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CONDORCET E A ORIGEM DA INSTRUÇÃO PÚBLICA

APOIADA NOS PRINCÍPIOS DE LIBERDADE E IGUALDADE

SOUZA, Paulo Rogério de1 – UEM/Bolsista CAPES

[email protected]

PEREIRA MELO, José Joaquim2 – UEM [email protected]

FERNANDES GOMES, Renan Willian3 – UEM/Bolsista CNPq

[email protected]

Eixo Temático: 7. História da Educação Agência Financiadora: CAPES/UEM e CNPq/UEM

Resumo

Ao discutir o papel da escola na sociedade contemporânea tem que se levar em conta as mudanças na sua forma de organização e de estruturação ao longo do percurso histórico no qual se originara e deve-se entender também qual a influência e importância da escola pública no processo de formação da sociedade burguesa. Como o assunto é abrangente, esse trabalho se limitará a discutir a origem da instrução pública francesa no século XVIII, mais especificamente nas ideias de um dos seus maiores teóricos articuladores, Jean-Antonie-Nicolas de Caritat, o Marquês de Condorcet, que tinha como proposta uma instrução pública pautada nos princípios de Igualdade e Liberdade. A discussão buscará mostrar também a preocupação desse filósofo em contribuir com a formação do cidadão que viesse administrar a sociedade pós-revolucionária. A escolha pela temática da origem da instrução pública francesa no século XVIII não é um evento ao acaso. Justifica-se, pois nesse momento a França passava por transformações sociais que provocaram mudanças radicais tanto no cenário interno francês como no cenário externo e que foi fator de influência em toda sociedade ocidental Moderna e Contemporânea. Diante dessas mudanças o filósofo supracitado procurou sistematizar suas propostas educativas entorno de um ideal de formação de um modelo de homem-cidadão que deveria conduzir a organização desta sociedade

1 Paulo Rogério de Souza: Doutorando, bolsista CAPES, do Programa de Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Maringá (PPE/UEM). E-mail: [email protected] 2 Dr. José Joaquim Pereira Melo: Pós-doutor em Educação e professor do Departamento de Fundamento da Educação e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail: [email protected] Renan Willian Fernandes Gomes: Graduando do curso de Letras, bolsista de PIBIC/CNPq, pela Universidade Estadual de Maringá (DFE/PPE/UEM). E-mail: [email protected] 3 Renan Willian Fernandes Gomes: Graduando do curso de Letras, bolsista de PIBIC/CNPq, pela Universidade Estadual de Maringá (DLE/UEM). E-mail: [email protected]

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desarticulada pelas revoluções e que estivesse alicerçada nos princípios de Liberdade e Igualdade. Essa proposta foi pautada numa forma de escola pública que deveria ser função do Estado subsidiar e propiciar de maneira gratuita a todos os cidadãos, independente da sua condição social, religião ou sexo, desta forma igualitária e libertadora. Palavras-chave: História da educação. Condorcet; Instrução pública. Igualdade. Liberdade. Introdução

Muito se tem discutido atualmente sobre qual o papel da escola na sociedade

contemporânea. Assim como também se discute constantemente mudanças na sua forma

organizacional e estrutural. No entanto, uma discussão que parece superada há muito tempo é

a importância da escola pública no processo de formação da sociedade burguesa. Sua

sedimentação nas entranhas da sociedade capitalista pulsa como uma exigência vital para sua

existência como um “direito natural do homem” desde sua origem.

Nesta perspectiva, o intento nesse trabalho será verificar como se deu o processo

histórico no qual se originou a escola pública. Também apresentar como o modelo de

instrução pública procurou conciliar Igualdade e Liberdade – conceitos conflitantes – num

momento de grande turbulência social. E como uma nova maneira de formar o homem

contribuiu para constituição da sociedade burguesa capitalista moderna. Desta forma, procurar

entender um pouco como as mudanças históricas, sociais, políticas e econômicas

influenciaram e ainda influenciam na instrução pública atual.

