CONHECIMENTO CIENTÍFICO, VERDADE E MÉTODO Aires …

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CONHECIMENTO CIENTÍFICO, VERDADE E MÉTODO Aires José Rover Francisco Carlos Duarte ∗∗ José Renato Gaziero Cella ∗∗* www.cella.com.br RESUMO O artigo procura destacar a importância do rigor metodológico na atividade do cientista; e define o conhecimento científico como uma crença verdadeira e justificada, a partir do que trata das noções de crença, de justificação racional e de verdade, sendo que esta última é tratada na sua acepção clássica de verdade como correspondência e, ainda, na acepção de quase-verdade ou verdade pragmática, sempre provisória, nos moldes em que foi originalmente concebida pelo filósofo Newton Carneiro Affonso da Costa. A partir daí são revisadas as noções de: a) incomensurabilidade de paradigmas, de Thomas Kuhn; e b) falseabilidade das teorias científicas, de Karl Popper. Essas duas noções se tornaram lugares-comuns na argumentação dos cientistas e têm sido utilizadas impropriamente em vários campos do conhecimento, inclusive o jurídico, o que torna necessária a sua elucidação a fim de que se corrijam os equívocos que permanentemente têm sido cometidos pelos cientistas do direito e mesmo por seus operadores. Além disso, procura-se destacar a importância do método axiomático e da eleição de uma lógica a ele subjacente para o trabalho de construção do conhecimento científico que compõe o escopo da atividade científica. Por fim, a necessidade de tirocínio crítico por parte do cientista é igualmente destacada como de fundamental importância para o controle racional da atividade do cientista. PALAVRAS CHAVES: CONHECIMENTO CIENTÍFICO. JUSTIFICAÇÃO RACIONAL. VERDADE PRAGMÁTICA. METODOLOGIA CIENTÍFICA. Doutor em Direito, professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. ∗∗ Doutor em Direito, professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR. 3231

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CONHECIMENTO CIENTÍFICO, VERDADE E MÉTODO

Aires José Rover ∗

Francisco Carlos Duarte∗∗

José Renato Gaziero Cella∗∗*

www.cella.com.br

RESUMO

O artigo procura destacar a importância do rigor metodológico na atividade do cientista;

e define o conhecimento científico como uma crença verdadeira e justificada, a partir do

que trata das noções de crença, de justificação racional e de verdade, sendo que esta

última é tratada na sua acepção clássica de verdade como correspondência e, ainda, na

acepção de quase-verdade ou verdade pragmática, sempre provisória, nos moldes em

que foi originalmente concebida pelo filósofo Newton Carneiro Affonso da Costa. A

partir daí são revisadas as noções de: a) incomensurabilidade de paradigmas, de Thomas

Kuhn; e b) falseabilidade das teorias científicas, de Karl Popper. Essas duas noções se

tornaram lugares-comuns na argumentação dos cientistas e têm sido utilizadas

impropriamente em vários campos do conhecimento, inclusive o jurídico, o que torna

necessária a sua elucidação a fim de que se corrijam os equívocos que permanentemente

têm sido cometidos pelos cientistas do direito e mesmo por seus operadores. Além

disso, procura-se destacar a importância do método axiomático e da eleição de uma

lógica a ele subjacente para o trabalho de construção do conhecimento científico que

compõe o escopo da atividade científica. Por fim, a necessidade de tirocínio crítico por

parte do cientista é igualmente destacada como de fundamental importância para o

controle racional da atividade do cientista.

PALAVRAS CHAVES: CONHECIMENTO CIENTÍFICO. JUSTIFICAÇÃO

RACIONAL. VERDADE PRAGMÁTICA. METODOLOGIA CIENTÍFICA.

∗ Doutor em Direito, professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC. ∗∗ Doutor em Direito, professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR.

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ABSTRACT

The article detach the importance of the metodologic severity in the activity of the

scientist; and defines the scientific knowledge as a true justified belief, from that it deals

with the slight knowledge of belief, rational justification and truth. The truth is treated

in its classic meaning of truth as correspondence and, still, in the meaning of almost-

truth or pragmatic truth, always provisory, in the molds where originally was conceived

by the philosopher Newton Carneiro Affonso Costa. From this point the idea of

knowledge is revised: a) the idea of paradigms by Thomas Kuhn; and b) the Idea of the

scientific theories by Karl Popper. These two points become commom-place in the

argument of the scientists and have been used with mistakes in some fields of the

knowledge, also in the Law Field. It becomes necessary its briefing so that the mistakes

are corrected that permanently have been committed for the scientists of Law and for its

operators. Moreover, it is looked to detach the importance of the axiomatic method and

the election of a logic underlying it for the work of construction of the scientific

knowledge that composes the target of the scientific activity. Finally, the necessity of

critical apprenticeship on the part of the scientist equally is detached as basic

importance for the rational control of the activity of the scientist.

KEYWORDS: SCIENTIFIC KNOWLEDGE. RACIONAL JUSTIFICATION.

PRAGMATIC TRUE. SCIENTIFIC METHODOLOGY Introdução

O pesquisador deve estar comprometido, antes de tudo, com a construção do

conhecimento, tarefa que demanda rigor científico, somente alcançado por meio de

métodos adequados que exigem a eleição de uma lógica subjacente que permita

formalizar os resultados da pesquisa.

O rigor científico entra em choque com o obscurantismo, a confusão mental e

as atitudes anticientíficas que caracterizam uma parte da intelligetsia a que se atribui a

denominação de pós-moderna.

∗∗* Doutorando em Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR; Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR.

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Pretende-se fazer algumas considerações acerca do conhecimento científico, do

método científico e seu processo de axiomatização lógica, para ao final denunciar a

desonestidade intelectual de autores que defendem um método cujos resultados entram

em conflito com o bom senso.

1. O Conhecimento Científico

Há razões sedutoras para a adoção do ceticismo1, postura na qual a ciência

seria produto apenas de convenções arbitrárias, circunstância que implicaria a sua

aparente certeza, em que os fatos científicos e, a fortiori, as leis, seriam obra artificial

do cientista.

Segundo esse prisma, atesta Henri POINCARÉ (1854-1912), “a ciência,

portanto, nada pode nos ensinar sobre a verdade, só pode nos servir como regra de

ação”2. Nessa perspectiva nominalista3 a ciência não seria mais que uma regra de ação,

