Confrarias de Buenos Aires

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CONFRARIAS DE BUENOS AIRES: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE AS IRMANDADES PORTENHAS EM FINS DO SÉCULO XVIII Álvaro de Souza Gomes Neto RESUMO As irmandades ou confrarias eram corporações que serviam como instrumentos ou veículos para a consolidação do cristianismo, enquanto representante da ideologia dominante. Ao mesmo tempo, eram lugares de resistência social e de dissolução cultural da população negra da Buenos Aires do século XVIII. Essas confrarias eram pontos de encontros, espaços de sociabilidade, de definição de identidades grupais, de apoio material e solidariedade entre seus membros de origem africana. Contudo, eram também pontos de dissolução do negro enquanto cultura sem a influência branca. As irmandades evidenciaram as dificuldades das relações entre as populações branca e negra, na Buenos Aires do período colonial. Palavras-chave: Buenos Aires, irmandades, população negra. Um dos instrumentos mais significativos de que os africanos e afrodescendentes de Buenos Aires, enquanto cativos e forros, se valeram para reconhecerem-se a si mesmos foi a sua identificação em nações, demonstrada através das confrarias. Foi nessa forma de associação que os afroportenhos, organizados segundo certos critérios, conseguiram ver, retratados em seus atos, representações da sua própria imagem. Quando Cuche (1999: 190) nos diz que “todo o esforço das minorias consiste em se reapropriar dos meios de definir sua identidade, segundo seus próprios critérios”, está reafirmando a importância das confrarias como instrumentos usados pelo negro na busca dessa definição de si mesmo. Foi através das irmandades religiosas que os africanos e afrodescendentes puderam criar e manter um universo de valores, teoricamente apartados das regras a que eram submetidos. Falamos teoricamente porque, na prática, as confrarias estavam sujeitas a regulamentos, a vontades e deliberações vindas tanto do Estado quanto da comunidade senhorial em geral, embora, internamente, aqueles pudessem racionalizar atos que os isolavam dessas regras exógenas. Dessa forma, apesar das imposições, os afroportenhos conseguiam, mesmo que momentaneamente, viver segundo as suas próprias decisões, procurando preservar uma cultura que sofria, aos poucos, um processo de diluição e/ou de sincretismo, através da religião praticada nas confrarias. Apesar disso, o processo de organização interna, dessas irmandades, apresentava- se composto por um grau de complexidade variável, muitas vezes impedindo ou retardando interações necessárias entre seus membros. Karasch (2000), citando os escravos do Rio e Janeiro, diz que a primeira base para a interação grupal era a origem étnica africana, sendo, depois, com as novas nações baseadas em um passado étnico comum, que era estabelecido nas irmandades negras.

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O texto trata da formação das confrarias de negros (escravos e libertos) em Buenos Aires no século XIX, tratando esses espaços como focos de resistência ao sistema escravista e instrumentos de busca de identidade, inserido numa sociedade discriminatória e violenta.

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  • CONFRARIAS DE BUENOS AIRES: ALGUMAS CONSIDERAES SOBRE AS IRMANDADES PORTENHAS EM FINS DO SCULO XVIII

    lvaro de Souza Gomes Neto

    RESUMO

    As irmandades ou confrarias eram corporaes que serviam como instrumentos ou veculos para a consolidao do cristianismo, enquanto representante da ideologia dominante. Ao mesmo tempo, eram lugares de resistncia social e de dissoluo cultural da populao negra da Buenos Aires do sculo XVIII. Essas confrarias eram pontos de encontros, espaos de sociabilidade, de definio de identidades grupais, de apoio material e solidariedade entre seus membros de origem africana. Contudo, eram tambm pontos de dissoluo do negro enquanto cultura sem a influncia branca. As irmandades evidenciaram as dificuldades das relaes entre as populaes branca e negra, na Buenos Aires do perodo colonial.

    Palavras-chave: Buenos Aires, irmandades, populao negra.

    Um dos instrumentos mais significativos de que os africanos e afrodescendentes de Buenos Aires, enquanto cativos e forros, se valeram para reconhecerem-se a si mesmos foi a sua identificao em naes, demonstrada atravs das confrarias. Foi nessa forma de associao que os afroportenhos, organizados segundo certos critrios, conseguiram ver, retratados em seus atos, representaes da sua prpria imagem. Quando Cuche (1999: 190) nos diz que todo o esforo das minorias consiste em se reapropriar dos meios de definir sua identidade, segundo seus prprios critrios, est reafirmando a importncia das confrarias como instrumentos usados pelo negro na busca dessa definio de si mesmo.

    Foi atravs das irmandades religiosas que os africanos e afrodescendentes puderam criar e manter um universo de valores, teoricamente apartados das regras a que eram submetidos. Falamos teoricamente porque, na prtica, as confrarias estavam sujeitas a regulamentos, a vontades e deliberaes vindas tanto do Estado quanto da comunidade senhorial em geral, embora, internamente, aqueles pudessem racionalizar atos que os isolavam dessas regras exgenas. Dessa forma, apesar das imposies, os afroportenhos conseguiam, mesmo que momentaneamente, viver segundo as suas prprias decises, procurando preservar uma cultura que sofria, aos poucos, um processo de diluio e/ou de sincretismo, atravs da religio praticada nas confrarias. Apesar disso, o processo de organizao interna, dessas irmandades, apresentava-se composto por um grau de complexidade varivel, muitas vezes impedindo ou retardando interaes necessrias entre seus membros. Karasch (2000), citando os escravos do Rio e Janeiro, diz que a primeira base para a interao grupal era a origem tnica africana, sendo, depois, com as novas naes baseadas em um passado tnico comum, que era estabelecido nas irmandades negras.