Como o assunto é abrangente, e devido a varias ramificações da defesa da escola como

uma instituição social ter se dado em diversos países no período Moderno, como Alemanha,

Estados Unidos, Inglaterra, França, o presente trabalho se limitará a discussão entorno da

origem da instrução pública francesa no século XVIII, mais especificamente das ideias de um

dos seus maiores teóricos e articuladores, Jean-Antonie-Nicolas de Caritat, o Marquês de

Condorcet (1743-1794).

A escolha pela discussão da origem da instrução pública francesa no século XVIII não

é um evento ao acaso, ela se justifica, pois nesse momento a França passava por

transformações sociais que alteraram todo o rumo da sociedade ocidental moderna e

contemporânea, e teve no pensamento desse filósofo supracitado as bases essenciais para a

formação de um modelo de homem-cidadão que deveria conduzir a administração desta

sociedade pautada nos princípios de Liberdade e Igualdade.

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É o Marquês de Condorcet quem propõe uma escola pública que deveria ser função do

Estado propiciar de maneira gratuita a todos os cidadãos, independente de raça, religião,

classe social ou sexo.

Desenvolvimento

O século XVIII e o contexto revolucionário europeu

As transformações que ocorreram na Europa na transição da chamada Idade-Média

para a Modernidade mostram que os conflitos sociais eram cada vez mais constantes. O

crescimento do mercantilismo e dos investimentos do capital bancário que surgiam nos

principais países europeus com as primeiras instituições bancárias consolidaram as bases para

o crescimento do capitalismo. As diferenças entre os diversos setores sociais que existiam, e

outros que se formavam, apontavam para um momento histórico conturbado que marcaria o

mundo com mudanças drásticas na maneira de se entender a produção da vida.

O iluminismo e a revolução industrial fizeram com que o homem desse período

reordenasse toda sua forma de produzir, de viver e de pensar. Enquanto a maquinaria

possibilitou a produção industrial em escalas inimagináveis e facilitou a expansão do

comércio para além das fronteiras territoriais das nações e dos continentes, a “produção” de

idéias e o “desenvolvimento” das ciências marcaram uma revolução intelectual no primado da

sociedade capitalista.

Neste contexto de mudanças sociais do século XVIII, duas nações – Inglaterra e

França – se viram envolvidas em “revoluções” que alteraram não só o cenário político,

econômico e social nacional de cada país, mas influenciaram e transformaram todo um âmbito

mundial.

Na Inglaterra se deu um conjunto de profundas mudanças econômicas e tecnológicas,

que marcou a passagem de um sistema de produção caracteristicamente agrário,

manufatureiro, artesanal, para um sistema industrial dominado pela maquinaria e pelas

fábricas.

Essa reviravolta tecnológica no cenário organizacional inglês, que recebeu o nome de

Revolução industrial, influenciou principalmente o âmbito sócio-econômico desse país: “[...]

as transformações levadas a efeito pela Revolução Industrial inglesa foram muito mais sociais

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que técnicas, tendo em vista que é nessa fase que se consubstancia a diferença crescente entre

ricos e pobres” (HOBSBAWN, 1979, p. 31). Viabilizados pelas circunstancias favoráveis que

as inovações no modo de produção capitalista propiciara e pelas mudanças na estrutura

política e econômicas, foi que tomou corpo e se articulou na busco por tomar o poder um

novo setor dentro da sociedade moderna: a chamada Burguesia

Já na França – contexto nacional o qual será focada nesse trabalho – da segunda

metade do século XVIII, as revoluções que se sucederam entre os anos 1789 e 1795 se

efetivaram nos âmbitos político e social.

À medida que a burguesia francesa consolidava seu poder econômico influenciado

pela Revolução Industrial e seus valores intelectuais com o Iluminismo, esta passou a exigir

uma participação mais efetiva no comando da política estatal que até então era monopolizada

pela nobreza absolutista, pela Igreja e seu clero.

