Conflito, Conciliação e Mediação Valéria Ferioli Luchiari

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v.2, n.1, 2012 67 Revista de Ciências Jurídicas e Sociais CONFLITO, CONCILIAÇÃO E MEDIAÇÃO CONFLICT, CONCILIATION AND MEDIATION Valeria Ferioli Lagrasta Luchiari 1 1 Juíza de Direito da 2ª Vara da Família e das Sucessões da Comarca de Jundiaí e Coordenadora do Setor de Conciliação e Mediação da mesma Comarca; membro da Comissão Especial de Padronização dos Procedimentos Cartorários do TJ/SP. 2 Para saber mais sobre o conflito e os métodos autocompositivos e heterocompositivos de solução de conflitos, vide LAGRASTA LUCHIARI, Valeria Ferioli. Conciliação e Mediação como Técnicas de Solução de Conflitos. In: HONÓRIO, Maria do Carmo, DE OLIVEIRA, José Anselmo (Org.). Sistema dos Juizados Especiais. São Paulo: Millenium Editora, 2011. Para entender os métodos consensuais de solução de conflitos, entre os quais, a conciliação e a mediação, necessário, antes, entender o conflito 2 . O homem, pela sua natureza, se aproxima de seus semelhantes e com eles convive, estabelecendo relações duradouras, permanentes, pacíficas e de pleno entendimento. Entretanto, com o tempo e a convivência, são introduzidos outros elementos nos inter-relacionamentos, como a animosidade, a competição, a contenciosidade, etc, nascendo percepções diferentes, que acabam por deflagrar conflitos. Assim, o conflito existe e é inevitável, caracterizando-se como um processo frente a qualquer situação de mudança. Nesse diapasão, pode-se dizer que o indivíduo pressupõe uma determinada atitude de seu contrário em relação a si (pressuposição que pode estar totalmente ou parcialmente errada) e é baseado nessa expectativa que orienta sua conduta, o que é suficiente para o surgimento de consequências relativas ao desenvolvimento da ação e à forma da relação. Então, conflito é um choque de posições divergentes, ou seja, de intenções, condutas diferentes, que aparecem num momento de mudança na vida de uma ou de ambas as partes. E, de forma simplista, pode-se dizer que o conflito é o resultado normal das diferenças humanas e da insatisfação de suas necessidades. Na visão do conflitante é algo negativo, que surge quando há uma alteração no seu ritmo “natural” de vida (rompimento do equilíbrio), e que às vezes, é inerente à sua própria evolução. E não se pode olvidar dos conflitos intrapsíquicos, ou seja, aspectos e motivações ocultas, que ficam atrás do conflito manifesto e encobertas pelo mesmo. A jurisdição estatal é o meio ordinário para a solução do conflito, cabendo aos envolvidos optarem por buscar a solução amigável (através de métodos autocompositivos) ou provocar a jurisdição (e o poder que lhe é inerente), pois ambos coexistem e possuem um escopo maior, que é a restauração da paz social. De tudo o que foi dito, não se pode deixar de lado que, na interação contínua e diária, o conflito está latente em todos os ambientes, e que, por mais estranho que possa parecer, sem conflito não há crescimento. Desta forma, é de acordo com o modo de como se dá seu enfrentamento que sensações, em princípio, negativas, de repulsa ou omissão do conflito, poderão ser suportadas, sendo substituídas por experiências bem sucedidas de oportunidades de crescimento e bem estar interior. Então, como todo relacionamento humano, em maior ou menor grau, apresenta conflitos, todas as sociedades, das mais primitivas às mais institucionalizadas, possuem mecanismos para sua

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Meios alternativos de soluções de conflitos

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    Revista de Cincias Jurdicas e Sociais

    CONFLITO, CONCILIAO E MEDIAO

    CONFLICT, CONCILIATION AND MEDIATION

    Valeria Ferioli Lagrasta Luchiari1

    1 Juza de Direito da 2 Vara da Famlia e das Sucesses da Comarca de Jundia e Coordenadora do Setor de Conciliao e Mediao da mesma Comarca; membro da Comisso Especial de Padronizao dos Procedimentos Cartorrios do TJ/SP.

    2 Para saber mais sobre o conflito e os mtodos autocompositivos e heterocompositivos de soluo de conflitos, vide LAGRASTA LUCHIARI, Valeria Ferioli. Conciliao e Mediao como Tcnicas de Soluo de Conflitos. In: HONRIO, Maria do Carmo, DE OLIVEIRA, Jos Anselmo (Org.). Sistema dos Juizados Especiais. So Paulo: Millenium Editora, 2011.

    Para entender os mtodos consensuais de soluo de conflitos, entre os quais, a conciliao e a mediao, necessrio, antes, entender o conflito2.

