Confia · Era uma casa térrea, de ... sempre falou mais alto. Sonhava com uma casa para todos nós...
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Confia
Confia
Sofia Ribeiro
© 2018 Sofia Ribeiro e Matéria-Prima EdiçõesTodos os direitos reservadosIncluindo os direitos de reprodução total ou parcial em qualquer suporte.
Matéria-Prima EdiçõesAv. Miguel Bombarda, 42, 1ºC1050-127 [email protected]
Título: ConfiaAutora: Sofia RibeiroRevisão: Cristina Silveira de CarvalhoConcepção gráfica e paginação: Pedro Fernandes/Matéria-PrimaFotografia de capa: João PortugalCabelos: Eric Ribeiro / Griffe
Impressão e Acabamento: Cafilesa - Soluções Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-769-134-8Depósito legal: XXXXX/18
Ao meu pai.
I. FORÇA 11Os primeiros anos 13
Aprender que o trabalho salva 20
Os amores e as casas 28
O primeiro susto 34
Um aniversário especial 38
Fechar a cortina 43
O exame 49
O dia D 57
Como assim? 60
A festa 67
II. FOCO 75A vida continua 77
O anúncio 82
Os meus pais 85
Contar ao mundo 91
Parar 95
Uma segunda opinião 100
Começa a químio 110
Queda de cabelo 121
O dia a dia 134
Partilhar o vídeo 140
O estigma 148
A última sessão 150
A cirurgia 157
Índice
III. FÉ 167O amor 169
Os meus amigos 172
Shai 183
Redescobrir a paixão 200
De volta à família 211
O meu abraço 224
Agradecimentos 226
Vi que ele falava, mas não o ouvia. Sabia que o médico me
estava a dizer que o caroço que tinha era, afinal, um cancro,
mas só sentia o barulho ensurdecedor. Como um rádio mal
sintonizado, o que me chegava era tudo o que não queria
saber. A minha cabeça pensava que talvez fosse um engano,
que talvez pudéssemos repetir os exames, ver melhor; tentar
uma nova análise, mas o meu coração sabia que a minha vida
estava prestes a mudar para sempre.
O médico continuava a falar e eu sem o ouvir. Lembro-me
do ar preocupado com que me explicava a “lesão na mama
esquerda”, como tentava ser claro e detalhado sem me deixar
completamente sem chão. Lembro-me de perceber uma série
de palavras que nunca julguei poderem definir um estado
e um caminho que seriam meus. Tratamentos, protocolos,
quimioterapia, como assim? Então, e a minha vida? O que faço
com ela enquanto o meu corpo decide se vive ou se morre?
E os meus? A minha família? E onde coloco os meus sonhos,
tudo o que ainda tenho para viver?
Pela primeira e única vez, tive medo. E chorei as primeiras
de muitas lágrimas.
O que me trouxe até
aqui
I. Força
A infância, as descobertas, os sonhos e o primeiro
susto
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F O R A M M U I TAS AS V E Z E S , ao longo deste tratamento, em que
me lembrei da minha infância. É inevitável, quando recebemos
a notícia de que temos uma doença possivelmente fatal,
que a nossa vida nos passe diante dos olhos. Umas vezes de
modo consciente, outras, sem me aperceber, foram muitas as
memórias que me vieram à cabeça, nem todas felizes, mas
sempre úteis para o momento em que as revivi.
Nunca falei deste tema publicamente, porque sempre tive
medo que a imprensa não o tratasse com o respeito que merece.
Por mais mágoas que tenha, quase todas resolvidas, a minha
família merece consideração e respeito. É sabido que a minha
infância não foi fácil, que o meu contexto é particular e eu hoje
sei que cresci a ver coisas que nenhuma criança devia ver. Mas
isso nunca me impediu de correr atrás dos meus sonhos. Pelo
contrário, as dificuldades só me tornaram numa pessoa que vai
à luta e que dificilmente baixa os braços.
Tive uma infância muito pequenina que, na verdade, durou
até aos sete anos. Sou filha de pais separados, o que, por si
só, não é nada de especial. Mas tanto o meu pai como a minha
mãe não conseguiram resolver as suas diferenças da forma mais
sensata e respeitosa, o que fez com que fosse forçada a assistir
Os primeiros anos
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a coisas das quais, por mais que queira, nunca me vou esquecer.
