Conferência - Semana de Psicologia
-
Upload
marco-aurelio-borges-costa -
Category
Documents
-
view
216 -
download
0
description
Transcript of Conferência - Semana de Psicologia
SEMANA DE PSICOLOGIA
Centro Universitário São Camilo – ES - b28/09/2015
Prof. Marco A. B. Costa
Doutorando em Ciências Humanas/Sociologia pelo Programa de Pós
Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; Pesquisador associado do Núcleo de Estudos em Conflito, Cidadania
e Violência Urbana (NECVU/IFCS/UFRJ); professor e pesquisador no Centro
Universitário São Camilo – ES.
A palavra violência é utilizada em uma infinidade de situações, tornando
complexo tomá-la como um todo conceitual. Associá-la ao uso da força física é
o mais comum, o que torna a ideia operável por um lado, e ainda mais
complexa por outro. A tendência, atualmente, é assumir a violência como uma
categoria ampla de fenômenos que se dão ligados de alguma forma ao uso da
força física, sua ameaça ou a violação de algum tipo, inclusive simbólica, como
na complexa teoria da violência simbólica de Bourdieu.
Assumir o aspecto do uso da força física contra outro ser humano é também
uma aposta arriscada, já que essa “violência” não é algo sempre considerado
de maneira negativa. Existem casos nos quais essa violência é tolerável e,
quem sabe, desejável.
Assim, surge ob problema com o qual constantemente nos deparamos, da
existência de uma violência legítima, e de uma violência ilegítima. De atos
violentos aceitáveis e de atos violentos não aceitáveis. E, naturalmente, como
as culturas no tempo e no espaço, ás vezes no mesmo tempo e no mesmo
espaço, variam também as concepções.
O que proponho, então, é que essa distinção entre violência legítima e ilegítima
faz parte de um conjunto institucional que as sociedades humanas
desenvolvem para gerenciar, administrar a violência em seu seio, evitando a
autodestruição. Sem adentrar profundamente à Antropologia, existem registros
que mesmo primatas superiores detêm essa capacidade, que teria sido
fundamental para a constituição do ser humano nas formas atuais ao longo de
seu processo evolutivo.
Sob um olhar histórico-antropológico, as sociedades humanas ao longo de sua
existência têm criado diferentes mecanismos de gerenciamento do uso ou da
ameaça do uso da força física. Interessa-nos um mecanismo específico de
gerenciamento dessa violência, mais recente na história humana e
predominante nos dias atuais, o Estado Moderno.
Embora Max Weber tenha apresentado a definição mais conhecida acerca do
Estado Moderno no âmbito da Sociologia e Ciência Política, uma organização
que pretende o monopólio legítimo do uso da força em um determinado
território, diversos sociólogos e historiadores se empenharam em descrever
esse processo, dentre eles, Charles Tilly, em quem sustento algumas das
minhas afirmações.
A pretensão do monopólio do uso da violência por parte do Estado é uma
realidade bem sucedida na Europa. Segundo Tilly, esse processo se inicia com
os reis e nobres extorquindo as populações para a sustentação de suas
guerras e cortes. Contudo, por mais que a relação entre as classes ou grupos
desiguais se baseasse na força, era necessária alguma aceitação por parte dos
grupos dominados, o que era conquistado a partir de concessões a essas
populações – saúde, educação, segurança, proteção econômica principalmente
no caso dos burgueses; e por meios ideológicos, com a construção de uma
narrativa sagrada do Estado que substituísse o discurso do mandato de Deus
para o Rei, já não tão significativo a partir da Reforma Protestante. Na ausência
de Deus, o “povo” é a entidade abstrata que fundamenta o poder soberano do
Estado, não mais necessariamente personalizado em um Rei, principalmente a
partir do Século XVIII.
Não há toa que Tilly faz uma analogia entre Estado e crime organizado.
Historicamente, o Estado se formou a partir de organizações de extorsão que
se legitimaram em um determinando território, combinando força e ideologia.
Esse sucesso está relacionado à forte relação entre economia e política. O
modelo de Estado que se consolida reúne forças suficientes para garantir a
concentração de capital que caracteriza a própria existência do capitalismo.
Sem ignorar os estudos que se preocupam com os aspectos relativos ao uso
da força nas interações sociais, o que poderíamos chamar de uma micro
sociologia da violência, como é feito por Randall Collins, o que tem me
interessado em termos de pesquisa é o que poderíamos chamar de macro
sociologia da violência, e o foco recai, naturalmente, na estrutura que detêm,
em nossa sociedade, a maior capacidade de perpetrar a força física, que é o
Estado. Nesse sentido, se torna uma pesquisa política, se concordamos com
Norberto Bobbio que a força é, em última instância, o que caracteriza o poder
político, ou mesmo como Weber citando Trotsky, de que todo Estado se funda
na força.
