CONHECIMENTO, INTERESSE E PODER NA · PDF fileCurrículo sem Fronteiras, v.6, n.2,...

download CONHECIMENTO, INTERESSE E PODER NA · PDF fileCurrículo sem Fronteiras, v.6, n.2, pp.53-66, Jul/Dez 2006 CONHECIMENTO, INTERESSE E PODER NA PRODUÇÃO DE POLÍTICAS CURRICULARES1

If you can't read please download the document

Transcript of CONHECIMENTO, INTERESSE E PODER NA · PDF fileCurrículo sem Fronteiras, v.6, n.2,...

  • Currculo sem Fronteiras, v.6, n.2, pp.53-66, Jul/Dez 2006

    CONHECIMENTO, INTERESSE E PODER NA PRODUO DE POLTICAS CURRICULARES1

    Rosanne Evangelista Dias

    Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil

    Silvia Braa Lpez

    Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, Brasil

    Resumo

    Este artigo tem como foco de anlise a atuao de sujeitos e grupos que, organizados em comunidades epistmicas, produzem conhecimento, influenciando e difundindo diagnsticos e solues das/para as polticas curriculares no Brasil e no mundo. Analisamos o Relatrio Delors e outros textos curriculares da Unesco, importante agncia multilateral difusora de polticas pblicas educacionais. Nesses textos identificamos idias e conhecimentos sobre poltica curricular para a formao de professores e a avaliao do ensino. Reconhecemos as agncias multilaterais de fomento e os intercmbios de idias e concepes entre diferentes pases como parte da rede das comunidades epistmicas. Defendemos que sujeitos e grupos que ocupam posies nos contextos de influncia lideram a produo de discursos sobre a poltica de formao de professores e de avaliao apropriados pelos governos. Fundamentamos nosso trabalho nos contextos de produo de polticas curriculares desenvolvido por Stephen Ball. Palavras-chave: Avaliao; Comunidade epistmica; Formao de professores; Poltica

    curricular; Unesco.

    Abstract

    This article focuses the agents and groups organized in epistemic communities that actuate producing knowledge by influencing and divulgating diagnosis and solutions of/to curriculum policies in Brazil and other nations. We analyze the Unesco Delors Report and other curricular texts provided by this important multilateral agency and educational public policies diffuser. In these texts, we identify ideas and knowledge about curriculum policies for teacher education and educational assessment programs. We recognize the multilateral funding agencies and the concepts and ideas exchanges across different nations as part of the epistemic communities net. We defend that agents and groups, who stand positions in the context of influence, lead the creation of discourses on teacher education and educational evaluation policies which are taken by the government states. We base our work in the contexts of production of curricular policies developed by Stephen Ball. Key-words: Assessment; Epistemic communities; Teacher education; Curriculum policy; Unesco.

    ISSN 1645-1384 (online) www.curriculosemfronteiras.org 53

  • ROSANNE E. DIAS e SILVIA B. LPEZ

    54

    Introduo

    As pesquisas sobre polticas pblicas, no mbito das cincias sociais, tm se dedicado, nos ltimos vinte anos, a incluir em suas anlises o papel do conhecimento e do interesse nas relaes complexas que tm caracterizado, no mundo globalizado, as produes das polticas nos mais variados setores como: sade, meio ambiente, entre outros (Faria, 2003). Destacam-se nessa vertente os protagonistas, sejam eles sujeitos ou grupos sociais, que participam das aes em prol dessas polticas, com inseres nos mbitos local/global, no qual so discutidas as respectivas agendas polticas. Dessa vertente de anlise, o foco de investigao passa a ser a ao dos especialistas, organizados em uma comunidade epistmica, e suas relaes de conhecimento/poder na produo de polticas.

    Consideramos relevante reconhecer a atuao de sujeitos e grupos sociais na produo de polticas no campo da educao. Para tanto, a abordagem sobre o ciclo contnuo de polticas e seus contextos de produo (Ball,1998; Ball and Bowe, 1998) nos parece fundamental para a incluso do foco da comunidade epistmica nas anlises sobre polticas curriculares. Incorporamos neste artigo anlise da poltica curricular elementos que implicam a compreenso de que fazer poltica deve levar em conta: (a) diferentes nveis de produo; (b) a relao entre sujeitos/grupos sociais, conhecimentos e interesses; e, (c) idias defendidas como conhecimento especializado e, portanto, intrinsecamente relacionado ao poder de sujeitos e grupos sociais investidos de poder.

