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CONSELHO ADMINISTRATIVO

David Medina da Silva – Presidente

Cesar Luis de Araújo Faccioli – Vice-Presidente

Fábio Roque Sbardellotto – Secretário

Alexandre Lipp João – Representante do Corpo Docente

DIREÇÃO DA FACULDADE DE DIREITO

Fábio Roque Sbardellotto

COORDENADOR DO CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

Luis Augusto Stumpf Luz

CONSELHO EDITORIAL

Anizio Pires Gavião Filho

Fábio Roque Sbardellotto

Guilherme Tanger Jardim

Luis Augusto Stumpf Luz

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Apresentação

O Programa de Pós-Gradução em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público

tem o prazer oferecer a conhecimento a presente publicação que encerra o conjunto de discussões desenvolvidas no seu I SEMINÁRIO INTERNACIONAL TUTELA À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS INDISPONÍVEIS, ocorrido em 08 e 09 de novembro de 2016. Na oportunidade, não foram poucas as nos painéis e nos grupos de trabalho entre professores e acadêmicos da Fa-culdade de Direito da FMP. Com isso, concretizou-se sobremodo um dos objetivos centrais da atividade acadêmica, exatamente a reflexão crítica sobre os temas controvertidos e debatidos.

Reunidos conforme o recorte epistemológico efetivado na área de concentração do Mestrado Acadêmico em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Públi-co, notadamente em Tutelas à efetivação de direitos públicos incondicionados e em Tutelas à efetivação dos direitos transin-dividuais, o evento se desenvolveu com a apresentação de dois painéis. O primeiro contou com a intervenção do Prof. Dr. Julio Rojas Chamaca, da Universidade Finis Terrae, do Chile, da Profª. Drª. Gisele Citadino, da PUC-RJ e do Prof. Dr. Anizio Pires Ga-vião, da FMP, com coordenação do Prof. Dr. Francisco Motta, da FMP. O segundo contou com a participação do Prof. Dr. Rogério Gesta Leal, da FMP e do Prof. Dr. Pablo Schiavi, da Universidade de Montevidéu, Uruguai, sob a coordenação do Prof. Dr. Handel Martins, da FMP. Igualmente, ao lado desses painéis, o evento contou a apresentação de pesquisas científicas, cujos trabalhos aprovados em bancas de defesa fazem parte desta publicação.

Esta obra coletiva reúne, então, os seguintes artigos. Cri-men organizado y corrupción: Herramientas de enfrentamiento, la experiencia de Chile, de Julio Rojas Chamaca; Aportes para una nueva agenda en la lucha contra la corrupción, de Pablo Schiavi; A Constituição de 1988 e a construção da cidadania, de Gisele Cittadino; O que é um modelo democrático de pro-

© FMP 2017CAPA: Caroline PachecoDIAGRAMAÇÃO: Liquidbook | tecnologias para publicaçãoREVISÃO DE TEXTO: Liquidbook | tecnologias para publicaçãoEDITOR: Rafael Martins Trombetta | LiquidbookRESPONSABILIDADE TÉCNICA Patricia B. Moura Santos

Fundação Escola Superior do Ministério Público Inscrição Estadual: Isento Rua Cel. Genuíno, 421 – 6º, 7º, 8º e 12º andares Porto Alegre – RS – CEP 90010-350 Fone/Fax (51) 3027-6565 E-mail: [email protected] Website: www.fmp.edu.br

Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoCIP-Brasil. Catalogação na fonte

S471 Seminário Internacional Tutelas à Efetivação de Direitos Indisponíveis (1. : 2017 : Porto Alegre, RS) Coletânea do I Seminário Internacional Tutelas à Efetivação de Direitos Indisponíveis [recurso eletrônico] / Rogério Gesta Leal, Anízio Pires Gavião Filho, organizadores. – Dados eletrônicos – Porto Alegre: FMP, 2017.660 p.

Modo de acesso: <http://www.fmp.edu.br/serviços/285/publicacoes> ISBN 978-85-69568-04-9

1. Direito. 2. Direitos Fundamentais. 3. Direitos Sociais. 4. Combate à Corrupção. I. Leal, Rogério Gesta. II. Gavião Filho, Anízio Pires. III. Título.

CDU: 342:7

Bibliotecária Responsável: Patricia B. Moura Santos – CRB 10/1914

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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dados pessoais na união europeia e o advento do regulamento (ue) 2016/679, de Nicholas Augustus de Barcellos Nether; Re-ponderando o caso Lüth, de Andrea Silva Uequed; Um estudo de caso da ação popular n. 70056129380 contra o município de Viamão, de Augusto Carlos de Menezes Beber; Vinculações das receitas dos estados, de Luís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho; O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito, de Cesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior.

Ao cuidar dessas questões, as discussões propostas nesta obra configuram importante contribuição para a ciência jurídi-ca, revelando-se descritiva, analítica e normativa. As questões recortadas foram corretamente descritas, cuidadosamente ana-lisadas, tendo sido formuladas proposições de cunho normativo para a compreensão, interpretação e aplicação do direito. O de-cisivo do texto é que os assuntos não foram apenas descritos, mas proposições foram justificadas e formuladas.

Com esta publicação, o Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público busca dar cumprimento de seus fins e missão, oferecendo para reflexão da comunidade científica o pensar e o refletir sobre as mais centrais discussões em torno da temática de sua área de concentração e linhas de pesquisa.

Porto Alegre, junho de 2017.

Anizio Pires Gavião Filho

cesso?, de Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso Hommerding; Reflexões sobre o preceito da publicidade como condição de validade e eficácia dos atos administrativos, de Ma-ren Guimarães Taborda; A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional sobre a repercussão geral no Recurso Ex-traordinário como forma de objetivação do controle difuso de constitucionalidade das leis, de Marco Félix Jobim e Mauricio Martins Reis; A juspositivação do ambiente algumas consequên-cias, de Alexandre Sikinowski Saltz; A lei americana Foreign Corrupt Practices act (FCPA) e sua influência na aprovação dos marcos internacionais anticorrupção, de Rogério Gesta Leal e Caroline Fockink Ritt; Aborto e anencefalia, de Mauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner; Ativismo na via extrajudicial, de Guilherme Augusto Faccenda; Audiência de Custódia e seu atual estágio no Direito Brasileiro, de Vanessa Pedroso Coelho e Mau-ro Fonseca Andrade; Condições e possibilidade de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela lei de improbidade administrativa e seu tratamento na jurisprudên-cia do poder judiciário brasileiro, de Eduarda Simonetti Pase; Considerações acerca do Ativismo Judicial Tutela à Efetivação de Direitos Transindividuais, de Lia Sarti; Da usucapião extra-judicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicial, de Marcus Aurelio Neves Reis; Democracia na Europa em crise, de Flávia Hagen Matias; É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a Lei de improbidade administrativa?, de Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel; Incidente de reso-lução de demandas repetitivas e as ações coletivas / Alexandre Lipp João; Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente, de Vanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lo-bato; Lei anticorrupção brasileira, de Caroline Fockink Ritt e Chaiene Meira de Oliveira; Mauerschützen - o caso dos atira-dores do muro, de Alexandre Lipp João; O controle social em face da corrupção, de Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva; O paradigma da ciência moderna e crise da lei, de José Elias Gabriel Neto e Raquel Fabiana Lopes Spa-remberger; Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direito fundamental à boa Administração Pública, de Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber; Proteção de

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ABORTO E ANENCEFALIA: DIREITOS FUNDAMENTAIS EM COLISÃO, UMA NOVA PERSPECTIVA

Mauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner .............195

Ativismo na via extrajudicialGuilherme Augusto Faccenda ......................................215

AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E SEU ATUAL ESTÁGIO NO DIREITO BRASILEIRO: ENTRE REPAROS NECESSÁRIOS E SUA OTIMIZAÇÃO PROCEDIMENTAL.

Vanessa Pedroso Coelho e Mauro Fonseca Andrade .......237

CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE CUMULAÇÃO DAS SANÇÕES PARLAMENTARES EM FACE DAS ESTABELECIDAS PELA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E SEU TRATAMENTO NA JURISPRUDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Eduarda Simonetti Pase ..............................................259

Considerações acerca do ativismo judicial Tutela à efetivação de direitos transindividuais

Lia Sarti ....................................................................297

DA USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL E SUA APLICABILIDADE NO ÂMBITO EXTRAJUDICIAL

Marcus Aurelio Neves Reis ..........................................321

DEMOCRACIA NA EUROPA EM CRISE RELAÇÕES TENSIONAIS ENTRE MERCADO, ESTADO E SOCIEDADE

Flávia Hagen Matias ...................................................343

Sumário

Crimen organizado y corrupción: Herramientas de enfrentamiento, la experiencia de Chile

Julio Rojas Chamaca ....................................................13

APORTES PARA UNA NUEVA AGENDA EN LA LUCHA CONTRA LA CORRUPCIÓN: BUENA ADMINISTRACIÓN, CONTROL SOCIAL, TRANSPARENCIA, CAPACITACIÓN Y COMUNICACIÓN

Pablo SCHIAVI .............................................................29

A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIAGisele Cittadino ............................................................65

O QUE É UM MODELO DEMOCRÁTICO DE PROCESSO?Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso Hommerding .....................................71

REFLEXÕES SOBRE O PRECEITO DA PUBLICIDADE COMO CONDIÇÃO DE VALIDADE E EFICÁCIA DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

Maren Guimarães Taborda .............................................97

A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário como forma de objetivação do controle difuso de constitucionalidade das leis.

Marco Félix Jobim e Mauricio Martins Reis ...................121

A JUSPOSITIVAÇÃO DO AMBIENTE: ALGUMAS CONSEQUÊNCIASAlexandre Sikinowski Saltz ..........................................149

A LEI AMERICANA FOREIGN CORRUPT PRACTICES ACT (FCPA) E SUA INFLUÊNCIA NA APROVAÇÃO DOS MARCOS INTERNACIONAIS ANTICORRUPÇÃO

Rogério Gesta Leal e Caroline Fockink Ritt ...................173

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O PARADIGMA DA CIÊNCIA MODERNA E CRISE DA LEI: capacidade normativa e conjuntura.

José Elias Gabriel Neto e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger ...........................497

OS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA À LUZ DO DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Luiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber ..519

PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NA UNIÃO EUROPEIA E O ADVENTO DO REGULAMENTO (UE) 2016/679: CONTRIBUIÇÕES PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Nicholas Augustus de Barcellos Nether ........................545

REPONDERANDO O CASO LÜTH: uma abordagem à luz da teoria da ponderação de Robert Alexy

Andrea da Silva Uequed ..............................................567

UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380 CONTRA O MUNICÍPIO DE VIAMÃO: O CONTROLE SOCIAL DA TARIFA DOS TRANSPORTES PÚBLICOS

Augusto Carlos de Menezes Beber ...............................593

VINCULAÇÕES DAS RECEITAS DOS ESTADOS: RISCOS À EFETIVIDADE DO FUNDO DE COMBATE À POBREZA

Luís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho .............................................617

O MINISTÉRIO PÚBLICO E A INTERDIÇÃO DE TODA FORMA DE PRECONCEITO: OS CASOS DA APOLOGIA DO NAZISMO E DA DISCRIMINAÇÃO CONTRA OS JUDEUS

Cesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior .................................................641

É POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO DO RITO PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA APLICAR A LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA? UM ESTUDO DA POSTURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL COMPARADO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA TUTELAS À EFETIVAÇÃO DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel ....................367

INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS E AS AÇÕES COLETIVAS: CONTENÇÃO DA LITIGIOSIDADE DE MASSA

Alexandre Lipp João ...................................................389

JUSTIÇA AMBIENTAL E A TUTELA DO MEIO AMBIENTE: UMA ANÁLISE DA UTILIZAÇÃO DO TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA NO CASO DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA EM RIO GRANDE/RS

Vanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato ............................407

LEI ANTICORRUPÇÃO BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA EFETIVA APLICAÇÃO DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA Tutelas à Efetivação de Direitos Públicos Incondicionados Patologias Corruptivas e Interesses Públicos Indisponíveis

Caroline Fockink Ritt e Chaiene Meira de Oliveira ...........................................431

MAUERSCHÜTZEN - O CASO DOS ATIRADORES DO MURO: A Fórmula Radbruch e a pretensão de correção de Robert Alexy

Alexandre Lipp João ...................................................455

O CONTROLE SOCIAL EM FACE DA CORRUPÇÃO: UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N.º 70032484198

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva ...................................................475

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Crimen organizado y corrupción: Herramientas de

enfrentamiento, la experiencia de Chile

Julio Rojas Chamaca1

1 Universidad Finis Terrae - Santiago, Chile

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Crimen organizado y corrupción: Herramientas de enfrentamiento, la experiencia de ChileJulio Rojas Chamaca

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ren que esta excepción estaría dejando de serlo. En efecto, la renuencia a regular el lobby; la tolerancia frente al regulador que, al cabo de su período, acaba como gerente de quien hasta ayer regulaba; centros de estudio que, a pesar de su prospe-ridad, parecen vivir del aire; todas esas cosas existían desde antiguamente, es cierto, y nunca hubo, como hoy, conciencia más extendida de la ciudadanía con respecto e ellas; pero nunca hubo tampoco mayor desaprensión de los grupos políticos para ponerles atajo. Los expertos, aun cuando pertenecen a corrien-tes ideológicas diversas, coinciden en el diagnóstico: en Chile el gran capital ejerce un poder extrainstitucional enorme en las de-cisiones políticas, sumado al echo de que nuestro país tiene las peores cifras de desigualdad de la OCDE, medidas por el índice de Gini. En Chile, los ingresos del 10% más rico son 26 veces superiores a los del 10% más pobre; la cifra en el promedio de la OCDE llega a 9,6 veces.

Las prácticas que hoy nos escandalizan (Penta, SQM, Ca-val y Corpesca) en Chile son de larga data y fueron permeando, poco a poco, nuestra sociedad, a medida que se hacían evi-dentes nuestras falencias. Tarde o temprano la sociedad iba a reaccionar frente a hechos que no se condicen con una convi-vencia sana, democrática y éticamente aceptable. El año 2003 se hizo un esfuerzo por reglamentar y fiscalizar el gasto elec-toral que fue claramente insuficiente. Más aún, sus deficiencias no solo hicieron posible gastos inaceptables en las campañas electorales, también permitieron la circulación de platas negras. Todo eso facilitó una cultura de financiamiento irregular, y a ve-ces ilegal, de la política.

En el ámbito de los negocios, las limitaciones de regu-lación y fiscalización están en el origen del abuso de miles de consumidores y numerosos accionistas minoritarios cuyos dere-chos fueron ignorados y anulados. De un tiempo a esta parte, el desprestigio de la política y del sector empresarial ha crecido, y se fue extendiendo en la ciudadanía un clima de recelo y de malestar generalizado. Sobre el particular, se ha llegado a suge-rir que el dinero está tan concentrado y posee tal influencia en

Junto con agradecer la invitación cursada por la Facultad de Ministerio Público, el motivo de la presente exposición es

dar a conocer las acciones adoptadas por el Estado de Chile para enfrentar la corrupción. Por razones metodológicas, dividi-ré esta ponencia en dos partes: la primera sobre el diagnóstico y una segunda referida a los mecanismos existentes y debatidos para enfrentar el flagelo de la corrupción en nuestro país.

Diagnóstico en Chile

Las democracias que funcionan bien poseen varias ca-racterísticas en común. Cuentan con partidos políticos fuertes, enraizados en la sociedad, y con una activa democracia interna; establecen procesos justos y transparentes para elegir y fisca-lizar a las autoridades; tienen gobiernos con la capacidad de formular y gestionar, de manera eficaz, políticas en beneficio del bien común y logran separar nítidamente los intereses privados de los públicos. Es por eso que los ciudadanos confían en sus instituciones.

Los mercados desarrollados también poseen caracterís-ticas comunes. Las empresas compiten, innovan y crean valor, ajustándose a estándares éticos rigurosos y exigentes. Las insti-tuciones fiscalizadoras son ágiles para perseguir conductas que atentan contra la confianza en el mercado, como el uso de infor-mación privilegiada y el tráfico de influencias.

Hasta hace poco, Chile se vanaglorió de ser una excepción. A diferencia de los demás países de la región latinoamericana, poseería una clase política de más calidad, mejores niveles de institucionalización, menos corrupción y mayor ascetismo en el ejercicio del poder. Ni el populismo (participación ampliada por fuera de las instituciones), ni la corrupción (la captura de las ins-tituciones y los ciudadanos por el dinero) han sido fenómenos frecuentes en la vida política chilena. Pero las excepciones son excepciones no sólo porque abren un paréntesis en la regla ge-neral, sino porque, además, suelen ser breves y no se eternizan. Los hechos que se han develado recientemente en Chile sugie-

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de poco sirve una legislación que no contemple atribuciones y recursos para fortalecer los órganos fiscalizadores correspon-dientes, en cuyo caso es prioritario que el legislador promulgue buenas reglas.

La Presidenta Michelle Bachelet creó, en marzo de 2015, el Consejo Asesor Presidencial contra Conflictos de Interés, Tráfico de Influencias y Corrupción, con el mandato de

proponer un nuevo marco normativo, que permita el cum-plimiento efectivo de los principios éticos de integridad y transparencia en sus aspectos legales y administrativos para logar el eficaz control del tráfico de influencias, la pre-vención de la corrupción y de los conflictos de interés en los ámbitos de los negocios, la política y el servicio público, así como en la relación entre éstos.

El Consejo fue presidido por el economista e ingeniero Eduardo Engel, Presidente de Espacio Público, que trabajó jun-to a otros 15 expertos de diferentes áreas.

Luego de 45 días de trabajo, el 24 de abril de 2015, el Consejo entregó un informe con un conjunto de más de 200 medidas agrupadas en 21 áreas temáticas , de carácter legal y administrativo, que pretende ser una hoja de ruta en la materia, tanto para el Gobierno, como para otros organismos públicos, como Municipios, Congreso etc.

Hasta la fecha, existe un 58% de avance en las medidas propuestas. En esta segunda parte, expondré las más relevantes acordadas por el Consejo.

Medidas propuestas para profundizar la prevención y el combate de la corrupción

Probidad y fortalecimiento de municipios

Los gobiernos municipales son pieza clave en la vinculación del poder público con los ciudadanos. Su relevancia radica en la

Chile que distorsiona la democracia. La desigualdad es así no solo una cuestión económica, sino política.

Conflictos de interés, tráfico de influencias y corrupción causan hoy preocupación en nuestro país. Existen diversas apreciaciones acerca de la magnitud real del problema, pero es evidente que a la ciudadanía se le han presentado en el último tiempo casos específicos —cuyo desenlace definitivo aún no se conoce— que han llamado particularmente su atención por la identidad de sus protagonistas y la extensión alcanzada. Ine-vitablemente, la duda y la desconfianza también alcanzan a las instituciones, donde tales situaciones han surgido y plantean in-terrogantes sobre lo adecuado de las normas por las cuales se rigen, sean ellas públicas o privadas. Thomas Piketty sostiene, en su libro El Capital en el siglo XXI, que el creciente abismo económico que causa el superior rendimiento del capital por sobre el trabajo tiene profundas implicancias políticas, siendo en su opinión una de las amenazas más grandes para la demo-cracia. El capital puede influenciar la forma en que los políticos actúan y como reaccionan a incentivos. Si queremos un proceso político justo, no podemos dejárselo al mercado o a la negocia-ción de votos e influencias.

En este escenario, surge la necesidad de revisar los es-tándares y regulaciones actualmente existentes en materia de probidad, buenas prácticas y financiamiento de la actividad política, así como también en la delimitación de las áreas ex-clusivas y las relaciones recíprocas entre el sector público y el privado. La ciudadanía, justamente, se ha ido habituando a exigir mayor transparencia y rendición de cuentas como base indispensable para la necesaria confianza en el funcionamiento de las instituciones.

Es evidente que la existencia de buenas reglas —legales o administrativas— no es suficiente si su cumplimiento no es fiscalizado con eficacia por órganos con la necesaria indepen-dencia, así como tampoco lo es si su infracción no se sanciona de la misma forma. También cabe señalar que ningún sistema re-gulatorio resultará verdaderamente eficaz si no es considerado por los ciudadanos como justo y conveniente. Al mismo tiempo,

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Algunos de los problemas identificados son la existencia de penas relativamente blandas para delitos contra la probidad, tanto en comparación con otros países como en lo que respec-ta a otros delitos en Chile. En el mismo sentido, se mantienen vacíos legales en la tipificación de algunos delitos reconocidos como tales en otros países y en la UNCAC, como, por ejemplo, el abuso de funciones, la corrupción entre privados y el tráfico de influencias de un particular. Asimismo, las prescripciones son excesivamente cortas para delitos que tardan en ser identifica-dos, denunciados e investigados. Finalmente, se ha detectado debilidad en la capacidad de fiscalizar con efectividad y de per-seguir delitos de corrupción. En tanto, ni el Ministerio Público, ni las respectivas fuerzas policiales, cuenta con suficiente personal especializado, tampoco con los recursos organizacionales ade-cuados para cumplir su labor a cabalidad en esta materia.

A partir de este mapa de riesgos se entregan las siguien-tes propuestas:

1. Generar un sistema oficial de estadísticas que permita dar seguimiento a la incidencia de los delitos de corrupción;

2. Revisar la tipificación, penas y prescripciones respecto a delitos de corrupción, de acuerdo a estándares y recomendacio-nes de organismos internacionales;

3. Homologar las herramientas que hoy existen y se usan en la investigación de delitos de lavado de activos con las desti-nadas a investigar corrupción;

4. Crear una Fiscalía de Alta Complejidad, con facultades y recursos necesarios para abordar investigación y persecución de delitos de corrupción, en el marco del plan de fortalecimiento del Ministerio Público;

5. Fortalecer la capacidad investigativa de la Policía de Investigaciones (PDI) en materia de corrupción, dotándola de personal especializado y con dedicación exclusiva a estas materias.

proximidad entre el poder y la gente y en su responsabilidad protagónica en la provisión de una gran cantidad de servicios y prestaciones a la comunidad local. Dicho de otro modo, la enti-dad municipal tiene una enorme importancia en la vida cotidiana y en las necesidades básicas de las personas. Los municipios son muy diversos, básicamente porque atienden a territorios con distinta población y también porque sus ingresos son de muy distinto rango.

Políticas de prevención:

1. Elaboración de un plan gradual de capacitación y pro-fesionalización del personal que abarque diversos aspectos, destinado a ordenar las plantas, otorgar mayores niveles de estabilidad en el empleo y a aumentar la profesionalización de funciones y unidades clave, con la asesoría del sistema de Alta Dirección Pública;

2. Establecer mecanismos que potencien la profesionaliza-ción del personal;

3. Establecer límite de una reelección para alcaldes, de modo que sólo pueda permanecer en el cargo por dos periodos.

Persecución y sanción penal de la corrupción

En mediciones internacionales construidas a partir de encuestas de opinión, Chile aparece dentro de los países con menor incidencia de corrupción. Sin embargo, no existe un sistema de indicadores ni un buen registro de estadísticas ofi-ciales que permitan dar seguimiento apropiado a la incidencia concreta de delitos, faltas, procesos y sanciones en materia de corrupción. Pese a esto, diversos organismos internacionales es-pecializados en dar seguimiento a estándares y convenciones en esta materia —Naciones Unidas contra la Corrupción (UN-CAC), el Mecanismo de Seguimiento de la Implementación de la Convención Interamericana contra la Corrupción (MESICIC) y la Organización para la Cooperación y el Desarrollo Econó-mico (OCDE)— han identificado áreas de riesgo en materia de regulación y capacidad de persecución penal de los delitos de corrupción en el caso de nuestro país.

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ciudadanos y las ciudadanas puedan recurrir en caso de incum-plimiento del principio de trasparencia y acceso a la información;

3. El Consejo recomienda garantizar el acceso a correos electrónicos institucionales en los mismos términos que la Ley 20.285 de Transparencia de la Función Pública y de Acceso a la Información de la Administración del Estado establece actual-mente para toda información pública;

4. Consagrar legalmente un portal de transparencia del Es-tado, cuya administración y control corresponda al Consejo para la Transparencia. En él se deberán encontrar unificados y siste-matizados los antecedentes de transparencia activa y canales de acceso a la información de todos los sujetos obligados por el principio de transparencia en el Estado;

5. Con la finalidad de garantizar el acceso a la informa-ción pública y contar con un sistema adecuado de gestión de documentos del Estado, se recomienda modificar la legisla-ción en materia de archivos, estableciendo obligaciones, plazos y procedimientos para asegurar el buen resguardo de los ar-chivos públicos y los mecanismos eficaces para el acceso a la información;

Responsabilidad penal de las personas jurídicas

La Ley 20.393, promulgada en el año 2009, establece la res-ponsabilidad penal de las personas jurídicas, con o sin fines de lucro y estatales, por el delito de lavado de dinero (Ley 19.913), financiamiento del terrorismo (Ley 18.314) y soborno de funcio-nario chileno y extranjero (Código Penal, artículos 250 y 251 bis, respectivamente). Esta ley fue promulgada en Chile como par-te de las exigencias de ingreso del país a la OCDE. El modelo adoptado por la ley para atribuir la responsabilidad penal de las personas jurídicas ha sido criticado internacionalmente por sus presupuestos copulativos, pues es necesario, para cometer el delito base, que la persona que lo comete tenga poder deciso-rio o esté bajo la supervisión o dirección de alguien con poder decisor, que el delito sea en provecho directo de la persona ju-rídica y que la comisión sea atribuible al incumplimiento de los

Transparencia y acceso a la información pública

La Ley 20.285 de Transparencia de la Función Pública y de Acceso a la Información de la Administración del Estado ha significado para Chile un importante avance en materia de transparencia.

Ha generado incentivos virtuosos para que la función pú-blica se ejerza con apego al principio de probidad, facilitando el control social de los poderes del Estado y sirviendo como medi-da preventiva contra las malas prácticas y la corrupción.

Sin embargo, pese a los avances conseguidos gracias a su buen funcionamiento y a la labor del Consejo para la Transparen-cia, este Consejo considera que aún hay aspectos que pueden ser fortalecidos y la norma perfeccionada, siguiendo con ello los estándares internacionales y las propuestas realizadas por Con-sejos Asesores anteriores.

Propuestas:

1. Considerando que la transparencia, el acceso a la in-formación pública y la probidad son pilares de la democracia representativa y del buen gobierno, y que el acceso a la informa-ción pública es un derecho fundamental, el Consejo recomienda el reconocimiento explícito en la Constitución de la transpa-rencia y del acceso a la información pública como principios rectores del actuar de la administración del Estado, así como la consagración del derecho a acceder a información pública como una garantía constitucional;

2. La Ley de Transparencia actualmente tiene importantes limitaciones respecto del Poder Legislativo, del Poder Judicial y de órganos con autonomía constitucional, aun cuando ha ha-bido avances. El Consejo recomienda equiparar y fortalecer las obligaciones que establece la Ley 20.285 sobre el derecho de acceso a la información del Poder Legislativo, del Poder Judicial y de órganos con autonomía constitucional, obligándolos a cum-plir con el mismo estándar que se aplica en el Poder Ejecutivo, y extendiendo la competencia del Consejo para la Transparencia a todas las instituciones del Estado. Con esto, se busca convertir a este órgano especializado en una ventanilla única a la cual los

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Regulación de los conflictos de interés

Uno de los fines últimos de la democracia representativa es promover el bien común de la comunidad política que la sus-tenta. Para ello, las instituciones y procedimientos democráticos deben asegurar decisiones y acciones públicas inspiradas en in-tereses colectivos, y no en aquellos de carácter particular.

Todo individuo o grupo tiene intereses. Una democracia fuerte, que funciona bien, no es aquella donde se reprimen o se pretenden ignorar los intereses en juego en las discusio-nes públicas, sino una que logra establecer mecanismos para transparentar y regular la forma en que los intereses se pueden promover, y, sobre todo, separar los de índole particular de los de naturaleza pública.

Los conflictos de interés se producen cuando un individuo que tiene la responsabilidad de actuar en representación de los intereses de una organización o institución contraviene ese com-promiso y actúa persiguiendo satisfacer su interés personal o de otros vinculados a él. En la actualidad, este tipo de prácticas es fuertemente reprobado por los ciudadanos en la mayoría de las democracias, y puede generar situaciones complejas de inesta-bilidad política si no es enfrentado de modo ágil y eficaz.

En Chile, se ha logrado avanzar en el establecimiento de mecanismos que inhiban la interferencia de intereses privados de autoridades y funcionarios públicos en ejercicio. Sin em-bargo, al comparar el entramado institucional, las normas y la legislación chilena con estándares internacionales, como los uti-lizados por la OCDE, es posible identificar vacíos y deficiencias que aún impiden una separación nítida entre función pública e intereses personales.

En el mismo sentido, aún queda camino para disminuir el riesgo de los conflictos de interés en el sector privado y no gu-bernamental. En este caso, se trata de que los intereses que persiguen empresas, corporaciones u organizaciones no guber-namentales no sean subvertidos por individuos que, ocupando cargos de responsabilidad en aquellas instituciones, tomen deci-siones alejadas del interés corporativo para beneficio personal.

deberes de dirección y supervisión de la persona jurídica. La Ley 20.393 además establece la voluntariedad que tienen las personas jurídicas de adoptar un modelo de prevención de de-litos, y describe las obligaciones mínimas a tomar. Además, si la empresa prueba ante un juez que contaba con un modelo de prevención adecuado y eficaz, la persona jurídica podrá ser absuelta del delito por no configurarse la responsabilidad penal. En Chile, varias empresas publican en su sitio web, si es que lo tienen, un Modelo de Prevención de Delitos, pero no se sabe con certeza cuántos son adecuados y eficaces. Por ello, es ne-cesario que las personas jurídicas establezcan obligatoriamente sistemas de integridad que incorporen modelos de prevención de delitos y componentes éticos, y que exista un proceso de verificación de los mismos.

Dado lo anterior, el Consejo recomienda fortalecer la im-plementación adecuada y eficaz de los sistemas de prevención de delitos.

Propuestas:

1. Que sea obligatorio para las personas jurídicas, a partir de cierto tamaño, implementar los sistemas de prevención de delitos de la Ley 20.393. Crear mecanismos de apoyo para su adopción por parte de las PyME;

2. Fortalecer a la Superintendencia de Valores y Seguros para que tenga un rol fiscalizador respecto a los sistemas de prevención de delitos y a las empresas certificadoras, incluyen-do los eventuales conflictos de interés de estas últimas;

3. Eliminar del registro de la Superintendencia de Valores y Seguros a las empresas certificadoras que hayan acreditado a una persona jurídica que no tenía un sistema de prevención adecuado y eficaz;

4. Revisar las exigencias copulativas, para que se estipulen delitos de acuerdo a las recomendaciones de los organismos internacionales en estas materias;

5. Las multas impuestas a las personas jurídicas deben ser proporcionales al monto del beneficio obtenido, en una tasa que sea disuasoria.

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Crimen organizado y corrupción: Herramientas de enfrentamiento, la experiencia de ChileJulio Rojas Chamaca

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4. El Fiscal Nacional y los fiscales regionales y el Contralor General de la República no podrán postular a cargos de elección popular hasta dos años luego de haber cesado en el cargo;

5. Se deberán establecer mecanismos de seguimiento y sanción en caso de incumplimiento de las normativas en estas materias.

Lobby y gestión de intereses

El 28 de noviembre de 2014 entró en vigencia la Ley 20.730, que regula el lobby y las gestiones de intereses parti-culares ante autoridades y funcionarios. Con ello se concretaron diversos esfuerzos realizados por más de una década con miras a encontrar un modelo adecuado de regulación. La nueva ley otorga una mayor legitimidad y transparencia a las gestiones de lobby.

Debido a que se trata de una ley de muy reciente vigencia, es difícil aún realizar una evaluación práctica.

Financiamiento de la política para fortalecer la democracia

En Chile, el año 2003 se estableció un sistema de financia-miento electoral mixto con un aporte fiscal significativo y con un mecanismo para los aportes privados. Al contemplar financia-miento fiscal y al sujetar a reglas el aporte privado, el país dio un paso relevante en materia de regulación de la competencia electoral. Sin embargo, la experiencia práctica desde entonces ha enseñado que dicho avance no estuvo acompañado de una capacidad efectiva para fiscalizar, perseguir y sancionar el in-cumplimiento de las reglas que se dictaron. Límites a los gastos, periodos de campaña, origen de fondos, mecanismos y espacios para realizar propaganda electoral son algunas de las áreas don-de las reglas han sido vulneradas.

Propuestas:

1. Generar un equilibrio entre aportes públicos y privados, disminuyendo así los riesgos de captura de los partidos políticos por parte de intereses particulares o económicos;

Es improbable que se logren impedir por completo los conflictos de interés, ya que una prohibición excesivamente res-trictiva colisionaría con otros derechos – como el de postular a un cargo de elección popular o a ejercer una función pública – e inhibiría a personas calificadas para trabajar en el sector público.

Para disminuir los riesgos de conflictos de interés, la expe-riencia comparada muestra que es necesario buscar un equilibrio entre identificar los eventuales peligros para la integridad de los funcionarios y organismos públicos, prohibir los conflictos inaceptables, resolver adecuadamente las situaciones conflicti-vas, crear conciencia entre los funcionarios y órganos públicos sobre la relevancia de estos conflictos y garantizar la disposición de procedimientos efectivos para identificarlos, declararlos y resolverlos.

Propuestas:

1. Establecer que todas las autoridades de instituciones con facultades normativas y fiscalizadoras, además de ministros y subsecretarios, no puedan, al cese de sus funciones, emplear-se, proveer servicios ni mantener vínculos comerciales, por el plazo de un año, con organizaciones privadas relacionadas con su función previa, o con aquellas que pudieran verse en ventaja debido al cargo previo. Deberán, además, realizar una declara-ción jurada que contenga las restricciones correspondientes al cese de su cargo.

2. Las ex-autoridades y ex-funcionarios no podrán contac-tar a funcionarios o empleados estatales de la entidad en que trabajaron en relación a asuntos de su interés; tampoco podrán hacerlo con otras entidades del Estado en relación a materias en las que se tuvo responsabilidad. No podrán presentarse a licitaciones públicas, como persona natural o por medio de una persona jurídica con la que tenga relación de propiedad, en la entidad en la que trabajó. Estas restricciones durarán un año a partir del cese de su desempeño como funcionario público.

3. Los sujetos pasivos de la Ley de Lobby y Gestión de Intereses no podrán trabajar en empresas de lobby o realizando gestión de interés por un periodo de dos años;

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Juez de Garantía, para así respetar debidamente los derechos de las personas;

3. Fortalecer la delación compensada —también llamada cooperación eficaz— y los programas de protección a informan-tes (whistleblowing), para potenciar los sistemas de denuncias y auto-denuncias, que han demostrado ser un mecanismo eficaz para detectar y perseguir delitos económicos.

Es necesario fortalecer estos mecanismos por medio de:

1. Coordinación entre organismos fiscalizadores que apli-can sanciones administrativas con los que persiguen sanciones penales, y la definición de la titularidad o control de la acción. Control de vínculos entre empresas competidoras. Si bien se encuentran en discusión importantes avances en políticas pro competencia, se estima necesario adoptar prácticas que, a ni-vel internacional, son cada vez más comunes. En particular, se propone:

1.a. Prohibición a que empresas que compiten tengan di-rectores comunes.

1.b. Revisión del rol de las asociaciones de empresas como eventuales facilitadores de la colusión.

A modo de conclusión

La colusión política y económica ya no es aceptable. Los carteles electorales y económicos son inaceptables. La elite en-dogámica que hereda de padres a hijos cupos en el Congreso, alcaldías o asientos en los directorios, convirtiendo el ejercicio del poder político y económico en una cuestión de familia, no da para más.

El poder concentrado, coludido, confundido, abrazado, no resiste a los estándares de una sociedad que clama por más democracia, no más plutocracia. Por darle peso al talento y al esfuerzo, no a los apellidos ni a las redes.

Por estas razones, es necesario que los Estados cierren las puertas al poder del dinero en la política y abran las ventanas de

2. Mejorar las condiciones en las cuales se puede desar-rollar la actividad política, enfatizando aquellas áreas que han estado relegadas: producción programática, formación cívica y de militantes;

3. Generar condiciones para una efectiva competencia electoral;

4. Generar incentivos para fortalecer el sistema de parti-dos y, al mismo tiempo, a los partidos como organizaciones más democráticas, transparentes y conectadas con sus bases y con la sociedad;

5. Establecer un financiamiento público para el funciona-miento de partidos políticos, que permita que estos cumplan con sus funciones habituales de selección y formación de líde-res, educación cívica y generación programática, entre otras;

6. Dotar de las capacidades institucionales, humanas y fi-nancieras necesarias los órganos de control del funcionamiento de la política para que cumplan con los estándares requeridos para la realización de sus funciones;

7. Fortalecer la instancia jurisdiccional en materia electoral, para que tenga atribuciones de actuar con celeridad y eficacia;

8. Aumentar las penas para faltas y delitos en materia de regulación de la política y su financiamiento.

Confianza en los mercados

Extender las facultades fiscalizadoras de las autoridades competentes, lo que incluye:

1. El diseño por la ley de un sistema por medio del cual las autoridades fiscalizadoras puedan compartir información sensi-ble de manera rápida y efectiva, procurando siempre el debido respeto de los derechos de las personas;

2. Dotar de facultades intrusivas adicionales, similares a las que la última modificación al Decreto Ley 211 entregó a la Fisca-lía Nacional Económica (por ejemplo, la posibilidad de acceder al contenido de llamadas telefónicas y correos electrónicos). Estas facultades deben ejercerse con autorización previa de un

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par en par a la competencia, la participación y la transparencia; a las fuerzas que distribuyen las oportunidades en la sociedad, en vez de encontrarlas en una elite hermética.

Es cuestión de poder.

APORTES PARA UNA NUEVA AGENDA EN LA LUCHA CONTRA

LA CORRUPCIÓN: BUENA ADMINISTRACIÓN, CONTROL SOCIAL,

TRANSPARENCIA, CAPACITACIÓN Y COMUNICACIÓN1

Pablo SCHIAVI2

1 Ponencia presentada en el I Seminário Internacional de Tutelas à Efetivação de Bens Indisponíveis, Segundo Panel, “Tutelas à Efetivação de Direitos Transindividuais”, realizado en la Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP), en la ciudad de Porto Alegre (Brasil), los días 8 y 9 de noviembre de 2016.

2 Doctor en Derecho y Ciencias Sociales por la Universidad Mayor de la República Oriental del Uru-guay. Máster en Derecho Administrativo Económico por la Universidad de Montevideo (UM). Pro-fesor de Información Pública y Protección de Datos Personales; de Protección de Datos Personales en Salud y de Protección de Datos Personales Tributarios y Bancarios en el Máster de Derecho Administrativo Económico (MDAE) en la Facultad de Derecho en la Universidad de Montevideo. Profesor de Datos Personales en el Máster en Dirección de Empresas de Salud (MDES) en la Escuela de Negocios de la Universidad de Montevideo (IEEM). Profesor de Derecho de la Información y de Investigación y Documentación en la Facultad de Comunicación de la Universidad de Montevideo. Profesor Asistente de Procedimientos Administrativos en el Máster de Derecho Administrativo Eco-nómico (MDAE) en la Universidad de Montevideo. Profesor de Derecho Público III en la Facultad de Derecho de la Universidad de la República. Ex Secretario de Redacción de La Justicia Uruguaya, Revista Jurídica. Diplomado en Desarrollo y Financiamiento de Infraestructuras por la Universi-dad Politécnica de Madrid. Certificado en Prevención del Lavado de Dinero y Financiamiento del Terrorismo por el Isede y la Facultad de Derecho de la Universidad Católica del Uruguay Dámaso Antonio Larrañaga. Diplomado Internacional en Dirección y Gestión de Cooperativas de Ahorro y Crédito por el Instituto de Desarrollo Cooperativo (I.D.C.) y la Confederación Alemana de Coope-rativas (D.G.R.V.). Miembro del Instituto de Derecho Administrativo de la Facultad de Derecho de la Universidad de la República. Miembro Titular de la Asociación Derecho Público del Mercosur. Coordinador de Estudios de Derecho Administrativo de la Editorial La Ley Uruguay ‒ Thomson Reuters. Coordinador Nacional por Uruguay de la Red Iberoamericana de Contratación Pública (REDICOP). Miembro de la Red Internacional de Bienes Públicos (RIBP). Asesor Director en la Ofi-cina de Planeamiento y Presupuesto (OPP), Presidencia de la República, Uruguay. Ex Asesor en la Contaduría General de la Nación (CGN) y en la Auditoría Interna de la Nación (AIN) en el Ministerio

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Aportes para una nueva agenda en la lucha contra la corrupción: buena administración, control social, transparencia, capacitación y comunicación Pablo SCHIAVI

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En el presente trabajo abordaremos las principales notas del régimen jurídico e institucional en el Uruguay, con especial detenimiento en su concepto y sus alcances y en las prácticas y políticas públicas llevadas a cabo para su erradicación, en el marco de una nueva agenda en la lucha contra la corrupción: buena administración, control social, transparencia, capacita-ción y comunicación.

Concepto y alcances de la corrupción en el derecho uruguayo

No es fácil definir la corrupción. Tal vez por eso, la CICC y la CNUCC no la definieron.7 Nuestra ley la definió como “el uso indebido del poder público o de la función pública, para obtener un provecho económico para sí o para otro, se haya consumado o no un daño al Estado” (artículo 3 de la ley N° 17.060).

De esta definición, Augusto DURÁN MARTÍNEZ desta-ca tres aspectos: a) el sujeto activo: tiene que ser un agente público; b) la conducta: tiene que consistir en un uso indebido del poder público o de la función pública; c) la finalidad: debe perseguir un provecho económico para el autor de la conducta indicada o para un tercero.8

Corresponde señalar que éste énfasis en el sujeto activo, que debe ser un agente público según la definición legal, es muy limitado, ya que no alcanza a los sujetos privados, por ejemplo aquellos proveedores que contratan con el Estado y que tam-bién pueden ser parte de prácticas relacionadas a la corrupción.

Hoy no podemos definir o pensar la corrupción sólo desde la óptica del funcionario público, más teniendo en cuenta que, en la mayoría de los últimos casos que han tomado estado pú-blico, quienes han participado en actos de corrupción son tanto públicos como privados.

7 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem,.p. 95.8 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.

Martín Prats, citado por Augusto DURÁN MARTÍNEZ, sos-tiene con acierto que, en todo tiempo, en todo lugar y en

todo tipo de civilización, existió corrupción y preocupación para combatirla. Ya en el Código de Hamurabi se preveían penas para los funcionarios gubernamentales que cometían actos de corrupción.3

Pero se advierte en el mundo en los últimos años una es-pecial preocupación por el tema. Tan es así que, en el continente americano, se elaboró la Convención Interamericana Contra la Corrupción (CICC), adoptada en Caracas el 29 de marzo de 1996 y ratificada en nuestro país por ley N° 17.008, de 25 de setiem-bre de 1998 ‒ y que ya está vigente, pues se logró el número de ratificaciones necesarias.4

Se puede encontrar la raíz de la CICC en el llamado Com-promiso de Santiago con la Democracia y la Renovación del Sistema Interamericano, adoptado en la Asamblea General de la OEA, el 22 de mayo de 1992. Pero es en la Primera Cumbre de las Américas, celebrada en Miami entre el 9 y el 11 de diciembre de 1994 que se encara un Plan de Acción respecto a la lucha contra la corrupción.5

Posteriormente, la OEA, en la Asamblea de 7 de junio de 1995, emite la llamada “Declaración de MONTROUIS: una nue-va visión de la OEA”, en la que, entre otras cosas, se decide “combatir todas las modalidades de corrupción pública y pri-vada” y convocar a una conferencia especializada a celebrarse en Caracas para considerar, y en su caso adoptar, una Conven-ción Interamericana Contra la Corrupción. En el Compromiso de Santiago, en la Cumbre de MIAMI y en la Declaración de MON-TROUIS, podemos encontrar en esencia la génesis de la CICC.6

de Economía y Finanzas, Uruguay. Consultor y Asesor Corporativo Data Privacy. Autor de libros y artículos sobre temas de su especialidad. E-mail: [email protected] / [email protected]. https://uy.linkedin.com/in/pabloschiavi. Twitter: @PabloSchiavi

3 PRATS, M. Corrupción, Estado de Derecho y control de la sociedad civil. In. V.V.A.A. Derechos Hu-manos y Corrupción. Uruguay Transparente/ Asociación de Magistrados del Uruguay/ Embajada de Suiza. Montevideo: 2002, p. 84; citado por DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción. Mecanismos sociales y jurídicos para su control. In. Estudios de Derecho Público, Volumen II. Montevideo: 2008; Mastergraf Srl. p. 89 y siguientes.

4 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem..5 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, p. 90.6 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. - Idem, ibidem.

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Aportes para una nueva agenda en la lucha contra la corrupción: buena administración, control social, transparencia, capacitación y comunicación Pablo SCHIAVI

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ámbito público, no sólo están presentes agentes públicos, sino también agentes del ámbito privado.

No interesa que el beneficio sea económico para que haya corrupción. No interesa que haya daño al Estado o a la orga-nización a la cual el corrupto pertenece. No interesa tampoco que el sujeto sea funcionario público o no. Lo que importa son dos cosas: a) que un sujeto, en virtud de ocupar una determina-da posición, sea cual sea y donde sea, ejerza sus poderes para procurar obtener un beneficio de cualquier naturaleza para sí o para otro, que, de no tener esa posición, no lo habría podido obtener; b) que ese beneficio sea ilegítimo.10

Aun admitiendo que la corrupción es la más grave conduc-ta antiética, por lo que cabe reconocer que las faltas a la ética no se agotan en la corrupción, estimo que muchas conductas que, a la luz de nuestra definición legal, no serían corrupción, aunque sí faltas a la ética, en mi concepto serían en puridad también casos de corrupción. En todos estos casos, se ve afectada la eficacia de la actividad del Estado. O se encarecen los servicios, o se desatiende la calidad de los mismos, o ambas cosas.11

El artículo 3º de la ley Nº 17.060, de 23 de diciembre de 1998, establece: “Artículo 3º:. A los efectos del Capítulo II de la presente ley se entiende por corrupción el uso indebido del poder público o de la función pública, para obtener un provecho económico para sí o para otro, se haya consumado o no un daño al Estado.”

Por su parte, el artículo 10 del Decreto Nº 30/003 de 23 de enero de 2003, recogiendo el concepto del artículo 3 de la ley Nº 17.060, establece: “Artículo 10º. (Concepto de corrup-ción): Se entiende que existe corrupción, entre otros casos, en el uso indebido del poder público o de la función pública, para obtener un provecho económico para sí o para otro, se haya consumado o no un daño al Estado (art. 3º de la ley Nº 17.060).”

10 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción y Derechos Humanos. Aspectos de Derecho Adminis-trativo. (Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998). In. DURÁN MARTÍNEZ, A. Estudios sobre Derechos Humanos. Universidad Católica del Uruguay/ Ingranusi Ltda. Montevideo: 1999, p. 136.

11 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem, p. 3.

Además, llamativamente, en Uruguay, carecemos de un procedimiento administrativo sancionatorio para perseguir este tipo de conductas por parte de privados, por ejemplo pro-veedores del Estado, si pensamos, por ejemplo, que, ante un caso de corrupción en sede de compras públicas, no sólo ha-brá responsabilidades de funcionarios públicos, sino además de terceros, y, más allá de responsabilidades penales individuales, no está configurado un procedimiento administrativo especial destinado a establecer responsabilidades y sanciones contra ellos – pensemos, en este sentido, en sanciones de tipo admi-nistrativo que impidan al proveedor de participar en licitaciones públicas por un plazo determinado por haber formado parte en prácticas relacionadas a la corrupción en sede de contratación administrativa.

Sin perjuicio de lo anterior, vale señalar que, en materia de compras públicas, nuestro régimen jurídico prevé sanciones a proveedores en situaciones de incumplimiento que deben ser co-municadas al Registro Único de Proveedores del Estado (RUPE), pero no regula sanciones específicas en caso de corrupción.9

Augusto DURÁN MARTÍNEZ comparte plenamente que la figura descrita en el artículo 3 de nuestra ley configura cor-rupción, pero considera que la corrupción no se agota en ella. Es preferible una definición más amplia, en la medida de que entiende no parecer bueno limitar el combate de la corrupción al ámbito estatal dejando de lado al resto de la sociedad. La corrupción está en todos lados. Lamentablemente, nuestra ley N° 17.060 está pensada casi exclusivamente en función de la corrupción pública.

De ahí que compartimos una definición amplia de corrup-ción, ya que en la mayoría de la hipótesis de corrupción en el

9 El Registro Único de Proveedores del Estado (RUPE) permite registrar y mantener la informaci-ón actualizada de todas las personas físicas y jurídicas interesadas en contratar con el Estado. Su objetivo es ofrecer toda la información relevante para los organismos públicos al momento de contratar una empresa, brindando acceso a la misma desde un solo lugar y de forma inmediata. Además, los proveedores tienen acceso a la información que de ellos conste en el registro, sin necesidad de solicitud previa. La Agencia de Compras y Contrataciones del Estado (ACCE) es res-ponsable del desarrollo, funcionamiento y mantenimiento del RUPE.https://www.comprasestatales.gub.uy/inicio/proveedores/rupe/rupe

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En dicho marco legislativo, el artículo 11 del decreto Nº 30/2003, aborda la probidad. En tal sentido establece: “Artí-culo 11º. (Probidad): El funcionario público debe observar una conducta honesta, recta e íntegra y desechar todo provecho o ventaja de cualquier naturaleza, obtenido por sí o por interpu-esta persona, para sí o para terceros, en el desempeño de su función, con preeminencia del interés público sobre cualquier otro (arts. 20 y 21 de la ley 17.060).

Al respecto señalar que nada puede agregarse a lo dis-puesto tanto en la Ley como en el Decreto reglamentario sobre el concepto de probidad, la definición es clara y contundente, y así debería ser también la respuesta en caso de comprobarse apartamientos a lo allí señalado.14

Por oposición, se puede extraer el concepto de improbi-dad. Es una conducta deshonesta, no recta, no íntegra. Implica también admitir cualquier provecho o ventaja, cualquiera sea su naturaleza, obtenido por sí o por interpuesta persona, para sí o para terceros en el desempeño de su función en desmedro del interés público. Implica además cualquier acción, en ejercicio de la función pública, que exteriorice la apariencia de violación de las Normas de Conducta en la Función Pública, recogidas en ese decreto Nº 30/003, lo que comprende, por cierto, la violación de esas normas y no solo la apariencia de violación.15La improbidad así concebida es un concepto más amplio que la corrupción tal como está definida en nuestro derecho positivo,16

El artículo 12 del decreto Nº 30/003, recogiendo en esen-cia el texto del artículo 22 de la ley Nº 17.060, enumera una serie de conductas contrarias a la probidad.17 Este artículo dice: “Artículo 12º. (Conductas contrarias a la probidad): Son conduc-tas contrarias a la probidad en la función pública (art. 22 de la ley Nº 17.060):

a) Negar información o documentación que haya sido soli-citada de conformidad de la ley.

14 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem, ibidem.15 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.16 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.17 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.