  • As irmandades brancas

    A criao de confrarias no foi, inicialmente, privilgio de escravos e negros livres, mas

    sim de grupos crioulos pertencentes, na maioria das vezes, s elites locais, existentes em todo o continente colonial espanhol e portugus. Vrios autores estudaram essas associaes sob muitos pontos de vista, estabelecendo relaes que chegaram desde o intuito de preservar a religio catlica, at manter sob certo nvel de comportamento, os trabalhadores enquadrados numa estrutura econmica dominada por certos grupos, ligando-os para isso, com as prticas religiosas. Eram dedicadas a um santo especfico, associados a igrejas paroquiais locais, proporcionando vnculos de unio espiritual e social (Rosal, 1981; Molas, 1988; Barcel, 1974).

    Num primeiro momento, participavam das confrarias os membros crioulos, ou seja, os confrades eram os que compunham a parcela social dominante, que vivia da extrao do trabalho escravo, e praticava a discriminao das castas. Preservando-se os princpios religiosos, as confrarias revelavam-se como meios de preservar tambm a estratificao social, na medida em que delimitavam sua formao a critrios seletivos. Isto aconteceu no apenas na rea urbana, mas tambm na rural.

    Em Buenos Aires, a solicitao para formar a primeira confraria foi feita em 1750, por um grupo de homens e mulheres pertencentes elite portenha. O pedido foi dirigido ao cabido eclesistico, para erigir, junto Catedral, a Irmandade da Me de Deus e das Benditas Almas do Purgatrio. A confraria teria a Virgem Maria como padroeira, e seria aberta a sacerdotes e seculares, homens e mulheres, de Regla y norma. As mulheres, no entanto, no teriam direito de voto, nem poderiam assistir as reunies dos confrades. Alm disso, para ser aceito na confraria, o membro deveria ter sangue limpo, ser de bons costumes e no realizar ejercicio vil. Essa confraria tinha trs pontos bsicos: culto e glorificao da Virgem, a ajuda s almas do Purgatrio, e fornecer conforto espiritual aos seus membros (AGN, Manuscritos).

    Vemos que j na primeira confraria fundada em Buenos Aires, a discriminao persistia, ratificada pela no admisso de membros que tivessem qualquer trao de sangue impuro, embora no estivesse estabelecido que critrios seriam utilizados para identificar os confrades aptos ao ingresso. Inferimos que deveria ser pela linhagem, baseada na genealogia familiar, pelos traos fsicos (cor da pele, cabelos, nariz etc), e pelas ligaes sociais, que eventualmente, deveriam ser excludentes.

    Na mesma linha, citamos um documento, datado de 1785, onde encontramos o regulamento pertencente s Hermandades de Animas, estabelecida em Buenos Aires, junto Santa Iglesia Catedral , e a outras parquias da cidade, no qual um dos captulos versava sobre o item limpeza de sangue. O referido captulo, intitulado De las personas que han de admitirse a la hermandad, v-se que entre os critrios estabelecidos para ingresso de membros da confraria, o principal refere-se limpieza de sangre. O texto afirma que, para um corpo qualquer subsistir, necessria a proporo e correspondncia de seus membros, sem a qual lhe faltaria toda a beleza que deveria ter, e este se tornaria ingrato e at monstruoso. Diz ainda que seria fundamental que as pessoas (de ambos os sexos) admitidas na irmandade, no somente fossem crists, piedosas e devotas, mas tambm de qualificada limpeza de sangue e qualidade (AGN, IX-31-8-7). Esses critrios discriminatrios funcionaram, em determinados lugares, como meios institucionais atuantes no processo de hierarquizao das relaes sociais. Atentamos para o perodo entre um e outro documento citado, que era de 35 anos, cujos regulamentos de pureza de sangue persistiram,

  • atestando que, de resto, as confrarias que foram fundadas sob esse critrio, permaneceram mantendo-os.

    As confrarias compostas pelas elites portenhas e brancos em geral acabaram por entrar em franco declnio para fins do sculo XVIII. J pela lista de membros da confraria de Nossa Senhora do Rosrio, podemos perceber que a maioria de seus membros tinham a profisso de artesos, denotando uma desqualificao social, e a conseqente excluso voluntria das camadas mais abastadas (AGN, IX-7-10-8). Socolow (1991) aponta como causa principal desse declnio, o crescente interesse que as confrarias despertavam na populao negra da cidade. Porm, outra instituio religiosa aparecia para substituir as confrarias, nas ligaes dos brancos com a Igreja: era a Terceira Ordem. Esta instituio englobava, paulatinamente, comerciantes de status alto e mdio, oficiais militares e empregados pblicos. A diferena era que estas no estavam vinculadas a parquias, nem sob o controle do clero secular, mas colocavam-se sob a gide da ordem provincial regular.

    No s em Buenos Aires e arredores, mas em toda o continente americano, as confrarias eram compostas por brancos ou negros, com normas de seleo claras. A questo que refora o controle social relaciona-se a quais parquias estavam as confrarias. A importncia da parquia, sua localizao e seus fiis, determinavam que tipo de confraria iria ser a ela associada. Na Igreja Central e demais parquias localizadas em reas onde residiam as elites, naturalmente existia as irmandades brancas, com seus critrios de ingresso seletivo (Ortiz, 1996; Saco, 1982).

    Na documentao do perodo colonial argentino, os termos confraria e irmandade aparecem alternadamente, e a distino entre eles se faz intangvel, j que ambos so citados de modo indistinto. Assim, tanto um quanto outro termo, pode ser considerado como sendo representante de um nico tipo de associao, no havendo, com isso, nenhum critrio de diferenciao. Dessa forma, ambos os termos sero referenciados ao longo desse ensaio, como sinnimos.

    As confrarias, por sua vez, podiam colocar-se sob o controle de outra confraria maior, a arquiconfraria, e participar dos privilgios a ela outorgados pelo papado como, por exemplo, certas indulgncias, estendendo, dessa forma, os benefcios aos confrades de vrios cantos do mundo. Em Buenos Aires, as confrarias do Rosrio gozavam desses privilgio, porque estavam agregadas a Arquiconfraria do Rosrio, que tinha alcance em toda a rea catlica. Essa situao favorecia a mobilidade de seus membros de uma associao a outra, dentro da corporao, principalmente quando os confrades europeus viajavam s cidades coloniais americanas. As confrarias relacionavam-se com a prtica do culto catlico, e estavam colocadas sob o controle de uma parquia qualquer. Assim, os membros das diversas naes, puderam fundar confrarias, com a devida permisso do proco da Igreja escolhida por eles, na inteno de prestar homenagens aos santos catlicos.