1 Para maiores detalhes sobre o ceticismo, ver CELLA, José Renato Gaziero, Realismo Jurídico Norte-Americano e Ceticismo, comunicação apresentada no I Congresso Brasileiro de História do Direito, que teve como tema “Justiça e Gestão do Estado”, promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - CPGD/UFSC; pelo Grupo de Pesquisa em História e Cultura Jurídica da Cátedra Aberta da Fondazione Cassamarca; e pelo Instituto Brasileiro de História do Direito - IBHD; realizado em Florianópolis-SC nos dias 08 a 11 de setembro de 2005, com exposição em 10 de setembro de 2005. 2 POINCARÉ, Henri. O valor da ciência. Rio de Janeiro: Contraponto, 1995, p. 137. 3 A essa postura comumente se denomina nominalismo. Uma das grandes disputas do pensamento medieval se deu entre os realistas e os nominalistas no que se refere à questão dos universais, que se traduzem em noções genéricas, idéias, entidades abstratas. Segundo os realistas, os universais têm existência real, que é, além disso, prévia e anterior à das coisas, ou seja, universalia ante rem. Se assim não fosse, argumentam os realistas, seria impossível entender qualquer das coisas particulares, haja vista que as coisas estão fundadas metafisicamente nos universais. Os nominalistas, ao contrário, afirmam que os universais não são reais, posto que estão depois das coisas: universalia post rem. Pode-se dizer que se trata de abstrações totais da inteligência (cf. FERRATER MORA, José. In: Dicionário de filosofia, T. IV, p. 2.949-2.952). Aqui se dá a querela entre as teologias inspiradas em Santo AGOSTINHO (nominalista) e Santo TOMÁS DE AQUINO (realista), sendo que o nominalismo “...se põe em dúvida se não é legítimo, na compreensão da sociedade, partir do indivíduo e não dos grupos. Na verdade, passou a entender-se que aqueles atributos (‘universais’) que se predicam dos indivíduos (ser pater familias, ser escolar, ser plebeu) e que descrevem as relações sociais em que estão integrados não são qualidades incorporadas na sua essência, não são ‘coisas’ sem a consideração das quais a sua natureza não pudesse ser apreendida — como queriam os ‘realistas’. Sendo antes meros ‘nomes’, externos à essência, e que, portanto, podem ser deixados de lado na consideração desta. Se o fizermos, obtemos uma série de indivíduos ‘nus’, incaracterísticos, intermutáveis, abstratos, ‘gerais’, iguais. Verdadeiros átomos de uma sociedade que, esquecidas as tais ‘qualidades’ agora tornadas descartáveis, podia também ser esquecida pela teoria social e política. Esquecida a sociedade, i.e., o conjunto de vínculos individuais, o que ficava era o indivíduo, solto, isolado, despido dos seus atributos sociais. Estava quase criado, por esta discussão aparentemente tão abstrata, um modelo intelectual que iria presidir a toda a reflexão social durante, pelo menos, os dois últimos séculos — o indivíduo, abstrato e igual. Ao mesmo tempo que desapareciam do proscênio as pessoas concretas, ligadas essencialmente umas às outras por vínculos naturais; e, com elas, desapareciam os grupos e a sociedade” (HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura jurídica européia: síntese de um milênio, p. 85). Ainda segundo Antônio

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pois seríamos “...impotentes para conhecer o que quer que seja, e contudo estamos

envolvidos, precisamos agir e, por via das dúvidas, firmamos regras. É o conjunto

dessas regras que chamamos ciência”4.

Mas seria a ciência arbitrária como as regras de um jogo – por exemplo as

regras do xadrez – regras de ação consensual? Ao negar essa equiparação, a moderna

filosofia da ciência assume que a ciência é uma regra de ação que funciona, de maneira

que se possa conhecer, fazer previsões que sejam úteis e que sirvam de regras de ação5,

haja vista que o cientista se engana com menos freqüência, conforme se extrai do

pensamento de Bertrand RUSSELL (1872-1970): “De minha parte não tenho dúvida de que, embora mudanças graduais sejam esperadas no campo da física, as doutrinas atuais estão provavelmente mais perto da verdade do que quaisquer teorias rivais existentes. A ciência em momento algum é totalmente exata, mas raramente é inteiramente errada, e tem, como regra, mais chance de ser exata do que as teorias não-científicas. É, portanto, racional aceitá-la hipoteticamente.”6

O cientista intervém ativamente com a eleição dos fatos que merecem ser

observados. Um fato isolado não tem, por si mesmo, nenhum interesse; torna-se

interessante se houver motivos para supor que ele poderá ajudar a predizer outros; ou

então, se, tendo sido predito, sua verificação for a confirmação de uma lei. Quem

escolherá os fatos que, respondendo a essas condições, merecem se impor à ciência? É a

livre atividade do cientista, cuja função é a de traduzir um fato bruto para uma certa

linguagem7, porém não há poder sobre o fato, que se impõe de forma objetiva. Mas o

que garante a objetividade do mundo? Talvez o fato de ser comum a nós e a outros seres

Manuel HESPANHA, “...os nominalistas deixaram também de crer na existência de qualquer vínculo entre vontade e razão. Uma vez que existia, no plano epistemológico, uma radical diferença entre a realidade objetiva e a sua representação mental..., o mundo objetivo não tinha qualquer poder de conformação sobre o mundo mental. E, assim, não existia nenhum apetite natural pelo bem, nenhuma direção da vontade pela razão, como queria S. Tomás” (idem, p. 86, nota n. 122). 4 POINCARÉ, H. Obra citada, p. 139. 5 Ressalve-se que a ação não é o principal objetivo da ciência, mas sim o conhecimento. Não se deve condenar os estudos feitos, por exemplo, sobre a estrela Sirius, sobre o pretexto de que provavelmente não se exercerá qualquer ação sobre esse astro: ação é apenas o meio para o conhecimento. “Tudo o que o cientista cria num fato é a linguagem na qual ele a enuncia. Se prediz um fato, empregará essa linguagem, e para todos aqueles que souberem falá-la e entendê-la, sua predição está isenta de ambigüidade” (POINCARÉ, H. Obra citada, p. 148). 6 RUSSELL, Bertrand. My philosophical development. 2. ed., Routledge, London: 1995, p. 13. 7 Sobre as distinção entre fato bruto e fato científico, cf. POINCARÉ, H. Obra citada, p. 141-149. Para esse autor, dentro dos limites de uma concepção científica, ...“toda lei é apenas um enunciado imperfeito e provisório, mas deve ser substituída um dia por uma outra lei superior, da qual é apenas uma imagem grosseira. Portanto, não resta lugar para a intervenção de uma vontade livre” (POINCARÉ, H. Idem, p. 159).

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pensantes. Pelo menos se intui o fato de que tudo se passa como se a apreensão (o

conhecimento) do mundo e a sua existência fossem possível e verdadeira,

respectivamente.8

Para qualificar duas expressões importantes que foram introduzidas acima,

quais sejam conhecimento e verdade, será necessário, antes, traçar alguns comentários

sobre a filosofia da ciência. Diz Newton DA COSTA sobre o tema: “Filosofia da ciência ou teoria da ciência, no sentido em que empregamos essas expressões, englobam três categorias de questões: epistemológicas (análise crítica da ciência), lógicas (estrutura lógico-formal da ciência) e metodológicas (metodologia científica).”9

O conceito nuclear da teoria da ciência é o de verdade. A partir, então, da

noção de verdade, pode-se definir, com o auxílio de outros conceitos complementares, a

idéia de conhecimento científico.10

Há pelo menos três teorias da verdade relevantes em ciência, a saber: as teorias

da correspondência, da coerência e a pragmática. Dado que existem também várias

lógicas alternativas, a conclusão que se impõe é a de que há vários sistemas cognitivos,

em função do tipo de verdade e da lógica aceitos.11

Reconhece-se que nas várias ciências se busca o conhecimento. Mas o que é o

conhecimento? Em síntese, conhecimento é crença verdadeira e justificada. Essa é a

denominada definição padrão de conhecimento, aceito por numerosos autores. Ela

8 Mais adiante se lançará mão da noção de quase-verdade originalmente elaborada por NEWTON DA COSTA. 9 DA COSTA, Newton Carneiro Affonso. O conhecimento científico. 2. ed., Discurso Editorial, São Paulo: 1999, p. 22. 10 Salvo aviso expresso em contrário, conhecimento, neste artigo, sempre significará conhecimento científico. Conhecimento se correlaciona com verdade. Em geral, quando se pensa em conhecimento se está comprometido com o conceito de verdade como correspondência, que é a concepção clássica de verdade. Por outro lado, verdade e lógica constituem noções interligadas estreitamente. Por depender da verdade, conhecimento e lógica acham-se imbricados entre si. Há, portanto, uma tripla relação: verdade-lógica-conhecimento. 11 Por exemplo, se se admitir que a física quântica é governada por uma lógica diferente da clássica, a forma de conhecimento associada a ela não pode ser a tradicional, que depende da lógica clássica. Da mesma forma, uma teoria da verdade que não seja a da correspondência conduz a uma sistematização cognitiva diversa da clássica. Ademais, nada impede que a ciência seja constituída por diversos sistemas cognitivos convenientemente interconectados. Em cada domínio da ciência empírica, deve-se utilizar o sistema cognitivo que melhor dê conta dele, situação que é similar a da lógica. Há um sistema empírico nuclear, baseado na lógica clássica, que coordena, por assim dizer, os diversos sistemas empíricos e alternativos: trata-se de sistema standard clássico, pelo menos na atualidade. Em sistemas diferentes do tradicional sempre será necessário indicar as modificações lógicas que serão introduzidas para dar conta das diferenças. Seja como for, em princípio, a filosofia da ciência se enquadra dentro dos padrões clássicos e tem como lógica subjacente a lógica clássica.