Apoiada pelos setores mais empobrecidos da sociedade francesa – trabalhadores

urbanos, operários ou artesãos; trabalhadores rurais, camponeses ou servos – que sofriam pela

fome e pelas péssimas condições de trabalho, tanto nas áreas rurais como nas cidades, e pelas

altas tributações que eram cobradas de todo o povo: “Os tributos feudais, os dízimos e as

taxas tomavam uma proporção grade e cada vez maior da renda dos camponeses, e a inflação

reduzia o valor do resto [...]” (HOBSBAWN, 1996, p. 17) para manter os privilégios da

nobreza, a alta burguesia francesa precipitou o país numa onda de revoluções. A mais famosa

delas foi a de 1789, que cominou com a “Queda da Bastilha”4 e provocou alterações

consideráveis na estrutura social e política da França.

O que particularizou as chamadas Revoluções “Industriais” e a “Francesa” foi que

enquanto a revolução na Inglaterra (Revolução Industrial) teve suas bases num caráter

tecnicista apoiado pela maquina e pelos pensadores adeptos das ciências pragmáticas, na

França a Revolução de 1789 (Revolução Francesa) foi impulsionada pelas desigualdades

sociais, principalmente por uma população faminta, apoiada pela Burguesia que queria tomar

o controle político, até então relegada a um segundo plano nas esferas administrativas da

nação.

4 Era a mais conhecida prisão francesa que ficou marcada com símbolo do início da Revolução francesa com a “queda dos seus portões no dia 14 de julho de 1789.

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Pelo embate político e discussão de idéias, como os ideais de liberdade e igualdade,

que estavam ganhando corpo nesse contexto, a Revolução Francesa teve um caráter filosófico

apoiado pelo intelectualismo de base Iluminista.

Os conflitos franceses e a Instrução pública como proposta de superação da desigualdade

A França da segunda metade do século XVIII, como já mencionado anteriormente,

passava por sérios conflitos sociais. A fome e a miséria no campo, intensificadas pelas

cobranças das altas taxas e impostos, as péssimas condições de trabalho nas fábricas e a

escassez de vagas na indústria levaram os setores mais pobres a demonstrar insatisfação com

o regime absolutista vigente.

Já a Alta Burguesia que detinha os meios de produção e gozava de boas condições

financeiras via os lucros de seus negócios serem ceifados pelos onerosos impostos e tarifas

cobradas pelo Rei e pela Igreja a fim de manter as regalias da nobreza e do clero. Essa mesma

burguesia, apesar de ocupar posição econômica privilegiada na sociedade, não gozava dos

mesmos privilégios políticos na administração da corte.

Descontente com o rei e com o Antigo Regime do qual era excluída, a burguesa

francesa se uniu aos setores mais empobrecidos e se rebelou contra o poder da corte. Vários

conflitos sociais foram deflagrados nesse momento e que tiveram como ponto culminante a

derrubada dos portões da maior prisão francesa, a Bastilha, símbolo da opressão absolutista e

do poder real.

Após a Revolução de 1789, mudanças radicais ocorrem por toda França, como por

exemplo, a descentralização do poder real e a perda da influência do clero no processo

formativo do homem. A reformulação estrutural do país era uma questão primordial num

momento em que as transformações geravam muitos conflitos de toda a ordem.

Os revolucionários não viam na desordem um meio de vida, mas um mal imediato e

necessário. Assim, precisavam organizar as bases sociais, políticas, econômicas e jurídicas.

Para isso preconizaram a necessidade de formar e instruir o novo homem inserido neste

contexto e educar o cidadão que viria compor a nova ordem que deveria ser estabelecida pós-

revolução.

Muitos foram os teóricos que se propuseram a ajudar no processo de reorganização

social e de socialização deste “novo homem-cidadão” que deveria administrar a “nova

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França”. Entre esses pensadores, destaque pode ser dado a Jean-Antonie-Nicolas de Caritat, o

Marquês de Condorcet (1743-1794).