    Entre as confrarias mais importantes de Buenos Aires, registramos: Santssimo Rosrio (que tinha por sede a Igreja de Santo Domingo); Santa Rosa de Viterbo, So Benito e So Francisco Solano (que estavam localizadas na Igreja de So Francisco); So Baltazar (situada na Igreja da Piedade) e a confraria do Socorro, que ficava junto Igreja da Merced (AGN, IX-31-4-6). Em documento, datado de 1793, consta uma solicitao para fundar uma confraria dedicada a So Crispin e So Crispiano, por parte dos mestres sapateiros portenhos, sem que a mesma tenha sido criada posteriormente (AGN, IX-30-7-4). Alm dessas, havia outras confrarias, citadas por alguns autores, associadas a parquias mais distantes e menos importantes, cuja documentao escassa, tais como a de Santa Rosa, So Benito e a de So Francisco Solano.

  • Assim, foi privilgio das elites portenhas, a criao das irmandades religiosas em Buenos Aires, cuja constituio, posteriormente, ser de escravos e afrodescendentes, com as camadas dominantes migrando para associaes de maior projeo social.

    As irmandades negras

    A primeira confraria composta por afroportenhos, fundada em Buenos Aires, foi a de So Baltasar, em 1771, dependente da Igreja da Piedade (Iglesia de la Piedad), autorizada pelo arcebispo da cidade. Tinha como protetor So Baltasar, de cor negra, identificado como sendo um dos trs reis magos que visitaram Jesus quando do seu nascimento. So Baltazar, assim, tinha para os membros da irmandade, uma relao tnica. A confraria estava localizada do lado de fora da Igreja da Piedade, com um cemitrio situado tambm ao lado da Igreja, separado daquele utilizado pelos brancos. Essa informao foi conseguida em documento, datado de 1771, ano da fundao dessa confraria, em que o Bispo de Buenos Aires ordena que os negros construssem um cementerio espacioso ao lado da Igreja da Piedade (AGN, IX-31-8-5). Vale ressaltar porm que, em relao cor da pele, no pudemos identificar de forma exata a composio do quadro social da confraria de So Baltasar. Segundo Mariza Soares (2000,29), no Brasil, no sculo XVIII, a inscrio social se faz, em primeiro lugar, pela cor. As elites so supostamente brancas e de sangue limpo. Os pretos so escravos ou forros, raramente livres. Entre uns e outros, os pardos. Parece que o mesmo se deu para Buenos Aires (talvez para a Amrica espanhola como um todo), j que os registros citam pardos, morenos e/ou negros quando se referem aos associados da confraria de So Baltasar. Nesse caso, a cor da pele ainda no distingue a condio social, sendo esta considerao vigente apenas no sculo XIX.

    Conforme Rosal (1984), que examinou testamentos de afroportenhos, identificando suas ligaes com as irmandades religiosas, a composio tnica destas apresenta difcil identificao. No caso da confraria de So Baltasar, no encontramos nos registros, qualquer meno s origens de seus associados, e em relao s outras, Rosal cita dados retirados de cinco irmandades, obtidos atravs do exame dos testamentos:

    Lugar de Nascimento Smo. Rosario Sta.Rosa Socorro Sn.Benito Sn.Fco.SolanoBuenos Aires 10 18 8 3 2Amrica 4 6 _ _ 2frica 29 (a) _ 6 (b) 5 (c) _Sem indicao 44 21 16 10 2 Quantidade de afiliados s confrarias portenhas segundo procedncia atravs de dados obtidos em testamentos de afroportenhos (Rosal, 1984, 373).

    (a) 15: Congo; 12: Guin; 2: sem especificao.(b) 2: Congo: 4: Guin; (c) 3: Congo; 1: Guin; 1: sem especificao.

    As cifras gerais so, pois:Buenos Aires: 41 (22%)Amrica: 12 (7%)frica: 40 (21%)Sem indicao: 93 (50%)

  • Vemos ento que, conforme os dados, metade dos afiliados s confrarias, no possvel identificar suas origens tnicas. Para o restante, a maioria nasceu em algum lugar da Amrica (sem indicar exatamente onde), com boa parte nascida em Buenos Aires. Apenas 42 % dos componentes das irmandades nasceram na frica, faltando dados para completar esses nmeros, j que nem a irmandade Santa Rosa nem a Francisco Solano indicam os oriundos do continente africano. Esses dados, no entanto, so um tanto confusos, pois ao mesmo tempo em que o autor fala em origem tnica, cita o lugar de onde os africanos vieram, o que no , necessariamente, a mesma coisa. Muitas vezes o escravo era levado costa do Congo ou da Guin para ser embarcado e transportado Amrica, podendo ser originado de lugares muito distantes destes dois portos de trfico de escravos. Da torna-se importante ressaltar que nem sempre o lugar de donde eram embarcados os escravos era tambm o seu lugar de nascimento ou identificava a que etnia pertencia (ver Costa e Silva, 1996; 2002). De qualquer forma, os dados acima ajudam, mesmo que opacamente, a perceber a composio em termos de grupos, de algumas das irmandades buenairenses. Por outro lado, o estudo das identidades tnicas dos grupos que formavam as irmandades , por si s, uma tarefa bastante complexa. Mariza Soares (2000), comenta que, entre 1448 e 1482, a costa ocidental africana passa a ser denominada Guin, trocando uma antiga definio de carter topogrfico por uma complexidade de elementos compsitos que misturam relaes de comrcio, etnias, fases de conquista e lugares dos mais diversos, ratificando a dificuldade em se tratar o tema referente s etnias e origens dos escravos africanos.