A mi juicio, este artículo recoge un concepto errónea-mente restringido de corrupción. En efecto, estimo que puede existir corrupción sin que el móvil sea económico.12 Por eso, he preferido definir la corrupción como la utilización de una deter-minada posición, sea cual sea, para obtener para sí o para otro un beneficio indebido, cualquiera sea su naturaleza.13

Por último, señalar que esta concepción restringida de la corrupción en cuanto a la percepción o no de un beneficio eco-nómico ha calado hondo en la opinión pública, que, en forma mayoritaria, asimila los hechos o actos de corrupción al beneficio económico y no a otras manifestaciones claras y más frecuentes del fenómeno ‒ que estamos analizando ‒ que nada tienen que ver con el beneficio económico propiamente dicho.

Probidad, improbidad, interés público y buena administración

Probidad e improbidad de los funcionarios públicos

El artículo 20 de la ley Nº 17.060, de 23 de diciembre de 1998, se refiere al principio de probidad. En tal sentido, expresa: “Artículo 20: Los funcionarios públicos deberán observar estric-tamente el principio de probidad, que implica una conducta funcional honesta en el desempeño de su cargo con preeminen-cia del interés público sobre cualquier otro. El interés público se expresa en la satisfacción de necesidades colectivas de manera regular y continua, en la buena fe en el ejercicio del poder, en la imparcialidad de las decisiones adoptadas, en el desempeño de las atribuciones y obligaciones funcionales, en la rectitud de su ejercicio y en la idónea administración de los recursos públicos.”

12 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Improbidad del funcionario público. In. El Derecho. Diario de doctri-na y jurisprudencia. Universidad Católica Argentina Santa María de los Buenos Aires. Buenos Aires, miércoles 9 de octubre de 2013, nº 13.339, año LI, p. 2 y siguientes.

13 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, p. 3.

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Interés Público e improbidad

El artículo 9º del Decreto Nº 30/2003 establece: “Artículo 9º. (Interés Público): En el ejercicio de sus funciones, el funcio-nario público debe actuar en todo momento en consideración del interés público, conforme con las normas dictadas por los órganos competentes, de acuerdo con las reglas expresadas en la Constitución (art. 82 incisos 1º y 2º de la Carta Política).

El interés público se expresa, entre otras manifestaciones, en la satisfacción de necesidades colectivas de manera regular y continua, en la buena fe en el ejercicio del poder, en la im-parcialidad de las decisiones adoptadas, en el desempeño de las atribuciones y obligaciones funcionales, en la rectitud de su ejercicio y en la idónea administración de los recursos públicos (art. 20 de la ley 17.060). La satisfacción de necesidades colec-tivas debe ser compartible con la protección de los derechos individuales, los inherentes a la personalidad humana o los que se deriven de la forma republicana de gobierno (arts. 7º y 72 de la Constitución).”21

Por su parte, el artículo 8 establece: “Artículo 8º. (Pree-minencia del interés funcional): La conducta funcional se desarrollará sobre la base fundamental de que el funcionario existe para la función y no la función para el funcionario (art. 59 de la Constitución de la República).”

Consagrando deberes funcionales, los artículos 58 y 59 de la Constitución de la República expresan:22

“Artículo 58.: Los funcionarios están al servicio de la Na-ción y no de una fracción política. En los lugares y las horas de trabajo, queda prohibida toda actividad ajena a la función, reputándose ilícita la dirigida a fines de proselitismo de cual-quier especie. No podrán constituirse agrupaciones con fines proselitistas utilizándose las denominaciones de reparticiones públicas o invocándose el vínculo que la función determine en-tre sus integrantes.”

21 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Improbidad del funcionario público. Op. Cit, p. 4.22 VÁZQUEZ, Cristina. Deberes de los funcionarios públicos en el estatuto del funcionario de la admi-

nistración central. In. RDT Enero - Marzo 2014.

b) Valerse del cargo para influir sobre una persona con el objeto de conseguir un beneficio directo o indirecto para sí o para un tercero.

c) Tomar un préstamo o bajo cualquier otra forma dine-ro o bienes de la institución, salvo que la ley expresamente lo autorice.

d) Intervenir en las decisiones que recaigan en asuntos en que haya participado privadamente como técnico. Los funciona-rios deberán poner en conocimiento de su superior jerárquico su implicancia en dichos asuntos y los antecedentes correspon-dientes para que éste adopte la resolución que corresponda.

e) Usar en beneficio propio o de terceros información re-servada o privilegiada de la que se tenga conocimiento en el ejercicio de la función.”

Pero en puridad, tal como se desprende del inciso final del artículo 11, toda violación a las Normas de Conducta en la Función Pública contenidas en el decreto en estudio configura improbidad. Por tanto, debe señalarse que la enumeración del artículo 12 no es taxativa sino meramente enunciativa18.

Carlos E. DELPIAZZO sostiene que el funcionario público que adecua su conducta al deber ser y actúa como un verdadero servidor público no tiene nada que ocultar ni a sus superiores ni a sus subordinados ni a los integrantes del cuerpo social a los que se debe en el desempeño de sus tareas presididas por el fin del logro del bien común.19

En feliz expresión ajustada a la verdad, se ha configurado al Derecho Administrativo como “custodio del comportamiento ético”, destacando que el mismo “trata de garantizar el servicio a los intereses generales, sujetando la actividad administrativa a una serie de formalidades y controles”,20

18 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, p. 4..19 DELPIAZZO, Carlos E. Acerca del control social de la gestión pública. In https://online.unisc.br/

seer/index.php/direito/article/viewFile/672/458.20 DELPIAZZO, Carlos E. Op. cit.

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hoy, que los requerimientos de los administrados sean atendidos como corresponde y que todas las actuaciones administrativas sean seguidas cumpliendo con todas las garantías.24

De esta manera se vincula adecuadamente la buena admi-nistración, la probidad y la actuación conforme al interés público primario o general. Una desviación de poder es, así, un acto de improbidad y contrario a la buena administración.25

Motivación del acto administrativo e improbidad

Augusto DURÁN MARTÍNEZ destaca que,, al incluirlo en el artículo 21 del decreto Nº 30/003, el Poder Ejecutivo conside-ra, con razón, que la ausencia de motivación o una motivación insuficiente configura improbidad.26 El artículo 21 del decreto Nº 30/003 establece:“Artículo 21º. (Motivación de la decisión): El funcionario debe motivar los actos administrativos que dicte, explicitando las razones de hecho y de derecho que lo fundamen-ten. No son admisibles fórmulas generales de fundamentación, sino que deberá hacerse una relación directa y concreta de los hechos del caso específico en resolución, exponiéndose además las razones que con referencia a él en particular justifican la deci-sión adoptada. Tratándose de actos discrecionales se requerirá la identificación clara de los motivos en que se funda la opción, en consideración al interés público.”

Como se percibe, el inciso primero reproduce en esencia el artículo 123 del decreto Nº 500/991, pero introduce un segundo inciso de singular importancia, que recoge lo que ya la doctrina y jurisprudencia sostenían, en cuanto a que en el ejercicio de la actividad discrecional, la motivación se exige con mayor razón27.

Esto es así porque una motivación insuficiente puede pre-tender encubrir un motivo falso o una desviación de poder la que, de por sí, configura por lo menos improbidad.28

24 DURÁN MARTÍNEZ, A, La buena (…), loc. cit., p. 175. DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Improbidad del funcionario público. Op. Cit. p. 4.

25 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.26 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem, p. 5.27 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, p. 5.28 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.

“Artículo 59.: La ley establecerá el Estatuto del Funciona-rio sobre la base fundamental de que el funcionario existe para la función y no la función para el funcionario.”

De acuerdo a estas normas, los funcionarios deben:23

• actuar al servicio de la Nación y conforme a la base fundamental de que la función no existe para el funcio-nario sino éste para ella;

• abstenerse de actuar, en cuanto funcionarios, al servicio de una fracción política, así como de hacer proselitis-mo o realizar cualquier actividad ajena a la función en los lugares y horas de trabajo;

• abstenerse de constituir agrupaciones con fines pro-selitistas utilizando denominaciones de reparticiones públicas o invocando el vínculo que la función determi-ne entre sus integrantes.

Sin perjuicio de la contundencia y de la claridad concep-tual de la fórmula constitucional “el funcionario existe para la función y no la función para el funcionario”, existen sobrados ejemplos de que en la Administración Pública prima la fórmula inversa, quizás sustentados o motivados en la mal concebida inamovilidad de los funcionarios públicos, donde, salvo la muer-te o aisladas renuncias a la función pública, prácticamente nada separará al funcionario de su cargo público a lo largo de su vida.

Corrupción, improbidad y buena administración

El término buena administración apareció por primera vez en una Constitución en nuestro país en la Carta de 1952. En base a esa evolución, hemos entendido que la buena administración significa elegir los instrumentos adecuados para la consecución del fin debido, obtener los resultados procurados con el me-nor costo posible, no efectuar trámites inútiles, hacer un buen uso del tiempo pero también actuar con transparencia, con pro-bidad; significa asimismo que los servicios públicos funcionen correctamente acorde a las necesidades reales del hombre de

23 VÁZQUEZ, Cristina. Idem

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mismo la vigencia del Estado de Derecho”.32 Esto es así, ya que no se concibe un Estado de Derecho sin un fundamento democrático. Democracia y Estado de Derecho se encuentran finalizados al pleno desarrollo de los derechos humanos. De ahí la especial importancia que tiene el control de la corrupción.33 Estado de Derecho y Democracia, interrelacionados entre sí, a tal punto que la salvaguarda y la protección de los derechos humanos no es tal, o mejor dicho no existe, sin la vigencia plena de aquellos.

De ahí que entendemos que no alcanza sólo con la elección popular de los gobiernos de turno sino que dicho compromiso debe reafirmarse día a día con el respeto y el ejercicio pleno de los derechos humanos en un Estado de Derecho.

Por tal razón es que adherimos a lo explicitado en cuanto a que la corrupción atenta directamente contra la democracia, lo cual no es un definición menor, ya que entraña una concepción mucho más amplia referida al respeto de los derechos humanos y a la salvaguarda de la dignidad de las personas.

Y la corrupción en tanto mal endémico de todas las socie-dades, en todas las épocas, debe ser combatida con todas las armas que nos brinda un Estado de Derecho, partiendo, aunque resulte algo obvio, en primer lugar por reconocer su existencia, para sí poder combatirla y tratar de erradicarla.

Corrupción que se infiltra en nuestros Estados y países generando un daño difícilmente cuantificable en cuanto a que afecta la institucionalidad de un país, el prestigio de sus insti-tuciones y valores inmateriales como la certeza y confiabilidad para aquellos inversores que quieran invertir por la confianza que un país le genera, con la consiguiente y consecuente gene-ración de fuentes de empleo – con lo necesario que ello resulta para nuestros países, sobre todo en América Latina-.

Nuestra legislación interna procuró seguir los lineamientos de la CICC. Así, la ley N° 17.060, ya citada, modificó el Código Penal en lo relativo al tema a los efectos de tipificar nuevos de-

32 PRATS, M. Corrupción (...), loc. cit., p. 89. Citado por DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción. Mecanismos sociales y jurídicos para su control. Op. Cit. p. 91.

33 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.

La debida motivación del acto administrativo puede ser también considerada como una garantía de buena administra-ción, de una buena gestión administrativa y, especialmente, de una gestión pública de calidad ajustada a derecho.

La realidad nos demuestra que la falta de motivación de los actos administrativos no ha desaparecido por completo, no pudiendo existir dudas en cuanto a que es una exigencia de buena administración que el Estado funde sus actos en forma debida.

Régimen legal y reglamentarioz

En Uruguay, se procuró profundizar los lineamientos de la CICC por medio de la ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998.29 El Poder Ejecutivo acompañó el Proyecto de Ley ‒ que en definitiva pasó a ser la N° 17.060 ‒ con un mensaje en el cual vale la pena destacar que: a) la corrupción no es un fenómeno nuevo pero se ha incrementado en los últimos tiempos; b) la cor-rupción no es propia de nuestro país, sino que es un fenómeno universal; c) la corrupción en nuestro país no es endémica sino que se limita a casos aislados, pero no es un mito sino una reali-dad; d) las medidas contra la corrupción que se proponen son a los efectos de proteger la democracia y la economía.30

Augusto DURÁN MARTÍNEZ es enfático al sostener que la corrupción atenta directamente contra la democracia, que, en el estado actual de nuestra civilización, es el mejor sistema co-nocido para el desarrollo de los derechos humanos, con lo que en última instancia la lucha contra la corrupción es una lucha en defensa de los derechos humanos.31

Bien ha podido decir PRATS citado por Augusto DURÁN MARTÍNEZ que “en el combate a la corrupción está en juego

29 Diario de Sesiones de la Cámara de Representantes. N° 2735, Montevideo, jueves, 4 de junio de 1998, pp. 21 y ss. DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción. Mecanismos sociales y jurídicos para su control. Op. Cit, p. 91.

30 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Idem, ibidem.31 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción y derechos humanos. Aspectos de Derecho Administra-

tivo; Op. Cit. p. 3.

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Regímen institucional: el papel de la junta de transparencia y ética públicA

Naturaleza jurídica37

La Ley Nº 19.340 de 28 de agosto de 2015 crea la Junta de Transparencia y Ética Pública (JUTEP) como servicio descen-tralizado, que se relacionará con el Poder Ejecutivo a través del Ministerio de Educación y Cultura y tendrá independencia técni-ca en el ejercicio de sus funciones (Artículo 1º).

La Junta de Transparencia y Ética Pública (ex Jun-ta Asesora en Materia Económico Financiera del Estado) fue creada por el art. 4 de la Ley Nº 17.060 ‒ “Normas refe-ridas al uso indebido del Poder Público (Corrupción)” ‒. Por el art. 8 de dicha ley, en la versión dada por el art.334 de la Ley Nº 17.296 de 21 de febrero de 2001, se estableció que “La Junta constituye un Cuerpo con indepen-dencia técnica en el ejercicio de sus funciones”, cuerpo que es calificado en el decreto reglamentario Nº 354/999 como “órgano público” (art.1) y “órgano del Estado”(art.4)38. La ley ha procurado jerarquizar a la Junta, creándola como un “cuerpo” u “órgano” y no como una depen-dencia integrada a otra estructura, pero también otorgándole independencia técnica para el ejercicio de sus funciones, pro-curando, así, preservarla de eventuales influencias políticas o burocráticas que desnaturalicen el importante cometido asignado de actuar con objetividad en el contralor del fun-cionamiento de la Administración Pública en su conjunto.39 Finalmente, dicha jerarquía también se expresa en la forma de designación de sus tres miembros, elegidos por el Presidente de la República, actuando con el Consejo de Ministros y con ve-nia del Senado, por tres quintos de votos de sus componentes “entre personas de reconocida experiencia y solvencia profesio-

37 http://www.jutep.gub.uy/naturaleza-juridica.38 Idem.39 Idem.

litos y ajustar la redacción de artículos relacionados con delitos ya existentes (Capítulo VI)34.

En cuanto a las llamadas medidas preventivas, esa ley:35

a) creó la Junta Asesora en Materia Económica Financiera del Estado (art. 4 modificado por el art. 334 de la ley N° 17.296, de 21 de febrero de 2001);

b) destina un capítulo, el III, al Control Social, a fin de ase-gurar la transparencia en la Administración Pública;

c) recoge algunos principios (Capítulo VI) entre los que DU-RÁN MARTÍNEZ destaca el de la honestidad en el desempeño del cargo, con preeminencia del interés público sobre cualquier otro y el de la idónea administración de los recursos públicos (art. 20).

Por otro lado, el Poder Ejecutivo por el decreto N° 30/003 de 23 de enero de 2003 adoptó un verdadero código de con-ducta para la función pública.

En el Capítulo I del Título I de la Ley, de Disposiciones Generales de la Ley Nº 19.121 de 20 de agosto de 2013, regula-toria del Estatuto del Funcionario Público de la Administración Central, el artículo 1º define como objeto de la misma la regu-lación de las relaciones de trabajo del Poder Ejecutivo con sus funcionarios, en un marco de profesionalización, transparencia, eficacia y eficiencia, conceptos que, desde su propia enun-ciación, marcan deberes y obligaciones funcionales, ya que la actuación funcional debe ceñirse a los mismos36.

34 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem,.p. 94.35 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto.Idem,.p. 94.36 VÁZQUEZ, Cristina. - “Deberes de los funcionarios públicos en el estatuto del funcionario de la

administración central” en RDT Enero - Marzo 2014.

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Cometidos

En cuanto a los cometidos, la legislación refiere a cometi-dos sustantivos y a cometidos accesorios.

En tal sentido, de acuerdo al artículo 2º Ley Nº 19.340 de 28 de agosto de 2015, la Junta de Transparencia y Ética Pública (JUTEP) tendrá los siguientes cometidos:

1) Asesorar a nivel nacional en materia de los delitos pre-vistos por la Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998, contra la Administración Pública (Título IV, excluyendo los Capítulos IV y V del Código Penal) y contra la economía y la hacienda pública (Título IX del Código Penal), que se imputen a alguno o algunos de los funcionarios públicos enumerados en los artículos 10 y 11 de la Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998 y demás obligados.

2) Asesorar a los órganos judiciales con competencia pe-nal, emitiendo opinión dentro del marco de su materia, cuando el Poder Judicial o el Ministerio Público lo dispongan. La actua-ción de la JUTEP en el cumplimiento de su cometido se regulará por lo establecido en la Sección V, Capítulo III, Título VI, Libro I del Código General del Proceso, en lo aplicable.

3) Obtener y sistematizar todas las pruebas documenta-les que, de existir, fueran necesarias para el esclarecimiento de las denuncias hechas sobre comisión de delitos incluidos en el texto de la Ley N° 17.060,de 23 de diciembre de 1998, toda vez que el órgano judicial competente o el Ministerio Público así lo disponga. La JUTEP dispondrá de sesenta días para el cumplimiento del cometido indicado, pudiendo solicitar al juez, por una sola vez, la prórroga del plazo, la que será concedida siempre que exista mérito bastante para ello, por un máximo de treinta días. Vencido el plazo o la prórroga en su caso, la JUTEP remitirá al órgano al que legalmente corresponda recepcionar los antecedentes reunidos. Estos serán acompañados por un in-forme explicativo de la correlación de los mismos con los hechos denunciados.

4) Promover normativas, programas de capacitación y difu-sión que fortalezcan la transparencia de la gestión pública.

nal y moral” (Numeral 1, art. 4, Ley Nº 17.060). La destitución de los mismos solo se podrá realizar por resolución fundada, con venia del Senado, que cuente con la misma mayoría requerida para su designación, lo que refrenda que no se trata de meros cargos de confianza del Poder Ejecutivo, sino del Gobierno en su conjunto.40

Misión y visión41

En la página web de la Junta de Transparencia y Ética Pú-blica, podemos conocer la misión y la visión del organismo.

En cuanto a su misión, se dispone que debe “Propiciar políticas públicas, normativas y acciones que fortalezcan la transparencia en la gestión del Estado, asesorar al Poder Judi-cial y a la Administración en la lucha contra la corrupción, recibir y custodiar las declaraciones juradas patrimoniales de los funcio-narios públicos obligados legalmente a su presentación, difundir los principios de la ética pública y la normativa anticorrupción y atender los compromisos internacionales asumidos por el país en las convenciones y convenios vinculados a la materia”.

En cuanto a su visión se establece que la Junta aspira a “Ser el órgano autónomo de control encargado de identificar los riesgos de corrupción a nivel del estado y desarrollar actividades orientadas a prevenir la implantación o extensión de ese fenó-meno en la administración pública nacional. Actuar como perito auxiliar, a solicitud de la justicia penal, en los delitos contra la economía o la hacienda pública y desempeñarse como organis-mo asesor de la administración en lo que se refiere a las normas de conducta del funcionario público. Participar activamente en los ámbitos generados por las convenciones y convenios inter-nacionales contra la corrupción suscritos por el país”.

40 Idem. 41 http://www.jutep.gub.uy/mision-y-cometidos

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1) Asesorar a la Justicia Penal y a la Administración Pública cuando la Justicia o el Ministerio Público lo disponga.

2) Recibir, registrar y custodiar las declaraciones juradas de bienes e ingresos según lo dispuesto en los artículos 10 y 11 de la Ley Nº 17.060 de 23 de diciembre de 1998.

3) Asesorar a los Organismos Estatales sobre Normas de Conducta en la Función Pública establecidas en el Decreto 30/003 de 23 de enero de 2003.

4) Verificar las publicaciones de las Compras Estatales.

5) Promover la transparencia en la gestión de la función pública.

6) Asistir en materia internacional de acuerdo a los Trata-dos y Convenios suscritos y ratificados.

Organización institucional

El artículo 5º, en cuanto a la organización y funcionamien-to, dispone que la dirección y administración de la Junta de Transparencia y Ética Pública (JUTEP) será ejercida por un Di-rectorio integrado por tres miembros rentados: un Presidente, un Vicepresidente y un Vocal, que serán designados por el Pre-sidente de la República, actuando con el Consejo de Ministros, con venia de la Cámara de Senadores otorgada siempre por tres quintos de votos del total de componentes, entre personas de reconocida experiencia y solvencia profesional y moral.

El Presidente de la República, en acuerdo con el Consejo de Ministros, podrá destituir por resolución fundada a los miem-bros de la JUTEP con venia de la Cámara de Senadores otorgada por la misma mayoría exigida para su designación. Si la Cámara de Senadores no se expidiera en el término de sesenta días, el Poder Ejecutivo podrá hacer efectiva la destitución.

5) Asimismo tendrá los cometidos previstos en los Capítu-los III y IV de la Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998, para lo cual podrá dirigirse, por intermedio del órgano judicial inter-viniente o del representante del Ministerio Público, a cualquier repartición pública, a fin de solicitar los documentos y demás elementos necesarios para el esclarecimiento por el juez de los hechos denunciados.

6) Recibir, gestionar y conservar las declaraciones juradas de que tratan los artículos 10 y siguientes de la Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998.

7) Ejercer la función de órgano de control superior de conformidad con el artículo III numeral 9 de la Convención Inte-ramericana contra la Corrupción con el fin de prevenir, detectar, sancionar y erradicar las prácticas corruptas.

8) Relacionarse con los organismos internacionales y ex-tranjeros con referencia a la materia de su competencia.

Asimismo de acuerdo al artículo 3º, para el cumplimiento de sus funciones la Junta de Transparencia y Ética Pública (JU-TEP) tendrá los siguientes cometidos accesorios:

1) Recabar, cuando lo considere conveniente, información sobre las condiciones de regularidad e imparcialidad con las cuales se preparan, formalizan y ejecutan los contratos públicos de bienes, obras y servicios.

2) Determinar, a requerimiento del interesado, si este debe presentar la declaración jurada de bienes e ingresos a que refiere el Capítulo V de la Ley N° 17.060, de 23 de diciembre de 1998.

3) Proponer las modificaciones de normas sobre las mate-rias de su competencia.

4) Elaborar y hacer público un informe anual que será ele-vado a los Poderes Ejecutivo, Legislativo y Judicial.

En cuanto a los objetivos de la Junta de Transparencia y Ética Pública, cabe destacar:42

42 http://www.jutep.gub.uy/mision-y-cometidos

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Por otra parte, ya ha quedado dicho que la ley Nº 17.060, consecuente a la ratificación de la Convención Interamerica-na contra la Corrupción (CICC) por la ley Nº 17.008 de 25 de setiembre de 1998, vincula la transparencia al control ‒ espe-cialmente social ‒ y a la responsabilidad, a la vez que la gestión administrativa no sólo se prevé que pueda ser conocida (a través de la publicidad de la información) sino que la misma pueda ser divulgada libremente a través de cualquier medio (atributo de la transparencia).46

Es necesario jerarquizar el desenvolvimiento ético de quie-nes desempeñan funciones públicas, previniendo y reprimiéndo las conductas corruptas. A tal fin, la efectividad de la transpa-rencia es un supuesto y el desarrollo maduro del control social, una necesidad.47

Transparencia e información pública en la lucha contra la corrupción: la importancia de la capacitación y comunicación en las

organizaciones públicas

Las leyes de transparencia e información pública son claves en la lucha contra la corrupción. Cuanto mayor sea la informa-ción pública en poder y al alcance de la ciudadanía, menor será el riesgo de la corrupción.

Las obligaciones de transparencia activa consagradas en la mayoría de las leyes de transparencia buscan ante todo que lo medular y esencial de toda gestión pública sea público y acce-sible, al alcance de todos, – sin necesidad de que el ciudadano lo reclame – en los sitios web de cada Administración Pública.

De esta forma, las remuneraciones de los funcionarios públicos, las compras y contrataciones del Estado, entre otros

46 DELPIAZZO, Carlos E. Idem..47 DELPIAZZO, Carlos E. Idem.

El control social de la gestión pública

Bajo la denominación de “Control social”, el capítulo III de la ley anticorrupción Nº 17.060 de 23 de diciembre de 1998 contiene tres disposiciones jerarquizadoras del principio de transparencia en el obrar de los servidores públicos.43

En primer término, el art. 5º ordena que “Los organismos públicos darán amplia publicidad a sus adquisiciones de bienes y contrataciones de servicios”. A renglón seguido, establece el art. 6º que “El Poder Ejecutivo, a propuesta de la Junta (Ase-sora en Materia Económico Financiera del Estado creada en la misma ley), llevará a cabo periódicamente campañas de difu-sión en materia de transparencia pública y responsabilidad de los funcionarios públicos, así como sobre los delitos contra la Administración Pública y los mecanismos de control ciudadano”.

Finalmente, agrega el art. 7º que “Los actos, documen-tos y demás elementos relativos a la función pública pueden ser divulgados libremente, salvo que por su naturaleza deban per-manecer reservados o secretos o hayan sido declarados tales por ley o resolución fundada. En todo caso, bajo la responsabili-dad a que hubiere lugar por Derecho”.

Obsérvese que la normativa transcripta pone el énfasis en el acceso por los integrantes del cuerpo social a la información relativa al quehacer administrativo, avanzando un paso más res-pecto a la clásica publicidad de su actividad al prever que esa información pueda ser divulgada libremente por el medio que sea.44

Apunta con acierto Carlos E. DELPIAZZO que, para que la sociedad y sus integrantes puedan controlar adecuadamente a la Administración como servidora que es de todos los com-ponentes del cuerpo social, se requiere que su actuación sea transparente a sus ojos. Se ingresa así en el amplio campo del nuevo principio general de transparencia45.

43 DELPIAZZO, Carlos E. Acerca del control social de la gestión pública. Op. Cit..44 DELPIAZZO, Carlos E. Idem.45 DELPIAZZO, Carlos E.Idem.

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Al respecto simplemente insistir con lo enunciado en el primer principio, en tanto establece los pilares fundamentales de este derecho: “1. Toda información es accesible en principio. El acceso a la información es un derecho humano fundamental que establece que toda persona puede acceder a la información en posesión de órganos públicos, sujeto solo a un régimen limi-tado de excepciones, acordes con una sociedad democrática, y proporcionales al interés que los justifica. Los Estados deben asegurar el respeto al derecho de acceso a la información, adop-tando la legislación apropiada y poniendo en práctica los medios necesarios para su implementación”.

Con acierto, señala Augusto DURÁN MARTÍNEZ50 que “se ha visto el fundamento del derecho de acceso a la información pública en la necesidad de transparencia y como una exigencia democrática. En definitiva, este es un derecho que hace a la esencia del Estado Social y Democrático de Derecho o, como también se dice, del Estado Constitucional”.

Debemos apostar a una Cultura de Transparencia en la Ad-ministración Pública. De ahí la importancia de la capacitación y comunicación de los funcionarios públicos en lo que llamaremos “Agenda de Transparencia”, donde la información y la ética pú-blicas revisten una importancia central en las organizaciones.

Se debe propiciar una cultura de transparencia en cada organismo a través de una mejora de la calidad en la gestión de los servicios de comunicación, como forma de mejorar el de-sempeño de la Administración y de sus funcionarios y, al mismo tiempo, acercar el Estado a los ciudadanos.

La transparencia no es una condición propia de las Orga-nizaciones, hay que construirla y para ello vamos a trabajar en iniciativas concretas.

Entre ellas, podemos destacar procesos y beneficios aso-ciados a la gestión interna, tales como talleres de capacitación y mejora continua a funcionarios en las temáticas; acceso a la información pública, de datos personales y ética pública; forta-

50 DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Derecho a la protección de datos personales y al acceso a la informa-ción pública hábeas data: Leyes no. 18.331, de 11 de agosto de 2008 y no. 18.381, de 17 de octubre de 2008; 2ª. ed. act. ampl. Montevideo: Amalio M. Fernández, 2012..

ítems, deben ser, sin dudas, públicos, y ser publicados en forma clara y accesible para todos.

De eso se trata la Transparencia.

A su vez, por ejemplo, en nuestra legislación se exige a los gobernantes la presentación de declaraciones juradas de bienes e ingresos ante la Junta de Transparencia, siendo obligatoria la publicación de las declaraciones juradas del Presidente y del Vi-cepresidente de la República.

Claro está que, con la sola publicación de la información, no alcanza. De ahí la importancia del control social y del inne-gable rol que juegan los medios de comunicación en un Estado de Derecho, en cuanto al seguimiento y puesta en agenda públi-ca de todos aquellos casos que puedan levantar sospechas por presuntos indicios de corrupción.

Una breve referencia a los pilares fundamentales del dere-cho de acceso a la información pública es una cuestión preliminar y hasta obligatoria para tomar real dimensión y consideración de que estamos ante un derecho humano fundamental y que, por lo tanto, toda solicitud en tal sentido, canalizada a través del procedimiento administrativo especial (al que hemos llamamos “ruta hacia la información pública”), deberá ser tratada y consi-derada como tal. Y este es no es un tema menor o redundante.

Es un tema central, de principios. Y más a la luz de las respuestas y evasivas esgrimidas por el Estado ante situaciones puntuales planteadas que han tomado estado público en los úl-timos tiempos.48

El Comité Jurídico Interamericano plasma los “Principios sobre el Derecho de Acceso a la Información” (CJI/RES. 147 (LXXIII-O/08, 7 de agosto de 2008, Río de Janeiro, Brasil) sobre el derecho de acceso a la información, los cuales están interrela-cionados y deben interpretarse de forma integral.49

48 SCHIAVI, Pablo. Procedimiento administrativo especial: ruta de acceso a la información pública. In. Estudios de Derecho Administrativo 2014, N° 10; Director: Augusto Durán Martínez – Coordinador: Pablo Schiavi. La Ley Uruguay. Montevideo: 2014, p. 399 y siguientes..

49 SCHIAVI, Pablo. El Control del acceso a la información Pública y de la protección de datos perso-nales en el Uruguay. Universidad de Montevideo. Facultad de Derecho. Montevideo: 2012, p. 38 y siguientes.

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Códigos de ética en la administración pública

Vamos a destinar el último capítulo del trabajo para des-tacar la importancia de la existencia de un Código de Ética en la Organización, en el marco de una cultura de transparencia basada en una gestión pública de calidad, junto a la existencia de un Comité de Ética que deberá velar por el cumplimiento del mismo.

Un Código de Ética tiene por finalidad definir los princi-pios éticos, valores y normas de conducta que deben regir el desempeño de quienes cumplen funciones en el Organismo, y que constituyen el fundamento de la conducta debida frente a los miembros de la Organización y demás integrantes de la sociedad.

El fundamento radica en la necesidad de prevenir y san-cionar los comportamientos contrarios a los principios, valores y que constituyen la esencia de toda organización pública, siendo contestes en señalar que el combate de las actuaciones con-trarias a la ética en tal ámbito fortalece las instituciones y evita vicios en la gestión pública.

Debe precisarse asimismo que la aplicación de las disposi-ciones del Código de Ética que se apruebe en el Organismo en cuestión es sin perjuicio de las normas constitucionales, legales y reglamentarias vigentes en la materia cualquiera sea el país donde se implemente.

Esto último vale reafirmarlo ya que generalmente los funcionarios son reticentes a los Códigos de Ética, ya que afir-man que no son necesarios porque alcanza con las normas de conducta en la función pública previstas en la legislación y regla-mentación nacional.

Entendemos que no alcanza. Hay que dar un paso e imple-mentar las obligaciones relativas a la Ética Pública en la interna de las organizaciones.

Son principios generales que deben regir el comportamien-to de los funcionarios: la probidad; la templanza; la equidad; la

lecimiento del rol de la comunicación mediante el rediseño del área especializada y el trabajo en equipo, entre otros.

Cuando hablamos de Cultura de la Transparencia, enten-demos que no alcanza sólo con la dimensión de la transparencia activa hacia la ciudadanía, sino que abarca también la transpa-rencia hacia adentro de las organizaciones, razón por la cual la transparencia intra organización se constituye en presupuesto indispensable para aquella, en la medida que, sin transparencia hacia adentro de las organizaciones, difícilmente la haya hacia afuera de las mismas.

Partimos de la base que es imposible comunicar bien y en forma las notas de la transparencia activa si el organismo carece de una cultura de transparencia. En tal sentido, es indispensable la realización de acciones concretas de concientización y capaci-tación de los funcionarios en el corazón de la organización.

Una organización pública concientizada y capacitada en transparencia es la que mejor va a comunicar y transparentar su información con la ciudadanía.

Si administrar quiere decir servir, es preciso rescatar que el funcionario público es, antes que cualquier otra cosa, un ser-vidor, sea que ocupe un cargo político de alto rango, sea que desempeñe la más modesta de las tareas.51

Debe existir un fuerte compromiso institucional para ca-pacitar y formar a los funcionarios sobre transparencia y ética pública para luego apuntar a que el Estado se relacione mejor con sus ciudadanos y les brinde información creíble, oportuna, clara y transparente.

51 DELPIAZZO, Carlos E. Op. Cit.

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sente Código; f) recepcionar y analizar los pedidos de aquellos funcionarios que solicitaran investigación de su propia conducta y pautas de ajuste a las normas éticas del organismo.

Conclusiones

La corrupción es el principal mal de las sociedades moder-nas, con consecuencias nefastas que afectan no sólo el prestigio de un país y de sus instituciones, sino, lo que es mucho peor y doloroso, afectan la calidad de vida de todos sus habitantes, provocando daños irreparables en la prosperidad y crecimiento de los países que la padecen.

Para combatirla y tratar de llevarla a niveles residuales – somos conscientes que es imposible aspirar a que no exista –, lo primero que debemos hacer es reconocer su existencia, lo cual podrá parecer más que obvio, pero no lo es, ya que lo primero que se hace es negar la corrupción o impedir que se investiguen hechos o prácticas corruptas.

En esta lucha contra la corrupción todos podemos aportar algo, desde el propio Estado, que debe ser estricto y severo, con legislaciones duras que no se agoten en enunciados y enu-meración de listas inagotables de principios y deberes que nunca se cumplen, donde no quepa otra sanción que la destitución sin atenuantes de aquellos funcionarios públicos involucrados; con un Poder Legislativo fuerte y dispuesto a sancionar leyes acordes a las necesidades y, finalmente, con la existencia de plu-ralidad de medios de comunicación que investiguen y denuncien hechos de corrupción para que el Poder Judicial actúe lo más rápido que pueda – no es bueno que los procesos judiciales sean interminables.

La credibilidad de un país está en juego en la lucha contra la corrupción, y todos sabemos lo que pasa cuando un país deja de ser creíble y se transforma en un chiste.

legalidad; la diligencia; la colaboración; la idoneidad; la trans-parencia; la veracidad; la responsabilidad; la imparcialidad; la reserva; el uso adecuado de los bienes del Estado; el uso ade-cuado del tiempo de trabajo; entre otros.

De ahí la importancia de hacer suscribir a todos los funcio-narios de la organización una declaración jurada de implicancias que será presentada ante el Comité de Ética y custodiada por éste.

En el marco del proceso de implementación de un Código de Ética, debemos destacar la necesidad de la creación de un Comité de Ética.

Es conveniente una integración tripartita del Comité de Ética, proponiendo en tal sentido que se integre por los si-guientes miembros: uno designado por resolución fundada del Jerarca o el Directorio del Organismo; uno en representación de los funcionarios del Organismo, y el tercero designado de común acuerdo por los referidos integrantes.

El Comité de Ética, en el cumplimiento de sus cometidos, podrá recabar opinión, a los efectos de mejor proveer de to-das aquellas instituciones estatales que velen por la ética en la función pública y que reciben distintas denominaciones en los distintos países, por ejemplo Junta de Transparencia, Junta de Ética Pública entre otras.

El Comité de Ética tendrá los siguientes cometidos: a) ase-sorar en materia de interpretación y aplicación del Código de Ética aprobado en el organismo en todos aquellos casos que le fuera solicitado, pudiendo pronunciarse sobre las situaciones vinculadas con la ética en el desempeño de las tareas funcio-nales; b) recepcionar denuncias en forma escrita y firmada, de presuntos hechos irregulares, en tanto pudiera existir una viola-ción al Código de Ética referido, las que se analizarán en forma confidencial; c) emitir opinión sobre denuncias relativas a la apli-cación del Código de Ética referido; d) emitir opinión, a solicitud del Jerarca del organismo, en caso de dudas en la interpretación de las declaraciones juradas presentadas; e) sugerir al Jerarca del organismo los correctivos que pudieran corresponder en caso de apartamientos a las disposiciones contenidas en el pre-

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Aportes para una nueva agenda en la lucha contra la corrupción: buena administración, control social, transparencia, capacitación y comunicación Pablo SCHIAVI

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______. Estudios de Información Pública y Datos Personales., Recopilación de trabajos de investigación de los cursos de pos-tgrado 2012-2013. Coordinador. Universidad de Montevideo Facultad de Derecho, Montevideo 2014.

______. Reflexiones a cinco años de la Ley de Acceso a la Informa-ción Pública en el Uruguay. In. Estudios de Derecho Administrativo N° 9/2014 – Director Augusto DURÁN MARTÍNEZ, Coordinador Pablo SCHIAVI. La Ley Uruguay. Montevideo: 2014.

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VÁZQUEZ, Cristina. Deberes de los funcionarios públicos en el estatuto del funcionario de la administración central. In RDT Enero - Marzo 2014.

Agencia de compras y contrataciones del estado. Sitio Web: http://www.comprasestatales.gub.uy.

Junta de transparencia y ética pública. Sitio Web: http://www.ju-tep.gub.uy.

Unidad de acceso a la información pública. Sitio Web: http://www.informacionpublica.gub.uy.

Anexo normativo52

CONVENCIONES INTERNACIONALES53

Convención de las Naciones Unidas contra la Corrupción

Convención de las Naciones Unidas contra la Corrupción suscrita en Mérida, México, del 9 al 11 de diciembre de 2003.

Convención Interamericana contra la Corrupción

52 Sitio Web oficial de la Junta de Transparencia y Ética Pública. 53 http://www.jutep.gub.uy/convenciones-internacionales

Bibliografía

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DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción. Mecanismos sociales y jurídicos para su control In. Estudios de Derecho Público, Volumen II, Montevideo: 2008. Mastergraf Srl...

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PRATS, M. Corrupción, Estado de Derecho y Control de la Socie-dad Civil. In. V.V.A.A. Derechos Humanos y Corrupción. Uruguay Transparente/ Asociación de Magistrados del Uruguay/ Embajada de Suiza, Montevideo: 2002, p. 84; citado por DURÁN MARTÍNEZ, Augusto. Corrupción. Mecanismos sociales y jurídicos para su control. In. Estudios de Derecho Público. Volumen II; Montevideo: 2008; Mastergraf Srl..

SCHIAVI, Pablo. Procedimiento administrativo especial: ruta de acceso a la información pública. In. Estudios de Derecho Administrativo. 2014, N° 10; Director: Augusto Durán Martínez – Coordinador: Pablo Schiavi. La Ley Uruguay. Montevideo: 2014.

______. Estudios de Información Pública y Datos Personales. Reco-pilación de trabajos de investigación de los cursos de postgrado 2014-2015. Coordinador. Universidad de Montevideo Facultad de Derecho, Montevideo 2016.

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Aportes para una nueva agenda en la lucha contra la corrupción: buena administración, control social, transparencia, capacitación y comunicación Pablo SCHIAVI

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Artículo 194 de la Ley Nº 18.996 de 07/11/2012. Autoriza a la JU-TEP por resolución fundada a tres pases en comisión.

Ley Nº 18.930 (Artículo 5 Literal D) de 17 de julio de 2012

Literal D del artículo 5 de la Ley Nº 18.930. Registro de acciones al portador del Banco Central del Uruguay, La Junta de Trans-parencia y Ética Pública, puede tomar conocimiento de esta información secreta siempre que tal información sea solicitada se-gún lo editado en las leyes de la materia.

Ley Nº 18.834 de 04 de noviembre de 2011

Artículo 50 que modifica el artículo 476 de la Ley Nº 17.296 de 21/02/2001 y artículo 51. Establece que la Junta puede brindar asesoramiento especializado en materia de su competencia a la Presidencia de la Asamblea General o a las Juntas Departamen-tales con las más amplias facultades de auditoría e investigación, como auxiliar pericial del órgano legislativo, con autonomía técnica.

Ley Nº 18.786 (Artículo 8) de 19 de julio de 2011

Artículo 8 de la ley Nº. 18.786. La ley establece el marco re-gulatorio aplicable al régimen de Contratos de Participación Público-Privada y determina que los integrantes de las comisiones técnicas estarán obligados a presentar declaración jurada de bie-nes e ingresos.

Ley Nº 18.446 (Artículo 49) de 24 de diciembre de 2008

Artículo 49 que agrega obligados a presentar declaración jurada de bienes e ingresos. El Artículo 49 indica que están obligados a presentar declaración jurada de bienes e ingresos los miembros del Consejo Directivo de la INDDHH y los funcionarios rentados de carácter no administrativo de la INDDHH.

Ley N° 18.381 de 17 de octubre de 2008

Ley de Derecho de Acceso a la información Pública.

Ley N° 18.362 de 06 de octubre de 2008

Introduce modificaciones a los artículos 4, 11, 12 y 17 de la Ley 17.060 de 23 de diciembre de 1998.

Convención Interamericana contra la Corrupción, suscrita en Cara-cas, el 29 de marzo de 1996.

LEYES54

Ley Nº 19.340 de 28 de agosto de 2015

Crea la Junta de Transparencia y Ética Pública (JUTEP) como servi-cio descentralizado.

Ley 19.208 de 18 de abril de 2014

Extiende la obligación de formular declaración jurada de bienes e ingresos a cualquier título, a funcionarios o empleados de empre-sas privadas adquiridas por organismos públicos, siempre que la participación del Estado sea mayoritaria.

Ley Nº 19.177 de 20 de diciembre de 2013

Se faculta a la JUTEP a instrumentar las declaraciones juradas de bienes e ingresos en soporte electrónico e incrementa la cantidad de pases en comisión dispuesto por el artículo 194 de la Ley Nº 18.996.

Ley Nº 19.149 (Artículo 139) de 24 de octubre de 2013

Extiende la obligación de formular declaración jurada de bienes e ingresos a cualquier título a todos los funcionarios del Ministerio del Interior sin excepción.

Artículo 139 de la ley Nº 19.149 de 24 de octubre de 2013

Agrega al artículo 11 de la ley N° 17.060 el literal S. Indicando la obligatoriedad de presentar declaraciones juradas de bienes e ingresos a todo el personal del Ministerio del Interior.

Ley Nº 19.007 de 16 de noviembre de 2012

Ley que modifica el Código Penal sobre delitos de funcionarios públicos.

Ley Nº 18.996 (Artículo 194) de 07 de noviembre de 2012

54 http://www.jutep.gub.uy/leyes

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DECRETOS55

Decreto Nº 247/012 de 02/08/2012

Decreto reglamentario de la Ley No. 18.930 de 17 de Julio de 2012.

Decreto Nº 338/010 de 12/11/2010

Reglamenta algunos aspectos del artículo 11 de la Ley Nº 17.060 de 23 de diciembre de 1998, en la redacción dada por el artículo 299 de la Ley Nº 18.362 de 6 de octubre de 2008, a fin de proce-der a la correcta aplicación de la ley.

Decreto Nº 232/010 de 02/08/2010

El Poder Ejecutivo dictó el decreto a los efectos de reglamentar la Ley de Acceso a la Información Pública. El objeto de la misma es promover la transparencia estatal y garantizar el acceso a la infor-mación a todas las personas.

Decreto N° 191/007 de 28/05/2007

Obligatoriedad de dar a publicidad en el sitio web de Compras Estatales las adjudicaciones de licitaciones o contrataciones de los organismos públicos.

Decreto N° 152/007 de 26/04/2007

Reglamentario del artículo 99 de la ley 18.046 de 24 de octubre de 2006, autorizando la retención de haberes de funcionarios y ex funcionarios declarados omisos por la Junta Asesora.

Decreto N° 393/004 de 03/11/2004

Los incisos 02 al 15 del Presupuesto Nacional, enviarán al sitio web www.comprasestatales.gub.uy, los actos de reiteración del gasto cuando mediare observación del Tribunal de Cuentas.

Decreto N° 226/003 de 04/06/2003

Procedimiento para presentación de la información solicitada se-gún decreto N° 30/003 de 23/01/2003.

Decreto N° 30/003 de 23/01/2003

55 http://www.jutep.gub.uy/decretos

Ley N° 18.172 de 31 de agosto de 2007

Autorización para la compra del local que ocupa la Junta (art. 221), regula el lapso de permanencia de los integrantes de la Jun-ta (art. 222) y modifica el artículo 15 de la Ley 17060 (art. 223)

Ley N° 18.056 de 14 de noviembre de 2006

artículo único.- Apruébase la Convención de las Naciones Uni-das contra la Corrupción suscrita en Mérida, México, del 9 al 11 de diciembre de 2003, que consta del preámbulo y setenta y un artículos.

Ley N° 18.046 de 24 de octubre de 2006

En su artículo 99 autoriza la retención del 50% de los haberes de funcionarios y ex funcionarios declarados omisos por la Junta Asesora.

Ley N° 17.556 de 18 de setiembre de 2002

Articulo Nº 163 de la ley 17556 de 19 de setiembre de 2002 so-bre publicidad del acto de adjudicación de las licitaciones públicas y abreviadas, las contrataciones en régimen de excepción las am-pliaciones de las mismas y los actos de reiteración del gasto por observación del Tribunal de Cuentas.

Ley N° 17.296 de 21 de febrero de 2001

Disposiciones relativas a la Junta de Transparencia y Ética Pública.

Ley N° 17.060 de 23 de diciembre de 1998

Normas referidas al uso indebido del Poder Público (Corrupción). Actualizada al 11 de mayo de 2015.

Ley N° 17.008 de 25 de setiembre de 1998

Apruébase la Convención Interamericana contra la Corrupción, suscrita en Caracas, el 29 de marzo de 1996.

Ley Nº 14.095 de 17 de noviembre de 1972

Artículo 6º de la Ley Nº 14.095, omisión de los funcionarios en de-nunciar delitos económicos.

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la Ley 17.060 a los funcionarios o empleados de las empresas pri-vadas de propiedad estatal.

Res.2586/2009 de la JUTEP

La Resolución de la JUTEP Nº2586/2009 extingue la obligación de presentar declaración jurada a los Ediles Locales a partir del 1/1/2009.

Normas de Conducta en la Función Pública.

Decreto N° 354/999 de 12/11/1999

Decreto reglamentario de la ley 17.060 de 23 de octubre de 1998.

RESOLUCIONES56.

Res. 4245/2015 de la JUTEP

Queda habilitada la posibilidad de presentar la declaración jurada de bienes e ingresos de carácter complementaria a los declaran-tes, toda vez que se hubieren omitido datos que integren el activo o el pasivo patrimonial de la misma.

Res. 3785/2012 de la JUTEP

Declárase obligatoria la presentación de la Declaración Jurada de Bienes e Ingresos prevista en los artículos 10 y siguientes de la Ley Nº 17.060 a los Ediles de las Juntas Departamentales y a la totalidad de sus correspondientes suplentes.

Res. 3752/2012 de la JUTEP

La Resolución de la JUTEP Nº 3752/2012 de 30 de mayo de 2012 hace aplicable el literal “N” del artículo 11 de la Ley 17.060 a los funcionarios que revistan como “Directores de Proyecto” y que puedan ser considerados o asimilados a: gerentes, Jefes de Com-pras u ordenadores de gastos y de pagos.

Res. 3751/2012 de la JUTEP

Se resuelve que la apertura o información contenida en las de-claraciones juradas de bienes e ingresos, que provengan de la justicia, solo procederán cuando sean solicitadas por resolución fundada actuando en materia Penal, sea la Sede de competencia exclusiva o múltiple en la materia.

Res. 3555/2011 de la JUTEP

La Resolución de la JUTEP Nº 3555/2011 de 26 de octubre de 2011 hace aplicables los literales “F”, “N” y “P” del artículo 11 de

56 http://www.jutep.gub.uy/resoluciones

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A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA

Gisele Cittadino1

1 Professora do Programa de Pós-graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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A constituição de 1988 e a construção da cidadaniaGisele Cittadino

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A partir das últimas décadas do século XX, a linguagem dos direitos começou a se incorporar ao debate político bra-

sileiro. O aparecimento, nos anos 1970, dos movimentos de defesa dos direitos humanos, especialmente os relativos à vida e à integridade física dos que enfrentavam a ditadura; a luta pela reconquista dos direitos de participação política no início dos anos 1980; a efetiva atuação, na segunda metade dessa década, de diversos setores da sociedade civil no processo constituinte de que resultou a Constituição de 1988 – tudo isso revela a força do direito no país. Mas a promulgação da Constituição Federal, que converteu os direitos da Declaração da Organização das Nações Unidas em direitos legais no Brasil, foi a principal refe-rência da incorporação dessa linguagem dos direitos ao debate político brasileiro.

A principal característica da Constituição de 1988, chama-da de Constituição Cidadã, é ter estabelecido o mais completo sistema de direitos individuais e coletivos – prevendo, entre outros, o direito à cultura, a um meio ambiente saudável, à as-sociação sindical, à proteção jurídica, à informação, ao lazer, à integridade moral – e convertido esse conjunto de direitos fun-damentais em seu núcleo básico. No preâmbulo do texto, ela institui “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exer-cício de direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o desenvolvimento, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]”. Ao definir os fundamentos do Estado bra-sileiro, caracterizando-o como Estado Democrático de Direito, estabelece seu compromisso com a cidadania e com a dignida-de da pessoa humana, fixando, em seu artigo 3o, os objetivos centrais do Estado brasileiro, destacando a construção de uma sociedade justa e a luta contra a pobreza, a desigualdade e a discriminação.

Mas esse conjunto de direitos fundamentais não pode ser visto, como em muitas constituições do passado, apenas como uma defesa da autonomia dos indivíduos e da sociedade (contra um poder público inimigo), propiciada pela criação de um siste-ma fechado de garantias da vida privada. A nova Constituição

não configurou um Estado liberal exclusivamente comprometido com a defesa dos velhos direitos subjetivos individuais. Além de assegurar a autonomia privada, ela pretende garantir e estimu-lar a autonomia pública, comprometendo-se com a ampliação do seu círculo de intérpretes e estabelecendo uma interligação entre os direitos fundamentais e a democracia participativa.

De nada valeria a constitucionalização de um amplo siste-ma de direitos fundamentais se, ao lado dele, não se fixassem instrumentos capazes de efetivar normas que assegurassem de modo eficaz direitos ainda não regulamentados. É preciso, por-tanto, lutar contra as omissões do poder público para garantir a efetividade dos direitos constitucionalmente assegurados.

Diferentes das regras do direito privado, as normas consti-tucionais relativas aos direitos fundamentais revelam programas de ação, mas não foram completamente regulamentadas. São quase sempre vagas e esquemáticas. Concretizar o sistema de direitos fundamentais pressupõe uma atividade interpretati-va, que será tão mais democrática quanto maior o número de atores políticos envolvidos no processo de interpretação da Constituição.

