinho Pedrês”, de João Guimarães Rosa

(OLIVEIRA, 2003)

“O Burrinho Pedrês” é experiência iniciática para a leitura de Rosa e, ainda, para algo que pode ser dito como a “aprendizagem da espiral”, expressa neste conto a partir da imagem da boiada, prin­cipalmente. Magnífica concentração de adjetivos persegue os sentidos em fuga pela multiplicidade de cores, formas e movimentos dos bois, diversos e dessemelhantíssimos, como partes díspares de um todo a inaugurar segmentos inéditos de sentido a cada novo movimento. Das seis da manhã à meia­noite do mesmo dia, o Burrinho tem a sua vida dada no relato de eventos espiralados tal como os deslocamentos da boiada no conto.

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23|O valor na literatura

A conexão entre os eventos da narrativa obedece à ordem caótica na qual há uma superdetermi­nação de futuro, imprevisível, posto que a conexão obedece à lógica da espiral. Em pontos sem deter­minação prévia poderá haver, incessantemente, inéditos elos e relações inusitadas de causa e efeito.

Li, recentemente, um breve artigo de física teórica em que o articulista (GLEISER) evoca a imagem de galáxias em uma xícara de café. Pareceu­me intrigante o fato de que cientistas res­ponsáveis pelos modelos que descrevem a formação de galáxias espirais baseiam­se na interação entre dois fluidos: um, a matéria comum das estrelas e das nuvens de gás interestelar (principal­mente hidrogênio e hélio) e outro, um fluido mais exótico, a chamada matéria escura, cuja com­posição permanece desconhecida. Tal interação se dá, primeiro, pela atração gravitacional entre os dois tipos de matéria e, segundo, pelo movimento de rotação que ocorre durante o processo de formação da galáxia.

O articulista propõe que se imagine, primeiramente, os dois tipos de matéria como sendo duas esferas difusas de gás, sobre as quais os movimentos de atração gravitacional e rotação começam a agir lentamente. Esses movimentos descoordenados causam instabilidades nas duas esferas, criando regi­ões mais densas do que outras e, assim, essas regiões “densificadas” exercem maior atração gravitacio­nal sobre a matéria à sua volta. Então, dá­se a mistura e, pelo movimento espiralado, nasce a galáxia.

O mais interessante é que a matéria escura representa, segundo os cientistas responsáveis por esses modelos, noventa por cento da matéria total da galáxia e é invisível, por isso não se sabe ainda a sua composição. Sabe­se que ela existe pela ação que imprime à matéria comum das estrelas – fei­ta de átomos com prótons, nêutrons e elétrons, tal como a que compõe o ser humano – conferindo­lhe, pela ação gravitacional irregular, a forma de uma espiral a girar, um redemoinho cósmico.

Não pude deixar de associar a matéria escura à força estranha que Deleuze chama de virtual e que está aqui, a todo momento, imprimindo velocidade ao atual – a matéria comum? – dando­lhe a mágica do futuro como forma inédita de existência, sempre por meio de conexões inesperadas.

Voltando ao Burrinho, tenho a matéria narrada: a Fazenda da Mata; a serra; a coxia de Sete­de­Ouros; a boiada; os cavalos e os vaqueiros. Além disso, tenho algo a estabelecer conexões, adensan­do aqui e ali a matéria narrada, de forma a fazê­la ganhar velocidade. Nos adensamentos desse algo aparecem os deslocamentos da boiada, dos cavalos e do Burrinho; o amor de Badu pela moça “meio caolha”; o ódio de Silvino; a chuva; o rio; a enchente; a morte. Há, porém, um momento em que Sete­de­Ouros, com o seu modo de estar no mundo, obedecendo a um movimento externo, ao ritmo do fora, contra o qual nunca se insurge, mescla­se à matéria escura, a esse algo móvel e potente que dá corpo ao acontecer das coisas. No momento de atravessar a mãe do rio – a barriga da cobra – Sete­de­Ouros é o rio; não se opõe a ele e salva a si mesmo, a Badu e a Francolim.

E ali era a barriga faminta da cobra, comedora de gente; ali onde findavam o fôlego e a força dos cavalos aflitos. Com um rabejo, a corrente entornou a si o pessoal vivo, enrolou­o em suas roscas, espalhou, afundou, afogou e levou. Ainda houve um tumulto de braços, avessos, homens e cavalgaduras se debatendo. [...] E Sete­de­Ouros, sem susto a mais, sem hora marcada, soube que ali era o ponto de se entregar, confiado, ao querer da correnteza. Pouco fazia que essa o levasse de viagem, muito para baixo do lugar da travessia (ROSA).

Por meio do recurso do sumário, o narrador dá a conhecer, nos primeiros quatro parágrafos do conto, a origem, atual estado e fatos relevantes da vida de Sete­de­Ouros. Sem iniciar a ação, priori­zando a cena, o narrador apresenta a boiada; primeiro, suas cores – as mais achadas e impossíveis –; depois, o movimento – correntes de oceano, rodando remoinhos –; a forma diversa dos cornos.

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24 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Neste mundo prenhe de determinações, a linguagem precisa também se potencializar sem rega­teios; o narrador não se intimida diante dos limites da dicção do mundo e seu discurso espraia­se deleitosamente pelas coisas, como que a propor estranhos contatos entre palavra e coisa. Contato pautado sempre pelo excesso concentrado; esse discurso voraz persegue inexoravelmente o sen­tido e não lamenta a perda; antes se vangloria através da adição de significantes, como a cercar incansavelmente algo que está aí, mas onde? E a perseguição continua: “E o Major Saulo indicava, mesmo na beira do estacado, um boi esguio, preto­azulado, azulego; não: azul asa­de­gralha, água longe, lagoa funda, céu destapado – uma tinta compacta, despejada de chanfro às sobre­unhas e escorrendo, de volta, dos garrões ao topete – concolor, azulíssimo.” (ROSA).

A ação encadeia­se de modo a conectar eventos que o acaso organiza numa lógica caótica; demoníaca, pois tudo no sertão é redemoinho: o corisco promove o movimento dos bois na ma­nhã noiteira da Fazenda da Mata; o movimento dos bois excita os cavalos; os cavalos desalojam o Burrinho; o Burrinho segue até as proximidades da varanda e é visto e lembrado. Sete­de­Ouros é todo potência e força não usada. Na espiral dos acontecimentos, ele tem a sabedoria de deixar que o movimento do mundo o envolva sem desperdício de vã oposição.

Deleuze diz, ainda a propósito de Kafka (DELEUZE; GUATTARRI), que é um único e mesmo dese­jo, um único e mesmo agenciamento que se apresenta como agenciamento maquínico de conteú­do e agenciamento coletivo de enunciação. A máquina da boiada é um agenciamento de conteúdo e, como todo agenciamento, não tem somente duas faces, ele se compõe de segmentaridades que se estendem sobre vários segmentos contíguos, ou se dividem em segmentos que são por sua vez agenciamentos.

A boiada como agenciamento de conteúdo, com seus bois de diferentes cores; movimentos díspares; cornos variados e reações imprevisíveis. Essa máquina tem seus segmentos de poderes e territórios; capta o desejo, fixa­o, territorializa­o. Quando decide mover­se de sua coxia para um espaço de maior tranqüilidade, o Burrinho experimenta o funcionamento dessa máquina:

Passa rente aos bois­de­carro – pesados eunucos de argolas nos chifres, que remastigam, subalternos, como se cada um trouxesse ainda ao pescoço a canga, e que mesmo disjungidos se mantêm paralelos, dois a dois. Corta ao meio o grupo de vacas leiteiras, já ordenhadas, tranqüilas, com as crias ao pé. E desvia­se apenas da Açucena. Mas, também, qualquer pessoa faria o mesmo, os vaqueiros fariam o mesmo, o major Saulo faria o mesmo, pois a Açucena deu à luz, há dois dias, um bezerrinho muito galante, e é bem capaz de uma brutalidade sem aviso prévio e de cabeça tor­ta, pegando com uma guampa entre as costelas e a outra por volta do umbigo, com o que, contado ainda o impacto da marrada, crível é que o homem mais virtuoso do mundo possa ser atirado a seis metros de distância, e a toda a velocidade, com alças de intestino penduradas e muito sangue de pulmão à vista (ROSA).

É preciso dizer, no entanto, que o agenciamento maquínico da boiada, ou a máquina­boiada, tem também suas pontas de desterritorialização ou linhas de fuga, por onde ele mesmo – o agencia­mento boiada – foge ou deixa passar suas enunciações ou expressões que desarticulam o funciona­mento da máquina, deformando­a ou metamorfoseando­a. No fragmento abaixo, está­se diante da boiada agora metamorfoseada, eu diria até, contaminada, por sentidos outros que escaparam do agenciamento de conteúdo fixo, propondo desterritorializações alucinantes de sentido:

Alta, sobre a cordilheira de cacundas sinuosas, oscilava a mastreação de chifres. E comprimiam­se os flancos dos mestiços de todas as meias­raças plebéias dos campos­gerais, do Urucuia, dos tombadores do Rio Verde, das reser­vas baianas, das pradarias de Goiás, das estepes do Jequitinhonha, dos pastos soltos do sertão sem fim. Sós e seus de pelagem, com as cores mais achadas e impossíveis: pretos, fuscos, retintos, gateados, baios, vermelhos, rosilhos, barrosos, alaranjados; castanho tirando a rubros, pitangas com longes pretos; betados, listados, versicolores; tu­

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25|O valor na literatura

rinos, marchetados com polinésias bizarras; tartarugas variegados; araçás estranhos, com estrias concêntricas no pelame – curvas e zebruras pardo­sujas em fundo verdacento, como cortes de ágata acebolada, grandes nós de madeira lavrada, ou faces talhadas em granito impuro (ROSA).

As linhas de fuga ou pontas de desterritorialização possibilitam que o agenciamento se estenda ou penetre em um campo de imanência ilimitado (DELEUZE; GUATTARI); nesse campo o agenciamen­to de enunciação – no caso de Guimarães Rosa, sua linguagem em estado de florescência – age sobre o conteúdo de modo a formar a espiral. É na própria boiada, é no rio mesmo que a máquina do desejo atua. Não há transcendência, mas imanência. A boiada torna­se cordilheira em movimento e o rio uma serpente gigantesca a bater cauda engolindo aquilo que envolve em espiral.

Não existe nenhum desejo, diz Deleuze, que não flua em um agenciamento e, para ele, o dese­jo sempre foi um construtivismo, construir um agenciamento, um agregado: o agregado da saia, de um raio de sol, de uma rua, de uma mulher, de uma vista, de uma cor... construir um agenciamento, construir uma região, juntar. O agenciamento, então, diz respeito a fenômenos físicos, e para que um evento ocorra, algumas diferenças de potencial devem surgir, como um clarão ou uma corrente, de forma que o domínio do desejo é construído. Assim, toda vez que alguém diz eu desejo isto ou aquilo, aquela pessoa está no processo de construir um agenciamento, nada mais do que isso, o desejo não é nada mais do que isso.

Estudos literários1. Quais as instituições autorizadas histórica e socialmente pelo estabelecimento dos clássicos na

literatura?

a) Internet e televisão.

b) Crítica e escola.

c) Escola, universidade e imprensa.

d) Imprensa.

e) Escola.

2. Apresente uma breve definição de cânone literário.

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26 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

3. A partir de que período histórico a literatura passa a ser compreendida como criação artística e não mais associada a todo e qualquer conhecimento?

a) Século XX.

b) Século XVI.

c) Século XII.

d) Século XVIII.

e) Século I.

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Natureza do fenômeno literário

Marta Morais da Costa*Para tratar da natureza do fenômeno literário, convém lembrar que ele é uma criação histórica,

ideológica e mutante. Isso se deve a vários fatores: o primeiro deles diz respeito à idéia que se faz sobre a constituição do que seja um texto literário, que resulta em uma unidade completa e polissêmica. Para tanto, convém analisar a natureza do texto literário para que seja possível estabelecer alguns parâme­tros de avaliação e julgamento.

Os conceitos do discurso literárioOs sentidos atribuídos ao termo literatura variaram ao longo da história e apresentam variáveis

em cada leitor. As diferentes acepções do termo não se referem apenas ao caráter singular de cada indi­víduo ou de cada época histórica. São inerentes à natureza do objeto que estudamos.

O texto literário se qualifica muito mais pelas diferenças que apresenta quando comparado aos não­literários do que por seu próprio e mutável modo de ser. Portanto, tratar de textos literários implica conhecer as infinitas nuances que eles vão assumindo na obra de um mesmo autor, nos autores de uma mesma geração, na sucessão de autores, obras e épocas literárias e artísticas.

Apesar da dificuldade decorrente dessa mutabilidade, é possível verificar que algumas caracte­rísticas permanecem ao longo do tempo. É sobre essas qualidades permanentes que este capítulo vai discorrer.

Manuel Bandeira (1886­1968), poeta brasileiro, escreveu no poema “Testamento” a seguinte estrofe:

* Doutora e Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciada em Letras Português–Francês pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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[...] Vi terras da minha terra, Por outras terras andei. Mas o que ficou marcado No meu olhar fatigado, Foram terras que inventei. [...] (BANDEIRA, 1970)

É possível encontrar nesses poucos versos uma das razões da existência da literatura: ver terras, andar por espaços reais deixam marcas no ser humano viajante, mas o que realmente tem importân­cia é a invenção, aquilo que, se não existe em algum lugar, existe no desejo do escritor. E é o fato mais importante, mais real do que a própria realidade. Essa condição de criação de realidades, a partir de es­tímulos do concreto, do referencial, do observável, é a condição básica da literatura. Mesmo que esteja lastreada no real, é pela capacidade de recriação, de refeitura, de tradução em palavras que o mundo ganha existência.

Mais concretamente, a literatura se apóia necessariamente em cinco elementos indispensáveis: um autor, um leitor, um texto, uma língua e um referente (COMPAGNON, 1999). Essa associação é a base de qualquer reflexão teórica, que pode tratar do todo ou de partes específicas de cada um desses elementos.

Do ponto de vista da autoria, é cada vez mais freqüente a separação entre a biografia do autor e o texto literário que escreveu. Roland Barthes, em artigo de 1968, intitulado “La mort de l’auteur” (A morte do autor), trata o produtor do texto como um “personagem moderno”, encarnação do indivíduo burguês, contaminado pela ideologia do capitalismo, o proprietário do texto (COMPAGNON, 1999). Para Barthes, deve­se levar em consideração a linguagem, impessoal e anônima, portanto valorizando mais a transformação do escritor em discurso, isto é, numa organização textual histórica e ideologicamente marcada na linguagem. É com linguagem que o leitor conhece o autor. Portanto, o que ele viveu e pen­sou na sua realidade pessoal pode não ter originado ou aparecer na íntegra naquilo que escreveu e no assunto ou tema de que tratou. Cabe ao leitor compreender no texto o que ele diz, independentemente das intenções do autor. O new cristicism norte­americano considerava a relação texto–intenção do autor como intentional fallacy, ou “ilusão intencional” ou “erro intencional”. Em 1969, o filósofo Michel Foucault na conferência “Qu’est­ce qu’un auteur?” (O que é um autor?) também tratou dessa questão e concluiu que a atividade do leitor pode acontecer mesmo que ele nada saiba sobre o autor e suas intenções. O foco principal da literatura é o texto: dele sairão os sentidos, as relações do interior do texto e do texto com os demais textos da realidade.

Quanto ao leitor, seu lugar é o da compreensão e da interpretação do discurso literário. A evo­lução histórica da importância atribuída ao papel do leitor demonstra que houve, a partir da segunda metade do século XX, a valorização cada vez mais intensa de sua atividade. Surge em 1967, no discurso de Hans Robert Jauss, na abertura do ano letivo da Universidade de Constança, na Alemanha, a “estética da recepção”, uma corrente da teoria que reavalia a história da literatura a partir dos modos de ler e do desempenho interpretativo do leitor. O aspecto mais significativo dessa teoria é o de que o texto já con­tém, na sua organização verbal, a pressuposição do trabalho do leitor. Em outras palavras, ao escrever a obra o autor já visualiza sua recepção, já compõe no próprio texto literário uma figura de leitor, prevê as reações dele no modo como descreve, por exemplo, uma cena romântica, ou de suspense, ou de humor. Há, quando se considera a organização verbal da obra, um certo controle sobre o modo como o leitor entenderá o texto e reagirá a ele. Esses componentes de previsão da recepção do texto, outro teórico da “estética da recepção”, Wolfgang Iser (1996), denominará “leitor implícito”.

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A linguagem como distinção entre discurso literário e não-literárioQuanto ao componente “língua” de uma obra literária, Compagnon explica que, mesmo em se

tratando de neologismos, o texto literário somente será compreensível se houver um conhecimento lingüístico mais ou menos comum aos dois sujeitos do diálogo literário: o autor e o leitor. Mais do que uma compreensão lingüística do texto (sintaxe, léxico, morfologia, semântica), o discurso literário fará uso subversivo das normas da língua, buscando a expressão que melhor se ajuste à rede de sentidos que o texto quer criar. Rede que terá como objetivo a recriação da língua cotidiana, o estabelecimento de patamares poéticos, que criam uma camada mais densa de significados e, principalmente, coloca esses significados em uma proposital rede de relações semânticas hiper­significativa.

Ah! toda alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza. (CRUZ E SOUSA, 1981)

Nesse fragmento de poema de Cruz e Sousa, pode­se observar como a descrição da natureza físi­ca (trevas, mares, estrelas, tardes) não se referem a sua forma concreta, mas devem ser entendidas como metáforas, figuras que apontam para modos de ser íntimos, da alma. Entre as palavras ali apresentadas, também se observa uma relação de correspondência de sentidos: as trevas da noite são as trevas da alma (a dor, o sofrimento, a angústia e outros). O calabouço é mais a prisão do corpo, que evita que a alma possa subir às imensidades do espírito.

A linguagem cotidiana visa mais a ação e a informação, para atingir o nível da compreensão, mas dificilmente pede atitude interpretativa, como o faz sempre a literatura.

Vejamos como isso ocorre em textos concretos.

A mesma engenharia que encurtou assombrosamente as distâncias entulhou o mundo com automóveis que atra­vancam as vias expressas e cuja fumaça promete esturricar o planeta. Na tentativa de compreender os mistérios que permeiam uma estranha economia na qual mais e menos não se anulam, muitos se puseram a analisar seus eventos capitais – especialmente a Segunda Guerra Mundial, aquele que talvez seja o mais importante dos acontecimentos do século XX. (CASTRO, 2007)

As informações fornecidas são o objetivo principal do texto: as conseqüências negativas do avan­ço tecnológico, a existência de pesquisadores que tentam compreender o fenômeno, a Segunda Guerra Mundial, como acontecimento histórico importante.

Outra é a intenção de Carlos Drummond de Andrade ao enfocar o mesmo momento histórico quando escreve “Carta a Stalingrado”, sobre um dos episódios épicos, heróicos da Segunda Grande Guerra: a resistência extrema, até a total destruição da cidade de Stalingrado (hoje Volgogrado), para não se render ao exército alemão nazista.

Stalingrado... Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades! O mundo não acabou, pois que entre as ruínas Outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora, E o hálito selvagem da liberdade Dilata os seus peitos que estalam e caem Enquanto outros, vingadores, se elevam.

A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. Os telegramas de Moscou repetem Homero.

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Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo Que nós, na escuridão, ignorávamos. [...] (ANDRADE, 1971, p. 130)

Mais do que o assunto, o que sobressai é a seqüência de imagens com intenção de exaltar o foco de resistência (“homens, a face negra de pó e de pólvora”), a poética metáfora (“o hálito selvagem da liberdade”), o conflito em imagens de morte e vida, contraditórias e humanas (“seus peitos que estalam e caem” opostos a “outros, vingadores, se elevam”), a sonoridade do jogo de palavras (pó e pólvora) e a seqüência de verbos que dinamiza o verso (estalam, caem, elevam). Esses procedimentos comprovam que o texto busca outros efeitos que não são apenas os de informar o leitor.

Além dessas qualidades, a percepção de que a literatura de teor lírico e estético recua ante o hor­ror da guerra, substituída pelo texto não­literário do jornal, mais objetivo e informativo.

Vemos, portanto, na comparação entre os dois textos, aparecerem características e funções dife­rentes que permitem compreender que a literatura tem uma natureza própria e uma função que ultra­passa a notícia ou fato, obrigando o leitor a interpretar o que lê, não apenas a conhecer o assunto de que o texto trata. Essa diferença exemplifica bem a afirmação de que a “literatura é tradicionalmente uma arte verbal”.

É exatamente nas palavras – no verbal – que podemos encontrar e valorizar o caráter estético da literatura. A linguagem entendida como “todo sistema de comunicação que utiliza signos organizados de modo particular” no dizer do lingüista Iuri Lotman ( apud PROENÇA FILHO, 1986). A língua é um siste­ma de signos e a linguagem é uma atividade produzida pelo falante­escritor sobre esse sistema. Portan­to, a investigação sobre a natureza da literatura não pode, em hipótese alguma, ignorar a atividade do escritor sobre o sistema da língua. É na linguagem que se revela a qualidade do texto literário. É dessa atividade, exercida de modo pessoal e particular, que se forma o estilo individual de cada escritor.

Pode­se concluir que uma das distinções entre o discurso literário e o não­literário é que o primei­ro, enquanto objeto lingüístico, está apoiado na conotação, na plurissignificação (em que os sentidos se multiplicam pela força da interpretação do leitor), enquanto o texto não­literário é monossignificativo, de sentido mais fixo e comum a todos os leitores.

A literatura enquanto criação: o autor e o leitorA partir do século XIX, o critério de valoração do texto literário recebeu impulso com a defesa da

idéia de que a busca do novo era um padrão indispensável aos textos denominados literários. As no­ções de criatividade, individualidade e subjetividade introduzem o pensamento de que o texto literário somente mereceria valor se apresentasse qualidades de inovação.

O autorO caráter criativo do texto literário decorre do exercício de liberdade do artista, seja na questão da

linguagem e da multiplicação dos sentidos, seja porque, por estar inserida em uma cultura, a literatura realiza um movimento duplo de respeito à tradição cultural dos povos e a busca de romper com essa tradição, instaurando o novo, o diferente, o incomum.

Essa perspectiva dialética pode ser conferida na sucessão dos estilos de época – ou períodos literários ou tendências estéticas – ao longo da história. Eles correspondem às respostas que a arte li­

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terária foi atribuindo ao modo diferente de interpretar o mundo, próprio de cada época histórica. Esse movimento contínuo e motivado pela necessidade e pela urgência de dar respostas aos desafios do cotidiano, às manifestações do pensamento e aos impulsos do inconsciente e do imaginário, produz o aparecimento de diferentes gêneros literários, de diferentes modos de expressão narrativa e poética, de diferente entendimento das funções da literatura, de alterações substanciais dos modos de escrita e organização dos textos literários.

A criação literária não é, portanto, apenas um desejo individual do escritor, mas está relacionada à ideologia, às condições de produção, às mudanças nas expectativas do público leitor, ao papel do es­critor na cultura, às necessidades humanas de expressão, à capacidade reflexiva dos criadores.

No início do século XIX, o movimento artístico do Romantismo opôs­se ao Neoclassicismo do perí­odo anterior, não pela necessidade de renovação simplesmente, mas porque o Neoclassicismo não con­seguiu mais responder aos anseios da sociedade industrial nascente, à nova percepção da natureza – seja física, seja emocional – da sociedade burguesa, que ascendia ao poder. A linguagem literária romântica manifesta o desejo de liberdade dessa outra visão de mundo (cosmovisão), exigindo a quebra dos pa­drões da língua e da linguagem figurada, almejando uma sintonia maior com a emergência das novas nacionalidades políticas, da curiosidade por outras terras, culturas e épocas históricas. O Romantismo não apenas reage a essas alterações externas, como também cria uma nova sensibilidade, mais emotiva, mais questionadora, menos acomodada à tradição, como ficou comprovado na influência exercida pelo romance As Aventuras do Jovem Werther, de Goethe (1785), que incentivou, sem o querer, uma seqüência trágica de suicídio de jovens, identificados e se reconhecendo no personagem Werther. O Romantismo criou uma literatura que, por força da repetição de padrões ao longo dos anos em que teve vigência, formou a sensibilidade emotiva e rebelde que passou a identificar artistas, leitores e escritores no século XIX. Tome­se o exemplo de Byron, Victor Hugo, Musset, Álvares de Azevedo e Castro Alves.

O leitorA literatura considerada fenômeno artístico de criação não afeta exclusivamente o artista criador,

mas estabelece exigências também quanto ao processo de sua recepção pelo leitor. Devido à associa­ção necessária entre autor e leitor (é o leitor que dá vida à obra literária, pois um livro não lido existe somente enquanto um objeto), qualquer alteração inovadora nos padrões tradicionais da escrita lite­rária acaba se refletindo na mudança de sua forma de recepção. A quebras das normas da tragédia clássica francesa do século XVII com a representação do “Le Cid” (1636), de Pierre Corneille, deu origem à longa “Querela dos Antigos e dos Modernos”(1653­1715), uma polêmica travada entre os intelectuais franceses partidários da escrita clássica e os que acreditavam na alteração dos padrões dessa escrita, defendendo a modernidade.

Da mesma maneira, o século XX foi pródigo em manifestos e explicações sobre novas maneiras de escrever e ler a literatura; entre eles, o Futurismo (1910), o Cubismo (1924), a Poesia Pau­Brasil (1924), a Poesia Concreta (1956).

A quebra dos padrões tradicionais da leitura afeta o que a estética da recepção (1967), corrente da Teoria Literária que estuda a leitura e os modos de ler, denomina “horizonte de expectativas”, isto é, modos de ler aprendidos ao longo de experiências anteriores de leitura de textos formam um modo pessoal de ler. O leitor compreende romances, por exemplo, a partir da aprendizagem construída em experiências de leituras anteriores de textos semelhantes. Em cada novo texto, o leitor pretende aplicar seus conhecimentos e ser bem sucedido na tarefa, aplicando padrões de leitura conhecidos. Quando

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o texto é inovador, o leitor reage com desconfiança, insegurança, curiosidade ou recusa. Há, portanto, da parte do leitor, a necessidade de ajustes do “horizonte de expectativas” diante dos textos criativos. Uma obra de criação que propõe um “estranhamento”, termo com que caracterizavam a literariedade os Formalistas Russos no início do século XX, também tem que ser entendida como estranha pelo leitor. Assim, o ciclo da criação se completa e se efetiva.

O discurso literário: característicasDepois das explanações sobre a conceituação de literatura como uma arte que se desenvolve na

linguagem e das preocupações do autor com a precisão dos termos e a escolha dos efeitos que possam vir a ser provocados no leitor, convém estudarmos de modo aproximativo como se verificam na lingua­gem os procedimentos que formam a literariedade de um texto.

Características do discurso literárioPara Domício Proença Filho (1986), a distinção entre discurso literário e não­literário passa por um

conjunto de características interdependentes. Para esse pesquisador, a literatura se manifesta como tal por agregar complexidade, multissignificação, predomínio da conotação, liberdade na criação, ênfase no significante e variabilidade.

A complexidadePor complexidade, Proença Filho entende a capacidade da literatura ultrapassar a reprodução da

realidade e atingir “espaços de universalidade”. Para tal, a literatura obedece a um duplo movimento: debruça­se sobre si mesma, pensando e expressando seu modo de fazer e criando essencialmente um “puro objeto de linguagem”. Nesse caso, o mundo e sua realidade são traduzidos em forma de palavras e papel, formando uma outra realidade com leis e regulamentos próprios, os da poética.

O segundo movimento se relaciona com a capacidade da literatura expressar e questionar o mun­do exterior. Esse poder de representação, denominado mimese1, demonstra a ligação do artista­escritor com a realidade do mundo exterior e da interioridade das pessoas. Essa ligação tende a ser represen­tada pelo discurso literário, que funciona como resposta às grandes questões, dúvidas e perturbações da vida.

MultissignificaçãoTambém denominada em alguns outros estudos como plurissignificação. Domício Proença quer

entender como tal a força da literatura para criar e amplificar tanto os significantes (por exemplo, a pa­lavra enquanto letras e sons) e os significados (isto é, as idéias que as palavras expressam). A literatura proporciona desvios “mais ou menos acentuados em relação ao uso lingüístico comum”.

1 Termo utilizado por Aristóteles na obra Poética, do século V a.C., com o significado de “imitação”.

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Para a potencialização do caráter multissignificativo do discurso literário contribuem as relações estabelecidas pelo texto com o âmbito sociocultural, o momento histórico, a relação com “espaços míticos e arquetípicos” da tradição da língua e da arte. Essa intervenção no status da língua produz uma desaco­modação dos sentidos e permite que sejam várias e múltiplas as interpretações para um mesmo texto.

Predomínio da conotaçãoQuanto ao predomínio da conotação, a reflexão de Proença Filho se detém a expor o quanto a lin­

guagem literária transcende o sentido informativo para atingir o nível poético e estético da linguagem, sem que a informação ou a poeticidade existam separadamente. O escritor simultaneamente trata da realidade e a ultrapassa para mostrar o quanto a linguagem pode criar sentidos superiores de significa­ção e beleza.

A liberdade de criaçãoEssa qualidade diz respeito à ruptura de normas historicamente estabelecidas pelo discurso lite­

rário. A inserção de novas formas de dizer, muito mais do que a introdução de novos assuntos, desloca os marcos da história da literatura. Cada escritor que renova a literatura, faz com que o todo do sistema seja repensado e realocado.

O novo também desacomoda o leitor e traz a possibilidade de alterações posteriores na literatura de uma época, quando os seguidores do criador original se põem a imitar, no todo ou em partes, a arte do mestre.

A ênfase no significanteNovamente, retorna a discussão sobre a importância da linguagem no texto literário. A criação

verbal está relacionada diretamente à potencialização dos recursos lingüísticos colocados à disposição do escritor: o som, o desenho da letra, a musicalidade da frase, a ambigüidade e multissignificação de palavras e frases, as relações semânticas estabelecidas pela rede de palavras em correspondência e en­tre partes diferentes do texto, a exploração semântica de alterações sintáticas e outros mais. A poesia, mais do que as narrativas, explora esses recursos lingüísticos.

“Pálida à luz da lâmpada sombria” é um verso de um dos sonetos sem título do poeta brasileiro Álvares de Azevedo. Nele, a repetição da letra e do som do grafema/fonema “l” acentua a cor tênue do rosto e da luz artificial, ajudando a criar um clima fantasmagórico e de sonho, de realidade atenuada, que será fundamental para o entendimento de todo o poema. Recai, portanto, sobre o som e a letra o reforço semântico do verso: o significante torna­se ainda mais material e importante.

VariabilidadeA noção de variabilidade integra indissociavelmente o modo de ser da literatura e diz respeito

às mutações que o discurso literário e seu entendimento sofreram e sofrem em diferentes culturas e épocas, e na mesma cultura em diferentes épocas da História. A noção de literatura como discurso com

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características específicas e próprias somente surge no século XIX. Até essa época, poesias e narrati­vas integravam os escritos culturais, indistintamente. “Antes de 1800, literatura e termos análogos em outras línguas européias significavam ’textos escritos’ ou ’conhecimento de livros’. (...) Eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas exemplares de escrita e pensamento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia” (CULLER, 1999).

A variação do conceito de literatura se apóia tanto nas mudanças formais quanto na sua repre­sentatividade dentro da(s) cultura(s).

Vimos, portanto, neste capítulo, como a literatura se apresenta enquanto construção lingü­ística e discursiva diferenciada dos demais textos da cultura, a sua relação com a idéia de criação e receptividade e quais as características apresentadas pelo discurso literário para se tornar distinto dos não­literários.

Texto complementar

O livro, seu valor e a análise literáriaBeleza, estilo, modernidade, relação com a vida... A que deve se apegar o crítico?

(TEIXEIRA, 2006)

Há muitos critérios pelos quais o leitor produz o sentido de um texto. A história da crítica lite­rária, nessa acepção, será o conjunto de transformações dos métodos e técnicas para a construção do sentido. Por livro pode­se entender o objeto que o autor escreveu; por trabalho de arte, o mo­vimento das imagens desencadeadas pelo ato de leitura. Ler é formular hipóteses sobre o modo correto de transformar o livro em obra de arte. Assim, o conhecimento do livro arremata a produção iniciada pelo artista. As obras de arte não existem sem enquadramento num sistema de referência interpretativa. Falar de uma obra não é falar apenas dela, mas dos sentidos que se agregaram a ela ao longo de sua existência como artefato verbal e como evento cultural. A história de um livro é a tradição de sua leitura. Nesse sentido, toda obra apresenta­se como palimpsesto. Dom Casmurro não foi escrito exclusivamente por Machado de Assis, mas por todos aqueles que procuraram dis­cutir seu sentido a partir da estrutura oferecida pelo autor para que a história a fecundasse com as diversas hipóteses de inclusão ou exclusão semântica.

O valor de um livro será diretamente proporcional à força da obra liberada por ele, a qual de­correrá das imprevisíveis operações que constituem os atos de assimilação e interpretação. A inten­ção do autor não se comunica senão como índice abstraído das configurações do texto, que poderá produzir maior ou menor número de imagens no universo mental do leitor. Como fenômeno de comunicação, o sentido, apenas latente na face muda do livro sem leitura, depende do leitor, que promoverá as necessárias associações daquele objeto com as imagens e os conceitos de sua expe­riência intelectual e existencial. Conhecer a crítica é dominar o repertório das relações impostas ao leitor, as quais, obedecendo à configuração retórica do texto, oscilam conforme as convicções de

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cada momento. Assim, um só livro poderia, em princípio, conter toda a história da literatura, posto que muitas poderão ser as alterações de seu significado ao longo dos tempos. A percepção crítica de um livro não foge, teoricamente, à esfera de conhecimento de qualquer objeto, enquadrando­se, portanto, no horizonte da física e da gnosiologia. Se a percepção artística consiste na transfor­mação de estímulos físicos em noções abstratas e se é difícil caracterizar com precisão o valor da mesma coisa em diferentes sociedades, mais difícil será, por certo, determinar as razões da estima de objetos polissêmicos, seja um texto literário, um filme, uma pintura ou uma música.

Tradicionalmente, a produção do sentido artístico de um texto decorre da aproximação dele com a idéia de beleza, donde resulta a dimensão de seu valor. Segundo uma visão consagrada, as coisas apresentam qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias não sofrem variação no processo de seu conhecimento, mesmo que se alterem as condições de percepção. As secun­dárias sofrem alteração de acordo com a mudança das circunstâncias em que são percebidas. No escuro, não se alcança a cor de uma folha verde. O valor artístico de um objeto será, então, enten­dido como qualidade secundária, pois depende intrinsecamente da situação de conhecimento e de juízo. Se a própria física tende a considerar o cérebro humano como componente necessário ao conceito de cor, o mesmo deve ser pensado sobre o conceito de belo e de valor artístico, que, pela perspectiva interativa, serão sempre noções relativas e dependentes de repertórios e de padrões histórico­sociais que integram a poética cultural dos diversos períodos.

Existem críticos que valorizam o livro a partir da observação de traços de estilo e de recor­rências temáticas que se deixam interpretar como projeção da personalidade do autor. Conhecido como método psicológico, esse procedimento associa biografia e arte, concebendo, não raro, o ar­tista como um ser doentio, para quem a atividade criadora funciona como sublimação de distúrbios pessoais. Atenuando a função da imaginação no processo criativo, tal pressuposto oferece o risco de descaracterizar o poder de escolha na arte, pois conduz a atenção do crítico para aspectos incons­cientes da criação. Vinculado a este seria o critério daqueles que, no livro, procuram marcas da alma coletiva, concebida como essência da nacionalidade. Denominada romântica ou nacionalista, tal hi­pótese notabilizou­se pela sistematização tradicional do estudo da Literatura Brasileira, que passou a ser dividida em Período Colonial e Nacional. Pode ser considerada variante do mesmo princípio a linha de investigação conhecida como crítica ideológica, que examina possíveis vestígios de classe social na configuração do texto artístico. Por não levar muito em conta a história das formas literárias e suas dimensões intrínsecas, essa diretriz expõe­se ao risco de atribuir à ideologia de classe o que pode pertencer ao gênero artístico. Tal seria, por exemplo, o caso de uma análise que interpretasse o estilo digressivo do narrador de um romance do Segundo Reinado brasileiro como traço da elite escravista do período.

Há também os críticos que procuram a identidade do texto com certo espírito geral da huma­nidade. Segundo eles, existiriam algumas constantes universais que independem de lugar e tempo, captadas somente por grandes artistas. Uma das dificuldades desse tipo de crítica consiste em que ela interpreta as assimilações de uma cultura por outra como manifestação da onipresença da natu­reza humana, que desconhece a noção de geografia e de história e que, portanto, surge com igual força tanto em comunidades primitivas quanto em comunidades desenvolvidas. Ao eleger tal no­ção como categoria de valor, essa abordagem procura, na prática, aproximar literaturas tidas como menores daquelas que estabelecem o padrão de qualidade europeu. O adjetivo universal tornou­se tão previsível nessa área, que, em vez de descrever qualquer qualidade objetiva do livro, indica,

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antes, carência de vocabulário crítico. Outra hipótese valorativa muito difundida é a que se detém no grau de realismo das obras, procurando nelas a fidelidade com que se retratam os homens em sua circunstância social e existencial. Essa posição encontra obstáculo na suposição de que a idéia de realidade, não importa a forma que possa assumir, impõe­se como principal objetivo de todos os artistas e tendências. Mesmo aqueles que valorizam o tema da interioridade, da fantasia e do sonho fazem­no em nome de presumíveis verdades essenciais do indivíduo. O brutalismo de Graciliano Ramos também se justifica como apego à noção de existência, entendida tanto em dimensão social quanto psicológica. Assim, o princípio da veracidade, sendo comum à vasta maioria dos artistas e períodos, pode mostrar­se ineficaz na análise valorativa de obras particulares.

Existe ainda a leitura que valoriza a arte pelo critério de atualidade. De acordo com ela, há ar­tistas dotados de poder divinatório, no sentido de fazer em seu tempo o que será consagrado em tempos futuros, propriedade algo metafísica que os torna antecipadores de formas e temas tidos como ótimos na história da arte. Assim, o melhor escritor seria aquele que, superando o diálogo com os contemporâneos, adiantasse possíveis códigos futuros. É corrente o princípio de que certos autores ou tendências preparam a constituição de outras tendências e autores, o que se patenteia pela adoção do prefixo pré, relacionado a nomes de escolas ou indivíduos. Adota­se, nesses casos, o princípio de que uma unidade menos importante existe em função de outra de maior relevo, como se observa na designação pré­modernista aplicada a autores como Lima Barreto ou Monteiro Loba­to, cuja principal função seria preparar as conquistas da arte associada a 1922.

Conforme os princípios interpretativos sumariamente apresentados acima, a obra de arte terá tanto mais valor quanto mais convincentemente exprima o ideal de perfeição, a psicologia indivi­dual, o espírito de um povo, os interesses de uma classe, a natureza humana, o homem em suas relações com a vida ou a idéia de modernidade. Apesar de desgastadas, tais hipóteses valorativas ainda se apresentam como modelos possíveis no Brasil. Em perspectiva atual, talvez fosse conve­niente entender o núcleo de suas respectivas matérias como construções culturais associadas ao Estado, à Escola, à Igreja, à Política ou à Ciência, instituições que estabelecem (e fazem correr como verdades mais ou menos naturais) o conceito de beleza, de eu, de nacionalidade, de ideologia, de humanidade, de sociedade e de atualidade, entre outros.

Segundo a visão aqui proposta, a obra de arte literária, sendo fato de linguagem ou ocorrência semiótica, será considerada como manifestação do discurso social de seu tempo, desde que enten­dido como categoria conceitual. Assim, a crítica deveria saber relacionar o discurso singular de um texto com a matriz discursiva de que ele extrai sua fala, estabelecendo homologias entre a configu­ração específica do livro e a generalidade dos enunciados que ela incorpora, seja para corroborar, ratificar, recusar ou criticar. O crítico atual não deveria, portanto, limitar­se à procura da possível identidade de um poema com o ideal de beleza, de uma imagem com seu autor, de um romance com seu povo, de um conto com a classe que o compôs, de um verso com a humanidade, de uma descrição com o objeto descrito ou de um autor com a antecipação de outro. Em vez de estabelecer esse tipo de relação, o crítico deverá, sobretudo, reconhecer na obra as estruturas artísticas externas de que ela se apropria ou com as quais dialoga, tais como a noção de gênero literário, de estilo, de formas, espécies, procedimentos, tradições e tópicas. Ao lado de inúmeros outros exemplos como esses, deve­se ter em conta, ainda, o debate cultural de que a obra participa e o conceito de pon­to de vista do emissor, que determina o tom da elocução e de cuja percepção depende a correta classificação da modalidade de imitação operada. Nesse sentido, seria igualmente desejável que o

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crítico conhecesse as doutrinas poéticas e os manifestos de escola, em que se sistematizam os diver­sos conceitos de arte, que, inevitavelmente, se alteram com o tempo. Oswald de Andrade, a partir de certo momento, deixou de gostar de Olavo Bilac; em compensação, o segundo negaria o estatuto de poeta ao primeiro.

Estudos literários1. Em grupo, selecione um tema (amizade, cultura, morte, amor, ambição etc.) e selecione três textos

literários e três textos de revistas ou jornais ou científicos. Compare o modo como tratam o tema. Discuta com seu grupo. Escreva as conclusões.

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2. Pesquise em livros de Teoria da Literatura, história cultural, artes e dicionários existentes na biblio­teca e em textos da internet diferentes conceitos para o termo literatura. Compare esses conceitos. Selecione os que lhe parecerem mais apropriados e faça um quadro, ou gráfico das ocorrências mais freqüentes. Comente os resultados em texto escrito.

3. Entreviste cinco pessoas sobre o sentido e a função que conferem à literatura. Reproduza as res­postas por escrito. Compare com as idéias expostas neste capítulo. Comente o resultado com seu grupo e por escrito.

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Gêneros literários: conceituação histórica

Marta Morais da Costa O estudo dos gêneros literários é fonte de permanente reflexão porque implica o convívio com

diferentes formas de escrever a literatura e de compreender as nuances dos diferentes gêneros ao longo da história, bem como com a mudança e transformação da escrita literária. Na contemporaneidade, a questão dos gêneros literários desperta muita polêmica, porque, após as sucessivas alterações e ex­perimentos, a literatura, hoje, admite uma pluralidade de formas e, sobretudo, uma intensa e múltipla mescla de gêneros, que resulta em mudanças profundas na clássica divisão em três gêneros (o lírico, o épico ou narrativo, e o dramático). Procuraremos, por essa razão, apresentar a evolução dos gêneros, a partir da visão clássica da Antigüidade, chegando até a conceituação contemporânea.

O que é gênero literário?As obras literárias apresentam semelhanças no modo como se apresentam discursivamente, em

suas estruturas, em suas finalidades ou nos efeitos pretendidos na sua leitura. Esses quatro aspectos (discurso, estrutura, finalidade e efeitos no leitor) concorrem para que os textos literários pertençam a agrupamentos distintos que os explicam e, simultaneamente, normatizam­nos e restringem­nos. As­sim, pode­se verificar como os poemas se assemelham formalmente, seja por conter rimas, por se divi­dir em estrofes, ou por sua extensão. Também os textos corridos, em prosa, podem ser agrupados por suas qualidades formais evidentes, como a extensão, o modo de narrar, a construção dos diálogos. São características observáveis de imediato. No entanto, outras podem ser de mais difícil localização. O es­tudo que verifica e classifica essas diferenças é o dos gêneros literários.

Em 1962, Wellek e Warren, no seu Teoria da Literatura, defendiam que uma definição de gênero po­deria ser “ [...] um agrupamento de obras literárias, teoricamente baseado tanto na forma exterior1, como

1 Metro e estrutura específicos.

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também na forma interior[...]2”. Existiriam, para eles, três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Cada um deles seria dividido em formas fixas, como a ode, o romance, a crônica, o soneto e outros mais.

A etimologia do termo está no latim generu(m) que, segundo Massaud Moisés (1997), significa família, raça. Já para Angélica Soares (1989), a palavra proveniente da mesma língua latina genus, -eris, significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Em qualquer das duas origens, pode­se perceber a idéia de agrupamento, de coletividade. Cremos ser esta a marca mais importante a ser considerada. Ao se tratar dos gêneros literários, será dado relevo ao conjunto de textos que apresenta características semelhantes.

Outro aspecto diz respeito ao caráter histórico desses agrupamentos. Isso quer dizer que, ao lon­go dos séculos, houve alteração na composição dos gêneros, nasceram novos e desapareceram alguns deles. O que indica uma natureza ligada à evolução do homem e da sociedade.

Deschamps afirmava que, “[...] para julgar a prosa, é preciso espírito, razão e erudição [...]; enquan­to que, para julgar a poesia é preciso o sentimento das artes e da imaginação e são duas qualidades ra­ras entre leitores e romancistas.[...]” (apud CHASSANG­SENNINGER, 1958). Essa concepção de exigências diferentes para formas diferentes de expressão literária – a prosa e a poesia – já indica que há diferenças de natureza entre elas: a primeira propõe um texto com maior racionalidade e a segunda usa preferen­cialmente a imaginação. No entanto, vamos encontrar exceções a essa visão generalista.

Os estudos críticos e também os valorativos servem­se dessas categorias ou espécies da literatura para avaliar e distinguir os textos. Um escritor, ao escrever, também se reporta (embora nem sempre com conhecimento acadêmico e teórico profundo) a essas espécies no momento de compor e as nor­mas que as regem funcionam como balizas, como marcas de direcionamento para o texto que está sendo criado. Há escritores e obras que, ao contrário, conhecendo as diferentes espécies, procuram desfazê­las, contradizê­las, renová­las ou rejeitá­las.

É o caso, por exemplo, da criação do drama romântico, quando Victor Hugo, no “Prefácio” da peça Cromwell, em 1827, recusa os modelos da dramaturgia dos períodos históricos anteriores (Neoclassicis­mo e Barroco) e propõe uma reformulação da tragédia clássica, defendendo o surgimento do drama, uma peça teatral autônoma que incluiria elementos da tragédia e da comédia, em atendimento à nova sociedade, ao homem renovado do Romantismo e à necessidade de uma forma de expressão diferen­ciada.Também é o caso da estética pós­moderna, a partir dos anos 1950, que defende a maior autono­mia das formas literárias, podendo haver, inclusive, em uma mesma obra a existência de dois ou mais gêneros. Assim, a narrativa (gênero épico) tem condições de incluir poemas (gênero lírico) e trechos dialogados, sem a presença do narrador (gênero dramático), além de outros gêneros textuais não­lite­rários como o jornal, a publicidade, verbetes de dicionário e até mesmo textos de outras linguagens, como o cinema, a fotografia, o desenho e outros.

Os gêneros literários são, portanto, formas textuais que se agrupam por similaridade e que, par­tindo de um núcleo comum, sofrem alterações, ao longo do tempo, em atendimento às necessidades de expressão dos escritores de diferentes gerações.

Para averiguar sua permanência, ou não, vamos verificar como se desenvolveu a história dos gê­neros literários.

2 Atitude, tom, finalidade – mais grosseiramente, sujeito e público.

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O conceito na Antigüidade Clássica e na Idade MédiaA primeira informação sobre a existência de gêneros literários vem do filósofo grego Platão (428

a.C ­ 347 a.C), que registrou no livro II da obra República (394 a.C.) a diferença entre o modo de construir a comédia e a tragédia – por imitação; os ditirambos3, pela exposição do poeta, e a poesia épica e textos afins, que apresentaria uma mistura das duas composições anteriores. Dessa tripartição, surgiriam mais tarde, respectivamente, o gênero dramático, o lírico e o épico, assim apresentados provavelmente no período do Romantismo no século XIX.