Não havia muito dinheiro e nunca tivemos uma casa. Vivíamos
em quartos de residenciais, não havia muito espaço, e o meu
pai nem sempre estava. Quando se zangava com a minha
mãe, desaparecia durante uns tempos, ou desaparecíamos
nós. A situação tornava-se insustentável, umas vezes por
desentendimento entre eles, outras porque a minha mãe não
tinha como pagar o quarto. Andávamos de residencial em
residencial ou em casa de algum amigo que nos dava guarida
até a situação acalmar e melhorar.
Lembro-me de, numa dessas vezes, nos termos mudado
para casa de uma amiga da minha mãe, eu e ela, na Quinta
do Mocho, em Sacavém. Os prédios, ainda por acabar, tinham
sido ocupados por pessoas em situação precária e vivíamos
todos nas mesmas condições: numa estrutura de cimento
e tijolo, sem portas nem janelas, apenas cartão ou placas de
metal ou madeira que serviam para tapar o frio e ter alguma
privacidade. A luz chegava-nos através de puxadas dos postes
de eletricidade da rua e a água que usávamos nascia num poço
ali perto. Não havia saneamento básico, os esgotos eram a céu
aberto e os ratos andavam por ali. Não me esqueço de que, um
dia, acordei com a minha mãe, aflita, a sacudir um deles que
tinha subido para o colchão onde dormíamos no chão. Hoje, e
talvez por isso, são bichos que não me metem medo.
Apesar de o meu pai ser mais ausente, cheguei a viver com
ele durante um tempo, no Bairro da Curraleira, perto do Alto de
São João. Hoje em dia, é uma zona reabilitada, mas, na época,
era um bairro de lata e considerado um dos supermercados de
droga e foco de criminalidade. Nesse tempo, o meu pai tinha
uma namorada com quem decidiu partilhar casa e levava-me
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com ele durante algumas temporadas. Era uma casa térrea, de
tijolo e telhado de zinco, com dois quartos, uma sala e uma
casa de banho. Ou melhor, uma divisão que se assemelhava
a uma casa de banho. Porque a sanita era um buraco no chão
e a banheira um quadrado feito em tijolo com um ralo e uma
cortina, para alguma privacidade.
Quando penso em tudo isto, em dias maus, não há como
não sentir alguma mágoa, mas nada comparado com aquela
que guardei durante grande parte da minha vida. Não entendia
as razões dos meus pais, não percebia por que motivo não
tentaram comprar ou arrendar uma casa para não termos de
passar pelo que passámos, como isso teria sido importante
para nós, como família, como seres humanos. Já eu ia a meio da
adolescência quando a minha mãe decidiu arrendar uma casa
modesta, em Camarate. Nessa altura eu já era independente,
mas passava lá uns dias, de vez em quando.
Bem sei que isto não foi um ambiente saudável para uma
criança crescer, mas nunca me senti uma vítima. Há tantas
crianças, infelizmente, em situações iguais ou piores, que a
minha história se torna apenas mais uma. É a minha, claro, e por
vezes dói-me, mas aceito-a como é e tenho a certeza absoluta
de que, sem ela, eu não seria a pessoa que sou hoje. Sabia que
não tinha uma família como as outras, até porque via que os
meus colegas de escola viviam de modo diferente. Dormíamos
os três na mesma cama, eu ao lado da minha mãe, lugar que
a minha irmã mais nova veio ocupar quando nasceu. Passei a
dormir aos pés da cama e, mesmo assim, sentia-me feliz.
Não tínhamos muita coisa, incluindo comida. Cada um de
nós tem a sua relação particular com a comida. A minha, pelo
que vos tenho vindo a contar, remete-me para a minha infância.
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Desde pequena que adoro comer. Ainda hoje, metam-me um
prato de comida à frente e fico feliz! Nunca passei fome, mas
comíamos o que havia e sempre que aparecia alguma coisa
que não era habitual, fazíamos uma festa. Bolo de aniversário:
maravilha! Carne, quer fosse frango ou porco, era uma alegria!
Como vivíamos em quartos de residenciais, fazíamos a chamada
comida de tacho – a única possível de cozinhar na pequena placa
elétrica que a minha mãe levava e usava às escondidas –, que não
era mais do que um tacho com a comida que a carteira permitia
ter. Podia ser frango com massa, jardineira, massa com feijão,
arroz de salsichas, refeições
baratas e simples de cozinhar.
Além disso, era comida que se
conservava mais tempo fora do
frigorífico, um eletrodoméstico
que por vezes os quartos tinham,
mas era tão pequeno que só
cabia o leite e pouco mais.