É justamente por não prescrever o regime da aplicabili-dade imediata da maioria das normas relativas aos direitos fundamentais que se espera a decisão política da comunidade de participar de fato do grupo de intérpretes da Constituição. E não há outra forma de viabilizar essa participação senão por meio da criação, pelo próprio ordenamento constitucional, de instrumentos processuais que, utilizados pelos intérpretes da constituição, possam garantir verdadeiramente os direitos fundamentais.

Novos instrumentos

Diferentemente das constituições do passado (ver ‘A nova Constituição’), a Constituição de 1988 criou mecanismos para garantir sua concretização. A efetividade das normas constitu-cionais que protegem os direitos sociais depende do grau de

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A constituição de 1988 e a construção da cidadaniaGisele Cittadino

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participação dos cidadãos no ideal constitucional e da vigilância de seus destinatários. São justamente os intérpretes informais do texto constitucional que podem evitar que as políticas públi-cas destinadas a atender demandas sociais não sejam destruídas por interpretações presas ao velho paradigma liberal, defensor da autonomia privada.

É contra esse não-fazer que a Constituição de 1988 eri-ge instrumentos processuais – como o mandado de injunção e a ação de inconstitucionalidade por omissão – capazes de dar efetividade às normas que garantem direitos, especialmente di-reitos sociais ainda não regulamentados de modo eficaz. Nesses casos, o dever de ação do Estado se associa à necessidade de pôr fim à omissão.

Nossa Constituição possui diversos (e novos) mecanismos que permitem que determinados intérpretes informais seus possam deflagrar processos judiciais. Isso ocorre, por exemplo, no mandado de segurança coletivo (que pode ser impetrado por partido político, organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída, em defesa dos interes-ses de seus membros); na ação popular (em que os cidadãos podem pedir a anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimô-nio histórico e cultural); na denúncia de irregularidades por qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato ao Tribunal de Contas da União; no mandado de injunção, sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercí-cio de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; e na ação de inconstitucionalidade por omissão, que pode ser proposta, entre outros, por partidos políticos, confederações sindicais ou entidades de classe de âmbito nacional.

O processo de concretização da Constituição depende, portanto, da capacidade de controle, por parte da comunidade, das omissões do poder público. Por outro lado, não devemos esquecer que a eficácia normativa do nosso amplo sistema de direitos depende também do trabalho das instituições encarre-

gadas do seu cumprimento. Na qualidade de intérprete último da Constituição, o Poder Judiciário tem papel proeminente.

Do ponto de vista jurídico, a sociedade brasileira está inteiramente aparelhada de instrumentos processuais constitu-cionais para defender seus direitos fundamentais, individuais e coletivos. E disso tem feito uso. Como nunca no passado, os brasileiros estão lutando na justiça por seus direitos constitucio-nais, e a consciência da cidadania cresce. Nos últimos 20 anos fomos capazes de instituir um tipo diferente de espaço público, o judicial. Transformamos a esfera judicial em uma arena política por meio de uma cidadania juridicamente participativa. Na ori-gem do cada vez mais discutido processo de “judicialização” da política está a promulgação da nossa Constituição Cidadã, com seu amplo conjunto de direitos e com seus mecanismos de luta contra as omissões do poder público.

Após 20 anos, o momento é de comemoração. Fomos capazes de superar o autoritarismo e reconstruir o Estado de Di-reito, agora Democrático, promulgando uma Constituição que representa um consenso, ainda que formal, em torno de prin-cípios universais. Estamos inscrevendo tais princípios em nossa cultura e em nossa história política. Para isso, o processo de ‘judicialização’ da política não precisa invocar o domínio dos tri-bunais nem defender uma ação paternalista por parte do Poder Judiciário. Não se trata de contar com algum tipo de ativismo judicial que atue como uma espécie de regente republicano da cidadania brasileira. A própria Constituição de 1988 criou os mecanismos processuais que buscam dar eficácia aos seus princípios, e essa tarefa é responsabilidade de uma cidadania juridicamente participativa que está sujeita à atuação dos tri-bunais, é verdade, mas depende sobretudo do nível de pressão política que sobre eles se fizer.

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O QUE É UM MODELO DEMOCRÁTICO DE PROCESSO?1

Francisco José Borges Motta2 Adalberto Narciso Hommerding3

1 Este trabalho foi publicado, originalmente, na Revista do Ministério Público do RS (n. 73, jan. 2013 – abr. 2013, p. 183-206). Para a presente versão foram realizadas algumas inserções e efetuados pequenos ajustes que não modificam, essencialmente, o argumento defendido no trabalho desde a sua versão inicial.

2 Doutor (2014) e Mestre (2009) em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Professor da Faculdade Escola Superior do Ministério Público (Mestrado e Graduação). Promotor de Justiça no Estado do Rio Grande do Sul.

3 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Alicante, Espanha (2012); Doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS (2005); Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC (2001); Magistrado na Comarca de Santa Rosa/RS; Professor de Graduação, Pós-graduação e Mestrado na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, campus de Santo Ângelo-RS.

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O que é um modelo democrático de processo?Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso Hommerding

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rantia reciprocidade e igualdade fundamental entre as partes e em relação ao juiz, ou seja: a construção interna do procedimen-to era marcada pela isonomia (paridade de tratamento entre governantes e governados).7

No final do século XVII, com a emergência da concepção de jurisdição como expressão de soberania, a construção inter-na do processo passa a posicionar-se não mais sobre a ordem isonômica, mas sim sobre uma ordem assimétrica, já que está baseada na autoridade, na hierarquia e na lógica burocrática. Por outro lado, a verdade, não mais provável, mas sim absolu-ta, podia ser alcançada pelo juiz mesmo sem o contraditório. É o período em que o direito processual fora definido como direito formal (reduzido à mera técnica, com a desvalorização de sua marca originária de ofertar garantias), e em que ficaram muito menos claras as ideias sobre “as técnicas de raciocínio do juiz, sobre a coerência interna de suas argumentações, so-bre a razoabilidade e sobre a averiguação intersubjetiva de suas decisões”.8

res, portanto, têm o direito de deduzir pretensões e defesas, e de realizar prova para demonstrar a existência do direito. O contraditório, porém, não interessa apenas às partes. A problemática do contraditório, necessariamente, liga-se à jurisdição e ao processo, enfim, à “administração da justiça”. Como lembra Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, “não diz respeito apenas ao interesse das partes, mas conecta-se intimamente com o próprio interesse público, na medida em que qualquer surpresa, qualquer acontecimento inesperado, só faz diminuir a fé do cidadão na administração da justiça”. Assim, o diálogo judicial “torna-se, no fundo, dentro dessa perspectiva, autêntica garantia de democratização do processo, a impedir que o poder do órgão judicial e a aplicação da regra iura novit curia redundem em instrumento de opressão e autoritarismo”. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. A garantia do contraditório. In: Revista da Ajuris, n. 74. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 1998, p. 114. Sendo a estrutura dialética do processo sua ratio distin-guendi, o contraditório nela se manifesta e só se realiza se as posições dos “sujeitos interessados” forem “simetricamente iguais”. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale. Padova: Cedam, 1975, p. 30-33. O contraditório, assim, tem íntima ligação com o princípio da igualdade das partes, significando tanto o direito de ação como de defesa. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do pro-cesso civil na Constituição Federal, op. cit., p. 122. Pode ser considerado, ainda, como ensina, por exemplo, Willis Santiago Guerra Filho, um verdadeiro “direito fundamental processual”. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução ao direito processual constitucional. Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 27. É um “elemento de legitimação do poder jurisdicional” (Dinamarco); ou a “nota distintiva” do processo contemporâneo (Mitidiero). MITIDIERO, Daniel Francisco. O problema da invalidade dos atos processuais no direito processual civil brasileiro contemporâneo. In: Revista Ajuris. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, n. 96, ano XXXI, dez. 2004, p. 53.

7 PICARDI, Nicola. Apresentação. In: NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democráti-co: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit., p. 14.

8 Idem, p. 16.

Breves considerações sobre a evolução histórica do processualismo: da fase pré-liberal à socialização processual

Na apresentação da obra Processo Jurisdicional Democrá-tico: uma análise crítica das reformas processuais, de Dierle José Coelho Nunes, Nicola Picardi traça uma breve analítica histórica das principais correntes do pensamento processual civil, desde as chamadas concepções “pré-liberais” até as orientações que se vão delineando na cultura jurídica contemporânea.4

Segundo o processualista italiano, o processo da chamada “ordem jurídica medieval”, que se colocava além do poder polí-tico e de seus detentores (a jurisdição não era considerada uma função exclusiva do estado), encontrava o próprio fundamento na dialética e na ética, não na vontade daqueles que governavam a sociedade; o “processo, em outros termos, constituía um com-plexo de conhecimentos e de regras deontológicas e técnicas, transmitidas no tempo pelos antigos juristas e, posteriormente, reorganizadas, aperfeiçoadas, corrigidas e atualizadas pelas ge-rações sucessivas”.5

Já no direito comum clássico, o eixo do juízo seria cons-tituído pela regra audiatur et altera pars (hoje, diríamos pelo princípio do contraditório)6, resolvido com um diálogo que ga-

4 PICARDI, Nicola. Apresentação. In: NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democráti-co: uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá, 2008.

5 Ibidem, p. 14.6 Para Robert Wyness Millar, o princípio mais destacado dentre os princípios do procedimento é o de

que há de serem ouvidas ambas as partes. Tal requisito é cumprido, dizia Wyness Millar, quando se “brinda” à outra parte a devida ocasião para ser ouvida. Ensinava Millar, então, que o principio da bilateralidade da audiência (princípio do contraditório) é “inseparable en absoluto de la administra-ción de justicia organizada” e “(...) encuentra igualmente expresión en el precepto romano: audiatur et altera pars y en el proverbio en rima de la Alemania medieval: ‘Eines mannes red ist keine red, der richter soll die deel verhoeren beed’”. MILLAR, Robert Wyness. Los principios formativos del procedimiento civil. Tradução de Catalina Grossmann. Buenos Aires: Ediar, [s/d], p. 47. O contradi-tório é hoje considerado um princípio “bifacetado” (Nelson Nery Júnior) ou “multifacetado” (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, embora não utilize o termo). Isso porque, durante o trâmite de um processo (que se pretenda democrático), há necessidade de se dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, havendo uma possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhes sejam desfavoráveis. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Cons-tituição Federal. 2. ed. rev. e aum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 123-124. Os contendo-

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gruente com uma estruturação estatal liberal, em cujos quadros o Estado limita-se à defesa da ordem e da segurança pública, re-metendo os domínios econômicos e sociais para os mecanismos de liberdade individual e da liberdade de concorrência. Assim, como regra, as legislações e sistemas processuais dessa quadra histórica foram lastreados em princípios técnicos liberais, quais sejam: a igualdade formal dos cidadãos, a escritura (concepção mantida da fase pré-liberal, segundo a qual o juiz deve julgar com base nos escritos, evitando o contato direto com as par-tes, no intuito de manter sua imparcialidade) e, especialmente, o princípio dispositivo. O juiz, nesta perspectiva “liberal”, cumpre um papel visivelmente “passivo”, sem qualquer ingerência in-terpretativa que possa causar embaraços às partes e às relações (especialmente contratuais e econômicas) que as envolvem. Esse sistema, entretanto, deu margem a uma degeneração, dan-do ao processo contornos de um jogo – ou de uma guerra –, o que levou ao esgotamento desta perspectiva ainda no curso do século XIX.13

Nesse horizonte – de problematização dos efeitos dele-térios do liberalismo e de uma tentativa de melhoria da técnica processual – é que germina o movimento da socialização pro-cessual, idealizada por autores como Menger, Klein e Bülow, a partir do qual se enfraquece o papel das partes e reforçam-se os poderes dos magistrados. Com efeito, Anton Menger assu-miu uma postura crítica aos ideais liberais,14 principalmente o da igualdade formal, anotando que, na luta de classes, os ri-cos sempre eram privilegiados com a passividade judicial; daí a sua defesa de um reforço da função judicial, sendo que o

13 Idem, p. 73-77.14 Textualmente: “Sólo un punto de vista ha dejado de sostenerse quizá en aquella amplia discusión,

y eso que el grupo popular, a quien afecta, comprende por lo menos cuatro quintas partes de la nación entera: tal punto de vista es el que interesa a las clases pobres. No hay duda de que el socia-lismo dispone en Alemania de muy distinguidos escritores; pero no tienen éstos los conocimientos jurídicos adecuados, indispensables para hacer una crítica eficaz de una ley tan vasta. De otro lado, merced al influjo de Lasalle, Marx y Engels, la crítica del socialismo alemán se dirige casi exclusiva-mente al aspecto económico de nuestra condición, sin parar mientes en que la cuestión social es en realidad, ante todo y sobre todo, un problema de la ciencia del Estado y del Derecho. Pertene-ciendo yo a esa pequeña minoría de juristas alemanes, que sostienen en el campo de Derecho los intereses del proletariado, he estimado como un deber tomar en esta importante cuestión nacional la defensa de los desheredados.” MENGER, Antonio. El Derecho Civil y los pobres. Buenos Aires: Editorial Atalaya, 1947, p. 32.

A passagem da ordem isonômica para a ordem assimétrica foi, portanto, consequência da concepção de jurisdição como expressão da soberania, fazendo com que aquela e o próprio processo terminassem por ser necessariamente conduzidos ao âmbito das atividades do Estado, que, afinal, entre os séculos XVIII e XIX, passa a monopolizar a jurisdição. É o tempo dos juí-zes-funcionários do Estado (juiz “assalariado” do Estado, homo burocraticus), que então passam a ter o exercício de sua função predeterminado e regulado pelo próprio Estado. Assim, princi-palmente a partir dos séculos XVIII e XIX, “floresceu toda uma série de códigos do Estado de processo civil e penal, primeiro na Europa continental e, depois, nos Estados extra-europeus que adotaram sistemas jurídicos continentais”.9

Porém – segue expondo Picardi -, reconduzidos os fenô-menos ao âmbito da atividade do Estado, outros problemas aparecem. O Estado não é uma entidade unívoca, mas variável conforme as concepções político-sociais do local e da época. Nessa ótica, desenvolve-se a noção de que os códigos proces-suais e ordenamentos judiciários deveriam ser considerados expressão das concepções ideológicas daquele Estado que os tinha emanado.10

E, de fato, identificam-se dois grandes modelos no século XIX: o liberalismo processual (baseado, basicamente, no prota-gonismo das partes) e o modelo social de processo (processo como uma instituição do Estado que tem como objetivo o bem--estar social).11 Centremo-nos nestes dois modelos processuais, cuja estruturação – que se passa a fazer tomando por base o já referido estudo de Dierle Nunes – é de grande interesse para o nosso estudo.

O chamado liberalismo processual – cuja estrutura tem base nas reformas decorrentes da Revolução Francesa12 – é con-

9 Idem, p. 17.10 Idem, p. 17-8.11 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas

processuais, op. cit., p. 18.12 Note-se que a ruptura formal com o Antigo Regime foi estabelecida em 04.08.1790, quando a As-

sembleia Constituinte vota, juntamente com o abandono dos privilégios, a abolição das jurisdições particulares e a gratuidade da justiça. Idem, p. 71.

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protagonismo judicial foi tornada explícita depois, na sua obra de 1885, Gesetz und Rechteramt (Lei e Magistratura), no qual defende uma aplicação livre e, em certa medida, subjetiva do direito pelos juízes: uma teoria da criação do direito pelo juiz.18 Cabe, pois, fixar desde já: Bülow é um jurista bem identificado com a socialização do processo.

O “paradoxo de Bülow”: por que a teoria do processo como relação jurídica, de feição

bülowiana (e o conceito de jurisdição que a fundamenta), não oferece condições para o enfrentamento da questão da legitimidade

do direito no Estado democrático?

Centremos agora a discussão num dos aspectos decisivos do movimento de socialização processual, que teve grande in-fluência19 ao longo do século XX: falamos da aposta no chamado protagonismo judicial.

Note-se que, a pretexto de consagrar na magistratura uma atividade compensadora das desigualdades sociais, este modelo processual embasado na oralidade e na forte direção do processo pelo juiz acabou, com a sua degeneração, subsidian-do um modelo solitário de aplicação do direito, com um agudo enfraquecimento do papel dos demais sujeitos processuais. As decisões judiciais passam a depender cada vez menos da fala das partes, cuja atuação fica diluída num processo concebido como um mero instrumento técnico de resolução de conflitos de

a las partes se las toma cuenta únicamente en el aspecto de su vinculación y cooperación con la actividad judicial”. BÜLOW, Oskar Von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-America, 1964, p. 2.

18 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit., p. 98-101.

19 Na verdade, essa influência ainda persiste: Dierle aponta, detalhadamente, a repercussão expressi-va do movimento de socialização processual nas experiências italiana, alemã, inglesa, portuguesa e, obviamente, brasileira, ao longo dos capítulos 3 e 4 do texto ora tomado como referência da nossa pesquisa. Idem, p. 79-140.

magistrado deveria assumir um duplo papel: de educador (ex-traprocessualmente, deveria instruir os cidadãos a respeito do direito vigente), e de representante dos pobres (endopro-cessualmente, deveria assumir a representação da classe mais pobre). Essas lições – segue Dierle – acabaram sendo decisivas na moldagem da primeira legislação tipicamente socializadora, qual seja, a Ordenança processual civil do império austro-hún-garo, de 1895, obra do jurista Franz Klein, aluno de Menger e nomeado secretário ministerial do Ministério da Justiça em 1891. Klein enxergava um enorme significado político, econô-mico e social no processo, que passava a ser visto como uma “instituição estatal de bem-estar social”, com o objetivo de pa-cificação social. Dando prioridade à função social do processo sobre as demais, Klein estrutura um modelo técnico de procedi-mento oral no qual há reforço nos poderes do juiz, que deverá participar mais intensamente não só na direção do processo, mas também no acertamento dos fatos.15

Em paralelo ao esforço de Klein, surgiu, no âmbito doutri-nário alemão, a linha teórica que gerou a autonomia de estudo do direito processual (chamado por alguns de “processualismo”).16 Trata-se da linha teórica inaugurada por Oskar von Bülow, cujo legado, adiantamos, é de grande interesse para os propósitos deste estudo. Objetivamente, no seu A teoria das exceções pro-cessuais e dos pressupostos processuais, publicado em 1868, Bülow concebeu o processo como uma relação jurídica públi-ca e contínua, que avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo, lastreada primordialmente na figura do juiz (as partes seriam levadas em conta unicamente no aspecto do seu vínculo e cooperação com a atividade judicial)17. Essa defesa do

15 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit. p. 77-87.

16 O processualismo surge em oposição ao praxismo, que, até a segunda metade do século XIX, concebia o processo como um mero apêndice do direito material. Já nessa nova fase metodoló-gica, que se inicia com a obra de Oskar Bülow, surge a preocupação com o estabelecimento, de forma sistemática, dos fundamentos da autonomia do direito processual. A partir daí, passaram a predominar a técnica e a construção dogmática das bases científicas dos institutos processuais. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de; MITIDIERO, Daniel Francisco. Curso de Processo Civil, v.1: Teoria Geral do Processo Civil e Parte Geral do Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas, 2010, p. 12-14.

17 No original: “Se trata en el proceso de la función de los oficiales públicos y desde que, también,

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passagem para o Estado Social. O ponto que aqui endossamos, a partir das pesquisas do processualista mineiro, é o de que a teoria do processo como relação jurídica, mantida a sua feição bülowiana (e o conceito de jurisdição que a fundamenta), não oferece condições para o enfrentamento da questão da legitimi-dade do direito no Estado democrático.

Segundo Leal, a opção pela relação jurídica como marco de compreensão daquilo que se denomina “processo” tem pelo menos dois desdobramentos teóricos embaraçosos: o primei-ro consiste no fato de que, embora Bülow tenha pretendido demonstrar que o “processo” não se confunde com o direito (material) debatido entre as partes, adotou o modelo da relação jurídica a partir de um enfoque privatístico do direito, é dizer, manteve intocada a questão do vínculo de subordinação entre pessoas, fundamento do direito obrigacional; o segundo con-siste no fato de que a teoria do processo como relação jurídica contém um conceito de jurisdição como atividade do juiz (o que, aliás, justifica a vinculação – obrigacional – das partes ao magistrado).

Vejamos como isso ocorre, ainda de acordo com a precisa leitura de André Leal.

Em resumo, Bülow sustentou a hipótese de que a utilização desavisada da expressão exceção processual (muito difundida à sua época) havia se originado de equívocos e imprecisões histó-rico-conceituais, com desdobramentos inaceitáveis. O problema estaria em que o termo exceção teria origem na exceptio dos romanos, esta ligada aos limites de argumentação da defesa do réu, ou seja, à argumentação fático-jurídica que poderia ser articulada pelo réu para evitar que o autor fosse vitorioso no conflito concernente à relação jurídica privada questionada pe-rante o magistrado. Contudo, a leitura bülowiana era a de que os textos romanos acerca das etapas in iure e in iudicium do processo formular indicavam que, quando se tratava da verifi-cação de óbices à regularidade da relação jurídica estabelecida entre as partes e o juiz, não havia necessidade de apresenta-ção de exceções pelo réu. Do contrário, caberia antes ao juiz, oficiosamente, a averiguação do integral acatamento de certos

interesses (Carnelutti), e/ou de aplicação quase mecânica do di-reito objetivo ao caso concreto (Chiovenda); no pano de fundo, o processo (já) é um mero instrumento da jurisdição.20

Parece intuitivo que um modelo processual de uma expe-riência de Estado Social não pode(ria) ser adequado ao paradigma instaurado por uma Constituição democrática. Explicaremos melhor esse ponto (o significado de uma Constituição como a brasileira e a compreensão que adotamos sobre o significado do Estado Democrático de Direito) no curso deste artigo. Mas devemos ter bem presente desde já que a questão central do di-reito contemporâneo está no estabelecimento das condições de sua legitimação democrática, ou seja, na problematização das condições de validade/legitimidade do provimento jurisdicional. Parece evidente a observação de que o processo também deve ser pensado nesta perspectiva. Essa tarefa será problemática, contudo, se pretendermos trabalhar com uma matriz teórica de corte publicista/socializador, especialmente se esta concepção for entendida como formalmente legitimadora de decisões livre-mente criadas (diríamos, falando com Lenio Streck, concebidas fora do filtro das respostas constitucionalmente adequadas, das boas respostas).

Queremos aqui, pois, trabalhar com aquilo que André Cor-deiro Leal denominou de o paradoxo de Bulow.21 Trata-se de denunciar a insustentabilidade de qualquer tentativa, no pla-no da teoria bülowiana da relação jurídica, de compreensão do processo como forma de legitimar a decisão jurisdicional em pa-radigmas desgarrados, quer da crise do Estado Liberal, quer da

20 Idem, p. 39. Abordando a temática por uma lente filosófica, Lenio Streck esclarece que se trata de uma “aposta solipsista”, lastreada no “paradigma representacional”, que atravessa dois séculos, e que poderia ser facilmente percebida em autores como Chiovenda (para quem a vontade concreta da lei é aquilo que o juiz afirma ser a vontade concreta da lei), Carnelutti (que sustenta que a jurisdi-ção é “prover”, “fazer o que seja necessário”), Couture (que chegou a resumir o problema da justiça a um problema de “escolha” do juiz) e Liebman (para quem o juiz é um “intérprete qualificado da lei”, livre de vínculos, pois, quando no exercício da jurisdição). STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, constituição e processo, ou de Como discricionariedade não combina com democracia: O contra-ponto da resposta correta. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; MACHADO, Felipe (Coord.). Constituição e processo: a contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 9-10.

21 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Mandamentos, Faculdade de Ciências Humanas, FUMEC, 2008, passim.

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entre o pensamento de Bülow e a Jurisprudência dos Interesses, também ela uma forma de combate ao excesso de formalismo conceitual e à aposta no uso da lógica no desenvolvimento do método jurídico. Indício disso seria a dedicatória da obra de 1868 a Rudolph von Jhering (considerado, como se sabe, o ini-ciador da Jurisprudência dos Interesses).25

De todo modo, como dito, é no texto de 1885, Gesetz und Richterand (obra que coloca em destaque a decisão judicial e a importância do trabalho dos juízes para o direito) que essas no-ções todas ficaram mais claras. O ponto para o qual André Leal adverte, entretanto, é o de que, apesar da falta de identidade temática entre a primeira e a segunda obras, não há uma ruptura no pensamento bülowiano: os estudos seriam complementares. Em ambos, o papel central cabe à magistratura. Há, assim, um entretecimento entre o controle judicial da relação processual e o controle judicial de todo o direito vigente, para o qual bem se ajusta o modelo de subordinação próprio da relação jurídica. Por isso é que o processualista mineiro conclui que “o processo, sob a taxionomia da relação jurídica, já surge, em Bülow, como instrumento da jurisdição, devendo essa ser entendida como atividade do juiz na criação do direito em nome do Estado com a contribuição do sentimento e da experiência do julgador”.26

O contratempo, porém, é que Bülow não cuidou de ex-plicar como se poderia controlar essa atividade jurisdicional criadora de um direito que era, em última análise, emocional ou sentimental. E aqui retomamos aquilo que, na feliz expres-são de André Leal, se chama o paradoxo de Bülow, consistente na aporia emergente de escritos posteriores que buscaram o controle da atividade judicial pelos fundamentos da ciência bülowiana. Veja-se: Bülow não concebeu o processo como meio de controle da atividade dos juízes, mas como um “instrumento de viabilização de um movimento hipoteticamente emancipató-rio pela atividade criadora do direito pela magistratura nacional alemã”; ou, mais especificamente, seu escopo foi o de “apre-sentar, com base na releitura do direito romano, fundamentos

25 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, op. cit., p. 45-48.26 Idem, p. 60.

pressupostos sem os quais não se constituiria a relação proces-sual. A validez da relação processual não seria, portanto, uma questão posta à disposição das partes, mas algo a ser controla-do pelo juiz (já que se tratava, então, de um ato realizado sob a autoridade do Estado, cujos requisitos seriam coativos). Por isso é que Bülow propõe que a locução exceções processuais seja substituída por pressupostos processuais, estes submetidos ao controle judicial.22

Com efeito, André Leal chama a atenção para o fato de que, mais do que propor uma discussão sobre os equívocos ou acertos histórico-terminológicos da construção do direito pro-cessual, o objetivo de Bülow era o de fundamentar teoricamente a necessidade de aumento do poder do Estado, especialmente porque pretendia levar a sua análise à comissão encarregada do projeto da codificação processual civil para a Confederação Ale-mã do Norte, com o escopo de influir na redação do “proyecto de ordenanza Procesal civil para Prusia”23.

No fundo, a empreitada bülowiana deve ser lida como uma saída para o formalismo no qual se havia envolvido a Escola Histórica do Direito alemã, colocando em xeque a validade da chamada Jurisprudência dos Conceitos. Não por acaso, como destaca o processualista mineiro, Karl Larenz considera Bülow o precursor do Movimento do Direito Livre, este mesmo que pro-põe a solução do problema da indeterminação/ plurivocidade dos textos jurídicos a partir do primado da vontade, do senti-mento ou da intuição.24 Leal também registra pontos de contato

22 Idem, p. 37-44. Nas palavras de Bulow: “Según lo dicho, no puede ya pensarse que el complejo de presupuestos procesales debe ser mirado desde el punto de vista de las excepciones procesales, como ha ocurrido siempre hasta ahora. Todo el supuesto de hecho de la relación procesal encuen-tra tan poco lugar en el concepto de exceptio como el de relación material y aún mucho menos. Todavía se quiere permanecer aferrado a la teoría de las excepciones procesales, de modo que sólo queda elegir e ampliar el concepto de excepción a todo lo que el demandado diga ocasionalmente ante el tribunal, en vez de restringirlo a lo que debe decir y probar ante el mismo, o afirmar que no se da validez alguna a las prescripciones procesales, ni nulidad del proceso a causa de transgresión del derecho procesal. En pocas palabras, o una noción ridícula de ‘exceptio’ o un proceso contrac-tual puro, es el precio que se puede pagar nada más que por el mantenimiento de las excepciones procesales”. BÜLOW, Oskar Von. La teoría de las excepciones procesales y los presupuestos proce-sales, op. cit., p. 294.

23 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise, op. cit., p. 44-5.24 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 3. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,

1997, p. 78-80.

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da lógica do livre mercado. Fez-se então necessária, de acordo com Dierle Nunes, a criação de um modelo processual que não oferecesse perigos para o mercado, com o delineamento de um protagonismo judicial muito peculiar, em que se defenderia o reforço do papel da jurisdição e o ativismo judicial, mas não se assegurariam as condições institucionais para um exercício ativo de uma perspectiva socializante ou, quando o fizesse, tal não representasse um risco aos interesses econômicos e políticos do mercado e de quem o controla.30

O tal modelo – segue Dierle – deveria garantir: a) uma uniformidade decisional que asseguraria uma alta produtivida-de decisória, de acordo com critérios de excelência/ eficiência requeridos pelo mercado financeiro; e b) a defesa da máxima sumarização da cognição, enfraquecendo a importância do con-traditório e da estrutura comparticipativa processual.31

O interessante, aqui, é perceber que o neoliberalismo processual apropriou-se do discurso socializante da jurisdição (fundamentalmente, do argumento do acesso à justiça) para desnaturá-lo; permite-se a produção de decisões em larga esca-la, na lógica da produtividade, sem, contudo, uma preocupação real com a aplicação social do Direito ou com a produção de respostas constitucionalmente adequadas. O papel judicial aumenta, mas sem uma estrutura institucional que permita o exercício socializador da atividade decisória (afinal, cobra-se do juiz, sobretudo, produtividade – art. 93, II, c, da CRFB/88); além disso, o papel técnico, institucional e problematizante do pro-cesso fica relegado a segundo plano.32

Não é difícil reconhecer neste discurso a matriz de diversas das inovações encampadas pelo Direito Processual Civil contem-porâneo. Desde antes do CPC/2015 já se havia consagrado, por exemplo, o julgamento liminar de ações repetitivas e o julgamen-to em massa da admissão de recursos extraordinários idênticos. Bem assim, a consagração de diversos provimentos vinculantes

30 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit., p. 159.

31 Idem, p. 159.32 Idem, p. 163-166.

histórico-sociológicos pretensamente autorizativos da migração do controle social pela magistratura alemã e de justificar, a partir daí, a adoção de técnicas que permitissem a desvinculação dos julgadores das abordagens formalistas ou legalistas na aplica-ção do direito”.27

Perceba-se, pois – e este é o ponto central desta reflexão –, que as derivações teóricas não problematizadas da “ciência do processo” bülowiana dificilmente darão conta do desafio de controlar a atividade judicial de um Estado Democrático de Di-reito. Fixemos pela repetição: “o processo de Bülow não fora concebido como meio de controle judicial, mas como técnica de atuação de juízes em relação ao reforço de convicções nacionais alemãs”,28 ou seja, foi estruturado tendo como horizonte as for-mas de legitimação próprias do Estado Social.

Afinal de contas, o que é um “modelo democrático de processo”?

O estudo até aqui alinhado teve por objetivo, por um lado, trazer os traços gerais do desenvolvimento histórico do proces-sualismo, situando a discussão entre os dois grandes modelos do século XIX: o liberalismo processual e a socialização proces-sual; e, por outro, identificar a (ainda muito influente) ciência processual bülowiana com uma concepção de jurisdição própria do Estado Social. É importante ainda dedicar algumas linhas, antes de avançarmos, ao modelo processual correspondente à organização socioeconômica e política dita neoliberal, imple-mentada no Brasil, especialmente, a partir da década de 90.29 Trata-se, no caso brasileiro, de uma tentativa de adequação do texto da Constituição de 1988 (com a sua plêiade de direitos sociais positivados) ao fortalecimento do sistema financeiro e

27 Idem, p. 62-63.28 Idem, p. 28-29.29 Para uma discussão mais pormenorizada dos efeitos da globalização neoliberal-pós-moderna – jus-

tamente, o contraponto das políticas do welfare state – no caso brasileiro, conferir: STRECK, Lenio Luiz; MORAES, José Luís Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, pp. 70-82.

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– e complementares - para essa pergunta. Expô-las-emos para, depois, sugerirmos a sua assimilação a partir da Crítica Herme-nêutica do Direito36, de Lenio Streck.

A crítica de André Leal à concepção de processo como instrumento da jurisdição (que, segundo se viu, deita raízes na ciência bülowiana, congruente com o socialismo processual e com o Movimento do Direito Livre) faz com que – no limite ‒ se inverta esta lógica, ou seja, que a jurisdição seja compreendida como o instrumento do processo democrático. Explicando me-lhor, o processualista mineiro, negando o caráter de “ciência” da empreitada de Bülow (que é qualificada como uma tecnolo-gia da jurisdição), nega a existência de uma jurisdição legitimada a priori, ou seja, nega a identidade entre a atividade judicial e a atividade jurisdicional. O processo, então, não seria um “meio” (como em Bülow) para a obtenção de uma decisão vinculativa do poder estatal, que teria como destinatários meros coadjuvan-tes da relação jurídico-processual, mas um procedimento regido pela principiologia constitucional. Sua saída é desenvolver (com inspiração em Fazzalari)37 uma teoria do processo jurisdicional a partir do processo, seguindo da noção de que todo provimento normativo estatal tem origem no procedimento que o prepara. O entretecimento entre direito e legitimidade, visto a partir de uma compreensão procedimentalista do direito (teoria discur-siva da democracia), faz com que se institucionalize o chamado princípio do discurso (Habermas) através da principiologia cons-

36 A Crítica Hermenêutica do Direito, aqui trabalhada, é uma teoria desenvolvida, de forma original, por Lenio Streck. Conferir, necessariamente: STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 10 ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Ad-vogado, 2012; e STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e germenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

37 Para Fazzalari, como é notório, o processo é um procedimento que se desenvolve em contraditório. Nas suas palavras, o processo “é um procedimento do qual participam (são habilitados a participar) aqueles em cuja esfera jurídica o ato final é destinado a desenvolver efeitos em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades”; e o contraditório consiste “na participação dos destinatários dos efeitos do ato final em sua fase preparatória; na simétrica paridade de suas posições; na mútua implicação de suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do pro-vimento; de modo que cada contraditor possa exercitar em conjunto – conspícuo ou modesto, não importa – de escolhas, de reações, de controles, e deva sofrer os controles e as reações dos outros, e que o autor do ato deva prestar contas dos resultados”. FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 118-20.

pelo legislador do novo código (art. 927 do CPC/2015) pode ser lida como uma concessão à lógica de custo/benefício.33 Mas fiquemos desde já com a nota de que, apesar de se afir-mar que estas reformas são realizadas de acordo com princípios processuais constitucionais, o fato é que, em muitos casos, se enfraqueceu o viés garantista do processo em detrimento de concepções funcionais e de eficácia; e isso ao ponto de que qualquer discurso que venha em defesa da necessidade de res-peito da principiologia processual-constitucional seja recebido pelo discurso dominante como formalista e burocratizante.34

Retomando, o ponto a ser ressaltado é o de que es-tas três concepções (liberalismo, socialismo e neoliberalismo processuais) prefixam condições (protagonismo das partes no liberalismo processual e do juiz na socialização) e resulta-dos (aplicação neutra da norma no liberalismo; compensação de desigualdades materiais na socialização; produtividade e padronização de decisões no neoliberalismo) do “processo”, in-dependentemente e antes mesmo do debate processual.35 Tudo muito distante, pois, de um modelo democrático de processo.

Mas, afinal de contas, o que é um modelo democrático de processo?

Vamos por partes.

Até aqui, trabalhamos fundamentalmente com os textos de Dierle Nunes e André Leal, dois integrantes da chamada Escola Mineira de Processo, que fornecem respostas interessantíssimas

33 Sobre a temática, consultar o excelente artigo: STRECK, Lenio Luiz; OLIVEIRA, Rafael Tomaz de; TRINDADE, André Karam. O “cartesianismo processual” em terrae brasilis: a filosofia e o processo em tempos de protagonismo judicial. In: Revista NEJ – Eletrônica, vol. 18 – n. 1 – p. 05-22 / jan--abr 2013. Disponível em: www.univali.br/periodicos. No que diz com a lógica de custo/benefício, de consulta obrigatória: ROSA, Alexandre Morais da; AROSO LINHARES, José Manuel. Diálogos com a law & economics. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. A referida obra é central para as re-flexões desenvolvidas noutros textos ainda inéditos: HOMMERDING, Adalberto Narciso. Direito processual civil e alopoiesis: como o novo CPC poderá funcionar como um “provocador” de uma “corrupção sistêmica” no sistema do Direito? (encaminhado para publicação na Revista da Ajuris); HOMMERDING, Adalberto Narciso. O direito a “reboque” da economia: o novo CPC e a “gestão econômica” da Justiça (Palestra proferida por um dos autores do presente texto no IX Encontro Jurídico da Universidade de Passo Fundo - UPF, campus de Carazinho/RS, em 5 de junho de 2013).

34 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit., p. 163. Basta conferir a resistência pública de associações de magistrados à implementação do dever de fundamentação completa e estruturada trazido pelo CPC/15.

35 Idem, p. 176.

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impõe a prevalência concomitante da soberania do povo e dos direitos fundamentais (cooriginários e reciprocamente constitu-tivos) em todos os campos, especialmente na esfera estatal. No âmbito jurisdicional, resgata-se a discussão entre todos os su-jeitos processuais, sem privilégios a qualquer deles, mediante a implementação dos direitos fundamentais, que balizam a toma-da de decisões em seu aspecto formal e substancial. Propõe-se a divisão da atuação entre as partes e os juízes, clarificando a sua interdependência, de modo a absorver os aspectos benéficos tanto dos movimentos liberais quanto dos sociais. Aposta-se na leitura do contraditório na modalidade de garantia de influência como referente constitucional do policentrismo e da comparti-cipação, em vista de que agrega, ao mesmo tempo, o exercício da autonomia pública e privada, tornando o cidadão simultanea-mente autor e destinatário do provimento.

Veremos na sequência como se dá a filtragem, pela Crítica Hermenêutica do Direito, destas importantes lições.

A Crítica Hermenêutica do Direito e a Escola Mineira de Processo: oposição ou

complementariedade?

Pensamos ser possível harmonizar parte importante do procedimentalismo de corte habermasiano (teoria discursiva da democracia; prevalência concomitante entre soberania popular e direitos fundamentais, cooriginários e reciprocamente consti-tutivos), na leitura que é feita pela Escola Mineira de Processo (Marcelo Cattoni, Dierle Nunes e André Leal, para citar apenas estes), com a postura substancialista40 que endossamos, com base nas lições de Ronald Dworkin e Lenio Streck41. Primeiro,

a importância de o procedimento (do processo) ser sempre em contraditório. Idem, p. 73.40 Substancialista no sentido de que se trabalha com a perspectiva de que a implementação dos di-

reitos substantivos, fundamentais, afigura-se como condição de possibilidade e validade da própria Constituição, “naquilo que ela representa de elo conteudístico que une política e direito”. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, hermenêutica e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 14.

41 Para uma análise das principais teses de Ronald Dworkin, vistas a partir da Crítica Hermenêutica

titucional do processo (contraditório, ampla defesa e isonomia). E, assim, não há jurisdição sem que um procedimento assegu-re as condições para que os afetados pelas decisões possam participar da construção e interpretação normativas, bem como fiscalizá-las.38

Já a reconstrução histórica das estruturas processuais empreendida por Dierle Nunes é o pano de fundo para a sua proposta de democratização do processo civil, o que é feito a partir dos eixos da comparticipação e do policentrismo. A ideia defendida é a de que, numa visão constitucional e democráti-ca, não existe entre os sujeitos processuais submissão (como no esquema da relação jurídica bülowiana) mas interdependên-cia, na qual a procedimentalidade é a balizadora das decisões. O processo é percebido como uma garantia contra o exercício ilegítimo de poderes públicos e privados em todos os campos (jurisdicional, administrativo, legislativo), com o fim de controlar os provimentos dos agentes políticos e garantir a legitimidade discursiva e democrática das decisões. Argumenta-se no senti-do de que o estabelecimento de focos de centralidade (seja nas partes, seja no juiz) não se adapta ao perfil democrático dos Es-tados de direito da alta modernidade. Assume-se um paradigma procedimental39 de Estado Democrático de Direito, no qual se

38 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, op. cit., passim.39 Para José Joaquim Gomes Canotilho, a relevância da dimensão procedimental coloca-se nos se-

guintes termos: “1 – O procedimento é um sistema de regras e/ou princípios; 2 – estas regras e princípios visam a obtenção de um resultado determinado; 3 – a justa conformação do procedi-mento, no âmbito dos direitos fundamentais permite, pelo menos, a presunção de que o resul-tado obtido através da observância do iter procedimental é, com razoável probabilidade e em medida suficiente, adequado aos direitos fundamentais; 4 – o direito ao procedimento implica, fundamentalmente: (1) direito à criação, pelo legislador, de determinadas normas procedimentais ou processuais; (2) direito à interpretação e à aplicação correta, pelo juiz, das normas e princípios procedimentais ou processuais”. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fun-damentais. São Paulo: Revista dos Tribunais; Portugal, Coimbra Editora, 2008, p. 75-77. Em termos teóricos, diz Canotilho, “a existência de um direito subjectivo no procedimento/processo poderia desenvolver-se a partir da tese de GOERLICH: qualquer direito material postula uma dimensão procedimental/ processual, e, por isso, reconhecer um direito material constitucional implica, ne-cessariamente, reconhecer um direito subjectivo do procedimento/ processo, como indispensável pra garantir a eficácia do direito material”. Idem, p. 78. A participação no procedimento da decisão, assim, constitui uma “posição subjetiva inerente ao direito fundamental”. A participação procedi-mental, portanto, é “exercício de um direito fundamental”: “o cidadão, ao desfrutar de instrumen-tos jurídico-processuais possibilitadores de uma influência directa no exercício das decisões dos poderes públicos que afectam ou podem afectar os seus direitos, garante a si mesmo um espaço de real liberdade e de efectiva autodeterminação no desenvolvimento da sua personalidade”. Daí

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sociais), mas nos de um Estado Democrático de Direito,45 no âmbito do qual o Direito é um plus normativo em relação às fases anteriores (feição prospectiva/transformadora).46 E uma postura substancialista, pautada por uma reflexão filosófica no direito,47 implica que se construa hermeneuticamente um senti-do constitucional, um sentido de (e da) Constituição, que deve estar inserido já na nossa pré-compreensão de qualquer ativida-de atravessada pelo Direito. De modo que a pergunta inicial é: o que a Constituição, assim compreendida, tem a dizer sobre o processo jurisdicional democrático?

Uma interpretação fiel a Ronald Dworkin aponta que se responda a essa pergunta mediante uma “leitura moral” do texto constitucional. A sugestão de Dworkin é a de que todos os operadores do Direito interpretem os dispositivos constitu-cionais considerando que eles fazem referência a “princípios morais de decência e justiça”, isso como forma de inserir a “mo-ralidade política no próprio âmago do direito constitucional”.48 De acordo com Dworkin, não se trata de uma novidade, mas de algo que já acontece naturalmente. Na medida em que os juris-tas sigam (qualquer) uma estratégia coerente para interpretar a Constituição, já estarão – segundo ele – fazendo uso da lei-tura moral a respeito dos valores que julgam estarem inseridos no texto constitucional.49 Com essa chamada “leitura moral”,

rais) quanto de causas financeiras (os insuportáveis custos de serviços cada vez mais extensos para as populações activas cada vez menos vastas), de causas administrativas (o peso da burocracia, não raro acompanhada de corrupção) e de causas comerciais (a quebra da competitividade, numa economia globalizante, com países sem o mesmo grau de protecção social)”. Idem, p. 98.

45 Pontua Miranda: “Estado de Direito é o Estado em que, para garantia dos direitos dos cidadãos, se estabelece juridicamente a divisão do poder e em que o respeito pela legalidade (seja a mera legalidade formal, seja – mais tarde – a conformidade com valores materiais) se eleva a critério de acção dos governantes”. Idem, p. 86.

46 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., p. 7.

47 Tanto Lenio como Dworkin reconhecem que o Direito possui um campo próprio articulado em linguagem filosófica. Dworkin chega a dizer que os juristas serão sempre filósofos, dada a inevi-tabilidade da imbricação conceitual entre Filosofia e Direito (basta pensar em conceitos comuns a ambos os campos do saber, como justiça, verdade, igualdade etc.). Nesta vereda, Lenio cunhou a expressão “Filosofia no Direito” para representar a postura que toma a Filosofia como condição de possibilidade das pesquisas em Direito. Conferir, em especial: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas, op. cit., passim.

48 DWORKIN, Ronald. O Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 02.

49 Idem, p. 03.

porque há pontos de contato bastante evidentes: basta obser-var que ambas as teorias concebem a decisão judicial como um problema democrático, a ser resolvido, de alguma forma, me-diante uma leitura forte dos princípios constitucionais. Segundo, porque é possível identificar uma relação bem mais de comple-mentaridade, e não tanto de oposição, entre nossas principais propostas.42

Vejamos.

Primeiro, temos de relembrar que não estamos nos qua-dros de um Estado Liberal43 (absenteísta, garantidor das regras do jogo) ou de um Estado Social44 (promovedor de direitos

do Direito, permitimo-nos remeter o leitor a MOTTA, Francisco José Borges. Levando o Direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2 ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

42 O ultimo trabalho publicado por Dworkin em vida, Justice for Hedgehogs (algo como Justiça para os Porcos-Espinho), foi submetido a um interessantíssimo debate público, disponível no site da Universidade de Boston. Uma das objeções opostas à primeira versão do livro foi feita pelo filósofo Hugh Baxter, que sugeriu a Dworkin que sua concepção de moralidade como um “ramo do direito” (branch of morality), sugerida no texto inédito, seria melhor compreendida a partir de Habermas, ou seja, como uma moralidade instituída no direito. A resposta de Dworkin, que transcrevo a seguir, reconhece a partinência parcial da objeção, argumentando no sentido de que as visões (dworki-niana e habermasiana) seriam não só compatíveis, mas complementares. Veja-se: “Hugh Baxter usefully contrasts my view of the development of law from morality with that of Jürgen Habermas. I believe the two approaches are compatible; indeed complementary. I agree that there are two tasks for legal theory: describing the way in which law is a special department of morality and the way in which it is a special branch of morality. Habermas describes the ‘positivization’ of morality into law to explain the second of these phenomena from the point of view of social theory. I try to explain the first from an interpretive standpoint. I do not see, however, how understanding either law or morality self-referential helps to resolve the circularity in what I call the two-systems approach”. DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs: Response. Disponível em: <www.bu.edu/law/events/upcoming/documents/9.25.09RonaldDworkinBrochure_Panels.pdf>.

43 Jorge Miranda traz à luz as características conformadoras do Estado Liberal burguês implantado, ou revolucionariamente, ou por cedência régia, na primeira metade do século XIX, afirmando que “O Estado constitucional, representativo ou de Direito surge como Estado liberal, assente na ideia de liberdade e, em nome dela, empenhado em limitar o poder público tanto internamente (pela sua divisão) como externamente (pela redução ao mínimo das suas funções perante a sociedade). [...] Mas, apesar de concebido em termos racionais e até desejavelmente universais, na sua realização histórica não pode desprender-se de certa situação socioeconômica e sociopolítica. Exibe-se tam-bém como Estado burguês, imbricado ou identificado com os valores e interesses da burguesia, que então conquista, no todo ou em grande parte, o poder político e econômico”. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1997, (Tomo I), p. 88.

44 Miranda caracteriza o Estado Social de Direito – modelo de organização constitucional que sucede o Estado liberal ou que com ele parcialmente coexiste – como “um esforço de aprofundamento e de alargamento concomitantes da liberdade e da igualdade em sentido social, com integração política de todas as classes sociais. Idem, p. 95. Vale dizer que, no rol das Constituições sociais que seguiram a mexicana de 1917 e a alemã de 1919, o constitucionalista inclui a Constituição Brasileira de 1988. E que, adiante, são apontados os sintomas de crise do Estado-Providência, “derivada não tanto de causas ideológicas (o refluxo das ideias socialistas ou socializantes perante ideais neolibe-

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processo legal (art. 5o, LIV), do contraditório52 e da ampla defe-sa (art. 5o, LV), devem ser interpretadas de modo a conformar no processo uma forma de controle da atividade judicial (e não um instrumento da atividade estatal). Lembremos de que Dwor-kin sempre pensou em princípios como argumentos morais em favor de direitos, e, portanto, contrários à chamada discriciona-riedade judicial (basta lembrar seu célebre debate com Hart)53. Congruentemente, também aqui os princípios têm o sentido de “limite”, de “controle” do poder estatal.

A par disso, qualquer proposta interpretativa de perfil dworkiniano sempre pré-compreende o compromisso funda-mental assumido pelo Estado Democrático de Direito, qual seja, o de que tratará os cidadãos com igual consideração e respeito. Daí a afirmação de que a democracia é “uma parceria no auto-governo coletivo, na qual todos os cidadãos têm a oportunidade de serem ativos e parceiros iguais”.54 É que, para Dworkin, é

52 Especialmente o princípio do contraditório. O Judiciário – e aqui o alerta é de José Rogério Cruz e Tucci ‒ não pode desprezar a concepção ditada pela doutrina contemporânea acerca da participa-ção conjunta e recíproca, durante as sucessivas fases do procedimento, de todos os protagonistas do processo. As partes, assim, jamais podem ser surpreendidas por uma decisão alicerçada em um fundamento ainda não debatido durante a tramitação do processo. Nesse aspecto é que, para evitar qualquer espécie de “emboscada” aos litigantes, impõe-se ao juiz, por exemplo, o dever de comunicar às partes as vertentes que ele reputa relevantes para a formação da decisão. Cruz e Tucci, nesse aspecto, referendará as lições de Giuseppe Tarzia que, escrevendo sobre o artigo 111 da Constituição italiana e o “justo processo”, adverte sobre a paridade do tratamento dis-pensado às partes que pode ser violada em variadas circunstâncias, inclusive naquelas em que a decisão decorre de debate ou, pelo menos, da possibilidade de debate entre as partes. Em senso análogo, lembrará também o posicionamento de Nicolò Trocker, para quem é hoje pacífico que o contraditório não compreende apenas o mecanismo pelo qual se desenvolve a atividade dialetica-mente contraposta entre os litigantes. Assim, segundo a perspectiva recepcionada pelas modernas codificações processuais, o contraditório abrange um complexo jogo de interações incluindo o juiz. TUCCI, José Rogério Cruz e. Lineamentos da nova reforma do CPC: Lei 10.352, de 26.12.2001; Lei 10.358, de 27.12.2001; Lei 10.444, de 07.05.2002. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 100-102. Por isso é que Nicolò Trocker, aqui seguido por Cruz e Tucci, dirá que o “núcleo essencial do contraditório” não se exprime na exigência de uma paridade formal das par-tes no processo e tampouco postula a neutralidade do juiz. Na verdade, os interessados devem-se pôr em condições de influir ativamente no juízo. TROCKER, Nicolò. Processo civile e costituzione: problemi di diritto tedesco e italiano. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1974, p. 385-386. E isso fica evidente ao entendermos que o provimento (decisão) é decorrência da atividade discursiva das par-tes. As manifestações do contraditório, portanto, ainda segundo Cruz e Tucci, além de operar entre as partes, convertem-se em poder-dever do juiz, que é responsável não apenas por fazer observar, mas de observar ele próprio esse princípio/direito fundamental.