No entender de Angélica Soares (1989, p. 9):

Como Platão atribuísse às artes uma função moralizante, a classificação das obras literárias através de seu conceito de imitação (o poeta, como o pintor, operava um terceiro grau de imitação, pois imitava a obra do artesão que, por sua vez, já era imitação das formas singulares, imperecíveis e imutáveis, que compunham o Mundo das Idéias) serviria de base à condenação que faz aos poetas que, ao concederem autonomia à voz das personagens, em nada contribuíam para o projeto político de edificação de uma polis ideal.

Observamos nessa avaliação platônica sobre a função do poeta o quanto a poesia – e por exten­são a literatura – atua na sociedade como uma atividade à margem dos procedimentos e finalidades utilitárias, servindo a uma outra concepção de papel social. Ao mesmo tempo, essa perspectiva des­merecedora da arte poética acaba contaminando a criação literária, como até hoje podemos verificar quando costuma se opor às ditas ciências exatas (engenharia, arquitetura, matemática, economia) e às ciências do homem e à arte.

Os diferentes tipos e modos de representar a realidade através da arte nascem, portanto, sob o signo da exclusão e da marginalização social. Os gêneros literários nesse momento da história da hu­manidade são vistos apenas como critérios formais, já que a expressão artística é de pouco valor e fica reduzida a um exercício de imitação em terceiro grau, sem qualidade artística ou expressiva.

Um pouco desse preconceito foi combatido por Aristóteles (384 a.C. ­ 322 a.C.) que procurou atender a critérios mais apropriados ao objeto artístico e sistematizou melhor as formas literárias. Em sua obra Poética (que não chegou a concluir), ele se refere às seguintes formas: a epopéia, a tragédia, a comédia, o ditirambo, a aulética4 e a citarística5, privilegiando, porém, as três primeiras.

Além disso, Aristóteles retoma a idéia de que a arte consiste na imitação (mímesis ou mimese) e o prazer do leitor e do espectador está em reconhecer como o artista consegue representar bem até mes­mo o feio, o repugnante, o horrível. “A ênfase na diferença entre o mundo empírico e a realidade da arte leva o filósofo [Aristóteles] a valorizar o trabalho poético e a se voltar para o estudo de seus modos de constituição, a fim de detectar as diferentes modalidades ou gêneros da poesia” (SOARES, 1989, p. 10).

Aristóteles estabeleceu a diferença entre os gêneros baseadas nos meios com que imitam, nos objetos que imitam e na maneira com a qual imitam a realidade. Em relação aos meios, aponta o ritmo, o metro e o canto, empregados isolada ou conjuntamente. O teatro pode contê­los todos, mas não a epopéia ou a narrativa. Nesta, predomina o metro e o ritmo. Em relação ao objeto imitado, a comédia “propõe­se imitar os homens, representando­os piores, a outra [a tragédia] melhores do que são na rea­lidade.” Para o filósofo, a comédia se preocupa em apresentar os vícios, e a tragédia, as virtudes. Quanto à maneira de imitar, afirma que

3 O ditirambo era uma canto de louvor a Dioniso, o deus do teatro, do vinho e da dança.4 A aulética, entre gregos e romanos, era a arte de tocar aulo, uma espécie de flauta.5 Gênero de música ou poesia destinada a ter acompanhamento de cítara, instrumento de cordas, derivado da lira.

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é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução de um terceiro [o narrador], como faz Homero, ou insinuando­se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou ainda apre­sentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas próprias. (ARISTÓTELES, 1964)

Vemos aí descrita a classificação que atualmente fazemos em narrador de terceira pessoa, narra­dor em primeira pessoa e texto dramático dialogado.

Esse filósofo grego estudou a extensão da ação dramática: “a tragédia é a imitação de uma ação completa formando um todo e de certa extensão” (ARISTÓTELES, 1964). Para constituir um todo, é ne­cessário que a peça tenha começo, meio e fim. O que determina a extensão é a natureza do assunto e o grau de atenção de que o espectador é suscetível. Isso significa a indeterminação do tempo ou do volume do texto, substituídos pela atenção do leitor e o tipo de assunto escolhido. Essa compreensão terá vigor na história da literatura até o século XX.

Entre os elementos que compõem uma ação complexa, Aristóteles (1964) trata da peripécia6 e o reconhecimento como o fato que “faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando a amizade em ódio ou inversamente nas pessoas [...] ou ficar sabendo que uma pessoa fez ou não fez determinada coisa.” (ARISTÓTELES, 1964).

Também tratou da unidade da ação e da diferença entre ação simples – “aquela cujo desenvolvi­mento permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de peripécia, nem de reconhe­cimento” (ARISTÓTELES, 1964) – e complexa – a que tem na peripécia e no reconhecimento a alteração no destino do protagonista.

E além disso tratou da relação entre o gênero literário e o personagem: os princípios estruturais das narrativas e das peças de teatro conservam até hoje a conceituação estabelecida por Aristóteles no quarto século antes da era cristã.

Para o escritor latino Horácio (65 a.C. ­ 8 a.C.), na Carta aos Pisões, é importante que os poetas (pa­lavra empregada indistintamente para poesia, narrativa ou teatro, à época todos escritos em versos) res­peitem “o domínio e o tom de cada gênero literário” e que “guarde cada gênero o lugar que lhe coube e lhe assenta” (Horácio, 1981). Também é nessa carta que Horácio admite a possibilidade de transposição dos gêneros ao afirmar que “É difícil dar tratamento original a argumentos cediços, mas, a ser o primeiro a encenar temas desconhecidos, ainda não explorados, é preferível transpor para a cena uma passagem da Ilíada.” (Horácio, 1981). Há, portanto, nesse argumento mais do que a recusa de assuntos novos: a possibilidade de transpor do gênero épico (Ilíada) para o teatro abre a possibilidade de alterações signi­ficativas na concepção normativa de gênero literário. Também é dele a concepção da função específica da literatura: “Os poetas desejam ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida.” (HORÁCIO, 1981). A visão utilitária da arte – que fizera Platão recusar a presença de poetas em seu projeto de uma nova república – soma­se à de entreter (deleitar) e considera­se até a possibilidade de fundir as duas, com resultados importantes para o leitor.

A herança clássica na Idade Média recebe poucas complementações de relevância, à exceção de Dante Alighieri, que, “na Epistola a Can Grande Della Scala, classifica o estilo em nobre, médio e humilde, situando­se no primeiro a epopéia e a tragédia, no segundo a comédia e no último a elegia” (SOARES, 1989, p. 12). Percebe­se a permanência da epopéia e da tragédia em nível elevado, como em Aristóteles. A elegia, entretanto, faz sua entrada entre os gêneros literários, anunciando a inclusão futura do gênero lírico, não necessariamente acompanhado de música (como a lira, a flauta e a cítara), mas como texto verbal. Massaud Moisés (1997), ao comentar a pequena quantidade de estudos sobre os gêneros na Ida­

6 “mudança de ação no sentido contrário ao que foi indicado e sempre em conformidade com o verossímil e necessário”.

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de Média, informa que, na prática literária, há um surto criativo de “variedades formais novas”: na poesia lírica, novas organizações das estrofes, a rima e a metrificação ganham em variedade, surge o romance em prosa e o teatro se moderniza. Esse movimento criador desmente antigas interpretações do período histórico medieval como uma idade de trevas, sem avanços ou alterações.

O conceito no RenascimentoO Renascimento, a partir do século XVI, ao contrário do período medieval, trouxe contribuições

muito relevantes à consolidação dos gêneros literários e, sobretudo, à quantidade e qualidade dos es­tudos teóricos. Seus representantes, denominados humanistas, foram pródigos em normatizar as idéias da Antigüidade Clássica, retomando e reafirmando os conceitos expressos principalmente por Aristó­teles e Horácio. Não ficaram, porém, apenas nos aspectos reprodutivos da teoria, agregando reflexões próprias e as novidades criadas na Idade Média. “No geral, entendiam os gêneros como fórmulas fixas, sustentadas por doutrinas e regras inflexíveis, às quais os criadores de arte deveriam obedecer cega­mente.” (MOISÉS, 1997, p. 242).

Esses teóricos adotaram estritamente o conceito de mímesis e passaram a legislar a produção lite­rária, considerando que a imitação da natureza é o objeto da arte, e não a sua reapresentação através da recriação em linguagem artística. Estabeleceram um critério de valoração em que, quanto mais a obra se aproximasse dessa cópia da natureza, mais perfeita ela seria. É de se imaginar, portanto, que a criação literária se submete a normas que garantam essa reprodução fiel.

Em relação aos gêneros literários, o resultado foi a retomada da divisão tripartite de Platão e os valores a ela atribuídos por Aristóteles: tragédia e epopéia como gêneros elevados e a comédia como gênero inferior: “entendiam os gêneros como fórmulas fixas, sustentadas por doutrinas e regras inflexí­veis, às quais os criadores de arte deveriam obedecer cegamente. Entretanto, deve­se às teorias poéticas italianas a inclusão da lírica como o terceiro gênero ao lado da épica e do teatro.” (MOISÉS, 1997, p. 42). A lírica, substituindo o ditirambo, apresenta algumas formas fixas, como o soneto, a ode, a canzone, o rondó e a balada.

Um dos nomes mais importantes nesse momento da história dos gêneros literários é Nicolas Boi­leau (1636­1711), que, em 1674, escreve Arte Poética, espécie de compêndio de normas do pensamento neoclássico a respeito dos gêneros. Ele “localiza [...] o valor da arte na razão, pela qual acreditava que se alcançassem o bom­senso, o equilíbrio, a adequação e a clareza: condições necessárias à poesia.” (SOA­RES, 1989, p.13). Em 1693, esses postulados normativos são questionados pela Querela dos Antigos e dos Modernos (Querelle des Anciens et des Modernes), em que escritores ditos modernos defendem sua maior liberdade de criação, fugindo às regras e normas.

O conceito no RomantismoA reação ao período racional e normativo do Renascimento se consolidou a partir do século XVIII

com os pré­românticos alemães do movimento de Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang), que, in­

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sistindo no caráter mutável dos gêneros nos sucessivos períodos históricos e no desaparecimento dos “esquemas estruturais repetitivos” (WELLEK; WARREN, 1971), defenderão a necessidade de inovação nas obras literárias.

A mudança dos públicos leitores, a valorização da individualidade e as rápidas modificações na preferência de formas literárias levam à elasticidade das classificações e ao rápido aparecimento de novas espécies de textos. Sobretudo, verifica­se o desenvolvimento e multiplicação de narrativas, em especial do romance, que mantém as características básicas do antigo gênero épico e o substitui. O Romantismo favorecerá o aparecimento do romance histórico (devido ao forte acento nacionalista que pode conter) e do romance gótico, como “um conjunto de estereótipos (descritivo­acessórios e narrati­vos, por exemplo, castelos em ruínas, horrores católico­romanos, retratos misteriosos, passagens secre­tas a que conduzem painéis que deslizam, raptos, emparedamentos, perseguições através de florestas sombrias)” (WELLEK; WARREN, 1971, p. 294). No gênero dramático, a principal contribuição é o apareci­mento do drama, conforme foi anunciado e caracterizado pelo escritor francês Victor Hugo no prefácio de Cromwell, de 1827. Nesse texto, o dramaturgo francês defende o hibridismo do gênero dramático, justificando sua posição pela comparação com a vida real, que é feita de riso e pranto, belo e feio, gro­tesco e sublime. O drama vem a ser, portanto, a expressão no teatro da nova classe burguesa, com per­sonagens saídas da realidade presente, com linguagem coloquial e com a liberdade de apresentação de situações dramáticas, muito ao gosto do período estético do Romantismo.

A moderna teoria dos gêneros é claramente descritiva. Não limita o número das espécies possíveis e não prescreve regras aos autores. Admite que as espécies tradicionais possam “misturar­se” e produzir uma espécie nova (como a tra­gicomédia). Reconhece que os gêneros podem ser construídos tanto numa base de englobamento ou “enriquecimen­to” como de “pureza” (isto é, gênero tanto por acréscimo como por redução). Em lugar de sublinhar a distinção entre as várias espécies, interessa­se – à maneira da preocupação romântica pelo caráter único de cada “gênio original” e de cada obra de arte – em descobrir o denominador comum de uma espécie, os seus processos e objetivos literários. [...] O prazer que uma obra de arte literária instila no homem é composto por uma sensação de novidade e por uma sensação de reconhecimento.” (WELLEK; WARREN, 1971, p. 297).

Esse foi um importante passo para a discussão a respeito da concepção e das classificações dos gêneros literários porque instaurou a possibilidade de revisão dos conceitos, da introdução no painel das diferentes espécies literárias de novas formas e de questionamento de classificações dogmáticas, já que o princípio da individualidade estabelecia a liberdade de criação e de escolhas. O espírito românti­co na criação literária espalha­se, portanto, para o estudo e crítica dos gêneros literários.

Conceitos ao longo dos séculos XIX e XXDestaca­se após o período romântico a contribuição do crítico francês Ferdinand Brunetière (1849­

1906), quem procurou relacionar os gêneros literários e a teoria evolucionista de Spencer: o resultado foi o conceito de que os gêneros se assemelhavam aos seres vivos, ou seja, nasciam, se desenvolviam e morriam, sujeitos ao ciclo vital que rege qualquer ser vivo. Dava­se, assim, uma explicação científica para o aparecimento e desaparecimento de espécies e gêneros. Essa visão evolucionista encontrou forte reação no filósofo italiano Benedetto Croce (1886­1952), que concebia “todo conhecimento ou é intui­tivo ou lógico, produzindo respectivamente imagens ou conceitos. Ao conhecimento intuitivo se liga a

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idéia de expressão. Intuir era expressar ações que nos libertariam da submissão intelectualista, que nos subordina ao tempo e ao espaço da realidade” (SOARES, 1989, p. 15). Há, portanto, nesse entendimento da criação literária, por imagens, um desligamento da realidade empírica, o que resulta na supervalo­rização do indivíduo criador. Como conseqüência, a literatura se vincula muito mais ao imaginário do que às leis físicas da natureza. Essa aproximação com a criação subjetiva contraria as classificações de gêneros e de espécies literárias.

Dessa discussão a respeito das relações da literatura com a realidade empírica ou com o imaginá­rio levam à duas direções diferentes na interpretação dos gêneros literários:

1. realista, pressupõe que os gêneros à semelhança das Idéias platônicas, constituem realidade única, perene e pré­existente;

2. nominalista, encara as idéias e os gêneros como simples denominações da verdadeira realidade, as obras literárias. [...] Wladislaw Folkierski [indagou] [...]: “os gêneros literários são pré­existente às obras ou, ao contrário, abstrações ex­traídas de algumas obras­primas mais geralmente imitadas? Se não são preexistentes, terão todavia influência direta nas obras, nos autores, na crítica? Constituem um código suscetível de constranger a liberdade do escritor? (MOISÉS, 1997, p. 245)

Estava instalada a discussão e os partidários de um e outro lado foram se apresentando ao longo do final do século XIX e ao longo do século seguinte. Com o surgimento das pesquisas e reflexões teóri­cas dos formalistas russos, no começo do século XX, aprofundou­se o conceito de que as obras literárias têm vida e leis próprias, que permitem reconhecer e classificar os textos por sua literariedade, isto é, pela natureza própria e específica da literatura. Parte dessa natureza pode ser localizada no conceito de “estranhamento”, de Chklovski. Isto é, a obra literária propriamente considerada é aquela que, em rela­ção às demais, consegue distinguir­se como um corpo estranho, novo, diferente das expectativas e da história tradicionais da evolução da literatura. Esse destaque é um dos ingredientes da obra que causa estranhamento ao leitor e à série literária em que se localiza.

Outro formalista, Tomachevski, “consideraria como traços dos gêneros um grupamento em torno de procedimentos perceptíveis. Esses traços seriam dominantes na obra, embora houvesse outros pro­cedimentos necessários à criação do conjunto artístico.” (SOARES, 1989, p. 17). Entre esses procedimen­tos estariam a temática, os motivos e a linguagem poética figurada. O que valerá para a significação e abrangência dos gêneros literários se localiza na dimensão histórica. Em conseqüência, sempre estará presente no conceito de gênero a dimensão histórica.

Outra contribuição importante para a teoria dos gêneros vem de Mikhail Bakhtin, lingüista e te­órico russo, que salienta o papel da percepção, isto é, das expectativas do leitor na relação com a obra literária e com o modo com que ela filtra a realidade empírica. O agrupamento de obras que tivessem pro­cedimento semelhante as incluiria em gênero semelhante, do mesmo modo que a percepção do leitor seria alterada ao longo do tempo pelas mudanças que o contexto em que vivia poderia atuar sobre ele, e manter ou modificar sua percepção de cada gênero. “Assim, os gêneros apresentariam mudanças, em sin­tonia com o sistema da literatura, a conjuntura social e os valores de cada cultura” (SOARES, 1989, p. 18).

O francês André Jolles trabalhou com formas literárias orais e primitivas, a que chamou “funda­mentais” ou “formas simples”. Entre elas, a legenda, a saga, o ditado, o mito, a adivinha, o caso, o memo­rável, o conto, o chiste. Essas nove categorias, pouco valorizadas até o aparecimento de sua pesquisa, descrita no livro As Formas Simples, ganharam a partir de seus estudos um lugar na classificação dos gêneros e espécies e motivaram muita discussão sobre o valor dessas novas formas narrativas.

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Outro estudioso com valiosa colaboração para a discussão e definição dos gêneros literários foi Emil Staiger, que, na obra Conceitos Fundamentais da Poética, em 1946, vai defender a idéia de uma base tripartite: lírica, épica e dramática, mas com a possibilidade de que as marcas estilísticas de cada gênero pudessem existir em quaisquer textos, sem a restrição deste ou daquele gênero. Assim, os ter­mos e os procedimentos de escrita épicos, dramáticos ou líricos podem ser considerados adjetivos, ou seja, é possível encontrarmos na história da literatura obras que, embora pertencentes a um gênero maior, apresentam característica dos outros dois. Assim, podem­se descobrir em epopéias (narrativas) momentos líricos, ou em poemas categorias das narrativas, ou em peças de teatro procedimentos da poesia e das narrativas. Houve, assim, uma ampliação do conceito de gênero, alargando as possibilida­des de escrita e de valorização do literário.

A perspectiva da atualidadeUma contribuição marcante para os estudos a respeito dos gêneros literários veio de Northrop

Frye, na obra Anatomia da Crítica, de 1957. A primeira modificação foi a criação de um quarto gênero; além da lírica, da épica (epos) e da literatura dramática, haveria a ficção, diferente da épica por ser contí­nua, enquanto esta seria episódica, ou seja, construída pela união de quadros mais ou menos indepen­dentes. Segundo Angélica Soares (1989, p. 19­20):

Cada um dos quatro gêneros se liga a uma forma própria de mímesis: o epos é apresentado pela mímesis da escrita assertiva, o drama pela mímesis externa ou da convenção, a lírica pela mímesis interna. Quatro também são as moda­lidades da ficção: o romanesco (romance), o romance (novel), a forma confessional e a sátira menipéia ou anatomia. Enquanto o romanesco não busca a criação de “gente real”, o romance (novel) apresenta personagens que trazem suas máscaras sociais. A forma confessional, por sua vez, não pode ser confundida com autobiografia. O romancista ocupa­se da análise exaustiva das relações humanas, enquanto o satirista menipeu, voltado para termos e atitudes intelectu­ais, prende­se às suas peculiaridades.

Essa nova proposta não encontrou eco na crítica literária recente, em que tem se discutido com ênfase a questão dos gêneros para negá­la, dada a explosão de formas novas surgidas a partir dos anos 1950 com o advento do pós­moderno ou do hipermoderno. Para avaliar as produções literárias do pas­sado, principalmente dos períodos em que imperavam normas e preceitos, o conhecimento dos gêneros permite avaliar os textos que romperam, ou não, com esses padrões de sua época. Já para a produção contemporânea, há duas posições diferentes. A primeira é a da negação de toda e qualquer norma ou forma pré­estabelecida. A segunda é a que põe sob a responsabilidade do leitor reconhecer, ou não, o gê­nero literário a que a obra faz referência e, a partir dessa constatação, avaliar a importância dessa relação. A estética da recepção, modo crítico que valoriza a participação do leitor como construtor dos sentidos do texto e que tem em Hans­Robert Jauss um de seus fundadores, trata os gêneros literários como uma das possibilidades de estabelecimento de marcos históricos da literatura, ou seja, com reflexos na própria localização dos autores na história da literatura. Também valoriza o modo variável com que o leitor reco­nhece e administra essas características no momento de interpretação e valorização da obra que lê.

Qualquer que seja a posição adotada, o estudo dos gêneros literários permite uma melhor com­preensão do texto e, sobretudo, permite distinguir o quanto o autor se aproxima ou afasta dos mode­los, ou valorizar a consciência crítica do autor em relação ao gênero em que sua obra venha a se situar, inovando, usando os limites metaliterariamente, isto é, tirando proveito da exposição, de contradições e do debate dentro do próprio texto literário que escreve.

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Texto complementar

(JAUSS, 1994)

A teoria estético­recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra isolada em sua “série literária”, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção das obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela­se um processo no qual a recepção passiva de leitor e crítico transforma­se na recepção ativa e na nova produção do autor – ou visto de outra pers­pectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver problemas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas.

De que maneira pode a obra isolada, fixada numa série cronológica pela história positivista da literatura e, desse modo, reduzida exteriormente a um “factum”, ser trazida de volta para o interior de seu contexto sucessório histórico e, assim, novamente compreendida como um “acontecimen­to”? A teoria da escola formalista pretende solucionar esse problema – como já se disse aqui – por intermédio de seu princípio da “evolução literária”. Segundo tal princípio, a obra nova brota do pano de fundo das obras anteriores ou contemporâneas a ela, atinge, na qualidade de forma bem­sucedida, o “ápice” de uma época literária, é reproduzida e, assim, progressivamente automatizada, para então, finalmente, tendo já se imposto a forma seguinte, prosseguir vegetando no cotidiano da literatura como gênero desgastado. Caso se intentasse analisar e descrever uma época literária de acordo com esse programa – que, ao que eu saiba, até hoje jamais foi aplicado –, poder­se­ia es­perar de tal empreitada um quadro que, em muitos aspectos, resultaria superior ao oferecido pela história convencional da literatura. Tal exposição estabeleceria relações entre as séries fechadas em si mesmas – as quais coexistem na história convencional sem nenhuma conexão a vinculá­las, emolduradas, quando muito, por um esboço de história geral (ou seja, séries de obras de um mes­mo autor, de uma escola ou de um estilo)–, bem como relações entre as séries de diferentes gêne­ros, revelando assim a interação evolutiva das funções e das formas. As obras que aí se destacariam, se corresponderiam e se substituiriam, figurariam, então, como momentos de um processo que não precisa mais ser construído tendo em vista um ponto de chegada, pois, enquanto autogeração dialética de novas formas, ele não necessita de nenhuma teleologia. Vista dessa maneira, a dinâmi­ca própria da evolução literária ver­se­ia ademais, isenta do dilema dos critérios de seleção: o que importa aqui é a obra na qualidade de forma nova na série literária, e não a auto­reprodução de for­mas, expedientes artísticos e gêneros naufragados, os quais se deslocam para o segundo plano, até que um novo projeto formalista de uma história da literatura que se vê como “evolução” e, parado­xalmente, exclui todo desenvolvimento orientado, o caráter histórico de uma obra seria sinônimo de seu caráter artístico: tal e qual o princípio que afirma ser a obra de arte percebida contra o pano de fundo de outras obras, o significado e o caráter evolutivo de um fenômeno literário pressupõem como marco decisivo a inovação.

A teoria formalista da “evolução literária” é decerto a tentativa mais importante no sentido de uma renovação da história da literatura. A descoberta de que também no domínio da literatura as mudanças históricas se processam no interior de um sistema, a intentada funcionalização do de­

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senvolvimento literário e, não em menor grau, a teoria da automatização são conquistas das quais não devemos abrir mão, ainda que a canonização unifacetada da mudança necessite de correção. A crítica já apontou suficientemente as fraquezas da teoria formalista da evolução: o mero contraste ou variação estética não bastaria para explicar o desenvolvimento da literatura; a questão acerca do sentido tomado pela mudança das formas literárias teria permanecido irrespondida; a inovação, por si só, não constituiria ainda o caráter artístico; e, finalmente, não se teria, por sua simples negação, abolido a relação entre evolução literária e mudança social. [...]

A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou como alternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da literatura à atualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à percepção destas últimas. Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma seqüência histórica quando a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer também a especificidade de sua mediação. Tal mediação pode ser definida como o problema “que cada obra de arte coloca e lega, enquanto horizonte das ‘soluções’ possíveis posteriormente a ela”. Entretanto, a descrição da estrutura modi­ficada e dos novos procedimentos artísticos de uma obra não remete necessariamente de volta a esse problema e, portanto, à sua função na série histórica. A fim de determinar esta última – isto é, a fim de conhecer o problema legado para o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta –, o intérprete tem de lançar mão de sua própria experiência, pois o horizonte passado da forma nova e da forma velha, do problema e da solução, somente se faz reconhecível na continuidade de sua mediação, no horizonte presente a obra recebida. Como “evolução literária”, a história da literatura pressupõe o processo histórico de recepção e produção estética como condição da mediação de todas as oposições formais ou “qualidades diferenciais”.

O fundamento estético­recepcional devolve à “evolução literária” não apenas a direção perdida, na medida em que o ponto de vista do historiador da literatura torna­se o ponto de fuga – mas não de chegada! – do processo: ele abre também o olhar para a profundidade temporal da experiência literária, dando a conhecer a distância variável entre o significado atual e o significado virtual de uma obra – cujo potencial de significado o formalismo reduz à inovação, enquanto critério único de va­lor – não tem de ser sempre e necessariamente perceptível de imediato, já no horizonte primeiro de sua publicação, que dirá então esgotado na oposição pura e simples entre a forma velha e a nova. A distância que separa a percepção atual, primeira, de significado virtual – ou, em outras palavras: a re­sistência que a obra nova opõe à expectativa de seu público inicial pode ser tão grande que um longo processo de recepção faz­se necessário para que se alcance aquilo que, no horizonte inicial, revelou­se inesperado e inacessível. Por ocorrer aí de o significado virtual de uma obra permanecer longamente desconhecido, até que a “evolução literária” tenha atingido o horizonte no qual a atualização de uma forma mais recente permita, então, encontrar o acesso à compreensão da mais antiga e incompre­endida. Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que preparou o terreno para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para a rein­terpretação filológica e o “renascimento” de Gôngora. Exemplos de como uma nova forma literária pode reabrir o acesso a obras já esquecidas podem ser dados em profusão; encaixam­se aí os assim chamados “renascimentos” – “assim chamados” porque o significado do termo pode dar a impressão de um retorno por força própria, freqüentemente encobrindo o fato de que a tradição literária não é capaz de transmitir­se por si mesma e de que, portanto, um passado literário só logra retornar quando uma nova recepção o traz de volta ao presente, seja porque, num retorno intencional, uma postura

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estética modificada se reapropria de coisas passadas, seja porque o novo momento de evolução lite­rária lança uma luz inesperada sobre uma literatura esquecida, luz essa que lhe permite encontrar nela o que anteriormente não era possível buscar ali.

Estudos literários1. Em visita a uma locadora de filmes, verifique como foram organizados os DVDs em gêneros e es­

pécies: drama, comédia, arte etc. Selecione um dos gêneros (categorias) e procure assistir a alguns filmes da mesma categoria. Verifique quais são os componentes que se repetem e que não são encontrados nas demais categorias. Discuta o que você encontrou com seu grupo, em que cada pessoa deverá ter feito pesquisa semelhante com categorias diferentes das suas.

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2. Escolha uma revista em quadrinhos de sua preferência e procure aplicar às histórias nela contidas as características dos gêneros aqui estudados. Trabalhe com mais de duas histórias e registre os resultados para apresentação aos colegas.

3. Compare um filme, um romance e a letra de uma canção em que o riso seja o objetivo final dos textos. Verifique o que há de comum no modo como a história é organizada. Compare e escreva os resultados.

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Gêneros literários: o lírico

Marta Morais da CostaDos três gêneros literários, é a poesia que adquire mais tardiamente destaque e identidade. É ape­

nas no Renascimento que ela ganhará estatura semelhante à do gênero épico e à do gênero dramático. Esse nascimento tardio deveu­se a alguns fatores históricos que trataremos a seguir. O gênero, conjunto de textos que, pela repetição de formas, funciona como horizonte de expectativas para o leitor e “mode­lo de escritura” para o autor (TODOROV, 1980, p. 49), é uma maneira reguladora de leitura e produção. O caráter discursivo do gênero literário é que lhe dá identidade e, ao mesmo tempo, se submete às trans­formações históricas, enquanto arte humana.

O termo lírica provém do grego lyrikós, significando originariamente “som proveniente da lira ou relativo à lira”, instrumento musical de quatro cordas. Em conseqüência, o gênero literário pressupõe um componente musical, expresso pelo ritmo e pela sonoridade de versos e palavras. Segundo Moisés (1997, p. 306) “o vocábulo lirismo foi cunhado no interior do Romantismo francês, com vistas a designar o caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela poesia lírica a partir do século XIX”. Essa outra interpretação do gênero lírico indica o quanto o momento histórico influencia o entendimen­to da terminologia e da teoria a respeito da literatura.

O que é poesia lírica?Para conceituar poesia lírica é preciso ler e pensar sobre diferentes escritores que tentaram definir

esse gênero literário. Todorov (1980, p. 95) principia sua reflexão sobre poesia afirmando: “O discurso da poesia caracteriza­se em primeiro lugar, e de modo evidente, por sua natureza versificada”. Se o verso, isto é, a linha melódica interrompida fosse suficiente para determinar a identidade da poesia, a simples aproximação visual do texto permitiria ao leitor classificar o gênero literário. No entanto, essa diferença é incapaz de dar conta do sentido de poesia. Ele não está no verso, ou no sofrimento do poeta ou no

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acúmulo de exemplos da linguagem figurada (metáforas, metonímias, símiles, analogias, elipses e ou­tros). Segundo Todorov (1980, p. 96­97) ainda

[...] uma parte esmagadora dos nossos contemporâneos nem aderem à teoria ornamental [a do verso], nem à teoria afe­tiva [a do sofrimento do poeta], mas a uma terceira, cuja origem é claramente romântica; uma parte tão predominante que temos dificuldade em perceber que não se trata, no fim das contas, senão de uma teoria entre outras (e não da ver­dade enfim revelada). Nesse caso, a diferença semântica entre poesia e não­poesia não mais é procurada no conteúdo da significação, mas na maneira de significar: sem significar outra coisa, o poema significa de outro modo. Uma maneira diferente de dizer a mesma coisa seria: as palavras são (somente) signos na linguagem cotidiana, ao passo que elas se tornam, em poesia, símbolos: daí o nome de simbolista que utilizo para designar essas teorias.

Para melhor esclarecer o que entende por símbolo, o teórico faz referência à tradição alemã de pen­samento sobre o texto poético (Schlegel, Novalis, Schelling, Kant, Hegel, Solger). São escritores dos séculos XVIII e XIX, do apogeu do movimento literário conhecido como Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto) que combateu a herança neoclássica e instaurou uma nova literatura na Europa. Revolução essa que che­gou posteriormente ao Brasil. No que consiste essa concepção de símbolo, e por extensão, de poesia?

Poderíamos resumi­la em cinco pontos (ou cinco oposições entre símbolo e “alegoria”): 1. o símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção, e não o produto acabado. 2. O símbolo é intransitivo, não serve apenas para transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. 3. O símbolo é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é motivado (não­arbitrário). 4. O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral e do particular. 5. O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos não­simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu sentido é plural – ines­gotável. (TODOROV, 1980, p. 97)

Temos aí uma perspectiva bastante significativa e didática do que seja a matéria­prima da poesia, o símbolo. As negações de Todorov fazem sentido, porque é muito freqüente encontrarmos, na tenta­tiva de compreender o gênero lírico, a associação entre a subjetividade do leitor e a do poeta. Posição que ele denominou “teoria afetiva”. Maria Lúcia Aragão (1997, p. 75, grifo nosso), por exemplo, ao tratar do gênero lírico afirma:

[...] a extensão da composição lírica [...] deve ser de pequeno tamanho para não trair o que há de essencial na disposição anímica do poeta, e para que haja unidade e coesão do clima lírico no poema.

Ao falarmos em clima, estamos partindo do pressuposto de que o importante no estilo lírico não são as conexões ló­gicas. A comunicação entre o leitor e o poema não exige que a compreensão ocupe o primeiro plano. O leitor se emo­ciona primeiro, para depois entender. Por este motivo, Staiger afirma que “para a insinuação ser eficaz, o leitor precisa estar indefeso, receptivo”. Isso acontece quando a alma do leitor está afinada com a do poeta.

No entanto, Emil Staiger não é de todo partidário de uma arte poética baseada exclusivamente na afetividade. Ao tentar defini­la, em outro momento da obra Conceitos Fundamentais da Poética, ta­xativamente esclarece: “Dizem que uma poesia é bela, e pensam apenas na sensação, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia está na situação, em seus motivos. A partir daí fazem­se milhares de poesias em que o motivo é nulo e que simulam uma espécie de existência, simplesmente através de sensações e versos sonoros” (STAIGER, 1972, p. 25). É possível perceber nessas poucas tentativas como os autores citados combatem diferentes aspectos já estabe­lecidos e repetidos a respeito da definição de poesia. É mais fácil negar o que está em desacordo com a idéia dos autores do que conseguir definir exatamente o que é a poesia lírica. No entanto, também Staiger enumera qualidades que considera definidoras de poesia:

Se a idéia de lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta todos os fenômenos estilísticos até então descritos, essa mesma idéia una e idêntica precisa ser revelada e ter nome. Unidade entre a música das palavras e de sua significação; atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo de derramar­se, retido pelo refrão e repetições

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de outro tipo (2); renúncia à coerência gramatical, lógica e formal (3); poesia da solidão compartilhada apenas pelos poucos que se encontram na mesma “disposição anímica” (4); tudo isto indica que em poesia lírica não há distancia­mento. (STAIGER, 1972, p. 51)

Essa ausência de distanciamento, isto é, o leitor não pode deixar de se envolver com o poema lido, faz com que haja, por vezes, confusão entre o eu lírico (manifestação subjetiva no poema) e o eu bio­gráfico (o poeta enquanto ser vivo). Para que essa diferença se torne mais clara, Angélica Soares (1989, p. 26) assim a qualifica:

1.º o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema: na seleção e combinação das palavras, na sintaxe, no ritmo e na imagística;

2.º assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo­nos a recepção;

3.º e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo quando expresso na primeira pessoa do discurso.

Diferentemente do escritor que compõe a sua autobiografia e tenta descrever o passado, o poeta tenta compreendê­lo, o que pressupõe uma atitude objetiva, mas a autobiografia, que também faz a re­flexão sobre o passado, mantém um laço com o passado e com o relógio, ao passo que o poeta lírico, ao debruçar­se sobre si mesmo e sobre seu passado, o faz sempre no tempo presente, como se os fatos esti­vessem a seu lado, dominantemente ocorrendo, num fluir contínuo. “O passado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de recordação.” (STAIGER, 1972, p. 55). O fato de todos os teóricos tratarem dessa questão da confusão que pode se estabelecer entre sujeito lírico e sujeito empírico demonstra o quanto a poesia provoca a interação intensa do leitor com o texto, ao ponto de confundir o que se lê com o que se vive. Fernando Paixão (1982, p.31) também se detém no estudo dessa relação e considera esse tipo de subjetividade do ponto de vista discursivo e afirma:

Apoiada em sua força simbólica, a linguagem dos poetas – os bons poetas, é claro – se realça por ser um dos raros dis­cursos correntes em nossa sociedade em que existe o tom de confissão e de sinceridade, ainda que afirmem o contrário os famosos versos de Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. O dizer poético, ao meu ver, representa apesar de tudo um dos poucos que ainda mantêm uma relação de necessidade com a vida.

Podemos inferir o quanto de imaginada biografia e realidade podem conter os versos de Augusto dos Anjos:

Vozes de um túmuloAugusto dos Anjos

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilhoDestes meus olhos apagou!... AssimTântalo, aos reais convivas, num festim,Serviu as carnes do seu próprio filho!

Por que para este cemitério vim?!Por quê?! Antes da vida o angusto trilhoPalmilhasse, do que este que palmilhoE que me assombra, porque não tem fim!

[...]

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Inconcebível na vida real esse poeta­defunto, mas perfeitamente possível na literatura. Lemos um texto em primeira pessoa, com “eu” explícito, mas que não pode ser acreditado integralmente. Trata­se de um texto simbólico, figurado, para tratar de assuntos relevantes à existência humana, como a força inexorável do tempo e da morte. Fica evidente que as semelhanças físico­biológicas que possam existir entre o eu lírico expresso nos verbos e pronomes de primeira pessoa desse texto não correspondem ao eu empírico Augusto dos Anjos, muito vivo no momento da escrita. Pode haver, sim, semelhanças anímicas e de pensamento, difíceis de serem comprovadas e aproximadas, porque pertencem ao ima­ginário e ao inconsciente do autor. Muitas vezes, o poeta nem comunga dos mesmos sentimentos e usa imagens comuns e constantes da literatura poética, repetindo­as por serem estéticas ou por estarem de acordo com aquelas usadas no período literário em que se enquadra sua obra.

Salete Cara (1989, p. 69) conclui a definição do que acredita seja a poesia lírica com a seguinte sín­tese: “o lirismo se encontra onde se encontra uma expressão particular cuja figura é criada pelas relações – de acorde ou dissonância – entre som, sentido, ritmo e imagens. Essas relações são comandadas pela visão subjetiva de um sujeito lírico”. Observe­se a importância dos termos que a autora grifou, porque eles expressam os elementos relevantes e indispensáveis à poesia de qualidade.

Todorov (1980), ao tratar do gênero lírico, apresenta quatro teorias para explicar a natureza do discurso lírico: a ornamental, a afetiva, a simbólica e a sintática. A ornamental é uma teoria pragmática que considera o poema como um artefato retórico, isto é, destinado a agradar e não a instruir. Conse­qüentemente, um bom poema lírico é o mais belo, o mais carregado de ornatos poéticos (figuras de linguagem, figuras sonoras, construções sintáticas elaboradas). A teoria afetiva considera que a poesia enfatiza os efeitos emotivos do poema, criando diferenças com a linguagem comum, mais voltada para a apresentação de idéias. A poesia busca o efeito afetivo, patético, de sentimentos. A teoria simbólica defende a diferença entre a poesia e a não­poesia estabelecida não pelo conteúdo, mas pela maneira de significar. Essa maneira está no uso das palavras no seu sentido de símbolos, isto é, na capacidade de exprimir o indizível, de realizar a fusão dos contrários, de ter valor intrínseco, em si mesmo, de não ser restrito a um sentido único. A teoria sintática prega “a coerência e unidade entre os diferentes planos do texto”, valorizando sua construção fônica, gramatical e semântica.

Mais uma vez é possível observar a pluralidade de enfoques existentes na compreensão e defi­nição do gênero lírico, de vez que ele está ancorado na história da literatura e da cultura, passível de transformações do ponto de vista da produção e da recepção dos textos literários.

A concepção musical da AntigüidadeA expressão mais antiga da poesia lírica provavelmente foi em forma oral, de modo a que a voz,

por si só, pudesse reproduzir a musicalidade das palavras. A poesia oral nasceu da intenção de colocar na estrutura do texto o sentido intensificado e a de buscar efeitos a serem obtidos junto aos ouvintes, como a descoberta de uma nova forma de olhar para o mundo e para o homem, os sentimentos, a des­crição da natureza.

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Os tratados científicos da Antigüidade usavam o verso, mas nem por isso os textos pertenciam ao gênero lírico. “Entre gregos, egípcios e hebreus a lírica associava­se, primitivamente, às práticas reli­giosas. Todavia, os críticos romanos, caudatários dos gregos, enfatizaram­lhe o aspecto estético, ou seja, consideravam­na simplesmente uma poesia de natureza musical, acompanhada pela lira e destinada ao canto” (MOISÉS, 1997).

Quanto ao caráter musical da poesia oral e da escrita grega, é preciso salientar a constituição da língua grega clássica, cuja acentuação era intensiva (sílabas longas e sílabas breves) e não tônica, como na língua portuguesa. Salete Cara (1989, p. 15) esclarece:

Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o que foi exatamente a música grega e pouca coisa tenha sobrado dos textos de poesia, a não ser fragmentos, é possível observar que as palavras não tinham posição secundária em relação à música, mas permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto. De canto com as próprias palavras, sem notas musicais.

Na Grécia primitiva, o termo que designava o poeta era aedo, que significava cantor. Era simulta­neamente o autor e o recitador de sua produção, o que o distinguia do rapsodo, que apenas executava os poemas de outro poeta.

Embora o primeiro poeta grego, Homero, tenha sido autor de dois importantíssimos poemas épi­cos, a Ilíada e a Odisséia, surgiu a necessidade de uma poesia individual, como expressão pessoal, tra­tando de acontecimentos da vida cotidiana e comunitária. Nascia a poesia lírica, para ser cantada com acompanhamento musical.

Entre os vários tipos de poesia lírica grega, destaca­se a poesia mélica (de “melodia”) que através de Safo e Alceu foi a que teve o acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de composição.

Havia também a poesia de coro e as elegias, que conservavam um pouco das relações com a poesia épica, na medida em que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo uma certa natureza política e bélica. (SOARES, 1989, p. 15)

Entre os latinos, predominou o termo “vate”, significando “adivinho, sacerdote”, visto que suas pa­lavras aproximavam­se das profecias, enunciadas por sacerdotes, por inspiração dos deuses. Essa deno­minação conferia ao poeta uma distinção entre os demais artistas. O termo reaparecerá mais tarde entre os poetas românticos, no século XIX, que se acreditavam inspirados por influxos que transcendiam o humano, com vocação distintiva dos outros mortais.

O livro sobre a arte poética, de Aristóteles, escrito no século IV a.C., contém o pensamento da An­tigüidade sobre a forma poética. Entre esses ensinamentos, salienta­se a atenção dada à metáfora, no capítulo XXI do texto: “A metáfora é a transposição de nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para a outra, por via da analogia” (ARISTÓTELES, 1964, p. 304). Na linguagem da poesia, segundo o pensador grego, a elocução do verso pode adotar diferentes espécies de nomes: ou o termo próprio, ou um termo dialetal (que ele não reco­menda), ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, a palavra forjada, ou alongada, ou abreviada1, ou modificada. Trata­se de modos de alterações nas palavras (seja por meio de mudanças neológicas, seja na composição do termo). É possível inferir que as palavras do autor visavam indicar que o texto poético tem o poder de intervir na língua cotidiana para criar efeitos significativos. Essa importância dada à linguagem permanece até os dias de hoje.

1 A língua grega era baseada em acentos de duração. Por isso, vogais longas produziam alongamento das palavras e as breves, sua abreviação. As alterações provocavam efeitos semânticos diferentes.

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Lirismo, subjetividade e sentimentoÉ muito comum ouvirmos pessoas definirem a poesia como aquela que objetiva traduzir ou co­

municar sentimentos, como o amor, a amizade, a perda, a beleza da vida. Por conta dessa crença, a avaliação dos poemas tende a considerar o texto como simples tradução dos sentimentos pessoais do autor, confundindo freqüentemente a biografia do poeta com o eu lírico.

Massaud Moisés (1997, p. 307) acredita que a poesia contém “uma dada experiência e uma dada postura mental perante a realidade do mundo”. Essa concepção não significa que a beleza do texto este­ja unicamente centrada na subjetividade ou na sentimentalidade. Embora a força dos sentimentos seja muito grande na poesia lírica, é a organização do texto, são as palavras elaboradas de forma inovadora que transportam com maior eficiência e beleza o conteúdo subjetivo do poema.

[...] o aspecto mais característico do lírico [é] a ambigüidade do conteúdo e da sua expressão correspondente, resultan­te da permanente autocontemplação do poeta e, ainda, do próprio esforço de reduzir à equação poética os ingredien­tes do mundo interior: a metáfora representa, distorce, o conteúdo, tornando­o ou revelando­o ambíguo.

Por outro lado, a introjeção do poeta somente lhe permite esquadrinhar as primeiras camadas interiores, as que dizem respeito ao “eu” emocional e sentimental: o lirismo se constitui na manifestação imediata das inquietudes emocionais e sentimentais; no estado natural do “eu” para si próprio e, portanto, na expressão da resposta mais pronta do poeta em face dos estímulos externos e internos. [...]

O conceito emocional da poesia lírica explicaria o consórcio com a música: esta, porque fluida, meramente sonora, não­vocabular, não­significativa, parece traduzir de modo flagrante os contornos íntimos e difusos do poeta, infensos ao vocabulário comum. (MOISÉS, 1997, p. 309)

A poesia lírica nasce da necessidade de expressão individual no momento em que a cultura grega era dominada pela poesia épica, como a Ilíada e a Odisséia, que expressavam idéias e crenças da polis. Nessa poesia épica, “estética e ética andavam juntas” (CARA, 1989, p. 14), ao passo que a poesia lírica serviu para exprimir ainda certas marcas cívicas, mas já com acentuada ligação com a música.

Dois tipos de poesia lírica eram então comuns: a poesia mélica (melos = melodia em grego), “que, através de Safo e Alceu, foi a que teve acompanhamento musical mais completo e a maior liberdade de composição”; e a poesia de coro e as elegias, “que glorificavam deuses e vencedores de jogos, mantendo certa natureza política e bélica.” (CARA, 1989, p. 15). Observemos um poema de Safo (séc. VII a VI a. C.) para conferir essas características:

Basta­me ver­te e ficam mudos os meus lábios, ata­se a minha língua, um fogo sutil corre sob minha pele, tudo escu­rece ante o meu olhar, zunem­me os ouvidos, escorre por mim o suor, acometem­me tremuras e fico mais pálida que a palha: dir­se­ia que estou morta. (CARA, 1989, p. 16)

Mais do que sentimento, o que se pode afirmar é que a poesia lírica, por intermédio da musica­lidade e da liberdade de expressão, investiga a alma humana, nela explorando as reações diante da realidade (objetiva e de relações humanas) e, em especial, o inconsciente. A passagem das descrições bélicas, cívicas e coletivas (da poesia épica) para a individualidade e profundidade de exploração da alma humana não se deu num salto, de imediato. Foi passando por transformações lentas e históricas.

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De uma atitude teologal, através da alegoria, pôde ensinar verdades da alma e da religião durante a Idade Média e o Renascimento.

Cumpre ressaltar que nesse período vigorou também, na poesia provençal e nas cantigas portu­guesas, uma forte corrente de poesia erótica nas cantigas d’escárnio e maldizer medievais e nos poemas de Manuel du Bocage (1765­1805) e Gregório de Matos Guerra (1623/1633­1696).