Nesse sentido, é fundamental compreender que a formação dos estados latino
americanos se diferencia significativamente da formação dos Estados
europeus. O modelo de organização política que surge e se consolida a partir
da combinação de fatores históricos na Europa, é implantado em outros
territórios do planeta, nem sempre alcançando pleno sucesso.
Tilly entende que a ausência de grandes guerras em partes fora da Europa é
um fator que contribui para explicar porque o modelo do Estado Moderno não
segue caminhos similares nos outros continentes. A guerra força a criação de
sistemas organizacionais políticos, administrativos, de arrecadação,
infraestrutura, assim como legitima a força centralizada do Estado diante da
ameaça a que a população é submetida pela incursão de outro Estado.
É interessante observar como a “pacificação” interna dos Estados estava
diretamente ligada à ampliação da violência coletiva, ou seja, das guerras. Na
medida em que os Estados se consolidam, e, internamente, concentram em si
a força física reduzindo significativamente a violência interpessoal em seus
territórios, as guerras vão se tornando cada vez mais letais, culminando com os
absurdos inimagináveis da II Guerra Mundial.
Sem adentrar a formação de Estados na Europa e Américas, é importante
perceber que, se o monopólio da violência em um determinado território é um
“tipo ideal”, uma proposição heurística que jamais aconteceu ou acontecerá
plenamente em lugar nenhum, nos países da América Latina, esse monopólio
se mostrou ainda mais precário.
Com um território muito amplo, a constituição do Estado brasileiro se deu de
forma diferenciada entre as regiões. Naturalmente, os centros políticos e
econômicos assumem mais rapidamente as “feições” de um Estado Moderno,
enquanto outras regiões permanecem sob o domínio da violência privada,
ainda sob modelos de gerenciamento do uso da força que poderíamos chamar
de tradicionais.
Por outro lado, mesmo nos grandes centros urbanos, parcela significativa da
população, principalmente depois dos movimentos migratórios que constituíram
as regiões periféricas das regiões metropolitanas, continuou distante da
construção dessa modalidade de gerenciamento do uso da força que
chamamos Estado. Tal fato favoreceu a manutenção das estratégias de
conflitos por meios próprios, não raro pela força física.
Por contraditório que possa parecer, mesmo no imaginário das elites
supostamente mais esclarecidas, a violência privada continua até os dias
atuais como modelo de gerenciamento e de administração da força legítimo.
Por isso, não surpreende que exista apoio popular a situações como o
linchamento, os grupos de extermínio, o excessivo número de mortes em
confronto perpetradas por agentes do Estado e a panaceia da punição como
solução para todos os males.
Há quem vá dizer que a suposta “ausência” do Estado é que incentiva o uso
privado da força física ou a sua defesa ou a sua tolerância. A meu ver, a
situação é inversa. A mentalidade predominante impede que o Estado assuma
plenamente a função exclusiva do uso da força. Afinal, o Estado não existe por
si só. Ele é constituído, administrado por pessoas, e normalmente aquelas
oriundas de classes sociais mais favorecidas, que podem acessar o poder a
partir do processo político eleitoral ou pela via de concursos públicos para
cargos de relevância. O Estado é “ausente” não por um acidente histórico. A
ausência do Estado é resultado das ações dos que o controlam. Ou seja, pode
até, na melhor das hipóteses, ser inconsciente. Mas não é acidental.
Se observarmos a história do Brasil, é uma constante disputa em centralizar o
poder na estrutura estatal, nacional, e ou compartilhá-la com os poderes locais,
normalmente detidos por potentados regionais. Olhando um pouco para a
Primeira República, para os anos 50 e mesmo épocas mais recentes, podemos
perceber claramente essa disputa. Nos dias atuais essa disputa parece estar
se acirrando cada vez mais: para os despossuídos, um Estado Democrático de
Direito de fato, que exerça suas funções, é bem menos pior do que indivíduos
privados dotados de maior capacidade de uso da força e que o fazem mediante
arbítrios pessoais e interesses privados.
Ao longo da história da formação do Estado brasileiro temos, então, um espaço
sempre muito amplo entre o que o Estado enquanto uma teoria, e as ações
concretas dos agentes do Estado. Em tese, o exercício do monopólio do uso da
força para que mantenha sua legitimidade deve obedecer regras estabelecidas
e amplamente conhecidas. É o que garante a estabilidade do sistema. Mas no
Brasil, esse não tem sido o caso.
Historicamente, em São Paulo, como observado por Manso, no Rio, por Misse,
e no Espírito Santo como tenho observado, a violência exercida por agentes do
Estado fora das normas do monopólio do Estado em atendimento aos
interesses privados próprios e ou das elites é anterior à violência dos
criminosos.