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afirma basicamente o seguinte: X conhece a proposição p se e somente se X crê em p, p

é verdadeira e a crença em p é justificada.

Daqui em diante, o termo conhecimento será utilizado como crença verdadeira

e justificada.

A definição acima pode sofrer algumas restrições, porém ela é conveniente

para os propósitos deste artigo. Como a ciência é, acima de tudo, atividade racional e

crítica, então pouco a pouco “conhecimentos" em que a justificação não se mostra

apropriada à crença correspondente serão superados, substituídos por outros mais de

acordo com aquilo que implícita ou explicitamente se espera. Em síntese, o progresso

permanente da ciência burila e aprimora os conhecimentos adquiridos.

Naturalmente, se conhecimento é crença verdadeira e justificada, deve-se

analisar a noção de crença, bem como as de verdade e justificação. O termo verdade

será tratado mais adiante. Por enquanto, assuma-se que ele é suficientemente claro. No

tocante à justificação, parece cristalino que ela difere no campo das ciências formais

(lógica e matemática) e no campo das ciências empíricas.

O que interessa aqui não são os sistemas de crenças realmente sustentados por

uma pessoa ou grupo de pessoas; nem os sistemas ampliados quando se patenteia a

alguém que esta ou aquela sentença é conseqüência lógica das proposições em que ele

acredita, embora não houvesse deduzido. O que é importante aqui são sistemas

idealizados de crenças, fechados pela relação de conseqüência lógica. Além disso, é

preciso que o sistema seja congruente e não trivial: com a lógica subjacente a ele não

deve ser possível derivar-se qualquer proposição. A lógica a que normalmente se

recorre, em ciência, é a lógica clássica, de modo que se supõem consistentes os sistemas

de crença, pois, em caso contrário, eles seriam triviais (na lógica clássica, um sistema

dedutivo inconsistente é trivial).

A ciência é atividade racional acima de tudo. Mas em que consiste a

racionalidade científica? A nota nuclear da racionalidade reside no seu fundamento

conceitual. Em qualquer ciência empírica, procura-se compreender a realidade por meio

de sistemas conceituais.

Mas, particularmente, a racionalidade não se resume à sua vertente conceitual.

Assim, a elaboração de uma teoria �, em qualquer campo científico, pressupõe que, ao

se aceitar os princípio de �, também se deve aceitar todas as suas conseqüências

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lógicas. Em outras palavras, o cientista sempre se acha comprometido com dada lógica

dedutiva, que por enquanto se admite que seja a lógica clássica. Se os postulados dos

quais se parte forem verdadeiros, o que se obtém por meio da lógica dedutiva também

tem que ser verdadeiro. A racionalidade, pois, obriga à conformidade com determinada

lógica. A logicidade é a segunda característica da racionalidade.

Se alguma conseqüência lógica dos princípios de � não se evidencia

verdadeira, algo de errado ocorre com � (ou com as condições contorno que foram

utilizadas, junto com �, para se derivar a referida conseqüência, sobre a qual pairam

dúvidas). Desse modo, pode-se, sob certas circunstâncias, refutar uma teoria. Nessa

operação, a lógica se mostra e essencial.

Entretanto, as inferências que se faz na ciência e na vida cotidiana não se

enquadram apenas entre as dedutivas. Uma espécie biológica cuja racionalidade se

limitasse unicamente em sacar conclusões dedutivas de sistemas de proposições

desapareceria na luta pela existência. Necessita-se imperativamente efetuar inferências

que não são dedutivas, tais como a indução por simples enumeração, a analogia, a

inferência estatística e o método hipotético-dedutivo. Atualmente, o emprego abundante

da lógica indutiva, em particular a utilização de lógicas não-monotônicas em

inteligência artificial e da metodologia estatística nas disciplinas sociais, confirma o que

se acaba de asseverar. A lógica indutiva amplia a lógica dedutiva clássica, permitindo

que se recorra, justificadamente, a regras de inferência não dedutivas. Em tais regras,

mesmo que as premissas sejam verdadeiras, a conclusão pode não ser. Denomina-se

indutivo um mecanismo de referência como o descrito. Equivalentemente, indução é

categoria de inferência que não preserva, infalivelmente, a verdade.

As grandes conquistas da ciência, ao nível teórico, sempre se executam pelo

método hipotético-dedutivo, que pertence à classe das inferências indutivas. Quando se

está em presença de um problema ou de uma família de problemas, muitas vezes se

formula uma teoria �, que vai além dos dados que se dispõe, e, então, via �, trata-se de

superar as dificuldades, discutindo-se a natureza dos problemas e resolvendo-os no

interior do esquema conceitual provido por �.

Por exemplo, Isaac NEWTON (1642-1727) formulou a mecânica tradicional

para dar conta, isto é, explicar e organizar vasta quantidade de situações, que envolviam

as noções de movimento, força e equilíbrio. Formulada uma teoria, ensaia-se, então,

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verificá-la ou refutá-la. Quanto mais ela resiste à refutação e maior for o número de

conseqüências que a comprovam, tanto melhor: mais ela se impõe. Naturalmente, há

outros fatores que contribuem para a aceitação de teorias, como a simplicidade, seu

caráter intuitivo e a amplitude do escopo.

Ademais, um dos traços mais marcantes da racionalidade se condensa numa

palavra: crítica.

A atitude do cientista implica postura crítica permanente. Não há teoria, não há

experimento, que por mais bem estabelecido que se julgue, consiga se furtar à análise

crítica. Duramente as teorias são testadas, analisadas e remodeladas. Pouca coisa em

ciência é definitiva. A posição central da crítica constitui a essência da racionalidade.

Sem tirocínio crítico não há ciência.

As asseverações anteriores valem especialmente no tocante às ciências reais,

embora com pequenos retoques abranjam também as disciplinas formais, sobretudo se

essas últimas forem encaradas sob o prisma de sua gênese, ao que se costuma chamar de

contexto de descoberta, em oposição ao contexto de justificação.12

Então, a racionalidade, em ciência, possui quatro dimensões: a conceitual, a

dedutiva, a indutiva e a crítica.

Relativamente às ciências fatuais, a razão apela, de modo reiterado, à

experiência e à observação. Ainda assim, ela não copia ou apenas retrata o universo, o

real; ela cria, tece redes conceituais que servem como urdiduras de referência, de

coordenadas, para que se possa agir em dada circunstância. O poder construtivo da

razão é salientado por Albert EINSTEIN (1879-1955): “Os conceitos da física são criações do espírito humano e, não, como possam parecer, determinadas pelo mundo externo. Em nosso esforço para compreender a realidade, a nossa posição lembra a de um homem que procura adivinhar o mecanismo de um relógio fechado. Este homem vê o mostrador e os ponteiros, ouve o tique-taque, mas não tem meios de abrir a caixa que esconde o maquinismo. Se é um homem engenhoso, pode fazer idéia de um mecanismo responsável por tudo que ele observa exteriormente, mas não poderá nunca ter certeza de que o maquinismo que ele imagina seja o único que possa explicar os movimentos exteriores. Não poderá nunca comparar a idéia que forma do mecanismo interno com a realidade desse mecanismo – nem sequer pode imaginar a possibilidade ou a significação de tal comparação. Mas realmente crê que, à medida que o seu conhecimento cresce, a sua representação da realidade se torna mais e mais simples e explicativa de mais e mais coisas. Ele pode ainda crer na existência de limites para

12 Sobre as diferenças entre contexto de descobrimento e contexto de justificação na ciência, cf. CELLA, José Renato Gaziero, SERBENA, Cesar Antonio. Lógica deôntica paraconsistente e hard cases. In Anais do VI Congresso Brasileiro de Filosofia, v. II, p. 973-986.