Após o Barroco, em que se filiam esses dois poetas, o movimento Iluminista do século XVIII criou uma poesia filosófica que desembocou no Romantismo do século XIX. Neste, a poesia tratou do infi­nito, do universo, da natureza e da espiritualidade, bem como – através de imagens em profusão, de símbolos e de musicalidade – dos sentimentos amorosos, da morte e da amizade. O Romantismo foi o grande responsável por essa avaliação da poesia lírica como um texto literário dominado pelo subjeti­vismo emocional, em que o poeta somente consegue atingir o ápice da arte na medida em que se deixa dominar pela esfera pessoal, por seu mundo interior. É verdade que o Romantismo traz para a arte um novo conceito de sujeito. Não mais o sujeito clássico “submetido à convenção universalista do logos – o “penso, logo existo” – que definia o ego da tradição clássica” (CARA, 1989, p. 30­31). Mas um novo con­ceito de subjetividade, relacionado à liberdade de expressão, à expressão da emotividade, à elevação do indivíduo­poeta para além da situação cotidiana e das funções sociais burguesas: o poeta se alçará à categoria de vate, um profeta inspirado pelos deuses.

Com a chegada do Simbolismo ao final do século XIX, em especial Rimbaud (1854­1891), e da vanguarda francesa, o poeta­vidente (voyant)2 mergulha no inconsciente, o que pode ser comprovado pela frase rimbaudiana: “Je est un Autre”(Eu é um Outro), indicando que a poesia fará um mergulho nas zonas nebulosas da mente, do inconsciente, procurando descobrir o monstro indecifrável que habita cada ser humano. A frase famosa foi escrita numa carta a Paul Demeny em 15 de maio de 1871 e traz uma concepção original para explicar a criação artística, pois indica que o poeta perdeu o controle so­bre o que se passa dentro dele. O poeta continua: “Assisto à eclosão de meu pensamento: eu o olho, eu o escuto...” Há um deslocamento da concepção clássica de subjetividade enquanto pólo de identidade. Perde­se essa unidade e essa referência.

O advento da Psicanálise e os estudos sobre o inconsciente, realizados por Freud, estão na base do Surrealismo e do modo automatizado de criação de poemas. O automatismo psíquico “pelo qual [os escritores] se propõem exprimir, seja oralmente, seja por escrito, seja por outras maneiras, o funciona­mento real do pensamento. Trata­se de construir poemas ditados sob a ausência de qualquer controle exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou moral” (VAILLANT, 2005, p. 26­27).

Ainda segundo Salete Cara (1989, p. 48), “o sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do Simbo­lismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade (a objetividade será impossível, portanto), nem o espaço do eu (a dita subjetividade será encarada também como ilusória).” Há, portanto, uma dissociação entre o sujeito lírico e a poesia que o expressa e o mundo dos sentimentos, cau­sada pela transformação da noção de sujeito e de subjetividade. Buscar nos poemas a manifestação exclu­siva de sentimentos equivale a desconhecer a natureza e as funções da poesia lírica contemporânea.

2 O termo aparece na obra Cartas de um Vidente (Lettres à um Voyant), de Rimbaud, publicada em 1871.

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58 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Lirismo e visualidadeUma nova percepção da linguagem poética, nascida na Grécia, vem ao encontro da vanguarda

da literatura no século XX: é a imagem visual. A construção do poema que não se restringe ao ritmo, tom ou sonoridade das palavras, mas agrega a tudo isso o componente visual. O poema se desenha juntamente com as palavras (e até mesmo sem elas), em composições que desafiam a inventividade dos poetas e a interpretação dos leitores.

Há formas diferentes de aproveitamento do espaço da página para que a imagem adquira visu­alidade e significação. A primeira forma é dos poemas figurados, “composições poéticas cujos versos se organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhes constitui o tema, como um ovo, coração, asa, pirâmide, altar, cálice, relógio etc.” (MOISÉS, 1997, p. 400).

Observemos um poema como o de Mário Quintana (1906­1994), reproduzido a seguir:

O mapa Mário Quintana

Olho o mapa da cidade

Como quem examinasse

A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita

Das ruas de Porto Alegre

Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,

Tanta nuança de paredes,

Há tanta moça bonita

Nas ruas que não andei

(E há uma rua encantada

Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,

Poeira ou folha levada

No vento da madrugada,

Serei um pouco do nada

Invisível, delicioso

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59|Gêneros literários: o lírico

Podemos perceber o quanto as palavras evocam espaços e paisagens: ruas, casas, o vento, o cor­po feminino são descritos e valorizados enquanto imagens de seres existentes no real. O leitor imagina essas imagens, sem que as palavras as desenhem de forma mimética no papel. Essa é a presença evocada das imagens numa poesia tradicional. O poema figurado traz essa imagem com palavras em posições e formatos que tentam reproduzir a referência externa. Vejamos, por exemplo, o poema abaixo:

Trata­se de um poema conhecido como “O ovo”, do grego Símias de Rodes, datado de três séculos antes de Cristo. As palavras são dispostas de maneira a reproduzir a imagem do significado que traduzem.

Guillaume Apollinaire (1880­1918) criou no início do século XX para esse tipo de texto o nome de caligrama3. Os hieróglifos egípcios foram os primeiros caligramas conhecidos. A eles segue o poema de Símias de Rodes. Esse tipo de composição existiu ao longo da Idade Média e do Barroco, mas teve seu desenvolvimento mais intenso com as criações de Guillaume Apollinaire. Também pode ser designado,

3 Do grego, que significa “escrita bela”.

Que faz com que o teu ar

Pareça mais um olhar,

Suave mistério amoroso,

Cidade de meu andar

(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

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60 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

além de poema figurado, como carmen figuratum, pattern poem, bildergedicht ou poema figurativo. Ve­rifique um exemplo de caligrama de Apollinaire:

La cravate et la montreGuillaume Apollinaire

Tircis

semaine

l’infiniredressé

par un foude philosophe

et levers

dantesqueluisant et

cadavérique.

le belinconnu

les Musesaux portes de

ton corps

Moncœur

lesyeux

l’enfant

Agla

la main

laa

beau

de

la

vie

pas

se

la

dou

leur

de

mou

rir

L A C R A V A T E

DOULOU

REUSEQUE TUPORTES

ET QUI T’ORNE O CI

VILISÉ,OTE-

LASI

TU VEUXBIEN

RESPIRER

COMME L’ ON

S ’ A M U S E

BIEN

lesheures

Ilest—

5en

fin

Ettoutserafini

Esse poema francês tem como título “A gravata e o relógio” 4. Como pode ser observado, são as pa­lavras que, por sua distribuição pelo espaço da página, constroem e visualizam as imagens. Do mesmo poeta, o poema “Paysage” sugere uma árvore:

4 Os exemplos de caligramas e de poesia visual, como os que são aqui apresentados, podem se obtidos na internet no site <www.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/C/caligrama.htm>.

Page 61: Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

61|Gêneros literários: o lírico

Guillaume Apollinaire

CET ARBRISSEAU

QUI SE PRÉPARE A FRUCTIFIER

TE RES SEM BLE

A inspiração de Apollinaire foi o Cubismo, arte de vanguarda que buscava geometrizar as imagens, insis­tindo, portanto, no valor visual e de síntese que a pintu­ra poderia mostrar. Apollinaire, convencido da força da imagem, denominou esses textos “lirismo visual” e in­fluenciou os artistas que o sucederam, a tal ponto que estimulou a integração entre o visual, a palavra, o som e o uso do espaço. “Várias formas modernas de poesia, como a surrealista, a experimentalista, a concreta e a visual, ex­ploraram as possibilidades de figurativização textual pro­pondo caligramas como o ‘Pêndulo’ (1962), de E. M. de Melo e Castro”, segundo Carlos Ceia (2006), à esquerda.

A presença das ima gens visuais, nascidas do de­senvolvimento da tecnologia, da sociedade imagéti­ca em que estamos imersos e da inven­tividade dos poetas

contemporâneos, fez nascer um novo tipo de poesia, denominada poesia visual. Nela, as palavras não precisam necessariamente repre­sentar a imagem. A visualidade pode vir representada por outros signos não­verbais, como no exemplo de Ernesto Manuel de Melo e Castro, ao lado.

Jayro Luna (2005, p. 74­75) assim analisa o texto:

No caso da utilização de elementos estatístico­probabilísticos na poesia concreta portuguesa, tomemos como exemplo um poema de E. M. de MeIo e Castro, “Soneto soma 14 X”, do livro Poligonia do Soneto, 1963.

É um soneto que se insere naqueles que farão a crítica do soneto como for­ma poética.

O “Soneto soma 14 X” é composto de números e, nesse sentido, conhe­cendo algumas da regras compositivas do soneto, e observando que, no caso deste poema, a soma dos números de um verso devam totalizar 14, é possível subtrair­se alguns versos e pedir a alguém que complete os versos faltantes, num raro exercício de análise matemática da forma.

P

P

P

P

P

P

P

P

Ê

Ê

Ê

Ê

Ê

Ê

N

N

N

N

N

D

D

D

D

U

U

U

L

L

O

Ernesto Manuel de Melo e Castro

Soneto soma 14 X

1 4 3 4 2 2 3 3 0 6 4 1 6 1 2 3 2 2 1 6

5 0 0 1 8 2 1 2 5 4 1 4 0 1 8 3 2 4 1 4

3 1 2 3 5 5 4 1 2 2 3 0 4 2 5

4 3 3 1 3 5 1 2 1 5 8 9 3 5 3

Ernesto Manuel de Melo e Castro

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62 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

O soneto em questão apresenta rimas numéricas, assim, no caso da reconstituição, é possível, sabendo­se com qual determinado verso rima, já saber de antemão qual o último dos cinco números que compõem o verso. Os outros qua­tro números do verso resultaram de uma soma baseada no fato do total do verso dar 14, e de que não há um só verso repetido neste soneto. Observe­se ainda, que o último verso deste soneto, o verso “chave de ouro”, dá soma 28 (duas vezes 14), como que a querer dizer que é um verso que vale mais do que os outros.

Numericamente, portanto, é possível neste nosso exercício de reconstrução produzir variantes do soneto, mas que, funcionalmente, exerceram o mesmo papel desempenhado pelo original de Melo e Castro, que crítica justamente a forma padrão para o fazer poético.

Cabe observar, ainda, que se retirássemos não um verso, mas somente um número de cada verso, a possibilidade de reconstrução integral do soneto, em relação ao original, seria de 100%.

Trata­se da evolução do poema lírico ao longo da história da literatura, com a contribuição de no­vos tempos e novas tecnologias. Há, nessa visualidade, inteira correspondência com o modo de olhar da contemporaneidade e com a possibilidade de criar múltiplos objetos, mantendo sempre a capacidade de surpreender e de provocar descobertas no leitor.

Texto complementar(ELLIOT, 1972, p. 33-35)

Espero que todos concordem em que todo bom poeta, seja ele ou não um grande poeta, tem algo a dar além do prazer: pois, se fosse somente prazer, o próprio prazer não seria no maior grau. Além da intenção específica que a poesia possa ter [...], há sempre a comunicação de alguma experi­ência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma coisa que sentimos mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização, ou apura a nossa sensibilida­de. Entretanto, assim como não se refere à qualidade do prazer individual, essa conferência também não diz respeito aos benefícios individuais causados pela poesia. Creio que todos entendem quer o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de diferença, além do prazer, que traz a nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simplesmente não há poesia. Podemos ter conhecimento disso, mas ao mesmo tempo negligenciar algo que a poesia faz para nós coletivamente, enquanto sociedade. E digo isso no seu sentido mais amplo, pois considero importante que cada povo tenha sua própria poesia, não apenas para aqueles que gostam de poesia – esses podem sempre apren­der outras línguas e deleitar­se com sua poesia – mas porque faz realmente diferença na sociedade como um todo, e isso para as pessoas que não gostam de poesia. Estou incluindo até mesmo os que desconhecem os nomes de seus poetas nacionais. Esse o tema real dessa conferência.

Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter para o povo da mesma raça e língua do poeta um valor que não tem para os outros. É bem verdade que até a música e a pintura têm uma característica local e racial, mas, evidentemente, as dificuldades de apreciação dessas artes, para um estrangeiro, são bem menores... Por outro lado, é verdade também que os escritos em prosa têm, em sua própria língua, um sentido que se perde na tradução; todos nós per­cebemos, porém, que estamos perdendo muito menos ao ler um romance traduzido do que ao ler um poema: e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda pode ser virtualmente nula.

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63|Gêneros literários: o lírico

Que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser verificado na história das línguas européias. Através da Idade Média até há algumas centenas de anos, o latim continuava sendo a língua usada para a Filosofia, Teologia e Ciência. O impulso para o uso literário das línguas dos povos começou com a poesia. E isso se torna perfeitamente natural ao percebermos que a poesia está primeira­mente ligada à expressão dos sentimentos e das emoções, e que sentimentos e essas emoções são particulares, embora isso seja geral. É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que sentir nela. Portanto, nenhuma arte é mais obstinadamente nacional do que a poesia. E um povo pode ter sua língua extirpada, e ser obrigado a usar outra língua nas escolas, mas, a não ser que se ensine àquele povo a sentir na nova língua, não se conseguirá extirpar a antiga. E ela reaparecerá na poesia, que é o veículo do sentimento. Acabei de dizer “sentir na nova língua” e refiro­me a algo bem maior do que apenas “expressar seus sentimentos numa nova língua”. Um pensamento expresso numa língua diferente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou emoção expres­sos numa língua diferente não são o mesmo sentimento e a mesma emoção. Uma das razões para aprendermos bem pelo menos uma outra língua é a de adquirir uma espécie de personalidade suplementar; uma das razões para não assimilar uma nova língua em lugar da nossa própria é a de que nenhum de nós quer se transformar numa pessoa diferente. Uma língua superior dificilmente poderá ser aniquilada, a não ser através do extermínio do povo que a fala. Quando uma língua suplanta outra é porque, geralmente, tem vantagens que a recomendam e que oferecem não só a diferença em si, mas um nível maior e mais refinado para o pensamento e para o sentimento do que a língua inicial mais primitiva.

As emoções e os pensamentos, então, expressam­se melhor na língua comum ao povo – ou seja, a língua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som, o idioma de uma língua expres­sam a personalidade do povo que a fala. Quando digo que a poesia mais do que a prosa está ligada à expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia precisa despir­se de todo conteúdo intelectual ou significado, nem que a grande poesia tem conteúdo igual ao da poesia menor. Desenvolver essa pesquisa, porém, afastar­me­ia muito de minha finalidade imediata. Vou considerar como certo que todos encontram a expressão mais consciente de seus sentimentos pro­fundos na poesia de sua própria língua mais do que em qualquer outra arte ou na poesia de uma outra língua. Isso não significa, evidentemente, que a verdadeira poesia se limita aos sentimentos que qualquer um pode reconhecer e compreender; não devemos limitar a poesia popular. É sufi­ciente que num povo homogêneo os sentimentos dos mais refinados e complexos tenham algo em comum com o dos mais rudes e simples. [...]

Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo: seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo am­pliar e melhorar. Ao expressar o que os outros sentem, ele está também modificando o sentimento, tornando­o mais consciente: está fazendo com que as pessoas percebam melhor o que sentem, ensinando­lhes, portanto, algo a respeito de si mesmas. Mas ele não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é, também, individualmente diferente das outras pessoas e também dos outros poetas, e pode fazer com que seus leitores compartilhem conscientemente novas sen­sações ainda não vivenciadas. Essa é a diferença entre o escritor meramente excêntrico ou louco e o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas não partilháveis, e, portanto, inúteis; o segundo descobre novas variações de sensibilidade que podem ser utilizadas por outros. E ao expressá­las ele está desenvolvendo e enriquecendo a língua que fala.

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64 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Estudos literários1. Escolha três letras de canções populares brasileiras. A seguir, escreva essas letras em folhas sepa­

radas e descubra se elas têm características de poemas líricos.

2. Avaliação do “Soneto do amor total”, poema da obra de Vinícius de Moraes. Aplique no texto a teoria sobre poesia lírica, e discuta o resultado obtido.

Soneto do amor totalAmo­te tanto, meu amor ... não cante

O humano coração com mais verdade ...

Amo­te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade.

Amo­te afim, de um calmo amor prestante

E te amo além, presente na saudade.

Amo­te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo­te como um bicho, simplesmente

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde

É que um dia em teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.

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65|Gêneros literários: o lírico

3. A partir do soneto de Shakespeare aqui reproduzido, estabeleça comparação com o soneto de Vinícius de Moraes na atividade 2.

SonetoLanço­me ao leito, exausto de fadiga,

Repousa o corpo ao fim da caminhada;

Mais eis que a outra jornada a mente obriga

Quando é do corpo a obrigação passada.

A ti meu pensamento – na distância –

Em santa romaria então me leva,

E fico, as frouxas pálpebras em ânsia,

Olhando, como os cegos vêem na treva.

E a vista de minh’alma ali desvenda

Aos olhos sem visão tua figura,

Que igual a jóia erguida em noite horrenda,

Renova a velha face à noite escura.

Ai! que de dia o corpo, à noite a alma,

Por tua e minha culpa têm calma.

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66 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

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Gêneros literários: o épico ou narrativo

Marta Morais da CostaNa classificação herdada da cultura grega, o gênero épico é um dos dois gêneros nobres da litera­

tura. No texto mais completo de Teoria Literária que nos foi legado por Aristóteles, a Poética, ele está no mesmo nível qualitativo que a tragédia; os dois compõem a parte nobre da arte literária grega, destina­dos que estão a tratar de assuntos elevados com personagens heróicas. O termo épico deriva do grego epos, que significa palavra, notícia, oráculo, o que contribui para estabelecer na origem a ligação com a mitologia (oráculo), o caráter informativo, histórico (notícia) e o veículo dessa transmissão, a palavra.

O que é o gênero épico?Para qualificar o gênero épico, é conveniente retomarmos a história e o momento em que surgiu

o primeiro e valioso monumento literário desse gênero: as duas epopéias de Homero (meados do sé­culo IX a.C.), a Ilíada, que trata da guerra dos gregos pela tomada de Tróia, e a Odisséia, a narrativa do herói Ulisses em sua longa viagem de volta ao lar, após o final da guerra. A leitura dos primeiros versos da Ilíada já permite identificar algumas das características desse gênero literário:

Canta­me a cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida, Causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta E de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados e como pasto das aves. (HOMERO, 1962, p. 43)

O tom elevado da dicção poética, a regularidade dos versos, a mitologia, a presença do herói e da associação ao povo grego conferem aos versos citados, não apenas o horror da guerra, mas a necessi­dade de cantar e expressar os acontecimentos que foram marcantes para o desempenho do herói e a configuração mais completa dos fatores que levaram às batalhas sucessivas. Essa figuração e o propósito

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68 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

de (re)construir uma época ligada às origens do povo e da religião grega irão conferir ao texto épico de Homero uma importância cultural e histórica ímpar. Saem de suas descrições e do modo como apre­senta os fatos da guerra as figurações imaginárias que estarão representadas nas esculturas, na pintura, na cerâmica, na história grega dos séculos que se seguiram. Essa permanência, além de seu texto mag­nífico, dá bem a medida da relevância de seu trabalho na cultura ocidental, de vez que herdamos dessa mitologia e dessa literatura muito do que veio a compor também o imaginário e cultura dos povos influenciados pela Grécia.

A esse tipo de narrativa elevada, em versos e de caráter coletivo, denomina­se epopéia, a forma poética do gênero épico. Para Angélica Soares (1989, p. 31), a epopéia é

[...] uma longa narrativa literária de caráter heróico, grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo­se apresentar em prosa (como as canções de gesta medievais) ou em verso (como Os Lusíadas).

A historiografia literária e a Teoria da Literatura não chegaram, porém, ao consenso sobre o que seja a epopéia. Paul Zumthor, um dos mais importantes estudiosos da poesia oral, levanta algumas questões a respeito da conceituação dessa forma literária:

Definir a epopéia não é tarefa simples. Refere­se esse termo a uma estética, a um modo de percepção ou às estruturas narrativas? Alguns o relacionam a toda espécie de poesia oral narrativa, especialmente de argumento histórico, sem le­var em consideração o tom solene ou a extensão. Para T. Tedlock, um gênero épico propriamente dito, caracterizado pe­las regras de versificação, só existe no seio de culturas semi­letradas; nas sociedades primariamente orais, o equivalente funcional seria o conto [...], mas que enfraquece o valor de outras pesquisas. Em último caso, assim como D. Bynum, poderíamos propor que epopéia e épico são apenas designações metafóricas da poesia oral, fundadas sobre o grego epos... termo este que, em Homero, invoca simplesmente a palavra transportada pela voz. (ZUMTHOR, 1997, p. 109).

Cabe observar que a dificuldade de definir o gênero épico e as variadas interpretações que se dá aos textos que recebem essa denominação passam pelas alterações sofridas pelos textos ao lon­go da história, atendendo às necessidades expressivas e receptivas da literatura. Há, porém, conforme Zumthor, uma tripla perspectiva que se faz presente a cada momento em que se tenta chegar a uma definição mais precisa do que seja a epopéia, texto que compõe o gênero épico. A primeira perspectiva é a da estética, isto é, de uma concepção filosófica que indague da natureza da forma épica, como, por exemplo, os elementos indispensáveis que a compõem e seu sentido para uma explicação convincente de sua especificidade. Também o modo de percepção apresenta um outro enfoque, um outro caminho para o entendimento do gênero, o que diz respeito à recepção do texto épico e seu reconhecimento pelo leitor. Para que se confirme o gênero, faz­se necessário que o leitor reconheça nele características distintivas e próprias. A terceira abordagem relaciona­se às estruturas narrativas, isto é, o gênero pode ser definido se contiver alguns elementos narrativos, apresentados de modo específico, como a dimensão heróica dos protagonistas, a extensa linha de tempo dos acontecimentos, o caráter coletivo do tema, a justaposição de fatos e outros mais. O que se torna permanente nessa tentativa de definição do gênero é a sua característica narrativa, isto é, o relato de fatos numa linha de tempo histórico ou mítico.

Quanto ao caráter oral dessas narrativas, não há como negar, em sua origem remota, a presença exclusiva da voz do rapsodo – cantor­poeta e disseminador dessas narrativas primitivas. Tão logo a escrita assume o caráter fixador dessas narrativas, a oralidade se torna dispensável na origem e as epopéias ganham autoria. Nada, porém, garante que a ordem atual dos livros corresponda exatamente à recita­ção dos cantadores/contadores. A hipótese é de que os episódios fossem narrados de maneira quase independente na oralidade. Os escribas de Atenas teriam dado a esse texto sua forma final (HAVELOCK, 1996).

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69|Gêneros literários: o épico ou narrativo

Do ponto de vista formal e de estrutura do texto, a composição épica devia apresentar quatro partes, indispensáveis, com autonomia e regras próprias: a proposição, em que era apresentado o tema a ser desenvolvido; a invocação, um pedido de proteção aos deuses para que o poeta pudesse chegar a bom termo em seu trabalho; a narração, a parte mais longa e principal da narrativa épica, em que eram narrados os feitos do herói­protagonista; o epílogo, coerente e coeso com todo o texto anterior e com final feliz.

Para Angélica Soares (1989), “o sentido de épico se manifesta toda vez que se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando­se uma unidade”. É por essa intenção que, mesmo mudando a aparência da forma literária, o épico permanece enquanto opção estética.

Preceitos aristotélicos sobre a epopéiaNa poética clássica, Aristóteles foi quem melhor tratou da configuração dos gêneros literários, em

especial da tragédia e da epopéia, tendo em vista que seu livro sobre a comédia desapareceu, se é que verdadeiramente existiu. Ao estudar esses dois gêneros, dedicou o capítulo V à comparação e distinção entre eles e afirma: “Quanto à epopéia, por seu estilo corre parelha com a tragédia na imitação dos assuntos sérios, mas sem empregar um só metro simples e a forma narrativa. Nisto a epopéia difere da tragédia” (ARISTÓTELES, 1964, p. 270). Temos, portanto, que, na origem, o verso era uma das maneiras de distinguir os dois gêneros, mas não apenas ele. O tempo de duração, a dimensão temporal, era outro critério, pois “a epopéia não se limita [...] em sua duração”. Quanto às demais partes constitutivas (per­sonagens, ação, ritmo e outros), o filósofo grego abordou nos capítulos XXXIII e XXIV. Neles, estabelece que as epopéias, tal como na tragédia, ”encerrem uma só ação, inteira e completa, com princípio, meio e fim, para que, assemelhando­se a um organismo vivente, causem o prazer que lhes é próprio.” (ARIS­TÓTELES, 1964, p. 310). Esse princípio de construção da epopéia será obedecido nos séculos posteriores, somente passando por contestação em obras de ruptura a partir do século XVIII e, mais intensamente, no século XX.

Um dos componentes mais relevantes da epopéia é a fábula. Não se entende o termo fábula no sentido comum de historieta com animais e/ou alegorias que trazem uma moral explícita. Para Aristó­teles, o termo grego é mythos que, traduzido, passou a fábula. Em várias passagens do livro Poética, e sempre conferindo ao termo grande importância, Aristóteles insiste que a fábula é componente básica da epopéia e da tragédia. Segundo ele, “a imitação de uma ação é mito (fábula); chamo fábula a com­binação dos atos” (ARISTÓTELES, 1964, p. 271). Também acrescenta: “resulta serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa.” (ARISTÓTELES, 1964, p. 272), para logo adiante reforçar esse conceito, afirmando: “O princípio, como que a alma da tragédia é a fábu­la; só depois vem a pintura dos caracteres” (ARISTÓTELES, 1964, p. 273). Mais adiante retoma a caracte­rização de epopéia, afirmando que ela

apresenta ainda as mesmas espécies que a tragédia: deve ser simples ou complexa, ou de caráter, ou patética. Os elementos essenciais são os mesmos, salvo o canto e a encenação; também são necessários os reconhecimentos, as peripécias e os acontecimentos patéticos. Deve, além disso, apresentar pensamentos e beleza de linguagem. (ARISTÓTELES, 1964, p. 273)

Ao longo de séculos, esse modo de conceber o texto épico se tornou normativo e regulou a criação literária do gênero narrativo, mesmo depois que a epopéia caiu em desuso, substituída pelo

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70 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

romance. A unidade de ação (que compreende não apenas a coerência entre as partes, mas sua ordena­ção em partes indispensáveis como princípio, meio e fim), o predomínio da ação sobre os personagens, a possibilidade de ações simples ou complexas, a presença do patético (pathos em grego pode ser doença ou sofrimento) − estão presentes na literatura romântica, que também abusou de peripécias e reconhecimentos. Sem esquecer do caráter retórico do cuidado com a beleza da linguagem, com o uso significativo e conotativo das figuras de linguagem e recursos lingüísticos.

Se a narrativa contemporânea relegou muitas dessas características a um plano secundário, ou mesmo recusou­as na totalidade, os textos que formaram a história desse gênero épico­narrativo foram construídos em atendimento e na tradição dos preceitos aristotélicos.

Ao estudar o gênero épico, Staiger ressalta que, mesmo sem abrir mão da organicidade e da se­qüência das partes da epopéia, e citando Schiller, “A autonomia das partes é uma das características principais da poesia épica”. Essa autonomia consiste na qualidade dos versos isolados, ou que podem ser isolados, dentro da narrativa épica, pois “a finalidade do artista épico descansa em cada ponto de seu movimento; por isso não nos apressamos impacientemente até um objetivo, e sim demoramo­nos de bom grado a cada passo”, no dizer de Schiller (apud STAIGER, 1972, p. 103). Esse caráter de indepen­dência dos versos da epopéia está correlacionado à concepção de que os últimos anos de vida de um homem não decorrem dos primeiros, visto que não há ainda, em Homero, a concepção do amadureci­mento, pois “o homem épico vive exclusivamente a vida de cada dia”, no entender de Staiger.

A passagem do épico ao romanceO gênero épico, pautado pelo discurso narrativo, traduzia uma visão de mundo apoiada na cole­

tividade. A sucessão histórica, no entanto, acentuou cada vez mais o papel do indivíduo, destacando­o de sua comunidade.

Para Lukács (2000), o mundo homérico é entendido como a “infância feliz da humanidade”, por­que nele existe a integração entre interior e exterior, indivíduo e mundo, alma e ato. Nesse mundo prevalecem as idéias de harmonia e perfeição, embora convivam com a nostalgia de uma “pátria arque­típica”. Há equilíbrio entre indivíduo e sociedade, configurando uma imagem de felicidade helênica. O herói épico não é apresentado como um indivíduo isolado, mas como representante de sua coletivida­de, ambos se confundem na narrativa.

Os historiadores apontam na Antigüidade Clássica a existência de uma narrativa proto­romanes­ca latina, o Satyricon, de Petrônio, uma feroz sátira social. A passagem para o romance se deu paulati­namente, com a evolução das formas narrativas medievais, como as novelas de cavalaria, canções de gesta, moralidades, exempla, farsas, fabliaux e a novela1 (AGUIAR e SILVA, 1976).

Na Idade Média, há dois tipos de narrativas, a canção de gesta: destinada ao canto e que se girava em torno de um herói que representava uma ação coletiva; e o romance, que “se ocupa das aventuras

1 ... Exempla e moralidades eram narrativas de fundo moralizante. Farsas eram textos cômicos, visando desmascarar indivíduos e sociedade, geralmente em forma dramática, muito comuns e prestigiadas na Idade Média. Fabliaux eram poemas narrativos em verso de cunho realista, cômico grosseiro, muitas vezes pornográficos, sem finalidade moralizante. A novela é uma narrativa de feitos ora heróicos, existentes desde a Grécia Antiga, ora picarescos, com protagonistas copiados do povo e com crítica social e sátira, ora bucólicos, ora sentimentais (MOISÉS, 1997). Também se atribui à novela a definição de “narrativa feita de alguma matéria tradicional, arranjada de novo” (AGUIAR E SILVA, 1976).

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de uma personagem, criatura de ficção, através do vário e misterioso mundo, apresentando um caráter descritivo­narrativo.” (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 251). As canções de gesta eram poemas épicos franceses, compostos entre o século XI e o século XIII, cuja ação se passava no século VIII no reinado de Carlos Magno, em versos decassílabos, com estrofes de diferente número de versos e declamadas por jograis. O termo romance foi atribuído a esse gênero por se tratar de narrativas escritas em língua vulgar, o ro-manço, e não no latim tradicional. A palavra romance significa “como os romanos, à moda dos romanos”. Diferentemente da canção de gesta, o romance medieval é destinado à leitura e à recitação. Entre os romances do período, dois tipos se sobressaem: o romance de cavalaria e o romance sentimental. O primeiro deles reproduz uma cosmovisão galante e cortês, mas também com comportamentos e ações guerreiras, apoiados substancialmente em dois temas: o amor e a aventura, com final feliz para os amo­res narrados. As novelas de cavalaria tratavam dos feitos heróicos de cavaleiros medievais, como A Busca do Graal, de Gautier Map (séc. XII), o Amadis de Gaula (séc. XVI, anônimo). Já o romance sentimental pode conter maior dose de erotismo ou maior dose de sentimentalidade. Personagens e ação narrativa acontecem em ambientes burgueses ou aristocráticos, com predomínio do estudo do caráter amoroso e com final geralmente trágico (AGUIAR e SILVA, 1976, p. 253­256).

Quando, com as mudanças históricas, passa a se configurar um embate, um conflito entre indi­víduo e sociedade, um conflito que provoca a dilaceração das relações pessoais, internas e externas, dos protagonistas, a epopéia, enquanto gênero narrativo, é substituída pelo romance. Segundo Lukács (2000, p. 51), enquanto “a epopéia afeiçoa uma totalidade de vida acabada por ela mesma, o romance procura descobrir e edificar a totalidade secreta da vida”. Esse caráter de segredo, de desconhecimento, investe o romance de um enfoque psicológico, desconhecido da epopéia. Por isso, “a forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento progressivo que − a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e privada de significação para o indivíduo − o leva a um claro conhecimento de si”. Esse mergulho na individualidade, no sujeito em conflito consigo mesmo e com a sociedade, demonstra um estado de desequilíbrio constante, oposto ao mundo épico da Antigüidade.

No entanto, permanece na forma romanesca o caráter narrativo. A alteração do protagonista he­rói não anula o caráter de objetividade do discurso narrativo e nem dos componentes do texto literário (personagens, narrador, espaço, tempo). Se o verso é abandonado pela narração em prosa, a presença dos demais elementos mantém o caráter narrativo e a proximidade entre as duas formas literárias: a epopéia e o romance.

Mikhail Bakhtin, na obra Questões de Literatura e de Estética, levanta algumas questões a respeito da passagem epopéia­romance:

É muito importante e interessante o problema da interação de gêneros no interior da unidade da literatura, em dado período. Em certas épocas – no período clássico dos gregos, no século de ouro da literatura romana, na época do clas­sicismo – na grande literatura (ou seja, na literatura dos grupos sociais preponderantes), todos os gêneros, em medida significativa, completavam­se uns aos outros de modo harmonioso, e toda literatura, enquanto totalidade de gêneros, se apresentava em larga medida como uma entidade orgânica de ordem superior. Porém, é característico: o romance não entrava nunca nesta entidade, ele não participava da harmonia dos gêneros. Naquela época, o romance levava uma existência não oficial, fora do limiar da grande literatura. Na entidade orgânica da literatura, organizada hierarqui­camente, entravam somente gêneros constituídos, com personagens fixados e definidos. Eles podiam se limitar e se completar mutuamente, conservando a natureza de seu gênero. (BAKHTIN, 1988, p. 398)

Deve­se creditar, no entanto, às mudanças históricas um alargamento do gênero épico, de vez que irão apresentar­se nos textos dessa categoria novas formas (crônica, conto, novela) e outros modos

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de narrar, com multiplicação de narradores, fragmentação, tempos narrativos complexos, personagens tão diferentes e numerosos como as personalidades humanas.

Para esse mesmo autor, a Grécia Antiga produziu também romances, que ele denomina “roman­ces gregos” e que distingue como “romance de aventuras de provações” e “romance grego ou sofista”. Ressalta que

[...] todos os elementos do romance [...] sejam os de enredo, os descritivos, ou os retóricos não são de modo algum no­vos: todos eles encontravam­se e foram bem desenvolvidos em outros gêneros da literatura clássica: os temas de amor (primeiro encontro, paixão à primeira vista, saudade) foram desenvolvidos na poesia de amor helênica, outros temas (tempestades, naufrágios, guerras, raptos) são desenvolvidos pela epopéia clássica. (BAKHTIN, 1988, p. 215)

Essa nova perspectiva traz à discussão do gênero épico na passagem para o romance informa­ções sobre a existência em tempos antigos de formas narrativas que virão a compor um novo cenário da literatura em séculos posteriores, quando forem produzidas em maior quantidade e variedade.

Ao tratar dos romances que iniciam a nova tradição narrativa, Ian Watt assim trata da alteração relativa ao tempo, comparando a narrativa romanesca às demais narrativas de épocas anteriores da his­tória da literatura:

[...] um aspecto da importância que o romance atribui à dimensão do tempo: sua ruptura com a tradição literária ante­rior de usar histórias atemporais para refletir verdades morais imutáveis. O enredo do romance também se distingue da maior parte da ficção anterior por utilizar a experiência passada como a causa da ação presente: uma relação causal atuando através do tempo substitui a confiança que as narrativas antigas depositavam nos disfarces e coincidências; e isso tende a dar ao romance uma estrutura mais coesa. (WATT,1990, p. 22)

A partir da segunda metade do século XVIII é que o romance se afirma como um tipo de discurso literário com características parcialmente herdadas de textos narrativos anteriores, mas com uma for­ma literária diferente, que se delineia com muito vigor na medida em que a história dessa forma se vai construindo.

Os tipos de epopéiaOs estudiosos divergem quanto à denominação e exemplificação dos tipos existentes de epo­

péias. É possível verificar que diferentes compreensões do gênero produzem classificações diferentes para um mesmo texto. Apresentaremos a seguir duas dessas classificações.

Quanto à localização espaço-temporalVamos apresentar a seguir alguns tipos de epopéias que foram escritas ao longo da história do

Ocidente, obedecendo a um critério de espaço geográfico e de tempo histórico.

A epopéia clássicaConstituem esse grupo os textos criados na Grécia e em Roma. O texto épico clássico tem em

Homero o seu representante mais significativo. Suas duas epopéias, Ilíada e Odisséia, foram construídas

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em forma de poema, com métrica regular, que facilitavam a memorização, e que foram cantadas em partes – ou cantos – diante do público; cumpriam papel de construção do imaginário grego. Seu forma­to mítico, destinado a explicar a origem remota do mundo e da história, é voltado a narrar o papel dos deuses e os feitos dos homens, os valores ideológicos predominantes, o sentido de honra, a vingança, os clãs familiares e tantos outros. O artista, por sua vez, prestava homenagem às musas e se reconhecia como instrumento da beleza e da verdade artística.

Entre as principais obras dessa concepção homérica da epopéia estão: a Ilíada e a Odisséia, de Homero; a Eneida, de Virgílio.

A epopéia medievalFazem parte dessa classificação obras que foram criadas anonimamente, escritas em latim vulgar

e que se constituem em textos que divulgaram fatos e feitos que acabaram por constituir, ao longo dos séculos, a idéia de uma unidade européia medieval. Encontraram ambientação em regiões que hoje constituem a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Espanha. Desses textos, podemos citar:

os poemas do ciclo de Carlos Magno, como “A canção de Rolando”, na França;::::

a “Canção dos Nibelungos”, na Alemanha;::::

o poema inglês “Beowulf”;::::

o “Cantar de mio Cid”, na Espanha.::::

Também podem ser inclusos no período histórico medieval a epopéia de cavalaria Orlando Apai-xonado, de Matteo Maria Boiardo (1497) e A Divina Comédia, de Dante Alighieri (séc. XIV d.C.).

A epopéia do período do Renascimento e do ArcadismoFazem parte dessa categoria os poemas épicos que, sem perder as características de dicção ele­

vada, de heróis pertencentes a comunidades, já apresentam autoria, de modo a poderem ser associada a poetas nominados. Estão nesse grupo:

o texto modelar O:::: rlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto (1532), que influenciou muitos outros textos;

Os Lusíadas, :::: de Luiz Vaz de Camões (1572), a maior e mais importante epopéia em língua por­tuguesa;

Jerusalém Libertada, :::: de Torquato Tasso (1581), uma epopéia sobre as cruzadas;

A Rainha das :::: Fadas, de Edmund Spenser (1596);

Paraíso Perdido, :::: do poeta inglês John Milton (1667), a mais representativa das epopéias em língua inglesa pela força dos personagens;

L’Henriade :::: de Voltaire (1723­1728);

O Uraguai, :::: do brasileiro Basílio da Gama (1769);

Caramuru:::: , do brasileiro Santa Rita Durão (1781).

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Segundo a gênese e as características formais do textoA epopéia natural, folclórica ou primitiva:::: – “caracteriza­se por ser anônima e brotar espon­taneamente da alma dos povos jovens, espécie de criação coletiva de que o poeta seria rapso­do ou compilador.” (MOISÉS, 1997, p. 188). Estariam nessa categoria Ilíada, Odisséia, Canção de Rolando, Cantar de Mio Cid.

A epopéia erudita ou artificial:::: – texto criado por um único poeta, como Eneida, de Virgílio; Os Lusíadas, de Camões; Divina Comédia, de Dante Alighieri (MOISÉS, 1997).

A epopéia herói-cômica:::: – em que os textos apresentam como ridículos personagens herói­cos, enredos de tom elevado, conferindo a episódios insignificantes e rotineiros um tratamen­to elevado. Estão nessa categoria poemas como:

Batracomiomaquia,:::: do século V a.C., outrora atribuída a Homero e posteriormente ao poeta lendário Pigres;

Moschea, :::: (1521), de Teófilo Folengo, sátira às guerras de moscas contra formigas;

Morgante, o Grande:::: (1482), de Luigi Pulci, que zomba do romance de cavalaria;

O Cântaro Roubado:::: (1622), de Alessandro Tassoni;

Eneida Travestida:::: (1653), do francês Paul Scarron;

La:::: Gatomaquia (1634), de Lope de Vega (ENCICLOPÉDIA, 1981).

A enumeração de poemas e de características permite considerar a poesia épica como composta por textos diferenciados e que se prolongam enquanto literatura ao longo dos séculos, perdendo sua força pela irrupção do romance e de formas narrativas modernas, que virão a ocupar o espaço mantido pela epopéia até, aproximadamente, o final do século XIX.

Texto complementar

O romance de cavalaria(BAKHTIN, 1988, p. 269-271)

[...]

No romance de cavalaria, a aparência do acaso (de todas essas coincidências e não coincidên­cias fortuitas) não é a mesma do romance grego. Lá, trata­se de um mecanismo tosco de discre­pâncias e semelhanças temporais num espaço abstrato repleto de raridades e curiosidades. Aqui, o acaso tem o atrativo do maravilhoso e do misterioso, ele se personifica na imagem de fadas boas e más, de mágicos bons e maus, ele fica à espreita nos bosques, nos castelos encantados etc. Na maio­ria das vezes, o herói não sofre “calamidades”, interessantes somente para o leitor, mas “aventuras

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maravilhosas”, interessantes (e fascinantes) também para ele mesmo. A aventura recebe um tom novo devido a todo esse mundo maravilhoso onde ela ocorre.

Mais adiante, nesse mundo insólito, realizam­se atos heróicos que glorificam os próprios heróis e pelos quais eles glorificam os outros (os suseranos, a dama). O ato heróico distingue nitidamente a aventura do romance de cavalaria da aventura do romance grego, aproximando­a da aventura épica. O elemento glória e glorificação era também absolutamente estranho ao romance grego e do mesmo modo aproxima o romance de cavalaria ao epos.

Diferentemente dos heróis do romance grego, os heróis do romance de cavalaria são individuais e ao mesmo tempo representativos. Os heróis dos romances gregos parecem­se com os outros, mas têm nomes diferentes, sobre cada um deles pode­se escrever apenas um romance, à sua volta não se criam ciclos, variantes, série de romances de vários autores, cada herói é propriedade particular de seu autor e lhe pertence como um objeto. Todos eles [...] não representam nada nem ninguém, “têm vida própria”. Os vários heróis dos romances de cavalaria em nada se parecem uns com os outros, nem pela aparência, nem pelo destino. Lancelot não se assemelha a Parzival. Parzival não se assemelha a Tristão. Em compensação, sobre cada um deles são criados vários romances. Es­truturalmente falando, eles não são heróis de romances isolados (e, estritamente falando, não há romances de cavalaria isolados, fechados sobre si mesmos, individuais), eles são heróis de ciclos. E eles, naturalmente, não pertencem a cada romancista como propriedade particular (é evidente que não se trata da ausência de direitos autorais e de representação), eles são semelhantes aos heróis épicos, pertencem ao repositório comum das figuras, que é na verdade internacional e não nacional como no epos.

Enfim, o herói e o mundo maravilhoso onde ele atua constituem um único bloco, não haven­do fendas entre eles. É bem verdade que esse mundo não é a pátria nacional, por toda parte ele é uniformemente estrangeiro (sem que esse caráter seja acentuado), o herói passa de país em país, confronta­se com diversos suseranos, realiza viagens marítimas, mas seu mundo é sempre uno e sempre preenchido por uma mesma fama, por uma mesma concepção dos atos heróicos e da de­sonra; o herói pode glorificar a si e aos outros por todo esse mundo; em toda parte são aclamados os mesmos nomes célebres.

Nesse mundo o herói sente­se em “casa” (mas não na sua pátria); ele é tão maravilhoso como esse mundo: maravilhosa é sua origem, maravilhosas são as circunstâncias do seu nascimento, de sua infância e juventude, maravilhosa é sua natureza física e assim por diante. Ele é a carne e o osso do osso desse mundo de maravilhas: é o seu melhor representante.

Todas essas singularidades do romance de aventuras de cavalaria diferenciam­no radicalmen­te do romance grego, aproximando­o do epos. O primeiro romance de cavalaria em versos tem sua base nos limites entre o epos e o romance, o que determina seu lugar especial na história do roman­ce. Com as particularidades indicadas determina­se também o cronotopo [que significa “tempo­espaço] original desse romance – um mundo maravilhoso num tempo de aventuras.

A seu modo, esse cronotopo é muito limitado e circunscrito. Ele não está mais repleto de ra­ridades e curiosidades, mas de magia; nele, cada coisa − armas, roupas, fontes, pontes etc. − tem alguma propriedade mágica ou simplesmente encantadora. Esse mundo também tem muito de simbólico, não do caráter grosseiro de um rébus [romance de enigma], mas se aproximando da fábula oriental.

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76 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Estudos literários1. Assista ao filme Tróia, dirigido por Wolfgang Petersen, de 2004, da Warner Brothers, e comente a

figura do herói Aquiles, considerando as características do gênero épico.

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77|Gêneros literários: o épico ou narrativo

2. Escolha heróis de romance e procure verificar se neles há características do gênero épico. Crie um quadro comparativo e comente o resultado.

3. Avaliação de poemas épicos.

a) Copie as duas primeiras estrofes da Ilíada, de Homero, da Eneida de Virgílio e de Os Lusíadas de Camões (os textos podem ser baixados da internet na página <www.dominiopublico.org.br>.

b) Compare os três textos em sua composição: tipo de versos, proposição, invocação, linguagem.

c) Verifique o que os três têm de características semelhantes.

d) Pesquise sobre a noção de modelo em literatura.

e) Escreva sobre o resultado obtido, levando em conta o que você pesquisou e o que leu nos poemas.

f) Escreva um texto com as conclusões obtidas.

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Gêneros literários: o dramático

Marta Morais da CostaO gênero dramático tem seu nome derivado do termo grego drama, que significa “ação”. Essa ori­

gem acabou por marcar a natureza desse tipo de texto: refere­se, como queria Aristóteles, às “pessoas que agem e obram diretamente” (ARISTÓTELES, 1964, p. 264), isto é, os atores sobre o palco e as perso­nagens em suas falas. Do ponto de vista textual, os diálogos – isto é, as falas diretas – constituem o traço distintivo, específico do gênero dramático. O narrativo e o dramático se aproximam enquanto gênero por três razões:

narram uma história;::::

representam a realidade por meio de personagens; e::::

contêm falas­diálogos como uma das formas diretas de esses personagens dizerem e se dize­::::rem.

E, além dessas três características, o teatro busca necessariamente outra manifestação direta: o palco. As peças de teatro, que compõem o gênero dramático, foram escritas para serem representadas física e concretamente em um espaço que, se não foi destinado para esse fim exclusivo – o teatro −, transforma­se em cenário, em palco, por força da presença e da atuação das personagens, encarnadas por atores.

Todavia, embora destinado ao palco, o drama tem existência própria e pode ser estudado en­quanto gênero literário e texto verbal com características específicas. Esse é o enfoque que nos inte­ressa desenvolver: o drama como peça teatral, como dramaturgia, isto é, uma forma de composição literária com características próprias que a distinguem e a individualizam.

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A teoria aristotélica do trágicoA obra intitulada Poética foi escrita por Aristóteles em data pouco precisa, mas seguramente no

século IV a.C. Ela chegou até nós conforme uma cópia manuscrita feita no século XII d.C., acrescida de versões dos séculos XIII e XIV e da tradução árabe do século X. Trata­se, portanto, de obra reconstituída, de vez que seus originais não conseguiram atravessar os séculos. É um volume que trata da epopéia e da tragédia, vistos como gêneros que têm algumas características em comum. A parte relativa à teoria da comédia, anunciada no volume sobre a tragédia, desapareceu completamente.