    De outro lado, de um modo geral, as preferncias de devoo da raa africana, recaam sobre So Benito de Palermo, de origem etope e pele escura, e So Baltasar, o rei mago negro. Rosal (1981) afirma que possvel que a devoo aos santos negros tivesse sido mais intensa entre a massa escravizada, que entre os negros de condio livre. Assim, o estrato superior dos afroportenhos havia preferido os santos de maior categoria, de cor branca. Essa preferncia aumentou em proporo a partir de 1820.

    No regulamento da confraria de So Baltasar, nico documento que existe no Archivo General de la Nacin, de Buenos Aires, de forma completa, permite-nos conhecer alguns costumes e aes praticados por seus associados. Essa confraria, no que pese as boas intenes, restringia a participao da camada senhorial, salvo excees. Assim, estipulava-se que no sern admitidos los seores espaoles a no ser que respecto de alguno, por especial inclinacin y benefcios hechos a la hermandad, si a la junta de oficiales y al padre capelln les pareciere conveniente, podr ser admitido(AGN, IX-31-8-5). Essa conveno, discriminatria em relao ao branco espanhol, concedia ingresso, no entanto, aos ndios, numa demonstrao de que as etnias discriminadas, se desejassem, poderiam unir-se contra as elites dominantes, embora tal possibilidade jamais tenha se efetivado.

    No entanto, para ingresso nas confrarias havia uma ressalva, muitas vezes tida como regra geral: o ofcio de sndico da confraria tinha que ser exercido por um espanhol. Isso significa que a tarefa de superviso das confrarias, deveria ser realizada, necessariamente, por algum alheio aos negros, ou seja, um indivduo que no pertencia etnicamente ao grupo, e estivesse ligado, de alguma forma s elites brancas. Essa superviso, normalmente, sujeitava-se apenas guarda do dinheiro arrecadado pela confraria, advindo de esmolas e doaes. O sndico estava sob a ordem direta do capelo da parquia, que o nomeava, e que mantinha estreito controle e poder absoluto, sobre toda a confraria afiliada a sua igreja. Pode-se perceber que o sndico e o capelo exerciam,

  • efetivamente, o controle dos membros das confrarias. Comprovamos isso quando vemos que nos regulamentos aparece especificado o poder exercido pelos procos, atravs do cerceamento das atitudes dos confrades. Nas reunies, por exemplo, ningum podia tomar a palavra, sem a permisso do proco. Alm disso, os gastos da confraria deveriam ser aprovados tambm pelo sacerdote, e liberados pelo sndico, elemento branco e estranho aos membros da associao (AGN, IX-31-8-5).

    A permisso aos indgenas no foi privilgio s da irmandade de So Baltasar, mas encontramos regulamentos que no ofereciam restries a scios, como o da confraria de Nossa Senhora dos Remdios. Essa associao permitia o ingresso de qualquer pessoa, siempre que fueran de buenas costumbres y conocieran la doctrina cristiana, de cualquier sexo, raza, condicin, com una sola salvedad: los esclavos deban tener licenia de sus amos para pertenecer a la confrada(AGN, IX-31-6-2).

    Por sua vez, para ingressar na irmandade de So Baltasar, o membro escravo deveria receber autorizao de seu senhor, e pagar dois pesos de taxa. Solicitava-se aos associados que contribussem regularmente com determinada quantia em dinheiro, que era destinada a financiar uma missa por semana, os atos relativos doutrina crist, e trs missas especiais, que seriam rezadas ao longo do ano. O comparecimento do scio deveria ser obrigatrio em todas as ocasies citadas, assim como em quatro comunhes que se dariam em dias dedicados a determinados santos, que seriam escolhidos durante o ano. Alm disso, era exigido de todos os membros da confraria, o mantenimento de uma atitude de vida crist, tanto em relao ao prximo quanto a si mesmo. Nesse particular, as regras pediam que o associado rezasse duas vezes por dia, voltado para a igreja, e prostrado humildemente diante de Deus, e que tambm recitasse algumas oraes que faziam parte do Rosrio (AGN, IX-31-4-6).

    No registro que examinamos sobre a referida confraria de So Baltasar, esto listados ainda uma srie de procedimentos, atinentes ao modo de como os membros deveriam proceder em relao a atos especficos, assim como a preservao de costumes, muitos deles demonstrando claramente uma atitude de submisso de seus membros em relao aos brancos. Entre essas aes, citamos a que tratava dos enterros, destacando que os mesmos deveriam ser feitos utilizando-se a cruz baixa, em contraste com os brancos, que usavam a cruz alta (AGN, IX-31-8-5). Isto significava que, durante a procisso, a cruz de Cristo deveria ser carregada numa posio que no excedesse a altura das pessoas, em um claro sinal de submisso social, j que os brancos, em seus enterros, carregavam a cruz voltada para o cu.

    Os regulamentos da dita confraria tambm indicam que aqueles membros que iriam fazer parte da administrao, eram vistos como autoridades que respeitavam uma hierarquia pr-estabelecida. Assim, seriam nomeados: irmo maior e irmo menor, tesoureiro, zeladores, sacristos, enfermeiros, um scio encarregado de avisar aos outros as datas das reunies que aconteceriam, chamado mullidor. As eleies seriam realizadas a cada dois anos, e os eleitos deveriam ter sua nomeao aprovada pelo capelo da Igreja (AGN, IX-31-8-5). Percebemos uma distribuio de funes segundo uma ordem hierrquica, estabelecendo-se, assim, uma certa preeminncia, que deveria ser seguida no interior da confraria, e jamais desobedecida. Contudo, apesar de podermos vislumbrar uma ordenao que, em teoria, no deveria ser contestada, as possveis quebras do regulamento tambm foram previstas, e tratadas de serem dirimidas, mediante a imposio de punies. O mesmo documento informa que os membros que infringissem as regras, seriam relegados aos ltimos lugares da igreja, sofrendo uma espcie de ostracismo. Ao mesmo tempo, para que os desvios de conduta no acontecessem amide, todos

  • os scios estavam sob contnua vigilncia, tanto por parte do irmo maior, autoridade mxima da confraria, quanto por parte do capelo. O irmo maior, que era coroado durante as festividades denominadas congadas deveria, conforme as regras, comunicar ao capelo ou s autoridades civis (normalmente o chefe de polcia), quem havia cometido o delito, e quais as regras de foram descumpridas (AGN, IX-31-8-5).