53 Conferir, necessariamente: DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

54 DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fon-tes, 2005, p. 497.

Dworkin apenas dá uma roupagem mais específica à postura in-terpretativa do Direito que pontua toda a sua obra. Para ele, no particular, trata-se de interpretar determinados dispositivos da Constituição norte-americana (sobretudo a Bill of Rights) como referências a princípios morais abstratos, que devem ser incorporados como limites aos poderes do Estado. Em resumo, Dworkin sustenta que os princípios estabelecidos na Declaração de Direitos, tomados em conjunto, comprometem os Estados Unidos da América com os seguintes ideais jurídicos e políticos: o Estado deve tratar todas as pessoas sujeitas a seu domínio como dotadas do mesmo status moral e político; deve tentar, de boa-fé, tratar a todas com a mesma consideração (equal con-cern); e deve respeitar todas e quaisquer liberdades individuais que forem indispensáveis para esses fins.50

É importante ter isso bem presente: a teoria política de Dworkin está centrada na chamada “instituição dos direitos con-tra o Estado”, que tem no respeito à igualdade (decorrente da soma entre os ideais de dignidade humana e igualdade política) a sua pedra angular. Daí a frequente referência à garantia da igual consideração e respeito (equal concern and respect), sem a qual não há democracia.

A sugestão de leitura de dispositivos constitucionais como “referências a princípios morais”, a serem “incorporados como limites aos poderes do Estado”, tem repercussões importantes na interpretação construtiva51 do que a Constituição determi-na no campo da produção da decisão judicial. Parece correto afirmar que, a partir da teoria dworkiniana, as cláusulas constitu-cionais que pontuam o processo jurisdicional, como a do devido

50 Idem, p. 10-1. Percebem-se, pois, bons pontos de contato entre essas premissas e a estrutura da Constituição do Brasil, do que são indícios eloquentes (ainda que não exclusivamente) os dispositi-vos dos Títulos I (Dos Princípios Fundamentais) e II (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do texto constitucional. E, seja como for, não pode haver dúvida de que a democracia brasileira deve conviver com a necessidade de que o Estado tenha igual interesse por seus cidadãos, sendo que este aspecto, por si só, já serve de ponte entre o Direito que se pratica no Brasil e os aportes substantivos da teoria de Dworkin.

51 A postura interpretativa do Direito proposta por Dworkin vem caracterizada, no contexto da sua obra, na figura da interpretação construtiva – uma espécie de mediação entre a tradição interpre-tativa à qual se adere e a sua atualização conforme a moral política da comunidade. Conferir, em especial: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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isso!) sendo substancialista, ou seja, mesmo insistindo na noção de que o juiz se deve assumir como um intérprete da Constitui-ção, inserido no interior do processo de pactuação da sociedade, coinstituindo o “novo” proporcionado pelo paradigma herme-nêutico.59 Basta que não se tome essa responsabilidade como uma exclusividade do juiz, mas extensiva aos demais atores processuais. Entenda-se: uma postura interpretativa do direito processual não significa óbice a que se trabalhe com as bases do “processualismo constitucional democrático” de Dierle Nu-nes, caracterizado: a) pela comparticipação processual (com o decorrente policentrismo e interdependência processual entre os sujeitos processuais); b) pelo resgate de uma leitura forte dos princípios processuais constitucionais; e c) pelo resgate do papel técnico e institucional do processo.

De fato, o estabelecimento de focos de centralidade (seja nas partes, seja no juiz) não se adapta ao perfil democrático dos Estados de direito da alta modernidade. E a tomada do con-traditório na modalidade de garantia de influência – o que se justifica para o processualista mineiro no aspecto de se harmoni-zarem os exercícios das autonomias pública e privada (tornando o cidadão simultaneamente autor e destinatário do provimento) –, é algo que casa bem o ideal de autogoverno dworkiniano, como se viu.

Semelhantemente, parece particularmente feliz a distinção que André Leal faz entre decisão judicial e provimento juris-dicional, o que é realizado com o efeito de recusar o modelo de uma jurisdição legitimada a priori. Para o autor, o processo não seria um meio (como em Bülow) para a obtenção de uma decisão vinculativa do poder estatal, que teria como destina-tários meros coadjuvantes da relação jurídico-processual, mas um procedimento regido pela principiologia constitucional. Sua saída é desenvolver (como visto, a partir das lições de Fazzalari e da teoria do discurso habermasiana, que entretece Direito e

59 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito, op. cit., p. 139-47.

inerente à noção de autogoverno (própria da democracia) uma concepção de “participação moral”, na qual se estabeleça um vínculo entre um indivíduo e um grupo pelo qual seja justo que o indivíduo seja responsável pelos atos do grupo. Assim, “uma comunidade política não pode fazer de nenhum indivíduo um membro moral se não der a essa pessoa uma participação em qualquer decisão coletiva, um interesse nessa decisão e uma in-dependência em relação à mesma decisão”.55 De fato, não há democracia sem que se assegure participação (“o autogoverno só é possível dentro de uma comunidade que atenda às condi-ções da participação moral”).56 E a construção da decisão judicial é uma questão de democracia. Isso nos autoriza a dizer: não ha-verá processo jurisdicional democrático sem que se assegure a participação dos interessados na obtenção do provimento.57

É possível, pois, compreender como corretas, mesmo no marco substancialista, diversas das interpretações constitucionais que os autores mineiros antes trabalhados propõem. Ainda que possivelmente por caminhos distintos, todos chegamos à conclu-são de que o processo não é instrumento da atividade judicial, mas uma forma de controlá-la; e de que uma leitura forte dos princípios constitucionais deve balizar a dinâmica do processo, funcionando tanto como limite aos poderes do Estado, como na asseguração de participação efetiva aos interessados no resultado do processo.

Ou seja, concordamos com Dierle Nunes quando este afirma, por exemplo, que o processo deverá “viabilizar partici-pação”.58 E é possível defender isso mesmo (e justamente por

55 DWORKIN, Ronald. O Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana, op. cit., p. 37-8.

56 Idem, p. 36.57 Tenha-se bem presente que a participação, para Dworkin, tem um perfil não apenas formal, mas

material, defluentes da cláusula da igualdade; assim, os direitos de “participar no processo político são igualmente valiosos para duas pessoas apenas se esses direitos tornam provável que cada um receba igual respeito, e os interesses de cada um receberão igual atenção não apenas na escolha de funcionários políticos, mas nas decisões que esses funcionários tomam”. DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 91.

58 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas processuais, op. cit., p. 351. Nesse sentido, parece também correta a afirmação – ressignificada a partir das premissas dworkinianas – de que o processo deve ser compreendido como “direito cons-titucional aplicado”, como quer Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O Processo Civil na perspectiva dos Direitos Fundamentais. In: Do Formalismo no Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 261.

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sibilita ao indivíduo atuar juridicamente por exigência moral, reconhecendo, no entanto, ao Direito e às normas jurídicas, especificidades tais que impedem que o Direito seja conside-rado como um caso especial de aplicação da moral; bem assim, Habermas acredita, com Dworkin, na natureza deontológica e não diretamente axiológica da validade jurídica.64 Mais especifi-camente ainda, a teoria dworkiniana da integridade do Direito, por fornecer os pressupostos necessários para a produção le-gítima do Direito, no marco do Estado Democrático do Direito, é a mesma adotada por Habermas como fio condutor de seu trabalho65.

Na verdade, a principal dissintonia entre a Crítica Her-menêutica do Direito, trabalhada a partir de Dworkin, e a compreensão procedimental da democracia reside na cisão en-tre os discursos de fundamentação e de adequação, operada por esta. Em síntese, a ideia aqui é a de que o processo legis-lativo diferencia-se do processo jurisdicional quanto à lógica da argumentação, já que o primeiro estrutura discursos de justifi-cação jurídico-normativa e o segundo, discursos de aplicação; melhor explicado, um se refere à justificação da validade jurídica (universal), o outro à adequabilidade de uma normativa válida a uma situação de aplicação, a um caso concreto.66

Ora bem: a hermenêutica de perfil filosófico não convive com esta cisão que, no limite, “desonera” o juiz de elaborar o discurso fundamentador, já que a “validade” decorreria de uma justificação “prévia”, fruto do “devido processo legislativo”. E isso por uma razão muito simples: é que – especialmente a par-tir de Gadamer –67 não há cindibilidade entre interpretação e

64 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do Direito, op. cit., p. 135.

65 LAGES, Cíntia Garabini. Processo e jurisdição no marco do modelo constitucional do processo e o caráter jurisdicional democrático do processo de controle concentrado de constitucionalidade no Estado Democrático de direito. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 503-4.

66 OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni. Processo e Jurisdição Constitucional. In: OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (Coord.). Jurisdição e Hermenêutica Constitucional no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004, p. 451.

67 A applicatio gadameriana dá-nos conta de que não há uma divisão temporal entre compreensão e aplicação, isto é, que não se trata de primeiro compreender um texto para depois poder aplicá-lo a

legitimidade)60 uma teoria do processo jurisdicional a partir do processo, seguindo da noção de que todo provimento norma-tivo estatal tem origem no procedimento que o prepara; assim, não há jurisdição sem que um procedimento assegure as condi-ções para que os afetados pelas decisões possam participar da construção e interpretação normativas, bem como fiscalizá-las.61 Ora, na linha dessas premissas, é difícil deixar de concordar: não deve mesmo haver jurisdição sem que um procedimento asse-gure as condições para que os afetados pelas decisões possam participar da construção e interpretação normativas.

Em definitivo: processo democrático não é um instrumento formal que viabiliza a aplicação do direito com rapidez máxima, mas sim uma estrutura normativa constitucionalizada que é di-mensionada por todos os princípios constitucionais dinâmicos, como o contraditório, a ampla defesa, o devido processo cons-titucional, a celeridade, o direito ao recurso, a fundamentação racional das decisões, o juízo natural e a inafastabilidade do con-trole jurisdicional.62

Considerações finais a partir da ideia de impossibilidade de cisão entre os discursos

de fundamentação e de adequação

De tudo, pois, podemos afirmar que, embora as diver-gências teóricas existentes entre as linhas de pensamento aqui trabalhadas, o diálogo entre estas é possível e, se estivermos corretos, virtuoso. Note-se, a propósito, que o construtivismo principiológico de Dworkin foi acolhido pelo próprio Haber-mas,63 no sentido de concordar que as normas jurídicas possuem um conteúdo moral que, embora traduzido para o Direito, pos-

60 Conferir: HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. I.

61 LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, op. cit., passim.62 NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático: uma análise crítica das reformas

processuais, op. cit., p. 250.63 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, op. cit., p. 261-76.

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aplicação, ou seja, não há interpretação sem uma “situação de aplicação”, não há interpretação “em abstrato”. Como diz Lenio Streck, “discursos de fundamentação que trata(ria)m da valida-de de normas nada mais são – à luz da hermenêutica – do que ‘aplicação’”.68 É isso: só interpretamos aplicando.

Ainda assim, insistimos que é possível a incorporação não arbitrária das lições da chamada “Escola Mineira”. Isso será assim desde que compreendamos que, mesmo depois de obedecidos os supostos centrais do processo jurisdicional de-mocrático defendidos pelos citados processualistas (processo percebido como instituto fomentador do jogo democrático, ba-liza e garantia na tomada dos provimentos jurisdicionais – além de legislativos e administrativos –, viabilizador da participação e do controle), o resultado do processo não deixará de ser “in-terpretativo”, e não será legítimo caso seu “conteúdo” não se afine com a materialidade da Constituição (principiologia cons-titucional). Dito com outras palavras, o procedimento, por si só, não legitimará a resposta obtida com o processo. É preciso, também, que o provimento jurisdicional tenha sido gerado por argumentos de princípio69 (Dworkin).

situações cotidianas, mas, antes, a compreensão, quando ocorre, já traz em si o momento da apli-cação. SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Hermenêutica filosófica e Direito: o exemplo privile-giado da boa-fé objetiva no Direito Contratual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 87. Veja-se que o próprio Gadamer tratou dessa complexidade no campo do Direito, explicando que a pretensão de validez (que lhe é inerente) faz com que adquira o “estatuto de texto, codificado ou não”, de modo que a “lei, enquanto estatuto ou constituição, necessita sempre da interpretação para a sua aplicação prática, o que significa, por outro lado, que toda aplicação prática implica interpretação.” GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II: complementos e índice. 2. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2002, p.399.

68 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas, op. cit., p. 54.

69 Em trabalhos mais recentes, os autores deste artigo vêm defendendo o ponto de que a leitura conjunta dos arts. 489 e 926 do CPC/15 favorecem esta interpretação.

REFLEXÕES SOBRE O PRECEITO DA PUBLICIDADE COMO CONDIÇÃO DE

VALIDADE E EFICÁCIA DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

Maren Guimarães Taborda1

“O problema do estabelecimento do Estado [...] formula-se assim: Ordenar uma multidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem conjuntamente leis universais, das quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a exirmir-se, bem como estabelecer uma constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas disposições privadas, contêm-se, no entanto, reciproca-mente, de maneira que o resultado da sua conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más.” KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos.

1 Mestre e doutora em Direito Público pela UFRGS. Especialista em Gestão Tributária pela Universi-dad Castilla-La Mancha. Professora titular de História do Direito (Graduação) e de Direito Consti-tucional (Programa de Pós-Graduação em Direito) na FMP/RS. Procuradora do município de Porto Alegre. E-mail: <[email protected]>. O presente artigo é resultado do projeto de pes-quisa “O princípio da publicidade na constituição democrática: transparência, direito fundamental de acesso e participação na gestão da coisa pública” desenvolvido junto ao mestrado em Direito da FMP/RS.

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Reflexões sobre o preceito da publicidade como condição de validade e eficácia dos atos administrativosMaren Guimarães Taborda

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Mas publicidade não é só isso. A Constituição e a legis-lação ordinária, além de enunciarem as hipóteses de exceção ao preceito da publicidade como transparência, caso do inciso LX do art. 5º,3 e do art. 198 do Código Tributário Nacional,4 também a entendem como “direito de acesso à informação”, e, como tal, se deixa descrever como um direito fundamental do cidadão e um dever da administração.

Enquanto direito fundamental, publicidade como “direito de acesso à informação” é direito subjetivo público de dupla face, pois, além de ter uma função participativa (constitui a exteriorização do princípio democrático), representa uma con-creta modalidade de exercício do direito à informação. Nesta última acepção, publicidade é um “princípio constitucional im-positivo” ou preceito definidor dos fins do Estado (impõe ao Estado, sobretudo ao legislador, a realização de fins e a exe-cução de tarefas) e um “princípio garantia”, porque institui, direta e indiretamente, uma garantia aos cidadãos, e tem força determinante, positiva ou negativa. Na condição de direito fun-damental, vincula diretamente os poderes públicos e assegura, direta e indiretamente um status jurídico-material aos cidadãos. No Brasil, a Constituição da República concretizou a publicidade como direito de acesso, nos incisos XXXIII5 e XXXIV6 do art. 5º, e ainda alcançou aos cidadãos uma ação mandamental que lhes possibilita o conhecimento dos dados sobre si mesmos, bem como a modificação de dados incorretos, o habeas data, regu-

3 CRFB, art. 5º, inciso LX, verbis: “[...] a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.

4 Código Tributário Nacional, art. 198: “Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação, obtida em razão do ofício, sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e sobre a natureza e o estado dos seus negócios ou atividades. Parágrafo único. Excetuam-se do disposto neste artigo, unicamente, os casos previstos no artigo seguinte e os de requisição regular da autoridade judiciária no interesse da justiça”.

5 “CF, art. 5º, XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de res-ponsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.”

6 “CF, art. 5º, XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: [...] b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.”

É assente na cultura ocidental que todo ato político tem de tolerar um controle por parte do público, por cuja aprova-

ção pode alcançar a legitimidade moral e a legalidade jurídica. Assim, a publicidade dos atos políticos é a condição indispensá-vel para a legitimação moral da política e para a democracia, a partir da unidade de interesse entre governantes e governados. Em nossa tradição política, desde a experiência grega, estão ar-ticulados os conceitos de democracia, publicidade, igualdade e racionalidade, de modo que não se pode dizer democrático um regime no qual não existam a visibilidade e o controle do poder – em outras palavras, publicidade. Este é o primeiro significado que a expressão “publicidade” assume nos ordenamentos ju-rídicos do Ocidente: o de ser uma mediação entre política e a moral que impõe um dever aos poderes públicos, o de agir de forma transparente.

Nessa acepção, o princípio da publicidade decorre imedia-tamente do princípio democrático e do princípio republicano, e é denominado transparência. Com isso, pode-se falar em dever de transparência, para indicar a exigência de desnudamento da administração, que não resulta de um texto específico, mas da finalidade de proteger os direitos e garantias fundamentais, e tutelar impessoalmente os interesses públicos. O que a transpa-rência determina é que todos os atos políticos sejam praticados à luz do dia, para facilitar o seu controle, nos termos da formula-ção do art. 37, caput, da Constituição da República.2

2 Ver ministro Celso de Melo, em voto vencido na ADIn 2.461. “Alguns dos muitos abusos cometi-dos pelo regime de exceção instituído no Brasil em 1964 traduziram-se, dentre os vários atos de arbítrio puro que o caracterizaram, na concepção e formulação teórica de um sistema claramente inconveniente com a prática das liberdades públicas. Esse sistema, fortemente estimulado pelo ‘perigoso fascínio do absoluto’ [...], ao privilegiar e cultivar o sigilo, transformando-o em ‘práxis’ governamental institucionalizada, frontalmente ofendeu o princípio democrático, pois, consoante adverte Norberto Bobbio, em lição magistral sobre o tema [...], não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério. O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como valor constitucionalmente assegurado, disciplinando-o com expressa ressalva para as situações de interesse público, entre os direitos e garantias fundamentais. A Carta Federal [...] enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na lição expressiva de Bobbio, como ‘um modelo ideal do governo público em público’.” Decisão do plenário do MI 284 – DF, encontra-se, na íntegra, na RTJ 128/712/732; a da ADIN 2.461-2 - RJ, de 12/05/3005, no ementário eletrônico do STF, disponível em <www.stf.gov.br/jurisprudência>. Acesso em: 24 nov. 2005.

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(âmbito fático), ou de normas justas (âmbito do valor),8 com re-curso ao método comparativo, expõem-se, dedutivamente, as construções dogmáticas dos juristas brasileiros sobre o tema e decisões jurisprudenciais paradigmáticas. Assim, aborda-se, em primeiro lugar, o que se pode entender por ato administrativo (1), para, só então, explicitar e confrontar as teses sobre as suas condições de validade (2) e eficácia (3), decorrentes da concreti-zação do referido princípio.

Os atos administrativos

Preliminarmente, é preciso esclarecer o que se entende por “ato administrativo” no ordenamento jurídico brasileiro, pois tal conceito não consta da lei, não foi suficientemente de-limitado pelos tribunais, e a doutrina não é unívoca quanto ao seu conceito.9

Criação da doutrina publicista do séc. XIX, a noção de ato adminsitrativo surgiu para individualizar um tipo de ação estatal com características contrapostas às dos atos civis (tidos como privados) e às dos atos típicos dos Poderes Legislativo e Ju-diciário – lei e sentença. Não sendo unívoca, essa noção nos ordenamentos jurídicos em geral, e estando relacionada com a

8 Fala-se de validade, quando a referência é puramente formal: é o âmbito da existência da norma enquanto tal, independentemente de qualquer juízo valorativa que se faça. Para julgar a validade de uma norma, é preciso investigar se a autoridade da qual emanou tinha poder legítimo para isso, se a mesma não foi ab-rogada e se é compatível com outras normas do mesmo sistema jurídico, particularmente com a norma hierarquicamente superior. Daí, a dimensão da validade é denomi-nada como normativa. O problema da justiça do ordenamento jurídico, ou das normas válidas, diz respeito à correspondência ou não das normas aos seus valores últimos. Todo ordenamento jurídico persegue certos fins e tais fins são valores a cuja realização o legislador se dirige. Norma justa é aquela apta a realizar os valores históricos que inspiram certo ordenamento jurídico concreto e historicamente determinado. É o contraste entre o mundo ideal e o mundo real; entre “o que é” e “o que deve ser”. Por isso, o problema da Justiça se denomina de problema deontológico do direi-to, e o âmbito da Justiça, dimensão do valor. Finalmente, na dimensão fática, da eficácia, tem-se o problema da produção de efeitos concretos. Aqui é “onde direito morde a vida”, isto é, como são, de fato, as coisas (o que os tribunais dizem sobre o direito e o que os destinatários das normas ob-servam efetivamente). Que uma norma exista como norma jurídica (seja válida) não implica que seja sempre seguida e, por isso, a investigação sobre a eficácia do ordenamento jurídico é de caráter histórico-sociológico (fenomenológico). Ver Hart (1994, p. 326); Kelsen (1979, p. 298).

9 Cf. Forsthoff (1988, p. 157-159). Como tratei desse tema em Taborda (2001), transcrevo aqui parte daqueles resultados.

lamentado pela Lei nº 9.507/97.7 Na mesma direção, a Lei nº 12.527/12, Lei de Acesso à Informação.

Por outro lado, considerando a relevância da função da “propaganda” e da mídia no plano político, o constituinte brasi-leiro de 1988 regulou as possibilidades de propaganda do Estado e, por isso, publicidade, na Constituição, também aparece como sinônimo de propaganda ou de divulgação não obrigatória dos atos da autoridade pública.

A condição para esse tipo de divugação é a de que tais atos tenham caráter educativo, informativo ou de orientação social, ficando expressamente vedada a utilização de imagens que caracterizem promoção social de autoridades ou servidores públicos (SILVA, 1996, p. 73). A vedação, consitucional, portan-to, diz respeito à publicidade “caracterizadora de promoção pessoal de autoridade ou de servidores públicos” (MARTINS-COSTA, 1991, p. 166) e está relacionada à coibição de “práticas tradicionalmente arraigadas na esfera pública”, tais como aque-las em que os agentes públicos, por meio da imprensa, fazem promoção pessoal, isto é, atingem os seus interesses priva-dos. Isso quer dizer que aquilo que a Constituição proíbe é a propaganda – paga com dinheiro público – com a intenção de simplesmente divulgar a imagem dos administradores ou sua promoção pessoal, isto é, a propaganda (publicidade) que se faz com desvio de finalidade e em violação ao princípio da im-pessoalidade (SHIRMER; GEBRAN NETO, 1991, p. 201). Por fim, publicidade é condição de eficácia e validade dos administra-tivos, sendo absolutamente assentado em nosso ordenamento jurídico que a mesma é requisito de forma, ligado à validade ou à eficácia do ato administrativo, principalmente quando ele tenha que valer contra terceiros ou erga omnes.

Nessas condições, este estudo procura responder à inda-gação sobre o sentido e o alcance do preceito da publicidade administrativa no que concerne à validade e à eficácia dos atos administrativos. Concebendo-se o direito ou como um conjunto de normas válidas (âmbito da validade), ou de normas eficazes

7 BRASIL. Lei nº 9.507, de 12 de novembro de 1997. Regula o acesso a informações e disciplina o rito processual do habeas data.

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Segundo Hely Lopes Meirelles (1997, p. 132-133), ato administrativo é toda manifestação de vontade unilateral da ad-ministração pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato resguardar, adquirir, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos ou impor obrigações aos administrados e a si própria. Outros autores também conceituam o ato administra-tivo a partir do conceito de ato jurídico civil, como Ruy Cirne Lima (1987, p. 86), assegurando ser ato administrativo “[...] todo o ato de administração pública que seja lícito e tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos se denomina ato jurídico (art. 81, Cód. Civ.)”, e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (1998, p. 146-147), afirmando que, “no direito brasileiro, alguns autores definem o ato administrativo a partir do conceito de ato jurídico. Consideram que este é o gê-nero de que aquele é uma das espécies. Com efeito, o conceito de ato jurídico pertence à teoria geral do direito, não sendo específico do direito civil”. Relacionando o conceito de ato com a noção de função administrativa, Alcino Salazar (1945, p. 66), a partir da tese de Seabra Fagundes (1967, p. 35) – atos admi-nistrativos são aqueles “através dos quais o Estado determina situações jurídicas individuais e concorre para sua formação” –, asseverou que ato administrativo é aquele que “determina situações jurídicas para os casos individuais, compreendendo tanto os atos subjetivos como os atos-condição, mas excluindo atos materiais”. No final de sua famosa monografia, o autor aca-ba por conceituar ato administrativo como “uma declaração de vontade produzindo um efeito de direito”. Caio Tácito (1975, p. 55), a seu turno, localiza o conceito de ato administrativo e suas consequências jurídicas no núcleo do direito administrativo, “o centro por assim dizer do seu sistema planetário”, caracterizan-do a própria função administrativa em face das demais funções estatais (legislativa e jurisdicional), segundo critérios orgânico-formais e/ou materiais.

Estas últimas definições seguem um método, qual seja: define-se primeiro o que é função administrativa, segundo cri-térios orgânicos, formais e materiais (positivos e residuais), e se excluem da definição os fatos administrativos, pela conside-

própria definição do que seja função administrativa, exige que se faça referência a determinados pontos de vista, distinguindo mesmo os diversos sistemas de direito da administração pú-blica. Nesse particular, como assevera Forsthoff (1958), o ato administrativo é um conceito empírico, construído pela ciência e fundado na experiência, não podendo ser inferido de considera-ções abstratas. Por conseguinte, esse conceito não apriorístico é determinado pelos seus fins e, sendo a expressão concreta do cumprimento da função jurídico-pública da administração, não é nem pode ser uma categoria geral de todos os ordenamentos ju-rídicos de matriz romano-germânica que possa ser generalizada no espaço e no tempo (ao contrário do negócio jurídico privado, da sentença e da lei). Assim, a busca de seu conceito deve levar em conta as particularidades históricas de cada ordenamento positivo e reconhecer a existência de uma lógica própria do ato administrativo em cada um desses ordenamentos, uma vez que a simples existência de um aparato administrativo não compor-ta necessariamente que sua ação se expresse juridicamente em atos administrativos, por exemplo, nos tipos de Estados histori-camente precedentes ao Estado de Direito (Estado patrimonial e Estado de polícia).

A formulação de conceitos gerais por via de jurisprudên-cia é difícil, em razão do sistema de controle jurisdicional da administração, adotado no Brasil desde a primeira Constitui-ção republicana, pelo qual as autoridades judiciárias conhecem de quaisquer ações, independentemente de estas se terem originado, ou não, em atos da administração pública. Pela via jurisdicional, o indivíduo pode controlar os atos administrativos preventivamente, quando procura sustar ato lesivo, em vias de execução, e, a posteriori, quando intenta ação para ressarcir prejuízo decorrente da execução administrativa. Assim, não ha-vendo no País justiça administrativa especializada, integrante do Poder Judiciário Geral, como na Alemanha, ou independente, como na França, e existindo também formas de controle inter-no (art. 74 da Constituição da República Federativa do Brasil), a jurisprudência em matéria administrativa é difusa e, não raro, ambígua (Cf. MELLO, C., 1997, p. 228).

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Por isso, o direito administrativo conhece os direitos forma-tivos geradores (o direito de inscrever-se em concurso público, o de aceitar nomeação, de apresentar propostas em licitações, de requerer licenças, autorizações ou permissões); direitos forma-tivos modificativos (direito de pedir licença para tratamento de saúde, licença-maternidade, direito de prorrogação do prazo de posse) e direitos formativos extintivos (direito de pedir exone-ração ou de opção por cargo, em caso de acumulação vedada).

Daí é necessário, advogam Pontes de Miranda (1970, p. 270-217) e Almiro do Couto e Silva (1969), precisar qual con-ceito de ato jurídico se está a referir: ato jurídico stricto sensu, cujo conteúdo, forma e efeito são determinados por lei; negócio jurídico, cujo conteúdo, forma e efeitos podem ser determina-dos pelas partes, para além das previsões legais; atos-fatos ou simplesmente fatos jurídicos. Pontes de Miranda, aliás, chegou a afirmar que “poucos assuntos reclamam mais precisão da dou-trina do que esse”. Themístocles Brandão Cavalcanti (1955, p. 204), em posição divergente, entende que a distinção deve ser evitada, pois o que interessa aos atos administrativos é que são manifestações de vontade do Estado, por seus representantes, e sua execução é capaz de produzir consequências jurídicas di-retas ou indiretas: os “negócios administrativos” ou “negócios de direito público” produzem efeitos diretos, e os atos adminis-trativos, consequências indiretas e eventuais.

Conceituado, então, pela generalidade da doutrina , em termos sumários, como ato jurídico, isto é, declaração de von-tade do Estado, de seus representantes ou de quem quer que exerça função administrativa em sentido material (ALMEIDA, 1969, p. p. 14-15) ou formal (OLIVEIRA, F., 1993, p. 108), pro-duzindo efeitos de direitos (aquisição, resguardo, modificação ou extinção de direitos), o ato administrativo típico é sempre manifestação volitiva da administração, no desempenho de suas funções de poder público, visando produzir algum efeito jurídi-co, o que o distingue do fato administrativo (realização material da administração). Assim, é ato jurídico que apresenta traços particulares, submete-se a princípios e regras próprios concer-nentes à sua produção, validade e eficácia. Ao direito não é

ração material de que ato administrativo é, antes de tudo, ato jurídico – declaração de vontade (OLIVEIRA, R., 1980, p. 44). O resultado pode ser a definição estrita de Fernando Mendes de Almeida (1969, p. 16), segundo a qual é ato administrativo a de-claração de vontade destinada a produzir efeitos jurídicos, ou a de José Cretella Júnior (1991, p. 19), bastante larga:

[...] ato administrativo é a manifestação da vontade do Es-tado, por seus representantes, no exercício regular de suas funções, ou por qualquer pessoa que detenha, nas mãos, fração de poder reconhecido pelo Estado, que tem por fi-nalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir situações jurídicas subjetivas, em matéria ad-ministrativa.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (1997, p. 464) e Celso Antônio Bandeira de Mello (1979, p. 90, 232), em suas formula-ções, consideram ser ato administrativo aquele praticado pelas autoridades públicas, sob o regime de direito público, de modo que, em sentido amplo, são atos administrativos os atos gerais abstratos, como os regulamentos e as instruções, e os atos ne-gociais, como os contratos administrativos.

Já os atos administrativos em sentido estrito são atos jurí-dicos unilaterais expedidos pelo Estado no exercício de função administrativa e manifestados no uso das prerrogativas de auto-ridades típicas de sua posição pública de supremacia.

O conceito stricto sensu de ato administrativo como ma-nifestação unilateral do Estado não contempla, todavia, os atos administrativos que dependem, para sua eficácia, da manifes-tação unilateral de vontade do particular, como a aceitação de nomeação para cargo público, o típico “ato formativo ge-rador”. Com efeito, existem atos administrativos que colocam os particulares “em posição jurídica de poder criar, modificar ou extinguir relação jurídica de direito administrativo através de manifestação ou declaração unilateral de vontade”, assevera Almiro do Couto e Silva (1969, p. 20, 23, 28), de modo que a categoria “direitos formativos” pode ser utilizada para explicar a natureza jurídica desses atos.

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a oportunidade de tal publicação e esta não for feita, o ato será nulo.

Publicação não é, todavia, a única forma de divulgação dos atos administrativos: além desta e da notificação, existem outras formas de divulgação, como a disponibilização de atos, documentos e processos administrativos por meio da afixação em “quadro de avisos”, exposição em locais de consulta, bo-letins ou informativos oficiais, inserção em meio eletrônico ou outros que possibilitem igual acesso. Porém, se a lei determinar que qualquer uma dessas formas de divulgação deva ser a “for-ma” de determinado ato, sua inobservância acarretará nulidade.

A “forma”, portanto, situa-se no plano da formação da vontade do agente, é o seu revestimento – a sua exteriorização – e, em muitos casos, a publicidade sob a forma de publicação é a sua condição.10 O exemplo paradigmático é a publicação do edital nas licitações, porque está exigido por lei que deva ser exteriorizado sob a forma escrita de publicação, sob pena de nulidade absoluta, ainda que o procedimento de sua formação e aperfeiçoamento tenha sido observado (ALMEIDA, 1969, p. 51). Adote-se o conceito amplo de forma – o conjunto de solenida-des previstas em lei para a exteriorização do ato, de modo que inclui aspectos relativos ao ato em si (data, assinatura, modo escrito), as fases preparatórias e os modos de divulgação), as formas internas e formas externas – ou o seu conceito restrito – o modo legalmente estabelecido para a exteriozação do ato administrativo –, e sempre há que se fazer um juízo de essencia-lidade e indispensabilidade da publicidade, para a validade do ato (MEDAUAR, 1998, p. 149-150).

Tal juízo requer o exame do objeto e da finalidade do ato, de modo que, se o ato afetar direitos individuais, é for-ma essencial, pois foi estabelecida para a garantia dos cidadãos (administrados); do contrário, se a forma for imposta para o an-damento interno do serviço, reputa-se não essencial e, por isso, nem sempre acarretará a nulidade do ato a priori, podendo ser apenas verificada a “irregularidade”. Quando a forma foi esta-

10 Cf. Cavalcanti (1955, p. 227), verbis: “A publicação é inerente a todo ato administrativo e constitui, por isso mesmo, salvo determinação legal expressa, condição para sua validade”.

irrelevante o meio utilizado para chegar-se a um resultado valio-so e, por isso, o ato administrativo tem um caráter formal, isto é, não prescinde de certos modelos e exigências de exteriorização e da necessidade de expor razões. Por conseguinte, a doutrina brasileira e a estrangeira, de modo geral, entendem ser a publi-cidade, no sentido de “publicação”, uma condição ligada tanto à eficácia como à validade do ato administrativo.

O problema da publicidade como fundamento de validade dos atos

administrativo

Para a doutrina brasileira, no que diz respeito à validade dos atos administrativos stricto sensu, é preciso que nele este-jam integrados os elementos de competência, forma, objeto e motivo (fim). O elemento “forma” tem uma grande influência no plano da formação do ato e se refere a condições de solenidade, de processo, de publicidade, que variam bastante, conforme a sua natureza: a forma é a exteriorização do ato (TÁCITO, 1997, p. 299). Quando essas formalidades são preteridas ou mal ob-servadas, constituir-se-á um vício, extrínseco ao ato. Se a lei exigiu (declarando indispensável) a forma que foi preterida ou mal observada, ter-se-á um ato inválido. Do mesmo modo, o ato será inválido se a forma “for instituída com finalidade que só possa ser atendida pela sua obediência” (FAGUNDES, 1967, p. 93).

Assim, a forma do ato administrativo tem caráter material, e a regra é de que seja escrita: a forma oral é exceção. A pu-blicação, nessas circunstâncias, é uma das medidas de validade dos atos estatais. Quando há um defeito substancial de forma (na sua publicação), o ato gera nulidade. Cretella Júnior (1991, p. 39) entende que, sob certas condições, deve haver um tem-peramento a essa consequência: se o ato exige, por exemplo, a publicação no Diário Oficial, esta é essencial, mas a sua falta não anula o ato, apenas o torna incompleto. Contudo, se passar

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parte, porque são imprescritíveis, jamais podem ser convalida-dos, é cabível contra eles a resistência e, uma vez “proclamado o vício em que incorreram, em nenhuma hipótese são ressalva-dos os efeitos pretéritos que hajam produzido”. Com isso, entra em discussão a questão de saber se a publicidade também é fator de eficácia dos atos administrativo, isto é, se influi na sua qualidade de produzir efeitos próprios e típicos.

A eficácia dos atos administrativos

Considerando a eficácia interna e externa dos atos administrativos, a publicidade (publicação) é fator deter-minante quando o ato tenha que valer contra terceiros ou erga omnes e daí a importância de se distinguir em atos regulamentares e individuais, publicação e notificação.

Havendo uma diferença lógica entre externação e co-municação11, as comunicações, de modo geral, têm como efeito imediato promover o conhecimento e a certeza jurídica e, por isso, são denominadas de publicação, notifi-cação ou intimação.

Publicação é a divulgação oficial dos atos por meio de jornal oficial ou qualquer outro meio legal de valor equiva-lente, para conhecimento geral , isto é, tem por destinatário um número indeterminado de pessoas. Normalmente é o meio escolhido para veicular medidas de alcance geral (atos normativos ou regulamentares).

Já a notificação é a comunicação direta do ato ao(s) seu(s) destinatário(s) e, via de regra, é o meio escolhido para externar atos de alcance individual, mas não necessa-riamente, porque há casos em que se admite a publicação como substitutiva da notificação (com os mesmos efeitos) de atos individuais, em razão do grande número de inte-

11 não se pode confundir a forma do ato que, apesar de externa é um momento intrínseco a ele – é a expressão, no mundo físico, da declaração de vontade – com a sua comunicação, medida que lhe é extrínseca e, normalmente, posterior, com a função de produzir o conhecimento do respectivo conteúdo

belecida com o objetivo de estabelecer os moldes gerais a fim de “metodizar o serviço público”, a sua inobservância constitui-rá uma “simples irregularidade” (FAGUNDES, 1967, p. 70). Isso põe a questão da teoria das nulidades dos atos da administra-ção, matéria bastante complexa que não cabe, no âmbito deste ensaio, senão fazer breve referência.

No particular, a posição de Seabra Fagundes (1967) é a de que os atos adminstrativos viciados podem ser inválidos (nu-los), e são aqueles que “violam as regras fundamentais atinentes à manifestação de vontade, ao motivo, ao objeto, à finalidade ou à forma, havidos como de obediência indispensável pela sua natureza, pelo interesse público que as inspira ou por menção expressa da lei”; relativamente inválidos (anuláveis), que são aqueles que, se invalidados, importam em conseqüências “mais nocivas que as decorrentes de sua validade”, devendo-se se fazer aí um juízo de ponderação entre o interesse público abs-tratamente considerado e o interesse público específico que se apresenta, muitas vezes, por razões de equidade e justiça, em condições de superar aquele. O exemplo clássico é o caso dos atos praticados por “funcionários de fato”. Tais atos, reputa-dos anuláveis, deixam de produzir efeito tão logo se constate o vício, “mas os efeitos pretéritos, ou alguns deles, subsistem”. Irregulares, por fim, são aqueles que apresentam defeitos “irre-levantes” de forma, não afetando “ponderavelmente o interesse público, dada a natureza leve da infrigência às normas legais. Os seus efeitos perduram e continuam, posto que constatado o vício”.

Cretella Júnior (1977) faz outra distinção: os atos adminis-trativos nulos são aqueles em que falta um dos requisitos para a sua existência e que foram perpetrados em violação aos prin-cípios básicos da ordem jurídica; anuláveis, quando o ato e os elementos, ou parte deles, estão afetados por vícios sanáveis, e inexistentes aqueles que não produzem os seus efeitos essen-ciais e que nunca tiveram existência real.

Já Celso Antônio Bandeira de Mello (1997), resumindo as teorias, subsume na categoria “atos inválidos” os atos nulos e os anuláveis e considera os atos inexistentes como categoria à

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Reflexões sobre o preceito da publicidade como condição de validade e eficácia dos atos administrativosMaren Guimarães Taborda

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os demais atos da administração podem ser publicados por outras formas, até mesmo na imprensa.

A notificação é publicidade de atos individuais, mas tal regra não tem valor absoluto:quando os interessados são muito numerosos, por exemplo, notadamente nos ca-sos de atos coletivos, a exteriorização desses atos poderá dar-se por publicação. Relativamente aos atos não publi-cados, eles não são inválidos, mas não podem ser opostos aos dos administrados, de modo que a questão da publi-cidade está situada no plano da validade, não da eficácia.

A jurisprudência tem entendido que a administração pode aplicar um ato não publicado porque a sua força ju-rídica resulta de sua emissão mesma, mas essa aplicação não poderá produzir efeitos sobre os administrados até que o ato seja publicado. Quanto à questão de saber se a administração fica vinculada aos atos não publicados, a resposta, em princípio, é positiva, mas leva-se em con-ta se o ato é individual ou regulamentar: se é individual e benéfico, estes podem ser invocados mesmo antes da notificação; se são atos regulamentares, não podem fazer nascer direitos contra terceiros antes de sua publicação. 15

No Brasil, as leis tributárias, de modo geral, exigem notificação para a eficácia de todos os atos administrativos de constituição de tributos (lançamentos) por que atingem o patrimônio do cidadão. Lançamento, de acordo com o Có-digo Tributário Nacional, é concreção ou individualização de norma tributária. Quer dizer, para aplicação das normas tributárias, impõe-se verificar se ocorreu determinado fato – o fato jurídico tributário (tatbestand, fattispecie, fato ge-rador, suporte fático) (BORGES, 1999, p. 82). Para que o lançamento produza seus efeitos jurídicos, deve haver a notificação ou aviso do mesmo ao sujeito passivo. Essa no-tificação não se confunde com o lançamento. Ao contrário, pressupõe sua existência e validade.

15 Cf. Laubadere, Veneza e Gaudemet (1996, p. 684 et seq.); Stassinopoulos (1954, p. 122 et seq.); Chapus (1993, p. 914 et seq.); Haurion (2002, p. 379); Rivero (1981, p. 121-122). Debbasch e Ricci (2016, p. 388 et seq.), bem como sua tradução portuguesa, de Rogério Erhardt Soares.

ressados ou destinatários.12 A distinção importa no plano da eficácia porque, se a publicação é impessoal, e a noti-ficação, pessoal, em todos os atos de alcance particular e que sejam restritivos de direitos exige-se a notificação.

Nessas condições, quando um ato é geral com eficá-cia externa, só produz efeitos oponíveis a terceiros com a publicação; se o ato tem eficácia interna e, além disso, não é oponível a terceiros ou à administração (caso dos contratos administrativos),13 a falta de publicação pode ser suprida para a sua eficácia; e, em caso de ato benéfico aos administrados, de anulação, reintegração, reforma, de atos de controle (homologação, visto) e de atos simplesmente declaratórios, esta poderá ser retroativa.14

Sendo assim, no plano da eficácia, a publicidade opera para a efetiva atribuição de efeitos erga omnes em face do interessado e, em várias situações, a publicação é condição de eficácia expressamente prevista em lei. Isso não signi-fica que o administrado não possa invocar o benefício de uma medida individual, antes de ser notificado; contudo, se o ato for geral, só pode ser invocado após a notificação.

A doutrina administrativista brasileira, como é sabido, é largamente tributária do direito administrativo francês. Naquele ordenamento, o tratamento dado à questão da publicidade como condição de validade e de eficácia dos atos administrativos é semelhante. No direito francês, tanto o ato administrativo stricto sensu como os regula-mentos só são oponíveis aos administrados, a partir do dia de sua publicação, ainda que entrem em vigor pela sua emissão por autoridade competente. As medidas de alcan-ce geral ou regulamentos são, via de regra, publicados, e as decisões individuais, notificadas. As leis e os decretos são necessariamente publicados no Journal Officiel, mas

12 Cf. Di Pietro (1998, p. 193-194); Fagundes (1967, p. 64); Cretella Júnior (1991, p. 208). 13 Existem casos em que o ato geral ou individual de efeito interno acaba repercutindo na posição

jurídica dos administrados, e, então, impõe-se a sua publicação. 14 Cf. Medauar (1986, p. 12-21, 108-115).

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documentos ou às informações neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato admi-nistrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo”, isto é, com a sua publicação. Tal restrição é deveras importante, na medida em que o interessado só tem acesso aos pareceres que fundamentam o ato admi-nistrativo decisório, após a mesma ser publicada. Fazer o contrário gera insegurança jurídica, pois, se o cidadão ti-ver acesso aos fundamentos da decisão antes da mesma produzir seus efeitos no mundo prático, pode ser levado a crer que a decisão final será em determinado sentido antes mesmo de sua revisão por superiores hierárquicos, o que é ínsito à administração.

Uma breve pesquisa no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul permite afirmar que a juris-prudência daquele tribunal é assentada e firme no sentido de que os atos administrativos só produzem eficácia exter-na depois de publicados, principalmente naqueles casos em que o administrado deva praticar atos oficiais, como prazos para opções sobre regime de trabalho dos servi-dores, divulgação de resultados de concursos públicos e cobrança de valores devidos a servidores. No processo nº 71006190615,17 decidido pela Primeira Turma Recursal da Fazenda Pública, por exemplo, consta da ementa, verbis: “[...] A publicação do ato administrativo constitui o mar-co temporal para a produção dos efeitos jurídicos perante o servidor público e/ou terceiros, resultado do princípio da publicidade, conforme disciplina o art. 37, caput, da CF/88”. Tal decisão consolida jurisprudência de mais de dez anos da referida turma.

Já nos termos da Lei de Improbidade Administrativa, nos termos do art. 11, inciso IV, tipica-se como conduta ímproba “negar publicidade aos atos oficiais”, tendo os mesmos que re-

17 RECURSO INOMINADO. PRIMEIRA TURMA RECURSAL DA FAZENDA PÚBLICA. AÇÃO DE CO-BRANÇA. PROMOÇÃO RETROATIVA. MAGISTÉRIO ESTADUAL. DIFERENÇAS PRETÉRITAS NÃO SATISFEITAS PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE […] Primeira Turma Recursal da Fazenda Pública. Rel. Des. Niwton Carpes da Silva, julgado em 20/10/2016. Disponível em: <http://www.tjrs.gov.br>. Acesso em: 30 out. 2016.

Pela notificação, então, o sujeito passivo toma ciência do ato praticado pela autoridade administrativa. A distin-ção entre existência, validade e eficácia se dá nos seguintes termos: existência é a produção mesma do ato normativo, seu atributo próprio; a validade diz respeito à inserção do ato normativo no ordenamento jurídico em geral; e, por fim, a eficácia é a “relação de conformidade entre o pre-ceito normativo e a conduta por ele normada” (BORGES, 1999, p. 82).

Por essa razão, se diz que eficácia é a observância do preceito pelo sujeito destinatário da norma, é a sua conduta individual. Sendo assim, nos termos do CTN, a autoridade fazendária, depois de lançar (de constituir a relação tributária), dá ciência ao sujeito passivo de que o mesmo ocorreu (existe e é válido) e de quais são os termos de sua exigibilidade. Por conseguinte, pela notificação do lançamento, a autoridade administrativa “exerce uma pre-tensão tributária determinada: a exigência do tributo e, cumulativamente, se for o caso, de penalidade pecuniária” (BORGES, 1999, p. 186). Por tais razões, a jurisprudência dos tribunais brasileiros vem se assentando no sentido de que a notificação de lançamento de tributos deve ser sempre pessoal, de modo a garantir a ampla defesa e o contraditório.16

Na mesma linha, a Lei de Acesso à informação brasilei-ra (Lei nº 12.527/2001), ao dispor sobre os procedimentos a ser observados pelo Estado com a finalidade de garan-tir o direito subjetivo público de acesso a informações, dispõe, no artigo 7º, §3º, que o “direito de acesso aos

16 Exemplificativamente, julgado recente do TJRS, que consolida tal posição. EMENTA: APELAÇÃO CIVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE. COBRANÇA DE TAXA DE COLETA DE LIXO. LANÇAMENTO COMPLEMEN-TAR POR REVISÃO. ART. 16, §1º, DA LCM 07/73. ATO ADMINISTRATIVO QUE GERA ENCARGOS FINANCEIROS AO CONTRIBUINTE. NECESSIDADE DE NOTIFICAÇÃO PESSOAL, A FIM DE GA-RANTIR A AMPLA DEFESA E O CONTRADITÓRIO. Destinada a notificação à viabilização de defesa pelo contribuinte, curial que, inclusive observando-se a ordem com que dispostas na lei as formas da cientificação, se deva primeiro lançar mão da notificação pessoal, e não, assim, diretamente, da notificação ficta, via edital. APELAÇÃO NÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70069868537, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 31/08/2016). Disponível em: <http://www.tjrs.gov.br>. Acesso em: 30 out. 2016.

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os administradores começam a sentir falta de outra coisa mais do que a crença na infalibilidade da sanção ou o respeito pela autoridade suprema, para que as regras sejam obedecidas. A administração passa, então, a ter que obter a adesão à regra, o que se faz com um apelo à inteligência e à razão dos cidadãos. A essa ideia de consentimento se junta o princípio do conheci-mento, não se aceitando um governo sem conhecê-lo, e, por isso mesmo, o conhecimento pressupõe a publicidade. Por essa razão, a publicidade recebe o tratamento de “transparência” na doutrina estrangeira.

A compreensão do Conselho Europeu para a proteção dos Direitos Humanos é no mesmo sentido: a finalidade do princípio da transparência é melhorar o funcionamento das instituições, desenvolver principalmente o direito de acesso às informações e, de modo particular, proteger com mais eficácia os direitos fundamentais. Daí decorrem os direitos de acesso aos arquivos administrativos e a necessidade de publicação e motivação dos atos. O Tratado de Amsterdã, de 2 de outubro de 1997, dispôs que todo cidadão da União Europeia tem direito de acesso aos documentos das instituições europeias, nos limites da proteção ao interesse público e privado fixados pelo Conselho Europeu.

Consequência também do princípio republicano, o dever de transparência assume conexões importantes com os princí-pios da proteção à confiança18 e da imparcialidade. Relaciona-se com a segurança jurídica na sua modalidade “proteção à con-

18 Coube a Almiro do Couto e Silva discutir, pela primeira vez no âmbito doutrinário brasileiro, a cone-xão entre a segurança jurídica como proteção à confiança e a legalidade, a partir do entendimento de que a noção de Estado de Direito, no seu aspecto material, tem como elementos estruturantes as idéias de “Justiça” e “segurança jurídica”, e, no seu aspecto formal, “a) a existência de um sistema de direitos e garantias fundamentais; b) a divisão ds funções do Estado [...]; c) a legalida-de da Administração Pública e, d) a proteção da boa-fé e da confiança (Vertrauensschutz) que os administrados têm na ação do Estado, quanto à sua correção e conformidade às leis”. Consoante Judith Martins-Costa (2005, p. 135), no momento em que o STF, na decisão da MC 2.900 – RS, propôs a ressignificação do princípio da segurança jurídica, conectando-o com a proteção à con-fiança, marcou um “giro hermenêutico no Direito brasileiro”, que é, em tudo, tributário ao texto do professor gaúcho. Segundo a autora, “nessa nova conjuntura, o princípio da segurança jurídica vem conotado a um outro tipo de confiança, a uma outra lógica da confiança: não apenas confia-se na inação estatal, em vista a não perturbar o espaço da livre iniciativa econômica; confia-se também na racionalização do poder do Estado e na sua ação tendo em vista o interesse (que é social, coletivo, e não meramente individual) ao livre desenvolvimento da personalidade dos indivíduos” (grifos nossos). Cf. também Almiro do Couto e Silva (1987, p. 46-63).

vestir-se de caráter informativo, educativo ou orientação social, como se disse alhures. Se a conduta for deliberada, o seu autor infringe o principio da publicidade; se a conduta for culposa e não acarretar danos ao erário, não caracterizar-se-ia a improbi-dade, por que a lei não previu forma culposa de ato atentatório aos princípios da administração.

Considerações finais

Publicidade como “transparência” indica a exigência de desnudamento da administração, que não resulta de um texto específico, mas da finalidade de proteger os direitos e garantias fundamentais e tutelar impessoalmente os interesses públicos. O que a transparência determina é que todos os atos políticos sejam praticados à luz do dia, para facilitar o seu controle.

Se a razão de ser da administração é toda externa – tudo que faz tem uma direção exterior –, falta-lhe uma razão de ser independente das normas. Como jamais é portadora de interes-ses, poderes ou direitos pessoais seus, surge o dever de absoluta transparência, e a consequência é que o povo – titular do poder – tem o direito de conhecer tudo que concerne à administração. Daí afirmar-se o aspecto instrumental da publicidade: é um meio para que se atinjam os fins previstos em outras normas (regras ou princípios), quais sejam, a proteção dos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e a tutela impessoal dos interesses públicos.