Os dados históricos sobre essa reconstituição não prejudicaram o enorme sucesso que a obra exer­ceu ao longo dos séculos na cultura ocidental. É um texto composto por 27 capítulos curtos, repletos de exemplos e citações, em um formato muito didático. Há especulações sobre o fato de essa obra não ter sido escrita totalmente por Aristóteles, tendo sido completada por discípulos e até comentadores tar­dios. A base da teoria dessa obra, que acabou se transformando em normatização para o gênero dramá­tico ao longo dos tempos até a chegada do Romantismo, no século XIX, é a definição dada por Aristóteles para o gênero:

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; num estilo tornado agradável pelo em­prego separado de cada uma de suas formas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções. (ARISTÓTE­LES, 1964, p. 271)

O livro Poética está organizado conforme a seqüência abaixo:

os três primeiros capítulos tratam da mimese;::::

capítulo 2 – distinção entre comédia e tragédia;::::

os capítulos 4 e 5 apresentam uma teoria sobre gêneros literários;::::

capítulo 6: definição da tragédia e de seus componentes;::::

capítulos 7 a 22 – estudo minucioso dos componentes da tragédia – enredo, caráter, pensa­::::mento, elocução, espetáculo e música (melopéia);

capítulo 9 – distinção entre poesia e história;::::

capítulo 13 – uma discussão sobre personagem;::::

capítulo 14 – os enredos que causam piedade e terror;::::

capítulo 15 – a passagem da cópia da natureza à criação artística e os objetivos do desenvol­::::vimento da personagem;

capítulo 16 – tipos de reconhecimento;::::

capítulo 17 – processos de construção da peça teatral;::::

capítulo 18 – estrutura da peça, classificação e papel do coro;::::

capítulo 19 a 23 – qualidades da elocução e do pensamento;::::

capítulos 24 a 27 – distinção entre epopéia e tragédia.::::

Essa organização dos poucos capítulos abrange uma vasta quantidade e uma grande variedade de assuntos relacionados à forma da tragédia e aos princípios que regem o sentimento trágico, que está

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81|Gêneros literários: o dramático

presente em outras obras literárias além da tragédia e leva à investigação freqüente da filosofia e da antropologia. Pavis (1999) enumera os componentes do que denomina sistema clássico da tragédia, o qual transcende uma orientação de como se estrutura uma tragédia e busca seu sentido permanente, que por sua vez mantém a importância da tragédia grega ao longo dos séculos.

Adotaremos a classificação das características do trágico em Patrice Pavis combinadas com a teorização de Aristóteles sobre esses itens. Podemos enumerar os aspectos constitutivos do texto trá­gico conforme expomos a seguir.

O conflito e o momentoSegundo Pavis (1999, p. 417), “o trágico é produzido por uma série de catástrofes ou de fenômenos

naturais horríveis, mas por causa de uma fatalidade que persegue encarniçadamente a existência huma­na”. Há nesse conceito a idéia de que o conflito, o embate de forças igualmente poderosas, nasce da pró­pria natureza humana: os fatos que representarão mais concretamente essa tragédia (mortes, suicídios, acidentes) representam apenas a concretização da fatalidade que já habita o ser humano. Tudo isso se organiza para que, conforme escreve Aristóteles, “se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a compaixão, e estas emoções nascem principalmente quando os fatos se encadeiam contra nossa expectativa, pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna” (ARISTÓTELES, 1964, p. 279).

Os protagonistasEncontramos em Aristóteles (1964, p. 271) a preocupação em estabelecer a razão de ser das per­

sonagens, como quando afirma, no capítulo VI:

[...] como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem, é absolutamente necessário que essas personagens sejam tais ou tais pelo caráter e pelo pensamento (pois é segundo estas diferenças de caráter e de pensamento que falamos da natureza de seus atos); daí resulta naturalmente que são duas as causas que decidem dos atos: o pensamento e o caráter: e, de acordo com estas influências, o fim é alcançado ou falhado.

Para o teórico grego, quatro são os aspectos que regem a personalidade, o caráter de um perso­nagem:

o primeiro é que deve ser de :::: boa qualidade – “A personagem terá caráter se suas palavras e ações revelarem escolha premeditada, e será bom o caráter se a escolha for boa”;

o segundo aspecto é o da :::: conformidade – qualquer que seja o comportamento ele deve cor­responder logicamente ao tipo ou gênero que encarna, pois mulheres não se comportam como homens e vice­versa;

o terceiro aspecto corresponde à :::: semelhança, isto é, se a personagem é compatível com a realidade que imita;

o quarto aspecto é a :::: coerência consigo mesmo, isto é, a necessidade de permanecer ao longo da tragédia com as mesmas características.

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Obedecidos esses aspectos, a personagem ganha qualidade e força dramática.

Pavis (1999, p. 417) esclarece que “qualquer que seja a natureza exata das forças em confronto, o conflito trágico clássico sempre opõe o homem e um princípio moral ou religioso superior”. Portanto, as personagens – mesmo as mais poderosas, como reis, príncipes e guerreiros – são fracas e submissas a um destino que as esmaga e destrói.

A reconciliaçãoPara Pavis, “apesar do castigo e da morte, o herói trágico se reconcilia com a lei moral e a justiça

eterna” (1999, p. 417). Esse aspecto confere exemplaridade aos textos trágicos gregos, de vez que a representação dos dramas sobre o palco visavam a educar os espectadores, seja na informação sobre a origem mitológica do povo grego, seja nos ensinamentos morais, axiológicos e ideológicos presentes nas narrativas dramáticas.

O destinoA noção de destino (que em grego é identificado pela palavra moira) é fundamental para a tragé­

dia grega e representa a luta mais importante que o homem trava ao longo da vida:

O destino assume às vezes a forma de uma fatalidade ou de um destino que esmaga o homem e reduz a nada sua ação. O herói tem conhecimento dessa instância superior e aceita confrontar­se com ela sabendo­se que está selando sua própria perda ao dar início ao combate. (PAVIS, 1999, p. 417)

A liberdade e o sacrifícioEm decorrência do conflito entre o herói e as entidades superiores que representam o destino, o

sentimento trágico pode se transformar em uma afirmação de liberdade:

O trágico é, portanto, tanto a marca da fatalidade quanto a fatalidade livremente aceita pelo herói: este resgata o de­safio trágico, aceita lutar, assume a falta (que às vezes lhe é imputada equivocadamente) e não procura compromisso algum com os deuses: está disposto a morrer para afirmar sua liberdade. (PAVIS, 1999, p. 417)

A falha trágicaAssim o herói trágico é definido por Aristóteles: “Permanece entre os casos extremos o herói colo­

cado numa situação intermediária: a do homem que, sem se distinguir por sua superioridade e justiça, não é mau nem pervertido, mas cai na desgraça devido a algum erro.” (ARISTÓTELES, 1964, p. 272). Esse erro (em grego denominado hamartia) será a causa efetiva do desenlace trágico e do castigo imposto ao herói. O termo hamartia pode se referir ao orgulho ou ao delírio ocasionado pela vontade dos deu­ses. Qualquer que seja essa falha trágica, ela será a responsável pelo desfecho, pelo resultado final da ação trágica.

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83|Gêneros literários: o dramático

O efeito produzido: a catarseAristóteles não considerou apenas a peça trágica enquanto um objeto textual a ser descrito, clas­

sificado e apreciado: também se preocupou em definir a função que o espetáculo criado a partir do texto poderia exercer sobre os espectadores. Nomeou esse efeito como catharsis, que definiu como “ação apresentada [...] que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purgação dessas emoções”. Não há consenso na crítica sobre o entendimento dessa função: “não se sabe se é eliminação das paixões ou purificação pelas paixões” (PAVIS, 1999, p. 417). Qualquer que seja o entendimento, fica saliente o conceito moralizador do teatro para a sociedade grega, pois assistir aos espetáculos era viver a experiência de uma possível transformação interior, uma aprendizagem de modos de tratar as rela­ções do homem com o destino, com o sofrimento, com medos interiores.

Aristóteles afirma que são seis as partes que compõem a tragédia:

a fábula, isto é, o mito;::::

os caracteres, isto é, as personagens;::::

a elocução, isto é, a composição métrica e as figuras;::::

o pensamento;::::

o espetáculo apresentado; e::::

a melopéia.::::

E Aristóteles também trata da unidade e da coerência da fábula, isto é, da ação com começo, meio e fim, e com uma extensão limitada no tempo.

Seguida com certo rigor pelos tragediógrafos até o século XIX, a normatividade da Poética não impediu a criação de textos que escaparam parcialmente a esses padrões, como as obras de Sêneca e de Shakespeare. Essa fuga ao normativismo aristotélico representa o início do processo de moderni­zação da dramaturgia, que irá culminar na criação do drama, em 1827, quando, no prefácio a sua peça Cromwell, Victor Hugo defendeu a idéia de um texto unindo o grotesco e o sublime, a tragédia e a co­média. A esse novo subgênero, Hugo denominou drama.

A dramaturgia épicaNo século XX, ganhou forma uma outra teoria a respeito do teatro e da dramaturgia. Essa nova

teoria nasceu com os estudos e as peças do dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht (1898­1956). Em sua proposta de uma maneira diferente de fazer teatro, esse dramaturgo foi buscar em fontes di­versas os procedimentos e valores para dar base sólida a suas idéias. Os mistérios da Idade Média, o teatro asiático e o próprio teatro clássico europeu lhe forneceram os materiais cênicos e dramatúrgicos para o que denominou teatro épico, que reúne no mesmo texto dois gêneros literários: o dramático e o épico. Brecht expôs seu pensamento em Observações sobre a Ópera “Mahagonny” (1931) e no Pequeno Organon (1948).

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84 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Em que consiste essa nova dramaturgia?Em primeiro lugar, o acontecimento passado é mostrado pela narração de forma distanciada. O

narrador serve de intermediário, mantendo à distância a possibilidade de identificação imediata com personagens ou situações dramáticas. As personagens são apresentados de forma objetiva, como nas narrativas épicas. O narrador se permite interferir na ação representada para dar a sua perspectiva ou comentar o que está sendo apresentado.

Há distanciamento no tempo da ação e no seu espaço: sempre a ação é deslocada para séculos anteriores e para lugares distantes da Alemanha e até da Europa (Ásia, Estados Unidos e outros). A inten­ção principal é fazer do leitor e do espectador juízes dos acontecimentos, que são distantes e imparciais. Sem perder a qualidade de entretenimento, é um teatro para levar à reflexão e à tomada de posição política, visando à transformação da realidade.

Abaixo, apresentamos alguns princípios e conceitos aplicados à dramaturgia e ao espetáculo épico.

Efeito V ou efeito

de distanciamento

Distanciamento entre ator e personagem, conquistado por meio da denúncia da te­

atralidade, da não­identificação completa do ator com o papel a ser representado e

forte presença do narrador.

Gestus ou gestus socialConjunto de gestos, mímica e pantomima capaz de identificar social e historicamente

a personagem, sua relação com as demais e sua atitude crítica diante da sociedade.

Caráter social

O social determina o pensar do homem. Por isso, no épico, personagens e espec­

tadores são seres em processo, mutáveis diante do mundo e com capacidade de

interferir na sociedade.

Pensamento dialético

O choque entre conteúdo e forma e a heterogeneidade entre os significados dos

signos formadores do texto e da cena provocam a formação dialética dos argumentos

e dos acontecimentos.

O papel da emoção

A emoção está presente no teatro épico, mas deve ser objeto de reflexão do

espectador, para impedir a identificação com ela, a fim de não prejudicar a observação

e o raciocínio.

A função da unidade

A unidade do espetáculo épico não está na ação, tampouco no espaço e no tempo:

está na figura do narrador, em que se projetam os acontecimentos e as demais

personagens. O espetáculo épico poderia ser cortado em mil pedaços e, ainda assim,

manter­se­ia vivo como tal.

Ação dramáticaA ação retrocede e avança, pois o narrador narra os acontecimentos. Dessa forma, é o

narrador que se movimenta em torno da ação épica, que parece estar em repouso.

Tempo da ação

A ação narrada está no pretérito. Por isso não há encadeamento linear, tampouco

sucessão rigorosa de acontecimentos, podendo a ação dar saltos de acordo com o

objetivo didático da peça.

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85|Gêneros literários: o dramático

As duas linguagens do gênero dramáticoEm 1957, o teórico alemão Roman Ingarden escreveu um artigo intitulado “As funções da lingua­

gem teatral”, em que analisava a composição do texto dramático e estabelecia uma dupla articulação na linguagem apresentada pelo texto escrito dessa modalidade discursiva. Ingarden considerou o teatro como um “caso­limite da obra de arte literária. As palavras pronunciadas pelas personagens formam o texto principal da peça de teatro enquanto as indicações para a direção dadas pelo autor formam o tex­to secundário” (INGARDEN, 1978, p. 3). A divisão, portanto, em texto principal e texto secundário permite distinguir as duas modalidades de linguagem presentes em um texto dramático. Elas não são distintas apenas da perspectiva visual (a linguagem secundária vem impressa em itálico, negrito, maiúsculas ou entre parênteses, enquanto a linguagem principal vem em fonte normal), mas principalmente no modo de realização mental e nas funções que têm dentro do universo do teatro.

A linguagem secundária se manifesta na rubrica ou didascália. Roman Ingarden a denominou lin-guagem secundária, sem atribuir ao adjetivo nenhum critério de valor: secundária porque não se transfor­ma em palavra dita; secundária por tomar outra via que não a da oralização para acontecer, como o faz o diálogo ou fala; secundária porque dialoga com a fala das personagens em outros códigos que não os verbais.

Vejamos um exemplo concreto, um fragmento da comédia­opereta (também denominada revis-ta-de-ano) A Capital Federal, de Artur Azevedo (1987, p. 369­370), encenada no Rio de Janeiro em 1873. Na cena reproduzida, Eusébio (um homem do interior, casado com Fortunata) visita a cidade do Rio de Janeiro (naquela época a capital do Brasil) e se prepara para encontrar Lola, uma espanhola por quem se sente atraído, mas é recebido por Lourenço, o cocheiro dela.

CENA V EUSÉBIO, LOURENÇO

EUSÉBIO (consigo) – Sim, sinhô; isto é que se chama vi busca lã e saí tosquiado! Se Dona Fortunata soubesse... (Dando com Lourenço.) Vamos lá, seu... cumo o sinhô se chama?

LOURENÇO – Lourenço, para servir a Vossa Excelência.

EUSÉBIO – Vamos lá, seu Lourenço... (Sem arredar pé de onde está.) Isto é o diabo! Enfim!.. Mas que espanhola danada! (Encaminha-se para a porta e faz lugar para Lourenço passar.) Faz favô!

LOURENÇO – (Inclinando-se.) – Oh, meu senhor... isso nunca... eu, um cocheiro!... Então! Por obséquio!

EUSÉBIO – Passe, seu Lourenço, passe que o sinhô é de casa, e está fardado! (Lourenço passa e Eusébio acompanha-o.)

No conjunto de palavras desse fragmento, observa­se a diferença gráfica entre diferentes con­juntos (maiúsculas, itálico, alternância de formas gráficas). As sentenças destinadas à fala dos atores (portanto, a serem efetivamente pronunciadas) são entrecortadas por informações destinadas a ser representadas por atores, sem palavras: “inclinando­se”, “passa”, “acompanha­o”. Outras rubricas desa­parecerão na representação cênica, como os nomes das personagens em maiúsculas e o número do ato. No texto escrito dramático, a linguagem secundária aponta para fora dele, para a encenação. Mas enquanto escrito e lido, pode auxiliar o leitor a realizar mentalmente o espetáculo de teatro, encená­lo na imaginação, complementando a compreensão do texto que lê. Durante o espetáculo, essa lingua­gem secundária (escrita em signos verbais) se transformará em outras linguagens do teatro: o gesto, a movimentação cênica, o figurino, o cenário, a música e outras mais.

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86 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Natureza misteriosa a dessa palavra do texto dramático, que não se quer pronunciada, mas quer entrar no cérebro do espectador por caminhos plurais – nem sempre eficazes para a compreensão. O risco de não ser compreendida é assumido e pode ser compensado pela múltipla codificação oferecida ao leitor. Esse processo de recusa do percurso usual da palavra para ir ao encontro de outras vias de realização, mais custosas e de resultado menos certeiro, foge à lei de economia da língua – na qual se privilegia a relação custo–benefício – para instalar­se no terreno dos valores.

Entre esses valores, quero ressaltar os de ordem histórica, individual e estética.

A tragédia e a comédia antigas usavam esse recurso da rubrica com parcimônia, pois o teatro clás­sico concebia o cenário como convenção: as três portas a indicar sempre os mesmos espaços poupavam a rubrica descritiva de cenário, tornando­a por vezes simples formalidade.

Para André Helbo (1989, p. 25), esse texto de produção ou de direção cênica pode ter quatro dife­rentes tipos de orientação:

pensadas para o ator :::: – concernente aos detalhes de interpretação;

pensadas para a encenação:::: – referentes às demais linguagens cênicas, como luz, cenário, iluminação etc.;

pensadas para o leitor:::: – colocadas no texto preferencialmente para a leitura individual; ou

pensadas para o espectador implícito :::: – de direção individual, mas apontando para a ence­nação.

Do ponto de vista histórico, as rubricas foram se tornando mais numerosas na medida em que o teatro se aproximou do século XX. No teatro clássico greco­latino ou no teatro renascentista e no tea­tro clássico francês, bem como em Shakespeare, seu uso foi contido, muitas vezes retirado do próprio diálogo entre as personagens, quando em versões póstumas. Mas o século XX tem sido pródigo em sua quantidade e sua variedade. Pode­se relacionar esse acréscimo justamente à rarefação do diálogo dramático e à acentuação das qualidades cênicas do espetáculo.

O mesmo André Helbo aponta para três ocorrências típicas de uso da rubrica:

quando o espetáculo previsto pelo texto escrito descarta a palavra falada, as rubricas são res­::::ponsáveis pelas cenas silenciosas;

quando o espetáculo se refere a um texto dramático ausente, a rubrica assume a função de ::::uma versão imitativa de textos já conhecidos;

quando o espetáculo alude implicitamente a uma voz dramática ausente – por exemplo, quan­::::do a encenação joga com a contradição entre o que é dito e o que é contracenado – a rubrica pode ter uma feição dialética.

Também devemos considerar a diferença entre a quantidade de rubricas quando se trata de di­ferentes gêneros do texto dramático: a quantidade de indicações existente nas comédias supera em muito a quantidade de rubricas em tragédias no teatro grego, no qual, por exemplo, não se encontram interferências dessa linguagem secundária na fala das personagens.

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87|Gêneros literários: o dramático

Texto dramático e texto cênicoPara distinguir esses dois tipos de texto que dizem respeito ao gênero dramático e seu desdobra­

mento para o palco, Anatol Rosenfeld (1991, p. 21) assim os define em Prismas do Teatro:

O teatro não é literatura, nem veículo dela. É uma arte diversa da literatura. O texto, a peça, literatura enquanto me­ramente declamados, tornam­se teatro no momento em que são representados, no momento, portanto, em que os declamadores, através da metamorfose, se transformam em personagens. A base do teatro é a fusão do ator com a personagem, a identificação de um eu com outro eu – fato que marca a passagem de uma arte puramente temporal e auditiva (literatura) ao domínio de uma arte espaço­temporal ou audiovisual.

Perseguindo o objetivo de esclarecer como se dá a diferença entre os gêneros, Rosenfeld diz que o gênero lírico apresenta:

a fusão eu­mundo;::::

o eterno momento presente;::::

a marca lingüística do :::: eu;

a função expressiva;::::

a interjeição “Ai!” parece ser a melhor representação do sentimento poético; e::::

o lugar central da pessoa é estar em fusão com o mundo.::::

Já no gênero épico:

o eu está em face do mundo narrado, que se desenvolve a partir do passado;::::

os pronomes que melhor expressam o épico são :::: ele, ela, isto aí;

o texto tem função representativa;::::

“Eis aí” seria a melhor expressão da posição do narrador; e::::

o lugar central da pessoa é estar inserida no mundo narrado, que a envolve de todos os lados.::::

Enquanto isso, no gênero dramático:

o leitor tem acesso ao mundo emancipado da subjetividade, à tensão para o futuro e à forma ::::lingüística do diálogo – expressa pelo tu;

as funções da linguagem são a expressiva e a interpelativa;::::

“Deves fazer isso!” seria a fórmula da fala dramática; e::::

o lugar central da pessoa é destacado do restante, é um lugar livre e autônomo.::::

Para Rosenfeld (1991, p. 40), “O discurso dramático, que prepara para a decisão ou leva a ela, é uma forma de ação; no fundo, tem somente significado enquanto fonte de futuro, expressão da vonta­de. [...] O diálogo é a arquiforma de toda dialética, é contradição e síntese ao mesmo tempo”. Já segundo Maria del Carmen Bobes (1987, p. 15, tradução minha), em Semiologia da Obra Dramática, “A obra se desdobra em texto literário e texto espetacular. O receptor também se torna complexo porque será um leitor individual (leitura) ou será um espectador coletivo (público)”.

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88 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Osório Mateus considera que a diferença entre o texto escrito verbal e a representação semiótica está embrionariamente contida no texto escrito:

Trata­se de um texto necessariamente operável: as indicações destinam­se à execução; todos os acontecimentos indi-cados pelas didascálias ou pressupostos pelas réplicas são programas de operação (e, neste sentido também, referência a uma situação concreta do discurso); por outro lado, as réplicas implicam necessariamente um projeto de oralidade, que é uma outra forma específica de execução. (MATEUS, 1977, p. 25)

Nessas considerações a respeito das diferenças e da significação de cada um dos textos, seja dra­maturgia ou texto encenado, Anne Ubersfeld escolhe tratar do primeiro em sua obra Lire le Théatre (1977), em que afirma que o texto de teatro, impresso ou manuscrito, possui um certo número de ca­racterísticas:

sua matéria de expressão é lingüística;::::

ele se diz diacronicamente, segundo uma :::: leitura linear, em oposição ao caráter materialmente polissêmico dos signos de representação;

a leitura é pouco confortável devido ao grande número de :::: trous textuels (vazios textuais);

as rubricas podem ser contraditadas pela mobilização dos signos quando da representação;::::

trabalha com a identificação e o distanciamento, a denegação e a ilusão teatral (cf. UBERSFELD, ::::1977, p. 23).

É possível verificar que as diferentes posições a respeito do texto dramático, em sua relação com a literatura, conseguem – por sua variedade – complementar a caracterização e a importância do es­tudo específico do texto escrito, mesmo que a princípio ele esteja destinado ao palco e aos atores. Isso porque ao longo dos séculos a dramaturgia se impôs como forma e natureza específicas para tratar do homem, da sociedade e da arte.

Formas principais do gênero dramáticoAs formas ou espécies literárias estão fortemente relacionadas com os períodos estético­histó­

ricos. Como o teatro é uma arte profundamente relacionada com os públicos, sua recepção pode ser imediata e, portanto, ele é dependente do sucesso ou fracasso dessa recepção. Daí que os dramaturgos constantemente procurem expressar em formas aceitáveis suas idéias. Em um movimento dialético, também a história do teatro registra rupturas formais, novas espécies surgidas de um desejo de inova­ção e do desgaste de certas formas, transformadas em fórmulas. Vamos apresentar algumas das princi­pais espécies (formas) registradas pela história do teatro ocidental.

Formas clássicasDa Antigüidade greco­latina, herdamos formas de composição dramatúrgica e de representação

teatral que permanecem com vigor nos dias de hoje, como a tragédia e a comédia, evidentemente atu­alizadas. Quanto ao drama satírico, ele se perdeu na cultura ocidental de hoje.

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89|Gêneros literários: o dramático

A tragédiaA palavra provém dos termos grego tragos (“bode”) e ode (“canto”), em uma referência aos rituais

de homenagem a Dioniso – o deus do vinho, das plantações e do teatro –, nos quais se sacrificava um bode para se obter a proteção divina. Aristóteles construiu desde muito cedo na Teoria da Literatura as definições e características dessa forma teatral. Vale relembrar que, ao longo de séculos, a tragédia foi considerada a forma mais perfeita de teatro, como tratamos na primeira parte desta aula.

A comédiaEtimologicamente, significa “canto da aldeia” ou “canto dos aldeões”, dos termos gregos comos

(“aldeia”) e ode (“canto”). Os historiadores registram que a comédia nasceu de rituais ao deus Dioniso, a quem se atribuíam a alegria, a dança e o erotismo, já que ele liberava os sentidos por força do vinho, bebida com é associado. As personagens cômicas são de extração social modesta, o desfecho é feliz e a função é provocar o riso pela amostra do ridículo dos comportamentos humanos. Tem função de corrigir vícios e defeitos, mas o faz de forma irônica e cômica. É por vezes violenta e obscena; por outras, leve e galante.

Estão inclusas nessa classificação ampla:

as comédias altas e baixas da Antigüidade;::::

a comédia­balé do século XVII;::::

a comédia de caráter, em que as personagens são apresentadas com muita perfeição;::::

a comédia de costumes, de vida longa e que trata dos comportamentos sociais;::::

a comédia de idéias, comum ao final do século XIX e em todo o século XX, tendo nos argumen­::::tos o foco principal;

a comédia de intriga, repleta de reviravoltas, tendo a ação como principal elemento;::::

a comédia de situação, em que o qüiproquó, os enganos e as trocas são elementos indispen­::::sáveis;

a comédia heróica, meio­termo entre a tragédia e a comédia, predominando a psicologia e os ::::compromissos burgueses;

a comédia lacrimosa do Romantismo;::::

a comédia pastoral dos séculos XVI e XVII, de natureza bucólica;::::

a comédia satírica, de crítica à sociedade ou a certos ridículos humanos (cf. PAVIS, 1999).::::

Herdada da Antigüidade, a comédia é uma forma teatral de muita riqueza e variedade, que de­monstrou muito vigor e até hoje desperta constante interesse, atraindo públicos de diferentes tipos.

O drama satíricoEra composto de enredos que tratavam da vida do deus grego Dioniso (denominado Baco entre

os romanos). Tais enredos eram representados como peças obrigatórias nos concursos teatrais da época grega clássica.

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90 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Formas medievaisA Idade Média contribuiu para a história das formas teatrais com textos de caráter sobretudo re­

ligioso, o que seria de se esperar de uma época em que a cultura e a própria vida giravam em torno da teologia.

O mistérioPeça religiosa que tratava de episódios da vida de Cristo, episódios da Bíblia.

O milagrePeça religiosa que tinha como assunto a vida de homens piedosos e santos, com intenção didá­

tica e moralizante.

O autoTambém denominado auto sacramental, era peça de cunho religioso, freqüente na Espanha e em

Portugal. No Brasil, chegou com José de Anchieta, que escreveu e encenou com os índios vários autos em português, latim, tupi e espanhol. Os autos tratavam de problemas morais e teológicos.

A farsaEmbora existisse já na Grécia, essa espécie de texto desenvolveu­se muito na Idade Média. A pa­

lavra provém do francês farcir, que significa “rechear”. Era composta de cenas cômicas que se incluíam no meio dos autos religiosos para agradar e chamar a atenção dos fiéis. Tem caráter grosseiro, por vezes escatológico. É uma forma resistente ao tempo, muito popular, e que, por vezes, assume um caráter sub­versivo: “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia trágica [...].” (PAVIS, 1999, p. 164).

Forma renascentista: a tragicomédiaEssa forma dramática surgiu no século XVI, combinando elementos da tragédia e da comédia. Não

apresenta acontecimentos funestos e o desfecho é feliz, embora não seja cômico. Pode fazer uma fusão do real com o imaginário e, por vezes, traz a presença do maravilhoso. É uma narrativa com reconheci­mentos, peripécias e aventuras galantes. Em alguns autores, há preocupação “com o espetacular, com o surpreendente, com o heróico, com o patético, com o barroco” (PAVIS, 1999, p. 420).

Forma do Iluminismo: o drama burguêsTambém denominado tragédia burguesa, era considerado um “gênero sério”, intermediário entre

a comédia e a tragédia, mas já rompendo com a estrutura da tragédia clássica, substituindo os “perso­

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91|Gêneros literários: o dramático

nagens da história greco­romana pelos cidadãos burgueses do tempo, divisados no seu habitat próprio e nas condições peculiares à sua classe social. A par de certo realismo” (MOISÉS, 1997, p. 162).

Formas do Romantismo e do século XIXO século XIX trouxe para a literatura muitas formas inovadoras e, sobretudo, um espírito revolu­

cionário, com idéias de alteração de padrões dramatúrgicos herdados de séculos anteriores. A força das idéias e da pregação renovou os palcos europeus.

O dramaEm “Do grotesco e do sublime”, prefácio à sua peça Cromwell (1827), o teatrólogo francês Victor

Hugo, também poeta e romancista, defende o drama como uma forma teatral adequada às idéias do Ro­mantismo europeu. Toma como modelo Shakespeare, que, já no século XVI, havia rompido parcialmen­te com a tragédia aristotélica, introduzindo elementos novos, como a prosa, o cômico, as personagens populares, os bufões, assim como o maravilhoso bretão, isto é, a presença de elementos sobrenaturais na trama, conforme a tradição do teatro inglês. As idéias básicas do drama romântico giram em torno da quebra das unidades aristotélicas de tempo, espaço e ação, além de haver busca do espetacular e mistura de gêneros.

Essa nova forma terá desdobramentos constantes e de grande alcance literário e teatral ao longo do século XIX, adquirindo o caráter histórico (bem de acordo com os ideais nacionalistas e heróicos da época), ou caráter burguês (quando as questões familiares e domésticas ganham importância), ou cará­ter de tese (o denominado drama de tese – forma apropriada ao Naturalismo e ao Cientificismo constan­tes ao final do século) ou caráter poético (o denominado drama poético, em reação às peças naturalistas, unindo teatro e música – os gêneros dramático e lírico).

A revista-de-anoPeça cômica que tinha como objetivo rever no palco os principais acontecimentos do ano. Era de

origem francesa, mas se aclimatou com muito sucesso em Portugal e no Brasil. Apresenta um tom satíri­co e crítico muito agudo. No princípio, era composta de sátiras contra os políticos. Depois, foi ganhando cores espetaculares e se tornando espetáculo de muito luxo e efeitos coreográficos e musicais.

A mágica ou féeriePeça com assunto do maravilhoso infantil (fadas, duendes, gigantes etc.). Sua tendência ao es­

petacular e aos efeitos especiais, que deslumbravam as platéias, garantiu também um público adulto em peças com assuntos voltados a aventuras e o sobrenatural. Era comum o uso de maquinismos (máquinas para criar efeitos especiais). Teve origem na França, mas se espalhou pela Europa. De Por­tugal veio para o Brasil e até no século XX foi possível encontrar notícias da existência desse tipo de peça e de espetáculo.

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92 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Formas que unem teatro e músicaAo longo da história do teatro ocidental, a música sempre fez parte do espetáculo. Seja como

acompanhamento musical, seja como elemento do diálogo das personagens e, portanto, dos atores. Por isso, importantes formas teatrais são criadas e até hoje praticadas nas culturas européias e nas cul­turas dos países colonizados pela Europa.

A óperaEnquanto texto teatral, a ópera tem as características de um drama trágico ou lírico, cantado com

acompanhamento de orquestra e números de dança. Ela surgiu na Itália no século XVI e logo obteve sucesso em toda a Europa. Do ponto de vista cênico, apresenta diferenças em relação ao teatro con­vencional. O texto da ópera se denomina libreto e contém apenas o resumo do que é cantado no palco, consistindo em um roteiro da ação dramática.

Esse gênero se divide em modalidades como:

a :::: ópera séria ou grande ópera, cuja ação tende a ter as características da tragédia clássica, sen­do inteiramente cantada, com cenas de multidão e grandes massas corais;

a :::: ópera-bufa, toda cantada e com enredo de comédia;

a :::: ópera-cômica, que não é totalmente cantada, apresentando falas sem acompanhamento musical e tendo, por vezes, características de farsa; e

a :::: ópera espiritual ou oratório, pequena peça lírica musical, de enredo elevado.

A operetaMerece destaque pelo relevo que teve entre os séculos XIX e XX. Trata­se de uma ópera curta com

libreto e partitura de tons divertidos, alegres e muito movimentados, com partes cantadas alternadas com partes faladas. É de origem francesa, mas alcançou seu ápice com as composições do austríaco Johann Strauss.

O melodramaSeu nome combina duas palavras gregas: melo + drama, isto é, ação com música. Existe desde o

século XVI e foi tomado no início como sinônimo de ópera. O enredo era o do teatro trágico greco­latino e a partir de 1790 passou a ser uma peça de teatro que dispensa a música, ganhando independência como forma dramática. No entanto, guardou da fase inicial uma tendência ao trágico.

Caracteriza o novo melodrama o fato de ser uma peça em prosa, em torno de ingredientes fáceis, explorados ilimitada­mente: o sentimentalismo, não raro tombando no patético, a comicidade ocasional, assassínios, mistérios, o suspense, in­cêndios, cenas de medo, equívocos que se desfazem como que por milagre, segundo um ritmo ofegante, sem obediência à verossimilhança, epílogos felizes, linguagem despojada, “popular”, de imediato entendimento. (MOISÉS, 1997, p. 322)

Podemos inferir dessa descrição que as telenovelas, assim como as radionovelas, são herdeiras diretas dessa forma dramática.

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93|Gêneros literários: o dramático

O vaudevilleTrata­se de uma comédia recheada de árias ou canções conhecidas, com enredos engraçados

e muitos equívocos entre personagens e situações. Surgido na França, no século XVI, alcançou grande sucesso nos séculos seguintes. Mas foi no século XIX que se tornou mais conhecido, quando emigrou para os Estados Unidos, onde se transformou no music-hall, um teatro de variedades que incluía núme­ros de mágica, dança e canto. Está na origem dos musicais do cinema de Hollywood.

Na França, durante o século XIX, ainda, transformou­se em uma comédia ligeira, sem pretensões intelectuais, mas com grande sucesso.

Formas do teatro na atualidadeA característica da dramaturgia na atualidade é a de ser múltipla e mista em suas formulações. As di­

visões entre as formas literárias, sua nominação e sua caracterização passam hoje por uma fase de crítica e de negação. A busca do diferente e do inusitado leva os dramaturgos a testarem combinações criativas de formas e, sobretudo, a criação de formas novas, direcionadas, sobretudo, para o espetáculo, para o palco, como a performance, o teatro do absurdo, o teatro total, o teatro antropológico, o drama absoluto, o teatro do corpo, o teatro do oprimido e o teatro pobre, levando muitas vezes à ausência total da palavra.

Texto complementar

Desde Aristóteles(SZONDI, 2001, p. 23-27)

Desde Aristóteles, os teóricos têm condenado o aparecimento de traços épicos no domínio da poesia dramática. Mas quem tenta hoje expor o desenvolvimento da dramaturgia moderna não pode se arrogar esse papel de juiz, por razões que deve esclarecer previamente para si mesmo e para seus leitores.

O que autorizava as primeiras doutrinas do drama a exigir o cumprimento das leis da forma dramática era sua concepção particular de forma, que não conhecia nem a história nem a dialética entre formas e conteúdo. Parecia­lhes que, nas obras de arte dramáticas, a forma preestabelecida do drama realizava­se quando unida a uma matéria selecionada com vistas a ela. Se essa realização era malsucedida, se o drama apresentava traços épicos, o erro se achava na escolha da matéria. Na Poética, Aristóteles escreve: “O poeta deve [...] lembrar­se de não dar forma épica à sua tragédia. Por épico eu entendo, porém, um conteúdo de muitas ações, como se alguém quisesse dramatizar, por exemplo, a matéria inteira da Ilíada.” Igualmente, o empenho de Goethe e Schiller em distinguir po­esia épica e poesia dramática tinha por fim prático evitar a escolha errada da matéria.

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94 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Essa concepção tradicional, fundada na dualidade originária de forma e conteúdo, tampouco conhece a categoria do histórico. A forma preestabelecida é historicamente indiferente; só a ma­téria é historicamente condicionada, e o drama aparece, segundo o esquema, comum a todas as teorias pré­historicistas, como realização histórica de uma forma atemporal.

A consideração da forma dramática como não vinculada à história significa, ao mesmo tempo, que o drama é possível em qualquer tempo e pode ser invocado na poética de qualquer época.

Esse nexo entre a poética supra­histórica e a concepção não­dialética de forma e conteúdo nos remete ao vértice do pensamento dialético e histórico: à obra de Hegel. Na Ciência da Lógica encon­tra­se a frase: “As verdadeiras obras de arte são somente aquelas cujo conteúdo e forma se revelam completamente idênticos.” Essa identidade é de essência dialética: na mesma passagem, Hegel a nomeia “relação absoluta do conteúdo e da forma [...] a conversão de uma na outra, de sorte que o conteúdo não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a forma não é nada mais do que a conversão do conteúdo em forma.”A identificação de forma e conteúdo aniquila igualmente a oposição de atemporal e histórico, contida na antiga relação, e tem por conseqüência a historiciza­ção do conceito de forma e, em última instância, a historicização da própria poética dos gêneros. A lírica, a épica e a dramática se transformam, de categorias sistemáticas, em categorias históricas.

Após essa transformação nos fundamentos da poética, a ciência viu­se diante de três vias. Ela podia adotar a concepção de que as três categorias fundamentais da poética haviam perdido, junta­mente com a essência sistemática, sua razão de ser – daí Benedetto Croce excluí­las de sua estética. No pólo diametralmente oposto, encontrava­se a tentativa de afastar­se de uma poética histori­camente fundada, dos gêneros poéticos concretos, rumo ao atemporal. Dela dá testemunho (ao lado da obra pouco profícua de R. Hartl, [...] Ensaio de uma Fundamentação Psicológica dos Gêneros Poéticos) a Poética, de E. Staiger, que ancora os conceitos de gênero em diversos modos de ser do homem e, em última instância, nos três “êxtases” do tempo. A substituição necessária dos três con­ceitos fundamentais lírica, épica e dramática por lírico, épico e dramático torna patente que essa nova fundamentação altera a poética em sua totalidade e particularmente em relação com a própria criação poética.

Mas uma terceira alternativa consistia em perseverar no terreno historicizado. Na sucessão de Hegel, ela levou os escritos que projetaram uma estética histórica não limitada à poesia: A Teoria do Ro-mance, de G. Lukács; Origem do Drama Barroco Alemão, de W. Benjamin; e Filosofia da Nova Música, de Th.W. Adorno. Aqui, a concepção dialética de Hegel da relação forma–conteúdo rendeu frutos, ao se compreender a forma como conteúdo “precipitado”. A metáfora expressa ao mesmo tempo o caráter sólido e duradouro da forma e sua origem no conteúdo, ou seja, suas propriedades significativas. [...]

As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente não devem ser expostas in abstracto, mas apreendidas no interior da obra como contradições técnicas, isto é, como “dificul­dades”. Seria natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros poéticos, as mudan­ças na dramaturgia moderna que derivam das problematizações da forma dramática. Mas é preciso renunciar à poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a uma avaliação for­çosamente negativa das tendências épicas, mas porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira os fundamentos da poética sistemática enquanto tal.

Desse modo, o ponto de partida terminológico é constituído somente pelo conceito de drama. Como conceito histórico, ele representa um fenômeno da história literária, isto é, o drama, tal como

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se desenvolveu na Inglaterra elisabetana e sobretudo na França do século XVII, sobrevivendo ao clas­sicismo alemão. Ao colocar em evidência o que “precipitou” na forma dramática como enunciado sobre a existência humana, ele faz de um fenômeno da história literária um documento da história da humanidade. Deve­se mostrar as exigências técnicas do drama como reflexo de exigências existen­ciais, e a totalidade que ele projeta não é de essência sistemática mas filosófico­histórica. A história foi banida para os hiatos entre as formas poéticas, e unicamente a reflexão sobre a história é capaz de lançar pontes sobre eles.

No entanto, o conceito de drama não tem vínculos históricos somente em seu conteúdo, mas também em sua origem. Visto que a forma de uma obra expressa sempre algo de inquestionável, o claro entendimento desse enunciado formal geralmente só é obtido em uma época para a qual o que era antes inquestionável se tornou questionável, para a qual o evidente se tornou problema. Dessa maneira, o drama é aqui conceitualizado nos termos de sua impossibilidade atual, e esse conceito de drama é já compreendido como o momento de um questionamento sobre a possibilidade do drama moderno.

Portanto, é designado a seguir por “drama” apenas uma determinada forma de poesia teatral. Nem as peças religiosas da Idade Média nem as peças históricas de Shakespeare fazem parte dela. A perspectiva histórica requer a abstração também da tragédia grega, já que sua essência só pode­ria ser reconhecida em um outro horizonte. O adjetivo dramático não expressa, no que segue, ne­nhuma qualidade (como nos Conceitos Fundamentais da Poética, de Staiger), mas significa simples­mente “pertencente ao drama” (diálogo dramático = “diálogo no drama”). Em oposição a drama e dramático, o termo dramática ou dramaturgia é usado também no sentido mais amplo, designando tudo o que é escrito para o palco. [...]

Como a evolução da dramaturgia moderna se afasta do próprio drama, seu exame não pode passar sem um conceito contrário. É como tal que aparece o termo épico: ele designa um traço es­trutural comum da epopéia, do conto, do romance e de outros gêneros, ou seja, a presença do que se tem denominado o sujeito da forma épica ou o eu-épico.

Estudos literários1. Analise a seguinte afirmação de Girard e Ouellet, no livro O Universo do Teatro:

A fala permite, evidentemente, “relatar as experiências, exprimir os diferentes estados e pro­cessos psíquicos vividos pela personagem que fala num determinado momento” (os autores estão citando Roman Ingarden). Esta função expressiva está ligada à duração, ao acento, à entonação do comediante, tais como a mímica e o gesto.

Explique essa afirmação relacionando­a com a teoria do texto dramático e do texto cênico ou espetacular.

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2. Pesquise na biblioteca de seu município ou na internet a relação entre a catarse (definida por Aristóteles) e a função social do texto dramático.

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3. Leia o fragmento da cena inicial da comédia Amor por anexins (1870), do dramaturgo brasileiro Aluísio Azevedo.

Ato único

Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d’água. Cadeiras.

Cena I (Inês)

Inês (Cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela.) – Lá está parado à esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver­me livre de semelhante cáustico. Ora eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento, havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali! Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena.) [...] Ainda hoje escreveu­me uma carti­nha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda em que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui está. (Lê.) “Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá­la no gozo da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que amortalhado. Venho pedi­la em casamento pela Segunda vez. Ruim é quem em ruim conta se tem, e eu que não me tenho nessa conta. Jamais senti por outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira.” (Declamando.) Que enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler.) “Tenho uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus melhora, e mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada a ninguém, e quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo seu, Isaías.” (Guardando a carta.) Está bem aviado, Senhor Isaías! Vou às compras; é um excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins. Vou preparar­me. (Sai pela porta da direita. Pausa.)

Verifique nesse trecho como se apresentam as rubricas e as falas da personagem Inês. Selecione na linguagem da personagem Isaías os provérbios citados. Faça uma projeção de qual pode ser o con­flito dessa peça. Depois, se puder, leia o texto completo para verificar se sua projeção foi acertada em <www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=16565>.

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Gêneros literários: o ensaístico

Marta Morais da CostaPara tratar desse gênero literário que extrapola a divisão clássica tripartida − lírico, épico e dramá­

tico −, faz­se necessária uma reflexão sobre a questão dos gêneros na atualidade e sua relação com uma nova perspectiva de julgamento sobre os discursos e seu papel na cultura. Essa nova perspectiva é a que estuda os denominados gêneros de fronteira.

O gênero de fronteiraO gênero de fronteira é uma modalidade de texto considerada periférica em relação aos três gêne­

ros clássicos e tradicionais da literatura: o épico, o lírico e o dramático. Entre esses gêneros se encontram “a psicografia mediúnica, o cordel, o ensaio, o prefácio, a crônica, a biografia, a memória, o romance his­tórico, a tradução, a epistolografia, o relato de viagem, o diário e até mesmo questões de fraude literária” (AGUIAR et al, 1997, p. 9).

O surgimento dessas variantes da tradição se deve, por um lado e em especial, aos momentos de ruptura da história cultural e literária, quando a necessidade de expressão busca formas apropriadas, mais adequadas ao novo momento histórico. Por outro lado, a crítica literária busca, na valorização desses tex­tos de fronteira, um desprendimento dos valores tradicionais atribuídos à literatura para melhor avaliar as novas formas. Assim, por exemplo, levar em consideração o diário, texto confidencial e supostamente secreto, particular, e dele fazer objeto de estudo, considerando seu discurso e sua linguagem, implica abrir mão de critérios considerados eruditos, clássicos, estéticos, para buscar no novo objeto outros valores, ou­tras funções, outros modos de escrita e de preocupação com a efetividade da linguagem utilizada. A ade­quação da linguagem ao novo formato é critério indiscutível para se chegar a entender o funcionamento do gênero de fronteira. Observe­se que na lista apresentada anteriormente não se fala de conteúdos, mas em formas de narrativa e escrita. Esse é um ponto importante da questão do estudo dos gêneros de fron­teira. E o fato de eles serem tidos como periféricos já indica uma posição afastada dos gêneros considera­dos canônicos, e, por isso, mais valorizados.

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Torna­se necessário, portanto, no trabalho com os gêneros de fronteira, que o estudioso adote no­vos critérios e novos modelos de abordagem desses textos. Na verdade, o que ocorre é que o processo de interpretação passou a comandar os critérios. O leitor, o sujeito que interpreta, passou a levar em conta novas funções para os textos e passou a atribuir a eles outros valores, questionando as normas estabelecidas por uma crítica prescritiva e autoritária. Ao tratar das alterações ocorridas na cultura, Terry Eagleton (2005, p. 81) avalia a posição do leitor diante da obra literária desta maneira:

O que importa não são as obras em si, mas a maneira como são coletivamente interpretadas, maneiras que as próprias obras dificilmente poderiam ter previsto. Tomadas em conjunto, elas são apresentadas como evidência da unidade atemporal do espírito humano, da superioridade do imaginativo sobre o real, da inferioridade das idéias com relação aos sentimentos, da verdade de que o indivíduo está no centro do universo, da relativa desimportância do público com relação à vida interpessoal, ou do prático com relação ao contemplativo e outros preconceitos modernos desse tipo.

Verificamos como essa mudança de óptica sobre o papel do leitor traz, em sua essência, a pers­pectiva de maior liberdade de avaliação e a possibilidade de entrada de outros discursos verbais e es­critos no conjunto das formas literárias, conforme ficou demonstrado na enumeração dos gêneros de fronteira. Essa perspectiva está relacionada com a ampliação do conceito de literatura, que deixa de lado a idéia de que textos literários são exclusivamente os pertencentes a uma cultura erudita. Tam­bém diz respeito a uma constante atitude de quebra de paradigmas, principalmente daqueles herda­dos da cultura bipolar vigente até os anos 1950. Nessa bipolaridade, predomina um pensamento dual e opositivo (bom versus mau, erudito versus popular, estética versus ciência, normas versus desordem). A ruptura se dá com a vigência de um pensamento dialético e desconstrutivo, em um momento cultu­ral pós­estruturalista, que recebeu a denominação de pós-modernismo ou hipermodernismo (CULLER, 1997). Nessa nova visão da cultura, da arte e da literatura, predomina um comportamento mais liberal e sem preconceitos. Em conseqüência, surge um olhar mais aberto para os escritos, criando condições de aceitação para formas textuais diferenciadas, que são acolhidas no seio dos chamados estudos lite-rários. Entre elas, cabe destacar o ensaio, um discurso analítico de uso freqüente na universidade e nos ambientes e meios de comunicação que tratam da literatura.

O ensaioO ensaio é um gênero textual com longa existência dentro das produções escritas do Ocidente.