    Prosseguindo na anlise da confraria de So Baltasar, inferimos que, segundo as informaes do registro, esta era uma associao composta por negros escravos, naturalmente com poucos ou nenhum recurso financeiro, e que a situao econmica desta no deveria ser das melhores. Provavelmente os servios, oferecidos pela confraria, deveriam ser extremamente precrios, e seus membros certamente estavam sujeitos a arroubos de humor dos senhores proprietrios que, junto com o capelo e as autoridades civis, controlavam todas as aes dos respectivos associados. O grau de submisso patente, na medida em que o prprio irmo maior no tinha voz ativa dentro da confraria, estando ele mesmo dependente do capelo da parquia a que esta pertencia. Ao irmo maior, por seu lado, caberia pr em prtica os referidos servios, como organizar as missas semanais, liderar as rezas do Rosrio e as quotidianas, alm dos atos da vida, como tratar dos casamentos dos scios, nascimentos, festas em geral e, naturalmente, as cerimnias fnebres.

    Por outro lado, o comportamento adotado pelos escravos e pretos livres na Amrica, acabou por assustar as camadas dominantes, e faz-las pensar que deveriam no impedir, mas criar mecanismos de controle, liberando, at certo ponto, os bailes e as manifestaes religiosas de todo tipo (Ortiz, 1996). Molas (1970) chama a ateno afirmando que o temor e a desconfiana que despertavam os negros, considerados como delinqentes potenciais, acaba por refinar, com o tempo, a polcia. Dessa forma, os novos mtodos, a autorizao de organizar bailes e de formarem naes, sob estrito controle, passam a constituir um meio mais eficaz do que o uso da fora. O mantenimento de um certo grau de coeso ideolgica nos afroportenhos (msica, estilos de vida, religiosidade), passaram a evitar problemas mais srios, que poderiam resultar em rebelies ou fugas.

    No exemplo citado anteriormente, reforamos a unificao em torno da figura de um santo. Tal como So Baltasar, eleito para a confraria do mesmo nome, outros santos catlicos passaram a representar uma deificao que se tornou comum, entre os escravos de Buenos Aires. Executavam, assim, suas homenagens ao som de tambores e outros instrumentos africanos, realizando oferendas ante um altar afro-catlico, misturando estampas, santos, utilidades de cozinha, colares de contas de vidro, comidas, bebidas, e outros smbolos de adorao.

    A vontade que os afroportenhos tinham de possuir a sua prpria capela, na qual pudessem agregar a confraria a qual pertenciam, sempre existiu, embora nem todos os confrades conseguissem realizar seus desejos. Encontramos uma solicitao, datada de 1785, em que os membros da j citada confraria de So Baltasar, pedem autorizao ao vice-rei, para construrem uma capela. Justificavam afirmando que desde tempos, os governadores permitiam-lhes fazer suas funes cada um com suas respectivas naes, e ainda naquela poca, advertia-se das desordens que ocorriam, que fizeram com que alguns governadores acabassem por impedir algumas diverses. Alegando sofrerem privaes das Graas ao Senhor, delegavam um deputado, para que os representasse frente Corte. Alm disso, afirmavam que, alm dos escravos e forros poderem dar culto ao Todo Poderoso, a Sua Santssima Me e ao Santo Padroeiro, pudessem recolher esmolas, e com ela fazer suas funes (AGN, IX-31-4-6). Essa solicitao confirma que os afroportenhos, desde tempos imemoriais, j faziam seus bailes e

  • danas, preservando a cultura africana, e alijando, durante muito tempo, a influncia crioula, que porventura pudesse haver. Esse um dado interessante, confirmado nos documentos, quando encontramos expresses como: desde tiempo cassi inmemorial, cada nacin hace sus bayles segn sus estilo(AGN, IX-31-11-5). Ao mesmo tempo em que mantinham os laos com suas origens, principalmente at finais do sculo XVIII, quando ainda entrava em Buenos Aires uma grande quantidade de africanos, os cativos sofriam crticas, tanto por parte dos governantes, quanto da sociedade branca em geral. Ratificando o distanciamento que acontecia, entre as prticas religiosas, objeto que preocupava os brancos, pela constante tentativa de preservao, e as festividades pags, exercidas por escravos e forros v-se o pensamento da classe dominante, retrata um repdio claro: [...] las Danzas con que cada Nacion se diferencia pudiendose con verdad decir que en estos bailes olbidan los sentimientos de la Santa Religion Catholica, que profesaron renuevan los ritos de la gentilidad, se pervirten las buenas constumbres [...] (AGN, Acuerdos).

    As confrarias, na verdade, apresentavam uma contradio: o choque direto entre os ritos pagos africanos, e os rituais catlicos. Essa questo jamais seria resolvida totalmente, caso se preservassem as caractersticas das irmandades, ou seja, se os afroportenhos insistissem em formar associaes ligadas a igrejas, cuja dominao, por parte do proco, nunca se extinguiria. Posteriormente, as sociedades africanas (criadas no sculo XIX), separaram-se das parquias, e puderam, no sem gerar conflitos novos e perpetuar antigos, realizar seus bailes e festas pelo menos sem a influncia crist direta. Ao jugo da escravido e da discriminao racial, somava-se o dos padres das igrejas, sufocando e impondo medidas de separao, urgentes aos africanos e afrodescendentes. A confraria de So Baltasar, cuja anlise nos detemos com maior rigor, sofreu com essa situao de confronto, que seus membros sempre enfrentaram, tentando libertar-se.

