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Partida O esforço conclusivo, em um trabalho desta natureza, só pode se dar pela via da afirmação de sua abertura para intervenções criativas, reformulações desconstrutivas ou releituras atualizadoras. Como buscamos mostrar no decorrer de nossas análises, estamos presenciando e ajudando a compor um momento de desmanche de certezas e de permanente renovação simbólica. As teorias contemporâneas, em diálogo com o contexto sociocultural no qual estão inseridas, nos põem frente a reordenações desestabilizadoras, ao mesmo tempo em que nos libertam da obrigação de procurar verdades absolutas e construir coerências inquestionáveis. No caso da abordagem de um objeto que se mostra como um dos principais pontos da relativização e desconstrução conceitual em voga: as culturas populares e seus usos estéticos e políticos; devemos, ainda, levar em consideração a importância da produção de estudos acadêmicos críticos voltados para a localização de possibilidades concretas de democratização e reversão das exclusões e desigualdades estruturais ainda atuantes. Beatriz Resende, em seus Apontamentos de Crítica Cultural, nos alerta para a função primordial que os Estudos Culturais assumem nestes debates. Por terem sido forjados justamente como resposta às necessidades latentes de revisão de categorias colocadas pelas transformações em vigor, as

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Partida

O esforço conclusivo, em um trabalho desta natureza, só pode se dar pela via da

afirmação de sua abertura para intervenções criativas, reformulações desconstrutivas ou

releituras atualizadoras. Como buscamos mostrar no decorrer de nossas análises, estamos

presenciando e ajudando a compor um momento de desmanche de certezas e de permanente

renovação simbólica. As teorias contemporâneas, em diálogo com o contexto sociocultural

no qual estão inseridas, nos põem frente a reordenações desestabilizadoras, ao mesmo

tempo em que nos libertam da obrigação de procurar verdades absolutas e construir

coerências inquestionáveis.

No caso da abordagem de um objeto que se mostra como um dos principais pontos

da relativização e desconstrução conceitual em voga: as culturas populares e seus usos

estéticos e políticos; devemos, ainda, levar em consideração a importância da produção de

estudos acadêmicos críticos voltados para a localização de possibilidades concretas de

democratização e reversão das exclusões e desigualdades estruturais ainda atuantes.

Beatriz Resende, em seus Apontamentos de Crítica Cultural, nos alerta para a

função primordial que os Estudos Culturais assumem nestes debates. Por terem sido

forjados justamente como resposta às necessidades latentes de revisão de categorias

colocadas pelas transformações em vigor, as reflexões que suscitam estão sempre atentando

para provisoriedade dos estudos que atualmente se propõem a pensar construções culturais,

e para o caráter político da ampliação teórica que estes estudos executam. Como diz

Resende:

É por acreditarmos na possibilidade de se desenvolver uma reflexão a partir dos espaços de livre circulação de idéias e de estarmos convencidos da necessidade de se ocupar um lugar crítico, que apostamos no debate em torno dos Estudos Culturais. (Resende, 2002, p. 23)

Neste sentido, os Estudos Culturais devem ser entendidos como prática política,

como disposição desconstrutiva que reúne trabalhos de procedências variadas. Ao invés de

se fecharem em referenciais estreitos, seus promotores aliam-se em prol de interesses

comuns, entre os quais se destaca o agenciamento da pluralização. Sendo assim, a rejeição

de encerramentos teóricos não significa imparcialidade ou ausência de posicionamento

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crítico. Ao contrário, implica, sempre, escolhas, mesmo que não definitivas, porque

localizadas, conjunturais e estratégicas.

Trata-se de uma opção pelo envolvimento e de uma vontade de intervenção. Posição

combativa que retém teorias por contestação, ou seja, não rejeita suas proposições, mas as

desencadeia, no sentido largo de tirar do cárcere e desenvolver ou ampliar. Para além de

considerar a intervenção dos contextos sobre as teorias, trabalha-se com teorias contextuais,

já que a cultura aparece como área de deslocamento, campo simbólico de representações e

mediações – indiretas, descentradas, subjetivas. Tal constatação revela o caráter arbitrário

das totalizações e a incompletude qualquer abordagem.

Pode-se compreender que o que esteve em questão no debate aqui levantado, foram

os processos de reordenação identitária pelo qual estão passando as culturas periféricas, e

os deslocamentos de tradições refletidos tanto na arte quanto na crítica cultural. No interior

dessa discussão ampla, procuramos identificar as categorias e os recortes conceituais que

fundamentaram as diferentes formas de organização e intervenção construídas por atores

sociais envolvidos com a movimentação cultural de um centro urbano periférico. Ou seja,

os confrontos entre movimento/cena, nação/periferia, localização/deslocamento,

oposição/subversão, nos levaram a reconhecer a diversidade de percepção sobre a qual se

fundam discursos variados de reivindicação de autonomia cultural e de valorização das

expressões populares.