O termo foi criado por Michel de Montaigne (1533­1592), considerado até hoje o mais representativo dos autores dessa modalidade textual. Sua obra, Ensaios, data de 1580. Alguns críticos, como Massaud Moisés (1997), consideram a Poética, de Aristóteles; os Diálogos, de Platão; as Meditações, de Marco Au­rélio; além dos escritos de Sêneca, Plutarco e Teofrasto, como ensaios. Em língua inglesa, os Ensaios, de Francis Bacon, datam de 1597. Outros autores de língua inglesa que se sobressaíram nesse gênero tex­tual foram Addison, Steele, Hazlitt, Ralph Waldo Emerson, D. H. Lawrence, Virginia Woolf e T. S. Eliot. Na América do Sul, Machado de Assis, Paulo Prado, Décio de Almeida Prado, Pedro Nava, Jorge Luís Borges e Eduardo Galeano. Em francês, Roland Barthes e, em italiano, Ítalo Calvino.

O termo é usado para descrever uma composição em prosa, de extensão variada (alguns teóricos chegam a limitar o texto entre 2 e 20 páginas), tratando de um assunto específico. Em sua etimologia, vem do latim exagiu(m), que significa “ação de pesar”. Na acepção de Montaigne, tem a ver com exame, experiência, prova, tentativa. Segundo Angélica Soares (1989, p. 65), “a etimologia da palavra ensaio aponta para ‘tentativa’, ‘inacabamento’ e ‘experiência’”. Mas é impossível estabelecer uma definição rigo­

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rosa porque o termo é usado para os mais diferentes tipos de texto e os autores o usam com igual im­precisão: “sob o rótulo de ensaio, se inscrevem hoje textos tão conclusivos (ensaios críticos, científicos, filosóficos, políticos, históricos) que ensaiar já não é apenas tentar ou experimentar uma interpretação da realidade por meio de exposições pessoais do escritor, sobre assuntos de seu domínio” (SOARES, 1989, p. 65). Para Lúcia Lippi de Oliveira (1997, p. 63), o ensaio pode ser caracterizado de maneira mais abrangente: “O ensaio se apresenta como texto fragmentado cujos aspectos vazios podem ser ocu­pados de diferentes formas [...] tem sido visto como forma aberta, basicamente marcando tendências antiescolásticas no campo religioso, filosófico ou mesmo científico”. Essa abertura para a divergência e uma possível interpretação da realidade termina por tornar o texto ensaístico uma manifestação da individualidade interpretativa de seu autor, conduzindo, no caso da literatura, quase que fatalmente, para uma simbiose entre o texto literário que é objeto da análise e o discurso crítico contaminado pela linguagem literária. Em um dos textos críticos de Machado de Assis (1997, p. 18), intitulado “Notícia da atual literatura brasileira: instinto de nacionalidade”, considerado uma das reflexões teóricas mais perti­nentes para definir o caráter da nossa literatura, o autor afirma que

Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim a defesa do mau gosto dos poetas arcá­dicos nem o fatal estrago que essa escola produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando entre a metrópole e a colônia criara a história e a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As mes­mas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

No pequeno trecho citado, pode­se perceber a contaminação do discurso crítico­literário pelos recur­sos da literatura, como as expressões “iscados daquele mal”, “no ventre do futuro” e “alvorecendo agora”, que enriquecem a linguagem reflexiva com o inusitado e incomum uso das imagens metafóricas.

A simbiose de elementos críticos e literários autoriza Lúcia Oliveira (1997, p. 68) a melhor definir o ensaio como um texto que

[...] se apresenta como uma das vertentes da modernidade ao expressar a riqueza da experiência subjetiva já que se presta à reflexão da intuição individual. O ensaio recusa o método científico se entendermos como tal a procura de leis, por outro lado ele se adaptou à época moderna e ao novo espírito científico na medida [em] que colocou no lugar dos conceitos a atenção à realidade, no lugar da interpretação da autoridade a vida do homem em sua real diversidade.

E a autora posiciona Montaigne e Descartes nesse modo de praticar o texto ensaístico, em que pre­domina a subjetividade. O cientificismo do século XIX trouxe para o campo ensaístico a disputa entre, por um lado, a objetividade dos conceitos, a necessidade de comprovação e a observação fechada sobre a realidade e, por outro lado, essa subjetividade exercida pelos ensaístas da linhagem de Montaigne.

Em um ensaio teórico marcante para a compreensão das relações entre texto e leitor, Roland Barthes escreveu O Prazer do Texto (1973), um texto repleto de metáforas e comparações que buscam refletir na linguagem a complexidade da sensação prazerosa ao se ler um livro que toca profundamente o inconsciente e as tarefas de compreensão e apreensão de sensações de plenitude e de satisfação pelo leitor, agente da interpretação. E em um dos trechos desse ensaio, afirma Barthes (1997, p. 27­28, grifos do autor) que

O prazer do texto não é forçosamente do tipo triunfante, heróico, musculoso. Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo). Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz: falta-me o ânimo). Daí porque um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou talvez ainda: a Asneira.

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Essa escrita que se faz simultaneamente analítica e criativa desloca o texto do ensaio para uma situação de descoberta das potencialidades da língua pelo leitor, alterando o que deveria ser a análise objetiva de um elemento teórico. Sobre essa posição de Barthes a respeito da crítica literária e, por ex­tensão, do ensaio, afirma Jérôme Roger (2002, p. 166): “Ao colocar sem subterfúgios a questão da crítica como forma de literatura, Barthes revelou­se indiretamente um escritor, sendo tanto vilipendiado quan­to, em seguida, adotado pela crítica universitária”. Temos, portanto, na obra de Barthes, um exemplo contemporâneo do ensaio de crítica literária que usa os componentes do discurso literário, alterando um gênero que deveria ser estritamente científico.

Após essa disputa, chegamos hoje ao conceito de que sempre é possível “relatar diferentemente os mesmos acontecimentos, compreender a teia de significados de diferentes relatos [que] nos coloca no espaço da hermenêutica” (OLIVEIRA, 1997, p. 63). Assim, podemos reencontrar na contemporaneidade o sujeito intérprete atuando com seu repertório e sua posição crítica sobre os objetos (obras literárias inclu­sive) de seu interesse científico. Em conseqüência, “o ensaio aparece assim como o gênero mais permeável aos saberes que rompem as barreiras entre as disciplinas e que abandonam a idéia ingênua de que o texto científico expressa a realidade, confirmando o espaço do ensaio como uma das formas de oposição a qual­quer pensamento essencialista” (OLIVEIRA, 1997, p. 68).

A abertura e a multidisciplinaridade, acentuamos novamente, provocarão uma mudança na pró­pria expressão lingüística e discursiva, trazendo para os ensaio sobre a literatura a contaminação do dizer literário. Duplamente anticientífico, na abordagem e na escrita, o ensaio se apresenta como um texto que desafia a tradição clássica da separação tripartida dos gêneros.

A crítica literária e suas funçõesA Teoria da Literatura apresenta, discute e estabelece os modos de entendimento do texto lite­

rário, bem como de sua apreensão pelos leitores. Da mesma forma, constitui métodos de estudo, de­correntes das transformações do próprio objeto que estuda. A partir desses pressupostos e do método adotado, surge a crítica literária. Etimologicamente, o termo crítica provém do verbo grego krinein, que significa “separar para distinguir”, “julgar”.

A função da crítica literária se dá, pois, a partir da teoria e do método, e se define por

[...] desempenhar suas funções de caracterização da obra, através da distinção dos elementos que a compõem e a identificam na sua diferença. Como atividade de investigação, a crítica se exerce no sentido de conduzir­se para dentro dos vestígios deixados pelo poético. Objetivando reconduzir a obra literária à sua origem, o seu fundamento, a crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica, lingüística...), não pode descartar­se da sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá a um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto literária, incluirá literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa o campo de conhecimento com o qual se articulou, na construção do modelo de leitura. (SOARES, 2000, p. 100)

O importante na visão de Angélica Soares é a relação entre a área de conhecimento (a literatura) e sua destinação final (a construção de um modelo de leitura). Para chegar a essa destinação, o crítico passa – conforme entendimento da própria etimologia – pelo ato de apreciar, de valorar o texto criticado:

Se por julgar se compreender a formulação de juízos de valor, infere­se que a crítica mergulha raízes na idéia de valor, ao menos como derradeira instância: o ofício do crítico tem por meta a fundação de uma escala de valor entre as obras

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que compõem a literatura de um povo. Admitindo­se o valor como a relação entre o crítico e a obra, depreende­se a relatividade do ato crítico: o valor se acha não no objeto do conhecimento, nem no sujeito que o pratica, mas na relação que ambos estabelecem. (MOISÉS, 1997, p. 130)

Salienta­se nessa posição de Massaud Moisés a importância da qualidade de relação estabelecida entre o crítico e a obra, o que valoriza não o estado de cada um (o valor do crítico ou o valor da obra literária), mas o encontro entre os dois, que resultará sem dúvida na avaliação mais pertinente, a com­preensão mais profunda, a visão crítica mais aguçada. Se não houver esse encontro, a crítica trará como resultado uma avaliação menos cabível, mais sujeita a contestações. Também é de salientar nessa rela­tividade a condição do crítico como autor de um texto e, portanto, vivenciando todas as qualidades e problemas da escrita. Seu texto terá como resultado ser “fruto pessoal e intransferível” (MOISÉS, 1997, p. 131), e uma manifestação metalingüística, isto é, a linguagem sobreposta, tendo como assunto a própria linguagem – no caso, o texto do literato.

Desse modo o leitor tem acesso a um texto secundário (metalinguagem [...]) do qual espera fruir prazer e conheci­mento, e uma orientação para melhor aproveitar o texto primário (do ficcionista ou poeta), que, por seu turno, deve oferecer­lhe deleite espiritual e alargamento de consciência e de saber. De onde a crítica também consistir numa ativi­dade criadora, mas de segundo grau [...]. (MOISÉS, 1997, p. 131)

Essa consciência da autoria induz ao entendimento do texto crítico como uma das espécies mis­tas do gênero literário.

O ensaio no discurso literário: a metaficção e metapoesiaDenomina­se metaficção ou metapoesia quando a ficção ou o poema chama a atenção para a

própria ficcionalidade e poeticidade. A história da literatura registra muitos exemplos de obras poé­ticas ou romanescas que usam a palavra para tratar do próprio ato de escrever literatura. Na ficção, o exemplo clássico é Tristam Shandy (1759­1767), obra de Laurence Sterne em que se observa um cons­tante diálogo com o leitor sobre o ato de ler e, sobretudo, sobre a construção do romance. Na França, Xavier de Maistre (1763­1852) também fez do diálogo com o leitor a oportunidade de esclarecer sobre as intenções e a construção de sua narrativa, intitulada Viagem à Roda do meu Quarto (1794). Nessa, ele proclama já de início as qualidades de seu texto:

Não, não conservarei mais o meu livro in petto; aqui o tendes, senhores, lede. Eu empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. As observações interessantes que fiz e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho davam­me o desejo de torná­la pública; a certeza de ser útil me convenceu a fazê­lo. Meu cora­ção sente uma satisfação inexprimível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um recurso certo contra o tédio e um calmante para os males que sofrem. O prazer que se sente ao viajar em seu quarto está ao abrigo do ciúme inquieto dos homens; é independente da fortuna. (MAISTRE, 1989, p. 5)

No romance Se um Viajante numa Noite de Inverno, de Ítalo Calvino (1923­1985) começa a narrati­va do primeiro capítulo pela citação do próprio romance:

Você vai começar o novo romance de Ítalo Calvino Se um Viajante numa Noite de Inverno. Pare. Concentre­se. Afaste qualquer outro pensamento. Deixe o mundo que o cerca se esfumar no vago. A porta, será melhor fechá­la. Do outro lado, a televisão está sempre ligada. Diga imediatamente aos outros: “Não, eu não quero ver televisão!” Fale mais alto, se eles não o ouvirem: “Estou lendo! Não quero ser perturbado!” Com toda essa barulhada, pode ser que não o tenham escutado: fale mais alto, grite: “estou começando o novo romance de Ítalo Calvino!” (CALVINO, 1989, p. 9).

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104 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Os protagonistas são os personagens Leitor e Leitora, e todo o texto é uma longa exposição em forma ficcional de conceitos sobre o romance contemporâneo, exemplificado em dez diferentes inícios de narrativa, que não continuam nem se finalizam. Esses começos ficcionais se alternam com situações, também fictícias, dos protagonistas, com isso havendo uma exposição dissertativa e crítica sobre litera­tura. É um exemplo extraordinário de como o romance fala de sua própria construção dentro da ficção.

Na poesia, a consciência do fazer poético e a expressão dessa consciência em versos também têm um histórico de muitos textos ao longo do tempo. No fragmento de poema que segue, de autoria de Álvares de Azevedo (1831­1852), intitulado “Idéias íntimas” (1852), é possível detectar o julgamento lite­rário de outros escritores na expressão do poeta romântico:

Ossian o bardo é triste como a sombra Que seus cantos povoa. O Lamartine É monótono e belo como a noite, Como a lua no mar e o som das ondas... Mas pranteia uma eterna monodia Tem na lira do gênio uma só corda, Fibra de amor e Deus que um sopro agita: Se desmaia de amor a Deus se volta, Se pranteia por Deus de amor suspira. Basta de Shakespeare. Vem tu agora, Fantástico alemão, poeta ardente Que ilumina o clarão das gotas pálidas Do nobre Johannisberg! Nos teus romances Meu coração deleita­se... contudo Parece­me que vou perdendo o gosto, Vou ficando blasé, passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar. Vivo fumando Minha casa não tem menores névoas Que as deste céu de inverno... Solitário Passo as noites aqui e os dias longos [...]

(AZEVEDO, 1971, p.124­125)

Na atualidade, no período denominado Pós­Modernismo, a metaficção e a metapoesia se torna­ram cada vez mais presentes na literatura. Vejamos mais um exemplo de poema metapoético, este de Pedro Paulo de Senna Madureira:

As palavras querem romper as amarras do poema. Recusam­se a guardar o silêncio que entre o meu e o teu olhar se lê.

Nada a fazer. As palavras se anulam na memória. Poesia: luz que não se vê. [...]

(MADUREIRA, 1989)

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Assim, a literatura também assume um discurso teórico­crítico que une o fazer literário à reflexão ensaística sobre questões de produção de textos específicos. É possível verificar, portanto, que a classi­ficação fechada dos gêneros passa a ser transformada pela ação dos próprios escritores, em um evoluir que reflete as mudanças na concepção da arte literária e propiciam a reflexão teórica renovada.

Texto complementar

As dimensões da crítica(BORNHEIM, 2000, p. 44-45)

Não é apenas curioso observar que a crítica, já em suas origens, nasce no contexto de uma am­bigüidade deveras significativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de arte à condição de um objeto, e ela se deixa guiar por coordenadas que regem a própria vigência desse objeto (objeto aqui pode ser tanto a obra derivada daquela estética do objeto, quanto a obra que se prende àquela estética do sujeito; em definitivo, a categoria do objeto termina vitoriosa). Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer como obra de arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte. Pense­se em Baudelaire, no jovem Lukács, em Walter Benjamin e em tantos outros que fizeram da crítica um tipo de obra de arte, espécie de gênero pa­ralelo à realidade que ela mesma comenta. Essa tendência bastante disseminada vê pois no ato de escrever sobre uma obra um sucedâneo que repete à sua maneira a gênese geradora da obra. Seria como que uma criação em grau outro, teimosa em persistir em sua autonomia, em coadunar­se com a especificidade de sua linguagem.

Assim é que se podem ler certos ensaios sobre arte e literatura, em Sartre por exemplo, que são sem dúvida capítulos da crítica, mas que ostentam em verdade uma autonomia que os torna em certo sentido auto­suficientes. A peculiaridade desse tipo de crítica reside totalmente no fato de seu autor instalar­se na intimidade do elã criativo que dá origem à própria obra de arte – já não se a considera a partir de um resultado­objeto a oferecer­se em sua precisa composição. Vista nesta perspectiva, caberia dizer que a crítica contemporânea vive de um paradoxo: ela se sente compe­lida a exercer o seu mister simplesmente pela análise desse resultado final que se dá à percepção do espectador. O paradoxo está em que, por este viés, o crítico se aproxima da obra enquanto ela constitui um objeto dado à percepção; e todo o engenho crítico move­se, por conseqüência, dentro das fronteiras estipuladas pela ampla hegemonia da dicotomia sujeito­objeto. É por aí que se pode entender o sucesso, mas também o fracasso – e em todos os casos a medida – de métodos como o do new criticism e o do estruturalismo. [...]

A crise atual da crítica deriva, ao que tudo indica, dessa dissonância radical entre dois níveis: o ato criador que gera a obra e o retardamento de uma crítica que, ainda que de modo velado, insiste

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na visualização através de uma normatividade pretensamente objetiva. Essa, repito, talvez seja a raiz do impasse que habita a crítica em sua própria essência, como que a indicar sua transitoriedade. As portas, entretanto, e já em nome de uma bela tradição, permanecem amplamente abertas: tudo se oferece à meditação, uma meditação que busca penetrar o sentido de uma obra e o sentido, até, da arte de modo geral.

Estudos literários1. Reúna duas resenhas críticas sobre literatura, retiradas de jornais, revistas ou da internet. Verifique

se existe na linguagem delas elementos que podem ser associados à linguagem das obras literárias.

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107|Gêneros literários: o ensaístico

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2. Leia uma crítica de Wilson Martins, publicada em O Globo, em 23 de julho de 2005, e aponte qualidades de análise e de subjetividade do crítico presentes no texto. Avalie a qualidade do texto crítico.

A marcha do tempoO centenário de Jean­Paul Sartre ocorre quando o “compromisso” político do intelectual, dou­

trina a que o seu nome ficou ligado por antonomásia, de há muito deixou de ser imperativo con­tornável na República das Letras. O que se vê, ao contrário, e pelo mundo todo, é o predomínio do esteticismo e seu correlato experimentalismo arbitrário, tanto na poesia quanto na prosa de ficção, nada havendo de mais gratuito e socialmente descompromissado que as diversas “vanguardas” que, na segunda metade do século XX, derivaram­se sucessivamente umas das outras pelo proces­so mecânico e imitativo da homogenia.

No que nos concerne, há pontos de referência por assim dizer didáticos, se tomarmos para de­monstração dos escritores representativos. Jorge Amado abandonou o realismo socialista, a que se entregara com fervor doutrinário na primeira parte de sua carreira, adotando o realismo “burguês” e correspondente desencanto ideológico. Autor que anunciara escrever “com o máximo de realidade e o mínimo de literatura”, começou a fazê­lo, e cada vez mais, com o máximo de literatura e o mínimo de realidade. É a diferença que separa, por um lado, o período de Mar Morto (1936), Os Subterrâneos da Liberdade (1954), e, por outro lado, a série que se inicia em 1958 com Gabriela, Cravo e Canela: a luta de classes transferiu­se predominantemente para a posição horizontal, sem excluir a pornogra­fia que devia ser aceita como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.

O caso Drummond de Andrade é ainda mais expressivo, com a transição igualmente didática de A Rosa do Povo, em 1945, Claro Enigma, seis anos depois, salto mortal que, com elegância olímpi­ca, conduziu­o de Zhdanov a Paul Valéry, o que, em termos literários, foi um ganho inestimável: os “acontecimentos”, que antes o fascinavam, “com o russo em Berlim” e o nome imortal de Stalingra­do, passaram a entediá­lo, apostasia de que nenhum outro escaparia ileso. A questão do papel social do escritor é mais complexa do que pareceria à primeira vista. Escritor é palavra genérica que só ad­quire sentido e realidade através de múltiplas espécies, não raro estranhas e antagônicas entre si.

Machado de Assis é escritor, e Paulo Coelho também. No plano de valor e qualidade são pou­cos os escritores contemporaneamente célebres que sejam, ao mesmo tempo, grandes escritores aos olhos do Eterno. A celebridade traz nela mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade. Lembremos o acima referido exemplo de Jean­Paul Sartre: ninguém mais célebre, influente e militante do que ele e, contudo, continuará célebre? Continua vivo? Questões inquietantes que começam a ser feitas, no momento em que as comemorações previsíveis podem torná­lo célebre de novo, havendo até quem o indique como um pensador para o século XXI. Assim, o “papel social” do escritor e o seu “compromisso” dependem das circunstâncias de tempo e lugar, exprimindo­se ora em textos enga­jados, como se dizia no vocabulário sartriano, ora, ao contrário, subliminalmente e por implicação, na obra de arte “pura”.

Disponível em: <www.secrel.com.br/jpoesia/wilsonmartins148.html>. Acesso em: 15 nov. 2007.

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109|Gêneros literários: o ensaístico

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3. Interprete este trecho sob a ótica de um gênero de fronteira:

[...] a crítica já em suas origens, nasce no contexto de uma ambigüidade deveras significativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de arte à condição de um objeto, e ela se dei­xa guiar pelas coordenadas que regem a própria vigência desse objeto [...] Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer como obra de arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte.” (BORHEIM, Gerd. As dimensões da crítica. In: MARTINS, Maria Helena (Org.) Rumos da Crítica. São Paulo: Senac/Itaú Cultural, 2000. p. 44).

Escreva o resultado de sua interpretação.

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A linguagem poética: poema X poesia

Marta Morais da CostaA poesia está associada a um dos gêneros literários, o lírico. Na Teoria da Literatura, pode ser en­

contrado o entendimento de que a poesia se refere a um modo de escrita imaginativa, caracterizada pelo uso do verso metrificado. Não era esse o conceito de poesia até o século XIX. Atribuía­se esse termo a toda produção que tivesse vínculo com o imaginário, independentemente da forma escrita – em verso ou prosa. A partir desse século, a essa produção passou a ser atribuído o termo literatura.

O objeto e funções da poesiaO termo poesia deriva do grego poiesis, com o significado de “fazer” e “criar”. Portanto, etimologi­

camente há a idéia de trabalho e de invenção. Não há indicação de sentimento, verso ou musicalidade, qualidades que serão acrescidas ao longo da história.

No início da cultura grega, de que a cultura ocidental é herdeira, a poesia tinha duas formas de expressão: a épica e a dramática. Sua finalidade era a imitação dos homens e da natureza. Encontramos a conceituação desse objeto do texto poético em Platão (aproximadamente 428­347 a.C.) e em Aristó­teles (384­322 a.C.).

O primeiro não considerava que a poesia fosse séria na medida em que se tratava da imitação do que já era imitação na natureza, pois da realidade o homem somente tem acesso a imagens, a sombras. Na concepção de uma nova sociedade, expressa pelo filósofo no livro X da obra República, o poeta não tem utilidade social, porque se encontra em um terceiro estágio: o primeiro pertence à divindade que criou a idéia de, por exemplo, cadeira. Em segundo lugar, vem o artesão que fabricou a cadeira. Por últi­mo, o poeta que representa abstratamente essa cadeira.

Já para Aristóteles, a imitação, função essencial da poesia, consistia na representação dos homens em ação, seus caracteres, suas paixões e seus atos.

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O dito de Simônides, difundido por Plutarco, de que a “pintura é poesia muda e a poesia pintura falante”, e uma célebre fórmula de Horácio, erroneamente interpretada – ut pictura poesis – contribuíram para enraizar a crença de que a essên­cia da poesia consistia na imitação da natureza. Trata­se, aliás, de uma concepção estética que facilmente se impunha aos espíritos, sobretudo em estéticas informadas por filosofias do objeto, como foram em geral a filosofia grega e as filosofias ocidentais dela derivadas. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 146)

Para Horácio (65 a.C. ­ 8 d.C.), na Roma antiga, a função da poesia era dupla: servia para entreter e comover, dela se retirando preocupações de ordem filosófica.

Os preceitos imitativos da poesia foram mantidos até a segunda metade do século XVIII, com o advento do Iluminismo. O filósofo Vico concebia poesia pela perspectiva da linguagem. Como esclare­ceu Abrams (apud AGUIAR E SILVA, 1976, p. 148), “o fato capital nesse desenvolvimento foi a substituição da metáfora do poema como imitação, um espelho da natureza, pela do poema como um heterocosmo, uma segunda natureza, criada pelo poeta num ato análogo à criação do mundo por Deus” .

Já no Renascimento, a ênfase foi para a cultura, o cultivo do bom gosto (dentro dos critérios da época) e o trabalho paciente de aperfeiçoamento dos aspectos materiais dos poemas. Trata­se de con­ceber o texto como manifestação equilibrada, lúcida e comedida, mesmo que a sua origem esteja vin­culada ao recebimento “dos céus de uma secreta dádiva” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 194). A genialidade do poeta precisava estar apoiada em um conhecimento e um saber sólidos, bem como no domínio de uma técnica apurada. A poesia, portanto, podia surgir da inspiração, mas logo dominada pela obediên­cia a normas.

No período do Romantismo (parte dos séculos XVIII e XIX), “a teoria do gênio e a estética român­tica introduziram no próprio coração da poesia o irracional e o inconsciente” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 195). No entanto, em plena vigência do Romantismo, surgiu uma voz dissonante: Edgar Allan Poe (1809­1849) escreveu em 1845 um ensaio fundamental para a concepção do modo de fazer e da própria natureza da poesia, intitulado “A filosofia da composição”. Nele, o autor norte­americano analisa com minúcias a criação de seu poema “O corvo”, e estabelece alguns pressupostos da construção poética, como a precisão e o rigor lógico, indispensáveis para o sucesso do poema. Os elementos formadores desse texto são o efeito de beleza, a extensão exata (em torno de cem versos), a palavra catalisadora do sentido (em forma de refrão), o tom melancólico e o cuidado com a construção dos versos e estrofes.

Com esse poema, “O corvo”, muitos críticos dão como iniciada a poesia moderna. Charles Bau­delaire (1821­1867), outro poeta fundamental para a modernidade, também defendeu o rigor formal, a desconfiança em relação à inspiração e à irracionalidade, e o sempre presente espírito crítico que o poeta deve manter em relação a sua poesia.

A teoria da poesia como segunda natureza, proposta por Vico, recebeu um reforço no pensamen­to de Freud, segundo quem “a criação poética (e artística, de um modo geral) se situa neste domínio das realizações simbólicas e das compensações fictícias: o escritor afasta­se da realidade hostil e cria um mundo imaginário no qual projeta as suas ‘recordações recalcadas da infância e as pulsões afetivas a elas ligadas’, procurando assim satisfazer os seus fantasmas íntimos e desconhecidos” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 180).

Nesses dois posicionamentos, é possível perceber um deslocamento do aspecto imitativo, que passa do real empírico e exterior para as realidades de linguagem (a segunda natureza enquanto cria­ção análoga) e de interiorização no inconsciente (as recordações e o recalque). Em qualquer um dos dois, o objeto deixou de ser exclusivamente a concretude do mundo exterior.

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113|A linguagem poética: poema X poesia

Em uma obra intitulada A Arte da Poesia, Ezra Pound (1885­1972) expôs os princípios de sua cren­ça na poesia, todos eles apoiados na idéia de que um poema tem como objeto essencial a linguagem, manifesta, sobretudo, em ritmo, símbolos, formas e técnicas de composição. Para tanto, expressou em 1954 sua expectativa:

quanto à poesia do século XX, e a poesia que espero ver escrita no decorrer da próxima década, aproximadamente, creio que ela será o oposto da conversa fiada, que será mais rija e sadia [...] será tão granítica quanto possível; sua força estará na sua verdade, em seu poder de interpretação (evidentemente, é sempre aí que reside a força poética); quero dizer que ela não tentará parecer vigorosa por via do fragor retórico e da extravagância faustosa. (POUND, 1976, p. 20)

Em Teoria da Literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva sintetiza quais sejam, em seu entender, o objeto e as funções da poesia:

“o caráter simbólico e imaginário de toda a criação poética”;::::

a poesia “se relaciona não só com a atividade consciente do homem, mas também com o seu ::::dinamismo inconsciente”;

há “relações mútuas entre invenção e execução [...] o poema como exclusivo produto de uma ::::revelação íntima e misteriosa, ou o poema como resultado estrito de uma laboriosa realização” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 202­203).

Para Octavio Paz (1982, p. 47),

A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato dessa operação consiste no desenraiza­mento das palavras. O poeta arranca­as de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informativo da fala, os vocábulos se tornam únicos como se acabassem de nascer. O segundo ato é o regresso da palavra: o poeta se converte em objeto de participação.

Convém, ainda, distinguir poema de poesia. Para Massaud Moisés (1997, p. 400), poema é

toda composição literária de índole poética [...] assumida ortodoxamente, a conexão entre poema e poesia implicaria um juízo de valor, ainda que de primeiro grau: todo poema encerraria poesia, e vice­versa, sistematicamente a poesia se coagularia em poema. Na verdade, a correlação apenas se observa como tendência, historicamente verificável, pois existem poemas sem poesia, e a poesia pode surgir no âmbito de um romance ou de um conto.

Em conseqüência, podemos afirmar que poema é a parte material do texto (versos, estrofes e, eventualmente, poema em prosa) e a poesia tem um conceito mais fluido e histórico. Nesta, predomi­nam um conteúdo emotivo­conceitual que extrapola os parâmetros da lógica formal, um tempo que corresponde à duração, a um presente eterno, à constelação de metáforas distribuídas e articuladas no poema, à predominância dos estados do eu poético sobre acontecimentos (MOISÉS, 1997, p. 406).

De todo modo, a poesia se distingue por padrões verbais específicos: síntese; variações sintáticas; uso especial de palavras e frases; modo elaborado de figuras de linguagem, principalmente a metáfora e o símbolo; ritmo; metro e efeitos sonoros. A poesia apresenta uma combinação equilibrada dos recur­sos sonoros e imagéticos, bem como o frescor de idéias.

O sujeito lírico e suas representaçõesUm poema lírico expressa habitualmente uma meditação ou uma disposição de alma e de espírito

de um indivíduo, de um sujeito, de uma única voz pessoal. Nem sempre essa voz é a do poeta biográfico,

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empírico: pode ser uma voz inventada, criada para aquele determinado poema. Assim, um poeta homem pode escolher uma voz feminina para se apresentar no texto. Foi o que ocorreu, por exemplo, com as can­tigas de amigo da Idade Média em Portugal, que exprimiam as mágoas amorosas de moças do povo, mas foram escritas por homens. Por exemplo, uma cantiga composta pelo rei Dom Dinis (MONGELLI, 1992):

Dom Dinis

Ai flores, ai flores do verde pino,se sabedes novas do meu amigo!ai Deus, e u é?

Ai flores, ai flores do verde ramo,se sabedes novas do meu amado!ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amigo,aquel que mentiu do que pôs comigo!ai Deus, e u é?

Se sabedes novas do meu amado,aquel que mentiu do que mi há jurado!ai Deus, e u é?

Essa presença de uma voz pessoal e em primeira pessoa confere ao poema uma característica con­fessional e de credibilidade, tal como em um poema de Manuel Bandeira (1970, p. 121), já no século XX:

ProfundamenteManuel Bandeira

Quando ontem adormeci

Na noite de São João

Havia alegria e rumor

Estrondos de bombas luzes de Bengala

Vozes cantigas e risos

Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei

Não ouvi mais vozes nem risos

Apenas balões passavam errantes

Silenciosamente

[...]

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115|A linguagem poética: poema X poesia

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avóMeu avôTotônio RodriguesTomásiaRosa

Onde estão todos eles?– Estão todos dormindoEstão todos deitadosDormindoProfundamente.

A primeira pessoa (“adormeci”, “ouvi”, “minha avó” etc.) pode ser entendida como a do poeta (Ma­nuel Bandeira), mas pode ser também a de qualquer criança ou adulto rememorando a infância. É exata­mente essa possibilidade de posicionarem­se outras subjetividades, além daquela do poeta, que sinali­za o texto de qualidade, sem que esse texto fique preso a um encaminhamento puramente confessional e intransferível – a tal ponto que esse sujeito lírico, muitas vezes expresso em primeira pessoa (mas não sempre), pode ser uma impostação, uma máscara assim descrita por Bakhtin (1988, p. 133): “Essa pureza monovocal e essa franqueza intencional, irrestrita do discurso poético acabado, é obtida a preço de uma certa convencionalidade da linguagem poética”. O caráter convencional pode impedir que se es­tabeleça um paralelo com a vida do escritor, mas favorece o trabalho objetivo com a linguagem, de vez que o envolvimento emocional pode ser substituído pelo trabalho artesanal do texto poético, o que vai conferir ao texto alto grau de poesia, conforme o entendimento de Pound e Baudelaire.

Portanto, a poesia apresenta uma visão subjetiva do mundo e dos homens. Essa subjetividade localiza­se na interioridade do poeta, mas se manifesta no discurso poético. Por sua vez, essa subjetivida­de no discurso pode se realizar diretamente, por meio do “eu lírico”, como apresentar­se por meio de más­caras, isto é, o poeta disfarça­se sob outros nomes e símbolos. Um deles é o da primeira pessoa explícita, conforme vimos no poema de Manuel Bandeira. Outro modo é o uso de pseudônimos, de outros nomes que funcionam como metáforas do próprio poeta. Em Carlos Drummond de Andrade (2000, p. 20), por exemplo, o poeta é substituído por José no poema “José”:

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

[...]

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116 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Caso extraordinário na literatura ocidental é o de Fernando Pessoa, poeta português que escreveu sob quatro heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Fernando Pessoa ele mesmo.

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio­me à idéia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara­se­me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei­me um dia de fazer uma partida ao Sá­Carneiro – de inventar um poeta bucó­lico, de espécie complicada, e apresentar­lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de março de 1914 – acerquei­me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, “O guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.

Desculpe­me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poe­mas que constituem a “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instinta e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri­lhe o nome, e ajustei­o a si mesmo, porque nessa altura já o “via”. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu­me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a “Ode triunfal” de Álvaro de Campos – a ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma “coterie” inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Guardei as influências, conheci as ami­zades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão entre Ricardo Reis a Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria. [...]

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quan­do sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (PESSOA, 1974, p. 96)

Trata­se de caso único na poesia e até hoje é motivo de estudos e discussões a respeito dessa extra­ordinária divisão de um mesmo poeta em diferentes identidades, biografias, assuntos e corresponden­tes maneiras de escrita. A multiplicidade é uma das marcas da poesia.

Cecília Meireles (1972, p. 224) assim poetava:

Auto-retratoCecília Meireles

Se me contemplo,

tantas me vejo,

que não entendo

quem sou, no tempo

do pensamento.

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117|A linguagem poética: poema X poesia

Ou o poeta Mário de Andrade (1987, p. 211), em um de seus poemas mais conhecidos:

Eu sou trezentos...Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos­e­cincoenta,

As sensações renascem de si mesmas, sem repouso,

[...]

Eu sou trezentos, sou trezentos­e­cincoenta,

Mas um dia afinal toparei comigo...

Assim, podemos concluir que, embora se fale de um sujeito lírico, não temos em poesia uma uni­dade psíquica nesse sujeito e nem mesmo em suas formas de representação no poema, dado que ele pode assumir diferentes nomes, como também ocultar­se e desconhecer­se.

A metáfora e a metonímiaO uso de palavras em sentido figurado, isto é, tomadas em sentido que provoca efeitos expressi­

vos, é uma das marcas mais relevantes da poesia. Há, segundo a retórica, dois diferentes tipos gerais de figuras: de linguagem ou palavra e de pensamento.

As figuras de palavras (que incluem as imagens sonoras e de estrutura do verso) podem ser:

de dicção ou prosódia;::::

de morfologia;::::

de harmonia ou combinação; e::::

de construção (repetição, omissão, transposição, discordância).::::

Já as figuras de pensamento remetem a efeitos poéticos atuando sobre o nível do sentido das palavras, frases e versos. Entre esses recursos que alteram os sentidos habituais das palavras e frases, temos os tropos, que compreende:

tropos de similaridade (imagem, metáfora, símbolo, catacrese e alegoria); e::::

tropos de contigüidade (metonímia, sinédoque e antonomásia).::::

Na atualidade, a retórica tem utilizado o termo figura de maneira genérica, englobando inclusive metáfora e metonímia. Assim, como procedimentos regulares do discurso, literário ou não, sobressaem a metáfora e a metonímia, sobre as quais existe vasta bibliografia e maior discussão ainda sobre o en­tendimento de sua concepção e uso. Vamos adotar aqui o sentido apontado pela retórica contemporâ­nea, que dá a ambas uma definição relacionada com o efeito que causam no discurso cotidiano – efeito esse que amplifica, torna plural e estético o sentido final.

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118 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Em sentido restrito, a metáfora é uma figura de linguagem em que algo é semelhante e identifica­do com outra coisa mais, e em que se atribui a A uma qualidade associada a B. Esse entendimento tem a ver com a etimologia do termo: em grego, metáfora significa “transporte, translação”. Assim, um objeto, uma idéia, uma pessoa ou sua ação são descritos por uma palavra ou expressão que normalmente é atri­buída a outro objeto, idéia, pessoa ou ação, buscando causar um efeito de comparação de qualidades afins aos dois. Essa qualidade comum abre a possibilidade, pela necessária comparação, do surgimento de novos sentidos, ampliando­os. Desse modo, o conceito de transporte é superado porque não se trata apenas de estabelecer uma relação um a um: a analogia entre as duas palavras vai além da semelhança, criando um sentido terceiro, porque cada um deles fica contaminado e acrescido.

A expressão “li todo o Camões” implica a relação de transferência em que o autor deve ser enten­dido como sua obra, enquanto em “Ele é um tigre” há a transferência das qualidades do animal para a pessoa. No primeiro exemplo, temos um tropo denominado metonímia; no segundo, a metáfora.

A metonímia estabelece uma relação de contigüidade, isto é, fica evidente a relação de causa e efeito, da parte pelo todo, do conteúdo pelo continente ou vice­versa. Já a metáfora trabalha com a relação de similaridade.

São metonímias, por exemplo, usar lata pelo líquido que ela contém (“Só de refrigerante, ela be-beu três latas!”); a imprensa, por jornalismo; o Palácio do Planalto, pela Presidência da República.

A metáfora, por sua vez, exige um entendimento de atributos mais amplos e específicos de cada uso particular. Uma mulher onça ou felina pode implicar vários sentidos: elasticidade, ferocidade, movi­mentos suaves e ondulados, pele matizada e sedosa. Compare por exemplo com a expressão mulher rosa ou flor: perfume, beleza, transitoriedade, espinhos que ferem. Esses exemplos nos dão a indicação de que a metáfora propicia maior amplitude do sentido e, portanto, torna mais plural a compreensão do texto, não apenas transferindo mas também criando novas acepções resultantes do hibridismo dos sentidos.

Podemos verificar a importância do discurso figurado e, em especial, da metáfora no poema que segue, de Paulo Henriques Britto: (2007, p. 26)

Uma doença – IIPaulo Henriques Britto

O mundo está fora de esquadro.

Na tênue moldura da mente

as coisas não cabem direito.

A consciência oscila um pouco,

como uma cristaleira em falso.

Em torno de tudo há uma aura

que é claramente postiça.

O mundo precisa de um calço,

fina fatia de cortiça.

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119|A linguagem poética: poema X poesia

As palavras assinaladas transportam para uma visão crítica do mundo na atualidade, concretizan­do a idéia de desequilíbrio e do pensamento necessitado de apoio, de qualquer tipo de segurança que o impeça de entrar em crise, de desequilibrar­se: o mundo não é mais a mente em desequilíbrio, mas acrescenta o sentido de fragilidade e de artificialidade, originado na aura postiça e na leve e porosa cortiça. Mas, acima de questões de compreensão do texto poético, podemos avaliar que efeitos de sin­gularidade e beleza o texto adquire pelo uso constante e harmônico dessas metáforas.

Poemas de forma fixaCom a liberdade formal estabelecida na literatura a partir do Simbolismo do final do século XIX,

as normas definidas ao longo do tempo para construção de poemas de modo rígido foram postas por terra. E não apenas o verso e suas qualidades lexicais, sonoras e rítmicas se alteraram: também se modi­ficaram os conteúdos e as formas.

A poemática trata da classificação das formas poéticas. Algumas dessas formas desapareceram no tempo, e fazem parte apenas de uma história da literatura. É o caso do rondó, do gazal, da vilanela, do triolé e do solau.

Vamos tratar apenas das formas mais relevantes da poesia lírica, segundo um critério de perma­nência no tempo e segundo sua presença mais significativa na história da literatura.

AcrósticoTrata­se de uma forma poética em que “certas letras formam uma palavra ou frase, em geral um

nome próprio. Quando se juntam as letras iniciais, tem­se o acróstico propriamente dito, que se lê na vertical, de cima para baixo ou no sentido inverso” (MOISÉS, 1997, p. 11). É forma poética popular, ado­tada em álbuns de recordação, em bilhetes, em dedicatórias. Abaixo, um acróstico escrito por Sílvia Arcoverde. (2007)

AdoraçãoÀ Elisa Lucinda

Eu Adoro

Lê­La e devorá­La

Ícone da linguagem poética

Sedutora, morena e sensual

Autêntica e apaixonante

Linda

Única

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120 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

Completa

Inspiração dos meus versos

Navío, chegada, porto

Diva, deusa

Arte do começo ao fim

BaladaÉ poema de tom geralmente melancólico e que, enquanto forma fixa, apresenta geralmente qua­

tro estrofes, versos octossílabos, rimas cruzadas ou variáveis e repetição do mesmo conceito ou idéia ao fim de cada estrofe.

Manuel Bandeira traduziu a “Balada da linda menina do Brasil” (BANDEIRA, 1970, p. 422), de Ruben Darío, de que citamos apenas a estrofe final, cujos dois últimos versos se repetiram nas estrofes anteriores.

Balada da linda menina do BrasilRuben Dário

Princesa em flor, nada na vida,

Por mais gracioso ou senhoril,

Iguala a esta jóia querida:

A pequena Ana Margarida,

Linda menina do Brasil.

CançãoHá variados tipos de canção, entre eles a canção medieval trovadoresca, a clássica, a romântica e

a moderna. Segundo Massaud Moisés (1997, p. 68)

[...] há que distinguir a canção popular da canção erudita. A primeira, que assume outros apelativos conforme o idioma (abc nordestino, modinha, lied, song, saga etc.) limita­se com o folclore e a música e não apresenta moldes definidos. A outra modalidade [...] caracteriza­se pela obediência a esquemas cultos e precisos.

Entre esses esquemas estão uma limitação entre 7 e 20 versos e um sentimento vibrante de amor, paixão, ódio, vingança, saudade, tristeza etc., com um transbordamento da alma do poeta. Na canção, geralmente estão ligados o amor e o lirismo.

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121|A linguagem poética: poema X poesia

Canção(PESSOA, 1965, p. 117)

[...]

Forma longínqua e incerta

Do que eu nunca terei...

Mal oiço e quase choro.

Por que choro não sei.

Tão tênue melodia

Que mal sei se ela existe

Ou se é só o crepúsculo,

Ou pinhais e eu estar triste.

Entre as canções modernas, podemos encontrar as religiosas, as patrióticas, as amorosas, as nos­tálgicas, as sertanejas, as toadas, os desafios, as décimas, o galope à beira­mar etc.

ElegiaNa origem, a elegia acompanhava os cantos fúnebres. Por isso, conserva o caráter lamentoso, de

perda, de desengano amoroso e de dor íntima. Na época clássica greco­latina, alcançou grande pres­tígio, quando tratava de diferentes assuntos. Na elegia, “o poeta mais francamente se põe em cena. Ele queixa­se e louva; moraliza; geralmente exorta. Quase atua como orador: seja o orador político e po­pular, que busca desencadear nas almas sentimentos belicosos e patrióticos; seja o orador filósofo, que disserta acerca da vida humana seus prazeres e males” (MOISÉS, 1997, p. 167­168).

No início, essa forma obedecia a uma estrutura poemática de dísticos (estrofes de dois versos), mas ela se alterou ao longo do tempo. A forma poética se expandiu e foi popular em todos os países do Ocidente. Na atualidade, é praticada e está sempre relacionada com sentimentos dolorosos, em espe­cial os despertados pela perda ou ausência do ser amado.

Elegia(ANDRADE, 2000, p. 212)

Ganhei (perdi) meu dia.

E baixa a coisa fria

também chamada noite, e o frio ao frio

em bruma se entrelaça, num suspiro.

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E me pergunto e me respiro

na fuga deste dia que era mil

para mim que esperava

os grandes sóis violentos, me sentia

tão rico deste dia

e lá se foi secreto, ao serro frio.

Um dos poetas mais valorizados na criação de poemas nesse formato é Rainer Maria Rilke (1875­1926). Em pouco mais de duas semanas, de janeiro a fevereiro de 1922, Rilke compôs os dez poemas que integram as Elegias de Duíno, uma das obras poéticas mais influentes na literatura ocidental.

HaicaiForma poética japonesa em estrofe única de três versos, com total de 17 sílabas métricas, assim

divididas: primeiro verso, cinco sílabas; segundo verso, sete sílabas; no último, cinco sílabas (5­7­5). Apre­senta uma impressão a respeito de uma cena ou de um objeto natural, criando uma imagem de forte impacto lírico. Abaixo, dois exemplos de Helena Kolody.

Saudades(KOLODY, 1993, p. 20)

Um sabiá cantou.

Longe, dançou o arvoredo.

Choveram saudades.

Flecha de sol(KOLODY, 1993, p.16)

A flecha de sol

Pinta estrelas na vidraça.

Despede­se o dia.

HinoComposição poética ligada à música desde sua origem grega. Tem temática elevada, de tonalidade

cívica, patriótica, religiosa ou profana. Seu objetivo é sempre de elogiar e exaltar. Os poetas do Romantis­

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123|A linguagem poética: poema X poesia

mo, em especial, serviram­se dessa forma para exaltar a natureza e a pátria. É uma composição livre, defi­nida mais pelo tom e pelo assunto do que pelos aspectos da estrutura de versos ou estrofes ou ritmo.

Hino à Pátria(FRANCISCA JÚLIA, apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1993)

Pátrio Céu, amplitude tranqüila

De brilhante celagem azul,

Céu da Pátria, onde fulge e cintila

Toda noite o Cruzeiro do Sul,

Céu azul, onde a nuvem eu passa,

Coando a luz do luar, como um véu,

Cora e ri toda cheia de graça...

Pátrio Céu, glória a ti, Pátrio Céu!

A esta Terra, onde o engenho divino

Esgotou seu poder criador,

Brasileiros, cantemos um hino,

Hino feito de glória e amor.

Terra ideal, de extensões infinitas,

Cheia de ouro e de amor, Terra ideal,

Que, amorosa e cativa, palpitas

Às carícias de um sol tropical,

Pátria amada, onde a luz tanto brilha,

Esplendores são tantos os teus

Que tu és a maior maravilha

Das que existem criadas por Deus.

A esta Terra, onde o engenho divino

Esgotou seu poder criador,

Brasileiros, cantemos um hino,

Hino feito de glória e amor.

Pátria amada, tão pródiga e rica,

E de quem nenhum filho descrê,

Pátria amável, a quem se dedica

Todo aquele que um dia te vê,

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Se ao teu brilho se juntam mais brilhos,

Como a um sol vêm juntar­se mais sóis,

Agradece­o também aos teus filhos

Pelo afeto tornados heróis.

A esta Terra, onde o engenho divino

Esgotou seu poder criador [...]

MadrigalDe origem italiana, atravessou os séculos e está ligado a temas amorosos e à música. Na origem,

possuía forma fixa – dois ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos em versos decassílabos rima­dos –, mas o passar do tempo deixou o madrigal com forma livre, predominando a estrofe única de dez versos e alternando decassílabos e hexassílabos. O exemplo abaixo é de Manuel Bandeira (1970, p. 90).