Nos anos 50, jornais de São Paulo e Rio já noticiavam as ações dos grupos de
Extermínio. Nos anos 60, surgem registros de grupos de extermínio no Espírito
Santo. Depoimentos que eu mesmo colhi, dão conta da atuação de policiais
para proteger os interesses privados das elites e os seus próprios já desde
essa época. Fosse no Rio, São Paulo ou Espírito Santo, nesse período, os
criminosos eram presas fáceis, pois não haviam ainda se armado, o que veio a
acontecer somente nos anos 80. A escalada armamentista dos criminosos foi
possibilitada em grande parte pelo enorme lucro produzido pelo tráfico de
entorpecentes, em especial a cocaína.
O lucro desse negócio passa a ser investido em armamento pesado, gerando
um aumento significativo da letalidade dos confrontos tanto entre criminosos
quanto entre estes e a polícia. O criminoso que antes era executado, agora
está armado e pronto para reagir. E todos estão armados, portanto, ninguém
está seguro. A desconfiança é uma constante, e se estabelece a máxima:
“antes chorar a mãe dele do que a minha”. Matar primeiro para não morrer.
Esse ciclo da violência é bem descrito por Bruno Paes Manso, em suas
pesquisas na cidade de São Paulo.
A estratégia de transferir o gerenciamento da força física, da violência, para o
Estado se fixou na história humana porque funcionou adequadamente para o
sistema econômico predominante. Porque produziu um ambiente de segurança
para que o capitalismo florescesse como novo modelo econômico na Europa.
Já a violência privada gera um ciclo de vinganças interminável. Uma guerra
particular que, como toda a guerra, não raramente alcança inocentes que nada
tem a ver com essa guerra. Contamina a todos, obscurece a razão e abre as
portas da barbárie.
A guerra particular entre agentes do Estado que atuam em nome de seus
interesses privados e criminosos já é bem antiga, e não tem nada a ver com
entorpecentes, e muito menos com qualquer aspecto de interesse público. Isso
sem falar nas guerras entre criminosos, na disputa por territórios mais
lucrativos. Essa guerra produz, ainda, a disseminação das armas de fogo, o
que acaba ampliando a letalidade de conflitos banais. O Brasil está entre os
países com as maiores taxas de homicídios do mundo. O Espírito Santo está
entre os estados com as maiores taxas de homicídio do país.
A violência quando efetivamente monopolizada pelo Estado – reafirmo, sem
nenhum julgamento moral – torna o sistema social previsível, estável. Ora, eu
sou um criminoso. Ao ser flagrado no cometimento de um crime, sei que posso
contar com a prisão, o julgamento e o cumprimento da pena. Por outro lado,
quando o sistema é imprevisível, tudo pode ocorrer. Quem me prende pode
pedir uma propina apenas, pode me matar, pode me espancar. E pode até me
prender. Diante dessa incerteza, a única coisa que me dá alguma garantia
enquanto um ser que pretende preservar a própria vida e dignidade é atirar
primeiro.
E depois de matar o primeiro, outros certamente virão.
A mesma lógica se aplica aos conflitos entre criminosos, gangs, grupos de
jovens. Em algumas situações, os próprios criminosos criam algumas regras –
o “proceder” – para regular suas relações e reduzir essa imprevisibilidade, que
é ruim inclusive para eles. O exemplo mais conhecido é o do Primeiro
Comando da Capital, em São Paulo. Apesar de sua crueldade, o sistema para
judicial do PCC, segundo alguns pesquisadores, contribuiu para a redução dos
homicídios naquele estado.
Essas regras podem funcionar dentro do universo criminoso, mas não servem
para regular as relações entre os criminosos e a polícia, justamente porque a
polícia é um agente do Estado, o que torna a relação extremamente
desproporcional. O policial conta com a possibilidade de se utilizar da proteção
estatal, ainda que suas ações não sejam justificadas no plano da legalidade, da
legitimidade. Não raro, na típica confusão que marca a história cultural
brasileira, interesses públicos e privados se confundem. Parte-se do
entendimento que o que eu quero é o que todos precisam, dentre outras
formas de neutralização moral do ato que seria, em tese, moralmente
reprovável.
Um exemplo dessa proteção que o policial conta no seu enfrentamento ao
criminoso, nem sempre sob o âmbito do interesse público, é demonstrada pelo
estudo do delegado Orlando Zacone. Promotores abdicam de denunciar mortes
perpetradas por policiais, ainda que todos os indícios apontem para uma
execução, como, por exemplo, tiro pelas costas ou marca de pólvora nos
cadáveres indicando extrema proximidade. Como diz o Coronel Nascimento no
fim do filme Tropa de Elite II, o policial não aperta o gatilho sozinho. Voltando
algumas palavras, mesmo as elites e classes médias brasileiras não estão
plenamente convencidas de que o Estado deve monopolizar a força física. E
quando em cargos estratégicos, reproduzem essa descrença, fazendo vistas
grossas ao extermínio de “bandidos”.