A publicidade, pois, entendida como “dever de transparên-cia”, qualifica o movimento de abertura da administração para o exterior, superando, progressivamente, a tradição do segre-do administrativo – arcana imperii. A ideia de publicidade como “transparência”, por corresponder a uma pressão aumentada em relação à administração, é larga e exigente: os cidadãos mo-dernos não obedecem sem conhecer e obedecem com a única condição de consentir. A partir do momento em que a adminis-tração interfere nos detalhes da vida cotidiana, multiplicam-se as interdições e as regulamentações minuciosas, de modo que

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fiança”, no sentido de que as instituições republicanas criam um ordenamento jurídico incompatível com a surpresa, quer dizer, o que a república postula é previsibilidade da ação estatal: esta é necessariamente pública e desenvolvida em meio a um debate que é, sempre, público.

Enfim, publicidade como “direito a procedimento aberto” é a dimensão positiva do princípio (informar materialmente os atos dos poderes públicos), exigindo que os destinatários de um ato final (com eficácia externa) sejam notificados. Subjacente está a exigência de segurança do direito, proibição do segredo e defesa dos cidadãos perante os atos do poder público. Por tais razões, no Estado Democrático de Direito, publicidade não é só condição de validade dos atos administrativos, mas tam-bém de sua eficácia.

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A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional

sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário como forma de objetivação

do controle difuso de constitucionalidade das leis

Marco Félix Jobim1 Mauricio Martins Reis2

1 Advogado e Professor Adjunto da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul na gradua-ção e pós-graduação lato e stricto sensu. Especialista, Mestre, Doutor e Pós-doutorando em Direito pela UFPR. Coordenador da Especialização em Processo Civil da PUC/RS.

2 Advogado e Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP-RS). Especialista, Mestre e Doutor em Direito. Doutor em Filosofia.

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A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário como forma de objetivação do

controle difuso de constitucionalidade das leis.Marco Félix Jobim e Mauricio Martins Reis

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vivemos hoje sob a égide de um regime arbitrário de “licenças poéticas” em favor de uma justificativa de legalidade endossada como pétrea e irrespondível. Em nome da lei os magistrados estariam autorizados a recusar a aplicação de um precedente vertical (emanado de tribunais de estrito direito, mormente do Supremo Tribunal Federal) cujo critério de reconhecimento cor-roborou uma tese como revestida de prevalência argumentativa em sede de legitimidade na facticidade, isto é, a partir do es-crutínio concreto de ponderações concorrentes que culminaram na resposta constitucionalmente adotada como prioritária, vale dizer, correta ou mais adequada ou, ainda, a melhor para o caso em questão.

A necessidade de um movimento racional tendente ao regime dos precedentes obrigatórios – a adoção de um direi-to jurisprudencial – não se mostra como assunto novo ou de inédita reivindicação, mas, conforme dito no início, habita a ge-nealogia do próprio direito. Tanto assim é que as palavras de Barbosa Moreira ecoam incólumes com inequívoco acerto há mais de três décadas, por ocasião dos comentários ao código processual brasileiro antes do advento da Constituição de 1988 e das inúmeras reformas específicas posteriores4.

4 “Mutável que é a realidade social, compreende-se que mude também, com o correr do tempo, o entendimento das normas de direito, ainda quando permaneça invariável o respectivo teor literal. Nada mais natural, assim, que a evolução da jurisprudência através da constante revisão das teses jurídicas fixadas. Na inércia do legislador (...), ela funciona como respiradouro indispensável para permitir o progresso do direito e impedir a fossilização dos textos normativos. (...) Outro é, pois, o fenômeno que se tem em vista quando se alude à conveniência de adotar medidas tendentes à uniformização dos pronunciamentos judiciais. Liga-se ele ao fato da existência, no aparelho esta-tal, de uma pluralidade de órgãos judicantes que podem ter (e com frequência têm) de enfrentar iguais questões de direito e, portanto, de enunciar teses jurídicas em idêntica matéria. Nasce daí a possibilidade de que, num mesmo instante histórico – sem variação das condicções culturais, políticas, sociais, econômicas, que possa justificar a discrepância –, a mesma regra de direito seja diferentemente entendida, e a espécies semelhantes se apliquem teses jurídicas divergentes ou até opostas. Assim se compromete a unidade do direito – que não seria posta em xeque, muito ao contrário, pela evolução homogênea da jurisprudência dos vários tribunais (...). Nesses limites, e somente neles, é que se põe o problema da uniformização da jurisprudência. Não se trata, nem seria concebível que se tratasse, de impor aos órgãos judicantes uma camisa-de-força, que lhes tolhesse o movimento em direção a novas maneiras de entender as regras jurídicas, sempre que a anteriormente adotada já não corresponda às necessidades cambiantes do convívio social. Trata-se, pura e simplesmente, de evitar, na medida do possível, que a sorte dos litigantes e afinal a própria unidade do sistema jurídico vigente fiquem na dependência exclusiva da distribuição do feito ou do recurso a este ou àquele órgão.” (MOREIRA, 1978, p. 5-6).

Denomina-se erro de Cappelletti toda a premissa bastan-te difundida na literatura jurídica brasileira mais recente,

especialmente aquela conexa ao tema da hermenêutica consti-tucional e da teoria dos precedentes jurisprudenciais. Segundo esta, reportando direta ou latentemente as conclusões expostas por Mauro Cappelletti em célebre obra a respeito da fiscalização judicial de constitucionalidade (1999, p. 77)3, se conclui sobre a incompatibilidade do direito continental com a civil law, do mo-delo obrigatório das decisões judiciais coadunarem-se, em se tratando de casos idênticos ou similares, a prévia decisão fun-damentada oriunda da Suprema Corte. A denominada régua do stare decisis, demonstrada como hipótese normativa defensável nos primórdios desse artigo, constitui um ponto de alicerce tão universal ou congênito ao destino de uma ordem jurídica que, independentemente de sua origem, se pretende apaziguadora do caos social através dos éditos de jurisprudência demarca-dos com esteio na argumentação coerente, justa e adequada. Mediante outro prumo, dir-se-á que a cultura jurídica de um contexto consegue, quando muito, robustecer ou fragilizar dita pretensão de uniformidade decisória ínsita ao desiderato do que se convenciona chamar de justiça, cujas nuances de inten-sidade, a depender do local e do tempo histórico analisados, propiciam ou deslegitimam tal predicado do que seja por certo “justo” ou “injusto”.

Podemos afirmar que a uniformização dos pronuncia-mentos judiciais é a contrapartida indelével – o outro lado da moeda – de uma hermenêutica jurídica contemporânea apta a resolver casos difíceis e controversos sem incorrer na prolifera-ção irresponsável de “ilhas” incomunicáveis de significado (ou sentido) escudadas no convencimento motivado (isolado) de cada juízo julgador. Por mais paradoxal que possa ser, no Brasil,

3 O núcleo propositivo – errôneo ou equivocado em sua suposição e/ou conjectura – aqui imputado ao autor encontra-se na seguinte passagem: ao dizer que não existe o princípio do stare deci-sis nos sistemas de derivação romanística, os denominados sistemas de civil law, dos quais toma parte o Brasil, conclui, no tocante à adoção do controle difuso de constitucionalidade (de matriz norte-americana) pelos países tributários do modelo da Europa continental, que isto “levaria à consequência de que uma mesma lei ou disposição de lei poderia não ser aplicada, porque julgada inconstitucional, por alguns juízes, enquanto poderia, ao invés, ser aplicada, porque não julgada em contraste com a Constituição, por outros” (p. 77).

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na jurisdição” e, mais importante, “mesmo se a mais alta cor-te já pacificou um determinado entendimento em uma matéria, ainda assim as instâncias inferiores podem decidir de forma di-versa” (MERRYMAN, PÉREZ-PERDOMO, 2009, p. 78). Lafuente Balle, citado por Lenio Streck (2004, p. 313), é outro autor que desmente tal visão folclórica, quando diz “que o princípio do precedente está tão arraigado nos tribunais constitucionais con-tinentais como no stare decisis da Corte Suprema britânica”.

Os refratários aos mecanismos de uniformidade jurispru-dencial em países como o Brasil devem argumentar, provando, o alegado engessamento hermenêutico do sistema propicia-do pela adoção de institutos afins ao tema dos precedentes obrigatórios. Dizer que cada caso é um caso, defender a discri-cionariedade interpretativa, alegar a diversidade e a diferença ínsitas de uma cultura democrática é pouco, para não dizer peri-gosamente nada. Isto sem contar a fórmula absurda que justifica ignorar os precedentes dos tribunais superiores – que interpre-tam a lei – com fundamento na atividade decisória do juiz a partir da própria (e mesma) lei. Generalizar frases cuja correção carece do devido contexto, como “a lei admite vários significa-dos”, revela um expediente bastante comum dos detratores de institutos como a súmula vinculante.

Os autores que sublinham a impossibilidade da constitui-ção de critérios normativos gerais a partir da jurisprudência, sem quedar-se, segundo eles, no reducionismo normativista apega-do à tese da vontade exclusiva da lei, esquecem de referendar, para a ressalva procedida, a justificativa do seu próprio racio-cínio, denominada aqui de fundamento contingente disperso. Percebemos o quanto é impossível desenvolver o raciocínio com ânimo nesse fundamento, ou, em termos moderados, o quanto ele é mais frágil do que o argumento oposto, aqui defendido, no sentido da possibilidade hermenêutica de se vincular por meio de precedentes sem o menosprezo do paradigma do direito como a razão prática. Referida dificuldade é ilustrada pela fan-tasia de se tentar distinguir – sem dizer como ou exemplificando com hipóteses práticas – “a função criadora, progressista e ino-vadora do sistema jurídico”, a qual “deve ser preservada como a

A suposta indissociabilidade entre common law e civil law, em especial quanto à interpretação jurídica e suas respectivas fontes – como se os magistrados, respectivamente, constituís-sem o direito por meio dos precedentes ou dos significados das leis, tanto quanto por uma alegada aproximação entre dois sis-temas em tempos de constitucionalismo contemporâneo – nada mais consubstanciam do que uma tradição jurídica. Esta dis-crimina tão somente uma perspectiva cultural, entendida esta como o conjunto de atitudes historicamente condicionadas e profundamente enraizadas em dada sociedade (MERRYMAN, PÉREZ-PERDOMO, 2009, p. 23).

Nada obstante, a precedência cultural das tradições ju-rídicas, despida de um caráter assertivo de cunho axiomático, apresenta postulados culturais notadamente problemáticos – cuja inconsistência é endógena – que mesmo assim se crista-lizam pelo apelo reiterado de práticas (ou reflexões superficiais dogmáticas) ao longo do tempo, numa manifestação ora con-vertida em folclore. Uma dessas manifestações folclóricas das quais se quer aqui desbaratar é aquela segundo a qual o stare decisis seria uma construção histórica dos países da com-mon law (STRECK; ABBOUD, 2013,p. 71) e, por conseguinte, incompatível ao programa normativo dos sistemas romano-ger-mânicos, especificamente, tomando-se por base o Brasil, cujas transformações legislativas, para efeito de atrair expedientes de uniformização de jurisprudência, menoscabariam uma nota essencialmente flexível (de caráter casuístico hermenêutico-con-creto) como a percebida nos Estados Unidos, diferentemente àda jurisdição brasileira, à qual proporciona-se um aprisiona-mento de sentido desvinculado dos casos práticos de origem. Em suma, o folclore consiste na ambivalência do regime dos pre-cedentes dinamizar o sistema jurídico em países da common law e, ao mesmo tempo, engessar o sistema em países de tradição romano-germânica (STRECK; ABBOUD, 2013,p. 96).

Outro folclore acerca da interpretação judicial é bem denunciado por Merryman que se refere à visão ortodoxa ca-racterística da tradição da civil law, segundo a qual “nenhum juiz está vinculado pela decisão de qualquer outro órgão judicial

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Inegavelmente, os precedentes jurisprudenciais não dis-pensam a interpretação dos casos vindouros que lhes requerem aplicabilidade. Todavia, disso não decorre a frustração de institu-tos que tais, porquanto sua finalidade jamais pretenderá realizar o que antes a legislação foi incapaz de proceder – a saber, a independência contextual-problemática da incidência aplicativa quando da identificação da norma jurídica pertinente ao caso ou ao conjunto destes enquanto tipologia existencial comum –, mas, apenas consiste em concretizar ou especificar cânones interpretativos decorrentes da própria aplicação jurisdicional, contexto do qual, inequivocamente, não participa o legislador. Ou seja, expedientes judiciários vinculantes apenas outorgam legitimidade argumentativa a interpretações definidas e privile-giadas em virtude de sua aptidão conteudística (ou material) ao definir um critério abstrato outrora passível de divergência para situações semelhantes e, por isso mesmo, para cuja resolução as normas jurídicas foram antes incapazes de concorrer e contri-buir com caráter decisivo.

Nada obstante, as recentes reformas processuais adota-das pelo direito brasileiro para efeito de promover a chamada celeridade da prestação jurisdicional, princípio que se resolveu explicitar com a Emenda Constitucional n. 45/2004, por intermé-dio da escolha deste valor como um preceito no bojo do texto fundamental (Artigo 5o, inciso LXXVIII), proliferam-se até hoje situações de inegável deformidade no nosso sistema de justiça. A título de exemplo, decisões do STF que se transmudam literal-mente de um dia para o outro, a ponto de se justificar a crítica sob o título de “Constituição provisória”.5

5 Artigo de autoria do jornalista Fernando Rodrigues, edição da Folha de São Paulo de 11 de mar-ço de 2012, ao criticar a decisão do STF em ADIN (n. 4029) proposta contra lei de conversão de medida-provisória que criara o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade): explicitamente o alvo de sua crítica consistiu na superveniente mudança de juízo, em benefício da constitucionalidade do ato normativo (no dia anterior tido por inconstitucional), da quarta para quinta-feira (07 para 08 de março de 2012), pois “notou-se o óbvio: se a MP do Instituto Chico Mendes foi aprovada de forma inconstitucional, todas as outras cerca de 500 MPs editadas desde 2001 também passariam a ser irregulares. Ou seja, o Brasil em breve seria alvo de um tsunami de ações judiciais contestando leis vigentes” (p. A2). Em realidade, tal dramática constatação mascara outras intensas mazelas, estas de ordem mais técnica; por exemplo, a própria modulação de efeitos no controle de constitucionalidade permitiria a manutenção do prévio julgamento (em benefício da inconstitucionalidade formal da lei), contudo, ressalvando tais efeitos para o futuro, de maneira a resguardar este específico diploma – e todos os outros, mediante força expansiva por conta de

legítima função contemporânea dessas cortes superiores” (SIL-VA, 2006, p. 299). É tarefa desses mesmos tribunais uniformizar a jurisprudência, encargo este abominado pela alegada ojeriza hermenêutica conformadora do aprisionamento ao passado em institutos como as súmulas vinculantes.

A contingência dispersa – ou insular – consiste no postulado do isolamento do fundamento normativo do caso concreto, isto é, na clausura autorreferente da solução interpretativa de cada caso, sem capacitar a construção de um critério transcenden-te comum a situações análogas com homogênea reivindicação problemática de incidência de determinado preceito legal. O ônus impingido é deveras alto à quem propugna resistir à prá-tica racional da uniformidade de jurisprudência. Por excelência, pergunta-se aos partidários desta ideologia como dois ou mais eventos, distintos entre si em sua manifestação jurídica pro-cessual, resultariam acomodados sob a mesma norma jurídica aplicável, sendo interpretados igualmente com esteio no mes-mo critério normativo. Noutros termos, como explicariam estes a convergência de juízos na construção jurisprudencial de um único critério normativo para fatos semelhantes? Porventura alegariam um concerto arbitrário ou aleatório de sentido? Dizer que súmulas não podem vincular, porque fossilizam o direito, em última razão, implica desnaturar a fundamentação jurídica na sua (primordial) função, além daquela ínsita à própria resposta ao caso concreto, que é a de constituir um precedente. Assim, abomina-se a história, pois a cada novo acontecimento suspen-de o passado – ou ignora-se esta – como se tal acontecimento fosse um feito inédito digno de uma nova resposta, divorciada, ao menos no plano do confronto argumentativo, das decisões pretéritas. O enlace com o passado é fundamental, já que, e isto é o mais importante, este propicia o registro daquilo que se pretende superar e diferenciar. Ao revés, o mero perspectivis-mo de futuro impede o resgate histórico das decisões passadas, propiciando a arbitrariedade, seja de uma decisão qualquer, ou de uma decisão ruim a qual não quer ser balanceada diante de parâmetros mais razoáveis localizados no registro do passado.

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A vinculatividade que se pretende de um precedente - o pressuposto que o torna apto a ser obrigatório (e mesmo as-sim, prima facie, ou seja, com caráter vencível ou não-absoluto) - conecta-se umbilicalmente aos seus fundamentos e à correla-ta aptidão de normatividade futura para casos semelhantes. A ideia de torná-los obrigatórios per se é equivocada, já que sua qualidade de nortear os futuros casos é indelevelmente argu-mentativa (no sentido hermenêutico de bastantes e razoáveis razões). Aliás, é infrutífera (porquanto inócua) a cisão entre pre-cedentes persuasivos e obrigatórios, tanto quanto se pretende, por exemplo, segregar súmulas vinculantes das “não-vinculan-tes”, porque todas, como enunciados interpretativos que são, carecem de exegese ora para serem seguidas, ora para serem ul-trapassadas ou distinguidas em eventual e ulterior caso peculiar. Ao menos a vantagem de se adotar um sistema de precedentes, ao invés de uma metafísica fórmula de legalidade na qual o le-gislador antecede o juízo através dos códigos lexicais contidos nas normas, é que se humaniza o direito, ou seja, adotamos um critério por seus fundamentos (democracia argumentativa) e não por expedientes autoritários decorrentes de uma suposta (e “autêntica”) vontade geral.

Muitas repercussões de julgamentos na mídia, inclusive, demonstram um senso comum teórico predominante (equivo-cado) na cultura brasileira – seja ela científica (manifestações de especialistas jurídicos) ou vulgar (opiniões dos cidadãos). Es-tes embutem nas leis a qualidade de serem boas ou más pelo singelo motivo de ensejarem, respectivamente, adequadas e impróprias interpretações. Boas leis engendrariam únicas (e adequadas) interpretações, insuscetíveis a “polêmicas”; más normas implicariam, por seu turno, diversas decisões, invariavel-mente rumorosas, muitas delas tidas como problemáticas.6

6 Veja-se a seguinte manchete, a título de exemplo: “Decisões polêmicas do STJ refletem leis ruins, afirmam especialistas” (Folha de São Paulo, C5, edição de 1º de abril de 2012): na notícia em ques-tão, dois casos foram abordados, a decisão do STJ que afirmou que apenas o bafômetro e o exame de sangue podem demonstrar a embriaguez para fins penais, além da decisão do mesmo Tribunal no sentido de não aplicar a presunção legal de violência nos crimes sexuais no caso de garotas que se prostituíam, a despeito de contarem no caso concreto com menos de 14 anos. Dias depois, o projeto de lei que robustece a denominada Lei Seca foi aprovado pela Câmara dos Deputados, responsável por autorizar o uso de outras possíveis provas para atestar o estado de embriaguez

Nesse sentido, o objetivo proposto consiste no ofereci-mento de uma proposta crítica de natureza interpretativa para efeito de cumular, ao lado das estratégias meramente deduti-vas (filtros processuais para julgamento nos tribunais superiores, legitimadores de escolhas temáticas ou de cortes epistemoló-gicos, do geral para o particular), dos parâmetros indutivos (do particular caso ou das específicas situações de fato-direito rumo à racionalidade jurídica expansível intersubjetivamente) capa-zes de lidar com o tempo (ágil) das respostas constitucionais (conforme o Texto Maior). Pressupõe-se que as duas maiores injustiças as quais atualmente grassam nosso país são a justiça que falha, porque tarda, e a justiça lotérica, que falha, porque afronta o princípio basilar da igualdade, de modo formal, ao desigualar decisões iguais, e de modo material, ao igualar situa-ções distintas.

As últimas tentativas, predominantemente de cunho de-dutivo, não conseguem enfrentar com eficácia tais injustiças maiúsculas, seja em virtude da ainda demora no julgamento das causas, ou, talvez aqui o maior problema atualmente verificado (e cuja incidência é compreensível, porque espontânea em face dessas reformas, na medida em que a natureza dessas medidas processuais consiste em exatamente sacrificar o caso concreto), em função da ausência ou excesso de critérios na condução das lides. Ausência ou excesso que afloram ora pela aplicação de estandartes argumentativos incompatíveis com novas e diferen-tes situações derivadas do mundo da vida, ora pela convivência (delongada) de diversas razões, incompatíveis entre si na con-sideração de único critério normativo apto a resolver litígios de mesma ou predominante origem, entre concomitantes ou contemporâneos julgadores (individuais e colegiados), de cujas razões de permanência teimam em repousar no vazio (arbitrá-rio) eco do argumento favorável à intangibilidade da convicção judicial.

notório precedente de caráter objetivo – com idêntica causa ora desabonada juridicamente pela Corte Suprema. Na mesma edição do jornal, o jurista Joaquim Falcão comenta com propriedade: “Corrigir erros e atualizar as decisões é bom. (...) O problema é como se muda.” (Mudança de de-cisões do Supremo pode causar instabilidade social, p. A8).

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conteúdo das decisões judiciais, o discurso hermenêutico vem enfraquecendo e, muitas vezes, ressuscitando posturas mecâ-nicas típicas do mais exacerbado positivismo ideológico. Em benefício da estrita uniformidade das decisões passa-se a de-fender a literalidade mais rasteira. Para prevenir os excessos, suprime-se a liberdade e a criatividade do intérprete.

O presente artigo, ao se agudizar concretamente no tra-tamento da repercussão geral em recurso extraordinário e na denominada abstrativização do controle difuso de constitucio-nalidade, está engajado em igualmente verificar os vícios (novos) decorrentes de uma propalada reforma processual no atual sis-tema brasileiro, quando institutos com repercussão geral, longe de resolverem problemas crônicos atinentes à burocratização e à demora na prestação jurisdicional, apenas deslocarem-nos de vista. Os tribunais, antes desaparelhados para atuar diligente-mente em milhares de processos cujos controvérsia diz respeito à Constituição da República, hoje são transformados em re-partições “dique” (FALCÃO, 2012)8, ao conterem um volume insuportável de demandas suspensas por aquilo que o STF reco-nhece como sendo de relevância constitucional. No sentido de que uma crise da justiça não resulta suscetível de resolução sob a pena política de intenções, mas, dentre outros vetores, parte-se do pressuposto que um profundo refletir sobre os aspectos materiais da juridicidade argumentativa deve haver.

Vive-se uma nova era do Direito Processual Civil com a promulgação da lei n. 13.105/15, sendo que alguns temas importantes começaram a ter vida antes, como é o caso da repercussão geral (MEDINA, 2016, p. 15)9 no recurso extraordi-nário. Isso, em muito se deve, conforme visto, ao afogamento do próprio Poder Judiciário, em especial das suas cortes de vér-tice (MITIDIERO, 2014)10, que tomaram para si incumbências em

8 Expressão utilizada por Joaquim Falcão (tribunais-dique) ao criticar a múltipla insegurança opera-cional do sistema judiciário brasileiro .

9 Conceitua a autora: “A repercussão geral é um filtro colegiado de admissão recursal, por intermé-dio da qual o Supremo Tribunal Federal (STF) selecionada os recursos extraordinários relevantes para julgamento, no exercício de sua política defensora da Constituição”.

10 Nomenclatura que apontam as cortes que estão no vértice de uma organização judiciária. ver: MITIDIERO, Daniel. Cortes superiores e cortes supremas: do controle à interpretação, da jurispru-dência ao precedente. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

Na realidade, não se trata disto. A hermenêutica constitu-cional, por ser inegavelmente argumentativa e, pois, conectada ao problema da interpretação enquanto aplicação (a saber, interpretar o direito para resolver o caso concreto), não resul-tará mais ou menos turbulenta em virtude da forma como as leis são redigidas, com maior ou menor clareza, tampouco em razão da legitimidade democrática com que o ato normativo resultou chancelado pelo parlamento. Em outras palavras, re-novando apelo ao tradicional brocardo latino com o objetivo de controvertê-lo em tempos hodiernos, a clareza dos preceitos normativos jamais prescindirá do labor interpretativo. Ademais, a legitimidade representativa dos legisladores não pode ser con-siderada qualitativamente superior a ponto de se tornar tarefa dos julgadores – e dos operadores do direito que nele litigam, em complemento necessário, responsáveis pela sua interpreta-ção a ponto de fundar pretensões divergentes nos processos dos quais são partes ou interessados – mera reprodução subal-terna da gramática ou do léxico expressos nos atos normativos.

Ocorre que a renovada expressão do constitucionalismo brasileiro, mormente posterior à promulgação do Texto Maior de 1988, tem sofrido com injustiças de ordem material e pro-cedimental. Nestas se identificam a multiplicidade absurda de recursos e a morosidade burocrática que ainda imperam no sistema nacional, cujas resoluções autorizam, infelizmente, me-didas dedutivas que, como se afirmou acima, sacrificam o caso concreto em nome de uma agilidade meramente estatística (cujos dados demonstram índices ainda alarmantes).7

As injustiças de caráter material decorrem da banalização da hermenêutica constitucional, quando em nome desta con-cretizam-se, por exemplo, decisões singularmente absurdas e multiplamente divergentes a partir de casos semelhantes. De tempos para cá, considerando este disparate da ordem do

dos motoristas (Zero Hora, edição de 12 de abril de 2012, p. 41). Como se vê, trata-se de sintoma da cultura brasileira: melhorou-se a redação da lei, “resolveram-se os problemas” de sua (justa e adequada) aplicação, supostamente insuscetíveis de resolução pelos tribunais via interpretativa.

7 Digno de se ilustrar, segundo dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, o Judiciário jul-gou em 2011 16,8 milhões de processos, aproximadamente 92% do total estabelecido como meta (Zero Hora, edição de 12 de abril de 2012, p. 8).

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O encontro entre os modelos difuso e abstrato de controle de constitucionalidade

das leis e o novo CPC

Há autores que apontam a possibilidade de uma aproxi-mação dos controles difuso e abstrato, como Martins e Mendes (2009, p. 2)14, ao entenderem que o controle concentrado do modelo europeu tem aberto portas para que as Cortes Cons-titucionais não detenham o monopólio do controle de leis, admitindo que tribunais inferiores o façam. De outro lado, refe-rem que, no modelo difuso estadunidense, a adoção do amicus curiae, a possibilidade do writ of certiorari (ZACLIS, 2010, p. 196)15 e a força vinculante do stare decisis (BRENNER; SPAETH, 1995)16 faz com que prepondere uma força mais objetiva no pro-cesso que traz o controle concreto como matriz em sua tradição.

14 MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira. Controle concentrado de constitucio-nalidade: comentários à lei n. 9.868, de 10-11-1999. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2. Expõem: “O modelo europeu adota as ações individuais para a defesa de posições subjetivas e cria meca-nismos específicos para a defesa dessas posições como a atribuição de eficácia ex tunc da decisão para o caso concreto que ensejou a declaração de inconstitucionalidade do sistema austríaco. Espe-cialmente a Emenda Constitucional de 7 de dezembro de 1929 introduziu mudanças substanciais no modelo de controle de constitucionalidade formulado na Constituição austríaca de 1920. Passou-se a admitir que o Supremo Tribunal de Justiça (Oberster Gerichtshof) e o Tribunal de Justiça Admi-nistrativa (Verwaltungsgerichtshof) elevem a controvérsia constitucional concreta perante a Corte Constitucional. Rompe-se com o monopólio de controle da Corte Constitucional, passando aqueles órgãos judiciais a ter um juízo provisório e negativo sobre a matéria. Essa tendência seria reforçada posteriormente com adoção de modelo semelhante na Alemanha, Itália e Espanha.” E concluem com o modelo difuso: “O sistema americano, por seu turno, perde em parte a característica de um modelo voltado para a defesa de posições exclusivamente subjetivas e adota uma modelagem processual que valora o interesse público em sentido amplo. A abertura processual largamente adotada pela via do amicus curiae amplia e democratiza a discussão em torno da questão consti-tucional. A adoção do writ of certioriari como mecanismo básico de acesso à Corte Suprema e o reconhecimento do efeito vinculante das decisões por força do stare decisis conferem ao processo natureza fortemente objetiva”.

15 É um tipo de filtro para que os recursos sejam admitidos, conforme expõe o autor: “Em 1925, o então Presidente da Suprema Corte (Chief Justice), Willian Howard Taft, que, aliás, já havia sido Presidente dos Estados Unidos, conseguiu a aprovação de uma lei por força da qual se erigiu como requisito para a cognição dos recursos que o tribunal concedesse prévia licença para tanto, mediante writ of certiorari, semelhante ao instituto da arguição de relevância, considerado neces-sário para proteger o tribunal de um volume de trabalho impossível de enfrentar. Esse mecanismo discricionário logo foi adotado por vários tribunais estaduais. Seu efeito é o de liberar a alta corte de apreciar qualquer causa que seus membros deliberem não ter necessidade de decidir”.

16 “Before we explore stare decisis, it is necessary to define it. ‘Stare decisis’ is a shortened formo f the latin phrase ‘stare decisis et non quieta movere’, which Black’s Law Dictionary defines as ‘To adhere to precedents, and not to unsettle things which are established’. It takes two forms: vertical stare decisis and horizontal stare decisis. The former refers to the obligation of lower court judges

demasia, tornando-as tribunais de revisão, quando claramente não foram pensadas nem projetadas para tamanha disfunção, não podendo mais um Tribunal desta ordem ser visto como mais uma instância no Poder Judiciário, como refere Horival Marques de Freitas Júnior (2015, p. 39)11.

Para corrigir eventuais deslizes históricos sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), a Emenda Constitucional n. 45/2004 redefiniu o conceito do recurso extraordinário ao ad-mitir um filtro denominado de repercussão geral (PINHO, 2012, p. 1211)12, o qual foi inserido no artigo 102, § 3º da Constitui-ção Federal13, o que fez com que a interposição deste meio de impugnação de uma decisão judicial transcendesse à subjetivi-dade do recorrente e, deste modo, trouxesse novos contornos ao controle difuso da constitucionalidade.

Esta ideia tem rendido frutos na readequação das fun-ções da corte, sendo que, ao longo dos anos, já se nota uma diminuição no número de recursos extraordinários que mere-cem julgamento no STF, diminuindo o trânsito de processos julgados e aumentando o número de processos devolvidos à origem (BRASIL, 2016). Ao lado disso, comemora-se uma nova legislação processual civil que enumera alguns artigos relaciona-dos ao tema, razão pela qual o estudo mostra sua atualidade, em especial ao expor se o novo texto legislativo, estando afi-nado com o fenômeno da objetivação do controle difuso de constitucionalidade.

11 Escreve o autor: “Contudo, como se nota, apesar de se tratar de um tribunal de revisão, o Supremo Tribunal Federal brasileiro não deve ser entendido como mais uma instância de revisão, como se destinado a julgar apelações, isto é, recursos com devolução integral das questões debatidas”.

12 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. V. 2. p. 1211. Nas palavras do autor, trata-se de mais um requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, assim expondo: “O recorrente, na fase de admissibilidade, além de demonstrar a presença dos requisitos objetivos e subjetivos comuns a qualquer recurso e, ainda, o prequestionamento, deverá demonstrar, através da abertura de um capítulo preliminar em seu recurso, a existência de uma questão relevante do ponto de vista eco-nômico, político, social ou jurídico que ultrapasse os interesses subjetivos da causa”.

13 O § 3º restou com a seguinte redação: “No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros.”

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afirma que não é o recurso extraordinário que tem contornos objetivos, mas sim que é a própria objetividade decorrente da natureza da fiscalização de constitucionalidade haurida desses instrumentos, mormente por intermédio de decisões cujo con-teúdo e, ainda, aponta a necessidade de se pensar numa cultura de uniformização de precedentes.

Didier Jr. (2007, p. 99)20, em artigo específico sobre o tema, alerta para o fato de que existe a objetivação do recurso extraordinário, ao trazer a possibilidade de, por meio de seu julgamento, existir a vinculação a outros órgãos do Poder Judi-ciário pelo entendimento esposado na decisão. Após uma série de reflexões, o autor comenta que passar por todo o proce-dimento21 exposto pelo Código de Processo Civil brasileiro de

20 Refere o processualista baiano: “O objetivo deste ensaio é o de demonstrar a transformação do controle difuso de constitucionalidade no direito brasileiro, notadamente quando realizado por meio do recurso extraordinário.” E finaliza: “A idéia é a seguinte: o controle, embora difuso, quan-do feito pelo STF (Pleno) tem força para vincar os demais órgãos do Poder Judiciário, assemelhan-do-se, nesta eficácia, ao controle concentrado de constitucionalidade”.

21 Não se pode deixar de mencionar que o recurso extraordinário ainda encontra dispositivos que referem a repercussão geral no regimento interno do Supremo Tribunal Federal, entre os artigos 321 a 329.

O que se pretende defender, neste momento, é a possi-bilidade de encontro dos sistemas difuso e abstrato no direito brasileiro pelo alargamento do conceito de recurso extraordi-nário. Com o ingresso da repercussão geral no ordenamento jurídico, o que é explicado por Luiz Guilherme Marinoni (2010, p. 58-59)17 ao discorrer sobre o tema, afirma-se o efeito vincu-lante das decisões em sede de repercussão geral em recurso extraordinário algo inerente, hoje, ao controle incidental de constitucionalidade. Ademais, o processualista paranaense (MARINONI, 2010, p. 459)18 encaminha a discussão para outro norte ao trabalhar a questão. Em seu entendimento, tanto nas decisões emanadas do controle difuso como nas do abstrato, o efeito vinculante não está diretamente ligado ao modo de se tratar os casos como fiscalização objetiva, mas a sua incidência justificada pelo motivo de mérito ou de resolução nas concer-nentes decisões em quaisquer dos parâmetros de averiguação de constitucionalidade, ou seja, o importante é saber que os motivos determinantes das decisões oriundas do STF devem ser observados pelos outros órgãos jurisdicionais, sob pena de comprometer o próprio Tribunal. Marinoni (2010, p. 459)19

to adhere to the precedents of higher courts within the same jurisdiction. Horizontal stare decisis concerns the duty of a court to conform to its own precedents or that of a sister court, if any”.

17 Relata o processualista: “Mas, quando a causa chega ao Supremo Tribunal Federal em razão de re-cuso extraordinário, o controle da constitucionalidade continua sendo incidental ao julgamento da causa. Porém, a ideia de que a decisão proferida em razão de recurso extraordinário atinge apenas as partes tem sido mitigada na prática jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Isso ocorreu, inicialmente, após a fixação do entendimento de que, após o Supremo ter declarado, na via inci-dental, a inconstitucionalidade de uma lei, os demais tribunais estão dispensados de observar o art. 97 da Constituição Federal (reserva de plenário), podendo a inconstitucionalidade da lei, nesse caso, ser reconhecida pelos órgãos fracionários de qualquer tribunal. E, recentemente, surgiu no Supremo Tribunal Federal orientação que nega expressamente a equivalência entre controle inci-dental e eficácia da decisão restrita às partes do processo. Essa tese sustenta que mesmo decisões tomadas em sede de recurso extraordinário – ou seja, em controle incidental -, quando objeto de manifestação do Plenário do Supremo Tribunal Federal, gozam de efeito vinculante em relação aos órgãos da Administração e aos demais órgãos do Poder Judiciário”.

18 Refere: “Assim, chega-se ao momento em que é possível definir o significado de se atribuir efeito vinculante às decisões tomadas em recurso extraordinário. Não se atribui eficácia vinculante a essas decisões em razão de supor que, como ocorre na ação direta, se está tratando do controle objetivo de normas, mas da percepção de que os motivos determinantes das decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal, em controle concentrado ou em controle difuso, devem ser observados pelos de-mais órgãos judiciários, sob pena de a função do Supremo Tribunal Federal restar comprometida”.

19 Nessa linha, escreve: “É necessário perceber que a identidade de efeitos entre estas decisões não decorre do fato de o recurso extraordinário ter assumido os contornos do controle objetivo. Bem vistas as coisas, ocorreu o inverso”.

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concerne à repercussão geral no recurso extraordinário, este concluiu ser um típico processo de caráter objetivo, semelhante às ações do controle abstrato de constitucionalidade de leis, ha-vendo, pois, a objetivação do controle difuso (DIDIER JR., 2007, p. 112)24, o que também é defendido por Gláucia Mara Coelho (2009, p. 136)25 e André Ramos Tavares (2012, p. 145)26, ou seja, a existência de uma similitude dos controles após a reforma do Judiciário.

Em lição um pouco diferente sobre a aproximação dos sis-temas, Leonardo Carneiro da Cunha (2011, p. 64)27 entende que o recurso extraordinário continua realizando, por meio do julga-mento do STF, o controle difuso de constitucionalidade, embora com conotações abstratas, ou seja, não admite que exista a vin-

24 Ressalta: “É possível concluir, sem receio, de que o incidente para a apuração da repercussão geral por amostragem é um procedimento de caráter objetivo, semelhante ao procedimento da ADIN, ADC e ADPF, e de profundo interesse público, pois se trata de exame de uma questão que diz respeito a um sem-número de pessoas, resultando na criação de uma norma jurídica de caráter geral pelo STF. É mais uma demonstração do fenômeno de ‘objetivação’ do controle difuso de constitucionalidade das leis, que será examinado no item seguinte”.

25 . Expõe a autora: “Por fim, pode-se afirmar que a adoção da repercussão geral nesses moldes (per-mitindo-se que uma única decisão do pleno possa ser utilizada como precedente para as ciências ordinárias), assim como da súmula com efeitos vinculantes, caracteriza um inequívoco movimento de aproximação entre os modelos de controle de constitucionalidade ‘difuso-concreto’ e ‘abstrato--concentrado’, já que as características de um e de outro modelo acabam se tornando, ao final, muito semelhantes, com o fortalecimento deste último”.

26 Refere: “A partir da Reforma do Judiciário, contudo, mudanças significativas passaram a ser incor-poradas ao controle de constitucionalidade. A combinação da súmula vinculante com o instituto da repercussão geral cria uma nítida conexão entre o modelo difuso-concentrado [...]”.

27 CUNHA, Leonardo Carneiro. A função do Supremo Tribunal Federal e a força de seus precedentes: enfoque nas causas repetitivas. In: PAULSEN, Leandro (Coord.). Repercussão geral no recurso ex-traordinário: estudos em homenagem à Ministra Ellen Gracie. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 64. Inicia afirmando: “Um dos aspectos dessa mudança é a transformação do recurso extra-ordinário, que, embora instrumento de controle difuso de constitucionalidade das leis, tem servido, também, ao controle abstrato. Normalmente, relaciona-se o controle difuso ao controle concreto da constitucionalidade. São, no entanto, coisas diversas. O controle é difuso porque pode ser feito por qualquer órgão jurisdicional; ao controle difuso contrapõe-se o controle concentrado. Chama--se de controle concreto, porque feito a posteriori, à luz das peculiaridades do caso; e a ele se con-trapõe o controle abstrato, em que a inconstitucionalidade é examinada em tese, a priori. Normal-mente, o controle abstrato é feito de forma concentrada, no STF, por intermédio da ADIN, ADC ou ADPF, e o controle concreto, de forma difusa. O controle difuso é sempre incidenter tantum, pois a constitucionalidade é questão incidente, que será resolvida na fundamentação da decisão judicial; assim, a decisão a respeito da questão somente tem eficácia inter partes. O controle concentrado, no Brasil, é feito principaliter tantum, ou seja, a questão sobre a constitucionalidade da lei comõe o objeto litigioso do processo e a decisão a seu respeito ficará imune pela coisa julgada material, com eficácia erga omnes”. E finaliza: “Nada impede, porém, que o controle de constitucionalidade seja difuso, mas abstrato: a análise da constitucionalidade é feita em tese, embora por qualquer órgão judicial”.

197322, e atualmente pelo diploma processual de 201523, no que

22 “Art. 543-A. O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso ex-traordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1 Para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa. § 2 O recorrente deverá demonstrar, em preliminar do recurso, para apreciação exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a existência da repercussão geral. § 3 Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal. § 4 Se a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário. § 5 Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão inde-feridos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. § 6 O Relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. § 7 A Súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será pu-blicada no Diário Oficial e valerá como acórdão.” E: “Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo. § 1 Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definiti-vo da Corte. § 2 Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se--ão automaticamente não admitidos. § 3 Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se. § 4 Mantida a decisão e admitido o recurso, pode-rá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada. § 5 O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercus-são geral.”

23 Na lei 13.105/2015 o tema toma forma no artigo 1035: “O Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário quando a questão constitucional nele versada não tiver repercussão geral, nos termos deste artigo. § 1o Para efeito de repercussão geral, será considerada a existência ou não de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico que ultrapassem os interesses subjetivos do processo. § 2o O recorrente deverá demonstrar a existência de repercussão geral para apreciação exclusiva pelo Supremo Tribunal Federal. § 3o Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que: I - contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal; II – (Revogado); III - tenha reco-nhecido a inconstitucionalidade de tratado ou de lei federal, nos termos do art. 97 da Constituição Federal. § 4o O relator poderá admitir, na análise da repercussão geral, a manifestação de terceiros, subscrita por procurador habilitado, nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Fede-ral. § 5o Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a sus-pensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional. § 6o O interessado pode requerer, ao presidente ou ao vice-presidente do tribunal de origem, que exclua da decisão de sobrestamento e inadmita o recurso extraordinário que tenha sido interposto intempestivamente, tendo o recorrente o pra-zo de 5 (cinco) dias para manifestar-se sobre esse requerimento. § 7º Da decisão que indeferir o requerimento referido no § 6º ou que aplicar entendimento firmado em regime de repercussão geral ou em julgamento de recursos repetitivos caberá agravo interno..§ 8o Negada a repercussão geral, o presidente ou o vice-presidente do tribunal de origem negará seguimento aos recursos extraordinários sobrestados na origem que versem sobre matéria idêntica. § 9o O recurso que tiver a repercussão geral reconhecida deverá ser julgado no prazo de 1 (um) ano e terá preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus. § 10. (Re-vogado). § 11. A súmula da decisão sobre a repercussão geral constará de ata, que será publicada no diário oficial e valerá como acórdão.

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tendo em vista que é necessário que o Tribunal compreenda a discussão nos seus adequados termos para a finalidade de promover o justo e coerente desenvolvimento do direito posto.

Aqui não se está sequer ingressando na matéria vislum-brada nos artigos 1036 a 1041 do novo Código de Processo Civil brasileiro, cujo teor trabalha questões relacionadas aos jul-gamentos de recursos extraordinários e especiais repetitivos, apesar do instrumento de impugnação do recurso extraordiná-rio ser alvo deste estudo. Em um primeiro momento poderia se cogitar que poderiam ser tratados, tanto a repercussão geral como a repetição de recursos extraordinários, como institutos que poderiam dar ensejo à objetivação do controle difuso. Po-rém, merece atenção especial a referência ao teor estabelecido no artigo 1039, quando refere que “decididos os recursos afe-tados, os órgãos colegiados declararão prejudicados os demais recursos versando sobre idêntica controvérsia ou os decidirão aplicando a tese firmada”. Contudo, mais precisamente, nos in-teressa ainda o implicado parágrafo único, o qual expõe que “negada a existência de repercussão geral no recurso extraordi-nário afetado, serão considerados automaticamente inadmitidos os recursos extraordinários cujo processamento tenha sido so-brestado”, mantendo o sistema em uma lógica, qual seja, de afirmar que a repetição da matéria não quer dizer que enseja-rá inevitavelmente a repercussão geral, sendo, pois, institutos diferentes.

Um único cidadão e o “perdido” caminho da objetivação

Ainda, do julgamento reiterado sobre determinada maté-ria constitucional, o Supremo Tribunal Federal pode, por meio de ofício ou de provocação, com dois terços de seus membros, aprovar uma súmula vinculante, conforme estatui o artigo 103-A29 da Constituição Federal (1988), tendo sido introduzida esta

29 A redação integral do artigo 103-A e parágrafos é: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício

culação estrita com o controle concentrado, pois estes diferem em essência. Assim, Cunha acaba por afirmar que o controle pode ser difuso, somente em alguma medida com eventual co-notação abstrata. Noutros moldes de compreensão acerca do tema, pode-se vislumbrar a abstrativização específica do con-trole difuso quando houver a constatação de que o objeto de análise pelo Tribunal constringe-se à declaração de inconstitu-cionalidade do texto que incide no caso concreto.

O novo Código de Processo Civil brasileiro dedicou o artigo 1035 ao tema da repercussão geral (STECK; NUNES; CUNHA, 2016, p. 1378)28, diminuindo as previsões textuais so-bre o CPC/73, que tratava deste nos artigos 543-A e 543-B. Uma das diferenças mais significantes que restou positivada, em que pese sua inclinação distintiva de natureza procedimental, é que na legislação passada o recorrente deveria demonstrar a reper-cussão geral em preliminar fundamentada, conforme o artigo 543-A, §2º, do CPC/73, sendo que no CPC/2015 não existe tal previsão, uma vez que se descobriu, infelizmente de forma tar-dia para muitos jurisdicionados, que o direito discutido deve se sobrepor à forma, ainda mais quando se releva que a relação da repercussão geral, invariavelmente, se conecta às situações da vida (conformadas nas pretensões de direito material vertidas nos argumentos das partes) problematizadas em recursos desse jaez. Segundo o enunciado 224 do Fórum Permanente de Pro-cessualistas Civis, contido na Carta de Vitória de maio de 2015, “a existência de repercussão geral terá de ser demonstrada de forma fundamentada, sendo dispensável sua alegação em pre-liminar ou em tópico específico”. Ora, nada mais salutar para o sistema jurídico do que o Supremo Tribunal Federal conhecer do caso com repercussão geral se estiver minimamente fundamen-tada referida pretensão, sem qualquer reducionismo formalista,

28 Tratando um pouco do trâmite, apontam os autores (os comentários ao artigo são de Dierle Nunes, Alexandre Bahia e Flávio Quinaud Pedro): “A repercussão geral tem como pressuposto a técnica do julgamento de ‘causa-piloto’, notadamente para lidar com causas repetitivas (ou ‘seriais’) e téc-nicas de limitação: se a matéria é nova, o STF irá apreciar se ela possui ou não repercussão geral: havendo repercussão geral, a solução servirá de fundamento para todos os processos sobrestados, bem como para casos futuros sobre a mesma matéria; não havendo repercussão geral, o STF irá inadmitir o RE; então, todos os demais RE sobre a mesma matéria sobrestada serão igualmente inadmitidos, assim como futuros Recursos sobre o mesmo tema”.

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Faz-se importante relembrar, considerando o encontro dos sistemas difuso e abstrato de controle de constitucionalidade das leis, sobre o veto do Presidente da República ao inciso II, do artigo 2º32 do então Projeto de Lei n. 17, de 1999, tombado na Câmara dos Deputados pelo n º. 2.872/97, que, posteriormente, foi transformado na Lei n º. 9.882/99, a qual trata da arguição de descumprimento de preceito fundamental. O referido artigo era cristalino ao conceder à qualquer pessoa a legitimidade de ingresso com uma ação diretamente no STF caso esta fosse le-sada pelo Poder Público.

Dentre as principais razões do veto33 do Presidente da República estava a incompatibilidade com o sistema abstrato de constitucionalidade que garantia a qualquer pessoa que se sentisse lesada pelo Poder Público o acesso individual, direto e irrestrito ao STF, motivo que encontra, até hoje, críticas na dou-trina, como as realizadas por Frederico Barbosa Gomes (2008, p.

32 A redação do artigo na Lei n. 9.882/99 teria esta formatação caso não fosse vetado o inciso II: “Art. 2o Podem propor argüição de descumprimento de preceito fundamental: [...] II - qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público.

33 Esta a íntegra da razão de veto presidencial do inciso II do artigo 2º do projeto de lei da arguição de descumprimento de preceito fundamental, consubstanciada na mensagem n. 1.807, de 3 de dezembro de 1999, da subchefia dos assuntos jurídicos da Presidência da República encaminhada ao Presidente do Senado Federal: “A disposição insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal sob a alegação de descumprimento de preceito fundamen-tal por ‘qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público’. A admissão de um acesso individual e irrestrito é incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos estatais – modalidade em que se insere o instituto regulado pelo projeto de lei sob exame. A inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apre-ciação pelo Supremo Tribunal Federal, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das argüições propostas. Dúvida não há de que a viabilidade funcional do Supremo Tribunal Federal consubstancia um objetivo ou princípio implícito da ordem constitucional, para cuja máxima eficácia devem zelar os demais poderes e as normas infraconstitucionais. De resto, o amplo rol de entes legitimados para a promoção do controle abstrato de normas inscrito no art. 103 da Consti-tuição Federal assegura a veiculação e a seleção qualificada das questões constitucionais de maior relevância e consistência, atuando como verdadeiros agentes de representação social e de assis-tência à cidadania. Cabe igualmente ao Procurador-Geral da República, em sua função precípua de Advogado da Constituição, a formalização das questões constitucionais carentes de decisão e socialmente relevantes. Afigura-se correto supor, portanto, que a existência de uma pluralidade de entes social e juridicamente legitimados para a promoção de controle de constitucionalidade – sem prejuízo do acesso individual ao controle difuso – torna desnecessário e pouco eficiente admitir-se o excesso de feitos a processar e julgar certamente decorrentes de um acesso irrestrito e individual ao Supremo Tribunal Federal. Na medida em que se multiplicam os feitos a examinar sem que se assegure sua relevância e transcendência social, o comprometimento adicional da capacidade funcional do Supremo Tribunal Federal constitui inequívoca ofensa ao interesse público. Impõe-se, portanto, seja vetada a disposição em comento”.

modalidade sumular pela mesma EC n. 45/2004, posteriormente regulamentada pela Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a edição, revisão e cancelamento da súmula. É por essa razão que Schäfer (2012, p. 108-109)30 entende existir a aproximação do direito brasileiro ao direito estadunidense.

Soma-se às lições sobre o encontro dos modelos de con-trole de constitucionalidade de leis outro fato que faria com que, de alguma forma, o controle difuso fosse aceito nesta tese: o fato de que se defende que tal modelo é o mais democrático entre eles, o que é lembrado por Mitidiero (2005, p. 26-27)31, ao expor que este controle está legitimado pela democracia par-ticipativa, própria do Estado Contemporâneo, sendo que, sem que houvesse o controle difuso, o próprio Estado Constitucional brasileiro estaria ameaçado.

ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração públi-ca direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. § 2º Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade. § 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá recla-mação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso”.

30 Refere: “É importante ressaltar também que a Jurisdição Constitucional brasileira aproximou-se do modelo das Cortes Constitucionais, como o alemão. A introdução das Súmulas Vinculantes, a sua eficácia erga omnes e o seu Efeito Vinculante, com precedente reforçado, por outro lado, aproxi-mam-se da Common Law, especialmente o modelo norte-americano, que possui uma Constituição escrita e uma Suprema Corte influente. De certa forma, volta-se ao início com a atuação do nosso Supremo, inspirado no modelo norte-americano, e com uma restrição mais significativa da atuação do Senado Federal no controle incidental e difuso, ao possibilitar que seja possível a eficácia geral, independentemente da atuação deste último, embora se exija uma reiteração de decisões e não apenas uma declaração, que pode ser o caso de atuação do Senado e que pode não atuar devido ao seu poder discricionário”.