Apesar de descender de família pertencente à nobreza da corte, Jean-Antonie-Nicolas

de Caritat acabou se envolvendo ativamente na vida política e na ação revolucionária do seu

país influenciado pelo ideário iluminista. Suas ideias seguiam um padrão intelectual motivado

pelos princípios de busca pela liberdade econômica, pela tolerância religiosa e a igualdade

social. Sua inteligência destacada e sua efetiva participação nos movimentos revolucionários

proporcionaram ao filósofo alcançar o cargo destacado de presidente do “Comitê de Instrução

Pública da Assembléia Legislativa Francesa”.

Dentro do Comitê de Instrução Pública da Assembléia Legislativa Francesa o Marquês

de Condorcet teve a oportunidade de elaborar um “Plano de Instrução Pública” com o

objetivo de atingir todas as classes sociais, principalmente aos setores mais pobres da França,

que até então eram quase que na totalidade excluídos de qualquer forma de instrução ou

educação.

O Plano de Instrução Pública idealizado por Condorcet tinha como princípio, diante

das transformações sociais que estavam ocorrendo no país, a tentativa de sanar algumas

necessidades pelas quais estava passando o homem do seu tempo. As desigualdades sociais e

o ideal proposto pela revolução eram conflitantes e não estavam sendo condizentes com a

realidade desse homem diante de mudanças que estavam acontecendo tanto no âmbito técnico

como intelectual.

Para Jean-Antonie-Nicolas de Caritat a “Igualdade” e a “Liberdade” propostas pela

Revolução eram princípios básicos para esse novo homem viver em sociedade, e que se

efetivariam quando estes direitos fossem alcançados por todos os cidadãos franceses. E

somente pela instrução que o homem atingiria o estado de equilíbrio necessário entre esses

dois princípios – igualdade e liberdade – para exigi-los e aplicá-los socialmente.

Ao propor princípios aparentemente antagônicos como alicerces para a instrução

pública, o que ele pretendia era assegurar o acesso de todos os cidadãos à escola, o que

acarretaria numa “igualdade universal”, bem como também propunha a implantação um

instrumento de formação para desenvolver os talentos individuais, o que possibilitaria a

“liberdade do indivíduo”.

Nesta perspectiva universalizante do filósofo em defesa da escola pública, verifica-se

presente um ideal republicano que foi latente na sua busca por fundamentar os direitos do

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homem em prol da liberdade e da igualdade. Para Condorcet, a constituição republicana era “a

melhor na defesa desses direitos” e a República moderna era “a melhor na garantida da

liberdade coletiva e/ou individual”:

Uma República moderna para Condorcet é aquela onde todos os direitos naturais do homem e do cidadão são garantidos pela lei e por tal organização social, contemplando a liberdade e a igualdade em todas as suas extensões. [...] Nas Republicas modernas deve-se garantir o direito de cidadania a todos e com esse direito garante-se as liberdades em todos os seus modos, inclusive a liberdade individual, bem como deve-se garantir a liberdade ampla, extensivas a todas as pessoas, sejam homens, mulheres, crianças, estrangeiros e deve-se tolerar as diferenças de opiniões, como por exemplo, as diferenças das práticas advindas das várias religiões (SANTOS, 2007, p. 28).

Sob a égide de uma República moderna Condorcet procurou neutralizar uma possível

exclusão de algum determinado setor da sociedade de ter o acesso à instrução em

favorecimento ou imposição a determinadas classes, setores ou gêneros sociais: “[...] a

igualdade de instrução que se pode esperar alcançar, mas que deve bastar, é aquela que exclui

toda dependência, ou forçada ou voluntária” (CONDORCET, 1993, p. 184).