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o conhecimento, e admitir que o espírito humano aproxima-se destes limites. Esse extremo ideal será a ‘verdade objetiva’.”13

Por esses e outros motivos a verdade inerente ao conhecimento científico não

pode, pelo menos em níveis teóricos, afastados da experiência imediata, confundir-se,

como pretende a teoria tradicional da verdade, pura e simplesmente com a

correspondência ou com a reprodução. Todavia, numa primeira aproximação, a teoria

da verdade como correspondência funciona, isto é, ela capta alguns aspectos do

emprego da verdade em ciência.

Uma matéria digna de nota sobre o tema da possibilidade do conhecimento

reside nas posições relativistas. Muitos são os especuladores que defendem a tese

segundo a qual a ciência depende da cultura; variando esta, os conhecimentos

científicos mudam.

Mesmo quando há enormes discrepâncias e desacordos quase insuperáveis no

prisma cultural (mundos diversos, aparentemente incompatíveis), ainda assim se

percebe um quid comum: a queda dos corpos, segundo o gregos clássicos, dissente

profundamente da interpretação galileana, que é a atual. Porém, um pensador grego,

ARQUIMEDES ou EUCLIDES, por exemplo, postos em contato com a física atual

acabariam por compreendê-la e saberiam como relacioná-la com a da sua época.14

13 EINSTEIN, Albert, INFELD, Leopold. The evoluction of physics. Simon and Schuster, New York: 1938. 14 Daí se podem extrair, desde logo, críticas ao posicionamento eminentemente relativista de Edgar MORIN. Ernest GELLNER (1925-1995), por exemplo, que admite a possibilidade de se chegar a uma verdade única (verdade aqui não no sentido forte do termo, mas próximo daquilo que adiante será definido como quase-verdade, pois esse autor reconhece o caráter relativo dos fundamentos da ciência, admitindo ser provavelmente impossível que a teoria do conhecimento possa desempenhar com rigor absoluto sua tarefa de fundamentação e legitimação do conhecimento sem incorrer na circularidade (petitio principii) ou no regresso ao infinito (cf. PORCHAT, O. P. Ceticismo e saber comum. In: Vida Comum e Ceticismo, p. 114), sustenta que, científica e moralmente, entre as diversas verdades uma deverá ser a mais forte. GELLNER não aceita, portanto, que a todo argumento ou opinião se possa sempre opor, à moda de PIRRO (295-272 aC), outro argumento ou opinião, igualmente possível. Aceitar isso implica o reconhecimento da impossibilidade de qualquer progresso científico. Para GELLNER, ao contrário: “...dos velhos sistemas que Descartes e a epistemologia moderna puseram a pique, se não resultou uma nova embarcação confiável e em boas condições de navegabilidade, restos ao menos sobraram dos quais ‘alguns pedaços são melhores que outros’ e podem, convenientemente reunidos e amarrados, compor ‘uma jangada passável’. Nas páginas finais de uma de suas obras mais importantes, GELLNER enumera esses elementos que, a seu ver, acabaram sendo destilados por um consenso emergente de alguns séculos de reflexão filosófica, elaborada sob o impacto da epistemologia moderna” (GELLNER, Ernest. Legitimation of belief. Cambridge: Cambridge University Press, 1974, p. 206-208). A peculiar idéia de verdade única não deve levar, necessariamente, a uma nova espécie de etnocentrismo e colonialismo. Segundo GELLNER são os relativismos que, sob o manto da tolerância, chegam a admitir absurdos como a justificação de opressões existentes em certas culturas, tais como torturas e mutilações sistemáticas. Segundo Ernest GELLNER, “num mundo como o nosso, a injunção relativista que nos diz

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Na metamorfose da ciência, as revoluções são pontos de inflexão, sem ruptura

da continuidade da curva histórica. E esta, em numerosas ocasiões, origina vários

ramos, da geometria grega procedem as geometrias de hoje, tanto puras quanto

aplicadas.

Veja-se o que afirma POINCARÉ: “Sem dúvida, à primeira vista, as teorias nos parecem frágeis e a história da ciência nos demonstra que são efêmeras; e no entanto, não morrem completamente, e de cada uma delas subsiste alguma coisa. ...Pouco nos importa que o éter exista realmente; este é um tema para os metafísicos. O relevante para nós é que tudo ocorra como se ele existisse, e que esta hipótese se mostre cômoda para a explicação dos fenômenos.”15

As ciências empíricas se constituem em sínteses de criação racional, de

observação e de experimentação. Razão e experiência se fundem.

O pesquisador tece redes conceituais, motivadas e controlados pela

experiência, para impor ordem ao universo. Assim, ele também consegue prever,

retrover e prover. Apesar de as teorias, hipóteses e leis serem parcialmente inventos do

cientista, elas revelam algo da realidade circundante e, portanto, inspiram-se na

observação, na experimentação e em outras teorias já aceitas.

Os conceitos nucleares das diversas áreas científicas, suas categorias, que

compõem as estruturas básicas, são trabalho do cientista. Assim, há vários espaços,

tempos e espaços-tempos desenvolvidos pelos pesquisadores, para utilização quer na

mecânica clássica, quer na relatividade restrita, quer na relatividade geral, quer na

sociologia, quer no direito.

‘quando em Roma, aja como os romanos’ se descobre vazia de conteúdo, porquanto, simplesmente não há ‘Roma’ nem ‘Romanos’, não há mais ‘cidades’ identificáveis, isto é, unidades identificáveis, em termos dos quais a alegada relatividade possa operar” GELLNER, E. Idem, p 48-49). Para GELLNER também o relativismo lógico é inaceitável, pois “...o que está em jogo aqui não é a diferença entre meras teorias rivais mas entre incomensuráveis paradigmas rivais — o que pode ser chamado o problema de Thomas KHUN. Aqui, dar nota não é inútil mas, ao contrário, obrigatório. Inevitavelmente fazemos isso de qualquer modo. Há progresso científico, não apenas mudanças insignificantes de modas” (GELLNER, E. Sobre as opções de crença, Folha de São Paulo, 15 de maio de 1994, p. 6-11). 15 POINCARÉ, H. Science et hipothèse. Flammarion, Paris: 1902, p. 79. Por exemplo, na dogmática jurídica, aceita-se a ficção de que todos conhecem a lei – e nesse caso se sabe, inclusive, que isso não é verdade (no sentido tradicional de verdade como correspondência) – mas pragmaticamente se toma essa ficção como um fato e se age como se tudo ocorresse como se ninguém desconhecesse a lei, sob pena de se inviabilizar a possibilidade de aplicação do direito e, em decorrência, a própria razão de ser do desenvolvimento de teorias do direito. Salva-se, assim, as aparências por meio da verdade pragmática (quase-verdade). Para um estudo mais detalhado das ficções jurídicas, cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. RT, São Paulo, 1980.

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Assim, na ciência, capta-se e se explica o real por meio de conceitos e redes

conceituais, que o cientista constrói e submete à crítica da comunidade científica. Por

essa rota, obtêm-se as leis, hipóteses e teorias. Elas permitem ordenar o universo por

meio de explicações, previsões e sistematizações. A ciência se talha recorrendo a

sistemas de categorias, categorias essas que não são hirtas e imutáveis, mas que vão se

estabelecendo e se modificando no transcurso da história da ciência. A continuidade

histórica da evolução da ciência ocidental parece evidenciar que a existência de

paradigmas categoriais diversos não implica necessariamente a sua

incomensurabilidade, como queria KUHN.