    O homem, pela sua natureza, se aproxima de seus semelhantes e com eles convive, estabelecendo relaes duradouras, permanentes, pacficas e de pleno entendimento. Entretanto, com o tempo e a convivncia, so introduzidos outros elementos nos inter-relacionamentos, como a animosidade, a competio, a contenciosidade, etc, nascendo percepes diferentes, que acabam por deflagrar conflitos.

    Assim, o conflito existe e inevitvel, caracterizando-se como um processo frente a qualquer situao de mudana. Nesse diapaso, pode-se dizer que o indivduo pressupe uma determinada atitude de seu contrrio em relao a si (pressuposio que pode estar totalmente ou parcialmente errada) e baseado nessa expectativa que orienta sua conduta, o que suficiente para o surgimento de consequncias relativas ao desenvolvimento da ao e forma da relao.

    Ento, conflito um choque de posies divergentes, ou seja, de intenes, condutas diferentes, que aparecem num momento de mudana na vida de uma ou de ambas as partes. E, de forma simplista, pode-se dizer que o conflito o resultado normal das diferenas humanas e da insatisfao de

    suas necessidades.Na viso do conflitante algo negativo, que surge

    quando h uma alterao no seu ritmo natural de vida (rompimento do equilbrio), e que s vezes, inerente sua prpria evoluo.

    E no se pode olvidar dos conflitos intrapsquicos, ou seja, aspectos e motivaes ocultas, que ficam atrs do conflito manifesto e encobertas pelo mesmo.

    A jurisdio estatal o meio ordinrio para a soluo do conflito, cabendo aos envolvidos optarem por buscar a soluo amigvel (atravs de mtodos autocompositivos) ou provocar a jurisdio (e o poder que lhe inerente), pois ambos coexistem e possuem um escopo maior, que a restaurao da paz social.

    De tudo o que foi dito, no se pode deixar de lado que, na interao contnua e diria, o conflito est latente em todos os ambientes, e que, por mais estranho que possa parecer, sem conflito no h crescimento. Desta forma, de acordo com o modo de como se d seu enfrentamento que sensaes, em princpio, negativas, de repulsa ou omisso do conflito, podero ser suportadas, sendo substitudas por experincias bem sucedidas de oportunidades de crescimento e bem estar interior.

    Ento, como todo relacionamento humano, em maior ou menor grau, apresenta conflitos, todas as sociedades, das mais primitivas s mais institucionalizadas, possuem mecanismos para sua

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    soluo a fim de harmonizar o tecido social.E, se durante muito tempo, a heterocomposio

    e a autocomposio foram considerados instrumentos prprios das sociedades tribais e primitivas, enquanto a jurisdio estatal refletia grande avano da civilizao, hoje surge o interesse pelo resgate das vias alternativas ao processo, capazes de evit-lo ou encurt-lo, embora no o excluam necessariamente.

    Em resumo, afastando-se a autotutela, como meio egosta e pouco civilizado de soluo de conflitos, verificam-se duas formas de soluo pacfica dos conflitos: a autocomposio e a heterocomposio. Esta tambm definida como mtodo adversarial de soluo de conflitos, se levada em conta a postura das partes frente ao conflito, caracteriza-se pelo enfrentamento das partes e pela imposio de uma deciso por um terceiro (rbitro, se escolhido pelas prprias partes, ou juiz), na qual um ganha e o outro perde. Aquele como mtodo no adversarial de soluo de conflitos, caracteriza-se por uma busca conjunta das partes de um resultado que atenda aos interesses de ambas, atravs do dilogo, prevalecendo a cooperao sobre a competio, ou seja, a obteno da soluo por obra dos prprios litigantes, podendo ser obtida espontaneamente ou aps o incentivo praticado atravs de mecanismos apropriados.

    A autocomposio recebe a dimenso processual quando fruto da conciliao realizada em juzo ou quando as partes autocompostas fora do processo resolvem levar o acordo para o processo, visando homologao judicial. Ento, a autocomposio judicial no somente aquela cujas tratativas se realizam em juzo, atravs da atividade jurisdicional de conciliao, de rgos auxiliares da justia ou de organismos especificamente criados para esse fim, mas, igualmente, a que efetivada pelas partes em quaisquer circunstncias, com a participao posterior e conclusiva do juiz. a composio negociada da lide, caracterizada pela opo das partes de evitar a sentena (ato judicial de cognio e deciso),

    apresentando, elas mesmas, a soluo para o conflito.Desta forma, a conciliao um mecanismo

    para a obteno da autocomposio, mas que no se confunde com esta, que pode ser obtida atravs de outros mecanismos de soluo de conflitos e ser levada a juzo para homologao, passando a ser denominada de autocomposio judicial.