Assim, a instrução pública por ele defendida deveria estar ao alcance de todos os

indivíduos: ricos ou pobres, citadinos ou camponeses, burgueses ou trabalhadores, tanto

homens quanto mulheres, para que essa igualdade pudesse ser atingida “[...] como princípio

da justiça eterna [...] em sua plenitude”:

A instrução pública é um dever da sociedade para com todos os cidadãos. Em vão seria declarado que todos os homens têm os mesmo direitos, em vão seriam respeitadas as leis se não respeitassem esse primeiro princípio da justiça eterna, se a desigualdade das faculdades morais impedisse o maior número de pessoas de gozar esse direito em toda sua plenitude (CONDORCET, 2001, p. 81).

Partindo do princípio do direito de igualdade para todos os cidadãos à formação

institucionalizada, o Marquês de Condorcet procurou mostrar que a Instrução pública era o

único instrumento que poderia conseguir unir os diferentes setores da sociedade – alta

burguesia, pequena burguesia, trabalhadores rurais, operariado – rompendo com suas

contradições sociais através da universalidade da educação como direito e obrigação do

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cidadão: “Assim, a instrução deve ser universal, isto é, estender-se a todos os cidadãos”

(CONDORCET, 1943, p. 9).

Ao poder público caberia a função de apresentar “aos cidadãos pobres” a importância

de “desenvolver seus talentos” pela educação, para que pudessem, não apenas servir a si

mesmos, mas também servir à pátria:

Entendemos que o poder público devia dizer aos cidadãos pobres: a fortuna de vossos pais apenas pôde proporcionar-vos os conhecimentos mais indispensáveis; mas asseguram-se-vos os meios fáceis de os conservar e ampliar. Se a natureza vos deu talento, podeis desenvolvê-lo, a fim de que não se perca, nem para vós nem para a pátria (CONDORCET, 1943, p. 9).

Um dos pontos primordiais do pensamento do Marquês de Condorcet era o seu

posicionamento rígido sobre a obrigatoriedade e o dever do Estado em proporcionar a

manutenção da instrução pública e viabilizar o seu acesso para todos os cidadãos,

independente de sua classe social.

Assim, caberia ao Estado subvencionar as condições materiais para a implementação

de um projeto educacional universalizante, possibilitando, desta maneira, que as condições e o

acesso ao processo formativo não ficasse restrita a um determinado setor social, mas estivesse

a alcance de todos os cidadãos e mantivesse um caráter igualitário de formação do homem

que iria administrar a sociedade pós-revolucionária.

Apesar de delegar ao Estado esse dever e obrigatoriedade, Condorcet era contra a

influência ou qualquer instrumento de controle do poder do Estado no processo de

escolarização. O Estado deveria servir como mantenedor de sua estrutura de caráter universal,

possibilitando o acesso de todos os cidadãos a ela, mas caberia a uma “agremiação”

controlada por homens da sociedade civil, representantes das mais diversas áreas do

conhecimento, como das Ciências, das artes, das Letras, da Filosofia, o papel de organizadora

do processo de escolarização, não permitindo nenhuma interferência estatal na implementação

do conteúdo ou na escolha de professores.

Esta agremiação da sociedade civil – “Sociedade Nacional das Ciências e das Artes” –

seria responsável por garanti a independência do processo educativo em relação ao Estado ou

de eventuais interferências de determinados setores da sociedade:

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[...] como elemento aglutinador dos progressos do conhecimento e como um espaço de entrelaçamento criativo e criador das diversas ramificações do saber humano. A idéia dessa agremiação era a de proteger a instância das ciências e das artes contra os possíveis inimigos das Luzes e, eventualmente, contra o próprio arbítrio do Estado (BOTO, 2003, p. 753).

Nessa perspectiva, pode-se dizer que, para o filósofo francês supracitado, uma das

principais funções do Estado neste contexto educacional deveria ser a de: “[...] tornar a

educação, não só tão igual e tão universal, mas também tão completa como as circunstâncias

o permitam [...]” (CONDORCET, 1943, p. 7), porém, não deveria exercer nenhuma influência

interna na sua efetivação.