Essencialmente, então, a racionalidade científica radica no seguinte:

1. A ciência real se desenvolve por intermédio da dedução (lógica dedutiva) e

da indução (lógica indutiva). A dedução cobre a dimensão teórica, o arcabouço

simbólico da ciência, enquanto a indução conduz, entre outras coisas, à justificação

(corroboração, falsificação, etc.);

2. A postura científica se assenta sobre crítica permanente, isto é, o tirocínio

crítico nunca é deixado de lado;

3. A dedução e a indução, estritamente falando, pressupõem que haja uma

linguagem mais ou menos precisa, pelo menos em princípio, com o auxílio da qual se

mapeia a experiência, expressa-se o teórico e se testam resultados.

Portanto, a ciência, em decorrência, possui uma característica adicional: o

processo científico se mostra objetivo e controlável, mesmo que a objetividade e o

controle, assim obtidos, não sejam absolutos. Todavia, dedução, indução e crítica

eliminam o arbítrio e boa porção de subjetividade.

2. A Noção de Verdade

Comumente se diz que a meta da ciência é encontrar a verdade. No entanto, há

várias concepções da verdade. As três concepções relevantes são as seguintes: a

concepção clássica de verdade como correspondência, a pragmática e a coerencial.

Pode parecer, às pessoas não prevenidas, que a ciência pesquisa para obter a

verdade como correspondência: uma teoria científica é verdadeira se refletir o real, se

retratar aquilo que é como é.

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ARISTÓTELES declarou, no livro Γ (quarto) da Metafísica, que “dizer do que

é que não é e do que não é que é, é falso; enquanto dizer do que é que é, ou do que não

é, que não é, é verdadeiro”16. De conformidade com a concepção correspondencial a

verdade é aquilo que é, e a falsidade é aquilo que não é.

No entanto, há muitos reparos a uma posição que sustente, pura e

simplesmente, ser da essência da indagação científica alcançar a verdade qual

correspondência.

Torna-se necessário, pois, repensar a natureza e o papel da verdade em ciência.

A concepção clássica, tradicional, da correspondência mantém que uma

sentença (podendo exprimir uma crença) é verdadeira caso reflita o real, retrate aquilo

que é; se isso não se der, ela é falsa. As crenças ou as sentenças apontam para estados

de coisas: se eles existem, elas são verdadeiras; em hipótese contrária, são falsas.

Uma teoria da correspondência, para ser filosoficamente satisfatória, deve

deixar clara a índole da correspondência que deve existir entre sentenças ou crenças, de

um lado, e a realidade, de outro, que assegure a verdade.

Isso conduz a problemas difíceis, porquanto, entre outras questões merecedoras

de esclarecimento, incluem-se as seguintes: a) se se vai comparar a sentença S com a

realidade, torna-se preciso que se saiba qual a estrutura da linguagem L em que se

formula S ou, pelo menos, a estrutura de S, podendo tais estruturas, em princípio,

descrever o real. Assim, apresenta-se a questão de se estabelecer as relações vigentes

entre linguagem e realidade; b) portanto, é imprescindível saber como a realidade está

estruturada ou dispor de uma teoria do real. E essa teoria deve ser verdadeira, chegando-

se, ao que tudo indica, a um círculo vicioso (petitio principii); c) se assim é, como se

pode comparar linguagem (sentenças) ou pensamento (crenças) com aquilo a que eles se

referem e que se situa fora da linguagem ou do pensamento? Obviamente, só parece

possível comparar sentenças ou crenças com nosso corpo de crenças ou de experiências

16 Para ARISTÓTELES o princípio da contradição (ou da não-contradição), sendo o mais seguro de todos, é de tal forma que sobre ele “...é impossível errar: esse princípio deve ser o mais conhecido (...) e deve ser um princípio não hipotético. Com efeito, o princípio que deve necessariamente ser possuído por quem quer conhecer qualquer coisa não pode ser uma pura hipótese, e o que deve conhecer necessariamente quem queira conhecer qualquer coisa já deve ser possuído antes que se aprenda qualquer coisa. É evidente, portanto, que esse é o princípio mais seguro de todos. Depois do que foi dito, devemos definir esse princípio. É impossível que a mesma coisa, ao mesmo tempo, pertença e não pertença a uma mesma coisa, segundo o mesmo aspecto... Este é o mais seguro de todos os princípios... Efetivamente, é impossível a quem quer que seja acreditar que uma mesma coisa seja e não seja...” (ARISTÓTELES, Metafísica. Γ 3, 1005 b 10-20, Loyola, São Paulo, 2002, p. 143-145).

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sobre o real. Estritamente falando, somente há comparação possível entre pensamento e

pensamento; e d) se se copia algo do real ao se formular sentenças verdadeiras, qual a

natureza dessa cópia? O que liga esta e o objeto original?

Vários autores tentaram resolver essas e outras questões ligadas à noção

correspondencial de verdade. Para tanto, como não poderia deixar de ser, apelaram para

princípios metafísicos e teorias especulativas. Para fugir disso, talvez fosse interessante

a elaboração de algum tipo de definição de verdade que se afigurasse neutra no tocante

a todos esses obstáculos.17

Por outro lado, parece óbvio, pelo menos com relação a certas sentenças (e

crenças) simples, o que se entende por verdade correspondencial. Por exemplo, a

verdade de uma sentença da espécie de Estou vendo um retrato de Roberto Carlos ou de

João e eu conversamos ontem tem sentido transparente e estamos todos certos, em

ocasiões variadas, em sustentar que são verdadeiras ou que são falsas. Embora

possamos nos enganar algumas vezes e sejamos obrigados a revisar nossas crenças mais

elementares, o fato é que a noção de verdade (ou de falsidade) envolvida em tais

sentenças se baseia em intuição forte, ponto de largada para qualquer elaboração

racional.

Por tudo isso, considera-se o conceito clássico de verdade como primitivo, ou

seja, como o ponto de partida das nossas construções teóricas. Ele se acha pressuposto

em todas as nossas atividades práticas e teóricas. Filosoficamente, verdade é conceito

último, indefinível por meio de outros mais simples, se utilizarmos o termo definição na

acepção de proposição que caracteriza e esclarece, sem petição de princípio, um

conceito. A própria sentença expressando a definição, em sentido estrito, de verdade

teria de ser verdadeira.

Embora primitivo, intuitivo e basilar, o conceito tradicional de verdade exibe

alguns pontos cegos: o paradoxo do mentiroso fornece um exemplo (esta sentença é

falsa).18 Quando a sentença S se refere a estados de coisas que não incluem ela mesma,

a verdade de S não oferece margem para dúvidas sobre suas condições de verdade ou de

17 Uma boa saída para esse problema é a noção de verdade proposta por Alfred TARSKI (1902-1983), porém a sua análise fugiria aos propósitos deste artigo. 18 Trata-se do célebre paradoxo do mentiroso ou de EPIMÊNIDES (século V aC), o cretense. EPIMÊNIDES teria dito que todos os gregos eram mentirosos, fazendo com que o povo perguntasse se ele não estaria mentindo ao dizer tal coisa. Se digo eu estou mentindo, somente posso mentir se disser a verdade, e vice-versa, sendo essa afirmação paradoxal em si mesma.

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falsidade; porém, quando há auto-referência, a situação se complica e se torna

necessária uma análise profunda para se suplementar a intuição nuclear.19

Não obstante o caráter primitivo da verdade correspondencial, torna-se

possível caracterizá-lo formal e matematicamente entre amplos limites. Além disso,

esse procedimento elimina inteiramente os paradoxos.20

Atente-se agora para a idéia de verdade pragmática (ou de quase-verdade),

aplicável às ciências empíricas. As filosofias pragmáticas enfatizam a prioridade da

experiência e da ação sobre o ser e o pensamento.21

As ciências empíricas, em resumo, utilizam-se de leis, hipóteses e teorias que

sabidamente não reproduzem a realidade. Há teorias, até, que mesmo após terem sido

abandonadas, posto que falsas, ainda hoje podem ser usadas para captar o real de

maneira aproximada; é o que se dá, por exemplo, com o sistema de PTOLOMEU: suas

predições, dentro de limites que lhe são próprios, permanecem sendo aceitáveis.