31 Inicia: “Cumpre argumentar, de postremeiro, que o controle difuso de constitucionalidade é o mais democrático, sendo, dessarte, o mais impregnado de legitimidade. Deveras, ao lado da democracia representativa, ideal próprio do Estado Moderno, ganha força a democracia participativa, própria do Estado Contemporâneo, verdadeiro direito de quarta dimensão, que incentiva os cidadãos a participarem diretamente no manejo de poder do Estdao, dando legitimidade à normatividade con-truída pela via hermenêutica”. E finaliza: “Com efeito, sem o controle difuso de constitucionalidade dos atos estatais, o Estdao Constitucional brasileiro estaria fortemente ameaçado, o que impõe o seu reconhecimento como algo inerente à nossa tradição cultural, sem embargo das respeitáveis opiniões em contrário”.

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(HECK, 2008). A ideia se refere a uma só forma de controle, o que não é de se concordar (FABRÍCIO, 2012, p. 28)39, mas apon-ta, para dar maior sustentação à tese, para o modelo difuso com efeito vinculante, o que fecha com o fato que o posicionamento do recurso extraordinário com repercussão geral tem uma face-ta de processo objetivo, e que pode ser exemplificado com o caso recentemente julgado pelo Supremo Tribunal Federal da obrigatoriedade do exame da Ordem dos Advogados do Bra-sil40 o qual, em sede de recurso extraordinário, sedimentou o posicionamento que vale enquanto exigência geral para todos os bacharéis em direito.

Considerações finais

Não precisamos ir longe demais em nosso pensamento para ter a certeza de que o STF brasileiro julga em demasia, e assim o fazendo está colocando em xeque suas próprias deci-sões, pois quem tem muito a julgar pode, eventualmente, ter de decidir de qualquer forma ou mediante critérios temerários. Para se ter uma ideia, enquanto o Supremo Tribunal Federal

39 Defende o autor, em sentido contrário, pela permanência dos dois controles, por se complemen-tarem: “Postas tais premissas, já não caberia objetar ao recurso extraordinário, instrumento por excelência do controle difuso, a eventual disparidade de tratamento jurídico entre destinatários da mesma norma. A atribuição de eficácia erga omnes ao julgado proferido em controle indireto soluciona a possível dúvida. Restaria, quiça, uma outra ordem de cogitação: certo que qualquer medida no rumo dessas ponderações implicaria alteração de normas constitucionais, indagar-se-ia se, em tal contexto, caberia afastar o recurso extraordinário do sistema. O peso da tradição depõe em contrário, e a particular relevância do controle de constitucionalidade (insuficiente, por si só, a forma concentrada) também aponta a necessidade de manter-se o instituto. De outro modo, seria imprescindível alargar-se consideravelmente a legitimação para a ação direta, o que poderia originar problemas talvez mais sérios do que os tratados aqui. Tudo indica, pois, a conveniência de preservar o recurso em foco, assim como evidente se faz a necessidade inadiável de ampliar o número de julgadores no Pretório Exceleso, de modo a superar a inviabilidade material em que se acha a Corte de responder à demanda”.

40 Em recente julgamento sobre a constitucionalidade do exame da Ordem dos Advogados do Brasil, no dia 27 de outubro de 2011, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se pela sua constituciona-lidade, em notícia assim veiculada: “A exigência de aprovação prévia em exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) para que bacharéis em direito possam exercer a advocacia foi conside-rada constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Por unanimidade, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE 603583) que questionava a obrigatoriedade do exame. Como o recurso teve repercussão geral reconhecida, a decisão nesse processo será aplica-da a todos os demais que tenham pedido idêntico”.

376)34, Lenio Luiz Streck (2004, p. 813)35 e André Del Negri (2011, p. 111)36. Em que pese naquela época haver dúvidas quanto ao encontro dos sistemas difuso e abstrato, hoje o veto, por esta razão, seria insustentável, tendo em vista que a repercussão ge-ral trouxe a objetivação do sistema difuso, fazendo com que qualquer pessoa possa ir ao Supremo Tribunal Federal, via inter-posição de recurso extraordinário, caso apresente repercussão geral, com uma decisão que pode ser vinculativa, fazendo com que possa ser defendido o retorno dessa possibilidade via pro-cesso legislativo.

Luis Afonso Heck (2012)37, no prefácio da obra “O Con-trole de Constitucionalidade: Direito Americano, Alemão e Brasileiro”, de Eduardo Schenato Piñero, aponta que, para que a proteção da Constituição seja feita de uma maneira mais efe-tiva, deve existir um modelo difuso dotado de stare decisis, ou um modelo abstrato com competência para a rejeição 38 da norma antijurídica a ser realizado por um tribunal constitucional

34 Refere: “Essa opção, por óbvio, acaba por trazer sérios prejuízos à legitimidade democrática da ordem jurídica nacional, na medida em que, passo a passo, exclui-se o indivíduo da sua (re)constru-ção, transformando-o em mero expectador. Por isso, ante essa tendência centralizadora adotada pela ordem constitucional vigente, seria de extrema utilidade que a ADPF se mostrasse como um instrumento de acesso do cidadão à mais alta Corte (como, aliás, era o anseio da doutrina nacional), funcionando como um mecanismo de defesa de seus direitos constitucionalmente assegurados, independentemente de representantes, pois assim não se correria o risco de deixar este alheio a tudo isso, nem se comprometeria, da mesma forma, a efetivação desse novo paradigma”.

35 “De qualquer modo que se argumente, é absolutamente relevante que se consiga chegar a um resultado que coloque o cidadão de volta ao cenário da legitimidade ativa para propor a argüição de descumprimento de preceito fundamental. Afinal, parace que era esse o desejo do constituinte, ao colocar a ADPF como mecanismo para a preservação dos direitos fundamentais, não como algo que distanciasse o cidadão do acesso à justiça, mas que o pusesse diretamente em contato com a justiça constitucional, encarregada de mediar os conflitos no Estado Democrático de Direito”.

36 NEGRI, André Del. Processo constitucional e decisão interna corporis. Belo Horizonte: Fórum, 2011. p. 111. Refere: “Ao imaginar que seria possível qualquer pessoa ameaçada de lesão exercitar análise de afronta a preceito fundamental por intermédio do art. 2º, inciso II, da Lei n. 9.882/99, tratou-se a administração-governativa de vedar o exercício pleno do direito-de-ação já assegurado na Constituição brasileira (art. 5º, XXXV, CB/88)”.

37 Refere Luis Afonso Heck no prefácio: “Uma olhada para a proteção da constituição indica uma alter-nativa: ou um modelo difuso dotado com stare decisis ou um modelo concentrado, ou conjugado, com competência centralizada para a rejeição. Rejeição do ato antijurídico com seus efeitos pelo tribunal constitucional, jurídica, portanto”.

38 Para entender melhor o que entende o autor, recomenda-se a leitura da obra, em especial o que vem a ser a teoria da nulificabilidade das leis, entre as páginas 44 a 70. Também recomenda-se para compreender melhor o que expõe Luís Afonso Heck, o autor no qual se baseia: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de: João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 306-308.

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A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário como forma de objetivação do

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julgou perto de 85 mil casos em 2013, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou aproximadamente de 80 casos (BRÍGIDO, 2014). Como uma sociedade pode esperar do guardião do tex-to constitucional, a quem compete efetivar as normas da Carta Magna num regime de equilíbrio, coerência, isonomia de seus julgamentos e a capacidade de concretizar uma hermenêutica responsável baseando-se nessas estatísticas?

Para efeito de reajuste desses números foram criados, en-tão, alguns institutos para dar aos Tribunais de vértice a missão de sedimentar o Direito constitucional e infraconstitucional que devem orientar a sociedade, tornando-os Cortes viáveis para tanto. No âmbito do STF, o instituto que está em vigor desde a Emenda Constitucional n. 45 de 2004 é o da repercussão geral no recurso extraordinário, posteriormente regulamentado pelo Código de Processo Civil de 1973, pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e mais recentemente pela nova legis-lação processual civil brasileira, em vigor desde 18 de março de 2016.

O que pode ocorrer, e de fato ocorre, é que há uma anti-patia com o instituto da repercussão geral, uma vez que esta é mal compreendida e considerada a vilã que encerra com o di-reito de milhões de jurisdicionados mediante uma única decisão representativa e modelar. Este é um desenlace que realmente pode acontecer, razão pela qual há instrumentos constitucionais e infraconstitucionais que alicerçam as bases para que, de fato, não ocorra um julgamento político em matéria de repercussão geral, assim prejudicando quem eventualmente deveria ter seu direito resguardado por uma fundamentação jurídica viável nou-tro sentido. Quanto menos processos ou recursos estiverem sendo julgados pelo Supremo Tribunal Federal, pelo menos em tese, melhor serão seus julgamentos, sua fundamentação e o seu controle da sociedade frente ao papel, cada vez mais signi-ficativo, do Poder Judiciário.

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A fenomenologia do concreto-abstrato. Um exame situacional sobre a repercussão geral no Recurso Extraordinário como forma de objetivação do

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Marco Félix Jobim e Mauricio Martins Reis

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A JUSPOSITIVAÇÃO DO AMBIENTE: ALGUMAS CONSEQUÊNCIAS

Alexandre Sikinowski Saltz1

1 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1989). Promotor de Justiça da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre. Mestrando na Escola Superior do Ministério Público. Email: [email protected].

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Citações sem referência completa:

Zero Hora, edição de 12 de abril de 2012, p. 41

Zero Hora, edição de 12 de abril de 2012, p. 8

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Abstract

The article discusses the evolution of the awareness of the need to protect the environment to its recognition as a fun-damental right. From the consideration of facts that initiated situations of environmental crisis, analyzes the emergence of the State Environmental Law and constitutionalization of envi-ronmental protection in the planning of different countries. In Brazil, it addresses the environmental issue from the Federal Constitution of 1988 and the consequences of environmental protection in legal relations.

Key words: Environment. Human Right. Fundamental ri-ght. Consequences.

Resumo

O artigo aborda a evolução da conscientização da neces-sidade de proteção do meio ambiente até seu reconhecimento como direito fundamental. A partir da ponderação sobre fa-tos que desencadearam situações de crise ambiental, este analisa o surgimento do Estado de Direito Ambiental e a cons-titucionalização da proteção do ambiente no ordenamento de diferentes países. No Brasil, aborda a questão ambiental a partir da Constituição Federal de 1988 e as consequências dessa tute-la ambiental nas relações jurídicas.

Palavras-chave: Meio ambiente. Direito humano. Direito fundamental. Consequências.

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que, em razão dessa radical igualdade, ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais. (1999, p. 1).

Nessa linha, a evolução do conceito de dignidade – asso-ciado a descobertas científicas, invenções técnicas e episódios de sofrimentos físicos e morais – impeliu a edição dos primeiros textos garantidores dos direitos humanos. Surgiram a Magna Carta, a Lei do Habeas Corpus, o Bill of Rights, a Declaração do Povo de Virgínia e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Embora ontologicamente distintas2, as declarações americana e francesa realçaram o caráter universal dos direitos humanos.

A universalização do reconhecimento dos direitos hu-manos, por sua vez, inaugura o debate acerca da necessidade da sua fundamentação, notadamente, quando Constituições – como a mexicana de 1917 e a alemã de 1919 – positivam tais direitos, incorporando-os aos ordenamentos locais.

Sendo universais, direitos de todos e oponíveis contra to-dos, vale lembrar, como feito por Alexy (2014, p. 212), que “os direitos humanos não protegem todas as fontes e condições ima-gináveis do bem-estar, mas somente interesses e necessidades fundamentais.” Mesmo assim, estes são prioritários e possuem conteúdo abstrato e validade moral que permite que sejam fun-damentados racionalmente, mas não de modo definitivo3.

Silva (2002, p. 100) destaca a “vocação para a proteção e continuidade da vida humana” que tais direitos encerram, enxergando-os como “escudo de proteção da vulnerabilidade humana às intempéries ínsitas da existência humana ou pro-duzidas pelos próprios seres humanos”. Porém, vem de Nino

2 O texto americano não faz qualquer referência à solidariedade, o que evidencia um “espírito em-presarial” que levou o país a tornar-se a maior nação capitalista do mundo. O texto francês almeja suprimir desigualdades individuais e coletivas.

3 Não se desconhece o grande debate sobre a fundamentação dos direitos humanos. Alexy (2014, p. 214-225) apresenta oito fundamentações possíveis para o tema: a) religiosa, b) biológica, c) intuitiva, d) consensual, e) instrumental, f) cultural, g) explicativa, h) existencial. Já Silva (2002, p. 105), falando da “pertinência do esforço de fundamentação”, refere que “um simples passar de olhos na bibliografia existente sobre seu conceito e fundamentação é suficiente para desanimar a quem pretenda formular contribuições originais a respeito.”, para concluir que duas são possíveis: uma jusnaturalista e outra ética.

O presente estudo tem como tema a juspositivação do am-biente e atual postura do homem em relação aos cuidados

ambientais como consequência da evolução da sociedade e da universalização do reconhecimento dos direitos humanos. Este assunto é abordado a partir de uma observação sobre o surgi-mento dos direitos humanos, sobre seu reconhecimento a nível mundial e sobre a positivação, ao longo do tempo, no orde-namento de diferentes países, trazendo uma reflexão sobre a conscientização social quanto à necessidade de proteção do meio ambiente até o surgimento do Estado Ambiental com a constitucionalização da proteção do ambiente. Especificamente no Brasil, analisa-se a edição da Constituição Federal de 1988 e as consequências desta na questão ambiental.

A partir da internalização da proteção ambiental, aborda-se a ideia da sociedade de risco, inserida em um novo modelo de Estado, o Estado de Direito Ambiental e seus reflexos na conscientização social sobre a importância da preservação do meio ambiente como exercício da cidadania. Dessa forma, se vê o surgimento de um novo direito fundamental, o direito ao meio ambiente saudável, que traz consequências ao universo jurídico, em especial, às decisões dos tribunais superiores.

O direito humano ao ambiente como resposta à crise ambiental. As situações

de “colapso”, a fundamentação e o surgimento de um do novo direito no

cenário internacional.

A história dos direitos humanos espelha o desenvolvimen-to da sociedade. Seja pela filosofia, pela religião ou pela ciência, sempre preponderou-se a ideia de que existem posições garanti-doras da dignidade das pessoas. Conforme observa Comparato,

[...] todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferen-ças biológicas e culturais que os distinguem entre si, me-recem igual respeito [...]. É o reconhecimento universal de

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Reino Unido, França e Bélgica; o vazamento de dioxinas em Se-veso, Itália, 1976; o acidente nuclear na usina Three Mile lsland, Pensilvânia, EUA, 1979; as 40 toneladas de gases tóxicos que mataram milhares de pessoas e contaminaram outras tantas em Bhopal, Índia, 1984; o pior acidente nuclear até hoje registrado, ocorrido em Chernobyl, Ucrânia, em 1986; são alguns marcos referenciais que influenciaram a formação de uma consciên-cia ambiental mundial. Além desses, também se pode falar no aquecimento global, no desmatamento irrefreado, assim como em ocorrências de contaminação de águas, solo e ar, estresse hídrico, adensamentos urbanos em áreas impróprias e sem qual-quer infraestrutura e na deposição indevida de resíduos.

Não por acaso, o Clube de Roma, entidade criada em 1968, integrada por políticos, cientistas e industriais, passou a influenciar os tomadores de decisões. Em 1972, o Clube publi-cou obra intitulada The Limits to Growth, na qual são abordadas questões relacionadas à industrialização acelerada, rápido cres-cimento demográfico, escassez de alimentos, esgotamento de recursos naturais e deterioração do ambiente, aspectos estes fundamentais para a edição de um documento internacional que reconheceu ao meio ambiente o status de direito humano, con-clusão advinda da Conferência de Estocolmo7.

A Declaração de Estocolmo diz que o homem, diante da aceleração da ciência e da tecnologia, assumiu posição que lhe permite transformar o ambiente em uma escala sem preceden-tes. Comenta, ainda, que proteger o ambiente é um “desejo urgente” e “um dever de todos os governos”, observando que as provas dos danos e da poluição nos cercam e são eviden-tes. Esta considera que o momento é de atenção e não admite indiferença ou ignorância, ressaltando que proteger e preser-var o ambiente para as presentes e futuras gerações é “meta imperiosa da sociedade”. O desenvolvimento equitativo exige esforço comum e responsabilidades solidárias dos particulares e

7 Aliás, a gênese desta, também conhecida como Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Am-biente Humano, foi a Resolução nº 2398, editada na Assembleia Geral das Nações Unidas em 1968, colocando, pela vez primeira, a preocupação com o ambiente na agenda comum internacional.

(1989, p. 2) a interessante afirmação de que “o antídoto que os homens inventaram para neutralizar essa fonte de desgraças é precisamente a ideia de direitos humanos”, e que o singelo fato de ser um indivíduo é “suficiente para gozar de certos bens que são indispensáveis para que cada um eleja seu próprio destino com independência do arbítrio dos outros”.

Se a grande finalidade dos direitos humanos é a proteção da dignidade da pessoa humana, nas dimensões individual, co-letiva e difusa, tal sistema de proteção não poderia se manter insensível à crise ambiental assim retratada por Medeiros:

É um período de crises, uma crise ecológica que na realidade representa uma crise do homem com a humanidade. Ost pondera, posição com a qual compartilhamos, que é uma crise de paradigma, a qual denomina a crise do vínculo e a crise do limite. ‘Crise do vínculo: já não conseguimos dis-cernir o que nos liga ao animal, ao que tem vida, à natureza; a crise do limite: já não conseguimos discernir o que dele nos distingue’. (2004, p. 19).

Dessa forma, observa-se que muitas são as razões da tal crise. O desenvolvimento das ciências proporcionou a utilização quase ilimitada de recursos ambientais4 e foi importante indutor da degradação5. Como destacado por Azevedo (2000), recor-dando o ensinamento de Karl Jaspers, a arrogância da ciência fez os cientistas se acreditarem capazes de resolver todos os problemas, atuais e futuros, sem qualquer percepção de conjun-to, desconhecendo seus limites.

O resultado da ousada soberba foram situações de co-lapso6 e a ocorrência de catástrofes que geraram e, ainda, geram efeitos avassaladores e irreversíveis. A contaminação por mercúrio da Baia de Minamata, Japão, identificada em 1956; o naufrágio do petroleiro Torrey Canion, em 1967, causando o derramamento de 119 mil toneladas de óleo nas costas do

4 O conceito de recursos ambientais é o inserido no artigo 3º, V, da Lei nº 6.938/81. 5 O conceito de degradação consta no artigo 3º, II, Lei nº 6.938/81.6 Colapso – como as sociedades escolhem o sucesso ou o fracasso é o título de interessantíssi-

mo livro, escrito por Diamond, onde avalia algumas civilizações que desapareceram em função do modelo predatório de utilização dos recursos naturais, o chamado “eco-suicídio”. Como exemplos invoca os polinésios moradores da Ilha da Páscoa, os Maias da América do Sul e os Vikings.

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A “sociedade de risco” e a internalização da proteção ambiental. A cidadania

ambiental e a formulação de um novo modelo de estado, o estado de

direito ambiental. O surgimento de um novo direito fundamental. Algumas

consequências dessa nova normatividade

Vale recordar, como fez Azevedo (2015, p. 21), que o dis-curso jurídico deve estar conectado às questões sociais. Essa inter-relação também foi anunciada por Reale quando concebeu a chamada “Teoria Tridimensional do Direito”, pela qual trou-xe ao fenômeno jurídico outros elementos: o fato jurídico e o valor, superando o olhar estritamente positivista. O direito não é a simples letra da lei, é ciência em constante movimentação e evolução, “[...] é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo” (REALE, 2000, p. 574). Por tudo isso, o direito, para acompanhar o dinamismo social, não se poderia furtar de promover a tutela do ambiente.

O surgimento do ambientalismo também ganhou refor-ço a partir da obra de Carson (1962, p. 12-13), intitulada Silent Spring, que discute o papel das ciências, os limites do progresso tecnológico, as relações entre os seres e a natureza e as respon-sabilidades política e jurídica associadas aos temas ambientais. A autora também lembrava que se algumas constituições ainda não tratavam do tema era porque os antepassados não imagina-vam tal ordem de problemas quando da edição daquelas.

Economistas entraram no debate. Sen, ganhador do Prê-mio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel de 1998, lembra que “existem problemas novos convivendo com os antigos – a persistência da pobreza e de necessidades não satisfeitas, fomes coletivas [...] e ameaças cada vez mais graves

dos Estados, como forma de garantir a posteridade. E, de modo inovador, a Declaração de Estocolmo proclama que:

O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualda-de e ao desfrute de condições de vida adequadas em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente para as gerações presentes e futuras. (Princípio 1, 1972).

O grande mérito da Declaração de Estocolmo, destacado por Capella foi

[...] a equiparação do meio ambiente à liberdade e à igual-dade, com os três direitos fundamentais de todo o ser hu-mano; a consideração de direito inalienável no sentido de que não cabe uma absoluta disposição sobre o mesmo e que a sua titularidade comporta deveres; e a atenção às gerações, como beneficiárias de tal direito. (apud GAVIÃO FILHO, 2005, p. 22).

Pela primeira vez um documento internacional proclama o direito fundamental ao ambiente equilibrado, e as considera-ções nele insertas trazem fundamentação jusnaturalista e ética suficientes para o reconhecimento, sem qualquer dúvida ou ob-jeção, desse novo direito humano de cunho coletivo.

A Declaração não ficou somente nisso. A gravidade do assunto, o modelo desenvolvimentista vigente que amplia a passos largos o rol dos “marginalizados sociais” (AZEVEDO, 2000, p.116), e a relevância do bem tutelado para o exercício do direito à vida determinaram que outros textos também se debruçassem sobre o tema. Dentre eles, consagrando defini-tivamente o direito, destacam-se a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (1973), a Convenção Relativa à Avaliação dos Impactos Ambientais num Contexto Transfronteiras (1991), a Declaração Universal dos Direitos da Água (1992), o Protocolo de Quioto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (1997) e o Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança (2000) (SARLET; FENSTER-SEIFER, 2012, p. 28).

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ecológico, de onde foi surgindo uma legislação ambiental em todos os países. (1994, p. 13-14).

Para tal descortino, também, foi importante o reconheci-mento de que se vive em uma “sociedade de risco”. Expressão utilizada por Ulrich Beck, trazida da sociologia, que sintetiza a ideia de que o modelo econômico está sujeito a riscos de varia-das origens e que as instituições e a sociedade têm dificuldades de enfrentá-los11.

O primeiro marco dessa nova modalidade de tutela foi a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), que deu novas cores à relação entre ambiente e direito. Os bens ambientais passaram a ser vistos conjuntamente, sendo consi-derados objetos de proteção e, dentro da ideia de um sistema, previram-se instrumentos modernos e eficientes para a sua efe-tivação. Criou-se a responsabilidade civil objetiva do poluidor e, pelo Ministério Público, foi deferida a legitimação para a prote-ção do ambiente.

Fixados os marcos da proteção, ainda hoje vigentes, evolutivamente, o legislador constituinte de 1988, seguindo irre-versível tendência mundial, mais do que dar guarida à proteção e à tutela do meio ambiente, criou um novo modelo de Esta-do. Este, irrepreensivelmente, elucidado por Herman Benjamin ao prefaciar a obra de Sarlet e Fensterseifer como “o Estado Constitucional já não pode ser compreendido senão como, para além de um Estado Democrático e Social de Direito, um Estado Ambiental, que, numa fórmula-síntese, aceita o rótulo de Estado Socioambiental” (2012, p. 9).

Os “contrastes sociais” 12 levaram ao descrédito e à redis-cussão dos modelos de Estado até então conhecidos, porque não cumpriram com as expectativas neles depositadas. A rea-lidade, especialmente a crise ambiental, trouxe a atualidade e emprestou concretude ao ensinamento de Habermas (1997, p. 285). O cidadão foi desafiado a assumir um novo papel no

11 Sobre o tópico, sugere-se a leitura de Leite e Ayala (2002).12 A expressão é de Medeiros (2004, p. 15), para explicar que quanto mais a ciência se desenvolve e

maiores são as descobertas maior é o distanciamento do homem com o planeta, com qual “perde intimidade”.

ao nosso meio ambiente e à sustentabilidade de nossa vida eco-nômica e social” (SEN, 2000, p. 9).

E, no Brasil, sinala-se que problemas ambientais comuns aos demais países ganham novos contornos, mais graves, deri-vados da precariedade da infraestrutura, da miséria, da falta de educação e da necessidade de garantir o acesso de milhões de pessoas excluídas – alguns, até, refugiados ambientais – a bens e serviços hoje inacessíveis, sem penalizar o ambiente.

Assim é que a onda protetiva inaugurada com a Declara-ção de Estocolmo “tingiu de verde”8 o direito brasileiro que, até então, dispunha de leis que tratavam dos recursos naturais sob o enfoque utilitarista,9 vale dizer, dispondo das condições para seu uso e fruição. Foi necessário revisitar o ordenamento a partir dos marcos interpretativos sugeridos pela Declaração de Estocolmo e por eventos que aguçaram a consciência ambiental da sociedade10 para que fosse desenvolvida uma nova ordem jurídico-ambiental.

A necessidade de proteção jurídica do ambiente foi, ma-gistralmente, explicada por Silva:

A necessidade de proteção jurídica do meio ambiente des-pertou a consciência ambientalista ou a consciência ecoló-gica por toda parte, até com certo exagero, mas exage-ro produtivo, porque chamou a atenção das autoridades públicas para o problema da degradação e destruição do meio ambiente, natural e cultural de forma sufocante. Daí proveio a necessidade de proteção jurídica do meio am-biente, com o combate pela lei de todas as formas de per-turbação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio

8 Expressão cunhada por Silva (2002) para explicar a jusfundamentação ambiental ocorrida no Direito Português a partir da vigência da Constituição de 1976.

9 Nesta linha, o Decreto nº 24.643/1934, que Decreta o Código de Águas; a Lei nº 4771/1965, Código Florestal na sua versão originária; a Lei nº 5.197/1967, conhecido como “Código de Caça”, que Dispõe sobre a proteção da fauna e dá outras providências; e o Decreto-Lei nº 227/1967, Código de Minas.

10 No Brasil, destacam-se dois fatos que catapultaram o desenvolvimento dessa consciência. Em nível nacional, a poluição em Cubatão, cidade que foi considerada, na década de 70, a mais poluída do mundo. No Rio Grande do Sul, em fevereiro de 1975, a atuação de Carlos Alberto Dayrell, estu-dante de agronomia da UFRGS que, para impedir o corte de árvores que cederiam à construção do Viaduto Imperatriz Leopoldina, subiu em uma acaciatipa, nela permanecendo até obter a confirma-ção de que o vegetal não mais seria suprimido.

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medida em que podem simultaneamente ser invocados contra o Estado e exigidos deste; mas, acima de tudo, (e aqui reside a sua característica essencial), eles só podem ser realizados por meio de esforços conjuntos de todos os atores da cena social: o indivíduo, o Estado, corporações públicas e privadas e a comunidade internacional. (VASAK apud MEDEIROS, 2004, p. 37-38).

E é nessa dimensão que o direito ao meio ambiente eco-logicamente equilibrado foi inscrito na Constituição. A nova ordem, como afirmam Sarlet e Fensterseifer, conferiu “dupla funcionalidade” à proteção ambiental, que assumiu “[...] tanto a forma de um objetivo e tarefa quanto de um direito (e de-ver) fundamental do indivíduo e da coletividade, implicando um complexo de direitos e deveres fundamentais de cunho ecológi-co” (2011, p. 13). Surge, então, a obrigação do Estado de prover medidas legislativas e administrativas que garantam adequada proteção ao bem protegido.

A importância que o tema assume nos dias de hoje, es-pecialmente pelo status jusfundamental do tema, redundou na edição de mais de trinta mil normas de cunho urbano-ambiental, que, nas palavras de Gomes, criou verdadeira situação de “obe-sidade normativa” (2012, p. 19). Ao lado da expressiva legislação ambiental, também merece relevo a existência de um conjunto de princípios15 sobre o tema, fortalecidos pelo reconhecimento da sua função normativa.16

15 Os princípios de direito ambiental não serão aqui tratados. Porém, para os que desejarem aprofun-dar o debate, sugere-se a leitura de SAMPAIO, J. A. L.; WOLD, C.; NARDY, A. Princípios de Direito Ambiental na Dimensão Internacional e Comparada. Belo Horizonte: Del Rey, 2003; VARELLA, M. D.; PLATIAU, A. F. B. (Org.). Princípio da Precaução. Belo Horizonte: Del Rey, 2004; PRIEUR, M. Droit de l’envirinnement. 5. ed. Paris: Dalloz, 2004; MACHADO, P. A. L. 9 ed. São Paulo: Ma-lheiros Editores, 2000; RODRIGUES, M. A. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005 e MARCHESAN, A. M. M.; STEIGLEDER, A. M.; CAPPELLI, S. Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004. Da mesma forma, sobre a aplicação dos princípios de direito ambiental no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sugere-se a leitura do informativo daquela Corte, disponível em <http://www.tjto.jus.br/index.php/listagem-noticias/653-principios-de-interpretacao-ajudam-o--stj-a-fundamentar-decisoes-na-area-ambiental>.

16 Inicialmente, na chamada “fase jusnaturalista”, os princípios eram abstratos, sem qualquer normati-vidade. Evolutivamente, na chamada “fase das codificações”, foi-lhes concedida limitada normativi-dade, como se vê na leitura do artigo 4º da Lei de Introdução ao Direito Brasileiro. Até que a “fase pós-positivista”, também conhecida como a “fase das constituições”, trouxe os princípios para o corpo das Cartas Políticas e, de consequência, reconhece-lhes normatividade. Como precursores desse reconhecimento destacamos Bonavides (2000, p. 237), Alexy (2016, p. 37) e Dworkin (1999, p. 147).

mundo, especialmente nas relações com a sociedade e com o Es-tado. Desenvolveu-se, assim, nas palavras do filósofo, um novo modelo de cidadania para além da singela “pertença a uma de-terminada organização estatal, mas também para caracterizar direitos e deveres do cidadão”. É a cidadania ambiental, base e pressuposto do novo modelo de Estado que busca compatibi-lizar a realização progressiva dos direitos sociais, econômicos e culturais com equidade intergeracional.

O novo modelo legitimou a matriz ambiental constitucional. A teoria dos direitos fundamentais foi modelada pelas relações sociais e suas necessidades, derivando, deste modo, a referên-cia doutrinária de que existem gerações desses direitos13. Com a teoria constitucional “esverdeada”, como advoga Canotilho (2007, p. 5), o desenvolvimento de um direito constitucional ambiental14 permite se falar, até mesmo, da força normativa da Constituição Ambiental. Este novo figurino constitucional da proteção ao ambiente, dentro do critério de cumulatividade de direitos fundamentais, gerou-lhe o reconhecimento de ser um direito de terceira geração.

Karel Vasak, jurista Tcheco-Francês, a quem se atribui a criação da tríplice divisão entre as gerações de direitos fun-damentais, em ensaio chamado For the Third Generation of Humans Rights: The Rights of Solidarity, em 1979, foi o primeiro autor a falar em direitos de terceira geração. Referindo-se aos novos direitos, disse

[...] eles são novos nas aspirações que expressam, são no-vos do ponto de vista dos direitos humanos na medida em que eles objetivam inserir a dimensão humana em áreas onde ela tem sido frequentemente esquecida, tendo sido deixadas para o Estado ou Estados [...] Eles são novos na

13 A utilização da expressão “gerações” é para marcar as transformações de conteúdo, titularidade, eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, num caráter de cumulatividade e complementari-dade, não de alternância ou substituição.

14 A obra pioneira sobre o tema foi de Silva (2004, p. 26) onde já prenunciava que “A Constituição de 1988 foi, portanto, a primeira a tratar deliberadamente da questão ambiental. Pode-se dizer que ela é uma Constituição eminentemente ambientalista. Assumiu o tratamento da matéria em termos amplos e modernos. Traz um capítulo específico sobre meio ambiente, inserido no título da ordem social (Cap. VI do Tít. VIII). Mas a questão permeia todo o seu texto, correlacionada com os temas fundamentais da ordem constitucional.”

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Mas, conforme questiona Gavião Filho (2005, p. 26), qual a consequência dessa fundamentalidade? Sem a pretensão de responder à indagação de Gavião Filho, busca-se, brevemente, identificar algumas consequências práticas desse reconheci-mento, estas sendo sumariamente analisadas e sem que haja presunção de completude, a partir de orientações doutriná-rias e da manifestação dos tribunais na busca da efetivação do direito19.

A primeira consequência é a de que a proteção ao meio am-biente é um pressuposto para a realização da dignidade da pessoa humana. A doutrina, afinada com a interpretação sistemática da Constituição Federal, tem por ponto de partida o fundamento anunciado no artigo 1º, III, da Carta Política. Esta aponta que há necessidade de garantir um padrão de qualidade e de segurança ambiental mínimos, e que a proteção da dignidade ambiental al-cança não apenas a geração atual, senão também as futuras, como expressamente consigna o artigo 225, caput, da Constituição Fe-deral. Do mesmo modo não limita tal tutela apenas à vida humana, como registra o § 1º, inciso VII do já citado artigo 225, assim como, realmente, não se pode pensar numa vida digna sem a realização do que alguns intitulam de “mínimo existencial ecológico”. 20

Lembrando que a dignidade da pessoa humana é uma cláusula pétrea e uma “das mais belas e justas garantias cons-titucionais”, apenas como um dos muitos exemplos possíveis, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que é vedado ao admi-nistrador interromper o serviço de coleta de resíduos sólidos a pretexto de não possuir recursos orçamentários bastantes para tanto (STJ, REsp 575998/MG, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgamento em 07/10/2004, DJ 16.11.2004, p. 191).

19 Outras consequências, além das aqui abordadas, constam em Saltz (2013, p. 115)20 Sobre a efetivação do “mínimo existencial ecológico” recomenda-se a leitura de Molinaro (2007,

p. 110-120). Também, já foi destacado anteriormente, mas vale aqui recordar, que o STJ reconhece e aplica o “Princípio do Mínimo Existencial Ecológico” na percepção de que “[...] por trás da ga-rantia constitucional do mínimo existencial, subjaz a ideia de que a dignidade da pessoa humana está intrinsecamente relacionada à qualidade ambiental. Ao conferir dimensão ecológica ao núcleo normativo, assenta a premissa de que não existe patamar mínimo de bem-estar sem respeito ao direito fundamental do meio ambiente sadio.”

Firmada a jusfundamentalidade - formal e material17 - do ambiente, criando “um direito fundamental completo ou como um todo” (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 46) 18, porque, detentor de feições defensivas e prestacionais, coube ao Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer que efetivamente trata-se de direito de terceira geração. Desse modo, fê-lo:

a) no julgamento do Mandado de Segurança nº 22164/SP, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgamento em 30/10/1995, DJ de 17/11/1995, p. 39206;

b) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4029/AM, Relator Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, julgamento em 08/03/2012, DJe-125, publicado em 27/06/2012;

c) no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1856/RJ, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julga-mento em 26/05/2011, DJe-198, publicado em 14/10/2011;

d) no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 101/DF, Relatora Min. Carmen Lúcia, Tribunal Pleno, julgamento em 24/06/2009, DJe-108, publicado em 04/06/2012;

e) no julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3540, Relator Min. Celso de Mello, Tri-bunal Pleno, julgamento em 01/09/2005, DJ de 03/02/2006, p. 014; e

f) no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 796347/RS, Relator Min. Celso de Mello, Se-gunda Turma, julgamento em 24/03/2015, DJe-089, publicado em 14/05/2015 (BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2016).

17 Meio ambiente é direito formal e materialmente constitucional. Sobre o tema, tratando de direitos fundamentais integrantes do catálogo ou de fora deles, Sarlet (1998, p. 65-137), Medeiros (2004, p. 76-85) e Gavião Filho (2005, p. 36-37).

18 “O direito fundamental ao ambiente é útil para demonstrar a correção da configuração do conceito de um direito fundamental como um todo, porque se trata de um direito constituído por um conjun-to de posições jurídicas de tipos muito distintas.” (GAVIÃO FILHO, 2005, p. 46) e que “As normas da disposição do direito fundamental do art. 225 da Constituição bem configuram o direito ao ambiente como um direito fundamental ao todo.” (p. 47). O autor ainda indica que, da classificação, No sentido defensivo, cria competências negativas (proibições de ingerências na esfera particular) e exige omissões do poder público para evitar agressões ao ambiente. No sentido prestacional, cria obrigações em sentido estrito; obrigações a ações fáticas e a ações normativas e o direito à participação na organização e no procedimento.

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lesivas ao ambiente. Trata-se, sem dúvida, de um mecanismo de compatibilização da utilização de recursos naturais com a devida tutela do bem. O STJ, no Resp nº 1.094.873/SP, relatado pelo Min. Humberto Martins, em Segunda Turma, apreciando situa-ção em que o debate circunscrevia-se às exceções que o artigo 27 do revogado Código Florestal (Lei nº 4771/65) entendeu pela ilegalidade da queima da palha da cana-de-açúcar justamente porque existem outros meios modernos que podem substituir a prática degradadora sem inviabilizar a atividade.

Do mesmo modo, deve-se destacar a impossibilidade de invocação pelo Poder Público, de restrições orçamentárias ou da reserva do possível para a efetivação de direitos fundamen-tais (STF, ARE 639.337 Agr/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23/08/2011, DJe-117, publicado em 15/09/2011; e STJ, REsp 1.185.474-SC, Rel. Min. Humberto Mar-tins, julgado em 20/04/2010).

Outro efeito importante é a impossibilidade de desconsi-deração ou flexibilização das normas ambientais, seja pelo tipo de bem e direito que representam e protegem, seja porque não cabe ao Judiciário ou ao Executivo admitir ou criar exceções que o legislador não desejou. Nesta linha foi a decisão do Su-perior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 176.753-SC, Segunda Turma, Rel. Ministro Herman Benjamin, julgado em 07/02/2008, DJe de 11/11/2009.

Ganha destaque a proibição do retrocesso social. Tese que surgiu a partir da segunda geração de direitos fundamentais, com o propósito de garantir que a ausência de condições do Estado não fosse motivo para suprimir direitos consagrados pe-las Constituições.21 A questão chegou aos direitos de terceira geração na proporção em que surgiam várias ações objetivando o “recuo” do direito ambiental. Uma delas, de natureza polí-tica, foi batizada pelo Prof. Michel Prieur de “deslegislação”, forçando, também, uma reação “de madeira dura” dos juristas

21 Canotilho (1999, p. 327) fala na necessidade de garantia de direitos que constam no núcleo es-sencial dos direitos sociais e que medidas que busquem anulá-los, revogá-los ou aniquilá-los são inconstitucionais. Já Barcellos (2001, p. 68-70) lembra que o legislador e o administrador estão vinculados aos propósitos da Constituição, e que não se admite que os fins desta sejam esvaziados por legislação infraconstitucional ou por atos administrativos.

Oportuno recordar Medeiros no que diz respeito à impor-tância do meio ambiente para a concretização da dignidade da pessoa humana:

Ao incluir o meio ambiente como um bem jurídico passível de tutela, o constituinte delimitou a existência de uma nova dimensão do direito fundamental à vida e do próprio prin-cípio da dignidade da pessoa humana, haja vista ser o meio ambiente o espaço em que se desenvolve a vida humana. (MEDEIROS, 2004, p. 113).

A tutela do ambiente surge, também, como um limitador da ordem econômica. A Corte Suprema, no julgamento da ADI--MC 3540/DF, ponderando sobre a aplicação dos princípios que norteiam a ordem econômica, entendeu que

[...] A ATIVIDADE ECONÔMICA NÃO PODE SER EXERCIDA EM DESARMONIA COM OS PRINCÍPIOS DESTINADOS A TORNAR EFETIVA A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE. A incolumidade do meio ambiente não pode ser comprome-tida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica, ainda mais se se tiver presente que a atividade econômica, considerada a disciplina que a rege, está subordina, dentre outros prin-cípios gerais, àquele que privilegia a ‘defesa do meio am-biente’ [...] (art. 170, VI, Constituição Federal, 1988).

Na mesma linha segue o STJ, em decisão proferida pelo Min. Francisco Falcão, Presidente da Corte, em 13 de março de 2015, no pedido de Suspensão de Liminar e de Sentença nº 1994-RS (2015/0038079-3), onde desacolhe o pedido do Muni-cípio de Tapera (Rio Grande do Sul) que arrostava decisão da Presidência do Tribunal de Justiça local com o propósito de permitir a instalação de um distrito industrial em área ambien-talmente inadequada, porque ausente autorização do órgão competente. Foi determinado que o ente local se abstivesse de construir, edificar, ocupar e explorar a área, bem como de efetivar doações de áreas até que todos os estudos ambientais fossem concluídos e houvesse certeza acerca dos impactos da implantação do complexo.

Outro desdobramento diz respeito à observância obri-gatória da adoção de formas de exploração econômica menos

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A proteção ambiental é indisponível, descabendo ao Es-tado e/ou aos particulares decidirem se cumprirão as normas de prevenção, proteção e reparação. Igualmente, faz a questão ambiente imune à discricionariedade estatal e a livre disposi-ção individual. Todas as ações públicas (incluindo as “políticas”) e privadas devem ter em mira a máxima proteção dos recur-sos naturais e a adoção de programas e projetos sustentáveis e resilientes.

Proíbe-se a “proteção deficiente” 25, que, em linhas ge-rais, impõe ao Estado não abrir mão dos mecanismos de tutela, inclusive de cunho penal, e estatui-se que a reparação do dano há de ser integral, alcançando as esferas administrativa, penal e civil (art. 225, § 3º, Constituição Federal). A reparação, ao lado do viés repressivo, também inclui um sentido de prevenção, de-corrente da gestão antecipatória do risco. Se o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é fundamental, cria-se um dever fundamental de proteção26, associado ao direito de usufruir desse ambiente, por meio de medidas positivas (pres-tações de fato e prestações materiais) e de medidas negativas.

A criação de uma ética ambiental também decorre da pro-teção aqui abordada. Trata-se de redimensionar a posição do homem em relação ao ambiens, destacando o alcance global das questões ambientais e a busca da solidariedade intergeracional. Exemplo riquíssimo dessa nova ética é a recente encíclica papal Laudato Sí, Sobre o Cuidado da Casa Comum, de 24/05/2015, a qual mostra que dominar a natureza não é missão humana; que as capacidades humanas – especialmente as científicas – não são ilimitadas. Esta associa a degradação do meio ambiente com a pobreza e, ainda, enfrenta questões como poluição, mudanças climáticas e perda da biodiversidade. Sintetizando a necessida-de dessa nova ética ambiental, desafia:

Lanço um convite urgente a renovar o diálogo sobre a ma-neira como estamos a construir o futuro do planeta. Preci-

25 Assunto largamente tratado pelo STF no julgamento do RE 418.376-MS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. para acórdão Min. Joaquim Barbosa, j. em 09/02/2006, DJ de 23/03/2007.

26 Acerca dos deveres fundamentais associados aos direitos fundamentais, numa dimensão geral, leia--se Andrade (1998, p. 146-159). Relativamente aos deveres ambientais, Medeiros (2004, p. 93-98).

ambientais. Ainda nas palavras do professor da Universidade de Limoges, “[...] a não regressão é uma necessidade urgente, para salvaguardar o futuro do Direito Ambiental”.

A ideia de uma salvaguarda dos progressos obtidos para evitar a deterioração ambiental, a nominada “cláusula de sta-tus quo” 22, mira o não retrocesso. E a tese converteu-se num princípio geral do Direito Ambiental e ganhando palco na dou-trina (MOLINARO, 2007; SARLET, FENSTERSEIFER, 2012) e importante respaldo do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do REsp 302.906/SP, Segunda Turma, Relator Min. Herman Benjamin, julgado em 26/08/2010, DJe de 01/12/2010, onde ficou registrado que

[...] a crescente escassez de espaços verdes e dilapidação da qualidade de vida nas cidades [...] submete-se ao princí-pio da não-regressão ou, por outra terminologia, princípio da proibição de retrocesso), garantia de que os avanços urbanístico-ambientais conquistados no passado não serão diluídos, destruídos ou negados pela geração atual ou pe-las seguintes.

Outro importante fruto da constitucionalização do ambiente é a mitigação de direitos tradicionais, como o de pro-priedade23 – agora limitada pela sua função urbano-ambiental, e pela liberdade religiosa ou de culto24.

22 Prieur destaca a adoção da teoria em diversos sistemas jurídicos. Na Bélgica foi batizado de prin-cípio da imobilidade; na França de cliquet anti-retour (trava anti-retorno), para autores de língua inglesa, de eternity clause; em espanhol de prohibición de regresividad o de retroceso e, entre nós, de proibição do retrocesso (SENADO FEDERAL, 2012, p. 13-14).

23 Nessa linha, apenas para ilustrar a argumentação, destacamos decisão do STF que determinou a averbação da reserva legal na matrícula de imóvel rural (ARE 877.507-SP, Primeira Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 30/03/2015), do STJ, ao determinar a demolição de construção – casa – em área de proteção ambiental no Parque Estadual do Delta do Jacuí, em Porto Alegre (Ag no REsp 611.701-RS, Rel. Min. Marga Tessler, publicada em 19/05/2015), também do STJ, ao suspender obra – construção de dois edifícios - antes autorizada, instalada em área de preservação permanente (Suspensão de Liminar e Sentença nº 1033-MA, Rel. Min. Cesar Astor Rocha, publica-da em 15/04/2009) e do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao suspender a construção de um edifício, na Cidade de Torres, cuja autorização concedida extrapolava a altura prevista para a salvaguarda ambiental (Agravo de Instrumento Nº 70026351486, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mara Larsen Chechi, Julgado em 30/04/2009).

24 Sobre o tema, há a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que determinou a in-terdição de uma igreja que, durante as liturgias, causava poluição sonora (Apelação Cível Nº 70019696335, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julga-do em 21/06/2007).

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Conclusão

Seguindo o papel de proteger a dignidade da pessoa hu-mana, sedimentou-se a doutrina dos direitos humanos. A crise ambiental tingiu de verde a discussão e motivou a edição de textos internacionais relacionados ao tema. O desenvolvimen-to da ideia desse direito humano determinou a criação de um novo modelo de Estado: o Estado de Direito Socioambiental que, acompanhado de uma cidadania especialmente voltada à superação de problemas comuns, propiciou a internalização da tutela ambiental nos textos das Constituições. No Brasil, não foi diferente.

Ao ser elevado ao status de direito fundamental, o meio ambiente cria, consequentemente, direitos e deveres, positivos e negativos, para o Estado e para a sociedade. Há um arsenal jurídico robusto e suficiente para efetivar a proteção, dever fun-damental, que alcançou eco na doutrina e na jurisprudência, notadamente dos tribunais superiores. Porém, o definitivo é a mudança de postura do homem em relação ao ambiente. O problema é comum. A “sociedade de risco” trouxe consigo o desafio de mudança de paradigmas. Os recursos naturais não podem ser objeto de apropriações egoístas e de deleite irres-ponsável. As políticas públicas devem, então, priorizar a guarida e ter a variável ambiental como norte e objetivo.

O compromisso constitucional é a manutenção de uma vida digna para as atuais e futuras gerações. Acabar com a indi-ferença é a melhor maneira de fazer a diferença.

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Alexandre Sikinowski Saltz

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A LEI AMERICANA FOREIGN CORRUPT PRACTICES ACT (FCPA)

E SUA INFLUÊNCIA NA APROVAÇÃO DOS MARCOS INTERNACIONAIS

ANTICORRUPÇÃO

Tutelas à Efetivação de Direitos Públicos Incondicionados Patologias Corruptivas e interesses públicos indisponíveis.

Rogério Gesta Leal1 Caroline Fockink Ritt2

1 Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Doutor em Direito. Prof. Titular da UNISC. Professor da UNOESC. Professor Visitante da Università Túlio Ascarelli – Roma Trè, Universidad de La Coruña – Espanha, e Universidad de Buenos Aires. Professor da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura – ENFAM. Membro da Rede de Direi-tos Fundamentais-REDIR, do Conselho Nacional de Justiça-CNJ, Brasília. Coordenador Científico do Núcleo de Pesquisa Judiciária, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magis-tratura – ENFAM, Brasília. Membro do Conselho Científico do Observatório da Justiça Brasileira. Coordenador da Rede de Observatórios do Direito à Verdade, Memória e Justiça nas Universidades brasileiras – Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Eixo temático: Patologias Corruptivas e interesses públicos indisponíveis. E-mail: [email protected]

2 Doutoranda em Direito na UNISC, Mestre em Direito e Professora de direito penal da UNISC, mem-bro do Grupo de Pesquisa Estado, Administração Pública e Sociedade, coordenado pelo Prof. Ti-tular Dr. Rogério Gesta Leal, bem como pesquisadora do projeto de pesquisa intitulado Patologias Corruptivas nas relações entre estado, administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos. Eixo temático: Patologias Corruptivas e interesses públicos indisponíveis.. E-mail: [email protected]

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ABSTRACT

The American Law Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), American Corrupt Practices Act Abroad, aimed to the competitive protection of American companies internationally. It also directly influenced the adoption of international anti-corruption treaties. It was in America that emerged the initiative to combat systemic considered corruption framework, which stemmed from the activities of US multinationals abroad. It was as a result of the US government movement that led the three main treaties: Treaties of the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), Council of Europe and the Organization of American States - OAS and the United Nations. These treaties are the result of a radical change in the way to see the practice of corruption worldwide, from the opportunistic conduct of multinational companies. The new control strategies of corruption have been developed, in order to develop anti-corruption policies, aimed at the private sector. The main purpose of creating international commitments to combat the corruption, through exchange of experiences and harmonization of national laws prevents the existence of impunity zones.

Keywords: Corruption. American law. International treaties. Bribery.

RESUMO

A Lei Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), lei norte-ame-ricana contra práticas corruptas no exterior, teve como principal objetivo a proteção concorrencial das empresas americanas no âmbito internacional. Esta também influenciou diretamente a aprovação dos tratados internacionais anticorrupção. Foi nos Estados Unidos que surgiu a iniciativa de se combater o quadro de corrupção considerada sistêmica que advinha das ativida-des das empresas multinacionais norte-americanas no exterior. Foi como consequência deste movimento do governo ame-ricano que resultaram os três principais tratados: Tratados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Conselho da Europa e Organização dos Estados Ameri-canos (OEA) e das Nações Unidas. Esses tratados são resultado de uma alteração radical do modo de ver a prática da corrupção em nível mundial, a partir da conduta oportunista das empre-sas multinacionais. Novas estratégias de controle da corrupção foram desenvolvidas com objetivo de se desenvolva políticas anticorrupção voltadas para o setor privado. O objetivo prin-cipal foi o da criação de compromissos internacionais para o enfrentamento da corrupção, por meio de troca de experiências e da harmonização das legislações nacionais, impedindo, assim, a existência de zonas de impunidade.

Palavras-chave: Corrupção. Lei americana. Tratados inter-nacionais. Suborno.

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humanidade, afetando indistintamente todas as nações, embo-ra os países menos desenvolvidos sejam considerados os mais vulneráveis. As oportunidades surgidas com a globalização da economia, com os avanços tecnológicos e com a velocidade que tem caracterizado as operações transnacionais indicam uma ten-dência de aumento das práticas corruptas (FURTADO, 2015, p. 409-410).