Madrigal melancólicoO que eu adoro em ti

não é a tua beleza.

A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.

E a beleza é triste.

Não é triste em si,

mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.

[...]

O que eu adoro em ti – lastima­me e consola­me!

O que eu adoro em ti, é a vida.

OdeTrata­se de uma composição poética que apresenta tom cerimonioso, sendo dirigida a uma pes­

soa ou entidade abstrata, sempre séria e de tom elevado. Há diferentes odes: a ode pindárica, a sáfica, a horaciana e a irregular.

A primeira delas, feita ao estilo do poeta grego Píndaro, exaltava os vencedores da guerra ou dos jogos olímpicos, usando três estrofes diferentes no poema.

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125|A linguagem poética: poema X poesia

A ode praticada pela poeta grega Safo, assim como as de Anacreonte e Alceu, cantava o amor, o vinho e os prazeres da mesa.

A ode horaciana é mais pessoal e reflexiva, composta por uma série de estrofes iguais.

Durante a Idade Média, a ode foi esquecida e retornou com vigor no Humanismo do século XV. O Romantismo do século XIX continuou a cultivá­la, mas sem tanta constância. A partir do século XX, a ode apresenta forma livre, temas contemporâneos dos poetas. Foi cultivada por nomes importantes da literatura, como Miguel Torga, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

Ode triunfal(PESSOA, 1965, p. 306)

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r­r­r­r­r­ eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde­me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

[...]

ParlendaÉ um poema infantil, fortemente rimado, e se destina aos jogos das crianças.

Hoje é domingo,

Pede cachimbo.

Cachimbo é de barro,

Bate no jarro [...]

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Poema bucólicoComposição poética que tem como assunto a vida no campo, e por isso também é denominado

pastoril ou campestre. Pode ser um idílio (poema em monólogo que exalta os encantos do campo) e écloga ou égloga (poema dialogado que trata também do amor simples).

IV(COSTA, 1966, p. 36)

Sou pastor; não te nego; os meus montados

São esses, que aí vês; vivo contente

Ao trazer entre a relva florescente

A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,

Em que se transformou a antiga gente;

Qualquer deles o seu estrago sente;

Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia

Firmes vos contemplastes, e seguros

Nos braços de uma bela companhia;

Consolai­vos comigo, ó troncos duros;

Que eu alegre algum tempo assim me via;

E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

Poema figurativoComposição existente desde a Antigüidade, reproduz no aspecto visual o sentido do poema – por

exemplo, em formato de cruz, de ovo, de pirâmide. No século XX, Guillaume Appolinaire denominou essas composições de caligramas. Os poemas figurativos estão na origem da poesia visual da atualidade

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127|A linguagem poética: poema X poesia

e neles predomina o ritmo visual e não mais o sonoro, como nas demais formas poéticas líricas. Como exemplo, apresentamos o poema “Pêndulo”, de Ernesto Manuel de Melo e Castro (1962):

P

P

P

P

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SonetoUma das mais conhecidas e praticadas entre as formas poéticas líricas. Sua origem data do século

XII, na Itália, e é atribuída a Giacomo da Lentino (1180(?)­1246(?)). Tem dois esquemas de composição.

O soneto italiano ou petrarquiano (do italiano Petrarca – 1304­1374) compreende duas qua­::::dras (estrofes de quatro versos) e dois tercetos (estrofes de três versos), com rima abbaabba nos quartetos e cdecde ou cdcdcd nos tercetos. É o formato mais utilizado para a composição do poema.

O soneto inglês ou shakespeariano (de Shakespeare) é composto por três quartetos e um dís­::::tico (estrofe de dois versos) final e rimas ababcdcdefefgg.

Atualmente, a apresentação visual do soneto ganhou uma nova imagem: os 14 versos aparecem em apenas um bloco, mantendo, no entanto, a perspectiva temática e a chave de ouro ou fecho de ouro, isto é, o último verso contém a idéia, o conceito ou o tema fundamental do poema.

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Qualquer que seja o formato, foi adotado em todo o Ocidente e teve inicialmente o tema amoro­so como exclusivo, mas sua evolução permitiu uma ampliação temática: a sátira, o humor, as reflexões sobre a vida e a morte, sobre a beleza e a poesia, sobre o cotidiano e a religião. Essa abertura temática renovou a forma poética.

Vai tudo em mim(JUNQUEIRA, 2005, p. 198)

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo

neste pomar sem ramos ou maçãs,

sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs

que me recordem o que foi e é findo.

Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs

do que eu não fui agora vão cobrindo

os ermos epitáfios, indo e vindo

entre as hermas e as lápides mais chãs.

Tudo se esvai num remoinho infindo

de atávicas moléculas malsãs:

essas do avô, do pai e das irmãs

que o sangue foi à alma transmitindo.

Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo

em meu encalço vem me perseguindo.

TrovaÉ uma composição de uma só estrofe, geralmente um quarteto, que condensa todo o sentimento

e a reflexão do poeta. É extremamente popular e sua musicalidade se origina no uso do verso heptassí­labo, isto é, a redondilha maior. Nosso folclore é rico nesse tipo de composição, repetida oralmente.

Lá vai a garça voando Com as penas que Deus lhe deu. Contando pena por pena, Mais pena padeço eu.

Existem outras formas poéticas, mas com menor e menos expressiva ocorrência, e por isso elas não foram aqui arroladas.

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129|A linguagem poética: poema X poesia

Texto complementar

As unidades expressivas(CANDIDO, 2004, p.103-111)

Neste ponto, estudaremos outras unidades, que constituem a linguagem poética propriamen­te dita: palavras e combinações de palavras dotadas de um significado próprio que o poeta lhes dá, e que se tornam condutoras do significado do poema. No trabalho criador, o poeta (1) usa palavras na acepção corrente; (2) usa palavras dotadas de acepção diversa da corrente, mas que é aceita por um grupo; (3) usa palavras dotadas de uma acepção que ele cria, e que pode ou não tornar­se con­vencional. Em qualquer dos casos, está efetuando uma operação semântica peculiar – que é arranjar as palavras de maneira que o seu significado apresente ao auditor, ou leitor, um supersignificado, próprio ao conjunto do poema, e que constitui o seu significado geral. As palavras ou combinações de palavras usadas podem ser signos normais, figuras, imagens, metáforas, alegorias, símbolos, em cujo estudo agora entramos.

Como preliminar, detenhamo­nos um pouco no tipo de homem que faz versos. Antes de mais nada, devemos registrar que ele é dotado de um senso especial em relação às palavras, e que sabe explorá­las por meio de uma técnica adequada a extrair delas o máximo de eficácia. Só a tais ho­mens ocorre o fenômeno chamado inspiração, que é uma espécie de força interior que o leva para certos caminhos da expressão.

Bilac, por exemplo, tinha mania com as palavras, os nomes, as combinações de nomes. Dizia que alguns deles equivaliam a um maxixe, e gostava de os pronunciar dançando, ou então ficava obsedado por certos vocábulos, pronunciando­os de vários modos, explorando a sua sonoridade, comparando­os com outros. [...]

Quando fica nesta camada de percepção sonora e rítmica o poeta ainda não completou o seu equipamento. É preciso possuir também um senso apurado dos significados que a palavra pode ter – desdobrando­a, aproximando­a de outras, extraindo significações insuspeitadas. O verso é uma unidade indissolúvel de ritmo, sonoridade e significado [...] interagindo ambos na constituição de uma unidade expressiva. Justamente na busca de tais significados é que o poeta emprega a palavra como imagem ou como símbolo.

A base de toda imagem, metáfora, alegoria ou símbolo é a analogia, isto é, a semelhança entre coisas diferentes, e aqui encontramos, no plano dos significados, um problema que já encontrávamos no plano das sonoridades como sinestesia: o da correspondência. Com base na possibilidade de estabe­lecer analogias, o poeta cria a sua linguagem, oscilando entre a afirmação direta e o símbolo herméti­co. Raramente o poema é feito apenas com um ou outro destes ingredientes polares, e na seqüência dos versos somos capazes de notar a gradação que os separa. Muitas vezes, o elemento simbólico

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não está nas especificidades das palavras, ou na seqüência de imagens, mas no efeito final do poema tomado em bloco. E em tudo observamos a capacidade peculiar de sentir e manipular palavras.

Por que o poeta tem este dom, é difícil dizer, e a resposta cabe à psicologia da criação, que não nos interessa no momento. Mas podemos mencionar alguns elementos diretamente ligados ao nos­so tema.

Antes de mais nada, como muito bem diz e rediz John Press (The fire and the fountain, capítu­lo II), a poesia depende de uma acuidade e potência invulgares dos sentidos baseadas na riqueza emocional. Gente fina, sem paixões, sem intensidade emocional, não faz poesia grande. Ora, esta generosidade de temperamento está ligada a uma forte sensorialidade (digamos assim em lugar de sensualidade para evitar equívocos); a uma capacidade de perceber viva e intensamente com os sentidos; logo, de apreender com força as coisas e o espetáculo do mundo. Daí o sentimento das analogias, a capacidade de correlacionar, de substituir e de transpor, que está na base da formação das imagens. Há poetas que denotam mais claramente do que outros esta capacidade, porque ma­nifestam os aspectos exteriores da sua sensorialidade: senso das cores, dos ritmos, do tato, do gos­to. Noutros, tais aspectos aparecem difusos ou sublimados, mas em todos estão presentes quando analisamos a contextura de sua obra. Muitas vezes a sensorialidade aparece como algo interior, pois o poeta traduz em linguagem introspectiva seu senso agudo das formas e dos sons, por exemplo. Um temperamento poderoso como o de Antero de Quental, mas que ao mesmo tempo se alia a uma capacidade invulgar de reflexão, é capaz de escrever com êxito poesias de transposição externa do mundo e de transposição interna do mundo. [...] a analogia está na base da linguagem poética, pela sua função de vincular os opostos, as coisas diferentes, e refazer o mundo pela imagem.

Estudos literários1. Escolha um quadro de Leonardo da Vinci – pode ser, por exemplo A Gioconda (Monalisa) ou Nossa

Senhora das Rocas. Descubra o que nele é referência e o que é figurado. Analise o modo como é composta a figura central e como se relaciona com o fundo do quadro.

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2. Busque imagens de sua coleção pessoal de fotografias. Escolha algumas e observe o que nelas você considera como metáforas de momentos de sua existência ou de pessoas próximas.

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132 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

3. Recolha na fala cotidiana exemplos de palavras e expressões que não são usadas no sentido pró­prio, mas em sentido figurado. Tente descobrir e explicar qual o sentido original.

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A estrutura da narrativa: romance

Marta Morais da CostaO trabalho com a formação de leitores que é realizado pela escola privilegia, desde a mais tenra

idade do aluno, a leitura de narrativas. Aquelas que são afetivamente denominadas historinhas irão ao longo do tempo se ampliar em narrativas mais extensas e mais complexas. No entanto, nesses momen­tos iniciais da formação começam a se desenhar na mente do pequeno leitor estruturas narrativas que, futuramente, comporão um quadro de exigências do leitor em relação aos textos que lê. Não apenas os escritos colaboram na formação dessa qualificação tácita de narrativa: também as histórias relatadas e ouvidas no cotidiano ajudarão a imprimir na mente do leitor modelos narrativos reais ou ficcionais. Vamos, por meio de um breve panorama histórico e de reflexões teóricas, tentar explicar que estruturas narrativas são essas que atuam na formação de leitores e que modelos os escritores seguem ao compor suas obras.

Nascimento e evolução do romanceA origem do termo romance está relacionada com a língua utilizada e o formato escrito dessa lín­

gua. Etimologicamente, romance significa “língua vulgar”, provinda do latim falado pelos romanos. Em dado momento histórico, o latim começou se diluir nas diferentes línguas nacionais: o francês, o espa­nhol, o italiano, o romeno, o português. “O verbo romancear tem o sentido de ‘traduzir do latim para o francês’ no século XII e de ‘escrever em francês’ no século XIV” (REUTER, 1996, p. 5). Apenas a literatura espanhola mantém diferente denominação. Em espanhol, romance é uma composição em versos, de origem popular, de autoria quase sempre anônima, com lugares exóticos, histórias de amor e celebração da vida simples e rústica. O que em português se denomina romance equivale a novella em espanhol. Em inglês, o mesmo gênero se denomina novel. O novo gênero literário nasce, portanto, relacionado não com acontecimentos ou personagens, mas com fundamento na língua em que é escrito.

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134 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

O gênero romance não existiu na Antigüidade clássica, tendo aparecido como narrativa heróica na Idade Média, no formato de romance de cavalaria, já com uma concepção puramente ficcional. Após o final da Idade Média, no Renascimento, o romance adquiriu feição pastoril e sentimental. No período Barroco, ele adquiriu a característica de um relato ficcional apoiado em muitas aventuras, com trama complicada e muitas vezes inverossímil. Nesse mesmo período Barroco, surgiu na Espanha o romance picaresco, com personagens do povo e aventuras resolvidas pela esperteza do protagonista. O texto inicial dessa variável do romance é A vida de Lazarilho de Tormes (1554), de autor anônimo.

O Lazarilho de Tormes é inovador não apenas por diferir tematicamente da narrativa idealista da época, que se ocupava preferentemente de aventuras de cavaleiros andantes, alheios à realidade histórica imediata ou de pastores cuja falsidade encobria­se de apaixonadas histórias. A narração em primeira pessoa elimina o usual intermediário que era então o nar­rador onisciente. E nos coloca no interior da experiência do próprio protagonista. Dessa maneira, já não estamos perante a reiteração de um estereótipo narrativo que não pode sofrer maiores variações, como era o caso do herói das novelas de cavalaria. [...] o autor divide os [personagens] que triunfaram em aqueles que “herdaram nobres estados” e aqueles que “com força e manha remando chegaram a bom porto”. Força e manha são os caminhos de ascensão social válidos na época face ao caráter estamental que a sociedade espanhola teima então em conservar. E são os caminhos que o pícaro parodia nesta sua primeira, e, mesmo que ínfima, significativa existência aventureira. (GONZÁLEZ, 1988, p. 9­10)

No entanto, nesse período renascentista, é escrito por Miguel Cervantes de Saavedra o monu­mental Dom Quixote de la Mancha (1605­1615), que não apenas assinala o nascimento do romance mo­derno mas também é, até hoje, considerado o mais importante romance escrito no Ocidente.

Mas somente a partir do final do século XVII o romance assumiu o formato básico com que até hoje se apresenta aos leitores. Na França, o modelo inicial foi A Princesa de Clèves (1678), de Madame de Lafayette. Na Inglaterra, Daniel Defoe é considerado o criador do romance inglês com Robinson Crusoé (1719) e Moll Flanders (1722). Outro romancista de extraordinária narrativa até hoje inovadora foi Lau­rence Sterne, com Tristram Shandy (1759­1767). O romance inglês ganhou destaque e maturidade no século XIX, quando Charles Dickens e outros escritores hoje menos conhecidos conseguem atrair um grande público e consolidar as convenções do realismo. O século XIX foi o período de amadurecimento do romance em toda a Europa e, por extensão, nas ex­colônias européias da América, o que o tornou a mais popular e mais importante forma literária.

Com o advento do Realismo e do Naturalismo, enquanto perspectivas de pensamento, ideologia e forma artística, o romance ganhou impulso por meio de autores como os franceses Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Sthendal e Émile Zola; os russos Alejksandr Pushkin, Ivan Turgueniev, o extraordinário Fyodor Dostoiévski e Leão Tolstoi. Entre os ingleses, Jane Austen, sir Walter Scott (escocês de nasci­mento), William Makepeace, Thackeray, o já citado Charles Dickens, George Eliot e Thomas Hardy. Nos Estados Unidos, James Fenimore Cooper, Nathaniel Hawthorne, Herman Melville, Mark Twain e Henry James. Em Portugal, Eça de Queirós e Alexandre Herculano. No Brasil, Machado de Assis domina todo o século, secundado por José de Alencar e Aluísio Azevedo.

As inovações do século XX como o monólogo interior1 ou fluxo da consciência (ou melhor, do in­consciente) e o estilo indireto livre,2 além da liberação temática para tratar do sexo e da opressão social,

1 O monólogo interior, também denominado fluxo da consciência (o stream of consciousness da teoria de língua inglesa) é a representação escrita dos pensamentos interiores de um personagem, suas impressões e memórias como se fossem transcritos diretamente no momento e na forma em que ocorrem. Há, contudo, uma certa polêmica em relação ao nome a ser empregado: uma linha da crítica considera o fluxo da consciência o nome genérico que incluiria o monólogo interior como a forma concreta de sua realização. Outros teóricos invertem a relação: o monólogo interior abrange o fluxo da consciência, entendido como uma técnica especial de representação fora da lógica dos pensamentos, de sua sintaxe e pontuação (ou ausência de pontuação).2 “O diálogo ou discurso indireto livre constitui espécime híbrido em que se fundem a terceira pessoa, usada pelo ficcionista para narrar a história, e a primeira pessoa, com que a personagem exprime seus pensamentos de maneira autônoma” (MOISÉS, 1997, p. 144).

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contribuíram para impressionantes avanço e atualização do romance ocidental. Entre os mais conheci­dos e respeitados escritores desse séculos estão os nomes de James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka, Thomas Mann, Virgínia Woolf, William Faulkner e D. H. Lawrence. Em Portugal, José Saramago, Miguel Torga e António Lobo Antunes. No Brasil, um quadro amplo de importantes romancistas como Clarice Lispector, Graciliano Ramos, João Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso e Jorge Amado.

Toda seleção passa sempre pelo descarte de nomes e obras: corremos o risco de esquecer de incluir algumas obras e alguns autores que marcaram a literatura desses países, mas há, sem dúvida, nesse câno­ne rápido anteriormente enumerado, nomes de indiscutível qualidade literária que figuram em qualquer seleção de romancistas do século passado. A dificuldade para selecionar e apontar os mais marcantes só vem comprovar a afirmação de que o romance se desenvolve extraordinariamente como gênero a partir do século XIX, em especial no século XX.

Ficção e realidadePlatão é o primeiro a estabelecer uma relação entre a produção literária (no caso, a poesia) e a

realidade. A base de seu mito da caverna é o conceito de que os humanos não têm acesso direto à reali­dade, pois são dominados pela agnóia, ignorância.

Platão viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição. Imaginou (no Livro VII de A República, um diá­logo escrito entre 380­370 a.C.) todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obrigados pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, uns prisioneiros, carregando para lá para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, de animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro onde os demais estavam encadeados, havendo ainda uma es­cassa iluminação vindo do fundo do subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desfazendo diante deles. Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos) eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois inteiramente dominada pela ignorância (agnóia). (SCHILLING, 2007)

Mais do que os demais humanos, presos no fundo da caverna, o poeta é responsável por criar a sombra da sombra; o que o torna indigno de participar da República imaginada por Platão. Aristóteles, discípulo de Platão, transforma a imitação do real não em condenação, mas em arte: ele estabelece, no livro Poética, que a natureza da arte dramática e da epopéia é a imitação.

A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. [...] Pela imitação adquire seus primeiros conhe­cimentos, por ela todos experimentam prazer. A prova é­nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que, ao conseguirmos olhar sem custo, contemplamo­los com satisfação em suas imagens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres. [...] Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os instrui e os induz a discorrer sobre cada uma e a discernir aí fulano ou sicrano. Se acontece alguém não ter visto ainda o original, não é a imitação que produz o prazer, mas a perfeita execução, ou a cor ou outra causa do mesmo gênero. Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evidente que os metros são parte do ritmo), na origem os homens mais aptos por natureza para estes exercícios aos poucos foram dando origem à poesia por suas improvisações. O gênero poético separou­se em diversas espécies, consoante o caráter moral de cada uma. Os espíritos mais propensos à gravidade reproduziram belas ações e seus autores, os espíritos de menor valor voltaram­se para as pessoas ordinárias a fim de as censurar, do mesmo modo que os primeiros compunham hinos em louvor de seus heróis. (ARISTÓTELES, 1964, p. 266).

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Fica visível nessa citação o quanto a imitação do real é encarada como natural e origem da obra poético­literária. Também a divisão entre a imitação de heróis ou de “pessoas ordinárias”, que irá pro­duzir a divisão tragédia­comédia, autoriza o entendimento de que imitar o real não se restringe a idealizá­lo. Também estabelece a finalidade dessa criação literária: a exaltação ou a censura.

Ao longo dos séculos, a literatura foi entendida, em períodos que se revezavam, ora como alegoria, abstração, simbolismo, idealização e alienação, em uma perspectiva platônica; ora como tendo a função de retrato, reprodução do real, compromisso com a denúncia de conflitos e problemas vividos pelos homens e pela sociedade, em uma perspectiva de utilidade e de pragmatismo do discurso literário. O romance, por sua popularidade e aceitação, concentrou essa disputa teórica nos vários períodos esté­ticos. Assim, o Realismo do século XIX incorporou a idéia de que o objetivo da reprodução da realidade social e humana era a denúncia e a modificação de comportamentos e crenças. Já a literatura simbolista e a literatura fantástica parecem ignorar a realidade, concentrando suas intenções em idealizações, em sombras, em alterações da realidade. No entanto, o que vai qualificar a literatura é também a técnica lite­rária, que diz respeito ao tratamento formal do discurso. Aguiar e Silva (1976) esclarece qual é o modo de entender essa relação entre realidade e literatura:

Esse sistema lingüístico, com os seus significados denotativos e conotativos, com a sua dimensão referencial e socio­cultural, é indissociável de uma determinada historicidade e de um determinado universo ideológico – lembremo­nos de que “um certo modo de usar a linguagem se identifica com um certo modo de pensar a sociedade” – e, no texto literário, tanto os sinais como os símbolos, dependentes dos vários códigos que confluem na estruturação do idiolecto textual, nunca deixam de reenviar, dentro do seu específico estatuto semântico, a essa historicidade e a esse universo ideológico – em suma, a uma certa maneira de entender e valorar a vida e a morte. [...] Tanto na literatura fantástica [...] como na literatura dita “realista” existe sempre uma correlação semântica com o mundo real, matriz primigênia e mediata da obra literária. A linguagem literária, todavia, não referencia diretamente esse mundo: ela institui uma objetualidade peculiar, um heterocosmo com estrutura e funções específicas, onde o ser se funde com o não­ser, o existente com o inexistente, o possível com o impossível, e é através deste heterocosmo, deste como se, que se constitui e manifesta essa correlação semântica. (AGUIAR E SILVA,1976, p. 45­46).

Como se pode observar, a perspectiva pela qual se deve encarar o discurso literário (e por exten­são o romance, uma de suas formas representativas) é a da linguagem, capaz de reconstruir em uma “objetualidade peculiar”, isto é, em um texto peculiar, em uma representação especial e própria, todas as questões e aspectos da realidade social e individual. Mesmo a literatura considerada fantástica trata de aspectos da realidade. Surge aqui uma diferença importante na concepção de literatura e de romance: a de que imitar é diferente de narrar, conceito que Platão e Aristóteles também estabeleceram ao tratarem dos modos de imitar. Atualmente, a teoria distingue o que seja mostrar (showing) e contar (telling).

Essa posição teórica tem a ver com a posição do narrador diante da realidade. No primeiro caso, a realidade será apresentada sem intermediação do narrador (exclusivamente por meio das personagens e de suas falas). No segundo caso, o narrador é o responsável pela apresentação da narrativa ao leitor. Em qualquer um desses modos de apresentar a realidade, o que permanece e merece importância é o relato, isto é, o texto que nasce do objetivo de tratar da realidade, mas o processo de contar ou de mos­trar insere­se sempre no conceito de ficção.

Ficção é um termo genérico que identifica histórias inventadas, aplicado habitualmente para ro­mances, contos, novelas, fábulas e outras narrativas em prosa. O adjetivo fictício, formado a partir de ficção, pode ter seu sentido aproximado de imaginativo ou inventivo.

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Portanto, o romance mantém um vínculo indissolúvel com a realidade, embora manifeste essa realidade sob formas escritas e inventivas, em um cuidadoso trabalho de organização do texto e de seus componentes narrativos. Também é possível verificar como ao longo da história do romance essa relação foi se configurando em formas narrativas com características diferentes.

Tipologia do romanceApresentaremos a seguir algumas formas ou subgêneros com que o romance se mostrou e se

mostra aos leitores. Será possível verificar como algumas delas se mantêm ao longo do tempo, como outras se desdobram em formas alternativas e, por fim, como outras desapareceram. Também é preciso considerar que um mesmo autor pode escrever romances que cabem em diferentes classificações. O objetivo dessa classificação não é enquadrar os romances e torná­los impermeáveis a outras diferentes propostas de classificação: trata­se de, pela constatação de repetições e semelhanças, esclarecer um pouco mais as qualidades desse gênero tão multiforme e tão complexo como se tornou o romance na atualidade.

Vária pode ser a classificação dos romances, de acordo com o prisma adotado pelo crítico e com o aspecto da obra posto em relevo. Assim, 1) romance de tempo histórico ou cronológico, e romance de tempo psicológico ou introspectivo, conforme explore uma ou outra das dimensões temporais; 2) romance linear ou progressivo, ou de entretenimento, e vertical ou analítico; 3) romance histórico, picaresco, de terror (gótico), de formação (bildungroman) etc. A série pode pros­seguir até chegar a minudências tão menos fecundas quanto mais especiosas. Para abreviar a questão, talvez fosse mais pertinente acolher a divisão proposta por Edwin Muir (The Structure of the Novel, 1929): 1) romance de ação, quando a intriga ressalta mais do que os demais componentes da obra, como de hábito na ficção romântica; 2) romance de per-sonagem, quando a ênfase é posta nos protagonistas e, por seu intermédio, na comunidade social, como, por exemplo, o romance realista e naturalista; 3) romance de drama, quando a personagem e a ação se fundem num corpo só, de tal forma “que temos dificuldade em achar termos para descrevê­la sem dar aparência de exagerar”, como, por exemplo, D. Casmurro. (MOISÉS, 1997, p. 456, grifos nossos)

Tendo em vista essa diversidade e admitindo que a classificação que propomos pode ser contes­tada em alguns pontos, vamos, mesmo assim, propor uma possível distinção entre as diferentes expres­sões do gênero romanesco.

Romance de formação (bildungroman)O conceito desse subgênero de narrativa vem da Alemanha (bildung, “formação” e roman, “ro­

mance”). Relevantes são as suas características e a sua permanência ao longo da história. Vítor Aguiar e Silva (1976, p. 310) descreve a essência desse tipo de romance

que narra e analisa o desenvolvimento espiritual, o desabrochamento espiritual, a aprendizagem humana e social de um herói. Este é um adolescente ou um jovem adulto que, confrontando­se com seu meio, vai aprendendo a conhecer­se a si mesmo e aos outros, vai gradualmente penetrando nos segredos e problemas da existência, haurindo nas suas experiências vitais a conformação do seu espírito e do seu caráter.

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O primeiro desses textos é o romance Agathon (1766), de Wieland, e o exemplo mais completo é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795­1796), de Goethe.

Incluem­se nessa categoria David Copperfield (1849­1850), de Dickens; Retrato de um Artista quando Jo-vem, (1916), de James Joyce; O Tambor (1959), de Günther Grass. No Brasil, O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mário de Andrade; e Menino de Engenho (1933), de José Lins do Rego.

Romance de tese ou romance socialEsse subgênero tem a ver com um texto com finalidade utilitária, de vez que se compromete em

convencer o leitor a respeito das idéias expressas. Segundo Massaud Moisés (1997, p. 460), trata­se de um

romance em que, na discussão de questões sociais, políticas ou religiosas, se defende uma tese oriunda das Ciências, da Filosofia ou da Teologia. Para bem situar esse romance, é forçoso entender que o vocábulo tese pode conter pelo menos duas conotações: uma, de caráter amplo, outra restrito. No primeiro caso alude à idéia segundo a qual toda obra de arte guarda uma tese implícita, ou seja, uma pessoal e subjetiva visão de mundo. [...] o sentido restrito se aplica tão­só à prosa de ficção e, por vezes, ao teatro: o romance de tese consistiria numa narrativa comportando uma doutrina, geralmente explícita, emprestada de uma forma de conhecimento não­estético, que o escritor encampa e forceja por divulgar ou corporificar através de uma adequada fabulação.

Entre os escritores que se dedicaram explicitamente a esse tipo de romance contam­se Victor Hugo, com Os Miseráveis (1862), por exemplo, e Émile Zola, com Germinal. No Brasil, Aluísio Azevedo com O Cortiço (1900) e Casa de Pensão (1884) é o representante desse tipo de romance.

Romance góticoÉ uma narrativa de terror e suspense, muitas vezes com a ação localizada no interior de um cas­

telo ou monastério. É um tipo de texto criado por Horace Walpole em O Castelo de Otranto (1764) e de­pois explorado por vários romancistas ingleses, entre os quais Ann Radcliffe, cujos Mistérios de Udolpho (1794) fez muito sucesso. Nessa literatura, o aparecimento de monstros e fantasmas é admissível. Teve aceitação muito grande no Romantismo europeu. A partir dele, o ambiente grotesco e de ambientação claustrofóbica também passou a denominar­se gótico. Por isso, a essa categoria pertencem Frankenstein (1818), de Mary Shelley; e Drácula (1897), de Bram Stocker. E ela tem seguidores em Edgar Allan Poe, William Faulkner e, atualmente, Stephen King. O cinema tem explorado muito esse tipo de narrativa, haja vista que a constituição desse romance atrai demasiadamente o leitor, usando reviravoltas, muita ação e elementos fantasmagóricos.

Romance históricoÉ um romance em que a ação se passa durante um específico período histórico, embora o narra­

dor faça seu relato décadas ou séculos depois. É uma narrativa que exige intensa pesquisa, pois recons­titui a mentalidade, os costumes e, por vezes, até a língua do período retratado. Apresenta uma mistura de personagens reais e inventados, mas mantém um mínimo de fidelidade aos fatos históricos a que se refere, embora se ligue muito mais às convenções do romance do que à disciplina da história. O prota­gonista pode ser tanto uma figura histórica quanto um personagem inventado.

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Entre os primeiros cultores desse tipo de romance estão Walter Scott, com extensa obra roma­nesca iniciada com Waverley (1814); e James Fenimore Cooper, com Leatherstocking Tales (1823­1841). Outros nomes e obras integram os clássicos, como Victor Hugo com Nossa Senhora de Paris (1831), Ale­xandre Dumas com Os três Mosqueteiros (1844), e Leão Tolstói com Guerra e Paz (1863­1869). No século XX, deu­se o sucesso extraordinário de ...E o Vento Levou (1936), de Margaret Mitchell. Ainda pode ser citada a obra Beloved (1987), de Toni Morrison, entre muitos outros. No Brasil, temos José de Alencar com A Guerra dos Mascates (1873), Ana Miranda com Boca do Inferno (1989) e Desmundo (1996), e Luiz Antonio de Assis Brasil com Breviário das Terras do Brasil (1997).

Romance psicológicoOs avanços da ciência que estuda a mente humana revolucionaram o modo de composição de

personagens e o tratamento do tempo ficcional. Em 1889, o filósofo Henri Bergson, no Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência estimulou os escritores a criarem um novo tipo de romance:

Se agora algum romancista ousado, despedaçando a teia habilmente tecida do nosso eu convencional, nos mostra sob essa lógica aparente um absurdo fundamental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração infinita de mil impressões diversas que já deixaram de existir no momento em que as designamos, louvamo­lo por nos ter conhe cido melhor do que nós nos conhecemos a nós próprios [...] ele [o romancista] convidou­nos à reflexão, pondo na expressão exterior alguma coisa dessa contradição, dessa penetração mútua, que constitui a própria essência dos elementos expressos. Encorajados por ele, afastamos por um instante o véu que tínhamos interposto entre a nossa consciência e nós. Voltou a pôr­nos em presença de nós mesmos. (BERGSON apud AGUIAR E SILVA, 1976, p. 314).

Estava, portanto, aberta a porta para a passagem do romance psicológico, que vai tomar como parâmetro “a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 314). Entre os nomes mais relevantes irão aparecer James Joyce, Virgínia Woolf, Marcel Proust, Franz Kafka, William Faulkner, Hermann Broch. No Brasil, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector e a obra extraordinária e precoce da segunda fase de Machado de Assis.

Jorge Luís Borges (apud Rodrigues, 1988, p. 15) tem desse tipo de romance uma visão crítica bas­tante pertinente:

O romance típico, “psicológico”, propende a ser informe. Os russos e os discípulos dos russos demonstraram até a sacie­dade que ninguém é impossível: suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram ao ponto de separarem­se para sempre, delatores por fervor ou por humildade [...] Essa liberdade plena acaba equivalendo à plena desordem. Por outro lado, o romance “psicológico” quer ser também romance “realista”: prefere que esqueçamos seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda lânguida vagueza) um novo toque verossímil.

A diversidade de personagens e situações está relacionada diretamente ao realismo, isto é, à intenção do romancista de fazer com que seu relato se aproxime da vida empírica, conferindo à narrativa credibilida­de, mesmo que as situações, conforme Borges descreveu, pareçam a princípio inverossímeis.

Romance experimentalNesse subgênero, podem ser inclusos obras e autores que, intencionalmente, propõem­se a rever

normas anteriores e os modos de escrever convencionais. Essa atitude de rebeldia localiza­se histori­camente no século XX, em atendimento às idéias divulgadas pelas vanguardas européias. Entre essas mudanças, podem ser apontadas as seguintes:

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[...] o enredo do romance moderno torna­se muitas vezes caótico e confuso, pois o romancista quer exprimir com auten­ticidade a vida e o destino humano, e estes aparecem como o reino do absurdo, do incongruente e do fragmentário. [...] a recusa da cronologia linear e a introdução no romance de múltiplos planos temporais que se interpenetram e se confundem, constituem uma fundamental linha de rumo do romance coetâneo [...] a confusão da cronologia e a multiplicidade dos planos temporais estão intimamente relacionadas com o uso do monólogo interior e com o fato de o romance moderno ser freqüentemente construído com base numa memória que evoca e reconstitui o acontecido. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 319)

Nessa linha de ruptura podem ser inclusos James Joyce, Jorge Luis Borges, William Faulkner, o movimento francês do nouveau roman (Alain Robbe­Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor e outros). No Brasil, temos Mário de Andrade com Macunaíma (1928), João Guimarães Rosa com Grande Sertão: Veredas (1956), Valêncio Xavier com O Mez da Grippe (1971).

Romance sentimentalEsse subgênero data do final do século XVIII e está diretamente relacionado com o surgimento do

Romantismo como uma tendência artístico­literária. Assumindo os valores da burguesia ascendente, o romance sentimental se apoiou em situações convencionais, personagens familiares e estilo retórico, com acentuada ênfase no sofrimento. O advento desse subgênero provocou grande entusiasmo nos leitores, favorecendo processos de identificação e catarse. É muito conhecido o episódio do acréscimo de suicídios reais entre os leitores de Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), de Goethe. Também Jean­Jacques Rousseau arrebanhou leitores fiéis e seguidores das idéias de A Nova Heloísa (1761). Outro texto muito famoso desse subgênero é Paulo e Virgínia (1789), de Bernardin de Saint­Pierre.

Tão popular, o romance sentimental é um dos responsáveis por uma associação feita por leitores com conhecimento precário: eles acreditam que romance é exclusivamente o de sentimentos, lágrimas e finais felizes ou trágicos.

No Brasil, temos os romances urbanos e os “perfis de mulher” de José de Alencar, muito lidos no século XIX. Também A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães.

Romance cientificista ou de ficção científicaSão romances que exploram as condições da existência humana a partir da investigação ou proje­

ção de condições de vida inteligente ou não, que podem trazer conseqüências possíveis ou improváveis para os seres humanos. As descobertas científicas fornecem o solo sobre o qual se assentam as narrati­vas. Atualmente, narrativas sobre conseqüências da guerra nuclear ou de desastres ambientais formam o repertório de situações para essas obras narrativas. O cinema e a televisão muito têm explorado esse filão narrativo e com sucesso. É uma forma narrativa que se desenvolveu enormemente com o cresci­mento e a popularização das ciências.

Mary Shelley, com Frankenstein (1818), é considerada a pioneira da ficção científica. Seu roman­ce apresenta um protagonista que, obcecado, procura se igualar a Deus criando um ser humano em laboratório. A seguir, um dos escritores mais conhecidos e populares é o francês Jules Verne, também chamado Júlio Verne, com Viagem ao Centro da Terra (1864) e A Volta ao Mundo em 80 Dias (1873), entre

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outros, antecipando muitas das descobertas e criações tecnológicas da humanidade. A lista de autores é extensa: H. G. Wells, Ray Bradbury, Arthur Clarke, Isaac Asimov, Robert Heinlein, Thomas Pinchon, Kurt Vonnegut, Ítalo Calvino e Doris Lessing.

Romance de aventurasUm herói ou uma heroína capaz de superar com ousadia e valentia os mais difíceis obstáculos,

viagens a cenários exóticos, episódios excitantes e de muita tensão, suspense, perigos e desafios; essa é a receita desse subgênero. O seu protótipo está na Antigüidade clássica: é a Odisséia, de Homero, narrativa sobre as peripécias de retorno ao lar de Ulisses, herói de Tróia que viaja por longos dez anos, enfrentando muitas dificuldades e obstáculos, até chegar a seu destino. Robert Louis Stevenson em A Ilha do Tesouro (1813) também exemplifica bem esse subgênero narrativo.

Outros escritores que se tornaram conhecidos por escreverem romances de aventuras foram Ale­xandre Dumas, Rafael Sabatini e James Fenimore Cooper. Também aqui o cinema veio buscar muitas das narrativas que constituíram o roteiro de produções de sucesso na época em que foram lançados. O Último dos Moicanos, de J. F. Cooper; e Os Três Mosquiteiros, de Dumas, exemplificam essa relação entre cinema e literatura.

Romance policialHá duas linhas de entendimento da origem do romance policial.

A primeira afirma que o desenvolvimento da sociedade, as leis, a polícia e o desenvolvimento dos procedimentos e da tecnologia de investigação seriam responsáveis pela crença no poder policial para descobrir criminosos, nas leis para punir e na comprovação de uma sociedade que gera cada vez mais intensos desejos de poder e ambição que levam ao crime.

A segunda linha é metafísica, entendendo que “somos seres empenhados em extrair, de qualquer jeito, o inteligível do sensível. Enquanto não compreendemos, sofremos. Mas, desde que compreende­mos, experimentamos uma alegria intelectual incomparável.” (NARCEJAC, 1991, p. 10).

Pode­se entender aqui como romance policial apenas aquele que apresenta uma tripla configu­ração: a vítima, o criminoso e o detetive (que pode ser um policial). Mas há também a possibilidade de entender esse subgênero como um romance de investigação. Nesse caso, quem busca descobrir o cri­minoso pode não ser um detetive, ou policial, ou mesmo um homem (Agatha Christie criou Miss Marple, uma inteligente velhinha que desvenda crimes sem sair de sua pequena cidade, pois todos os tipos e situações humanos nela estão representados).

O texto do romance policial tem um formato estereotipado. François Fosca, em Histoire et Techni-que du Roman Policier (1937), assim apresenta os seus requisitos indispensáveis:

O caso que constitui o assunto é um mistério aparentemente inexplicável.::::

Uma personagem (ou mais) – simultânea ou sucessivamente – é considerada, sem razão, culpada, porque índices ::::

superficiais parecem designá­la.

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Uma minuciosa observação dos fatos, materiais e psicológicos, que segue a discussão dos testemunhos, e acima ::::de tudo um rigoroso método de raciocínio triunfam sobre as teorias apressadas. O analista nunca adivinha. Ele observa e raciocina.

A solução, que concorda perfeitamente com os fatos, é totalmente imprevista.::::

Quanto mais extraordinário parece um caso, tanto mais fácil é resolvê­lo. (FOSCA :::: apud NARCEJAC, 1991, p. 22­23)

Alguns autores apontam a tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, como o primeiro exemplo de um texto de investigação, mas as principais características desse subgênero foram estabelecidas pela primeira vez por Edgar Allan Poe em Os Crimes da Rua Morgue, A Carta Roubada e em O Mistério de Ma-rie Roget, de 1841. Seguem­se a ele Arthur Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes), Agatha Christie, Dashiel Hammet, Raymond Chandler, George Simenon, Patrícia Highsmith. A extraordinária popularida­de do subgênero abrange hoje incontáveis escritores, dentre os quais se destaca Denis Lehane, autor de Entre Meninos e Lobos. No Brasil, temos entre os cultores desse tipo de literatura Rubem Fonseca, Patrícia Melo e Luiz Alfredo Garcia­Roza.

FolhetimAo surgir, em 1790, recebeu o nome francês de feuilleton e era uma crítica teatral publicada em

rodapé de jornal. Nasceu o romance de folhetim nas páginas do jornal por volta dos anos 1840, na Fran­ça. Não mais uma crítica de teatro, mas uma obra ficcional, era uma publicação diária, em série, sempre no rodapé da primeira página do jornal. O enredo era enovelado e em muitos capítulos, para ajudar a vender o periódico. De fato, ganharam a vida com a venda dos folhetins Balzac, George Sand, Alexandre Dumas pai. O mais popular foi Eugène Sue com o romance Os Mistérios de Paris (1842­1843).

Esse tipo de narrativa é assim justificado em seu apelo de popularização:

Gravitando em torno das classes humildes ou marginais, o que atendia às expectativas românticas no sentido da po­pularização do produto de arte, o romance em folhetim se caracterizava pelo desfiar quilométrico de episódios emara­nhadamente convencionais e por um sentimentalismo piegas. (MOISÉS, 1997, p. 232)

Em Portugal, escreveram em folhetim Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. No Brasil, Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Luiz Antônio de Assis Brasil e muitos outros.

A estrutura em capítulos terminados em suspense, a ação com vários núcleos e seus conflitos, a predominância do tom sentimental na abordagem dos personagens e da ação fazem com que os folhe­tins estejam na origem das atuais telenovelas brasileiras.

Romance de realismo mágicoPara escritores e críticos literários, a verossimilhança é uma convenção artística articulada com o

código estético da época. O século XVIII, profundamente ligado à racionalidade e à ciência, rejeitava o fantástico e promovia a laicização da cultura e a afirmação do empirismo e do pensamento antimeta­físico. No entanto, não impediu que, em corrente subterrânea, corressem as águas do fantástico. Prova disso é o romance O Diabo Amoroso (1772), de Jacques Cazotte, repleto de metamorfoses e enganos em convivência aparentemente realista com o fantástico: o diabo aparece travestido em Biondetta, uma

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bela mulher por quem o protagonista se deixa seduzir. O mais famoso pacto com o diabo está na histó­ria de Fausto e de suas versões, por vários autores: Marlowe em 1588, Goethe em 1773, Thomas Mann em 1947 e Guimarães Rosa em 1956.

Segundo Selma Rodrigues (1988, p. 48),

o fantástico, como todo relato de ação, tende a um fim. O enunciado fantástico, especificamente, apresenta uma zona de interrupção, um escamoteio de dados que construiriam a sentido total da ação [...] apresentando em mais alto grau que qualquer outro tipo de narrativa, certos vazios, certas indeterminações. (RODRIGUES, 1988, p. 48)

É nesse ocultar ou indeterminar que o fantástico cria uma ambiência de suspensão de explica­ções e de racionalismos. O texto não dá explicações aos acontecimentos estranhos, deixando ao leitor toda a responsabilidade de preencher, ou não, os vazios deixados pelo relato.

Integram esse subgênero os escritores sul­americanos que, no século XX, criaram obras de gran­de impacto, como Cem Anos de Solidão (1968), de Gabriel Garcia Márquez. Consideram­se também as obras extraordinárias de Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, e mais Carlos Fuentes, Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Adolfo Bioy Casares, Juan Carlos Onetti Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Guillermo Ca­brera Infante, Severo Sarduy, Manuel Puig e o brasileiro Murilo Rubião.

Roman à clefO roman à clef ou romance com chave é uma construção caracterizada pelas personagens que, sob

nome fictício, são identificadas pelo leitor como pessoas reais, devidamente ocultadas pelo autor sob nomes que são anagramas ou que lembram, pela sonoridade, os nomes reais originais. O ro­mance O Ateneu, de Raul Pompéia, tem na personagem do pedagogo doutor Aristarco Argolo de Ramos a representação de Abílio José Borges, o barão de Macaúbas, uma figura histórica do Brasil do Segundo Império.

Roman-fleuveComo caracterização, pode­se dizer que a expressão roman-fleuve ou romance-rio “designa as obras

ficcionais que se organizam em ciclos contínuos, à semelhança de um estuário fluvial, caracterizadas pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem ou se imbricam” (MOISÉS, 1997, p. 461). Como exemplo mais marcante, temos a obra Em Busca do Tempo Perdido (1913­1927), de Marcel Proust. Também encontramos esse modo contínuo de composição em Doris Lessing (Children of Violence, cinco romances, 1952­1969), Anthony Powell (A Dance to the Music of Time, 12 romances, 1951­1975). No Brasil, os melhores exemplos são a trilogia O Tempo e o Vento (1949­1961), de Erico Veríssimo; e Tragédia Burgue-sa, de Octavio de Faria, com 15 volumes.

Romance epistolarÉ um romance escrito em forma de cartas seriadas, trocadas entre as personagens da narrativa.

Combina uma linguagem simples e direta com a oportunidade de explorar as emoções das persona­gens. Sartre (1989, p. 122), ao avaliar a técnica do romance por cartas, afirma:

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144 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

A carta é o relato subjetivo de um evento; remete àquele que a escreveu, que se torna ao mesmo tempo ator e subje­tividade testemunha. Quanto ao evento em si, ainda que recente, já vem repensado e explicado: a carta sempre supõe uma defasagem entre o fato (que pertence a um passado próximo) e o seu relato, feito ulteriormente e num momento de lazer.

Entre os escritores que compuseram textos em formato epistolar temos Samuel Richardson em Pâmela (1740­1741) e Clarissa (1747­1748). Também Jean­Jacques Rousseau escreveu um romance epis­tolar, A Nova Heloísa (1761). Uma das mais conhecidas obras é Ligações Perigosas (1782), de Chordelos de Laclos. Na atualidade, John Barth em Letters (1979) e Alice Walker em A Cor Púrpura (1982). Trata­se de uma forma rara no romance brasileiro, mas podemos ter em Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado, um bom exemplo.

Romance picarescoTrata­se de um texto em que o protagonista de baixa extração social, um desvalido, vence os obstá­

culos à custa de espertezas. Muitas vezes, a narrativa acompanha essa personagem por lugares variados, em uma viagem ou peregrinação. Ao mesmo tempo, são descritos costumes e paisagens que compõem o quadro espacial e social em que se desenvolve a narrativa. No Brasil, esse tipo de personagem conse­gue sobreviver às custas de comportamentos e ações de um malandro. Há, portanto, nesse herói, uma característica de transgressão dos códigos aceitos pela sociedade. “Quanto à sátira social [...] cabe insistir em que o pícaro é a paródia do processo de ascensão dentro de uma sociedade que rejeita os valores da burguesia e onde o parecer tinha prevalência sobre o ser” (GONZALEZ, 1988, p. 44).

Essas narrativas de esperteza são muito populares e pertencem também à tradição oral, como os con­tos de Pedro Malasartes, personagem ibérico que emigrou inclusive para a literatura folclórica do Brasil.