Sem adentrar outras esferas de reflexão nas quais também se apresenta, no
campo que estamos discutindo é perceptível o problema da noção de
igualdade. A concepção de igualdade que permeia o imaginário de boa parte
das elites e classes médias brasileiras é sustentada na percepção de
similaridades não políticas, e sim identitárias. Do ponto de vista político, nasceu
no território do país, a igualdade jurídica já está (ou deveria estar) dada. Mas
na prática, se construiu, por herança do longo período de escravidão, a ideia de
que a cidadania é restrita aos indivíduos que apresentam algumas
similaridades entre si, normalmente étnicas ou de classe social, não sendo
aplicável a todos indistintamente.
Alguns autores chamam isso de subcidadania, cidadania precária, dentre
outros termos. Michel Misse chama a atenção para o fato de que algumas
características se fixam de maneira tão forte no indivíduo que ele passa a ser
percebido de uma maneira específica, como não merecedor dos benefícios da
cidadania, por ser um “bandido”, um banido, irrecuperável. É o que ele chama
de sujeição criminal.
Giorgio Agamben ressalta a figura do Homo Saccer, o que poder ser morto
mas não sacrificável. Não tem valor sequer para que sua morte sirva de oferta
aos deuses. Matá-lo não é crime.
Assim, o que percebemos no Brasil é que essa sujeição criminal se coaduna
com o não exercício do monopólio da violência por parte do Estado. Ora, o que
eu proponho, é que o Estado não pretende esse monopólio para todos, porque
não é uma demanda dos grupos sociais que predominam na administração do
Estado. E é justamente por isso que para certos categorias sociais, as leis são
um mero obstáculo ao exercício de uma concepção relativista de justiça, e não
um instrumento para se alcançar uma justiça de cunho universalista.
É quando o Estado Democrático de Direito é considerado a barreira que
impede o que é “justo”; quando os Direitos Humanos são considerados um
discurso para defender “bandido”. E fica, então, a pergunta: Quem é o Estado?
Quem faz valer seus interesses por meio do Estado?
Isso ajuda a explicar porque quase metade da população carcerária brasileira
está em condição provisória, em clara contradição com o princípio da
presunção de inocência; porque boa parte dessa população carcerária cumpre
pena por crimes de baixíssimo poder ofensivo, como tráfico de drogas no
varejo; porque temos um número tão grande de assassinatos não punidos, pois
tratam-se de mortes de “matáveis”; porque a violência policial sobrevive pelos
tempos, sustentada na crença da total impunidade, pois, afinal, os que são
mortos pela política não seriam “cidadãos” e, portanto, não há crime (embora
legalmente ele exista!)
Particularmente, penso que as notícias atualmente não são animadoras. O
Estado brasileiro insiste no que Barrington Moore chama de “modernização
conservadora”. Avançamos em diversos aspectos, principalmente ligados à
economia, mas insistimos em manter aspectos de nossa tradição que atuam
como impedimento a uma plena igualdade e ao controle mais pleno da força
física nas mãos do Estado.
As pautas conservadoras que avançam no Congresso; os apresentadores de
TV que fazem apologia ao linchamento; as chacinas em São Paulo e outros
estados; o aumento do número de mortes causadas pela atuação policial além
das “vinganças” de policiais quando um de seus colegas é vitimado; a
espetacularização da violência que faz com que as pessoas generalizem as
exceções, produzindo uma sensação de insegurança que reforça percepção de
“ausência” do Estado, justificando a violência privada; são alguns dos exemplos
que poderíamos citar no sentido de destacar que o futuro não é promissor.
Mas, ressalte-se, não há nada de novo no horizonte. São as próprias
concepções se reforçando por meio dos seus instrumentos disponíveis.
A violência estará presente em nosso cotidiano, ainda, durante muito tempo. E
todos nós podemos nos tornar vítimas inocentes das guerras particulares entre
criminosos, e entre esses e a polícia, embora o maior número de mortes tenda
a se concentrar entre os conflitantes.
E não me parece que as futuras gerações irão produzir mudanças
significativas. Não vejo no horizonte ações concretas no sentido de mudar a
atuação do Estado, porque não mudam as estruturas de acesso à participação
nesse Estado. Os modelos político-eleitorais continuam excludentes,
sustentados no financiamento privado de campanha, contribuindo para reforçar
as concepções aqui criticadas, e jamais para superá-las.
Sem mudar a atuação do Estado, as coisas não vão mudar, porque é quem
tem o monopólio do uso da força que dá o tom de como essa força vai se
distribuir. E, no caso do Brasil, esse tom é muito desafinado.
Obrigado.