Informalmente, define-se a verdade correspondencial como o acordo entre

pensamento e objeto, entre sentença e fatos.

Há, por outro lado, um conceito de verdade, denominado verdade pragmática,

de conformidade com o qual a sentença S é pragmaticamente verdadeira, ou quase-

verdadeira, em um domínio do saber D, se, dentro de certos limites, S salva as

aparências em D ou, em D, tudo se passa como se ela fosse verdadeira segundo a teoria

da correspondência. 19 Ressalte-se que os sistemas jurídicos têm a característica de serem auto-referenciais, o que indica, desde logo, que a noção clássica de verdade é insuficiente para dar conta desses sistemas. 20 Por exemplo, paradoxos como o do mentiroso são superados, na teoria de TARSKI, pela hierarquia de linguagens: linguagem objeto, metalinguagem, meta-metalinguagem, etc. Evita-se, desse modo, a auto-referência, em particular sentenças que aludem a si mesmas. Exclui-se, portanto, linguagens semanticamente fechadas, isto é, que tratam de suas próprias semânticas. A introdução dessa restrição consiste em artifício lógico-matemático que individualiza extensionalmente a verdade em determinados contextos, particularmente apropriados para aplicações nos domínios abstratos da lógica e da matemática. Assim, o paradoxo de EPIMÊNIDES (do mentiroso) e outros análogos evidenciam que há uma hierarquia de noções de verdade, de conformidade com a distinção entre linguagem e metalinguagem. Por intermédio desse artifício teórico, não há obstáculo para se superar os paradoxos semânticos em geral, mantendo-se a lógica clássica. 21 Para um maior aprofundamento sobre a filosofia pragmática, cf. CELLA, José Renato Gaziero. Razão e Experiência: Ideal e Real em Dewey. Sobre o tema, são também esclarecedoras as seguintes passagens dos pensamentos de Charles Sanders PEIRCE (1839-1914) e William JAMES (1842-1910): “...consideremos que efeitos o objeto de nossa concepção possa ter, no tocante a resultados práticos. Então, nossa concepção desses efeitos é a totalidade de nossa concepção do objeto... A opinião que é fadada a ser ultimamente aceita por todos que investigam é o que significamos por verdade, e o objeto representado por essa opinião é o real” (PEIRCE, C.S. Philosophical writings of peirce. Dover, New York: 1965, p. 31). “A verdade é o nome de tudo o que se mostra bom no caminho da crença... A verdade

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Então, nada há de definitivo no tocante à verdade, em ciência. O único critério

para se aceitar um enunciado como verdadeiro é o seguinte: ele deve se acomodar,

coerentemente, isto é, de maneira consistente e ajustada, ao corpo da ciência. Quando

isso não ocorre, modifica-se a ciência ou abandona-se o enunciado (as mudanças, em

ciência, são normalmente locais).

Em síntese, o cientista procura leis e teorias que são aproximadamente

verdadeiras e salvem as aparências, isto é, que sejam quase-verdadeiras em certos

domínios. Sob circunstâncias especiais, a quase-verdade envolvida na atividade do

cientista pode coincidir com a verdade (correspondencial); por exemplo, quando

afirmamos que o ponteiro de dado instrumento de medição, em uma verificação ou

medida, situou-se entre as marcas 2 e 3 do mostrador.

3. Metodologia Científica

Quanto à metodologia, a ciência deve possuir certos traços próprios:

(...) é somente o vantajoso em nossa via de pensar” (JAMES, W. Pragmatism. Harvard University Press, Cambridge: 1975, p. 59).

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A) Ela se acha envolvida com a verificação22, a corroboração e a falsificação23.

Com efeito, a quase-verdade só faz sentido firmando-se em sentenças básicas

verificáveis, cuja verdade ou falsidade correspondencial se estabelece como certa

(coincidência de ponteiros e marcas em escalas numeradas, configurações fotográficas,

etc.). Ademais, a quase-verdade de teorias e de leis só se aceita pela via da

22 Em rigor, não há verificação cabal da verdade de teorias, pois estas são apenas quase-verdadeiras (ou aproximadamente verdadeiras). Todavia, a verificação parcial ou confirmação da quase-verdade é relevante, para ser lícito mantermos que nossas leis e teorias são pragmaticamente verdadeiras. 23 Ao contrário do que sustentam Rudolf CARNAP (1891-1970) e Karl POPPER (1902-1994), não existe propriamente falsificação de teorias, pelo simples motivo de que uma boa teoria não se falsifica propriamente, mas apenas que se restringe, quando necessário, o seu domínio de aplicação. As concepções de CARNAP (The logical foundations of probability. Routledge and Kegan Paul, London: 1951) sobre a corroboração da verdade de teorias e aquelas de POPPER (The logic of scientific discovery. Hutchinson, London: 1972) sobre a falsificação, portanto, mostram-se igualmente falhas, embora contenham algo de correto, desde que se referindo à quase-verdade e com adaptações convenientes. Assim, a ciência empírica se compõe de conjuntos de sistemas cognitivos que dão conta de domínios variados, segundo critérios mais ou menos precisos. As teorias devem sua aceitação à quase-verdade que contêm. Uma boa teoria em D, devidamente corroborada e resistente à quase-falsificação é, foi e será perpetuamente quase-verdadeira em D. Sobre o pensamento de POPPER, cumpre ainda fazer as seguintes observações: “Ele quer, antes de mais nada, estabelecer um critério de demarcação entre teorias científicas e não-científicas, e pensa tê-lo encontrado na noção de falseabilidade: para ser considerada científica, uma teoria deve fazer predições que podem, em princípio, ser falsas no mundo real. Para Popper, teorias como astrologia ou psicanálise evitam submeter-se a tal teste, seja não fazendo predições exatas, seja ajustando seus enunciados de maneira ad hoc de modo a acomodar seus resultados empíricos que contradigam a teoria. Se uma teoria é falsificável, e portanto científica, pode ser submetida a testes de falsificação. Quer dizer, podem-se comparar as predições empíricas da teoria com observações ou experimentos; se estes últimos contradizem as predições, segue-se que a teoria é falsa e deve ser rejeitada. A ênfase na falsificação (por oposição à verificação) ressalta, de acordo com Popper, uma assimetria crucial: não se pode provar que uma teoria é verdadeira porque ela faz, em geral, uma infinidade de predições empíricas, das quais apenas um subconjunto finito pode ser testado; pode-se, contudo, provar que uma teoria é falsa, porque, para que isso ocorra, basta uma única observação (confiável) que contradiga a teoria. A esquematização de Popper – falsifiabilidade e falsificação – não é má, se for aceita com certa reserva. Porém numerosas dificuldades vêm à tona quando tentamos tomar a doutrina falsificacionista ao pé da letra. Pode parecer atraente abandonar a incerteza da verificação em favor da certeza da falsificação. Mas essa abordagem colide com dois problemas:... A primeira dificuldade diz respeito ao status da indução científica. Quando uma teoria resiste com sucesso a uma tentativa de falsificação, um cientista considerará, muito naturalmente, a teoria como parcialmente confirmada e conferirá a ela maior plausibilidade ou probabilidade subjetiva mais elevada. O grau de plausibilidade depende, evidentemente, das circunstâncias: a qualidade da experiência, o inesperado do resultado etc. Mas Popper não estaria de acordo com nada disso: no curso de sua vida, foi um obstinado opositor de qualquer idéia de ‘confirmação’ de uma teoria, ou mesmo de sua ‘possibilidade’. Ele escreveu:

‘É racionalmente justificado raciocinar a partir de repetidos exemplos de que temos experiência para exemplos de que não tivemos nenhuma experiência? A resposta implacável de Hume a esta questão está correta...’