Foi desde o início da década de 1990 que ocorreu a preocupação da comunidade internacional com o combate à corrupção, tornando-se um dos pontos mais importantes da agenda internacional (FURTADO, 2015, p. 383). Baseados em inciativas internacionais novas estratégias de controle da cor-rupção foram desenvolvidas, com foco em desenvolver políticas anticorrupção, voltadas para o setor privado. As barreiras terri-toriais das empresas e o surgimento de empresas transnacionais, como decorrência da globalização, representam um desafio e uma necessidade de implementação de mecanismos anticorrup-ção (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

O principal motivo para o combate à corrupção transna-cional não é devido à ética, a um erro ou à reprovação. Tais razões deveriam ser suficientes para que se incrementasse o combate mundial à corrupção, por todas as nações, mas não é o que ocorre. Estas são fundamentalmente de ordens eco-nômicas e financeiras, pois seu alcance ultrapassa as fronteiras do país, onde o ato é praticado. O que acontece é uma grande distorção do comércio e das finanças internacionais. Instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, que até então defendiam a liberalização econômica como a solução para a redução dos níveis de corrupção, constataram que essa medida, se não estivesse associada a outras de caráter mais es-trutural, não seria suficiente para combatê-la (FURTADO, 2015, p. 383- 412).

Partindo da perspectiva estritamente econômica, as polí-ticas de combate à corrupção transnacional devem considerar que o pagamento de subornos representa um custo para as em-presas, logo,. estes, muito utilizados pelas empresas para obter negócios, devem ser combatidos. Para se combater a corrup-

No presente artigo, procurou-se analisar a importância do estudo da Lei americana Foreign Corrupt Practices Act

(FCPA), assim como as suas principais determinações, que têm como objetivo a proteção concorrencial das empresas america-nas no âmbito internacional, e, também, a influência direta desta na aprovação dos tratados internacionais anticorrupção.

Foi nos Estados Unidos que surgiu a iniciativa de se com-bater o quadro de corrupção considerada sistêmica que advinha das atividades das empresas multinacionais norte-americanas no exterior. Foi como consequência deste movimento do governo americano que resultaram os três principais tratados: Tratados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econô-mico (OCDE), do Conselho da Europa e da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das Nações Unidas. Estes são fruto de uma alteração radical no modo de ver a prática da corrupção em nível mundial, a partir da conduta oportunista das empresas multinacionais.

Novas estratégias de controle da corrupção foram de-senvolvidas com objetivo de desenvolvimento de políticas anticorrupção voltadas para o setor privado. A partir da pers-pectiva estritamente econômica, as políticas de combate à corrupção transnacional devem considerar que o pagamento de subornos representa um custo para as empresas. Os prin-cipais motivos para se combater a corrupção transnacional não foram os relacionados à ética, ao erro ou à reprovação. Estes foram, fundamentalmente, de ordens econômicas e financeiras. As razões de ordem ética normalmente não são consideradas tão relevantes na tomada de decisões estratégicas em questões comerciais, acabam preponderando as razões do ponto de vista do comércio e das finanças.

As normativas internacionais anticorrupção

A corrupção não é considerada um problema local ou so-mente de países subdesenvolvidos, isolados dos demais países do mundo. Esta é um fenômeno presente em toda a história da

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sais e apátridas, pelo fato de que a sede jurídica das empresas corruptoras não está sempre nos países de seus controladores, localizando-se em diversas nações, sobretudo, no sudeste asiá-tico e no extremo oriente. Essa dispersão das empresas, que operam em nível mundial não apenas do ponto de vista ope-racional, mas também do ponto de vista jurídico, agrava ainda mais o quadro de práticas corruptivas. Como consequência, estas levam à hegemonia de um pequeno grupo nas relações internacionais que, inclusive, prejudicam as demais concorren-tes. Esse processo criminoso de corrupção contribui para a instabilidade política mundial e para a permanência de níveis de subdesenvolvimento social e econômico daqueles países que acolhem tais práticas (CARVALHOSA, 2015, p. 106).

Ao mesmo tempo, não é possível ignorar que o go-verno dos Estados Unidos utilizou, com grande facilidade e frequência, empresas norte-americanas para subornar políticos, servidores públicos ou pessoas influentes para fins políticos ou estratégicos, em inúmeros países, especialmente, nos menos desenvolvidos (FURTADO, 2015, p. 395). De tal modo a dificul-tar o acordo internacional que tivesse por objetivo combater práticas corruptivas de empresas transnacionais.

Foi nos últimos 30 anos que ocorreu uma verdadeira in-versão em relação ao tratamento conferido pelas legislações de diversos países desenvolvidos acerca do tema da corrup-ção transnacional, estas focadas no setor privado. Era comum a legislação de países desenvolvidos permitissem pagamentos realizados por filiais de suas empresas, que estavam localizadas em países menos desenvolvidos, em favor de funcionários de seus países de origem, estes pagamentos sendo admitidos até como hipóteses de dedução do imposto das empresas matrizes. Tais comissões eram consideradas necessárias para a obtenção de contratos ou concessões nesses países, ou seja, essas práti-cas de suborno faziam parte das “regras do jogo”, sendo normal que essas despesas pudessem ser deduzidas dos impostos pa-gos pelas empresas-sede (FURTADO, 2015. p. 387).

Mundialmente, nos fóruns internacionais, diante da reali-dade de subornos e corrupção, formou-se o consenso de que

ção no meio empresarial, devem ser definidas estratégias que tornem o pagamento de suborno tão oneroso que as empre-sas prefiram não se utilizar dessa estratégia negocial. Por esse motivo a comunidade internacional tem defendido ser vantajo-so o combate à corrupção transnacional (FURTADO, 2015, p. 395- 398).

A participação de empresas transnacionais em esquemas de corrupção é muito comum. Por muito tempo, essa realidade foi justificada como sendo necessária para a realização de negó-cios com outros países, principalmente com os países tidos como subdesenvolvidos, onde existe uma cultura de corrupção muito forte. Até recentemente era permitido, em países europeus, que ocorressem inclusive deduções fiscais das empresas para práticas de subornos que ocorriam no exterior. Essa situação chegou a trazer benefícios às corporações corruptas, ao mesmo tempo em que trouxe muitos prejuízos às empresas honestas, levando em conta seu acesso aos mercados estrangeiros. Essa realidade também contribuía para a manutenção de governos altamente corruptos (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

São exemplos das práticas corruptivas de suborno feitos por empresas transnacionais no exterior, o alcance de privilégios criminosos, com relação a favorecimento alfandegário, assim como a manipulação de licitações públicas, com relação a obras e serviços para o Poder Público, nas quais ocorre um aumen-to artificial de lucros devido ao sobrepreço dos fornecimentos viciados de bens. Tais práticas criam um sistema anticoncorren-cial no mercado internacional, gerando a formação de cartéis ou de consórcios, que por sua vez criam a negativa reserva de mercado, em nível mundial e regional, dentro de esquemas de corrupção. Esta se estabelece no plano mundial entre empresas com origens de países diversos, como foi o caso da Siemens alemã e da Alston francesa, em recente caso do Metrô de São Paulo, que se envolveram em um processo de mundialização dos crimes contra a administração pública de países estrangei-ros (CARVALHOSA, 2015, p. 106).

Ocorreu a globalização não apenas dos atos de corrupção, mas também dos autores desses crimes, que se tornaram univer-

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Conselho da Europa e a Organização dos Estados Americanos (OEA) e das Nações Unidas.

Esses tratados são resultado de uma alteração radical no modo de ver a prática da corrupção, em nível mundial, a par-tir da conduta oportunista das multinacionais. Até a década de 1970 prevalecia no ambiente governamental e de negócios nor-te-americano a ideia de que a corrupção empresarial, junto às autoridades dos demais países, tinha, como única consequência, a diminuição dos lucros dessas mesmas empresas, os quais eram transferidos, em parte, para os políticos corruptos que governa-vam esses países (CARVALHOSA, 2015, p. 105).

Os elevados níveis de corrupção adotados em muitos paí-ses da América Latina, África e Ásia, apesar de serem há muito tempo conhecidos pela comunidade internacional, até então não eram motivo de preocupação. Ao contrário, a existência de práticas políticas e eleitorais corruptas podiam ser, em alguns casos, até consideradas convenientes para a manutenção de inúmeros regimes ditatoriais alinhados aos blocos hegemôni-cos, que eram representados pela antiga União Soviética e pelos Estados Unidos da América. A existência de sistemas jurídicos opacos, que geravam oportunidades para a realização de negó-cios que poderiam beneficiar grandes empresas transnacionais, somada à possibilidade de dedução fiscal dos valores, que eram pagos a título de suborno a funcionários dos países menos de-senvolvidos, eram práticas, juntamente com outras formas de corrupção, tidas como usuais (FURTADO, 2015. p. 381-382).

A percepção, no âmbito internacional, era a de que a de-cisão de se combater a corrupção, ou não, era um assunto de política interna de cada país. Entendia-se a corrupção como um problema não econômico, sendo assim, não era possível que as organizações internacionais, de forte atuação na área econômica, interferissem nessa seara. No entanto, estudos desenvolvidos por economistas a partir da década de 1990, de-monstram exatamente o contrário do que até então se supunha. A corrupção afetava significativamente a competitividade da economia global, como também a eficiência dos investimentos estrangeiros realizados pelas empresas ou financiados pelas or-

a corrupção é a responsável pela ausência de desenvolvimento social de países emergentes e periféricos. O atraso social e po-lítico que decorre do domínio de gangues políticas, que mesmo institucionalizadas, como é o caso brasileiro, dominam os es-tados e os governos desses países, os quais representam três quartos da população mundial (CARVALHOSA, 2015, p. 104).

Ao mesmo tempo, se concluiu, através de análises econô-micas, que a corrupção provoca inúmeros prejuízos financeiros para as empresas transnacionais, impedindo investimentos des-sas empresas nestes países considerados subdesenvolvidos. Conforme abordado, destaca-se que, entre 1994 e 1996, empre-sas norte-americanas teriam deixado de celebrar contratos de aproximadamente 11 bilhões de dólares no exterior em razão do pagamento de subornos por empresas de outras nacionali-dades (FURTADO, 2015, p. 396).

Tornou-se consenso a necessidade de existir um regime internacional anticorrupção, o qual possua um quadro jurídico específico, e que seja capaz de obrigar os Estados a lutarem contra a corrupção (FERREIRA; MOROSINI, 2013). Para o estudo desse regime internacional anticorrupção, é imprescindível bus-car a sua origem, a qual está na lei anticorrupção dos Estados Unidos, o que será feito a seguir.

Adoção do regime internacional anticorrupção

A necessidade, e a efetiva adoção, de um regime interna-cional anticorrupção refletem várias circunstâncias, tanto locais, como regionais e mundiais, as quais contribuíram para a edição de um novo texto legal. Da mesma forma, estas contribuíram para definir as características específicas de cada lei, em cada país (CARVALHO, 2015, p. 37).

Foi nos Estados Unidos que surgiu a iniciativa de se com-bater o quadro de corrupção considerada sistêmica que advinha das atividades das multinacionais norte-americanas no exterior. Foi consequência deste movimento do governo americano a criação dos três principais tratados: os Tratados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o

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atuação do gabinete do Promotor Especial designado para a apuração do escândalo Watergate, a criação da Foreign Cor-rupt Practices Act aconteceu pelo subcomitê de Corporações Multinacionais do Senado, presidido pelo Senador Frank Chur-ch. Deste modo, veio a público o fato de que várias grandes empresas norte-americanas, entre elas a Exxon, a Northrop, e a Lockheed, pagavam propinas a funcionários públicos estrangei-ros. No caso da Lockheed, no período da Guerra Fria, haviam sido repassados, a título de propina, mais de 20 milhões de dó-lares para agentes públicos estrangeiros, em razão da compra de aeronaves e armamentos (PETRELLUZZI, 2014, p. 23-24).

Em colaboração com o órgão responsável pela regulação do mercado de ações nos EUA, a Comissão Norte-Americana de Câmbios e Títulos (SEC, sigla em inglês), mais de 500 empresas norte-americanas admitiram pagar o equivalente a 300 milhões de dólares em subornos a funcionários públicos estrangeiros (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

Por mais que na época ocorresse, na sociedade america-na, uma certa tolerância com relação à corrupção de agentes públicos estrangeiros, a opinião pública começou a pressionar a adoção de medidas que não tornassem as empresas americanas fomentadoras de corrupção no exterior. Foi decisivo que órgãos de imprensa, como o Washington Post e o New York Times, te-nham dado repercussão aos escândalos e, ao mesmo atempo, cobrado atitudes das autoridades (PETRELLUZZI, 2014, p. 24).

Na época da edição da FCPA, em 1977, o Congresso norte-americano utilizou-se da justificativa de que a corrupção permitia a empresas assegurarem negócios e participação no mercado independentemente de seu grau de eficiência. O lucro, então, passava a ser alcançado através da obtenção de negó-cios de forma escusa, com auxílio de práticas corruptivas e com menores preocupações com eficiência e produtividade (CARVA-LHO, 2015, p. 37).

Apesar de existir um conjunto de normas que proíbem o suborno de funcionários públicos nacionais, não havia nada na lei americana sobre o suborno de funcionários públicos estran-geiros. Então, em 1977, foi sancionada pelo presidente Jimmy

ganizações internacionais de crédito. Um desses efeitos seria que a corrupção poderia afetar o ambiente social, político e econômico interno de cada país, ultrapassando suas fronteiras e contaminando suas relações externas. Deste modo, ao longo dos últimos anos, verificou-se uma verdadeira inversão na postu-ra da comunidade internacional, que passou a tratar a corrupção como um dos temas mais relevantes em suas áreas de atuação (FURTADO, 2015. p. 382).

Se faz, ainda, necessário observar a importância do estudo da Lei americana, juntamente com suas principais determina-ções, considerando o seu objetivo de proteção concorrencial das empresas americanas no âmbito internacional, e a sua influência direta na aprovação dos tratados internacionais anticorrupção. O que tentaremos fazer a seguir.

A lei norte-americana de práticas corruptas no exterior – foreign corrupt practices act – e sua influência na aprovação dos tratados

internacionais anticorrupção

Os Estados Unidos foram um dos primeiros países a se preocupar com a ligação entre empresas transnacionais e o fe-nômeno da corrupção. O contexto político do país na década de 1970 foi decisivo para que isso ocorresse. Após o escândalo de Watergate, por meio do qual o Presidente Nixon foi acusado de usar seu poder para espionar ilegalmente opositores políti-cos, uma série de investigações foi realizada pelo Senado dos EUA para encontrar irregularidades no governo. Investigava-se o financiamento de campanhas políticas, e, então, descobriu-se a existência de fundos irregulares mantidos por empresas transnacionais norte-americanas para corromper governos es-trangeiros e assim garantir um negócio lucrativo nesses países (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

Em um momento histórico particular, devido à renúncia do presidente norte-americano Richard Nixon em função da

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Como foram os Estados Unidos o primeiro país a adotar, e de forma isolada, a legislação punitiva de corrupção praticada no exterior, as empresas europeias e asiáticas, que disputavam contratos com as empresas americanas no exterior, começaram a ter vantagem competitiva, por estarem livres para obtenção de contratos por meio de práticas de corrupção. Cita-se, como exemplo dessa realidade, a Alemanha, que não apenas não pu-nia suas empresas por atos de corrupção praticados no exterior, como também admitia que tais custos fossem contabilizados na dedução de impostos (CARVALHO, 2015, p. 36-37).

Dessa forma, a adoção da FCPA trouxe sérios problemas às empresas norte-americanas, que, adotando as práticas an-ticorrupção previstas na lei de seu país, acabaram por perder competividade em relação às de outros países que, como no caso da Grã-Bretanha e França, além de não punirem o pa-gamento de propina e o ato de corromper agentes públicos estrangeiros, permitiam que despesas dessa natureza fossem legalmente descontadas dos lucros de suas empresas (PETREL-LUZZI, 2014, p. 24-25).

Essa situação de desvantagem concorrencial entre empre-sas em nível mundial, fez com que os Estados Unidos, inclusive pelo interesse de se manter competitivo no mercado internacio-nal, passasse a pressionar fortemente a comunidade internacional e outros países, em particular os da Europa ocidental, a adota-rem medidas que punissem suas empresas pela corrupção de agentes públicos estrangeiros. A forte pressão norte-americana teve como fórum principal a OCDE (Organização para a Coope-ração e Desenvolvimento Econômico) e acabou por ser o motor que impulsionou a convenção desta organização sobre a corrup-ção de funcionários públicos estrangeiros (PETRELLUZZI, 2014, p. 25).

Os Estados Unidos argumentavam que o suborno de funcionários públicos estrangeiros não era simplesmente um problema americano, mas era, sim, um problema universal. Pro-movendo a aprovação de uma legislação semelhante em outros países industrializados, os EUA procuravam assegurar condições de concorrência equitativas para as empresas concorrentes e

Carter a Lei Norte-Americana de Práticas Corruptas no Exterior (FCPA). Esta trouxe justamente a proibição de pagamento de subornos a funcionários públicos estrangeiros com o objetivo de estabelecer relações comerciais lucrativas. O foco principal da lei era de proibição de práticas relacionadas a suborno (FER-REIRA; MOROSINI, 2013).

Por meio da Foreign Corrupt Practices Act, de 1977 foi expressamente proibida a dedução tributária dos pagamen-tos efetuados a título de comissões, direta ou indiretamente, a funcionários de governos estrangeiros, caso estes fossem con-siderados ilegais pelas legislações locais (FURTADO, 2015, p. 387). O entendimento norte-americano, que deu ensejo à edi-ção da FCPA, era de que o pagamento de suborno a um agente público é algo que desvirtua a concorrência, como também viola as leis do mercado, atingindo, de forma profunda, os fundamen-tos do regime capitalista. Não se tratou de uma questão ética ou de uma postura moral, mas, principalmente, de manter o sis-tema saudável e impedir práticas que prejudicassem o mercado (PETRELLUZZI, 2014, p. 24).

A FCPA é uma lei dos EUA com aplicação extraterritorial que visa prevenir e punir a utilização de suborno no exterior por empresas. Com foco principal em práticas de suborno, a legis-lação não se aplica apenas a empresas norte-americanas, mas também as suas subsidiárias que operam no exterior e, até mes-mo, a empresas estrangeiras com operações, ou com um mero registro, nos Estados Unidos e que fazem negócios na bolsa de valores (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

Essa lei, com suas determinações procurando banir práti-cas de suborno internacional, causou um impacto muito grande às empresas, e não apenas às norte-americanas. Como somen-te as empresas cujas sedes estivessem localizadas em território norte-americano eram afetadas, começou um movimento dessas grandes empresas no sentido de buscar ampliação a essa proi-bição, para, assim, alcançar as empresas localizadas em outros países. Se isso não ocorresse, as empresas norte-americanas fi-cariam numa situação de desvantagem competitiva em relação às dos demais países (FURTADO, 2015, p. 387-388).

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Latina e no Leste Europeu. As razões que levaram os Estados Unidos a liderarem com muita firmeza a introdução de uma le-gislação anticorrupção em nível internacional nos demais países industrializados e a atribuírem a sua aplicação com jurisdição extraterritorial a organismos de combate a tais práticas,, foram aspectos concorrenciais, que, deste modo, garantissem compe-titividade às empresas transnacionais americanas, em nível de mercado e de negócios realizados internacionalmente (CARVA-LHOSA, 2015, p. 108).

Uma emenda da FCPA de 1988 determinou que o gover-no norte-americano promovesse gestões visando a celebração de um acordo internacional abrangente e eficaz no combate à corrupção empresarial praticada por empresas locais e estran-geiras no interior dos países signatários. E o fato é que a Lei norte-americana de 1977 tornou-se a matriz dos Tratados que se seguiram a partir dos anos 1990 (CARVALHOSA, 2015, p. 108).

O governo americano pressionou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico a negociar um tra-tado internacional que obrigasse as economias de mercado a adotarem legislação semelhante. Isso resultou na Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Es-trangeiros em Transações Comerciais Internacionais da OCDE, de 1997 (promulgada no Brasil pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000), que, de fato, obrigou 41 países a editarem uma legislação punitiva da corrupção transnacional (CARVA-LHO, 2015, p. 37).

Passaremos a analisar os principais aspectos dessa conven-ção com relação a práticas corruptivas cometidas por empresas transnacionais.

A convenção sobre o combate da corrupção de funcionários públicos estrangeiros em transações comerciais internacionais da OCDE

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico é uma organização pública internacional formada pela associação de países membros. Sua missão é a promoção

aumentar a integridade e a estabilidade do mercado (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

A estratégia dos EUA foi a de levar a questão para dis-cussão em fóruns internacionais, e foi o que de fato ocorreu. Em 1975, a Assembleia Geral das Nações Unidas condenou a corrupção praticada por empresas transnacionais. No ano se-guinte, em 1976, foi a vez da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) condenar essas práti-cas. Observa-se que a França, Alemanha e Reino Unido foram os opositores da iniciativa, lembrando que a luta contra a cor-rupção devia ser direcionada apenas para ações de funcionários públicos. A FCPA americana foi acusada de ser um exercício ile-gal de extraterritorialidade, e um tratado sobre essas linhas iria impor um código penal internacional, violando a soberania do Estado (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

Na realidade, o FCPA, embora editado em 1977, foi pou-co aplicado antes da implementação da convenção da OCDE, o que pode ser reflexo da dificuldade concorrencial de vedar às empresas americanas condutas permitidas a concorrentes estrangeiros. Com relação à implementação da convenção da OCDE – O UK Bribery Act – os crimes de corrupção ativa em transações comerciais internacionais (inseridos no Código Penal pela Lei 10.467/2002) e a própria Lei 12.846/2013 são, também, decorrentes dessa convenção (CARVALHO, 2015, p. 38).

Com objetivo de preencher a lacuna legislativa que tornava inócua as investigações sobre corrupção internacional prati-cada por grandes empresas dos Estados Unidos, promovidas pela Federal Trade Comission e pela Securities and Exchange Comission, o governo americano encarregou uma Comissão de minutar a FCPA, que, justamente, veda a prática de atos de corrupção ou a tentativa destes junto a agentes públicos estran-geiros, visando à obtenção privilegiada e indevida de negócios (CARVALHOSA, 2015, p. 107).

Nos tratados que vieram a partir da FCPA, foi estabele-cida, então, a proibição da prática de atos de corrupção pelas empresas europeias em negócios com países com grande cul-tura de corrupção, sendo estes na África, na Ásia, na América

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A partir da década de 1990 se observou que a comuni-dade internacional passou a ter maior atenção ao exame das consequências e dos impactos da corrupção na condução de negócios internacionais. Nesse contexto, vários desafios, tais como o combate à corrupção internacional em um cenário de globalização crescente, subsidiaram a concepção da Convenção da OCDE sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públi-cos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais.

Foi suborno de funcionários públicos estrangeiros o tema inicialmente tratado pelo Grupo de Trabalho da OCDE sobre Suborno em Transações Comerciais Internacionais. O traba-lho desse Grupo resultou, ainda em 1994, no primeiro acordo multilateral relacionado ao combate do suborno de servidores estrangeiros. E, já em 1995, a OCDE adotou a Recomendação sobre a Dedução de Impostos de Subornos de Funcionários Pú-blicos Estrangeiros. Em 17 de dezembro de 1997, a Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Es-trangeiros em Transações Comerciais Internacionais foi firmada pelos Estados membros da OCDE, aos quais se somaram Bra-sil, Argentina, Bulgária, Chile e República Eslovaca. Esta entrou em vigor em 1999 e, no Brasil, foi ratificada em 15 de junho de 2000 e promulgada pelo Decreto nº 3.678, de 30 de novembro de 2000. O principal objetivo da Convenção foi o de prevenir e combater o delito de corrupção de funcionários públicos es-trangeiros na esfera de transações comerciais internacionais (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2007).

A Convenção trata, majoritariamente, da adequação da legislação dos Estados signatários às medidas necessárias para a prevenção e o combate à corrupção de funcionários públi-cos estrangeiros no contexto do comércio internacional. Os Estados-Partes acordaram que, para os fins da Convenção, são considerados funcionários públicos estrangeiros qualquer pessoa que ocupe cargo nos Poderes Legislativo, Executivo ou Judiciário de um país estrangeiro, independentemente de ser esta pessoa nomeada ou eleita. Da mesma forma, qualquer pessoa que exerça função pública para um país estrangeiro; ou o funcionário ou o representante da organização pública inter-

de políticas que proporcionem a melhoria das condições econô-micas das nações e o bem-estar econômico e social das pessoas. As origens da OCDE remontam à aplicação do Plano Marshall, após a 2ª Grande Guerra Mundial, quando surgiu a Organização para a Cooperação Econômica Europeia, que gerava os recursos trazidos pelo plano e coordenava esforços para a reconstrução da Europa (PETRELLUZZI, 2014, p. 25).

A OCDE tem concentrado seus esforços na repressão ao pagamento de subornos que ocorrem em operações transna-cionais (FURTADO, 2015, p. 172). Já no início dos anos 1990, o prestigioso e eficaz organismo da Organização foi escolhido para o exercício da pressão norte-americana para convencer a comunidade internacional a adotar a responsabilização de seus países quanto a atos de corrupção praticados no exterior (PE-TRELLUZZI, 2014, p. 25).

A pressão norte-americana resultou, auspiciosamente, em 1994, no primeiro Tratado Internacional Anticorrupção, denomi-nado Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Esse documento foi firmado por todos os membros da OCDE, com prerrogativa de adesão de não membros, como é o caso do Brasil. Trata-se do primeiro e, ainda considerado, mais im-portante instrumento de combate internacional à corrupção. O Brasil aderiu aos seus termos, consoante o Decreto Legislativo, tendo a Convenção entrado em vigor em 23 de outubro daquele mesmo ano (CARVALHOSA, 2015, p. 109-110).

O Conselho da OCDE, em 1994, se reuniu para emitir uma declaração que afirmava que o suborno é um fenômeno generalizado em transações comerciais internacionais, incluindo comércio e investimento. Essa realidade levantou sérias preocu-pações morais e políticas, como também trouxe distorções na condição competitiva internacional. A referida declaração indica que a responsabilidade no combate a este tipo de corrupção deve ser compartilhada por todos os países. Dessa forma, ape-lou aos Estados Membros que tomem as medidas necessárias para combater o fenômeno por meio de reformas em seu direito interno (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

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A lei americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e sua influência na aprovação dos marcos internacionais anticorrupçãoRogério Gesta Leal e Caroline Fockink Ritt

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que, independentemente da nacionalidade, qualquer indivíduo ou entidade que cometa atos de suborno de funcionário público estrangeiro no território de um Estado signatário da Conven-ção da OCDE sujeita-se às proibições definidas na Convenção (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2007).

A Convenção da OCDE determina, também, a imposição da manutenção de registros contábeis que dificultem a lavagem de dinheiro e o pagamento de vantagens indevidas a funcioná-rios estrangeiros (PETRELLUZZI, 2014, p. 26).

Em 2004 e depois em 2007, foi avaliada pela OCDE a adequação da legislação interna brasileira aos termos da Con-venção. Embora algumas dúvidas tenham sido apontadas, notadamente, quanto ao estabelecimento de jurisdição brasilei-ra pelo Grupo de Trabalho, não houve nenhuma objeção séria à adequação da legislação brasileira aos termos da Convenção. E parece haver maior adequação tendo em vista os termos da Lei n. 12.846/2013 – Lei Anticorrupção (PETRELLUZZI, 2014, p. 26).

Destaca-se que, após a iniciativa da OCDE, vários tratados regionais anticorrupção foram criados. Da Europa podem ser citadas: a Convenção sobre a Proteção dos Interesses Financei-ros das Comunidades Europeias (1995); a Convenção da União Europeia na luta contra a corrupção (1997), que envolve funcio-nários europeus ou funcionários dos Estados-Membros da União Europeia; o Conselho da Convenção Criminal Europeia sobre a Corrupção (1999); e o Conselho da Convenção Civil Europeia sobre a Corrupção (1999). Da África, destacam-se o Protoco-lo SADC contra a Corrupção (2001) e a Convenção da União Africana sobre a Prevenção e o Combate à Corrupção (2003) (FERREIRA; MOROSINI, 2013).

Diante deste cenário, em que pese que os primeiros ins-trumentos legais de combate à corrupção tiveram como motivo a questão concorrencial, com relação a práticas corruptivas transnacionais que trazem prejuízos à concorrência empre-sarial e, ainda, que, conforme argumentos da Convenção das Nações Unidas, também trazem inúmeros prejuízos aos direitos fundamentais sociais, conforme já abordado, defende-se que é

nacional são considerados funcionários públicos estrangeiros, devendo-se, assim, adotar um conceito de funcionário público que contemple a abrangência dessas categorias (CONTROLA-DORIA-GERAL DA UNIÃO. 2007).

A Convenção vai além da aplicação do princípio da terri-torialidade penal e se utiliza de instrumentos que, até então, eram estranhos à atuação de organismos multilaterais. Foram estabelecidos mecanismos para verificar o efetivo cumprimen-to das medidas previstas na Convenção, assim como também foi criado o Grupo de Trabalho sobre Suborno, composto por especialistas indicados pelos países-membros (FURTADO, 2015, p. 172). Este grupo examina a adequação dos signatários aos termos da convenção e, também, faz com que a OCDE e os sig-natários da Convenção emitam relatórios e recomendações aos países membros (PETRELLUZZI, 2014, p. 26).

O Grupo ainda expediu uma recomendação e deliberou que estará acompanhando outros temas como, por exemplo, atos de corrupção em relação a partidos políticos estrangeiros; vantagens prometidas ou conferidas a qualquer indivíduo em antecipação ao fato de esse tornar-se um funcionário público estrangeiro; corrupção de funcionários públicos estrangeiros como decorrência da lavagem de dinheiro; e o papel de em-presas subsidiárias e de centros financeiros offshore (RAMINA, 2008, p. 87).

A Convenção, além de abarcar todos os três Poderes dos Estados signatários, também considera que na expressão “país estrangeiro” incluem-se todos os níveis e subdivisões de gover-no, do federal ao municipal. Dessa forma, determinou-se que os Estados signatários criminalizem o oferecimento, a promessa ou a concessão de vantagem indevida, pecuniária ou de qualquer outra natureza, a funcionário público estrangeiro que, direta ou indiretamente, por meio de ação ou omissão no desempenho de suas funções públicas, realize ou dificulte transações na condu-ção de negócios internacionais (CONTROLADORIA-GERAL DA UNIÃO, 2007).

Também, com relação à possibilidade de ocorrer a efeti-vidade aos termos da Convenção, faz-se importante mencionar

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A lei americana Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) e sua influência na aprovação dos marcos internacionais anticorrupçãoRogério Gesta Leal e Caroline Fockink Ritt

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O principal motivo para se combater a corrupção trans-nacional não foi devido à ética, a um erro ou à reprovação. Tais razões deveriam ser suficientes para que se incrementasse o combate mundial à corrupção por todas as nações, mas não foi o que ocorreu. As razões que fundamentaram o combate à corrupção foram, fundamentalmente, de ordem econômica e financeira. Ou seja, as razões de ordem ética normalmente não são consideradas tão relevantes para a tomada de decisões es-tratégicas em questões comerciais, preponderando as razões do ponto de vista do comércio e das finanças.

Em que pese que os primeiros instrumentos legais de combate à corrupção tiveram como motivo a questão concor-rencial, com relação a práticas corruptivas transnacionais que trazem prejuízos à concorrência empresarial e, também, trazem inúmeros prejuízos aos direitos fundamentais sociais, defende-se que é necessária a construção de um regime internacional de controle da corrupção com foco no setor privado.

Referências

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CARVALHOSA, M. Considerações sobre a Lei Anticorrupção das pessoas jurídicas: Lei 12.846 de 2013. São Paulo: Revista dos Tri-bunais, 2015.

Convenção da OCDE./Presidência, Controladoria-Geral da União. 1. ed. Brasília: CGU, 2007. Cartilha. Disponível em: <http://www.planejamento.gov.br/assuntos/assuntosinternacionais/publica-coes/cartilha_ocde.pdf>. Acesso em: 21 set. 2016.

FERREIRA, L. V.; MOROSINI, F. C. A implementação da lei interna-cional anticorrupção no comércio: o controle legal da corrupção direcionado às empresas transnacionais. In: Austral Revista Bra-

necessária a construção de um regime internacional de controle da corrupção com foco no setor privado.

Conclusões

No presente artigo procurou-se analisar a importância da Lei Norte-Americana de Práticas Corruptas no Exterior e as prin-cipais determinações desta com relação ao objetivo de proteção concorrencial das empresas americanas no âmbito internacional. Também foi analisada a sua influência direta na aprovação de tratados internacionais anticorrupção.

Foi nos Estados Unidos que surgiu a iniciativa de se com-bater o quadro de corrupção considerada sistêmica que advinha das atividades das multinacionais norte-americanas no exterior. Como consequência deste movimento do governo americano resultaram os três principais tratados: Tratados da Organiza-ção para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Conselho da Europa e da Organização dos Estados Americanos (OEA) e das Nações Unidas. Esses tratados são resultado de uma alteração radical do modo de ver a prática da corrupção em nível mundial a partir da conduta oportunista das empresas multinacionais.

Novas estratégias de controle da corrupção foram desen-volvidas com objetivo de se desenvolver políticas anticorrupção voltadas para o setor privado. A partir de uma perspectiva es-tritamente econômica, as políticas de combate à corrupção transnacional devem considerar que o pagamento de subornos representa um custo para as empresas. Estes que, muitas vezes, são utilizados pelas empresas para obter negócios, devem ser combatidos. Para se combater a corrupção no meio empresarial devem ser definidas estratégias que tornem o pagamento de suborno tão oneroso que as empresas prefiram não se utilizar dessa estratégia negocial. Por esse motivo a comunidade inter-nacional tem defendido ser vantajoso o combate à corrupção transnacional.

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Rogério Gesta Leal e Caroline Fockink Ritt

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ABORTO E ANENCEFALIA: DIREITOS FUNDAMENTAIS EM

COLISÃO, UMA NOVA PERSPECTIVA

Mauro Henrique Renner1 Olavo Garcia Renner2

1 Graduado em Direito pelas Faculdades Unidas de Bagé/RS. Procurador de Justiça. Mestrando na Escola Superior do Ministério Público. E-mail: [email protected]

2 Graduado em Direito pela PUC/RS. Docente do Curso de Especialização em Direito Penal Empre-sarial pela PUC/RS. E-mail: [email protected]

sileira de Estratégia e Relações Internacionais. v.2, n.3, jan/jun. 2013, p. 257. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs.br/austral/article/viewFile/35615/23981>. Acesso em: 15 set. 2016.

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Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão, uma nova perspectivaMauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner

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Abstract

The text presents the general and legal aspects involving the pregnancy termination of anencephalic fetuses, levels information concerning the anomaly with scientific medical data and highlights the protected legal interest worthy of legal protection. Examines the judgment of the Supreme Court on the Allegation of Breach of Fundamental Precept No. 54 and its importance as a tool for effective protection of the rights, freedoms and guarantees, given the State’s failure. Finally, provokes reflection on the viability of the balance between the fundamental rights of the fetus versus the pregnant woman to define the order of precedence between a principle and another.

Key words: Anencephaly. Abortion. Interruption of pregnancy. Fundamental rights and guarantees.

Resumo

O texto apresenta aspectos gerais e jurídicos que envol-vem a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, nivela informações a respeito da anomalia com dados científicos da medicina e destaca o bem jurídico merecedor de proteção legal. Examina o julgamento do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental/54 (ADPF/54) e sua importância como instrumento de efetiva proteção aos di-reitos, liberdades e garantias fundamentais, em face da omissão do Estado. Por fim, provoca a reflexão sobre a viabilidade da ponderação entre os direitos fundamentais do feto versus da gestante para definir a ordem de precedência de um princípio em relação ao outro.

Palavras-chave: Anencefalia. Aborto. Interrupção da ges-tação. Direitos e garantias fundamentais.

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Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão, uma nova perspectivaMauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner

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batidos há séculos sem que se chegue a um consenso mínimo sobre uma resposta correta para todos (BRASIL, 2012).

Nesse sentido, é importante destacar que a legislação pe-nal brasileira veda a interrupção voluntária da gravidez, salvo nas hipóteses de gestação fruto de violência sexual ou de sérios riscos à vida da gestante, o que tem levado inúmeras mulheres a cessar de forma clandestina a gravidez indesejada fora dessas hipóteses.

A comunidade internacional tem se posicionado a favor da revisão dos parâmetros protetivos no sentido de autorizar a mu-dança legislativa que criminalize o aborto, recomendando aos Estados que adequem suas legislações punitivas em relação à interrupção da gravidez. Tal posicionamento leva em considera-ção o elevado número de morte de gestantes que se submetem de forma clandestina à interrupção da gravidez. Observa-se que, nos países onde o aborto não é legalizado, a taxa de mor-talidade materna é cinco vezes maior do que nos países que autorizam o procedimento.

No Brasil, a polêmica acerca da prática do aborto renovou-se em razão do debate em torno das autorizações concedidas pela justiça para a interrupção da gravidez em casos nos quais os fetos fossem portadores de anencefalia. Diante de tal realida-de, o presente estudo examina a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF/54 e exercita a possibilidade da coe-xistência de direitos fundamentais do feto com os da gestante.

Conceito de anencefalia

Anencefalia é uma má-formação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota cra-niana, proveniente de defeito de fechamento do tubo neural nas primeiras semanas da formação embrionária (PASSOS, 2012). Vulgarmente, a anencefalia é conhecida como ausência de cé-rebro e a anomalia importa na inexistência de todas as funções superiores do sistema nervoso central – este sendo o respon-sável pela consciência, cognição, vida relacional, comunicação,

Nas primeiras décadas do século XX, o avanço científico da medicina viabilizou o desenvolvimento de novas tecno-

logias, como o ultrassom morfológico o qual veio a permitir o diagnóstico precoce de 90% das más-formações fetais ainda na fase uterina. A realização de tal exame propicia à gestan-te o acompanhamento da regular formação fetal no curso da gestação.

No Brasil, a estimativa é de 1(um) caso de anencefalia a cada 1.600 nascidos vivos e este percentual tem aumenta-do significativamente, colocando o Brasil, segundo a Orga-nização Mundial da Saúde (OMS), na posição de quarto país mundial em casos de anencefalia. (NASCIMENTO FILHO, 2011, p. 1380).

Na justiça brasileira, o primeiro alvará autorizando uma mu-lher a interromper o parto é de 1989. Desde esta data até 2004, ou seja, até a decisão do Ministro Marco Aurélio na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 (ADPF/54), es-tima-se que mais de 3.000 autorizações foram emitidas no país permitindo que mulheres interrompessem a gestação de fetos anencefálicos. A referida decisão veio suspender o andamento de processos e os efeitos das decisões judiciais que pretendiam aplicar (ou que tenham aplicado) dispositivos do CP, na hipótese de antecipação terapêutica de partos de fetos anencefálicos, re-conhecendo o direito constitucional da gestante de se submeter ao procedimento e do profissional de saúde de realizá-lo.

A interrupção da gestação de fetos anencefálicos sempre foi um tema polêmico na sociedade brasileira, já que, de um lado há a resolução do conflito entre o direito fundamental à vida, e de outro, há os direitos à saúde e à autonomia da vontade, os quais requerem o exame de princípios a serem ponderados no caso concreto.

O julgamento arrefeceu a discussão na área jurídica, no entanto, dada a complexidade do tema e a sua repercussão nos diversos ramos da ciência, remanescem indagações em relação à solução dada. Nessa perspectiva, o Ministro Gilmar Mendes considerou que o tema transcende o limite do jurídico e envolve argumentos morais, políticos e religiosos que vem sendo de-

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e) aborto qualificado (art. 127); e

f) aborto legal (art. 128). (SANTOS, 2014).

O bem jurídico atingido pela ação típica abortiva é a vida humana em sua esfera intrauterina. Iniciado o processo de parto, já não haveria viabilidade jurídica de prática do crime de aborto e sim de infanticídio, se praticado pela mãe, ou de homicídio, quando praticado por terceiro.

Protege-se a vida humana em desenvolvimento em todas as suas fases, ou seja, o óvulo fecundado, o embrião ou o feto. Cleber Masson (2011, p. 82) enfatiza que não se exige que o feto tenha viabilidade, basta que este esteja vivo antes da prá-tica da conduta criminosa. O autor ainda pondera que o Direito Penal brasileiro protege a vida humana desde sua primeira ma-nifestação, não contemplando regra permissiva do aborto nas hipóteses de que os exames médicos pré-natais indiquem que a criança venha a nascer com graves deformidades físicas ou psí-quicas, afastando, assim, a hipótese do aborto eugênico, pouco importando as anomalias que possa apresentar. Dessa forma, observa-se que a Constituição Federal e a legislação penal tu-telam a vida em toda a sua extensão como bem maior a ser preservado.

Arguição de descumprimento de preceito fundamental/54

Frente aos inúmeros pedidos de alvarás para interrupção da gestação de fetos anencefálicos ajuizados no território nacio-nal e em face à omissão do Poder Legislativo sobre o assunto, em 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalha-dores na Saúde (CTNS) levou a discussão ao Supremo Tribunal Federal através da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54.

O pedido da ADPF/54 teve por objeto imediato garantir aos profissionais de saúde o direito de atender as mulheres que desejassem antecipar o parto sem que incorressem em proces-

efetividade e emotividade, restando, assim, somente algumas funções vasomotoras e a medula espinhal (NOGUEIRA, 2005).

Bebês com anencefalia possuem expectativa de vida muito curta, não havendo precisão quanto ao tempo de vida que terão fora do útero. Aproximadamente 65% dos fetos anencefálicos morrem ainda no período intrauterino e o restante destes morre algumas horas após o parto por parada cardiorrespiratória (DI-NIZ; RIBEIRO, 2003, p. 102).

A literatura médica relata, de forma taxativa, que o porta-dor de anencefalia não tem cura, nem tratamento e o prognóstico para este paciente é a morte.

Bem jurídico protegido

A vida tem início a partir da concepção, ou seja, desde o momento em que o óvulo feminino é fecundado pelo esperma-tozóide masculino. No entanto, para efeitos penais, a vida só tem relevância após a nidação, implantação do óvulo fecundado no útero materno, o qual se dá 14 dias após a fecundação (GRE-CO, 2009, p. 240).

O Código Penal brasileiro tutela a vida em toda sua ex-tensão, seja ela a vida intrauterina (biologicamente dependente do organismo materno para o processamento de suas funções vitais), ou a vida extra-uterina (quando essa dependência não mais existe, tendo o novo ser condição, viabilidade, maturidade orgânica e autonomia para viver no mundo externo).

O diploma legal de 1940 distingue seis figuras sobre o aborto:

a) autoaborto (art. 124);

b) consentimento da gestante para que outrem lhe provo-que o abortamento (art. 124);

c) aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125);

d) aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante (art. 126);

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A posição do Ministro Cezar Peluso, acompanhado pelo Ministro Ricardo Lewandoski, foi de encontro ao voto do relator. Estes entenderam que a conduta censurada transpõe a esfera da autonomia e da liberdade individuais, enquanto implica, sem nenhum substrato de licitude, imposição de pena capital ao feto anencefálico. A postura dogmática, ao feto reduzido à condição de lixo ou de outra coisa imprestável e incômoda, não é dispen-sada, de nenhum ângulo, a menor consideração ética ou jurídica, nem reconhecido grau algum da dignidade jurídica e ética que lhe vem da incontestável ascendência e natureza humanas.

Em 12 de abril de 2012, o STF, por 10 votos a 2, julgou procedente a ADPF/54 para considerar inconstitucional a inter-pretação que enquadra a interrupção da gravidez, ou antecipação terapêutica do parto, em caso de comprovada anencefalia, como crime de aborto. O acórdão restou assim ementado:

ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, sur-gindo absolutamente neutro quanto às religiões. Conside-rações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVI-DEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREI-TOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra--se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravi-dez de feto anencefálico ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal.

A (im)pertinência da redução do espaço de conformação política do legislador

No curso do julgamento da ADPF/54, questionou-se a in-vasão de competência do Poder Judiciário em relação ao Poder Legislativo, ao autorizar a interrupção da gestação além das hipóteses previstas no art. 128, I e II do Código Penal. O Procu-rador-Geral da República, Cláudio Fonteles, em parecer, denunciou a intromissão do Judiciário em matéria atinente ao Legislativo. Este foi enfático ao afirmar que o princípio da separação de Poderes, embora não seja um princípio rígido, implica, no seu conteúdo essencial, na distinção entre legislação e jurisdição. O princípio de-mocrático postula, por seu lado, que a decisão política seja tomada

sos penais, assim como garantir o reconhecimento do direito constitucional da gestante de se submeter ao procedimento e do direito do profissional de saúde de realizá-lo.

Ainda, como pedido principal, objetivava a declaração de inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito vincu-lante, da interpretação dos arts. 124, 126 e 128, I e II, do CP, como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, este tendo sido diagnosticado por médico habilitado. Reconhecendo, desse modo, o direito subjetivo da gestante de assim agir sem necessidade de apre-sentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica.

O Poder Judiciário, provocado a se pronunciar sobre a interrupção da gestação de feto anencefálico, estabeleceu um amplo debate com diversos segmentos da sociedade civil or-ganizada, em especial com a comunidade científica. Foram realizadas audiências públicas com o intuito de buscar elemen-tos técnicos e subsídios para enriquecimento do debate jurídico, nivelando informações relevantes para o adequado equaciona-mento do tema.

O Ministro Marco Aurélio Mello, relator do processo que conduziu o deslinde da ADPF/54, sustentou que, no caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a 100%. Para tanto, apurou dados que demonstram que fetos anencefálicos morrem no período intrauterino em mais de 50% dos casos. Quando a gestação chega ao final, a sobrevi-da é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Manter uma gestação nes-sas condições resulta em impor à mulher e à respectiva família danos à integridade moral e psicológica, além de riscos físicos reconhecidos no âmbito da medicina. A gestante convive diu-turnamente com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto que nunca poderá se tornar um ser vivo. Essa realidade é incontestável, tratando-se de uma situação concreta que foge à glosa própria ao aborto – o qual conflita com a dignidade huma-na, legalidade, liberdade e autonomia de vontade.

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dão contra excessos ou omissões lesivas, em face da omissão do Estado.

O Poder Judiciário, ao decidir pela viabilidade da interrup-ção da gestação de fetos anencéfalos, assegurou às minorias e a grupos vulneráveis a plenitude de meios para que possam exercer seus direitos fundamentais, podendo o legislador, a qualquer tempo, editar norma sobre o presente tema.

Preceitos fundamentais violados

A controvérsia do julgamento da ADPF/54 centrou-se ba-sicamente em dois aspectos. O primeiro, envolve o direito à vida do feto anencéfalo (CF, art.5º, I), cujos defensores sustentam que, mesmo com baixa expectativa de vida, o feto detém tronco encefálico, respira após o nascimento, esboça movimentos e, na condição de ser vivente, a ninguém é dado o direito de praticar homicídio, promovendo a retirada de órgãos para serem trans-plantados (COSTA, 2004).

A legislação penal e a própria Constituição Federal tu-telam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses pelas quais se admitem atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampou-co analogia in malam partem, devendo prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal (BRASIL. STF, 2003).

Clóvis Beviláqua (1956, p. 145) exemplifica que há monstros e aleijões viáveis, como há formas teratológicas inadequadas à vida. O direito romano recusava a capacidade jurídica aos que contra formam humani generis, converso more, procreantur, de-vendo essa doutrina ser afastada para considerar humano todo ser que é dado à luz por mulher e, como tal, para os efeitos do Direito, é homem.

Analisando os bebês anencéfalos, Arthur C. Guyton (apud SILVEIRA, 2004) esclarece que tais crianças são capazes de exe-cutar essencialmente todas as funções de alimentação, como sucção, expulsão de comida desagradável da boca, assim como levar as mãos à boca para sugar os dedos. Elas podem boce-jar e estirar-se; podem chorar e seguir objetos com os olhos e

diretamente ou por meio de órgãos representativos politicamente responsáveis pelo povo. Foi, ainda, taxativo ao defender que fazer as leis compete à maioria democraticamente legitimada para gover-nar e não aos juízes, mesmo que estes sejam juízes constitucionais. A estes só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. A introdução de um sistema de fiscalização jurisdicional da constitu-cionalidade das leis não retira da lei a sua posição de centralidade no ordenamento jurídico-constitucional (FONTELES, 2004).

Os Ministros Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski ali-nharam-se à posição do Procurador-Geral da República, reconhecendo a impropriedade da atuação do STF como legis-lador positivo. Entenderam ser da competência exclusiva do Congresso Nacional normatizar as consequências jurídicas da in-terrupção da gestação de feto anencéfalo. Sublinharam, ainda, a importância do Legislativo ser autorizado para descaracterizar tipicidades e instituir excludentes de punibilidade. Destacaram, do mesmo modo, que o Legislativo é o foro adequado para ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais as diretrizes determinantes da edição das normas jurídicas.

Por fim, a posição do Ministro Celso de Mello convergiu com o deslinde dado à ADPF em comento que, em seu voto, ressaltou a inércia do Poder Legislativo, influenciado por valores e sentimentos prevalecentes na sociedade brasileira, que se tem mostrado infenso à necessidade de adequação do ordenamento nacional à realidade emergente das práticas e costumes sociais, não se podendo legitimar, na perspectiva de uma concepção material de democracia constitucional, a supressão, frustração e aniquilação de direitos fundamentais, como o livre exercício da igualdade, da intimidade, da autodeterminação pessoal, da liberdade e dos direitos sexuais e reprodutivos, sob pena de descaracterização da própria essência que qualifica o Estado democrático de direito.

O sistema jurídico brasileiro, em diversas demandas, tem sido estático e não tem acompanhado a velocidade dos fatos sociais e políticos, motivo pelo qual se torna necessário assegu-rar, em sede jurisdicional, um sistema de efetiva proteção dos direitos, das liberdades e das garantias fundamentais do cida-

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gravidez de anencéfalo, posto que não há vida a ser protegida pela anencefalia, não se justificando, desse modo, a restrição aos direitos da gestante.

O Poder Judiciário, ao decidir que o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida extra-uterina, elidiu a polêmica ju-rídica pela via da atipicidade. O tema, pela sua amplitude e complexidade, deve mirar outras experiências em busca de sub-sídios no processo de interpretação.

O trabalho de pesquisa de Rafael Caiado Amaral revela que o Tribunal Federal Constitucional Alemão protege a vida in-trauterina em toda sua extensão e a considera um bem jurídico constitucionalmente protegido, prevalecendo sobre o direito à liberdade e à autodeterminação da gestante. Por outro lado, a permissão do aborto, em todas as situações, também equivale-ria a uma proteção deficiente do direito à vida e à dignidade que são assegurados ao nascituro. A solução desse conflito passa pelo critério da inexigibilidade como fator definidor do conflito de direitos fundamentais do nascituro e da gestante. Por esse critério, a licitude do aborto deve apoiar-se em exigências que dizem respeito aos próprios valores vitais da mulher, até o pon-to no qual a gravidez se configurar em sacrifício que não poderia ser exigido à mulher, quando estivesse em jogo um grave dano a sua saúde ou a sua própria vida (AMARAL, 2014, p. 66).

Para solução do conflito, o tribunal alemão utilizou-se do critério da inexigibilidade, pelo qual o aborto seria permitido nas hipóteses previstas pelo legislador, nas quais a gravidez de-veria consistir em um fardo tão grande para a gestante que não seria exigível que ela o carregasse.