O Nestum e a Maizena eram
os nossos fiéis companheiros,
muitas vezes durante toda
a semana. Isso e sopas de
leite. Fecho os olhos e ainda
me lembro do sabor do pão
com açúcar, já meio duro, mas
amolecido pela força do leite.
De tudo o que comíamos, só a
açorda me desgostava. Até chorava para a comer! Ainda hoje,
é das poucas coisas para as quais não vale a pena convidarem-
me. Não consigo mesmo.
No jardim de São Pedrode Alcântara, com 10 anos.
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A minha mãe era a comandante daquela tropa e nunca
nos faltou o que comer, mas houve períodos muito difíceis. Por
vezes, passavam-se dias em que sentia a minha mãe do lado
de lá da porta do quarto, a deixar-nos caixas de papa, leite e
pão, antes de sair de novo para tentar arranjar dinheiro para
nós. Como tinha a renda em atraso, o dono da residencial não a
deixava entrar enquanto não pagasse.
Apesar de tudo, tenho memória de momentos em que nos
senti muito próximas. Só adormecia com ela a fazer-me cafuné.
Com uma mão fazia-me festas no cabelo, a outra mão estava
presa na minha, agarrada por mim com medo que ela se fosse
embora e me deixasse sozinha. E antes de fechar os olhos e
pegar no sono, pensava: “Um dia vai ser diferente, eu sei que
vai!” Não me perguntem como, mas, aos seis, sete anos, eu
sabia que o nosso futuro haveria de ser melhor.
Como todas as crianças, as brincadeiras na rua eram tudo.
Punha-me em cima de placas de madeira e atirava-me de
ribanceiras, sem nenhuma noção de perigo. Perdia as horas,
deixava-me ir na brincadeira com os meus amigos. O mesmo
acontecia na escola, adorava lá estar. Eram alturas em que me
esquecia de que a minha vida não era igual à das crianças da minha
idade, era um ponto de fuga de tudo o que via e não gostava.
Cresci com o sonho de ter uma casa e, nos piores
momentos, nunca perdi a esperança de que as coisas
melhorassem e nós pudéssemos, um dia, viver todos
juntos, numa casa com uma televisão na sala de estar
e uma mesa grande cheia de comida.
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Apesar das muitas dificuldades por que passámos, acredito
com todas as minhas forças que o dinheiro nunca é o maior
problema. Termo-nos uns aos outros, da forma que soubermos
ser uns dos outros, isso sim, é tudo. Uma criança precisa de
amor, estabilidade, segurança, respeito, e isso nem sempre
existiu comigo.
Sei que, com tudo o que vivi, poderia, facilmente, ter-me
tornado uma delinquente. O ambiente à minha volta era propício
a isso, era o caminho mais fácil, mas a minha vontade férrea de
ter uma vida melhor, mais feliz, para mim e para a minha família,
sempre falou mais alto. Sonhava com uma casa para todos nós
e, hoje, adoro a minha casa (adorei todas aquelas em que vivi,
no tempo certo), adoro estar em casa e adoro até o som da
palavra casa. É um lugar de amor, onde vou buscar energia e
paz, fonte de aconchego e serenidade.
Hoje sei que o caminho que os meus pais escolheram para
eles, e que nos afetou de forma clara e para sempre, não foi o mais
correto, mas aceitei-o. Ainda tenho lembranças menos boas, mas
estou cada dia a aprender a lidar com elas. Há cinco anos, decidi
pedir ajuda e recorri à psicanálise. Aconselho quem queira e
possa a fazer o mesmo. Todos precisamos de alguém com quem
falar, desabafar sobre o que nos pesa e entristece. E, acreditem,
há coisas na nossa história que não fazemos ideia de quanto nos
afetam no dia a dia. A determinada altura, precisei que alguém
neutro me ajudasse, sem me julgar, a pensar sobre tudo isto, a
dar uma ordem às recordações, a desatar nós e, sobretudo, a
encontrar respostas para as perguntas que carreguei comigo até
então. Sei hoje que não terei respostas para tudo, mas vivo com
uma maior noção do modo como a minha infância e as escolhas
dos meus pais influenciaram, positiva e negativamente, o meu
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caminho e a minha relação com os outros. Sou o que sou, de
bom e de mau, para o bem e para o mal, por causa do que vivi.
Somos todos. A minha história não se apaga, mas começo a
saber viver com ela e a resolvê-la na minha cabeça.
Com 15 anos, na varanda de um dos sítios onde morámos, armada em top model.
(vamos fingir que não estamos a ver a sombra azul nos meus olhos)