Entre os autores, podem ser citados o anônimo criador do primeiro romance picaresco, Lazarilho de Tormes; Henry Fielding com Tom Jones (1749); Manuel Antônio de Almeida com Memórias de um Sar-gento de Milícias (1848); e Mário de Andrade com Macunaíma (1928).

A organização dos diferentes subgêneros apresentada aqui não implica que todas as variáveis este­jam relacionadas na lista. Acreditamos, no entanto, que os principais foram classificados e caracterizados.

Texto complementar

Romance e transformações sociais(REUTER, 1996, p. 18-21)

As transformações demográficas, econômicas, sociais e técnicas, que modificam o mundo e a exis­tência, não deixam de ter repercussão no romance. Tomaremos dois exemplos entre muitos outros.

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A urbanização que se acelera nos séculos XIX e XX impõe o tema da cidade. Este vai ser trabalha­do em diferentes níveis no romance. Substitui lugares tradicionais (castelos, cortes, caminhos...) por um lugar que concentra trajetos espaciais e sociais antes divididos (dos bairros elegantes aos bairros pobres), simboliza de fato a mobilidade social e a aventura individual. Este lugar também reúne ações antes dispersas: o encontro, os perigos, a segurança... Permite a descrição de diferentes meios de interpenetração dos grupos sociais. Cria novas metáforas: a cidade como animal ou como selva... Reativa antigas metáforas: os subterrâneos, os labirintos, o poder oculto das sociedades secretas nos bastidores da cidade...

Os progressos técnicos se impõem progressivamente nos transportes. Deste ponto de vista, é toda uma visão do espaço e do tempo que se modifica. O encurtamento dos deslocamentos significa uma redução do tempo das viagens (e de certas separações ou fugas) e um aumento do espaço dis­ponível conhecido. Muda o que é digno de ser narrado: passa­se de crônicas de viagens na França ou na Europa para uma integração do universo, até de outros universos, na ficção. Uma volta ao mundo em 80 dias não é mais objeto de apostas insanas. Conseqüentemente, o Estrangeiro perde sua es­tranheza. O tema do Persa, com um olhar espantado sobre o nosso mundo, apaga­se. O Estrangeiro torna­se íntimo, interior, ou se cristaliza em convenções exóticas na literatura de massa. Os trajetos a pé ou a cavalo são substituídos pelos de trem ou de avião. A partir de então, as próprias visões modificam­se e aceleram­se, as possibilidades de encontro multiplicam­se, as decisões são tomadas mais rapidamente, em algumas horas de Paris a Roma ou em Nova Iorque.

Estas transformações trazem a tona duas observações. Em primeiro lugar, modificaram radical­mente o espaço­tempo e sua simbolização no romance: velocidade, diversidade e multiplicidade substituíram duração, número limitado e convenções de lugares. Em segundo lugar, permitiram que se refletisse sobre a imbricação entre permanência e novidade da qual falamos anteriormente. Per­manência de temas por um lado, como, por exemplo, a viagem. Mas, por outro lado, modificações incessantes, aumento e diversificação dos lugares e meios de locomoção, relativização e confronta­ção das visões e dos valores, inserção de novas cenas, criação de metáforas, mudança de sentido de figuras antigas, integração de um léxico técnico ou etnográfico diferente.

Romance e saberesUma outra dimensão também é suscetível a influenciar a evolução romanesca: a dos saberes.

Ela exerce, em primeiro lugar, pela configuração geral dos conhecimentos no seio da qual ins­crevem­se a literatura e o romance. Serão precisos séculos para que as ciências e as artes libertem­se do poder religioso. O século XVII é, desse ponto de vista, um marco com a afirmação de um proce­dimento científico autônomo. Em segundo lugar, será preciso esperar os séculos XVIII e XIX para que a literatura especifique­se em favor do desmembramento das Belas Letras que reuniam história, sociologia, e filosofia etc. em formas que nos fazem hesitar ao tentarmos classificar certos autores (Michelet) e certos textos. Mas feitas estas distinções, o romance deverá refletir sobre os saberes e as formas que lhe são deixadas.

A segunda metade do século XIX viu afirmar­se uma opção que era a da concorrência e com­plementariedade com as ciências sociais e o jornalismo. Voltado para o exterior, para a representa­ção do mundo, o romance explora um de seus filões mais clássicos e maiores, fundamenta­se nos conhecimentos e nos testemunhos, e trabalha os códigos realistas.

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O final do século XIX e o começo do XX conhecerão um crescimento prodigioso da Psicologia e depois da Psicanálise. Paralelamente, um outro filão romanesco será reativado: o da aventura inte­rior, do indivíduo e da expressão. Isto tomará novas formas: as do fluido, do contraditório, do monó­logo interior, da multiplicação das perspectivas...

Mas pode o romance concorrer com ou “aplicar” saberes, mesmo que novos? Deste modo, não continua ele a submeter­se ao que lhe é exterior? Esta será a posição de muitos escritores, de Gide (Les faux monnnayeurs e o Journal des faux monnnayeurs) [ao grupo do jornal de literatura] Tel quel que centrarão novamente o romance nele mesmo através do jogo de mise-en-abyme [sic]: a es­critura torna­se tema do romance. Para citar de outra forma as célebres palavras de J. Ricardo, ou poderíamos dizer que, ao romance de aventura (da exterioridade do mundo ou da interioridade do indivíduo) sucede a aventura no romance, que reflete sobre ele mesmo.

Tratam­se, é claro, apenas de pistas muito fragmentárias. A questão dos saberes que geram o romance ou dos quais o romance nutre­se é de grande importância [...] Está ligada à questão dos valores. De fato, o desenvolvimento e a multiplicação dos saberes institucionais e científicos modi­ficam os valores outrora unívocos, impostos pelos poderes político e religiosos. Isto permite que o romance combine e oponha em seu seio vários sistemas de valores diferentes, isto é, no século XX, lhe permitirá obscurecer ou suspender todo o sistema avaliativo em seu seio...

Estudos literários1. Henry James, em A Arte do Romance, afirma que o romance é “a mais independente, mais elástica

e mais prodigiosa de todas” as formas literárias, a ponto de parecer não ter regras. Você concorda com essa afirmação? Argumente em um texto, apresentando alguns exemplos.

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2. Compare os dois textos abaixo e depois explique por que um é histórico e o outro integra um romance.

Fragmento 1

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça­feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta­feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: <http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html>.

Acesso em: 09 out. 2007.

Fragmento 2

22 de abril

Logo de manhã alguns fura­buxos voaram por sobre as naus e com isso agitaram­se todos, por serem estes sinais da proximidade de terra.

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Isto era por volta da hora nona e aconteceu que um soldado deu­me um pontapé e mandou­me ir consertar uma vela que tinha­se rasgado. Subi até o cesto da gávea e então aconteceu algo de que muito me orgulho e demonstra que o Altíssimo, ao menos uma vez, voltou seus grandes olhos para mim. E foi isso que avistei ao longe o cume de um monte e depois dele, logo atrás, umas serras. Com toda a força gritei então: “Terra à vista!”

Olhando para baixo, vi que o convés estava cheio e havia enorme alvoroço, de modo que os de­gredados, os marinheiros e os padres abraçavam­se, não se importando com hierarquia ou odores.

Navegando naquela direção vimos que se tratava de uma ilha, que o capitão Cabral deu por bem nomear Vera Cruz. Tem ela muito arvoredo e assim nos alegramos e demos graças a Deus, por­que nos mandava frutas e água fresca.

Então, com muito gosto, jogamos o resto dos biscoitos ao mar.

Trecho do romance Terra Papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 37.

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3. Escolha um capítulo de telenovela, descreva­o e aponte nele as características semelhantes às do romance sentimental. Esteja atento ao modo como a narração atende às expectativas do telespectador.

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A estrutura da narrativa: conto e novela

Marta Morais da CostaO gênero literário narrativo compreende dois subgêneros, denominados conto e novela. Embo­

ra conservem do grande gênero algumas características de semelhança, conforme veremos a seguir, também apresentam elementos narrativos diferenciados, que lhes dão identidade. O conto tem sido um dos subgêneros mais praticados no Brasil, em especial a partir da segunda metade do século XX. A quantidade gerou qualidade e alta diversidade na criação textual. Portanto, o estudo dessa modalidade de narrativa se torna útil e necessário.

Características do conto e da novelaConto e novela são dois modos de construir narrativas ficcionais que têm como elemento comum

a mais curta extensão do texto – com exceções, como ocorre com as produções artísticas de um modo geral – quando comparada com o romance, por exemplo. A denominação que o conto recebe em inglês – short story – bem demonstra o quanto a extensão é elemento relevante na qualificação dessa forma literária.

O contoUma das primeiras características que sobressaem nas definições do subgênero conto é a de que

se trata de uma narrativa de curta extensão que não é suficiente de, por si só, constituir um volume impresso (BALDICK, 2004, p. 236). No entanto, esse critério distintivo não é capaz de esclarecer o que seja um conto. Torna­se necessário investigar melhor sua origem histórica e as alterações que ele vem sofrendo ao longo do tempo para só então obter um quadro mais claro sobre sua natureza.

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Um dos elementos distintivos dessa forma narrativa consiste no caráter sintético do texto: uma ação simples, com poucas personagens, uma ambientação social sucinta. A economia do conto é uma das suas maiores virtudes e um fator de diferenciação, mas essa economia não impede a qualidade literária ou as múltiplas interpretações. Esclarece Eickenbaum (1971, p. 162):

Short story é um termo que subentende sempre uma estória e que deve responder a duas condições: dimensões redu­zidas e destaque dado à conclusão. Essas condições criam uma forma que, em seus limites e em seus procedimentos, é inteiramente diferente daquela do romance.

Na origem, o conto está relacionado à fábula, ao apólogo, à parábola, à narrativa exemplar e às narrativas folclóricas de um modo geral. “De gênese desconhecida, o conto remonta aos primórdios da própria arte literária. Alguns exemplares podem ser localizados centenas ou milhares de anos antes do nascimento de Cristo” (MOISÉS, 1997, p. 99). A ocorrência de contos nesse período remoto da história pode ser comprovada pelos exemplos citados por Nádia Gotlib (2000, p. 6):

Para alguns, os contos egípcios – Os contos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por volta de quatro mil anos antes de Cristo. [...] O da história de Caim e Abel, da Bíblia [...] ou os textos literários do mundo clássico greco­lati­no: as várias estórias que existem na Ilíada ou na Odisséia, de Homero. E chegam os contos do Oriente: a Pantchatantra (VI a.C.), em sânscrito, ganha tradução árabe (VII d.C.) e inglesa (XVI d.C.); e as Mil e uma noites circulam da Pérsia (século X) para o Egito (século XII) e para toda a Europa (século XVIII).

A migração desses contos – seja enquanto transmissão oral, por meio dos contadores de histórias, seja por escrito, em publicações e traduções – atesta a intercomunicação entre as regiões do Oriente e do Ocidente, causada pelo reconhecimento da importância dessas narrativas.

A origem remota e seu desenvolvimento posterior também permitem separar o conto em duas grandes categorias:

o conto tradicional ou popular;::::

o conto erudito ou literário (essa última denominação é encontrada em Massaud Moisés).::::

O conto tradicional ou popularA fábula, citada por alguns autores como uma das origens do conto tradicional, tem uma configu­

ração estável: animais ou seres alegóricos, como a Morte, dialogam com o objetivo de representar uma idéia moral, o que dá ao texto caráter utilitário. É sempre uma narrativa muito curta.

O apólogo é muito semelhante à fábula por sua finalidade moralizante e utilitária, mas alguns autores o distinguem, afirmando que as fábulas apresentam como personagens preferencialmente os animais, enquanto o apólogo pode ter como personagens “objetos inanimados, como plantas, pedras, rios, relógios, moedas, estátuas etc.” (MOISÉS, 1997, p. 34).

Outra forma citada é a da parábola, que, mais complexa do que as anteriores, tem personagens humanos como protagonistas; o final continua sendo moralista, mas se apóia bastante no aspecto sim­bólico, dele decorrendo a complexidade.

As narrativas exemplares ou de exemplo são ainda pequenas histórias destinadas e ilustrar uma lição moral. Muito populares na Idade Média, apareciam entre as palavras de um sermão ou de um tra­balho religioso didático. São aparentadas à fábula, à parábola e às alegorias.

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Os contos de fadas,

com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso) [...] desenvolvem­se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática existencial. (COELHO, 1987, p. 13)

Os contos maravilhosos

são narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares, objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador uma problemá-tica social (ou ligada à vida prática, concreta). (COELHO, 1987, p. 14)

O pesquisador alemão André Jolles escreveu, em 1930, uma obra importante para tratar dessas formas iniciais de conto popular. O livro se intitulou em português Formas Simples, de que a primeira tradução no Brasil data de 1976. Nessa obra, o escritor trata da lenda, da saga, do mito, da adivinha, do ditado, do caso, do memorável, e do chiste. São formas populares de narrar histórias. Quando estuda o conto, ele dá como espaço de seu surgimento o livro Contos para as Crianças e a Família (1812­1822), dos irmãos Grimm.

Esses contos maravilhosos, recolhidos pelos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm, têm fontes muito remotas, como informa Nelly Novaes Coelho (1987): a narrativa egípcia Os dois Irmãos, de Anana, ou Setna e o Livro Mágico (ambos de aproximadamente o século XIV a.C.); os indianos Pantshatantra (séc. V) e Calila e Dimna (com texto em sânscrito desaparecido, mas reescrito a partir de narrativas orais entre os séculos IX e XIII da era cristã); As mil e uma Noites (final do século XV), de origem persa e árabe. Dos celtas, da região das atuais França, Itália e Espanha, em período anterior à era cristã, vieram as fadas que irão povoar os contos maravilhosos do Ocidente.

A partir do século XVII e da obra de Charles Perrault, Os Contos de Mamãe Gansa (1697), baseada par­cialmente em O Conto dos Contos (1634), do italiano Giambattista Basile, a publicação de narrativas curtas destinadas ao público infantil e adulto aumentou progressivamente, demonstrando a atração exercida sobre o público leitor. Entre os autores, destacam­se Madame d’Aulnoy e seus Contos de Fadas (1698), os já citados irmãos Grimm, e também Hans Christian Andersen em Contos (Eventyr), de 1835 a 1872. Ao longo do século XIX, esse tipo de narrativa já apresentava uma evolução com a Condessa de Ségur em Novos Contos de Fadas (1856), Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas (1865) e Collodi em Pinóquio (1883).

Essa tradição não se esgotou, pois nos dias de hoje essas narrativas são retomadas nas escolas, que muitas vezes as utilizam pelas características moralistas e instrutivas, presentes em boa parte dessa produção.

O conto erudito ou literárioQuanto às características formais, o conto erudito tem origens tão antigas quanto o conto popular

e maravilhoso. Episódios da Bíblia (como as histórias de Judite, de Salomé, do filho pródigo, destacáveis do conjunto), ou trechos da Odisséia e das Metamorfoses, de Ovídio, podem ser considerados contos. Também na Idade Média, as narrativas de Boccaccio, no Decamerão (1348­1353) ou as Novelas Exempla-res (1613), de Cervantes; ou ainda, no século XVIII, Zadig, Micromegas, Cândido e A Princesa de Babilônia, de Voltaire, exemplificam a composição literária do conto.

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Porém, foi no século XIX que essa forma literária alcançou autonomia e esplendor (MOISÉS, 1997, p. 100), tanto pela quantidade de escritores e obras quanto, sobretudo, pela qualidade literária das nar­rativas. O crescimento da produção de contos eruditos se deveu à descoberta dos intensos recursos expressivos dessa forma literária, aliada ao modo de ler histórico: a rapidez da vida nas cidades e as novas profissões e seus exercícios levam à escassez de tempo para o lazer e a leitura. O texto curto e com unidade favorece o encontro com o leitor. Grandes contistas podem ser nomeados nesse período: Edgar Allan Poe nos Estados Unidos, Guy de Maupassant na França, Machado de Assis no Brasil, Anton Tchekov na Rússia, Eça de Queirós em Portugal. A riqueza de assuntos, efeitos e discurso literário do conto também trouxe reflexões teóricas sobre ele, como as realizadas por Poe e Machado de Assis, que indagam sobre as qualidades de síntese e rapidez na narração das ações e da construção de persona­gens, concluindo que se trata de uma forma narrativa de grande riqueza literária.

No século XX e nos tempos atuais, o conto continua sendo um subgênero de prestígio. Grandes contistas renovaram recursos e modos de expressão, obtendo crescente diversidade, sempre provocan­do o interesse dos leitores. Entre os muitos contistas, podem ser citados Katherine Mansfield e Virgínia Woolf na Inglaterra, o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luís Borges.

A novelaA novela, entretanto, apresenta algumas dificuldades de conceituação, dado que inicialmente ela

foi confundida com o conto e que, até hoje, diferentes línguas e culturas entendem e denominam tex­tos como novelas sem o mesmo significado que damos a essa palavra em língua portuguesa:

Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas histórias. Em Boccacio, a novella era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao romance medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa com­pleta. E Bocaccio chama seus textos indistintamente de “histórias, relatos, parábolas, fábulas”. (GOTLIB, 2000, p. 15)

Essa confusão terminológica durará alguns séculos, pois a noção de literatura e de estudos teóri­cos a respeito da literatura surgiram apenas no século XIX.

O termo novel passa para o espanhol. Cervantes escreve suas Novelas ejemplares, em 1621, e estas experimentam já um processo de extensão. E Lope de Vega escreve então novelas que são, segundo ele, anteriormente chamadas cuentos. [...] Atualmente, romance é novela . Novela é novela corta. E conto é cuento. (GOTLIB, 2000, p. 15)

Em francês ocorre algo semelhante: o escritor La Fontaine, autor das hoje denominadas fábulas, no século XVII, usou indistintamente nouvelle e conte. Guy de Maupassant, no século XIX, denominou suas nouvelles como contes. O século XX criou formas híbridas e podemos encontrar contos em verso (mais próximos dos comportamentos narrativos e poéticos da epopéia).

Nas literaturas de língua inglesa, registra­se novamente um desencontro terminológico com os ter­mos em português:

Novel, usada do século XVI ao XVIII, como prosa narrativa de ficção com personagens ou ações representando a vida diária, diferenciava­se do romance, forma mais longa e mais tradicional. No século XIX, com o declínio do romance anti­go, de reminiscências medievais, a novel preencheu o espaço disponível, perdeu as associações originais, deixou de ser breve, virou romance. Hoje, novel, em inglês, é romance. Só no século XIX surge um termo específico para a estória curta, a short story. Há ainda a long short story para a novela. E o tale para o conto e o conto popular. (GOTLIB, 2000, p. 14­15)

O período do Romantismo foi muito fértil na produção de novelas, dado que sua natureza fa­vorecia a expressão da cosmovisão romântica: o sentimentalismo, o estilo derramado e a preferência

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por uma narrativa de peripécias e reviravoltas. Segundo Massaud Moisés, “a novela tornou­se um dos entretenimentos mais caros à burguesia, porventura em razão de oferecer­lhe alimento à imaginação e preencher­lhe as largas horas de ócio” (MOISÉS, 1997, p. 362). No século XVIII, Goethe usou o termo novelle para classificar Os sofrimentos do Jovem Werther, uma das obras mais influentes da época. Foi a época de Camilo Castelo Branco, Garrett e Herculano em Portugal, Eugène Sue e Alexandre Dumas pai na França; Joaquim Norberto e Teixeira e Sousa no Brasil. Os autores no século XX continuaram produ­zindo novelas, como se pode verificar na obra de Erico Veríssimo e Jorge Amado. A famosa obra Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann, é considerada uma novela, assim como O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, e O Velho e o Mar (1952), de Ernest Hemingway.

A ação e a representação da realidade no texto narrativoNa tentativa de esclarecer melhor que elementos formam o conto e a novela − dois subgêneros com

identidade própria −, vamos tratar da ação, com os diferentes sentidos e valores que adquiriu ao longo do tempo, e dos modos de representação da realidade no texto literário narrativo que estudamos.

No contoPara tratar desse tópico, convém primeiramente esclarecer o que será entendido como ação. Para

tanto, servimo­nos da definição exposta por Nádia Gotlib (1999, p. 93):

[...] atos praticados por um sujeito, ou atitudes e caracteres que, em conjunto, compõem o enredo; este agir, fazer ou acontecer se desenvolve em processo, organizando­se numa seqüência, que compõe a linha de ação; se a ação é forte e predominante entre outros elementos de construção do conto, este é chamado conto de ação.

Verificamos a importância da personagem para a qualificação desse componente narrativo: enquanto caráter, sujeito ou atitude, a personagem é responsável pela ação, seja ela de que tipo for.

Personagem e acontecimentos não têm nenhum compromisso de reproduzir a realidade: o que será permanente e relevante é o modo como a literatura, enquanto arte de inventar, reelabora o acon­tecimento, a pessoa real, o espaço e o contexto em que se desenvolve a ação narrativa. Estamos no ter­reno do fictício e portanto submetidos a normas e leis próprias desse modo de representar em palavras. Assim, o entendimento de representação enquanto transposição para a linguagem escrita concretiza o sentido do verbo latino fingere, de onde provém ficção, que significa “modelar, compor, imaginar, fingir” (MOISÉS, 1997, p. 229). Enfim, quando tratamos do conto e de seu poder de representação, incluímos nessa tarefa os recursos de linguagem utilizados para a figuração literária.

E é possível verificar que, ao longo da evolução do conto, os modos de representação em um dis­curso literário foram se alterando. Os estudiosos e teóricos dessa forma literária foram, com o tempo, retomando­se uns aos outros e compondo um painel bastante descritivo.

Tomemos como exemplo o início do “Conto de escola”, de Machado de Assis, de 1896:

A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda­feira, do mês de maio – deixei­me estar alguns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um

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espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o pro­blema. De repente, disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão. (MACHADO DE ASSIS, 1975, p. 161)

A representação espacial metonímica da cidade do Rio de Janeiro e a época em que se passa a ação fazem parecer um relato biográfico. No entanto, há a vagueza e a omissão de dados mais característicos (o sobradinho e apenas grade de pau; a rua, o morro e o campo nominados não situam melhor o leitor; a comparação entre o tempo atual e o passado serve­se apenas de, novamente, uma metonímia). É impos­sível reconstituir essa paisagem, porque a intenção do narrador não está nela verdadeiramente. Dirige­se à escola. Mas o trecho citado serviu para qualificar a personagem: criança (“onde iria brincar a manhã”), narrador adulto (“esse parque atual, construção de gentleman”) que inverte o tempo da ação, começando no meio dela (a razão é anterior à escolha do caminho da escola; depois irá até ela e viverá alguns aconte­cimentos). O modo de narrar, com omissões e mudanças temporais, representa um fazer do narrador, um modo de compor o texto que visa ao efeito do suspense e, posteriormente, da surpresa.

Portanto, mesmo um texto curto como o conto abriga modos de dizer/escrever literários. Existem outros modos que tornarão mais específico o texto do conto, e dirão respeito à ação narrativa. Nádia Gotlib, servindo­se de boa bibliografia, apresenta e discorre sobre essas idiossincrasias do conto.

O conto tradicionalUm estudo relevante que trata dessa forma de conto é o realizado por Vladimir Propp em Morfo-

logia do Conto (1928). O pesquisador toma como base os contos do ciclo da Baba Yaga, espécie de fada má da literatura folclórica russa, e estabelece, a partir deles, um conjunto de qualidades reiteradas e que formam um padrão. Assim, trata em seu estudo das ações constantes e das personagens, em número de sete. Os esquemas obtidos serão quase integralmente mantidos em estudos posteriores, aplicados a gêneros literários diferentes (como o dramático) e a romances, novelas e contos eruditos, estudos esses de A. J. Greimas, Claude Brémond e Etienne Souriau.

Propp dividiu as ações constantes em 31 funções, que podem ser realizadas por personagens di­ferentes, de modos diferentes e nem todas estão juntas em um mesmo relato. A passagem entre as fun­ções provoca os movimentos do conto (GOTLIB, 2000, p. 21). Entre essas funções estão “o afastamento de um membro da família”, “a interdição”, “o herói abandona sua casa”, os obstáculos em número de três, “o agressor desmascarado”, “a tarefa cumprida”, “o agressor punido”, “o casamento”. Na medida em que lemos essa lista incompleta, já a podemos entender e preenchê­la com alguma história conhecida – o que confirma a pertinência da categorização de Propp.

Quanto às personagens, Propp identificou sete – o antagonista ou agressor, o doador, o auxiliar, a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso herói –, cada uma delas atuando em sua esfera de ação, que corresponde às funções que cumpre cada personagem. Posteriormente, nos anos 1960, A. J. Greimas criou o que denominou sistema actancial, com vinte funções e seis personagens agrupados por oposição: sujeito versus objeto, destinador versus destinatário e adjuvante versus oponente. Essa compreensão das personagens, de seus papéis e funções, extrapolou o conto tradicional e se estendeu, como método analítico, para as demais narrativas, como os romances, os contos eruditos e as novelas.

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O conto eruditoPara estabelecer uma teoria do conto, Nádia Gotlib apresenta diferentes perspectivas em seu li­

vro: a unidade de efeito de Poe, efeito e contenção em Tchekhov, o enredo em Maupassant, a epifania em Joyce, a simetria na construção de Brander Matthews, e o excepcional em Cortazar. Vamos abordar, a partir da apresentação de Nádia Gotlib, cada um desses enfoques no tocante à ação e à representação.

Intitulado “Review of Twice-told tales”, o texto de Edgar Allan Poe que embasa a sua teoria sobre o conto é o seu prefácio para uma reedição de obra de Hawthorne. Nesse prefácio, ele afirma que:

No conto breve, o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob controle do escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansaço ou interrupção. (POE apud GOTLIB, 2000, p. 34)

Em outras palavras, a brevidade do texto leva à rapidez da leitura, mantendo concentrado o po­der da narração para realizar determinados efeitos no leitor: “em quase todas as classes de composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância”, insiste ele (POE apud GOTLIB, 2000, p. 32). Conclui Nádia Gotlib (2000, p. 32): “logo, é preciso dosar a obra, de forma a permitir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve demais, esta excitação ou efeito ficará diluído”.

Seguindo o mesmo pensamento da brevidade do conto, Tchekhov acrescenta como elementos ca­racterizadores a condensação, a concentração ou compactação, além da tensão unitária: “para conseguir compactar os elementos do conto, ou apresentá­los com concisão, o autor tem de controlar a tendência aos excessos e ao supérfluo” (GOTLIB, 2000, p. 43). O exemplo do início do conto machadiano exposto aci­ma aponta insistentemente para essa concisão: a descrição da dúvida da personagem entre um espaço ou outro é econômica, daí o uso da metonímia e apenas os nomes dos espaços, sem longas descrições.

Em Guy de Maupassant, o objetivo central do conto é a narração natural do acontecimento. Nele, o interesse pela representação da realidade supera a contenção, sem que o conto se estenda demasia­do. Em sua obra de muitos contos, predomina o enredo: “sua imensa produção, de cerca de trezentos contos, traz uma fácil fluência natural do acontecimento, com precisão e descontraída firmeza, produto de uma intensa elaboração, seguindo os conselhos de seu mestre Flaubert” (GOTLIB, 2000, p. 46).

Joyce trouxe mais um componente para a composição do conto: para ele, o conto deveria ter como momento especial a epifania – “Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é identificada como uma es­pécie ou grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objetivo do conto, enquanto uma forma de representação da realidade [...] é uma ‘manifestação espiritual súbita’.” (GOTLIB, 2000, p. 51). Tal atributo não ocorre em qualquer contista, mas apenas entre aqueles que entendem a escrita literária como forma de acesso a interioridades e a revelações espirituais, como Clarice Lispector.

Em ensaio de 1901, Brander Matthews trouxe mais uma forma de conceber o conto enquanto um subgênero especial. Para ele,

[...] existe uma diferença entre conto e romance que não é só de extensão, mas de natureza; o conto tem uma unidade de impressão, que o romance obrigatoriamente não tem. E por que tal unidade ocorre? Por causa da singularidade dos elementos que compõem a narrativa do conto: o conto é o que tem unidade de tempo, de lugar e de ação. O conto é o que lida com um só elemento: personagem, acontecimento, emoção e situação. (GOTLIB, 2000, p. 59)

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Adotamos essa concepção até os dias de hoje para distinguir o conto das demais narrativas lite­rárias, como a novela e o romance.

Por último, temos a contribuição de Júlio Cortazar, um contista extraordinário, que também pen­sou o fazer literário e sua recepção, e lançou a idéia do conto excepcional, assim definido por ele no estudo “Alguns aspectos do conto”, publicado na obra Valise de Cronópio (1974):

O excepcional reside numa qualidade parecida à do ímã: um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade: um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência. (GOTLIB, 2000, p. 66)

Sobressai, portanto, acima de todas as qualidades de extensão, unidade e efeito, a marca da lite­ratura, da estética do texto, da capacidade de criação do excepcional, que transcende a escrita cotidiana e se torna insubstituível.

Na novelaA ação na novela é essencialmente plural, porque é constituída por células narrativas e de ação,

apresentadas em um entrelaçamento e cada uma com independência de temporalidade, isto é, cada uma tem unidade de tempo, com começo, meio e fim. Essa independência não significa que cada célula, espécie de conto, não faça parte de uma unidade maior, para a qual contribui com uma parcela de sen­tido. Se aproximarmos essa noção caleidoscópica da novela das narrativas das telenovelas brasileiras, podemos relacionar essas células ao núcleo de personagens/acontecimentos existente na teledrama­turgia: o núcleo burguês, o núcleo cômico, o núcleo dos operários etc. Os acontecimentos são primor­diais: eles propiciam a dinâmica da narrativa, além de justificar as reviravoltas do enredo.

Embora múltiplo, o espaço também se torna convergente, o que por vezes leva a alguns encon­tros artificiais de personagens vindos de diferentes regiões do país ou da cidade e, coincidentemente, encontrando­se na mesma praça, no mesmo restaurante, na mesma casa. A variedade e o grande nú­mero dos espaços acompanham a quantidade de personagens e ações – e, muitas vezes, esse espaço toma formas exclusivamente fictícias, com a função de servir de cenário para a preocupação central da novela: os acontecimentos.

Entre os processos de narração, sobressaem os diálogos (acompanhando o grande número de personagens) e a narração, cujo papel é o de orientar o leitor intensamente, resumindo, explicando, qualificando a ação. Para tanto, a linguagem se caracteriza por um registro quase oral, de entendimento rápido pelo leitor.

As personagens são numerosas para atender a todos os enredos e células da ação, com um gran­de número de coadjuvantes, muitas vezes existindo apenas para dar aos espaços uma atmosfera social. São personagens pouco densos, até pelo grande número e a impossibilidade de o narrador deter­se demoradamente para construir uma figura com nuances e contradições. Como resultado, os processos de aglutinação das diferentes

[...] células dramáticas [...] podem ser de dois tipos: 1) ou as personagens mantêm­se ao longo da novela, servindo de elo [...] entre as suas várias unidades e de elemento catalisador para as peripécias que se sucedem; 2) ou vão sendo substituídas a cada episódio: a passagem de uma célula a outra dá­se pelo acaso ou pela morte do protagonista da fração dramática, e pela conseqüente substituição por uma personagem anteriormente colocada em segundo plano. (MOISÉS, 1997, p. 367)

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159|A estrutura da narrativa: conto e novela

A ação das novelas tem um ritmo rápido, de vez que se apóia no enredo, sem descrições, disserta­ções e episódios de lentidão. Na verdade, cada célula acaba repetindo a mesma estrutura de:

início clímax epílogo

E “assim a carga dramática da novela vai avultando paulatinamente, à proporção que os episódios se sucedem” (MOISÉS, 1997, p. 367). O final da novela desvenda o enigma ou os mistérios dispersos ao lon­go da narrativa, como se verifica na novela policial. A existência desses mistérios cria no leitor a expectati­va por conhecer o desenlace, que nem sempre é definitivo, porque a novela pode admitir sua continuação em outros livros, como ocorre com os textos em série: Harry Potter, de J. K. Rowling, as novelas policiais de George Simenon (com o detetive Maigret) ou de Agatha Christie, com Miss Marple ou Hercule Poirot.

[...] o epílogo da novela articula­se estreitamente à sua macroestrutura: evoluindo numa linha horizontal, a novela exem­plifica à perfeição o que poderia se chamar de obra “fechada”, na medida em que as células dramáticas parecem bastar­se a si próprias, não estabelecem com a vida senão vínculos indiretos. [...] Todavia, mostra­se estruturalmente “aberta”: colocado o ponto final na sucessão de episódios, outros poderiam ser acrescentados, bastando chamar à cena aconte­cimentos posteriores, ou personagens secundárias, cuja existência não se completara no correr da fabulação. (MOISÉS, 1997, p. 368)

Verifica­se, portanto, que a novela é uma forma de intensa atração para leitores em busca de narra­tivas ágeis, de média extensão e com uma estrutura narrativa tradicional, que possa ser imediatamente apreendida.

Tipologia da narrativa curtaHá grande semelhança entre os tipos de narrativa constituintes do conto e da novela. Luzia de Maria

Reis destaca dentre os tipos de conto “os contos de humor, os contos fantásticos, os contos de mistério e terror, os contos realistas, os contos psicológicos, os contos sombrios, os contos cômicos, os contos religio­sos, os contos minimalistas, os contos estruturados de acordo com as técnicas da narrativa” (REIS, 1987, p. 10). Este último é o conto erudito. Além desses, temos também os contos maravilhosos (com protagonistas equivalentes aos seres humanos ou com protagonistas em formato de animais ou plantas, ou objetos).

A distinção entre eles se faz pelo efeito produzido no leitor (humor, mistério, terror, sombrios), pela atmosfera dominante na narrativa (cômico, fantástico, realista, religioso), pelo tratamento dado às perso­nagens (psicológico) ou pelos aspectos formais (minimalista, erudito).

Massaud Moisés (1997, p. 368) também enumera tipos de novela: “novela de cavalaria, novela sen­timental e bucólica, novela picaresca, novela histórica, novela policial e de mistério”. Como na classifica­ção dos contos, as novelas também se apresentam a partir do efeito (mistério, sentimental), pela atmos­fera (bucólica), pelo personagem protagonista (picaresca), pelo assunto (de cavalaria, policial, histórica).

Porém, essas classificações não são suficientes para dar conta das narrativas múltiplas que apare­ceram ao longo da história. Por exemplo, contos experimentais, contos metaficcionais1, contos didáticos e contos filosóficos. De qualquer modo, toda classificação é sempre passível de omissões e de critérios ou denominações tão fechadas, alheias à criatividade do fazer literário.

1 Metaficcional diz respeito à narrativa que chama a atenção do leitor para a própria ficcionalidade, isto é, que tem como assunto o próprio fazer narrativo, a própria feitura do texto.

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Texto complementar

Teses sobre o conto(PIGLIA, 1944)

Num de seus cadernos de notas Tchekhov registrou este episódio: “Um homem, em Monte Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.” A forma clássica do conto está condensa­da no núcleo dessa narração futura e não escrita.

Contra o previsível e convencional (jogar–perder–suicidar­se) a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa excisão é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.

Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.

O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história 1 (o relato do jogo) e cons­trói em segredo a história 2 (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber cifrar a histó­ria 2 nos interstícios da história 1. Uma história visível esconde uma história secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.

O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.

Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias signi­fica trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram simul­taneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.

Os pontos de cruzamento são a base da construção.

No início de “La muerte y la brújula”, um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali por­que é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada mís­tica e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a história 1 para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contigüidade com o assassinato de Yar­molinsky e responde a uma causalidade irônica. “Um desses lojistas que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma edição popular da Historia secreta de los hasidim. O que é supérfluo numa história, é básico na outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das Mil e uma Noites em “El sur”; como a cicatriz em “La forma de la espada”) da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica máquina narrativa que é um conto.

O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enigmá­tico. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos do conto.

Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.

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A versão moderna do conto que vem de Tchekhov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de Dublinenses abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão entre as duas histórias sem nunca resolvê­las. A história secreta conta­se de um modo cada vez mais elusi­vo. O conto clássico a Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto moderno conta duas histórias como se fossem uma só.

A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação: o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o subentendido e a alusão.

“O grande rio dos dois corações”, um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial de uma excur­são de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausência da outra história.

O que Hemingway faria com o episódio de Tchekhov? Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente onde se desenrola o jogo, a técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como se o leitor já soubesse disso.

Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visível até transformá­la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano.

A história do suicídio no argumento de Tchekhov seria narrada por Kafka em primeiro plano e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico e ame­açador.

Para Borges, a história 1 é um gênero e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou dissimular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.

A história visível, o jogo no caso de Tchekhov, seria contada por Borges segundo os estereóti­pos (levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na pla­nície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a condensação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.

A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da cons­trução cifrada da história 2 o tema principal.

Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os materiais de uma história visível. Em “La muerte y la brújula”, a história 2 é uma construção delibera­da de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em “El muerto”; com Nolan em “Tema del traidor y del héroe”; com Emma Zunz.

Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma de narrar.

O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a bus­ca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca da vida,

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162 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não numa longín­qua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.

Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

Estudos literários1. Procure lembrar de um conto infantil ouvido na infância. Escreva­o ou copie o texto de um livro

ou da internet. Aplique as características do conto tradicional. Comente o resultado.

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163|A estrutura da narrativa: conto e novela

2. Escreva um resumo de seu dia. Escolha um fato que lhe tenha chamado a atenção. Conte esse fato com personagens, em terceira pessoa, em um texto de, no máximo, 30 linhas. Analise o texto a partir das qualidades de um conto.

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164 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

3. Ler as notícias do jornal do dia. Descobrir nelas um assunto que possa ser tratado em forma li­terária. Primeiro escreva um resumo do assunto escolhido no jornal, depois escreva essa história respeitando as normas do conto.

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A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

Marta Morais da CostaA análise da crônica e do ensaio sob a perspectiva da teoria da literatura produz algumas ques­

tões relevantes para a compreensão de novos subgêneros, nascidos de anseios e necessidades da con­temporaneidade. Em especial, a literatura que se realiza na fronteira com outros gêneros textuais, frutos do discurso jornalístico e do discurso científico. Para esclarecer melhor essas fronteiras e apresentar no que eles se aproximam do texto literário, vamos dividir este estudo em três partes:

crônica, tempo e realidade;::::

a importância literária da crônica; e::::

o ensaio como literatura.::::

Crônica, tempo e realidadeA etimologia do termo crônica está em Cronos, o deus grego que simbolizava o tempo, e que os

romanos denominaram Saturno. Até o momento, essa relação continua válida, porque a crônica esteve e está efetivamente relacionada com uma perspectiva temporal, seja de escolha do assunto, seja no tratamento formal desse mesmo assunto.

A história informa sobre as primeiras crônicas, nascidas na Inglaterra e denominadas Anglo-saxon chronicle, iniciadas em 891 e escritas até 1154, em um conjunto de nove manuscritos que mostram a história do estabelecimento do povo anglo­saxão nas Ilhas Britânicas. O último desses manuscritos se intitula Manuscrito de Peterborough. A mesma intenção de registro da história de um povo ocorreu em Portugal: em 1418, a mando do rei D. Duarte, Fernão Lopes iniciou as Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Nesses escritos, “a matéria não­ficcional transforma­se em ficção, se aceite o princípio de que

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a História – pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também uma ficcionalização do real” (SILVEIRA, 1992, p. 27).

A Fernão Lopes sucedem­se outros cronistas, de que Pero Vaz de Caminha, no final do século XV, é mais um exemplo ao registrar a viagem marítima até a Índia, passando pelo Brasil. Durante os sécu­los XVI e XVII, tivemos como cronistas vários viajantes que, ao passarem pelo Brasil, historiaram de um modo simultaneamente descritivo e opinativo, muitas vezes de intensa subjetividade, o que foram en­contrando em termos de regiões, flora, fauna, tipos humanos, costumes, rituais religiosos e muito mais. A França e a Espanha também tiveram seus cronistas históricos. É importante salientar que no Renasci­mento (século XVI) “o termo crônica começou a ser substituído por história” (MOISÉS, 1997, p. 132).

Nesses primeiros momentos da crônica, é possível verificar a característica de apego ao tempo (seja o presente, seja o passado), mas esse ainda não é o período que interessa para o conceito e a prática de crônica que incorpora mais intensamente modos literários de escrita e de função textual.

É somente em 1800 que o escritor francês Jean Louis Geoffroy começa a publicar, no Journal des Débats, textos em feuilletons (os folhetins) que em nada se assemelhavam aos registros históricos me­dievais. “Seus imitadores entre nós [no Brasil], aparecidos depois de 1836, traduziam o termo para folhe-tim, mas já para a derradeira quadra do século a palavra crônica principiou seu curso normal” (MOISÉS, 1997, p. 132). Antonio Candido (1992, p. 15), em estudo clássico sobre o assunto, intitulado “A vida ao rés­do­chão”, acrescenta:

No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela natura­lidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente dita foi folhetim, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia – políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”, título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.

Nessa rápida passagem por uma história de pouco mais de dois séculos dessa forma literária, é im­portante salientar o fato de que, no Brasil, a evolução e a difusão da crônica constituíram fator distintivo dentro da história da literatura. Em 1971, Gerald Moser escrevia um estudo para uma publicação feita na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, intitulado “The cronica: a new genre in Brazilian Literature?” (“A crônica: um novo gênero na literatura brasileira?”) Até hoje, os dicionários de termos literários em língua inglesa não incluem o verbete “crônica”, mas ao longo de todos esses anos cresceu uma vasta produção de crônicas e um grande número de estudos sobre essa forma literária. Arrigucci (1987, p. 53) também deu destaque ao desenvolvimento dessa forma de literatura no Brasil: “Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar.”

Não são poucos e nem insignificantes do ponto de vista literário os autores de crônicas no Brasil: José de Alencar, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, João do Rio, Humberto de Cam­pos, Rachel de Queirós, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues, Alcione Araújo, Otto Lara Rezende, Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo Jabor, Ferreira Gullar, Marcelo Coelho e muitos mais.

Antonio Candido (1992, p. 16) considera, acerca da crônica, que “o seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo da busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo”. Assim, a partir do século XIX ela se dis­tanciou das raízes históricas e se aproximou do jornalismo.

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167|A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

Agora se trata simplesmente de um relato ou comentário de fatos corriqueiros do dia­a­dia, dos fait divers, fatos da atualidade que alimentam o noticiário dos jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tiragem, no século [XIX]. A crônica virou uma seção do jornal ou da revista. Para que se possa compreendê­la ade­quadamente, em seu modo de ser e significação, deve ser pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa, a que sempre esteve vinculada sua produção. Mas seria injusto reduzi­la a um apêndice do jornal, pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência européia, alcançando logo, porém, um desenvolvimento próprio extremamente significativo. (ARRIGUCCI, 1987, p. 53)

Em um primeiro momento, ela tomou assuntos emprestados dos jornalistas e assim os cronistas se transformaram em comentaristas responsáveis pela crônica policial, a social, a de teatro, a de econo­mia e outras. Mas a dose de subjetividade, de humor e – posteriormente – a busca da expressão literária foram direcionando cada vez mais o gênero para um caminho próprio: “[...] foi largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo) para ficar, sobretudo, com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro” (CANDIDO, 1992, p. 15). Esse comen­tário nos leva a indagar quais seriam as características das narrativas literárias que permeiam a crônica, e que ultrapassam os modos de escrita do texto jornalístico.

A importância literária da crônicaDe modo claro e incisivo, Davi Arrigucci (1987, p. 53) posiciona a crônica entre os textos literários

por suas qualidades estéticas e pela aproximação com outras formas de escrita literária:

Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar, com dimensão estética e relativa autonomia a ponto de constituir um gênero propriamente literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às vezes tam­bém da lírica, mas com uma história específica e bastante expressiva no conjunto da produção literária brasileira [...].

Em estudo fundamental intitulado A Crônica (1987), Jorge de Sá realça entre os componentes li­terários desse subgênero a aparente simplicidade, sem perda de qualidade textual, o caráter sintético e urgente de sua escrita, o coloquialismo elaborado, o dialogismo, o “toque de lirismo reflexivo” e a com­plexidade das dores e alegrias humanas (p. 10­11).

A simplicidade da crônica é exigida pela definição do seu destinatário – o leitor de jornal –, pelo ambiente de escrita em que se inseriu na origem (a imprensa periódica) e pela exigüidade de espaço para seu desenvolvimento (obrigando a síntese), mas não dispensa nem ignora os recursos de toda a linguagem literária: a escrita figurativa, o ritmo adequado e significativo das frases, a captação do ins­tante e de sua densidade, a construção de personagens que, mesmo sem espaço para aprofundamento, são delineadas com exatidão para de imediato dizerem de sua natureza ao leitor.

O vizinho mandou pintar de cor­de­rosa sua casa, e de azul­claro o beiral e os marcos e folhas das janelas. Esta provi­dência dá margem a algumas divagações que aqui se transmitem ao leitor, nosso companheiro.

O ato do vizinho é muito mais importante do que lhe aparece a ele. Afirma um sentimento de confiança na civilização mediterrânea, e o propósito de contribuir para que todos nós, residentes ou transeuntes, recuperemos um pouco da beatitude perdida. (ANDRADE, 1970. p. 32)

Ao cronista­poeta Carlos Drummond de Andrade, o ato de pintar a casa, descrito de maneira su­cinta, serve de motivo para dissertar sobre urbanismo, urbanidade e civilização.

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168 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

O caráter de urgência e de síntese da crônica tem função paradoxal. A urgência se relaciona com a duração do jornal ou revista – muitas vezes válido por 24 horas – e no cronista a percepção imediata da importância do assunto, retirado da vida cotidiana, confere à crônica maior transitoriedade temporal do que há no conto, por exemplo. Mas a síntese traz aproximação maior com a poesia, que também é um gênero breve, e obriga o escritor a concentrar os recursos estéticos expressivos em uma ambiência textual reduzida.

Em janeiro de 1958, Rubem Braga escreveu no mesmo pequeno espaço que ocupava na página do jornal, um “romance policial carioca” em capítulos brevíssimos, compostos mais pela enumeração de frases, sem conetivos e nem coesão sintática, mas que, em forma de flashes e imagens concentradas, permitem ao leitor seguir a ordem dos acontecimentos e as divergências surgidas do caso narrado:

Crime ou suicídio? – A polícia acredita em latrocínio – Muller teria sido major das Tropas de Assalto Nazistas – Impres­sões digitais apontarão o criminoso – Dentro de 24 horas a Polícia deve ter em mãos o assassino do alemão, declara o Delegado do 2.º Distrito – Moços da juventude transviada freqüentavam o apartamento da 5 de Julho – Teria prome­tido uma lambreta para o Natal – Mulher ruiva, a chave do mistério! – Ainda envolto em mistério o crime do Edifício Tudinha – Procura­se: moço louro de bigode curto – Avolumam­se as suspeitas sobre Aristóbulo – Incomunicável a doméstica Severina – “Batida” no Morro da Catacumba. (BRAGA, 1999, p. 76­77)

As frases que dão andamento sincopado à narrativa assemelham­se a manchetes de jornal. Em um primeiro momento sem saber de que crime se trata, por meio da leitura dessas frases agrupadas o leitor pode ir reconstruindo partes do crime ocorrido. A narrativa se organiza, portanto, no jornal e dele acolhe a linguagem das manchetes, e também reproduz da imprensa a linguagem sensacionalista, além da síntese, da abreviação do tempo narrativo.