    A agenda de reformas educacionais construda e difundida nas ltimas trs dcadas em mbito global, tendo o currculo na centralidade, nos revela uma variedade de sujeitos, grupos sociais e organizaes (governamentais/no-governamentais; nacionais/ transnacionais, e suas interpenetraes) para quem devemos dirigir nossa anlise de modo a compreender, com maior clareza, os diferentes acordos estabelecidos, as formulaes propostas e os embates em torno de projetos em disputa na sociedade, nos nveis local, nacional e global. Essas aes dos sujeitos em diferentes posies de poder/saber influenciando, produzindo e difundindo diagnsticos e solues das/para as polticas curriculares, constituem-se em uma problemtica importante para o campo da educao, em particular, da poltica curricular. Enfatizamos a importncia das anlises a respeito das comunidades epistmicas no campo da educao, pois acreditamos, parafraseando Ball (1997), que as polticas curriculares no so desencarnadas e, portanto, os grupos de interesse que nela atuam devem ser foco das investigaes para a compreenso da formao do discurso da poltica e dos diversos processos de legitimao, ou no, que se desenvolvem na produo das polticas.

    Neste artigo, destacamos para anlise idias e conhecimentos que vm sendo produzidos e difundidos acerca da temtica da poltica curricular para a avaliao e a formao de professores, identificando as comunidades epistmicas presentes nos debates e na produo de textos e discursos que so apropriados nos textos curriculares. Para tanto, selecionamos para anlise textos produzidos pela Unesco, importante organizao internacional, que tem tido um papel de relevncia no campo da educao no cenrio global e, no Brasil de um modo especial. Analisamos centralmente o Relatrio Delors (2001) e

  • Conhecimento, Interesse e Poder

    55

    ainda outros textos do organismo que vm sendo publicados no Brasil como O perfil dos professores brasileiros: o que fazem, o que pensam, o que almejam e Perfil estatstico da profisso docente2. Destacamos o Relatrio Delors por entend-lo como um texto que projeta princpios para as polticas curriculares e que tem influenciado a produo de polticas em variados pases do mundo. Sua produo, resultado de uma construo coletiva, contou com a participao de especialistas do campo educacional de diversas naes num esforo conjunto de elaborao de solues para as problemticas educacionais enfrentadas pelos pases do terceiro mundo e em desenvolvimento, constituindo-se destacadamente como uma rede de influncias em torno da poltica. Os outros textos, recentemente publicados, revelam o foco da Unesco dirigido s polticas de formao de professores, voltada idia do estabelecimento de um perfil profissional.

    Ao analisarmos o processo de elaborao do Relatrio Delors e seu discurso para a formao de professores e a avaliao, reconhecemos tambm as agncias multilaterais de fomento e os intercmbios de idias e concepes entre diferentes pases como parte da rede das comunidades epistmicas. Consideramos que o processo de circulao de textos entre contextos, os mais diferentes, caracterstico nas aes entre as agncias multilaterais, faz-se por recontextualizaes que se desenvolvem por hibridismo, resultado do efeito da globalizao nas formas econmicas, polticas e culturais (Lingard, 2004). Essas relaes cambiantes se realizam em decorrncia de acordos entre governos e tambm pelo fluxo de concepes entre sujeitos e grupos que lideram, a partir de posies ocupadas nos contextos de influncia (Ball, 1998; Ball and Bowe, 1998), a produo de discursos sobre as polticas curriculares. Por fim, orientamos nossa anlise pelo entendimento de que os textos curriculares no encerram em si mesmos os sentidos, estando abertos, portanto, s interpretaes mltiplas, pelas leituras possveis realizadas pelos diferentes sujeitos em contextos nos quais esses textos circulam (Ball, 1998).

    Comunidades Epistmicas nas Polticas Curriculares Compreendemos as polticas de currculo como processos de negociao complexos,

    nos quais esto presentes, de forma inter-relacionada, diversos aspectos da sua produo, desde a definio de seus dispositivos legais e documentos curriculares, a circulao de textos curriculares, as diversas influncias e prticas, realizadas nos vrios contextos. Utilizamos, neste artigo, o conceito de reforma entendendo-a como processo para alm do espao de sua produo no campo oficial, buscando compreender o movimento de produo e circulao de textos curriculares e as prticas institucionais em que as reformas se dirigem ou mesmo so produzidas. Empregamos o conceito de reforma como interveno que mobiliza pblicos e investe em relaes de poder na definio do espao pblico, envolvendo relaes sociais que implicam conhecimento e poder nas arenas nas quais ela ocorre (Popkewitz, 1997).

    No atual cenrio de globalizao, temos observado a disseminao de polticas curriculares no Brasil e no mundo, no qual so justificadas as reformas educacionais

  • ROSANNE E. DIAS e SILVIA B. LPEZ

    56

    produzidas pelo contexto de uma permanente mutao do mundo (Ball, 1998, 2001; Burbules & Torres, 2004; Lingard, 2004). A polissemia de sentidos do conceito de globalizao nos alerta a v-lo como um conceito contestado, como j analisado por Ball (1998), e assim, utilizamo-nos dele considerando seus variados nveis de concretizao como tecnolgico, cultural, poltico, econmico e social (Jameson, 2001). Apesar de a rede de influncias se realizar ultrapassando limites de fronteiras nacionais, identificamos marcas da singularidade produzidas por prticas, concepes, valores e intenes de vrios sujeitos nos mltiplos espaos a que pertencem no contexto educacional e social nas polticas curri