A partir dessa ação efetiva de subsidiário externo da escola pública, o Estado estaria

possibilitando a cada indivíduo a oportunidade de desenvolver suas faculdades físicas,

intelectuais e morais, e consequentemente contribuindo para “o aperfeiçoamento geral e

progressivo” da própria espécie humana e da pátria:

Cultivar [...] as faculdades físicas, intelectuais e morais e contribuir dessa forma para o aperfeiçoamento geral e progressivo da espécie humana, derradeira meta a que deve visar toda a instituição social, tal será ainda o objetivo da instrução e este é, para o poder público, um dever imposto pelo interesse comum da sociedade e pelo da Humanidade inteira (CONDORCET, 1943, p. 6).

O objetivo dessa instrução pública proposta por Condorcet e imposta, segundo o

mesmo, pelo interesse comum de cultivar e aperfeiçoar as faculdades humanas acabaria por

viabilizar a igualdade natural, haja vista que: “A igualdade natural ocorre quando, dentro do

estado de natureza, todos os homens tenham as mesmas condições de sobrevivência, uma vez

que, dotados das mesmas faculdades, podem fazer suas necessidades” (SANTOS, 2007, p.

64), e também a igualdade civil, onde todos poderiam se beneficiar do bem público, por terem

suas “faculdades aperfeiçoadas pela instrução e pela educação”:

Conforme a igualdade civil, as leis são as mesmas para todos e dessa forma assegurados por um código civil, os homens podem se beneficiar do bem público. E enfim, a igualdade política é mantida sempre que todos os cidadãos em um sufrágio universal votam, podendo expressar sua opinião, distinguindo o que consideram

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correto, podendo exercer dignamente todas as funções públicas. As condições para que se desfrute plenamente dessa igualdade é que todas as faculdades sejam igualmente aperfeiçoadas pela instrução e pela educação (SANTOS, 2007, p. 64).

O que se pretendia era buscar a igualdade das “faculdades físicas, intelectuais e

morais” dos cidadãos pela ação educativa, superando assim a desigualdade natural, ou seja, a

desigualdade nos talentos entre os homens: “Condorcet [...] tomava a ação pedagógica como

um recurso privilegiado para promover a eqüidade, com vistas ao estabelecimento da única

desigualdade legítima entre os homens: aquela que vem da natureza, a dos talentos” (BOTO,

2003, p. 750).

Conseguir essa igualdade dos talentos e das faculdades, promovendo um equilíbrio

desta força natural, seria o primeiro passo para almejar a superação da desigualdade

considerada “artificial”, ou desigualdade das fortunas, das diferenças entre as classes sociais,

proveniente do desequilíbrio social: “Promover o talento, pelo mérito, significava, no limite,

contrabalançar a desigualdade das fortunas – esta sim –, artificial” (BOTO, 2003, p.750).

A busca insistente de Condorcet para possibilitar a condição de igualdade dos talentos

entre os homens pela Instrução tinha como objetivo conduzir o cidadão a outro estágio dentro

da sociedade: à liberdade.

A educação obrigatória por lei, não subordinada aos interesses estatais, deveria ser o

instrumento que tornaria todos os cidadãos iguais, e caberia também a essa educação libertar o

homem da submissão à razão do próximo, ou da dependência à determinados de setores, ou

ainda de interesses dos governantes:

Esta obrigação consiste em não deixar que subsista nenhuma desigualdade que ocasione dependência [...] basta para a manutenção da igualdade de direitos que esta superioridade não traga dependência real e que cada um esteja suficientemente instruído para exercer, por si mesmo e sem se submeter cegamente a razão do próximo, aquilo cujo a posse lhe é garantida por lei (CONDORCET, 2001, p. 82).