    A tentativa de fundar uma nova confraria, referindo-nos ao exemplo anteriormente citado, de 1785, na verdade, foi originada do choque direto ocorrido entre os confrades e o capelo da Igreja da Piedade. As acusaes trocadas entre ambas as partes, demonstram que havia se tornado impossvel a convivncia pacfica, entre os membros da confraria e o sacerdote. Inferimos que, em funo do poder emanado do proco, que a tudo controlava, e ratificado pelos registros que encontramos, os afroportenhos estavam completamente impedidos de manifestar suas vontades de maneira mais livre, perdendo, dessa forma, o sentido de estarem ligados a referida Parquia da Piedade. Enquanto o sacerdote acusava os confrades de mentirosos, bbados e de nenhuma utilidade a Irmandade, recebia as queixas de egosta, mesquinho, negligente, e falta de virtudes crists (AGN, IX-42-6-3). Assim, as alegaes registradas na solicitao de 1785, tinham um fundo de verdade baseado na incompatibilidade de vivncia, e at de sobrevivncia, da confraria de So Baltasar. Constata-se, com isso, as difceis relaes que existiram entre os confrades e os procos, revelando uma coexistncia entre eles que esteve longe de ser considerada ideal.

    Embora no saibamos se a autorizao, para que os irmos de So Baltasar tivessem a sua capela, foi concedida, e nem se a mesma edificou-se, podemos perceber que, de 1771, ano da fundao da confraria, at 1785, as prticas no saram a contento. Conforme declarado, o Estado teve de abolir algumas manifestaes (provavelmente bailes), por causa das desordens que aconteciam. Tambm demonstrado a importncia que as esmolas tinham, para a sobrevivncia da prpria confraria. O dinheiro arrecadado era investido na associao, para garantir, bem ou mal, o cumprimento das funes mnimas a que a confraria estava destinada.

    Em concreto, o objetivo principal dos confrades de So Baltasar era proporcionar aos seus associados, um enterro digno, com homenagens e consideraes que merecia um ser humano, j

  • que o nico benefcio eram os enterros, embora os bailes e festas acontecessem. Voltada para a elevao geral da alma dos irmos, garantiam um funeral amparado por um nmero pr-estabelecido de missas em memria do falecido. Para esse fim, as esmolas no poderiam ser prescindidas, sob pena do enterro no poder ser realizado.

    Os afroportenhos, de um modo geral, preocupavam-se muito com a realizao dos funerais e das missas, e externavam essa questo atravs de suas respectivas confrarias. A passagem da alma da vida material para a espiritual, era levada em grande considerao, tanto pela religio catlica quanto pela africana. Assim, para Oderigo (1974), deveria ser extremamente zelado por quem permanecia vivo, para que, futuramente, fossem garantidos a ele tambm, os mesmos cuidados, e os destinos daqueles que morriam, dessa forma iria ser bem encaminhado. Andrews (1999) acrescenta que, aqueles que levavam uma vida sem alegrias, por serem escravos e pobres, percebiam a salvao como um dos raros meios de ascenso social, a que tinham acesso. Logicamente, ento, tudo aquilo que pudesse ajudar, de uma maneira ou de outra, para que o afroportenho alcanasse o Paraso, passava a representar um objetivo primordial a ser alcanado durante a vida material.

    Por outro lado, mesmo que internamente os confrades tudo fizessem para pr em prtica as decises e regulamentos, muitas vezes os conflitos eram inevitveis. Os documentos revelam os contnuos choques ocasionados pela desconsiderao que sofriam os irmos, por parte de quem estava encarregado de direcion-los e zelar para o bom andamento dos servios. Os prprios sacerdotes descuidavam de seus discpulos confrades, deixando de cumprir total ou parcialmente, com suas funes, como j referendamos. Em 1779 registramos uma reclamao do vigrio geral de Buenos Aires, contra o ministrio de missas para os mortos, em dias teis, rezadas pelo capelo, alegando que estas deveriam ser feitas nos domingos e feriados. O motivo principal defendido pelo vigrio era que, sendo a maioria dos confrades de condio escrava, no estavam disponveis nos dias de semana, para assistir as referidas missas (AGN, IX-42-6-3).

    Seguindo as reclamaes feitas, que afetavam os confrades, citamos a que tocava um ponto dos mais importantes, j aventados por ns: a questo dos enterros. Tanto a confraria de So Baltasar quanto a de Nossa Senhora do Rosrio, protestavam contra a ordem de sepultar seus mortos fora dos muros das parquias, em cemitrios, como j salientamos, afastados daqueles destinados aos brancos. Essa discriminao aparece nos registros das duas irmandades, com pedidos enviados aos representantes estatais, para que os negros pudessem ser enterrados na parte interna do terreno das igrejas, sem, contudo, obterem resultados positivos (AGN, IX-31-8-7).

    Quanto ao quesito esmolas, importante ressaltar que esse era o principal meio de arrecadao de fundos, das confrarias e associaes negras, j que a maioria delas no poderia dispor de outras fontes de renda, que lhes garantisse o funcionamento. A condio econmica dos escravos (mesmo os jornaleiros), e os negros livres, no favorecia o acmulo de um peclio razovel, fazendo com que suas confrarias sofressem com a falta de recursos, e dependessem, com isso, da boa vontade das camadas sociais mais altas. Em documentos j citados, destaca-se a necessidade das esmolas, para as irmandades.

    Em 1786, verifica-se um pedido dos irmos de So Baltasar ao Vice-Rei, no intuito de poderem arrecadar fundos, para realizar suas reunies e festividades. Diz o documento que os confrades queriam pedir esmolas nas ruas, principalmente aos domingos e dias festivos, por serem aqueles em que os scios tinham permisso do governo para sarem livremente e fazerem seus bailes, ocasio em que poderiam juntar alguns trocados. Solicitavam ainda que as esmolas no fossem pedidas pelos associados individualmente, por no terem certeza de que o dinheiro

  • seria honestamente distribudo aos beneficirios. Alm disso, nomeavam, para todos os efeitos, o irmo maior responsvel pelas feituras dos bailes, que era o moreno (algumas vezes aparece nos registros como negro) Pablo Aguero, vajo cuyo mando estan sujetas dhas naciones (AGN, IX-42-6-3). As esmolas arrecadadas, pelo que foi visto, tambm eram extremamente necessrias para financiar as diverses, principalmente os bailes, que tantos problemas causaram sociedade dominante portenha.