Obviamente, cada indução é uma inferência do observado para o não-observado, e nenhuma interferência deste tipo pode ser justificada usando-se somente a lógica dedutiva. Todavia, como vimos, se este argumento fosse levado a sério – se a racionalidade se limitasse unicamente à lógica dedutiva – isso implicaria também que não existe boa razão para acreditar que o sol surgirá amanhã, embora ninguém espere realmente que o sol não desponte” (SOKAL, Alan, BRICMONT, Jean. Imposturas intelectuais: o abuso da ciência pelos filósofos pós-modernos. Record, Rio de Janeiro: 1999, p. 70-71).

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corroboração: aumento da probabilidade pragmática de modo progressivo24; e a

falsificação consiste, essencialmente, na restrição dos domínios de aplicação das

construções cognitivas (redução dos universos das estruturas pragmáticas associadas,

que podem se tornar vazios).

B) Os sistemas cognitivos científicos devem satisfazer a determinadas

condições de natureza pragmática: simplicidade25, poder explicativo, valor heurístico,

coerência com diversas outras teorias científicas, possibilidade em princípio de

axiomatização26 e poder de sistematização da experiência, entre outras. Só parece

24 Habitualmente, quando se fala em grau de crença em α, está-se referindo a grau de crença na verdade (correspondencial) de α. Isso acarreta que a probabilidade de uma teoria, como a mecânica newtoniana e a relatividade geral, só pode ser nula. Com efeito, aquela já se sabe que não vige em certas condições; e esta, como toda teoria forte, será seguramente falsificada em futuro próximo (destino de qualquer teoria ou hipótese que não se mostre trivial). Portanto, considerando-se tudo o que foi dito sobre a idéia de quase-verdade, parece necessário que se trate de probabilidades somente quando relacionadas à quase-verdade, ou seja, graus de crença (racional) na quase-verdade de enunciados; e no caso de proposições ou enunciados básicos, para os quais verdade e quase-verdade coincidem, em que os graus de crença serão referentes à verdade. Probabilidades assim definidas, por intermédio da quase-verdade, serão denominadas como probabilidades pragmáticas e, daqui em diante, probabilidade sempre designará probabilidade pragmática, salvo menção explícita em contrário. 25 Exigir simplicidade não implica ocultar, como pretende MORIN, a complexidade do mundo circundante. Antes pelo contrário, a beleza das teorias científicas mais sofisticadas decorre da sua capacidade de traduzir com simplicidade os domínios do real (no sentido relacional proposto neste artigo). Considere-se uma descrição verbal do efeito de gravidade: solte uma bola e ela cairá. Este é um fato bastante evidente, mas vago pela forma como frustra os cientistas. Com que velocidade a bola cai? Cai em velocidade constante ou acelerada? Uma bola mais pesada cairia mais depressa? Mais palavras, mais sentenças dariam detalhes, mas ainda seriam incompletas. A maravilha da matemática é que ela captura precisamente em alguns símbolos o que só pode ser descrito em muitas palavras. Estes símbolos, enfileirados numa ordem significativa, formam equações – que, por sua vez, constituem o corpo de conhecimento mais conciso e confiável do mundo. E assim é que a física oferece uma equação muito simples para calcular a velocidade de uma bola caindo. As equações tidas pelos cientistas como as mais belas se caracterizam por sua simplicidade e pela amplitude de conhecimento que conseguem captar, além de sua importância histórica. A equação matemática sobre a velocidade da bola caindo tem apenas quatro símbolos: v=gt. Com ela, calcula-se a velocidade da bola 2,5 segundos depois da sua soltura. (Ela é g, a aceleração da gravidade, que é de 9,6 metros por segundo ao quadrado, multiplicado por 2,5 segundos, dando uma resposta de 24 metros por segundo). Outras equações fantásticas são as de MAXWELL (1831-1879) – conjunto de quatro que descreve a interação entre campos elétrico e magnético – a de EULER (1707-1783), puramente matemática, de uso na física teórica. Ela combina números racionais e irracionais para obter zero. Há também a fórmula já familiar E=mc2, de EINSTEIN, que iguala energia e matéria; o teorema de PITÁGORAS; e F=ma, de NEWTON, entre outros. Com um mero punhado de símbolos, essas fórmulas simples descrevem inúmeros fenômenos do universo. 1+1=2 é um conto de fadas da matemática, provavelmente a primeira equação que se aprende na infância, a primeira expressão do poder milagroso da mente para mudar o mundo real. Imagine-se (ou se constate) a primeira vez em que uma criança levanta o dedo indicador, o dedo 1 de cada mão, quando aprende a expressão; e o momento de assombro, talvez seu primeiro assombro verdadeiramente filosófico, quando ela vê que os dois dedos, separados por todo seu corpo, podem ser reunidos num único conceito em sua mente. 26 Segundo Adonai Schlup SANT’ANNA (1964- ): “1. O processo de axiomatização sintetiza parte significativa do método científico. As chamadas teorias científicas sempre partem de um mínimo de pressupostos para, por meio de um sistema dedutivo, permitir a inferência de um máximo de conseqüências lógicas. A gravitação universal de Newton, por exemplo, permite descrever os mais

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sensato perseguir a quase-verdade quando essas condições forem, pelo menos em parte,

satisfeitas. Assim, a possibilidade de axiomatização garante a logicidade das teorias: a

adivinhação, o misticismo, etc. são excluídos a favor do raciocínio lógico. O trabalho

fundacional do cientista apenas se legitima caso se mostre suscetível de tratamento

lógico-formal, ainda que este não se concretize in totum. Todos esses preceitos

pragmáticos se mostram inerentes à quase-verdade e asseguram o pleno exercício da

razão.

C) A metodologia, especialmente da observação, da experimentação e da

medição, em dado momento histórico tem que ser a metodologia padrão dessa época:

não há isolamento metodológico em ciência. A metodologia delimita as interconexões

entre teoria e experiência e a perquirição científica se procede circunscrita pelas normas

metodológicas. Se essas mudam, transforma-se a ciência.

Mas como se explica a mudança de teoria, evolução progressiva da ciência?

Os motivos principais são os seguintes: a) ampliação dos domínios de

aplicação das teorias; assim se passa da mecânica de partículas de NEWTON à

mecânica dos corpos rígidos e à dos corpos elásticos; b) poder explicativo: as teorias

ainda que quase-verdadeiras, procuram fundamentalmente a verdade e esta, acredita-se,

variados fenômenos, desde a queda de uma maçã até a inexorável órbita da Lua. Essa metodologia científica parece ser algo muito importante para o ser humano. 2. O método axiomático tem um grande poder de síntese em um grau que oferece outra perspectiva em relação ao exposto acima. Ele tem qualidades pedagógicas interessantíssimas. Isso porque o método axiomático representa economia de pensamento... 3. O método axiomático tem o poder de qualificar discurso, de modo a permitir que questões de caráter filosófico em ciência sejam respondidas objetivamente. Em filosofia da ciência são discutidas, por exemplo, questões sobre a redução de uma teoria a outra, questões sobre a eliminabilidade de conceitos primitivos, questões sobre a consistência, decidibilidade e/ou completude de teorias etc. Todos esses tópicos podem ser objetivamente discutidos desde que uma formulação precisa seja dada à(s) teoria(s) em discussão. Nas palavras de Patrick Suppes: ‘Existe um papel para a filosofia com respeito às ciências. Não somos mais pregadores de Domingo para cientistas profissionais de Segunda-feira, mas podemos participar do entendimento científico de várias maneiras construtivas. Certos problemas de fundamentos são melhor resolvidos por filósofos do que por qualquer outra pessoa. Outros problemas de grande interesse conceitual realmente dependerão, para sua solução, de cientistas profundamente imersos na disciplina em questão, mas a iluminação do significado conceitual de soluções [de certos problemas] pode ser um papel propriamente filosófico... Os pregadores de domingo de Suppes são os antigos pensadores e críticos da metodologia científica, tais como Aristóteles, Descartes e Kant, entre outros. Hoje o papel da filosofia da ciência é bem diferente do que foi no passado. E o método axiomático tem um papel privilegiado nesse processo... Todas essas perspectivas apenas ilustram muito brevemente a riqueza do método axiomático. É como se estivéssemos olhando para um mesmo objeto no espaço, sob diferentes ângulos. Nesse sentido, o método axiomático é belo, pois sempre nos surpreende com novos aspectos quando o examinamos sob diferentes pontos de vista. Mas é claro que ele não é solução para todos os problemas de sistematização em ciência. Há limitações...” (O que é um axioma. Manole, Barueri: 2003, p. 129-132).