    A conciliao, como mecanismo de soluo de conflitos, a atividade desenvolvida por um terceiro facilitador, que domina a escuta, para incentivar, facilitar e auxiliar as partes a se autocomporem, adotando metodologia que permite a apresentao de proposies s mesmas, visando obteno de um acordo. E um mtodo autocompositivo, pois apesar da presena de um terceiro, este apenas atua como facilitador e condutor do processo de composio, no detendo o poder de deciso.

    Em outras palavras, a conciliao o mtodo de soluo de conflitos, no qual um terceiro imparcial, que domina a escuta, sem forar as vontades dos participantes, investiga apenas os aspectos objetivos do conflito e sugere opes para sua soluo, estimulando-os celebrao de um acordo.

    A conciliao, ento, til para a soluo rpida e objetiva de problemas superficiais (verdade formal ou posio), que no envolvem relacionamento entre as partes, no tendo, portanto, a soluo encontrada repercusso no futuro das vidas dos envolvidos. E, assim, diferencia-se da mediao, na medida em que apresenta procedimento mais simplificado, no tendo o conciliador que investigar os verdadeiros interesses e necessidades das partes, subjacentes ao conflito aparente.

    Importante deixar consignado, por fim, que na literatura especializada, principalmente nos Estados Unidos da Amrica, a conciliao, como tcnica de soluo de conflitos, vem absorvida pela mediao, o que se d basicamente por gerar o termo conciliao certa confuso com eventual propsito de reconciliao, como nos casos de separao de casais, entre outros.

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    A mediao, por sua vez, um meio de soluo de conflitos, no qual um terceiro facilitador, num ambiente sigiloso, auxilia as partes em conflito no restabelecimento do dilogo, investigando seus reais interesses, atravs de tcnicas prprias, e fazendo com que se criem opes, at a escolha da melhor, chegando as prprias partes soluo do problema, o que redunda no seu comprometimento com esta ltima.

    Esse terceiro imparcial, ao buscar a reconstruo da comunicao entre as partes e a identificao do conflito, estimula a negociao (cooperativa), sendo as prprias partes as responsveis pela obteno de um eventual acordo.

    Em outras palavras, a mediao um processo cooperativo, que leva em conta as emoes, as dificuldades de comunicao e a necessidade de equilbrio e respeito dos conflitantes e que pode resultar num acordo vivel, fruto do comprometimento dos envolvidos com a soluo encontrada.

    Para tanto, exige-se que os participantes sejam plenamente capazes de decidir, pautando-se o processo na livre manifestao da vontade dos participantes, na boa-f, na livre escolha do mediador, no respeito e cooperao no tratamento do problema e na confidencialidade. Esta ltima pressupe que as questes discutidas numa sesso de mediao sejam cobertas pelo sigilo, que compreende o mediador e as partes.

    Em princpio, todos os conflitos interpessoais podem ser trabalhados na mediao e, se esta no culminar num acordo, pelo menos os participantes tero esclarecido o conflito e aprendido a dialogar entre si de forma respeitosa e produtiva, pois o verdadeiro objetivo do mediador no obter um acordo, mas sim restabelecer o dilogo entre as partes, permitindo que melhorem o relacionamento, para que, por si ss, cheguem s solues de seus problemas.

    Assim, como a mediao visa, em ltima anlise, a pacificao dos conflitantes, seus recursos tcnicos

    so utilizados, inclusive, como estratgia preventiva, criando ambientes propcios colaborao recproca, com o objetivo de evitar a quebra da relao entre as partes. E, por esse motivo, a mediao representa uma fuso das teorias e das prticas das disciplinas da psicologia, assessoria, direito e outros servios do campo das relaes humanas, sendo interdisciplinar.

    A utilizao dos dois institutos acima definidos (conciliao e mediao) foi recentemente disciplinada pela Resoluo n 125, de 29 de novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justia, que institui a Poltica Judiciria Nacional de tratamento adequado de conflitos de interesses, tendo como cerne o acesso justia.

    E, realmente, a conciliao e a mediao so instrumentos de pacificao social, pois atravs deles, possibilita-se s partes uma soluo clere, justa e adequada do seu conflito, que na maioria das vezes, definitiva, j que h o comprometimento com a soluo encontrada.

    Concluindo, pode-se dizer, que o acesso justia como acesso ordem jurdica justa (expresso cunhada pelo Professor Kazuo Watanabe), ou seja, acesso no apenas ao Poder Judicirio, mas a uma soluo clere, justa e adequada para o conflito, apenas ser alcanado com a utilizao dos mtodos consensuais de soluo de conflitos, entre os quais se encontram a conciliao e a mediao; alterando-se, com isso, a imagem do Poder Judicirio, passando a ser um prestador de servio que atende aos anseios da comunidade!

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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