    No dia a dia, apesar das leis e decretos restritivos, impostos aos afroportenhos e suas confrarias, o confronto era inevitvel, principalmente em funo do comportamento diacrnico dos africanos e seus descendentes. Sem querermos aprofundar discusses a respeito da mistura de religies, o fato que as prticas culturais exercidas pelos escravos e forros, conflituavam e chocavam a camada senhorial. Um dos principais pontos de divergncia era a msica e os bailes, que estes faziam, tanto nas confrarias ou lugares prximos, quanto pelas ruas da cidade, num constante desfilar de sons e requebros. Wilde (1903) retrata o fato dizendo que os negros danavam todos os domingos e dias de festas, do meio da tarde at altas horas da noite. Faziam um rudo infernal com seus tambores, seus cantos e gritos, que obrigava as autoridades a intervirem, ordenando que se retirassem para locais mais afastados do centro.

    Ao mesmo tempo em que as danas e bailes eram repudiados pelos brancos, estes, em sua contestao, ratificavam a importncia desses tipos de manifestaes que renovavam a sua gentilidade, fazendo-os reviver seu lugar de origem. Mesmo que tentassem, os afroportenhos jamais poderiam desvencilhar-se dos traos culturais que traziam, simplesmente pela necessidade de alguma manifestao artstica, condio imanente natureza humana.

    Apesar disso, muitas vezes, os lderes do governo tratavam de podar o mal pela raiz, decretando proibies diretamente contra as irmandades. O governador de Buenos Aires, Vrtiz, em 1770, assinou um decreto que proibia os bailes que os negros realizavam ao som do tambor, embora pudessem bailar publicamente com as danas que sempre costumavam fazer nas celebraes na cidade. Em acrscimo, Vrtiz no admitia que se reunissem em grupos, mulatos, ndios ou mestios, para executarem jogos, mesmo beira do Rio (da Prata), ou em qualquer outro lugar. Aos infratores, impunha uma pena de 200 aoites e um ms de priso, aos que fossem coniventes com os negros (AGN, IX-9-10-3). Nesse documento aparece dois tipos de manifestaes, realizadas pelos afroportenhos: aquela que era feita no interior das casas (inclusive confrarias), que eram classificadas de indecentes, e as reunies pblicas, que tinham lugar vista de todos, geralmente acontecidas nas ruas da cidade, e que eram destinadas a prestar alguma homenagem (a uma autoridade, ou data religiosa).

    A acusao de indecncia, atribuda aos afros, ao seu modo de ser, de uma maneira geral, e, mais especificamente, ao seu jeito de danar, no pode ser explicada a no ser no confronto dos valores morais, que regiam brancos e negros. Naquela poca, a desnudez oferecia uma eterna luta, velada algumas vezes e explcita em outras, na medida em que o branco no cobria as carnes dos negros, quando escravo, e lhe proibia de comprar roupas, enquanto livre. Havia, dessa forma, um embate moral entre a prtica e os valores de uma moralidade que, teoricamente o branco lutava por manter intacta e pura. Nessa anttese, acusava o negro de indecente, lascivo, obsceno, imoral, causando-lhe nojo e repulsa, ao mesmo tempo em que, hipocritamente, fazia-lhe filhos, acasalava-se e branqueava a raa. No foi toa que o nmero de mulatos aumentou, diminuindo o nmero de negros, no incio do sculo XIX, quando os homens de cor morreram em grande quantidade, nas guerras revolucionrias.

  • Um pouco antes, em 1779, entra na Justia uma reclamao feita pelo prprio proco da igreja onde estava situada a confraria de So Baltasar, Dom Francisco Xavier, que denunciava os desacatos pblicos que faziam os irmos Igreja, como ao colocar-se no espao de entrada do templo e danar. As acusaes de obscenidades, alm de no respeitarem os dias santos, eram muito freqentes. Esse indignado sacerdote enfatizava a algazarra que os confrades faziam, ao som dos tambores (AGN, IX-31-4-6). No mesmo documento, os scios defendiam-se da acusao, dizendo que de fato, depois da missa, na parte da manh, os irmos haviam sado a percorrer os lugares em que havia irmandades de menores (porque era Domingo de Pscoa), e acabaram voltando Igreja da Piedade. No entanto, resolveram no adentrar na parquia, mas fazer na rua ao lado, seu baile, colocando-se no trio em sinal de alegria. Alegavam, alm disso, que esses bailes no podiam ser qualificados de obscenos, j que tinham a presena de mulheres. Acrescentaram que tambm no agiam em desordem, porque encontravam-se na presena do Santssimo Sacramento, da imagem de Jesus Cristo e sua Me Santssima, enfatizando que as manifestaes de alegria eram prprias das festividades do dia (AGN, IX-31-4-6).

    As queixas contra as aes dos procos tambm eram apresentadas pelos irmos, na medida em que, quando isso acontecia, estes acabavam no participando das atividades da parquia a que estavam filiados. Os confrades de So Baltasar reclamaram, em 1785, que o proco da Parquia da Piedade, ministrava a instruo religiosa s duas da tarde, hora em que os escravos ainda estavam ocupados com os afazeres domsticos, normalmente servindo o almoo a seus senhores. Pediam, por essa razo, que essas instrues fossem transferidas para as 4 horas da tarde, para que eles pudessem assisti-las. As divergncias entre os procos e os membros das confrarias j foram exemplificadas, quando citamos os litgios envolvendo a irmandade de So Baltasar e o padre da Parquia da Piedade.