Assim como a música de Chico Science, a literatura de Ariano Suassuna nos serve à

comprovação da permanência do apelo simbólico do subalterno. Autores, como tantos

outros, interessados pela riqueza estética exibida pelas formas rechaçadas e por suas

estratégias criativas, se envolvem na afirmação política das alternativas apresentadas aos

modelos hegemônicos pelos grupos subordinados.

Trilhando caminhos diversos, muitas vezes opostos e conflitivos, essas duas

personagens nos põem diante das reordenações culturais pelas quais estão passando as

sociedades periféricas e nos fazem enxergar a centralidade da relocação do popular neste

processo. Como nos descreve Science:

Quando eu era bem mais novo, lá pelos 12 anos, dançava ciranda. A ciranda veio do interior, da Zona da Mata, para o litoral. Meus pais tinham uma ciranda. Elas geralmente eram feitas na frente dos botecos ou nas mercearias da região. Os caras pagavam os

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tocadores de ciranda para chamar mais clientes para as barraquinhas. Isso foi proliferando cada vez mais e chegando ao litoral. Então, eu já dancei ciranda na praia, no bairro, e vi os maracatus também. Assisti na minha infância os maracatus fazendo o “acorda povo”, que acontece na época de São João, sempre lá pela meia-noite. As pessoas saem cantando: “Acorda povo/Acorda povo/Que o galo cantou/São João já te acordou”. Então eu vi todas estas coisas que nos ensinaram como folclore, como uma manifestação já passada, mas que não é bem desta maneira que você tem que ver. Existem ritmos ali que podem ser aproveitados. E você pode aprender a tocar porque é da sua terra, é do Brasil e é uma coisa que você entende – é a tua língua. Nesse tempo a gente consumia a música estrangeira também, nos bailes da periferia. (...) Tinha coisas que eu escutava naquele período que guardo até hoje em meu inconsciente. Acontece que os maracatus estão esquecidos, a ciranda quase ninguém vê, a embolada, os caras ficam nas praças, mas é para pegar uma grana. O coco ainda tem também, mas está desaparecendo. Então, o que a gente pretende é mostrar alguma coisa nova a partir disso. Se a gente for tocar maracatu do jeito que ele é, a galera vai pegar no nosso pé. Então, a idéia básica do manguebit é colocar uma parabólica na lama e entrar em contato com todos os elementos que você tem para fazer uma música universal. Isso faz com que as pessoas futuramente olhem para o ritmo como ele era antes. (Science In: Garrido, 1994)

As colocações do músico resumem todo o argumento construído no decorrer deste

trabalho – de que as novas condições de manifestação das tradições populares transformam-

nas, mas não as eliminam – e apresentam as formas de convivência e interação cultural que

ocuparam, de maneiras diversas, os articuladores do projeto armorial e os promotores da

“cena mangue”.

Tais agentes depararam-se com um popular que se dá sob o hibridismo e a dinâmica

característicos da cultura contemporânea e que se caracteriza pela capacidade de mutação

que o mantém ativo. Processa-se como território de luta pelo poder, espaço de manifestação

das tensões e negociações com a cultura hegemônica. Quando esta dimensão relacional é

negligenciada, tanto a compreensão da construção de hegemonia como processo dinâmico

de imposição, apropriação e sedução, quanto o entendimento da formação do subalterno

como movimento inerente a sistemas desiguais se encontram ameaçados.

Todas estas noções nos direcionaram para a adoção da forma de abordagem

sugerida pelos Estudos Culturais, aqui também tomados como espaço onde se entrecruzam

diversas disciplinas acadêmicas, diferentes perspectivas políticas e locais de produção de

sentido variados, permitindo-nos apreender a multiplicidade, a transitoriedade e a

permeabilidade dos universos culturais que investigamos.

Tratamento semelhante às colagens e superposições sonoras e textuais estudadas

também pôde ser aplicado aos fragmentos de imagens e enunciados dos autores abordados,

assim como a justaposição de estudos e teorias nos ajudou a articular uma análise voltada

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para a desconstrução de discursos e para o estabelecimento de um diálogo simétrico entre

os projetos em confronto.

Por fim, gostaríamos de deixar claro que nosso objetivo aqui não foi apresentar uma

leitura sistemática ou definitiva das criações de Science e Suassuna, nem esgotar as

possibilidades de análise das propostas formuladas por armoriais e mangueboys, mas, como

já foi dito, aproveitar o mote oferecido por tal disputa simbólica e política para abrir uma

discussão acerca do lugar do popular na cultura contemporânea e das formas de atuação

possíveis diante de tal contexto.

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