O coloquialismo elaborado tem a ver com o caráter da dicção aparentemente desestruturada, que se assemelha a uma conversa cúmplice entre narrador e leitor, sem transformar a linguagem em simples reprodução da fala. A leveza e a imediata compreensão do texto passam pelo exercício de pesquisa de uma expressão jocosa, ambígua, poética e reflexiva que aproxima a crônica da qualidade dos outros gêneros literários. Vejamos o exemplo de uma crônica de Fernando Sabino (1983, p. 57), intitulada “Oca­siões de ficar calado”:

– Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo? – Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia? Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda: – Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando... E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha: – Terrível, não acha? Mas ele não pensa assim: – Não acho não: sou o atual marido dela.

Como se pode observar, o diálogo mantém a estrutura lingüística da oralidade (“não sabia?”, “me desculpe”, “não acha?”), mas também apresenta vocabulário e expressões mais comuns à escrita, como “impávido”, “e não tendo mais o que dizer”, “sou o atual marido”.

E segundo Jorge de Sá (1987, p. 11), o dialogismo1 reside no equilíbrio entre

[...] o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível permaneça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que estão sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas

1 Dialogismo é termo cunhado pelo lingüista e teórico Mikhail Bakhtin na obra A Poética de Dostoievski e se refere à presença de várias vozes dentro da narrativa, criando uma pluralidade de perspectivas, de idéias, de discursos. Opõe­se ao discurso monológico, em que a voz do narrador abafa e subordina todas as outras possíveis manifestações de personagens com a imposição do ponto de vista exclusivo do narrador.

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169|A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

conversas diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um interlocutor que nada mais é do que o nosso outro lado, nossa outra metade, sempre numa determinada circunstância.

É freqüente o narrador da crônica dirigir­se diretamente ao leitor, enunciando­o no próprio corpo do texto literário, e com ele mantendo um diálogo aberto:

Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a também escrever crônicas. A crônica aparece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais dura­doura. (O verdadeiro escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se oferece, mas consciente muitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências de sua vocação.) Um dos missivistas chegou mesmo a dizer que interrom­peu o curso de medicina para “tentar as letras”. Pelo que escreveu, estou certo de que daria um excelente médico.

Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor, continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não for, não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.

E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos. (SABINO, 1983, p. 140)

Em Alter ego, de Fernando Sabino (o autor do trecho acima), o narrador mistura a voz das cartas recebidas (que chega a citar, como em “tentar as letras”) com a avaliação crítica realizada pelo escritor, que se põe a confissões a respeito de conceitos de literatura e vocação literária. A ironia de seus comen­tários dirige­se a dois destinatários: o leitor que lhe escreveu a carta (que é uma segunda voz no texto) e qualquer leitor, inclusive nós, que não temos presença física no texto, em termos de palavras que nos incluam, mas estamos presentes o tempo todo e com quem mais continuadamente o texto dialoga.

Ainda segundo Jorge de Sá, o toque de lirismo reflexivo diz respeito à extensão poética e de pen­samento que o narrador faz, motivado pela observação da realidade externa. Qualquer imagem, acon­tecimento ou percepção dá origem a elaborada reflexão sobre a condição humana. Vejamos mais um trecho de Drummond (1970, p. 76):

Esse dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu simbolismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os velhos têm já formado o seu sentimento da morte e dos mortos. Esta é uma conquista do tempo, e prescinde de comemorações para se consolidar. Basta o exercício de viver, para nos desprender capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá­la de tal jeito com a morte, que passamos a sentir essa última como forma daquela, e for­ma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que só se completa depois de provas sucessivas. [...] Posso informar pessoalmente que a imbricação da idéia de morte na idéia de vida não é arrasadora para o homem, senão que constitui uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz, com parte da experiência individual.

Assim como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade realizava per­feitamente essa simbiose entre narração e poesia, observação e filosofia de vida, matéria e simbologia. Talvez seja essa característica que autoriza e justifica a inclusão da crônica como subgênero entre as demais narrativas literárias.

A complexidade das dores e alegrias humanas é apresentada ao leitor de modo sintético, mas nem por isso menos significativo, emocionante e verdadeiro. Por essa qualidade, a crônica se confirma como um texto de densidade, escapando da vala comum dos escritos pseudoliterários, tal como Fernando Sabino caracterizou os escritos do “quase­escritor­ex­estudante­de­medicina”.

Ao comentar uma conversa com amiga de tempos remotos, ocorrida em uma casa em que habi­tualmente os amigos se encontravam em dia de domingo, Rubem Braga (1998, p. 268) assim conclui, de forma magistral, sua crônica:

Penso em tudo que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi – e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada. E com seus dois olhi­

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nhos pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa noite de domingo, sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de domingo – e não voltaram mais.

O desenvolvimento e a expansão da crônica permitem que hoje possamos encontrar diferentes textos e incluí­los em categorias, sempre instáveis, mas que visualizam melhor a riqueza desse subgê­nero. Vamos propor uma classificação delas.

Quanto ao tipo de discursoEste item aborda a crônica do ponto de vista textual e em sua elaboração enquanto escrita, aten­

dendo aos quatro tipos textuais: a descrição, a narração, o diálogo e a dissertação. Convém advertir que nem sempre encontramos crônicas em sua forma puramente descritiva, narrativa, dialogada ou disser­tativa: o que existe é um predomínio bastante intenso de algum desses tipos textuais.

Crônica descritivaAo tomar um determinado objeto, acontecimento ou pessoa como assunto da crônica, o narrador

se detém a caracterizá­los em detalhes, evitando moralizar ou filosofar a partir deles. É um tipo raro, porque impede a manifestação da subjetividade e da perspectiva pessoal, manifestação essa tão im­portante para a crônica. Um dos exemplos para essa categoria pode ser a crônica “Quarto de moça”, de Rubem Braga (1999, p. 145­146).

Crônica narrativaO texto organiza­se como uma narrativa, isto é, com começo, meio e fim, personagens, diálogos e

ação. Pode narrar fatos verídicos ou ficcionais. Nesse segundo caso, aproxima­se do conto. Não apresen­ta foco narrativo exclusivo: pode ser narrada tanto em primeira como em terceira. Exemplificando esse tipo, podemos citar a crônica “A vinda do filho”, de Fernando Sabino (1983, p. 129­131).

Crônica dissertativaDesenvolve idéias e pontos de vista do cronista a partir de argumentos lógicos e racionais. Por expor

e defender valores axiológicos do escritor­cronista, pode estar redigida em primeira pessoa, tanto do sin­gular como do plural. Raramente admite um ponto de vista neutro, como o de terceira pessoa do singular. Aproxima­se do ensaio, dele diferenciando­se por ser sintética e pessoal.

Pode adotar um tratamento sério como também paródico ou irônico. Tem como assunto tanto questões de foro íntimo quanto questões sociais ou políticas.

Como exemplo, a crônica “Feriados”, de Carlos Drummond de Andrade (1970, p. 65).

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Crônica dialogadaExemplo mais raro de crônica, mas existente: é aquela crônica em que o narrador desaparece do

tecido textual e deixa apenas o diálogo entre personagens contar a história. Ou então fica reduzido a intervenções mínimas de distribuição das falas, sem expressar sua posição avaliadora ou crítica. Luis Fer­nando Verissimo é um cronista hábil na construção desse tipo de texto e dele podemos citar a crônica “Lixo”, que se encontra em O Melhor das Comédias da Vida Privada (VERISSIMO, 2004, p. 87­90).

Crônica mistaTrata­se de um tipo híbrido de texto, em que estão presentes características tanto da crônica narra­

tiva quanto da descritiva, da dissertativa e da dialogada. É o tipo mais freqüente. Uma das mais belas crôni­cas de Rubem Braga, “Recado ao senhor 903”, é um bom exemplo desse tipo (BRAGA, 1998, p. 178­179).

Quanto ao tratamento do assuntoQualquer dos tipos textuais (narração, descrição, diálogo e dissertação) pode receber diferentes

tratamentos de estilo e concepção de texto.

Crônica humorísticaQuando relata o cotidiano da vida particular ou da sociedade, a crônica não perde a oportunida­

de de mostrá­lo também sob o ângulo da comicidade e do humor. Por vezes, a crítica social (seja dos caracteres, seja dos costumes) aparece no tom irônico da representação e da análise, ou na paródia a discursos sociais estabelecidos. De grande importância e numerosas, as crônicas humorísticas brasilei­ras obtêm bastante sucesso junto ao público leitor. As crônicas do livro O Melhor das Comédias da Vida Privada (2004), de Luis Fernando Verissimo, enquadram­se nessa classificação.

Crônica lírica ou poéticaO posicionamento subjetivo do narrador e, por vezes, do próprio escritor é a marca mais distintiva

da crônica. Essa subjetividade se manifesta no modo como a escrita revela os seus sentimentos, valores e modo de interpretar a vida. Muito freqüentemente, a crônica lírica se constrói com uma linguagem figurada, em que a metáfora e a exploração da sonoridade da frase são constantes. Há também um tom e uma atmosfera nostálgicos e sentimentais que tornam as narrativas sensibilizadoras para o leitor.

Os motivos para esse tipo de crônica estão na natureza, no ser humano (seja homem, mulher, ve­lho ou criança), na presença da vida e da morte, do amor e da literatura. E o seu texto pode ser em prosa ou em verso.

Entre muitos exemplos, citamos “Sobre o amor, desamor...”, de Rubem Braga (1998, p. 211).

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Crônica reflexivaEsse tipo particular de crônica apresenta exclusivamente, sob formato dissertativo, reflexões de

ordem filosófica sobre a natureza e a constituição da vida humana. Pode ter origem em algum fato par­ticular, mas logo sobrepõe a ele as idéias e conjecturas a respeito de assuntos que podem chegar a um enfoque metafísico. Carlos Drummond de Andrade escreveu muitas crônicas com esse tratamento – por exemplo, “Diante do carnaval”, do livro Fala, Amendoeira (1970, p. 68­70).

Crônica jornalísticaAtualmente, há uma tendência literária no texto jornalístico. Sem perder de vista assuntos e fun­

ções do texto tipicamente jornalísticos (informação, opinião, relato), o estilo das reportagens e comen­tários ganha uma linguagem figurada, jogos de palavras e recursos narrativos típicos do texto literário. A crônica pode ganhar essa roupagem literária mesmo tratando de assuntos como a política, o esporte, a cultura (teatro, cinema, literatura, artes plásticas, folclore etc.), os crimes, a vida social. É o chamado jornalismo literário (LIMA, 2004).

O ensaio como literaturaO ensaio é um subgênero polêmico em sua posição dentro da literatura. Em princípio, trata­se

de um texto científico por sua organização lógico­argumentativa, voltada para a comprovação de uma idéia, princípio ou concepção. Apresenta, porém, a possibilidade de um posicionamento particular, sub­jetivo – portanto, parcial – que deixa suficiente abertura para o desenvolvimento de um estilo de escrita particular que, algumas vezes, tangencia à literariedade. Quando, por acréscimo, o ensaio se debruça sobre o texto literário, há uma contaminação intertextual. Na crítica literária contemporânea, há uma forte e nítida tendência a construir ensaios com objetivos que escapam à ciência e tocam na literatura. Massaud Moisés afirma (1997, p. 177): “o ensaísta é por definição o bom escritor”. Ressalte­se que “bom escritor” não significa necessariamente um literato, mas aproximam­se muito as duas idéias – a de en­saio e a de literatura.

Em 1931, apareceu a primeira edição de uma dos mais importantes livros de ensaios literários do século XX: O Castelo de Axel, do crítico norte­americano Edmund Wilson. Nesse volume, ele trata de au­tores do simbolismo e da literatura de sua contemporaneidade (1870 a 1930), como Gertrud Stein, W. B. T. Yeats, Marcel Proust, T. S. Eliot e James Joyce, e também da grande discussão entre Rimbaud e a Villiers d’Isle­Adam. Entre as numerosas informações sobre o assunto e a argumentação cerrada em prol da modernidade, há momentos em que Edmund Wilson (2004, p. 157) apresenta clara aderência ao escritor estudado e se posiciona pessoalmente em um estilo forte e narrativo:

Proust destruiu ferozmente a hierarquia social que acabara de expor. Seus valores, diz­nos ele, são uma impostura: afetando pretender honras e distinções, aceita tudo quanto seja vulgar e mesquinho; seu orgulho não é em nada mais nobre que o instinto, que compartilha com a encarregada da toilette e a irmã do ascensorista, de cuspir nas pessoas que por acaso estejam em posição desfavorável. E diga o que quiser, em contrário, o mundo social, ele ou ignora ou procura aniquilar os raros impulsos em prol da justiça e da beleza que tornam os homens admiráveis. Parece estranho que tantos críticos tenham considerado o romance de Proust “amoral”: a verdade é que ele estava preocupado com a moralidade, a ponto de chegar a recorrer ao melodrama. O próprio Proust (por parte da mãe) era meio judeu, e a des­

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peito de todo o seu refinamento parisiense, ainda subsistia nele muita capacidade de apocalíptica indignação moral do clássico profeta judeu. Aquele tom de lamentação e queixa, que ressoa por todo o livro e que, na verdade, o autor quase nunca abandona, salvo para trocá­lo pelo humor vívido das cenas sociais, estas mesmas acrimoniosas em suas implicações, é, realmente, muito pouco francês, aparentando­se antes à literatura judaica.

No exemplo, é possível perceber a profundidade do trabalho crítico­ensaístico do autor pela es­treita relação estabelecida entre os vários componentes formais e ideológicos de Proust, ao que se soma a defesa do espírito moralista de sua literatura. A clareza do estilo e a força da argumentação permitem ao leitor inferir a adesão do crítico às idéias do romancista.

Outro ensaísta que apresenta uma diferente percepção do fenômeno estético­literário e se ma­nifesta em primeira pessoa, reforçando o caráter subjetivo de seu ensaio intitulado A Arte da Poesia (1912­1918), é Ezra Pound. Continuamente, ele usa os verbos em primeira pessoa, expressando com veemência seus pontos de vista, além de usar os ensaios como forma de defesa ante seus adversários nas diversas polêmicas que viveu ao longo da vida. E também recorre a narrativas e suposições para ar­gumentar a respeito das épocas e escritores que analisa. Vejamos um exemplo de seu estilo ensaístico:

Quando um homem de nosso tempo é extravagante a ponto de desejar familiarizar­se, tanto emocional como inte­lectualmente, com uma época tão fora de moda como o século XII, poderá tentar consegui­lo de diversas maneiras. Poderá ler as próprias canções nos livros antigos – em pergaminhos cobertos de iluminuras – e ficará sabendo o que significavam os trovadores para a gente do século imediatamente posterior. Aprenderá alguma coisa sobre seus costu­mes observando as iluminuras das maiúsculas. Ou poderá tentar ouvir as palavras acompanhadas da música porque, graças a Jean Beck e outros, hoje é possível ouvir as velhas melodias. Elas talvez tenham um sabor algo oriental, e é provável que o espírito do sufismo não esteja de todo ausente de seu conteúdo. Ou então um homem pode percorrer as estradas das colinas e dos rios, de Limoges a Charente até a Dordogne e Narbonne, e aprender alguma coisa, ou um pouco mais que isso, a respeito do que [o campo] significou para os cantores ambulantes [...]. (POUND, 1976, p. 104)

É possível verificar no fragmento acima o quanto a crônica sobre os trovadores medievais é tra­zida para o presente, como ela abre possibilidades de interpretação, como o escritor se apresenta no texto de forma irônica e avaliadora. Como a sua principal argumentação não é sobre uma realidade, mas sobre uma suposição, uma ficção.

Ao estudar a linguagem em ensaio homônimo de 1956, Octavio Paz manifesta uma tendência para construir aforismos, comparações e imagens para tratar dos assuntos de seus ensaios em geral:

Todos sabemos até que ponto é difícil roçar as margens da distração. Essa experiência se confronta com as tendências de nossa civilização, que propõe como arquétipos humanos o abstraído, o retraído e até o contraído. Um homem que se distrai nega o mundo moderno. Ao fazê­lo, joga o todo pelo todo. [...] O distraído se pergunta: o que há do outro lado da vigília e da razão? A distração quer dizer: atração pelo reverso deste mundo. A vontade não desaparece; simples­mente muda de direção – em lugar de servir aos poderes analíticos, os impede de que confisquem, para seus próprios fins a energia psíquica. A pobreza de nosso vocabulário psicológico e filosófico nesta matéria contrasta com a riqueza das expressões e imagens poéticas. Recordemos a “música calada” de San Juan ou o “vazio é plenitude” de Lao­tsé. Os estados passivos não são nada mais que experiências do silêncio e o vazio nada mais é que momentos positivos e ple­nos: do núcleo do ser jorra uma profusão de imagens. (PAZ, 1982, p. 46).

Nesse fragmento, percebe­se como o ensaio não trata apenas da definição do que seja um ho­mem distraído ou a distração, pois une questões de ordem filosófica (“a atração pelo reverso deste mun­do”), axiomas (“um homem que se distrai nega o mundo moderno”), jogos de palavras e sonoridades (“abstraído, retraído, contraído” e “joga o todo pelo todo”). Assim, o discurso teórico se ornamenta com recursos da linguagem literária.

Ao comentar os desafios da tecnologia no início do século XX e escolher para representá­los a má­quina de escrever, a crítica brasileira Flora Süssekind constrói em seu ensaio Cinematógrafo das Letras,

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de 1987, alguns momentos de ludismo verbal, sem perda da precisão de conceitos e exemplos, muito próximos da literatura:

Convite temerário à desautomatização que explica, em parte, o fato de, por um lado, as melhores realizações no campo da prosa de ficção de 1920 (o Miramar, Pathé Baby, o Serafim e Macunaíma) não terem propriamente constituído siste­ma na literatura brasileira posterior, e, por outro, de se terem glosado, da poesia, à diluição, apenas o tom coloquial e os cacoetes humorísticos, e não os seus irônicos assassinatos de artefatos puros e subjetividades tirânicas. [...] O pro­blema difícil mesmo para restauradores mutantes e capazes de assumir trajes ora memorialistas, ora neonaturalistas, ora espiritualistas: “After the first death, there is no other.” (Dylan Thomas). O que parece lançar grande parte da produção literária pós­1920 num projeto de ocultamento sistemático dessa morte. Uma espécie de projeto em abismo: “Depois da primeira morte”, multiplicam­se as tentativas de ressurreição. Ou melhor: de esconder cadáveres, fingir que jamais houve morte alguma. E desaparecer com os muitos registros de óbito espalhados habilmente na ficção e na poesia do século XX. (SÜSSEKIND, 1987, p. 150­151)

A metáfora criada sobre a morte como similar ao desaparecimento de autores, obras e conquistas importantes obtidas nos momentos heróicos do Modernismo de 1922 é mantida em sua rede semân­tica (“cadáveres”, “óbito”, “primeira morte”). Além do mais, a citação de verso da composição poética de Dylan Thomas enfatiza melhor a posição contemporânea da crítica e reforça, em outra linguagem, a idéia central desse fragmento.

Vimos, assim, como o ensaio de crítica literária pode obter efeitos de significação e de beleza que transcendem a linguagem puramente científica desse subgênero da prosa. No entanto, se comparado à crônica, o ensaio se situa em posição menos confortável no âmbito da literatura, porque a maior parte da produção ensaística, mesmo em crítica literária, mantém um tratamento lingüístico mais semelhante ao de textos não­literários.

Texto complementar

A literatura na poltrona(CASTELLO, 2007, p. 48-52)

Ao crítico cabe não só o papel de marcador – daquele que gruda com firmeza a seu objeto e dele não se afasta, como um zagueiro – mas também o de investigador, isto é, daquele que desven­da os elementos que, ocultos ou disfarçados, sustentam a estrutura de uma ficção, ou de um poema. O escritor argentino Ricardo Piglia já mostrou que a função do crítico se assemelha à do agente de polícia, do investigador profissional que, partindo de pistas muito esmaecidas, e só aos poucos, ten­ta (em vão, porque isso nunca se consegue) reconstruir as bases de um relato, detendo­se não nas luzes emitidas em sua superfície, mas nas vigas obscuras que o sustentam. [...]

Não existem duas maneiras iguais de observar uma mesma obra de arte, ou de ler um mesmo livro. Um livro “puro”, fechado, intocável, não existe. Livros só ganham prestígio e popularidade, ou sofrem o peso do desprezo e do esquecimento quando atravessados por leituras. É na mente de cada leitor – depois de passar pelo filtro da interpretação pessoal, que é sempre única – que um

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livro passa a existir. Todo leitor, mesmo o mais discreto e ingênuo dos leitores, é, a seu modo, um crítico. Uma vez que toda leitura, mesmo a mais comovida e apaixonada, mesmo a mais amadora, é sempre crítica também.

Além disso, todo crítico, mesmo o mais “científico”, isto é, o mais rigoroso, o que mais se atém a princípios, perspectivas teóricas e dogmas, qualquer crítico trabalha sempre, e também, com a ima­ginação. Ela é uma espécie de cola que jamais se desgruda das palavras e que, na verdade, as cons­titui. Emoções, memórias pessoais, associações inconscientes, impulsos, as forças do gosto agem, em segredo, mesmo na mais grave das críticas literárias. Quando lê um livro, um crítico traça em sua mente, ainda que de modo sutil e inconsciente, e mesmo contra a sua vontade, um retrato do autor e de sua obra. Ele, para usar a palavra correta, os “imagina”. Uma torrente de fantasias a respeito da obra e de seu autor age na mente de qualquer leitor, mesmo o mais distraído, ou despreparado, ou, ao contrário, o mais prudente deles. E estas fantasias são tão poderosas quanto a formação teórica, o arsenal de leituras, ou o preparo intelectual.

Por isso, e esta constatação causa repugnância a alguns praticantes da crítica, a crítica literária é, ela também, e sempre, um gênero literário – um gênero “criativo”, por mais neutra que seja a estratégia de um crítico, por mais “científica” que ela pretenda ser. Quando lê um livro, o crítico lê, um pouco, a si mesmo, como se estivesse a se mirar em um espelho de papel. Como já observou outro escritor argentino, Juan José Saer, se nos emocionamos com um escritor, é porque nele en­contramos algo de nós mesmos. É porque nos “vemos” nele. Além disso, mesmo em um crítico frio e cerebral, a leitura de um livro deve provocar determinada perturbação ou, como diz Saer, “uma espécie de terremoto”. “Se lemos Homero e gostamos de Homero, e nos emocionamos com Home­ro, é porque ele nos faz encontrar em nós mesmos os sentimentos e emoções que evoca”, diz. Não existe leitura neutra: críticos não são máquinas.

Há, em conseqüência, algo de pessoal e inalienável na leitura que um crítico (que qualquer lei­tor) faz de um livro. Positiva ou negativa, não importa, essa leitura pessoal enriquece, sempre, a obra, emprestando­lhe novas perspectivas e alargando, assim, suas zonas de interferência. Vem expandir seus horizontes e, mesmo, o raio de interpretações que aquele livro (qualquer livro) lança sobre o mundo. O crítico literário, como Maria Bethânia ou Elis Regina, é um intérprete que, ao ler um livro e escrever sobre ele, lhe dá, em certa medida, sua própria feição. Em outras palavras, é um sujeito que o lê “como se fosse seu”. E é nesse “como se” que está o coração da leitura. Mas é também ali que se guarda todo o perigo. Quando a ética é descartada, no vazio que deixa se instalam os interesses de grupo, as pequenas vinganças, ou as provocações que, atuando “como se” lhe alargassem a perspec­tiva, na verdade a encurtam. A ausência de ética age, justamente, ali onde a ética devia estar. [...]

Em conseqüência, porque guarda aspectos vizinhos aos da criação literária, a crítica deve ser exercida com a máxima delicadeza, o que não significa dizer falta de contundência ou vacilação in­telectual. Não quer dizer condescendência, ou ausência de rigor. Rigor e delicadeza não se excluem; ao contrário, se alimentam. Toda crítica é subjetiva – ela ergue um certo olhar, uma contemplação particular, que envolve a obra como um manto, tanto para realçá­la (como fazem as saias das bai­larinas). Como para ocultá­la (como fazem os véus das devotas). Se é um olhar pessoal, ela não é, não pode ser, “científica”, ainda que exercida dentro de certos rigores e a partir de certos aparatos críticos e certas tradições. Se não é “científica”, ela é, pode­se dizer, “artística” – uma vez que a in­ventividade, ainda que em registro diverso do que ocorre na criação literária, nela atua com tanta força quanto em uma obra de ficção. A crítica literária é uma obra literária de caráter nobre; obra que

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se desdobra sobre outra obra. Justaposição que alarga seus horizontes, mas também os deixa mais vulneráveis e, em conseqüência, mais vulneráveis à manipulação.

Estudos literários1. Compare os fragmentos de crônica reproduzidos a seguir. Classifique­os dentro dos tipos estuda­

dos e explique os efeitos semânticos e literários que eles podem conter.

MeninasPrimeiro dia de aula. A menina escreveu seu nome completo na primeira página do caderno es­

colar, depois seu endereço, depois o nome da cidade, depois o nome do estado, depois “Brasil”, “Améri­ca do Sul”, “Terra”, “Sistema Solar”, “Via Láctea” e “Universo”. A Rute, sentada ao seu lado, olhou, viu o que ela tinha escrito e disse: “Faltou o CEP.”

Quase brigaram.

Ela era apaixonada pelo Marcos, o Marcos não lhe dava bola. Um dia, no recreio, uma bola chu­tada pelo Marcos bateu na sua coxa.

Ele abanou de longe, gritou “Desculpa”, depois foi difícil tomar banho de chuveiro sem molhar a coxa e apagar a marca da bola. Ela teve que ficar com a perna dobrada para fora do boxe, a mãe não entendeu o chão todo molhado, mas o que é que mãe entende de paixão?

VERISSIMO, Luis Fernando. O Melhor das Comédias da Vida Privada. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004, p. 91.

A viajanteCom franqueza, não me animo a dizer que você não vá.

Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sossego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não direi que fique.

Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando; nesta brincadeira boba pas­samos todos, os inquietos, a maior parte da vida – e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes) estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio – você que não chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas, e mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste, mas passou.

BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas:: as melhores de Rubem Braga. 13. ed.

Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 159.

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177|A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

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178 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

2. Pesquise em revistas semanais ou em jornais exemplos de crônicas diferentes. Recorte­as ou copie­as e estude os elementos delas que têm valor literário. Escreva um comentário sobre os resultados.

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179|A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

3. Pesquise na internet um ensaio científico sobre crônica e verifique se nele existem características literárias. Aponte quais são e que efeitos provocam na leitura e na argumentação do texto.

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180 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

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Gabarito

Literatura e crítica literária

1. E

2. C

3. A crítica literária, a escola e a universidade.

O valor na literatura

1. C

2. Cânone literário é o conjunto das grandes obras clássicas, aquelas cujo valor não pode ser ques­tionado, pois já está consolidado na cultura de determinada sociedade.

3. D

Natureza do fenômeno literário

1.

A pesquisa implica leitura.::::

Há necessidade de reconhecer as características do discurso literário, tratadas na teoria.::::

A discussão do grupo propicia a avaliação de diferentes interpretações, além de exigir para a ::::consolidação dos dados a reflexão, a síntese, a argumentação.

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182 | Concepções, Estruturas e Fundamentos do Texto Literário

A escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da fideli­::::dade ao pensamento do grupo.

2.

A pesquisa implica leitura.::::

Há necessidade de discutir os conceitos do discurso literário, tratadas na teoria, após a com­::::paração.

A pesquisa propicia a avaliação de diferentes interpretações do termo, além de exigir para a ::::consolidação dos dados, a reflexão e a síntese.

A representação em gráfico ou quadro desenvolve mais a habilidade de síntese.::::

A escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da aten­::::ção às nuances da conceituação.

3.

A pesquisa implica a interação e a oportunidade de conhecer outros modos de entender o ::::assunto e propicia a avaliação de diferentes interpretações do termo, além de exigir para a consolidação dos dados a reflexão e a síntese.

A comparação exigirá o reforço dos conceitos descobertos.::::

A apresentação ao grupo permite nova discussão, e a escrita com as conclusões renova a im­::::portância do conhecimento da linguagem e da atenção às nuances da conceituação.

Gêneros literários: conceituação histórica

1.

As videolocadoras organizam as estantes por categorias: drama, comédia, terror ou suspense, ::::documentários, infantis, arte, clássicos etc. Essa classificação obedece a determinados concei­tos estabelecidos pela gerência do estabelecimento. Esses critérios podem ser: provocam o riso (comédia); filmes antigos (clássicos); falam de amor ou de conflitos diversos (dramas).

A escolha, por exemplo, da categoria drama pode levar à constatação de que diferentes sub­::::tipos estão nela: sentimentais, de guerra, de suspense, policiais, conflitos sociais.

A comparação será feita de acordo com a escolha do aluno. Na turma, outros podem escolher ::::a comédia e aí o tutor reúne os dois depoimentos para verificar, na comparação, quais os cri­térios diferentes.

Se não houver videolocadora na cidade, dá para fazer o mesmo trabalho com os filmes da ::::televisão. Durante uma semana, por exemplo, assistir e inferir as características.

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183|Gabarito

2.

A escolha, por exemplo, pode ser de revistas do Maurício de Souza (:::: Mônica, Cascão etc), pois muitos adultos lêem esse tipo de revista. Caso não haja condições de adquirir ou ter essas revistas, você pode fazer o mesmo trabalho com tiras de jornal. Tiras são historietas de dois ou mais quadrinhos.

Aplicar a elas os critérios de gênero lírico, narrativo ou dramático. Por exemplo, verificar se há ::::personagens que falam; se há narrador; se há linguagem com ornamentos (metáforas, muitos adjetivos, jogos sonoros); se há história com começo, meio e fim, se há conflito de idéias, de sentimentos, de posições ideológicas; se há desenvolvimento temporal (em dias, semanas, me­ses, anos).

O objetivo é, nessa etapa, apenas localizar, descrever essas descobertas.::::

Trabalhar com histórias ilustradas facilita o entendimento pelo auxílio dado pela imagem.::::

3.

A comparação é uma exercício complexo. Precisa, em primeiro lugar, averiguar os textos sepa­::::radamente.

O riso na canção pode surgir na ambigüidade de uma palavra, numa frase, numa imagem visual ::::engraçada.

O riso na narrativa (filme ou romance) pode estar numa cena completa, com personagens, acon­::::tecimentos, palavras, cenário. Pode vir no formato de uma piada ou anedota.

No filme, o riso é mais imediato por causa da interpretação dos atores e das imagens. No ro­::::mance, o aluno descobre o riso mais lentamente. Se ele tiver dificuldades de leitura, pode nem perceber. Não se trata de problema com o texto, mas com o leitor.

Por vezes, o reconhecimento da cena ou da imagem ou da palavra engraçada depende da ::::interpretação do leitor: uns podem achar engraçada, outros não.

Caso haja divergência entre as interpretações, os alunos devem fazer um debate em sala de ::::aula, sob a coordenação do professor/tutor.

Gêneros literários: o lírico

1. O aluno deve

ver na afirmação as funções que podem estar no escrito – experiências, estados e processos ::::psíquicos;

relacionar essas funções com a necessidade de representação no palco – entoação, gestos, ::::tempos de fala, movimentos no palco;

concluir pela necessidade de unir o texto escrito e o texto encenado.::::

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2. O aluno

verá que a catarse tem função de ensinamento e de moralização;::::

vai encontrar em Bertolt Brecht a mesma função de ensinamento e de objetivo social do tea­::::tro, que é o de conscientizar os espectadores;

vai verificar que as peças que tratam de problemas sociais e de denúncia de injustiças sociais ::::têm a mesma função;

deve concluir que a catarse, em sua natureza mais profunda, permanece em todo o teatro que ::::tenha como finalidade instruir e conscientizar os espectadores.

3. O aluno deve verificar que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expressões faciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.

Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justificam o título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não deve não teme” e outros.

O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.

Gêneros literários: o épico ou narrativo

1.

Após assistir ao filme, o aluno deverá selecionar cenas em que é possível identificar caracterís­::::ticas épicas no comportamento do personagem Aquiles. Por exemplo, suas atitudes guerrei­ras, sua compaixão pelo pai do troiano morto, Heitor.

Para confirmar essas características heróicas, o aluno pode pesquisar sobre a Guerra de Tróia ::::na internet e ler partes da Ilíada, de Homero. Consultar o site: <www.greciantiga.org>.

Comparar os relatos desses três textos. O resultado apontará maior idealização no filme, mais ::::poesia na narrativa de Homero (figuras de linguagem, jogos sonoros, mais detalhes na cons­trução do herói) e no texto histórico maior precisão e visão contraditória a respeito da partici­pação de Aquiles.

O aluno pode escrever um pequeno texto sobre o assunto, anexando as informações da pes­::::quisa e da leitura do texto literário, e apresentar o resultado aos colegas.

2.

Selecione, por exemplo, um personagem como Peri, do romance :::: O guarani, de José de Alen­car; ou Policarpo Quaresma do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; ou Macunaíma, da obra de mesmo nome de Mário de Andrade.

Verifique as semelhanças e diferenças entre eles. Irá perceber quais são os feitos considerados ::::heróicos. Verá se são heróis estereotipados ou se fogem aos modelos clássicos das narrativas. Poderá comparar o universo ideológico em que vivem: o século XIX, a sociedade rural brasi­leira etc.

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Poderá criar uma tabela com o resultado de sua análise.Os itens dessa tabela podem ser: ca­::::racterísticas físicas, intelectuais, de personalidade, ações heróicas, ações não­heróicas, relação com a sociedade, relações amorosas, como termina ao final da narrativa etc.

3. O aluno deve comparar e obter os seguintes resultados:

a edificação da cidade;::::

em um predomina o homem individual; no outro, o povo;::::

a referência ao surgimento (origem) da cidade e do Novo Reino;::::

trata do poeta: o cantor, o engenho e a arte;::::

Valores elevados – a pátria, a fé, o poder;::::

os heróis superam todos os obstáculos; ::::

a presença da guerra.::::

Escrever um texto com as conclusões obtidas.

Gêneros literários: o dramático

1. O aluno deve:

ver na afirmação as funções que podem estar no escrito – experiências, estados e processos ::::psíquicos;

relacionar essas funções com a necessidade de representação no palco – entoação, gestos, ::::tempos de fala, movimentos no palco;

concluir pela necessidade de unir o texto escrito e o texto encenado.::::

2. O aluno:

verá que a catarse tem função de ensinamento e de moralização;::::

vai encontrar em Bertolt Brecht a mesma função de ensinamento e de objetivo social do tea­::::tro, que é o de conscientizar os espectadores;

vai verificar que as peças que tratam de problemas sociais e de denúncia de injustiças sociais ::::têm a mesma função;

deve concluir que a catarse, em sua natureza mais profunda, permanece em todo o teatro que ::::tenha como finalidade instruir e conscientizar os espectadores.

3.

O aluno deve verificar que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expres­::::sões faciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.

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Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justifi­::::cam o título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não deve não teme” e outros.

O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.::::

Gêneros literários: o ensaístico

1. O aluno deve localizar dois textos, tomando como critério o fato de ser um texto sobre literatura, de analisar uma obra e emitir um julgamento sobre ela. Por exemplo, sobre Graciliano Ramos:

Quanto ao estilo, destaca­se em Graciliano Ramos a capacidade de síntese, ou seja, a habilidade de dizer o essencial em poucas palavras. Graciliano reescrevia seus livros varias vezes com o intuito de retirar deles tudo o que era desnecessário. Desse cuidado resulta o seu estilo “enxuto”, que é considerado um exemplo de elegância e de elaboração. Em suas obras o substantivo é muito pri­vilegiado, o que não ocorre da mesma forma com o adjetivo. Apesar de Graciliano centrar o tema de suas obras na região nordestina, a análise que o autor faz da condição humana faz com que sua obra universalize­se.

Disponível em : <http://www.mundocultural.com.br/index.asp?url=http://www.mundocultural.com.br/literatura>.

Acesso em: 15 nov. 2007.

Dono de estilo contundente e direto, Graciliano Ramos é um dos mais importantes autores da literatura brasileira, cujo interesse estético é inseparável do comprometimento ético. Seja por suas intervenções no campo político, pelo empenho em favor dos oprimidos, ou ainda pela defesa do ar­tista no mundo moderno, reafirma, de modo inconfundível, o vínculo entre literatura e vida. [...] ler os livros do escritor alagoano é tarefa fundamental para todos que têm interesse em entender o Brasil, e entender a si mesmos.

Disponível em: <http://publifolha.folha.com.br/catalogo/livros/135800/>. Acesso em: 15 nov. 2007.

O aluno deve comparar os textos, verificando repetições (estilo sucinto e direto, importância da obra, comprometimento ético/humano da obra) e diferenças (o regionalismo nordestino e a uni­versalização, a literatura e a vida, a defesa do artista). Pode­se encontrar tanto textos objetivos quanto textos subjetivos. O que vai ser importante é a qualidade da linguagem, do ponto de vista da literatura, não da gramática. Assim, ele pode comparar os trechos encontrados com um trecho do primeiro capítulo de Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, conforme abaixo.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham ca­minhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pela­dos da catinga rala. Arrastaram­se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado

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no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda da pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

A descrição tem os elementos mínimos para a compreensão; não se demora em descrever; apre­senta retirantes, sua miséria, a vida difícil.

2. Análise: a comparação da literatura de compromisso com escritores brasileiros, a quem nomina, de quem cita obras, analisa situações e personagens, as comparações que faz entre crítica e lite­ratura.

A subjetividade em frases e trechos como: “sem excluir a pornografia que devia ser aceita como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.”, “Lembremos”, “A celebridade traz nela mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade.”

A qualidade do texto pode ser medida pela clareza da exposição das idéias, da justeza dos concei­tos, da avaliação que faz dos escritores. Todas elas estão no texto citado.

3. O texto já apresenta a hesitação: a crítica que analisa o objeto, a crítica que se quer igualmente arte.

O aluno pode tratar aqui da mudança de paradigma da atualidade: três gêneros clássicos e mais as mudanças históricas.

Também pode dizer que, para também ser arte, a crítica precisa ter o tratamento de linguagem como a poesia e o romance, por exemplo.

Pode ainda, se quiser, buscar exemplos em livros e na internet para fundamentar sua resposta.

A linguagem poética: poema X poesia

1. O aluno pode obter os quadros citados no site <www.google.com.br/imagens/leonardo+da+ vinci>, e além das imagens ele pode fazer uma pesquisa sobre a arte do retrato e a pintura religio­sa, freqüentes na arte da época. Vai encontrar o simbolismo religioso e a presença dos mecenas (homens ricos que sustentavam financeiramente os artistas e recebiam em troca quadros com suas imagens ou de seus familiares).

Ele pode observar os procedimentos de cores, linhas e formas que constroem o sentido dos qua­dros (o claro e o escuro, a perspectiva central que valoriza a imagem, a busca de realismo das figu­ras pintadas, a expressão enigmática do primeiro quadro e a religiosidade do segundo quadro), e também os elementos pintados no plano de fundo dos quadros – como eles são variados, com

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detalhes da natureza, têm um horizonte longínquo, não são apenas decorativos, pois falam das paisagens italianas.

Trocar idéias com os colegas sobre os resultados obtidos.

2. As fotos registram momento, paisagens e pessoas que representaram algum valor afetivo, in­teresse ou necessidade de registro do fotógrafo. O aluno deve procurar interpretar essas fotos buscando a relação entre elas, verificando as analogias entre as imagens.

Cada aluno dará às suas fotos a interpretação a partir de conhecimentos pessoais, procurando ver nas fotos algum valor simbólico, alguma interpretação mais profunda: as idéias de amor, de fé, de amizade, de alegria etc.

É importante que ele saia do registro puramente histórico (esta foi tirada quando...) para entendê­las, agora que o tempo passou, como estados de alma.

Além disso, o aluno deve expor isso aos colegas e comparar com os resultados obtidos por eles.

3. Expressões como “a vida é um rio”, “o caminho do saber”, “minha princesa”, “ele é um palhaço” apro­ximam sentidos diferentes e produzem imagens ampliadas e simbólicas, graças à existência das metáforas.

O aluno pode reunir os exemplos que tem na memória, pesquisar com pessoas ou buscar em li­vros, sempre estabelecendo sentidos e procurando relações no terreno da metáfora.

Além disso, ele deve trocar exemplos com os colegas. O objetivo é descobrir que os recursos po­éticos fazem parte integrante da vida humana.

A estrutura da narrativa: romance

1. O aluno pode dividir a questão em partes: a independência dos demais gêneros (lírico e dramáti­co), a elasticidade (os vários tipos de romance) e capacidade de renovação (“prodigiosa”).

Para cada uma dessas situações, deve argumentar por escrito.

A independência: escrito em prosa, sem extensão fixa, sem personagens fixos, sem modo de ::::narrar preestabelecido. Mas pode incorporar cenas dialogadas (gênero dramático) e poesia (reprodução de poemas e estilo poético).

A elasticidade: deve comprovar com os exemplos dos 15 tipos descritos no texto teórico desta ::::aula.

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A capacidade de renovação: com base nos 15 tipos, é possível argumentar o quanto o roman­::::ce foi se transformando e também imaginar que ele não vai interromper sua vida cultural tão cedo.

Ter sempre argumentos e exemplos nas afirmações.

2. No fragmento 1, o relato é objetivo e contido. No fragmento 2, observa­se a presença do humor, dos sentimentos, da narração em primeira pessoa, das minúcias da viagem e da reação dos de­mais personagens/passageiros. Além disso, a narração em primeira pessoa do singular torna o relato mais pessoal e subjetivo.

Observe no fragmento 1 as palavras “segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas”, a data, a precisão dos nomes e fatos.

Observe no fragmento 2, “aconteceu algo de que me orgulho”, “não se importando com hierar­quia ou odores”, “o capitão Cabral” “com toda força gritei” e outros.

3. O aluno deve observar na telenovela as personagens atuando em função de sentimentos (ódio, amor, vingança, ambição), a constância de vários pares de amantes/namorados/esposos, as men­sagens moralistas, os encontros e desencontros numerosos e inesperados, a tensão dos conflitos sempre tendo a sua solução adiada.

Verificar no capítulo como o telespectador é atendido pelo dramaturgo e pelos atores: a lingua­gem primária dos diálogos, as expressões visuais óbvias, a rapidez das cenas, a intensidade das emoções e outros aspectos mais.

A estrutura da narrativa: conto e novela

1. O aluno deverá observar a unidade de ação, as personagens imaginárias, o tom moralista da his­tória, a importância do protagonista, o esquema actancial, as esferas de ação.

Em Branca de Neve e os Sete Anões, por exemplo, verificar:

unidade de ação – é a mesma intriga, não há intrigas paralelas ou secundárias;::::

personagens imaginárias – a madrasta bruxa, os anões na mina, a menina que ressuscita;::::

tom moralista da história – a maldade e a inveja não compensam;::::

importância do protagonista – toda a história é contada acompanhando Branca de Neve, ela é ::::a heroína porque sofre e se salva;

esquema actancial com esferas de ação – adjuvantes (os anões), oponentes (a madrasta, o pai ::::da princesa); objeto desejado (a felicidade, representada pelo príncipe).

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2. O aluno deverá escrever poucas linhas, portanto um texto sintético.

Não pode perder tempo com descrições, reflexões, comparações longas.::::

Não pode ser em primeira pessoa para não ficar confessional: deverá olhar por outro ângulo ::::o fato ocorrido.

Deve buscar o efeito de conquistar a atenção dos leitores.::::

Precisa relacionar as partes do texto entre si.::::

Pode escolher qualquer tipo de narrativa: suspense, sentimental, de humor etc::::

3 Se o aluno não tiver condições de ler em um jornal, pode buscar na internet ou mesmo nas notí­cias da televisão ou do rádio.

De início, precisa relatar a notícia em linguagem não literária.::::

Transformar para o literário: acentuar o conflito, apresentar as personagens, construir diálogos, ::::escolher o narrador em primeira ou terceira pessoa, ser sintético e manter a unidade da ação.

A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

1. A primeira é uma crônica narrativa e humorística; a segunda, narrativa, poética e reflexiva.

A primeira tem efeitos de humor que nascem da gradação de lugares até chegar ao universo, con­traposta à fala de Rute, que descobre uma falha pequena ante a imensidão do endereço. Depois o trocadilho “dar bola” e “levar uma bolada”. Mais o efeito de humor do banho pela metade.

A segunda é evocativa (o passado interpretado pelo viés da explicação filosófica) e tem a alegoria do rio (várias metáforas: “barranca’, “águas”, “espumas”, “corrente”). Tem também, como caracterís­tica do cronista, a presença da vida e da morte como reflexão.

2. Jornais e revistas trazem crônicas sempre. Seja em formato de crônicas políticas ou sociais, ou econômicas ou culturais. Alguns têm até crônicas literárias.

Verificar sua capacidade de reconhecer os diferentes tipos e argumentar a respeito da classifica­ção encontrada. Por exemplo, uma crônica sobre um acontecimento recente: deve­se observar os argumentos, a lógica do texto, a opinião do cronista etc.

O comentário escrito pode incluir uma pesquisa maior sobre o subgênero, com consulta à inter­net, por exemplo.

3. Por exemplo, o estudo sobre “A crônica na ordem do dia: relações entre realidade, história, atuali­dade e ficção em O quase de Luis Fernando Veríssimo”, por Elaine Aparecida Lima, disponível em: <http://www.urutagua.uem.br//007/07lima.htm>. Acesso em: 3 nov. 2007.

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Nele é possível observar a adesão da crítica literária ao seu objeto de estudo: os adjetivos com que se refere às crônicas de Machado de Assis, a beleza literária que vê em seus textos, a impor­tância histórica que estes têm levam à avaliação positiva do final do texto.

O resultado que pode surgir em outros ensaios pesquisados pode ser a comprovação de que são mais científicos e menos poéticos.

O aluno tem que comprovar com citações do texto tudo o que afirmar a respeito dele.

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Parte I

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas De um povo heróico o brado retumbante, E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, Brilhou no céu da pátria nesse instante.

Se o penhor dessa igualdade Conseguimos conquistar com braço forte, Em teu seio, ó liberdade, Desa�a o nosso peito a própria morte!

Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido De amor e de esperança à terra desce, Se em teu formoso céu, risonho e límpido, A imagem do Cruzeiro resplandece.

Gigante pela própria natureza, És belo, és forte, impávido colosso, E o teu futuro espelha essa grandeza.

Terra adorada, Entre outras mil, És tu, Brasil, Ó Pátria amada!

Dos �lhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil!

Parte II

Deitado eternamente em berço esplêndido, Ao som do mar e à luz do céu profundo, Fulguras, ó Brasil, �orão da América, Iluminado ao sol do Novo Mundo!

Do que a terra, mais garrida, Teus risonhos, lindos campos têm mais �ores; “Nossos bosques têm mais vida”, “Nossa vida” no teu seio “mais amores.”

Ó Pátria amada, Idolatrada, Salve! Salve!

Brasil, de amor eterno seja símbolo O lábaro que ostentas estrelado, E diga o verde-louro dessa �âmula – “Paz no futuro e glória no passado.”

Mas, se ergues da justiça a clava forte, Verás que um �lho teu não foge à luta, Nem teme, quem te adora, a própria morte.

Terra adorada, Entre outras mil, És tu, Brasil, Ó Pátria amada!

Dos �lhos deste solo és mãe gentil, Pátria amada, Brasil!

Atualizado ortogra�camente em conformidade com a Lei 5.765, de 1971, e com o artigo 3.º da Convenção Ortográ�ca celebrada entre Brasil e Portugal em 29/12/1943.

Hino NacionalPoema de Joaquim Osório Duque Estrada

Música de Francisco Manoel da Silva

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