    Apenas queremos enfatizar que os afroportenhos, na busca de si mesmos, acabavam por enfrentar obstculos difceis de serem ultrapassados, embora estes no fossem, de uma maneira geral, impedimentos definitivos para as suas realizaes. Provavelmente, dada a condio de escravos e forros, hierarquicamente rebaixados na estrutura social, empobrecidos e desamparados pelas leis, os confrades tenham padecido mais do que outros membros de confrarias brancas. Embora, vale dizer, as tenses entre os capeles controladores de confrarias mais ricas e socialmente consideradas, tambm tenham existido (Fogelmann 2000: 37).

    parte as tentativas, quase sempre infrutferas, de proibir os afroportenhos de realizarem bailes, festas com danas e bebidas, e outras manifestaes, a camada branca acabava concedendo, mediante restries (nem sempre cumpridas), que externassem seus sentimentos, e praticassem sua cultura. Para isso, acabavam, por diversas vezes, solicitando, como j foi dito, a permisso, para poderem sair s ruas e bailar ao ritmo de seus tambores. Em 1791, os morenos de So Baltasar pediram, atravs de seu irmo maior, Manuel Juaqun, proteo para salir una danza de nuestra Nacin, por las Calles y casas particulares de esta Ziudad, cujo consentimento foi dado, embora l-se anexo: a el Domingo, y no ms(AGN, IX-12-9-13).

    O informante Pablo Aguero, seguidamente, fazia chegar ao Procurador suas queixas contra o comportamento dos afroportenhos, os quais fugiam de seu controle, e o impediam de cumprir com sucesso as funes a que foi nomeado. No ano de 1791, outra vez contra os morenos de So Baltasar, Aguero queixava-se de que, a pesar de la prohibicin salieron por segunda vez [...], para evitar los desordenes que suelen seguirse delas numerosas juntas de tales Gentes [...] reuniones indecentes de hombres y mugeres[...] (AGN, IX-13-9-13). Embora no tenhamos um registro que revele a atitude que deveria ter tomado o referido Procurador de Buenos Aires, este

  • tambm no afrouxava seu controle sobre as aes dos afroportenhos. Em um documento, verificamos com detalhes a maneira como os negros organizavam seus bailes, onde se reuniam, e como procediam quando eram flagrados praticando essas manifestaes, sem consentimento das autoridades.

    Os choques entre as muitas manifestaes feitas pelos pretos, e a reao, muitas vezes radical e violeta dos senhores e seus representantes governamentais, no cessou ao final do sculo XVIII. Embora no tenhamos nos deparado com nenhum registro que expusesse, velada ou explicitamente, uma luta armada entre brancos e pretos em Buenos Aires, vemos que, pelas narraes, no seria de surpreender, caso isso acontecesse. O que os crioulos no percebiam era a irracionalidade das proibies, que fomentavam um estado latente de violncia, que acabava se manifestando apenas na quebra das leis e decretos impostos revelia.

    Mais tarde, j em finais do sculo XIX, os afroportenhos, em fase de franca extino, j no identificavam-se tanto com as formas originais de sua antiga cultura. Com uma populao totalmente composta por afroargentinos, os descendentes dos africanos haviam, ao longo do tempo, enfraquecido laos que tanto marcaram seus antepassados, e causaram grandes divergncias sociedade branca. J no Brasil, os negros ladinos, ou afrobrasileiros, passaram a predominar na populao escrava, principalmente a partir da dcada de 1870. Costa (1998: 286) afirma que: o processo de desafricanizao j atuava largamente [...]. O escravo abandonava os cultos africanos, [...] pelo prprio interesse em aproximar-se da cultura dominante. O catolicismo aparecia como denominador comum.

    Esse fenmeno tambm aconteceu na Argentina, principalmente em Buenos Aires, mas no seguiu o mesmo caminho do modelo brasileiro. Enquanto os afrobrasileiros multiplicaram-se e permaneceram, por serem em maior nmero, vrias causas concorreram para a extino dos afroportenhos. Contudo, em ambos, enquanto persistiram, a aceitao do cristianismo e a assimilao de suas prticas, foi mais difcil na cidade, do que nas zonas rurais.(COSTA 1998: 286). Na verdade, o negro de Buenos Aires resistiu o quanto pode, tanto aculturao, quanto ao desaparecimento.

    Essa obsesso por cantar as coisas da frica, vale dizer, manteve-se paralelamente s prticas catlicas, executadas nas confrarias, sob o olhar atento do sacerdote, que tudo via, sem perceber que o negro, se era catlico no interior da Igreja, tornava-se pago nas ruas e nos bailes de tambor. A regra foi a mesma tambm para os africanos brasileiros, cuja aceitao do cristianismo era, em geral, puramente exterior. O negro que recebia o batismo, que assistia missa [...], era o mesmo que freqentava batuques e participava dos rituais [...] no interior das senzalas, ou, [...] no escuro das matas. (COSTA 1998: 287). No sculo seguinte, como j dissemos, os bailes e comemoraes pags continuaram, mas um pouco mais desafogados das imposies anteriores, principalmente em vista da diluio racial, das transformaes polticas, sociais e econmicas que acabaram por arrefecer, e moldar uma moral um pouco mais malevel s indecncias dos escravos e livres.

    As confrarias urbanas, principalmente as de Buenos Aires, desaparecem da documentao ao entrar o sculo XIX. Em seu lugar, a partir do incio da segunda metade desse sculo, entram as Sociedades Africanas, de caractersticas mais independentes, embora ainda sob o poder das elites brancas, porm, apartadas do poder das igrejas. Acreditamos que a liberdade buscada pelos negros, progride, exemplificada nessas sociedades, permitindo aos escravos e forros uma sobrevida, num processo que os encaminhava para a quase total extino.

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    Nota (Datos del autor):

    Nombre: lvaro de Souza Gomes NetoTitulacin: Doutor em Histria Ibero-Americana pela Pontifcia Universidade Catlica do

    Rio Grande do Sul, Brasil.rea de Trabajo: Histria de Latinoamerica. Estdio de las populaciones africanas y

    afroamericanas.Vinculacin Institucional: Director de la Facultad de Historia de las Facultades

    Integradas UNIVEST, en la ciudad de Lages, Brasil.Direccin para Correo: Av. Marechal Floriano, 947 Lages SC Brasil 88501-103

    E-mail: [email protected]

    lvaro de Souza Gomes NetoAs irmandades brancas As irmandades negras