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deve ser compreendida ou compreensível, pois, caso contrário, pouco nos serviriam.27; e

c) fatores pragmáticos de naturezas diversas: simplicidade (especialmente matemática),

congruência com outras teorias (concordância experimental, redução de

incompatibilidades teóricas), poder de sistematização (quanto mais forte a teoria,

aglutinando mais e mais elementos empíricos, tanto melhor), etc.

Em poucas palavras, as transformações de teorias se efetuam por causas

pragmáticas, em adição à quase-verdade. Para as boas teorias, aquelas já

convenientemente corroboradas em dado campo, somente há abandono devido a

circunstâncias pragmáticas, pois a falsificação, ou seja o confronto negativo com a

experiência, tão-somente reduz seus âmbitos de aplicação.28

4. Considerações Finais

A formalização do conhecimento pelo método axiomático é o mais poderoso

instrumento de que se dispõe no momento29 para dar conta das teorias científicas: "A formalização, bem compreendida, é algo extremamente importante. Por seu intermédio não se quer condensar em algumas fórmulas toda a riqueza de uma teoria existente e informal. O fim da formalização é a obtenção de sistemas que nos ajudem a compreender melhor as concepções informais, mais ou menos como um mapa de Paris nos auxilia a nos orientarmos nessa cidade. Ninguém duvida da

27 Indague-se sobre o grau de compreensão, e em decorrência pela utilidade teórica, que pode desempenhar a afirmação de que o “...todo, portanto, é mais que a soma das partes. Mas, ao mesmo tempo, é menos que a soma das partes, porque a organização de um todo impõe constrições e inibições às partes que o formam, que já não têm tal liberdade” (MORIN, E. Epistemologia e Complexidade. In: SCHNITMAN, Dora Fried (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Artes Médicas, Porto Alegre: 1996, p. 278). É muito difícil ser capaz de desvendar esse enigma e muito mais árido perceber em que sentido essa afirmação, mesmo que no contexto do artigo em que ela está inserida, pode ser útil de alguma forma. Na verdade, não se consegue extrair outra coisa de referido artigo senão a confirmação da tautologia de que o mundo “é complexo, é muito complexo!” (Idem, p. 274). Porém a metodologia científica proposta pelo autor não dá conta dessa complexidade, senão, repita-se, o fato de possuir o mérito de afirmá-la. 28 Os câmbios de teorias, com abandono ou não da teoria superada, processam-se em dois níveis: o funcional e o lógico-formal. A falsificação completa da teoria T, a redução de seu domínio praticamente à classe vazia, é a única forma de se renunciar lógica e definitivamente a T. Como já se deixou patente, em geral, as transformações ou superações de teorias são causadas por motivos pragmáticos e as boas teorias nunca se põem de lado completamente. 29 Um último comentário sobre a provisoriedade das teorias científicas, narrado por Richard DAWKINS: “Mas é verdade que os cientistas, mais, digamos, que os advogados, os médicos ou os políticos, ganham prestígio entre os seus pares ao admitir publicamente os seus erros. Uma das experiências formativas de meus anos de graduação em Oxford ocorreu quando um professor visitante dos Estados Unidos apresentou evidências que refutavam de maneira conclusiva a teoria preferida de um líder idoso e muito respeitado de nosso departamento de zoologia, a teoria que todos tínhamos aprendido. No final da palestra, o velho se levantou, caminhou a passos largos até a frente da sala, apertou calorosamente a mão do americano e declarou com voz emocionada: ‘Meu caro colega, quero lhe agradecer. Estive enganado esses últimos quinze anos.’ Aplaudimos até as mãos ficarem vermelhas. Alguma outra profissão é tão generosa em admitir os seus erros?” (DAWKINS, Richard. Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento. Companhia das Letras, São Paulo: 2000, p 54)

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utilidade de um pequeno mapa de metrô da capital francesa, da mesma forma que ninguém confunde tal mapa com a Cidade Luz."30

Para concluir, veja-se o decálogo proposto por Bertrand RUSSELL em sua

autobiografia: “Os Dez Mandamentos que, como professor, eu gostaria de promulgar, podem ser enunciados da seguinte maneira: 1. Não te sentirás absolutamente certo de coisa alguma. 2. Não pensarás ser vantajoso progredir escondendo as provas, pois estas virão à luz inapelavelmente. 3. Não temerás o raciocínio, pois com ele vencerás. 4. Quando encontrares oposição, mesmo que seja a de teu marido e de teus filhos, esforçar-te-ás por superá-los pela força dos argumentos e não pela autoridade, pois uma vitória que depende da autoridade é irreal e ilusória. 5. Não respeitarás a autoridade de outros, pois encontrar-te-ás sempre com autoridades contraditórias. 6. Não usarás do poder para suprimir opiniões que julgas perniciosas, pois se o fizeres as opiniões suprimir-te-ão. 7. Não temerás ser excêntrico em tuas opiniões, pois toda e qualquer opinião hoje aceita já foi outrora excêntrica. 8. Encontrarás mais prazer na divergência inteligente do que na concordância passiva, visto que, se apreciares devidamente a inteligência, a primeira implica um acordo mais profundo que a segunda. 9. Serás escrupulosamente verdadeiro, mesmo que a verdade seja inconveniente, pois mais inconveniente será quando tentares ocultá-la. 10. Não sentirás inveja da felicidade daqueles que vivem num paraíso de insensatos, pois somente um insensato pensará que isso é felicidade.”31

5. Referências Bibliográficas

ARISTÓTELES, Metafísica. Γ 3, 1005 b 10-20, Tradução de Marcelo Perine, Loyola, São Paulo, 2002, p. 143-145.

CARNAP, Rudolf. The logical foundations of probability. Routledge and Kegan Paul,

London: 1951. CELLA, José Renato Gaziero, Realismo Jurídico Norte-Americano e Ceticismo,

comunicação apresentada no I Congresso Brasileiro de História do Direito, que teve como tema “Justiça e Gestão do Estado”, promovido pelo Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - CPGD/UFSC; pelo Grupo de Pesquisa em História e Cultura Jurídica da Cátedra Aberta da Fondazione Cassamarca; e pelo Instituto Brasileiro de História do Direito - IBHD; realizado em Florianópolis-SC nos dias 08 a 11 de setembro de 2005, com exposição em 10 de setembro de 2005.

30 DA COSTA, Newton Carneiro Affonso, PUGA, Leila. Lógica deôntica e direito. Boletim da Sociedade Paranaense de Matemática, 2. série, v. 8, p. 141-154, Curitiba: 1987, p. 153. 31 RUSSELL, Bertrand. Autobiografia: 1944-1967. V. III, Tradução de Álvaro Cabral. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro: 1972, p. 71-72.

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