Da mesma forma que a instrução pública deveria ser instrumento para proporcionar a

todos os cidadãos a igualdade, está também seria a mediadora que conduziria o indivíduo a

atingir seu estado de libertada, desde que essa forma de instrução fosse totalmente isenta de

influências internas estatais ou de quaisquer outras instituições sociais: “Jamais um povo gozará

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duma liberdade constante e segura, se a instrução nas ciências políticas não for geral e independente

de todas as instituições sociais [...]” (CONDORCET, 1943, p.. 37).

Para ele a desigualdade entre os homens mais pobre e os homens mais ricos e a perda

de liberdade pela submissão do mais fraco pelo mais forte se davam através da ignorância.

“Ignorância” que somente a “Instrução” poderia combater e consequentemente reverter essa

injustiça natural e civil.

Condorcet compreendia que conhecimento proporcionado por uma instrução pública

seria capaz de formar o homem-cidadão emancipado, que seria capaz de conduzir a sua

existência sem ter a sua vida dirigida por uma consciência ou razão alheia, dito de outro

modo, livre das amarras externas de condução na sua maneira de pensar ou de tomar decisões

na sociedade.

Considerações finais

No período de muitas transformações do conturbado contexto revolucionário francês

do século XVIII, houve a necessidade de organizar a sociedade pós-revolucionária e de

formar um novo modelo de homem para administrar a nova ordem posta. Para esse fim, o

Marquês de Condorcet elaborou um projeto educacional para formação desse homem no qual

primava por uma instrução pública pautada nos ideais de igualdade e liberdade, já que eram

esses os pilares da revolução.

Desta maneira, propôs uma forma de educação onde todos deveriam ter oportunidade

de alcançar o maior grau de instrução que a instrução pública pudesse viabilizar, cultivando e

aperfeiçoando as faculdades físicas, intelectuais e morais, alcançando assim a igualdade dos

talentos, considerada a única igualdade legítima.

Essa forma de instrução pública subsidiada pelo Estado e conduzida por uma

“agremiação” representada por homens das mais diversas áreas do conhecimento –

“Sociedade Nacional das Ciências e das Artes” – também deveria libertar o homem da

dependência provocada pela ignorância. Conhecedor dos direitos, das ciências e dos seus

talentos, este homem seria livre para tomar suas decisões e teria consciência moral e

intelectual formada para não ser manipulado por interesses dos governantes nem por

representantes de outros setores da sociedade.

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Após essa discussão sobre os ideais de igualdade e liberdade propostos por Condorcet

como alicerces de uma instrução pública e formadora do homem, pode-se refletir um pouco

na proposta educativa da escola pública nos dias de hoje, tomando como base esses dois

princípios norteadores, mesmo incorrendo em risco de cometer um anacronismo devida a

abordagem contextual histórica separada por quase dois séculos.

No entanto, seria demagogia negar a presença forte desses princípios de Igualdade e

Liberdade como alicerces da instrução pública, como idealizados por Condorcet no século

XVIII, presentes nos discursos de políticas públicas voltados para a educação, principalmente

na contemporaneidade. Nesse viés, verifica-se não só a importância das ideias desse filósofo

como fundamento para as bases da escola pública na sua origem, mas também mostram que

as mesmas ainda permeiam os ambientes educacionais na atualidade.

REFERÊNCIAS

BOTO, Carlota. Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e gratuita: o relatório de Condorcet. Revista Educação e Sociedade. v. 24, nº. 84, Campinas, Set. 2003, p. 735-762.

CONDORCET, Jean Antonio Nicolas de Caritat. Cinco memórias sobre la intrucción pública y otros escritos. Madrid: Ediciones Morata, 2001.

________. Esboços de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura. Campinas. Editora da Unicamp, 1993.

________. Instrução pública e organização do ensino. Porto: Educação Nacional, 1943.

HOBSBAWN, Eric J. As origens da Revolução Industrial. São Paulo: Global, 1979. ________. A Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. SANTOS, Rodson Roberto. Liberdade, igualdade e instrução pública em Condorcet. (Dissertação de Mestrado) Universidade de São Paulo, 2007.