Dworkin (2003, p. 147) afirma que as mulheres realmente têm direito constitucional à privacidade que, em princípio, inclui a decisão não apenas de conceber ou não filhos como também a decisão de tê-los ou não.

Rafael Caiado Amaral afirma que, na Espanha, a vida intrau-terina é protegida apenas na dimensão objetiva desse direito fundamental, uma vez que, como o nascituro não é pessoa, ele não teria o direito subjetivo à vida. Dessa forma, a vida do nas-cituro poderia sofrer limitações quando em colisão com outros

com movimentos de suas cabeças. Além disso, pressionando-se a parte anterior de suas pernas, se faz com que elas passem a uma posição sentada.

Conjugando essas situações, o Procurador-Geral da Repú-blica, Claudio Lemos Fonteles, de forma sucinta, pontuou que “se há normal processo de gestação, vida intrauterina existe” (2004). Este entendeu que a existência de vida, embora precária e efêmera, é merecedora de tutela penal.

Nesse sentido, os votos dos Ministros Cezar Peluso e Ri-cardo Lewandowsky convergiram para reconhecerem que o anencéfalo tem vida e está protegido pelo ordenamento jurídi-co. Estes entenderam prevalecer o direito à vida do anencéfalo e em desfavor do direito da gestante de interromper a gestação. O Ministro Peluso concluiu que a eliminação intencional de vida intrauterina, mesmo que anencéfala, corresponde ao tipo penal de aborto, não havendo malabarismo hermenêutico ou ginástica dialética capaz de conduzir ao entendimento diverso (BRASIL, 2012).

A corrente em defesa ao direito à vida do feto anencefáli-co entende que, havendo normal processo de gestação, existe vida-uterina, sendo esta merecedora de proteção constitucional por ser inviolável o direito à vida. Em suma, a interrupção da gravidez de anencéfalo caracteriza o crime de aborto.

Quanto ao segundo aspecto, exsurgem os direitos fun-damentais em prol da gestante, compreendidos como os da dignidade da pessoa humana que, no artigo 1º, inciso III, da CF, assegura a integridade física e moral de todas as pessoas; assim como a legalidade, liberdade e autonomia da vontade, que garantem o direito de escolha, de cada mulher expressar sua liberdade como bem desejar, seja antecipando ou manten-do a gestação e, ainda, de saúde, para protegê-la de doenças e de graves consequências psicológicas que possam resultar da gestação.

O Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela inconstitu-cionalidade da interrupção da gravidez de feto portador de anencefalia não constituir crime de aborto, entendeu que cabe à mulher, e não ao Estado, deliberar pela interrupção, ou não, da

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do anencéfalo, embora precária e efêmera, como vida humana diante dos ensinamentos da Ciência Médica.

Por meio do exercício dialético, permite-se ampliar o ob-jeto de estudo para considerar a hipótese em que, identificada a lesão a bem ou direito de outrem na interrupção da gestação de fetos anencéfalos, configura a coexistência de direitos funda-mentais, devendo ser resolvida a colisão pela via da ponderação de valores, levando em conta, de um lado, o direito à vida do feto e, de outro, a dignidade, liberdade e saúde da gestante.

Alexy (2007, p. 56-57) afirma que não existe catálogo de direitos fundamentais sem colisão de direitos fundamentais. Nesse prisma, as normas de direitos fundamentais – direito à vida intrauterina do anencéfalo versus direito à saúde e liberda-de de autonomia reprodutiva da mulher, quando há opção para o aborto – estruturam-se sob a forma de princípios e a ação de determinar qual o princípio e em que medida este de dá preva-lente a partir de um processo de ponderação, no qual se avalia o peso que cada um deles adquire no caso concreto. A solução para essas colisões deve orientar-se pela lei da ponderação, se-gundo a qual quanto maior é o grau de não-satisfação ou de afetação de um princípio, tanto maior tem de ser a importância de satisfação do outro princípio.

No caso em exame, o aborto de anencéfalos, desde que haja consentimento da gestante, atende a todos os subprincípios da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporciona-lidade, em sentido estrito. Assim, o direito à vida intrauterina do anencéfalo, apesar de protegido constitucionalmente, cede para a preservação dos direitos da gestante, porque impor uma gestação nessas condições afeta profundamente sua saúde físi-ca, psíquica e social, conforme Carolina Lima (2015, p. 206-215). A autora considera que criminalizar o aborto, nessas circunstân-cias, coloca a mulher em situação de pleno desrespeito à sua condição humana e à sua dignidade de pessoa humana, deven-do ser enquadrada a presente hipótese como exercício regular de direito, causa excludente da ilicitude.

Assim, constatada a colisão de direitos fundamentais e co-locados esses valores em uma balança, se tem o fiel da balança

valores ou direitos assegurados pela Constituição, mormente os assegurados à mãe (AMARAL, 2014, p. 54-55).

Vergílio Afonso da Silva (2005) comenta que as possí-veis colisões levam a uma necessidade de restrição a direitos fundamentais, caso esta seja necessária para a solução de tais colisões. Ainda, argumenta que todo direito fundamental é res-tringível, embora, aos olhos de muitos, possa soar estranha essa ponderação a qual reflete a realidade do que ocorre com vários casos envolvendo direitos fundamentais.

Roxin (2006, p. 169), por sua vez, destaca que se, por um lado, a vida do embrião não é disponível por qualquer motivo, por outro, se mostra passível de uma ponderação com outros valores de alta hierarquia.

A Constituição, elaborada em meio a tensões sociais e po-líticas, não terá na sua tensão interna um defeito, antes uma virtude, qual seja o de incorporar as contradições que desafiam permanentemente o intérprete a encontrar soluções proporcio-nais, segundo Freitas (2002). Nessa perspectiva, o Direito não deve ser identificado apenas como fruto de uma ação legislativa, mas como um processo, onde devem-se utilizar os instrumen-tos disponíveis para chegar ao melhor entendimento no caso concreto.

O intérprete constitucional deve possuir a visão de todos os elementos constitutivos da Lei Fundamental e entender que a proporcionalidade significa adequação meio-fim, de modo a sacrificar o mínimo para preservar o máximo.

Na ADPF/54, o STF não enfrentou a colisão entre os direi-tos fundamentais do feto e da gestante, pois reconheceu que o procedimento para interromper a gestação de feto anencéfalo não causa lesão ao bem ou direito de outrem por não haver via-bilidade de outra vida.

A decisão da Suprema Corte desencadeou novo debate a respeito dos fundamentos adotados, entre os quais se a atipi-cidade foi o melhor caminho para solução da equação ou foi a forma mais fácil para se chegar ao resultado, como argumenta Carolina Alves de Souza Lima (2015, p. 206). Ela defende a vida

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pelo menos, é defensável, em virtude de outro bem ou objetivo jurídico reconhecido como de grau superior em determinada si-tuação levada ao conhecimento do intérprete.

Nesse contexto, no campo da dialética, a presente pes-quisa provoca a existência de um autêntico conflito de direitos fundamentais, entendendo-se que, configurada a lesão ao bem ou ao direito de outrem, sendo passível o reconhecimento do crime de aborto ou de uma causa especial de exclusão de ilici-tude, ou de uma causa supra legal de exclusão da culpabilidade, conduzindo à necessária utilização da ponderação como forma de solução à hipótese sugerida.

Conclusão

O presente trabalho examinou a interrupção da gestação de fetos portadores de anencefalia em sua complexidade jurídi-ca, com repercussão em vários ramos da ciência. Observou-se a importância do Poder Judiciário para assegurar, em sede jurisdi-cional, um sistema de efetiva proteção de direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos contra excessos ou omis-sões lesivas, que justifique a redução do espaço de conformação política do legislador.

O Supremo Tribunal Federal garantiu à gestante de feto anencéfalo o direito de escolha, direito este de cada mulher ex-pressar sua liberdade, seja antecipando o parto ou mantendo a gestação. Tal decisão foi construída levando em conta que o feto portador de anencefalia não tem potencialidade de vida, assim, não causando lesão ao bem ou direito de outrem.

Por via diversa, no espaço dialético, a pesquisa nos re-mete ao concurso de direitos fundamentais, tendo de um lado o direito à vida e, de outro, os direitos da dignidade da pes-soa humana, da liberdade e da saúde, entendendo-se que, configurada a lesão ao bem ou direito de outrem, é passível o reconhecimento do crime de aborto, ou de uma causa especial de exclusão de ilicitude, ou de uma causa supra legal de exclu-são da culpabilidade.

representando o símbolo da igualdade de uma equação que vai ser transformado em peso maior (>) ou menor (<) de acordo a argumentação jurídica. Se esta fosse uma questão de decisão a partir de pesos, como esclarece a ministra Rosa Weber, ou de mesma hierarquia dos direitos fundamentais, a quantidade faria a balança pender para qualquer um dos lados, se concluindo que, como a vida é o primeiro dos direitos – sem ela os outros não podem sequer existir –, nenhum valor ou direito pode estar acima desta. Colocada a questão nesse viés, a solução só pode ser autoritária, pois depende da preferência pessoal para definir o lado para onde vai pender a haste da balança.

Ainda, Robert Alexy (1997, p. 89) afirma que, quando dois princípios jurídicos entram em colisão irreversível, um deles obrigatoriamente tem que ceder diante de outro. Porém, não significa que haja a necessidade de ser declarada a invalidade de um dos princípios, a não ser que, sob determinadas condições, um princípio tenha mais peso ou importância do que outro e, em outras circunstâncias, possa suceder o inverso.

O processo argumentativo passa, desse modo, a depen-der da aplicação do princípio da proporcionalidade e, com base em seus subprincípios, se chega à solução pela via da razão que aumenta a aceitação da racionalidade (e não da autoridade) da decisão. Gavião Filho (2011, p. 3018) conclui que o aplicador do Direito deve seguir as regras da argumentação jurídica e da ponderação. O atendimento dessas exigências assegura racio-nalidade à ponderação. Acrescenta, ainda, que a justificação racional da aplicação das normas jurídicas é inerente ao Estado de Direito democrático, exigindo-se de todos os aplicadores do Direito a ponderação racional.

A ponderação de bens, no caso concreto, segundo Karl Larenz (1989, p. 501), é um método de desenvolvimento do Di-reito que se presta a solucionar colisões de normas, bem como para delimitar as esferas de aplicação das normas que se entre-cruzam e, com isso, concretizar os direitos cujo âmbito ficou em aberto, estabelecendo-se uma clara prevalência valorativa dos bens tutelados pela Constituição Federal, o que determina que a lesão de um bem não deve ir além do que é necessário ou,

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Aborto e anencefalia: direitos fundamentais em colisão, uma nova perspectivaMauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner

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Assim, a coexistência de direitos fundamentais, no curso do embate jurisdicional, legitima o deslinde pela via da ponde-ração, a ser alcançada pela argumentação, cujo resultado define a ordem de precedência de um princípio sobre o outro.

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Mauro Henrique Renner e Olavo Garcia Renner

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Ativismo na via extrajudicial

Guilherme Augusto Faccenda1

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito Nota-rial e Registral pela Faculdade meridional IMED e em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

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Ativismo na via extrajudicialGuilherme Augusto Faccenda

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Abstract

The presente article seeks to analyze activist postures from the extrajudicial point of view, considering that, currently in the country, there is a simultaneous increase in the number of law suits (judicialization) and the search for alternative solutions (extrajudicialization). There is no intent to exhaust the subject, but rather propose a reflection in parallel with the very polemic judicial activism, which the the study is so necessary to the Law.

Keywords: Activism. Extrajudicialization. Judicialization.

Resumo

O presente artigo busca analisar posturas ativistas sob o ponto de vista extrajudicial, tendo em vista que, atualmen-te no país, há aumento concomitante do número de processos (judicialização) e da busca por soluções alternativas (extrajudi-cialização). Não há pretensão de se esgotar o tema, mas tão somente propor uma reflexão em paralelo com o tão polêmi-co tema do ativismo judicial, cujo estudo é tão necessário ao Direito.

Palavras-chave: Ativismo. Extrajudicialização. Judicialização.

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Ativismo na via extrajudicialGuilherme Augusto Faccenda

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A verdade é que toda constitucionalização e toda a po-sitivação trazem, intrinsecamente, a possibilidade de levar determinado tema à apreciação do Poder Judiciário. O Brasil possui centenas de milhares de dispositivos legais, sobre os mais variados temas, que criam um terreno fértil para a judicialização (Barroso, inclusive, aponta uma “judicialização da vida” no Bra-sil). Deste terreno fértil, como era de se esperar, nasceram 99,7 milhões de processos até o final de 2014, segundo os dados do portal “Justiça em números” operado pelo Conselho Nacio-nal de Justiça. A própria prática forense indica que os números somente aumentam, e muitos destes processos, infelizmente, acabam sequer surtindo resultados práticos por deficiências na fase executiva.

Uma área especialmente sensível ao ativismo tem sido a do direito à saúde que, ao ser garantido pela Constituição Federal, gera nos cidadãos a pretensão subjetiva de acionar o Judiciário em busca de tratamentos, medicações, cirurgias, e uma série de outras medidas. Segundo dados do Portal da Saúde da Presi-dência da República, entre 2010 e 2014, mais de dois bilhões de reais foram direcionados ao cumprimento de decisões judiciais na área da saúde, indicando que o Poder Judiciário seria respon-sável por grande movimentação orçamentária (COSTA, 2015). Apesar de ser um direito expressamente positivado, e oponível ao Estado por via de ação, muitos operadores enxergam nele uma forma de ativismo judicial, pois o responsável por fornecer a demandada saúde seria o Poder Executivo, instalando-se o in-findável debate entre direito à saúde e reserva do possível, que o Estado frequentemente alega como óbice à concretização de direitos fundamentais.

É na área do direito social à saúde onde o avanço da di-mensão prestacional do ativismo judicial se apresenta mais saliente e suscita as mais contundentes críticas. A “judicia-lização excessiva” do direito à saúde – com decisões orde-nando o fornecimento gratuito de medicamentos, alguns até importados, tratamentos médicos urgentes, muitos de alto custo e alguns até no exterior, inclusive sequestro de verbas públicas para o custeio dessas necessidades – é ro-tina nos Fóruns e Tribunais. Sem dúvida, o Supremo, funda-

É bastante difícil conceituar ativismo judicial. A imensa quan-tidade de temas que o Judiciário analisa, aliado às variações

interpretativas de quem utiliza a palavra, por vezes de forma elogiosa da forma como este Poder busca concretizar direitos fundamentais, e por vezes pejorativa, por parte de quem acredi-ta que excessos são cometidos por esta via, torna difícil o debate sobre o tema. O termo ativismo é muitas vezes usado, de forma pejorativa, como sinônimo de “excesso” cometido pelo Poder Judiciário, atuando em espaços que caberiam a outros poderes (em especial no tocante a decisões sobre inconstitucionalidade de leis ou a méritos administrativos).

O termo começou a ser usado nos Estados Unidos, em 1947, pelo historiador Arthur Schlesinger, o qual classificou de ativistas os Juízes da Suprema Corte que buscavam defender liberdades individuais e direitos sociais, nomeando os demais de “campeões de autorrestrição” (CAMPOS, 2014, p. 38). Barroso defende um conceito comportamental de ativismo, elencando as principais condutas que assim considera ativista:

A ideia de ativismo judicial está associada a uma partici-pação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes condutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e indepen-dentemente de manifestação do legislador ordinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rí-gidos que os de patente e ostensiva violação da Constitui-ção; (iii) a imposição de condutas ou de abstenções ao Po-der Público, notadamente em matéria de políticas públicas. (BARROSO, 2012, p. 26).

Não merecem reparos as colocações supracitadas. De fato, a simples declaração de inconstitucionalidade do ato nor-mativo não é ativismo: é tão somente o exercício regular de uma competência constitucional outorgada tanto ao STF como aos demais Tribunais e magistrados. Haverá ativismo quando, por outro lado, buscar-se expandir o controle de constitucionalida-de, ampliando o alcance da mera interpretação filológica.

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Ativismo na via extrajudicialGuilherme Augusto Faccenda

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Características que levam ao ativismo

Causou polêmica e alcançou os noticiários uma escritura pública, lavrada pela Tabeliã Cláudia do Nascimento Domin-gues, na cidade de Tupã (São Paulo), na qual um homem e duas mulheres declararam viver em união estável há mais de três anos (IBDFAM, 2012). Esta, é considerada a primeira escritura que trata de uniões paralelas no Brasil. A tabeliã, portando sua fé pública, averiguou que as partes se consideravam família e não encontrou impedimentos para que eles buscassem seus direitos através deste meio de prova. Sem dúvida, há um impedimen-to matrimonial, de acordo com o texto do Código Civil, artigo 1.521. Diante dos fatos, e do princípio do pluralismo familiar constitucional, no entanto, a tabeliã, independente no exercício de suas funções, averiguou que o arranjo familiar era digno de receber forma pública.

Questiona-se se esta seria uma postura ativista – e, por-tanto, um ativismo extrajudicial. Do ponto de vista de Barroso, inicialmente apresentado, a resposta aparenta ser positiva: hou-ve aplicação de princípios constitucionais em um caso no qual o legislador veda a incidência de efeitos (ou seja, ainda mais intenso que uma omissão legislativa). Todavia, até por ser uma abordagem pouco usual do assunto, pode-se pensar em uma resposta negativa, relegando a conduta ativista exclusivamen-te aos magistrados. Nesta senda, merecem leitura as seguintes decisões judiciais:

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. RECONHECIMENTO. POSSIBILIDADE. Caso em que, em face de peculiaridade, resta viável reconhecer união estável mantida por pessoa casada. Reconhecimento dos réus a respeito da existência de relacionamento por mais de 20 anos, e existência de dois filhos. Presentes requisitos caracterizadores da união estável. Precedentes jurisprudenciais. NEGARAM PROVI-MENTO. (Apelação Cível Nº 70039847553, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Jul-gado em 28/04/2011).DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPO-RÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILI-DADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDA-

do principalmente na proteção ao mínimo existencial, teve participação importante nesse estágio de coisas. (CAM-POS, 2014, p. 281).

Um dos fatores que a doutrina aponta como fomentadores de ativismo judicial é justamente a ineficácia do Poder Executi-vo, que, ao negar direitos de maneira ilícita, força o cidadão a buscar o Poder Judiciário – dada a presunção de legitimidade dos atos da Administração Pública.

O acúmulo de processos causa excessiva morosidade na prestação jurisdicional, e é consenso na doutrina o movimen-to de fuga do Poder Judiciário, uma tendência que, inclusive, vem sendo positivada dia após dia. O marco desta foi a Lei 11.441 (BRASIL, 2007), que alterou o antigo Código de Proces-so Civil para adicionar a possibilidade de inventário e divórcios extrajudiciais, confeccionados perante um Tabelião de Notas de confiança das partes que sejam maiores, capazes e concordes. A partir desta, a sociedade e o Judiciário perceberam que mi-lhares de casos que, pela via processual, demorariam meses ou anos para serem resolvidos (gerando incontáveis incômodos, atrasos e mesmo entraves na circulação de bens), poderiam ser resolvidos em menos de um mês e com muito menos dispêndio. Estima-se que, desde a promulgação da referida lei, o Poder Ju-diciário foi poupado de mais de 1,3 milhão de processos – dado apenas referente a divórcios e partilhas (REVISTA CONSULTOR JURÍDICO, 2016).

Tendo em mente tais ideias, esta breve exposição anali-sará a possibilidade de se falar em ativismo na via extrajudicial, bem como sua relação com o ativismo judicial. Apesar de ser uma temática ainda não explorada, acredita-se que, no atual ce-nário, no qual caminham juntas uma grande judicialização e a crescente extrajudicialização (sem dúvida antitéticos), a análise desta correlação é viável e contém importantes consequências práticas. Mais do que uma ferramenta de diminuição de pro-cessos, aborda-se o potencial de concretização de direitos de maneira extrajudicial.

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Mais do que considerar o brocardo ubi eadem ratio ibi eadem jus (onde está a mesma razão está o mesmo direito), estamos diante de profissionais do direito, independentes no exercício das funções e que, diante de casos análogos, mesmo contrários ao expresso texto legal, tomaram decisões similares.

Por evidente, no âmbito processual, em larga medida, preocu-pa-se com lides, conflitos de interesses opostos (ressalvados os casos de jurisdição voluntária). O âmbito extrajudicial opera com base no consenso informado de partes capazes, formalizando e trazendo efi-cácia e segurança para os mais variados atos da vida civil. Os notários, ou tabeliães de notas, são incumbidos de lavrar instrumentos como escrituras públicas, atas notariais, testamentos públicos, autenticar fatos, entre outros, destas funções surgindo atos extremamente segu-ros e autênticos, dotados de fé pública. Já os registradores mantêm a guarda, por tempo indefinido, de variados atos da mais alta importân-cia para a vida civil, tais como nascimentos, casamentos, propriedade imobiliária e pessoas jurídicas.

O processualista italiano Francesco Carnelutti dizia que “tanto più notaio, tanto meno giudice” (“quanto mais notário, menos juiz”). No exercício de sua função, o notário intervém em negócios jurídicos celebrados, devendo orientar as partes sobre como formalizar o ato pretendido de maneira mais eficiente e econômica.

De um ponto de vista ontológico, as funções do magis-trado,e dos tabeliães ou dos oficiais de registro são bastante diferentes. O juiz substitui a vontade das partes, enquanto o no-tário formaliza esta vontade (CAMPILONGO, p. 140). Todavia, no plano axiológico, as funções que estes profissionais exercem possuem semelhanças dignas de nota. Todos os três são profis-sionais do Direito, aprovados em concurso público, e que gozam de independência no exercício de suas funções. José Renato Nalini (2014) vai além, inclusive, mencionando que enxerga simi-litude que caminha para verdadeira identidade, pois a função do notário e do registrador não são estranhas à função do Juiz, o qual tem o ministério de conferir segurança jurídica, estabilizar relações e pacificar e harmonizar o convívio (REZENDE, 2013, p. 28).

DES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivên-cia afetiva - pública, contínua e duradoura - um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cres-ceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apela-da, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina - palavra preconceituosa - mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igual-dade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta in-visibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acon-tecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irrespon-sabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro. (TJ-MG; Relatado Desembargadora Maria Elza, julgado em novembro de 2008, Apelação Cível n° 1.0017.05.016882-6/003).

Estreme de dúvidas o caráter ativista das decisões judiciais, as quais, em situações análogas, decidiram – contrariamente ao expresso texto do Código Civil – reconhecer efeitos a famílias simultâneas. Em relação à conduta do tabelião, a essência da interpretação jurídica teve o mesmo resultado, um resultado ativista, à medida que busca con-cretizar determinadas finalidades que, previstas na Constituição, não estão inseridas na legislação ordinária.

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No tocante a registradores, lógica semelhante se aplica. Em se tratando de profissionais do Direito, independentes no exercício da funções e selecionados mediante concurso público, cabe a eles fazerem interpretações jurídicas dos negócios e atos que buscam ingresso. Apesar da qualificação registral ser, de certa forma, mais rígida, mesmo assim é possível uma ampliação, conforme se verá adiante. Representando a doutrina civilista moderna, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald disser-tam que o registro, a propriedade e a liberdade aproximam as pessoas do Estado Democrático de Direito, pois o incremento à segurança estabiliza e dá confiabilidade aos negócios, e bem por isso é o registro imobiliário conduzido por um profissional do direito (FARIAS; ROSENLVALD, 2014, p. 321).

Influências entre as vias judicial e extrajudicial

O Poder Judiciário é limitado, em um primeiro momento, ao princípio da inércia, apenas podendo atuar quando chamado a tanto por uma parte legítima. Notários e registradores sujei-tam-se a norma similar, chamada princípio da rogação ou da instância. Por causa deste, apenas podem agir se forem instados a tanto por um interessado. Portanto, tanto um como outro não atuam voluntariamente à procura de demandas para solucionar, mas estas que batem nas suas portas em busca de regulação.

O notário não poderá negar-se à realização de atos de sua função, devido à característica jurídica que abrange tal ministério. Poderá ocorrer recusa formal para o exercício, caso tenha que ferir quaisquer dos princípios de sua fun-ção e do Direito, evidentemente depois de bem analisada a questão. Para atuar, o notário deve ser instado, chamado. Não pode agir de ofício, necessitando uma rogação, um pedido. (REZENDE, 2013, p. 73).

Um dos sujeitos que pode provocar a atuação notarial ou registral é o próprio Juiz, diretamente oficiando uma serventia para a prática de determinado ato. A prática deste ato, sem dú-

O autor Marcelo Augusto Santana de Melo (apud. NALINI, 2014, p. 396), ao lembrar que a fiscalização pelo CNJ, após a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, recai sobre o Poder Judi-ciário e sobre os serviços notariais de registro em igualdade de condições, considera que “não é nenhum absurdo jurídico dizer que a qualificação registral, cotejando-se com outros sistemas registrários, equivale a uma sentença de mérito de primeira ins-tância anômala, já que não gera coisa julgada”.

Notários e registradores prestam um serviço público, de for-ma delegada pelo Estado, por meio de concurso público. Em suas funções, gozam de independência (Lei 8.953, art. 28, 1994), o que sig-nifica dizer que não podem ser compelidos a praticar atos fora dos parâmetros estabelecidos pela Lei e pela Constituição. Esta indepen-dência, contudo, não afasta a fiscalização dos atos pelo Poder Judiciário. Nas palavras de Ricardo Dip, “o controle administra-tivo dos registros públicos [...] comporta que a expedição de ordens, conselhos e instruções dirigidos aos registradores se fronteirizem em que não impliquem interferência ablatória do juízo prudencial próprio do registrador” (DIP, 2010, p. 95). Ou seja, o registrador possui independência no exercício de suas funções, mas deve agir dentro da legalidade administrativa – a qual dita que só se pode praticar o que a lei permite, diferente da legalidade dos particulares, pela qual é possível a prática do que não for proscrito (CARVALHO FILHO, 2013, p. 20). Todavia, ao se considerar notários e registradores como profissionais do Direi-to, deve-se ter em mente que o Direito é mais amplo que a legalidade positiva, abrangendo doutrinas, jurisprudências, valores, interpreta-ções e argumentações jurídicas.

As normas administrativas do Rio Grande do Sul, relativas a notários, art. 585, estabelecem que “os tabeliães só pode-rão lavrar ou autenticar, inclusive através de reconhecimento de firmas, atos conformes com a lei, o direito e a justiça”. Ou seja, tabeliães de notas, observando a legislação, não devem eximir-se de fazer uma análise com base no Direito e na Justiça, inserindo na qualificação notarial uma análise que vai além das regras, mas engloba, inexoravelmente, princípios e valores.

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A judicialização e o ativismo judicial são primos. Vêm, por-tanto, da mesma família, frequentam os mesmos lugares, mas não têm as mesmas origens. Não são gerados, a rigor, pelas mesmas causas imediatas. A judicialização, no con-texto brasileiro, é um fato, uma circunstância que decorre do modelo constitucional que se adotou, e não um exercí-cio deliberado de vontade política. Em todos os casos refe-ridos acima, o Judiciário decidiu porque era o que lhe cabia fazer, sem alternativa. Se uma norma constitucional permite que dela se deduza uma pretensão, subjetiva ou objetiva, ao juiz cabe dela conhecer, decidindo a matéria. Já o ativis-mo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamen-to entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. (BARROSO, 2012, p. 25).

Note-se, também, que o CNJ, para efetivar e nacionalizar o entendimento pacificado pelo STF, após longo e árduo debate, seguido de uma decisão indubitavelmente ativista, necessitou equipar a via extrajudicial com normas adequadas para que esta postura ativista efetivasse os direitos pertinentes (qual seja, à possibilidade de formação de família, em pé de igualdade, para casais homoafetivos). Assim, no mínimo, é possível reconhecer que o ativismo judicial é refletido na seara extrajudicial. A esta última cabe, em diversos casos, qualificar, instrumentalizar e efe-tivar direitos que o primeiro buscou garantir. Até mesmo sob o ponto de vista da eficiência, sem a via extrajudicial atuando em paralelo às decisões ativistas (sendo que, até hoje, a legislação nunca foi alterada, e mesmo a Constituição Federal ainda prevê que a união familiar ocorre “entre o homem e a mulher”), atuan-do em sincronia, toda união homoafetiva, para transformar-se em formalizado casamento homoafetivo, seria forçada a buscar no Judiciário seu direito de reconhecimento. O ativismo extraju-dicial, aqui, além de concretizar direitos e igualdade, torna todo o procedimento muito mais célere e econômico para milhares de pessoas.

Outro exemplo interessante seria em relação à usucapião de bem público, o qual é, por repetidas vezes, proscrito pelo

vida, poderá denotar uma conduta ativista. Assim foi, inclusive, o início da aceitação do casamento homoafetivo no país: após o magistrado deferir a medida nos autos do processo, encaminha-va ofício ao Registro Civil de Pessoas Naturais para a confecção do ato pertinente à efetivar o casamento. Debate dos mais mar-cantes no Direito brasileiro é aquele acerca de união estável e casamento homoafetivo, pois, ainda que acolhido pela igualda-de e pela dignidade humana, não é reconhecido pela legislação nem pela Constituição.

Sendo reconhecida a união estável, consequência natural seria o reconhecimento da possibilidade matrimonial. A Consti-tuição determina que a lei facilite a conversão de união estável em casamento, porém, na esfera legislativa, nada ainda foi mo-dificado. É sabido que o tema enseja muita controvérsia e que a votação de certos Projetos de Lei possui trâmite moroso no Congresso Nacional. Todavia, no âmbito administrativo, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), por meio da resolução número 175, de 14 de maio de 2013, vedou aos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais recusarem habilitação e casamento de ca-sais do mesmo sexo, bem como a conversão de união estável em casamento. Interessante, inclusive, que a redação escolhida foi de forma negativa, dizendo que, pelas autoridades competen-tes, “é vedada a recusa” de proceder à habilitação e celebração de casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Perceba-se que a semente da postura ativista do Poder Judiciário foi justamente a possibilidade desta matéria ter sido levada à apreciação judicial (judicialização do assunto). Um dos fatores (não negativos) que ampliou a atuação do poder Judi-ciário foi justamente a própria ampliação do direito de acesso à justiça. Em décadas passadas, apenas poucos privilegiados, com conhecimento o suficiente e acesso a advogados, conseguiam levar suas pretensões às raias do Judiciário, excluindo a massa populacional sem condições para tanto. Com a instituição da Defensoria Pública, e com o natural aumento no números de advogados, muitos, que previamente não conseguiriam ter suas vozes ouvidas, lograram êxito em judicializar suas pretensões. Conforme Barroso:

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bens desafetados e sem qualquer perspectiva de utilização para o interesse público, se desobrigando ao cumprimento da função social da propriedade”, afirma o parecer emitido pelo MP. (TARTUCE, 2014).

Apesar da polêmica extrema que o tema possa suscitar, não se tem dúvidas de que a decisão do Juiz, de caráter ativista, não garantirá a publicidade necessária ao absolutismo (oponi-bilidade erga omnes) de que demandam os direitos reais. Para tanto, será necessário promover o registro da decisão de usuca-pião no fólio real, sendo esta decisão qualificada pelo Oficial de Registro de Imóveis – este trata-se do exame do título judicial, verificando se possui os requisitos necessários para ingresso no fólio real e consequente consolidação do direito como real.

É extenso, na doutrina registral, o debate sobre a qualifi-cação dos títulos de origem judicial, já que ainda são bastante nebulosos os limites e espaços cabíveis ao magistrado e regis-trador, pois, conforme dito, ambos são independentes em suas funções e estas podem entrar em conflito. De maneira objetiva e acertada, Márcio Guerra Serra assim resume esta qualificação como

Todo e qualquer título, independentemente de sua origem, que ingresse na serventia imobiliária passará por esta qua-lificação para verificar se está apto para o registro. Assim, devem passar pela qualificação registral tanto as escrituras públicas quanto os atos particulares, bem como os títulos judiciais. O fato de os títulos terem tido origem em uma au-toridade judiciária não retira o poder -dever do registrador de proceder à qualificação registrária deles e, em consequ-ência disto, não isenta o registrador de possíveis responsa-bilizações decorrentes da falta de qualificação ou da quali-ficação incompleta destes títulos. Todavia, a verificação da conformidade dos títulos judiciais com a legislação regis-trária não pode invadir a esfera jurisdicional. Isto significa que a qualificação não pode atingir o mérito da decisão judicial, restringindo -se à verificação de suas formalidades extrínsecas, sobre as quais não se tenha tratado dentro do dispositivo da sentença. (SERRA, 2013, p. 149).

Uma das grandes novidades do Novo CPC, denotando novamente a confiança na fé pública e na qualificação registral

ordenamento jurídico constitucional e infraconstitucional. Mes-mo em se tratando de uma regra sem exceções, não se nega, no mínimo, haver diversos casos em que terras públicas são ocu-padas (muitas vezes por famílias de baixa renda) para fins de concretizar, por força própria, o direito à moradia. Nesses ca-sos, apesar da oposição ser entre um princípio (moradia) e uma regra (vedação de usucapião de bem público), afastando a pon-deração principiológica, é de se reconhecer que o direito social à moradia constitui uma excelente razão para que se garanta algum tipo de proteção ao indivíduo que, carente de recursos, buscou assim o meio de habitar.

Para José Afonso da Silva, o direito à moradia já era pre-visão originária da Constituição Federal de 1988, pois, em seu artigo 23, estabelecia ser competência comum dos entes fede-rados a promoção de programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento (SILVA, 2013, p. 318). Este ainda, defende que a moradia deve garantir uma série de outros direitos (como dignidade, saúde e intimida-de, fornecendo âmbito seguro para que os indivíduos possam livremente desenvolver sua personalidade) sob pena de ser um “direito empobrecido” (SILVA, 2013, p. 318). Logo, já se tem no-tícias de decisões que, cientes às peculiaridades que a realidade fática pode apresentar em casos concretos, julgaram possível a usucapião de bens desafetados. Noticiado por Flávio Tartuce, o seguinte caso ocorreu em Minas Gerais:

Em uma decisão inédita na região e pouco comum no país (processo nº 194.10.011238-3), o juiz titular da Vara da Fa-zenda Pública de Coronel Fabriciano, Marcelo Pereira da Silva, indeferiu o pedido do Departamento de Estradas de Rodagem de Minas Gerais (DER-MG), que solicitava a de-socupação de uma área pública estadual de 36 mil metros quadrados, no Km 280 da BR-381, próximo ao trevo de An-tônio Dias, onde residem cerca de dez famílias, formadas, em sua maioria, por servidores e ex-servidores do próprio DER-MG, instalados no local desde a construção da rodo-via, há cerca de 30 anos. (...).“Não se pode permitir num país como o Brasil, em que, infelizmente, milhões de pes-soas ainda vivem à margem da sociedade, que o Estado, por desídia ou omissão, possa manter-se proprietário de

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a transmissão de um imóvel inexistente). Segue a ementa do julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO TRIBUTÁRIO. ITBI. DÚVI-DA SUSCITADA PELO OFICIAL REGISTRAL. COMPRA E VENDA DE FRAÇÃO IDEAL DE TERRENO. BASE DE CÁLCULO. NÃO-INCIDÊNCIA DE IMPOSTO SOBRE O VALOR DE FINANCIAMENTO DE FUTURA EDIFICA-ÇÃO. Não incide ITBI sobre futuro imóvel a ser construído. A aquisição, fato gerador do tributo, deu-se apenas sobre fração do terreno objeto da compra e venda, com finan-ciamento realizado junto à Caixa Econômica Federal para posterior edificação de unidade habitacional. Incidência dos verbetes nºs 110 e 470 da Súmula do STF. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70028039402, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Almir Por-to da Rocha Filho, Julgado em 22/06/2011).

No caso citado, o Oficial de Registro suscitou dúvida com base na irregularidade desta cobrança tributária, o que foi posteriormente confirmado pelo Poder Judiciário com base, in-clusive, em jurisprudência sumulada pelo STF2. A conduta do Oficial acabou protegendo cerca de vinte contratantes que bus-cavam o Registro dos instrumentos contra cobrança ilegal de tributo municipal.

Novamente, no mínimo, se considera que a postura do profissional ocorreu em zona cinzenta no tocante à legislação, pois, assim como seus atos detém fé pública, os atos do poder público gozam de presunção de legitimidade. Para contradizê--los, em regra, seria necessária uma decisão judicial.

Os exemplos trazidos, abrangendo tanto notários como registradores, responsáveis por funções extrajudiciais no Brasil, denotam posturas ativistas, mas sempre defensáveis juridica-mente. Em se tratando de serviços públicos, o espaço reservado para exteriorização de argumentação e de razões jurídicas, sem dúvida, acaba reduzido em escrituras públicas, matrículas imo-

2 Verbetes número 110 - O imposto de transmissão “inter vivos” não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada pelo adquirente, mas sobre o que tiver sido construído ao tempo da alienação do terreno; e número 470 - O imposto de transmissão “inter vivos” não incide sobre a construção, ou parte dela, realizada, inequivocamente, pelo promitente comprador, mas sobre o valor do que tiver sido construído antes da promessa de venda.

imobiliária, é a possibilidade de usucapião extrajudicial (artigo 1.071 do referido diploma). Interessante notar que a própria Lei menciona que o pedido será “processado” perante o Oficial de Registro de Imóveis, com uma parte representada por advogado, e o pedido é uma petição inicial (§10 do artigo 1.071), passível de emenda no caso do feito ser remetido às vias ordinárias. É incontestável o preparo jurídico necessário ao profissional que conduz os atos, tendo estes que ser de maneira lógica e enca-deada. Conforme já se falou, no tocante ao Registro de Imóveis, responsável pela segurança e pela publicidade das transmissões e constituições de direitos reais, este é fortemente limitado pelo princípio da legalidade, derivado diretamente das característi-cas presentes nos direitos reais – e sua força, oponíveis contra todos, e aderentes à coisa.

No caso em tela, de usucapião de bem público, presentes os pressupostos registrais (tais como especialidade objetiva e subjetiva, lembrando que a usucapião tem força de quebrar a continuidade da cadeia de titulares de um imóvel), será total-mente justificado o efetivo registro do título, oriundo de decisão judicial ativista. A qualificação registral não afetaria, assim, o mérito de uma decisão judicial ativista. É idêntica conclusão de Márcio Guerra Serra, o qual salienta que “o registrador tem o poder-dever de proceder à qualificação registrária dos títulos judiciais, apontando todos os aspectos que impediriam o regis-tro como se fosse qualquer outro tipo de título, abstendo-se apenas de contestar o mérito das referidas decisões” (SERRA; SERRA, 2013, p. 151).

Todavia, dado o caráter eminentemente jurídico da qua-lificação, um ato administrativo do Poder Público que viole lei ou jurisprudência, inobstante a sua presunção de legitimida-de, poderá ser negado pelo Oficial. Instigante caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Apelação Cível nª 70028039402), no qual, em contrato de compra e venda de fração ideal de terreno, com finalidade de futura construção, o Município ordenou cobrança de ITBI abrangendo, na base de cálculo, o valor da futura construção (portanto, cobrando

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Mesmo na via administrativa, à estrita legalidade não é dispensável uma leitura constitucional das normas postas, e não se espera que um profissional do Direito, dotado de indepen-dência funcional, fique impossibilitado de se posicionar contra uma determinação que viole o ordenamento jurídico, caso este esteja amparado de argumentos e razões para tanto. Desse modo, não é adequado adotar uma postura ativista com base unicamente em conceitos vagos, como o “bom” ou o “justo”, sob pena de se converter um posicionamento jurídico em mera escolha arbitrária. Mesmo que a violação seja principiológica, o raciocínio demonstrado se aplica com a necessidade de arrazoar as colocações postas.

Ressalte-se, por fim, que o simples fato de uma postura de um operador do Direito ser ativista não afasta a racionalidade da sua conduta. Caso seja acompanhada de boas razões, tais como doutrina majoritária ou jurisprudência dominante, sendo adequadamente fundamentadas, não se deve considerar o ato como nulo prima facie. A correspondente análise das razões, junto com a coerência argumentativa, no caso concreto, são as ferramentas que indicarão a compatibilidade da conduta com o ordenamento jurídico.

Referências

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CAMPILONGO, C. F. Função social do notariado: eficiência, con-fiança e imparcialidade. São Paulo: Saraiva, 2014.

CAMPOS, C. A. de A. Dimensões do ativismo judicial no STF. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

CARVALHO FILHO, J. dos S. Comentários ao estatuto da cidade. 5 ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2013.

biliárias e registros, os quais não parecem ser a melhor solução diante de casos tidos como “ativistas”.

Em casos de conflito legislativo, ou mesmo omissão legis-lativa, nas quais é necessária uma argumentação coerente, com encadeamento lógico dos motivos que levam os profissionais a determinada postura, parece ser mais adequado um espaço para justificativa dos atos. No entanto, nos casos de negativas de registros – procedimento de dúvida do artigo 198 da Lei 6.015/73 – não há dúvidas de que estamos diante de um espaço adequado para ampla exposição de razões.

Para os notários, que atuam de forma bastante dinâmica e próxima às necessidades sociais, negociais e econômicas, a escritura pública apresenta oportunidade para indicar funda-mentos legais e de Direito. Faz parte da deontologia notarial atuar de forma imparcial e assistir efetivamente as partes, pro-pondo soluções e realizando análises jurídicas de casos, e, em especial, com o dever de informar as partes negociantes sobre as formalidades a serem praticadas, as consequências jurídicas de seus atos, a eficácia, ou mesmo qual a via mais econômica e eficiente para obterem o desejado (RODRIGUES, 2013, p. 29).

Considerações finais

Na linha do exposto, é seguro concluir que posturas ativis-tas podem ser tomadas nas vias extrajudiciais por dois modos, seja em cumprimento de uma ordem judicial de orientação ativis-ta, seja no desempenho das funções, de maneira independente, do notário e do registrador que interpreta a lei ou a Constituição de maneira a buscar concretização de certos valores ou princípios.

As lei são formadas com a pretensão de permanência para resolver os problemas sociais, ordenando a convivência humana nos seus variados níveis. No entanto, a realidade fática apre-senta seu próprio desenvolvimento, não sendo restringida à estagnação legal; necessária, portanto, a previsão, no próprio sistema, de uma porosidade que permita a concepção de novas realidades.

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Guilherme Augusto Faccenda

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AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA E SEU ATUAL ESTÁGIO NO DIREITO

BRASILEIRO: ENTRE REPAROS NECESSÁRIOS E SUA OTIMIZAÇÃO

PROCEDIMENTAL.Eixo temático: Garantias

Processuais dos Bens Públicos Incondicionados

Vanessa Pedroso Coelho1 Mauro Fonseca Andrade2

1 Mestranda em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP. E-mail: [email protected]

2 Doutor em Direito Processual Penal pela Universidade de Barcelona/Espanha. Professor Titular da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

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Audiência de custódia e seu atual estágio no direito brasileiro: entre reparos necessários e sua otimização procedimental.Vanessa Pedroso Coelho e Mauro Fonseca Andrade

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Abstract

This article discusses the implementation of the custody hearing in the Brazilian legal system, focusing the Project of law nº 554, of the Federal Senate, and Resolution Nº 213, of the National Council of Justice, seeking to standardize the procedures to be adopted for the realization of this novel institute in our country. During the work, it is proposed improvements to practices already adopted, so that the institute can be consistent with the rights and guarantees listed in our Constitution and in our Code of Criminal Procedure. The methodology focuses on induction and bibliographical research technique.

Keywords: Custody hearing. Fundamental rights. Prision. Freedom.

Resumo

O presente artigo trata sobre a implementação da audiên-cia de custódia no ordenamento jurídico brasileiro, com enfoque no Projeto de Lei nº 554 do Senado Federal, e na Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça. Estes buscam padronizar os procedimentos a serem adotados durante a realização des-se novel instituto no nosso país. No decorrer do trabalho, são propostas melhorias às práticas já adotadas, a fim de que este instituto possa se coadunar com as garantias e direitos elen-cados em nossa Constituição Federal e em nosso Código de Processo Penal. A metodologia adotada privilegia a indução e a técnica de pesquisa bibliográfica.

Palavras-chave: Audiência de Custódia. Direitos Funda-mentais. Prisão. Liberdade.

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Prestes a completar um ano de existência, é possível afir-mar que ainda há um sério preconceito judicial em relação à audiência de custódia, claramente estampado em certas prá-ticas voltadas ao esvaziamento da importância ou efetividade daquela apresentação. Por outro lado, também é possível ob-servar que, da forma como é apresentada no direito brasileiro, há muito espaço para que a audiência de custódia possa vir a proporcionar uma melhor racionalização na prestação jurisdicio-nal, sem descurar, por óbvio, da proteção dos direitos da pessoa apresentada ao juiz.

Por essa soma de motivos, verifica-se a necessidade de uma revisão de duas ordens quanto aos textos que tratam da audiência de custódia em nosso país. Primeiro, uma revisão na própria Resolução nº 213 para a incorporação de temas já disci-plinados legalmente em nosso país. Segundo, uma revisão dos projetos de lei que, hoje em dia, tramitam no Congresso Nacio-nal visando à regulamentação legal daquele instituto, pois as sugestões existentes exigem, por mandamento constitucional, que temas ligados a direito processual somente possam vir a ser criados por leis federais.

Portanto, o presente artigo tem por objetivo propor me-lhorias no trato e regulamentação do instituto conhecimento como audiência de custódia, a fim de que ela possa melhor se ajustar a todos os direitos atualmente elencados em nossa Cons-tituição Federal e em nosso Código de Processo Penal.

A metodologia deste baseia-se, especialmente, na pes-quisa bibliográfica, que possibilitou um suporte teórico para o desenvolvimento das ideias aqui lançadas. O método de abor-dagem adotado foi o indutivo.

Ao tempo em que vários países europeus e latino-americanos se encarregavam não só de redigir tratados internacio-

nais protetivos de direitos humanos, mas também ratificá-los e empreender duros esforços para que estes fossem verdadeira-mente implementados e respeitados em suas realidades locais, o Brasil seguia letárgico em seu berço esplêndido, como se o tema direitos humanos não lhe dissesse respeito. Somente na década de 1990 é que esse panorama começou a mudar com a ratificação de dois pactos internacionais relacionados ao tema: o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica.

Mesmo assim, diversos direitos neles constantes passaram ao largo da atenção não só do poder público – leia-se Poder Legislativo, Executivo e Judiciário –, mas, também, dos próprios operadores do Direito e da academia nacional. Sem exagero, é possível afirmar que a efetivação de todos aqueles direitos vem se dando a conta gotas, mais ligada aos interesses políticos ou profissionais do momento, do que, propriamente a uma preocu-pação de levar os direitos a sério, como já disse Dworkin (2002).

Ao tempo de hoje, aqueles textos internacionais vêm sen-do invocados para a colocação em prática, no cenário nacional, de um direito que neles se faz presente desde as suas origens, o que significa dizer que, quando o Brasil ratificou o Pacto Inter-nacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto de San José da Costa Rica, ele sabia muito bem o que estava se comprometen-do a cumprir. Referimo-nos ao direito de toda presa ou detida de ser, sem demora, apresentada a um juiz ou outro profissional com poderes jurisdicionais, direito este que, por aqui, passou a ser chamado de audiência de custódia.

O intento de regulamentar esse direito em âmbito legis-lativo vem se dando desde 2011, mas nenhum avanço efetivo ocorreu desde então. Foi preciso que o Conselho Nacional de Justiça interviesse para, ao final, emitir a Resolução nº 213, de 15 de dezembro de 2015, na qual foram traçadas regras para que aquele ato, de modo uniforme, pudesse ser realizado em todo o território nacional.

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de cada réu ocorra de modo individual, para que este tenha a maior liberdade possível para expor sua versão sobre o fato que lhe é imputado, ainda que seja para atribuir sua prática às demais pessoas que também figuram no polo passivo daquele processo.

Embora a doutrina já tenha feito esse alerta (ANDRADE, 2016a, p. 242-244) em razão de alguns juízes estarem realizando verdadeiras audiências coletivas – nas quais todas as pessoas presas são entrevistadas ao mesmo tempo e de modo conjun-to –, é possível observar que tal prática segue ocorrendo. Em situações como esta, a perspectiva adotada pelos juízes é que a audiência de custódia se presta unicamente a averiguar se a pessoa apresentada sofreu algum tipo de agressão física ou psí-quica no momento da prisão ou imediatamente posterior a ela. Há um completo desprezo quanto aos verdadeiros objetivos da audiência de custódia e quanto às hipóteses de atuação defen-siva, a fim de que ela possa lograr êxito em relação aos pleitos apresentados ao juiz naquele ato (ANDRADE; ALFLEN, 2016, p. 56-60).

Como não se pode pressupor que um magistrado não sai-ba o conteúdo da norma expressamente prevista no Código de Processo Penal (artigo 191), ou que este não saiba que aquele ato se presta para a pessoa apresentada expor os argumentos voltados à obtenção de sua liberdade (seja a que título for), fica extremamente reduzido o número de explicações que jus-tifiquem os motivos pelos quais alguns juízes procedem de tal forma.

A única explicação plausível para a realização dessas au-diências coletivas parece ser uma só: a audiência de custódia é encarada como um ato indesejado por magistrados com essa postura, pois, na visão deles, ela seria um entrave ao desem-penho de suas atividades normais e rotineiras junto aos seus cartórios criminais. Ou seja, se houver algum artifício para abre-viar o tempo dispendido com as apresentações judiciais das pessoas presas, esse artifício deve ser utilizado, já que, em rea-lidade, o que importaria é o normal funcionamento dos ofícios judiciais aos quais esses magistrados estão vinculados, em lugar

Reforços necessários à resolução 213 do conselho nacional de justiça

A Resolução 213 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pretendeu dar um fim à forma discrepante como cada Tribunal de Justiça do país vinha disciplinando a audiência de custódia em sua circunscrição. Entretanto, os esforços do CNJ ainda não conseguiram superar o alto grau de resistência existente no pró-prio Poder Judiciário, ora manifestado por seus integrantes de modo individual, ora manifestado pelas próprias Cortes locais, ao utilizarem subterfúgios voltados ao esvaziamento daquela apresentação judicial.

É devido a estes motivos que a Resolução 213 merece ser revista em alguns pontos, como forma de blindar a audiência de custódia contra atitudes provenientes de quem atenta contra um direito assegurado por tratados internacionais, e de quem vê seus interesses pessoais / institucionais como superiores aos direitos humanos internacionalmente protegidos.

Entrevista individual da pessoa apresentada

Em razão da criminalidade ter atingido níveis alarmantes em nosso país, é possível observar que há um aumento no nú-mero de prisões em flagrante nas quais se verifica a existência de concurso de agentes. Consequência disso é que, nos autos de prisão em flagrante onde há duas ou mais pessoas figurando como conduzidas, isso implicará na necessidade dessas duas ou mais pessoas serem apresentadas ao juiz para os fins próprios da audiência de custódia.

Em razão desta ser um ato durante o qual a pessoa apre-sentada poderá expor todos os argumentos necessários para que possa obter sua liberdade, é mais do que natural que aquele ato judicial envolva somente a figura de uma pessoa apresenta-da por vez, independentemente de várias outras haverem sido presas a título de concurso de agentes. Basta lembrarmos que, nos processos de conhecimento de natureza condenatória, o próprio Código de Processo Penal exige que o interrogatório

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Sem meios termos, a resolução emitida pelo Conselho Su-perior da Magistratura gaúcha criou um artifício para diminuir o número de audiências de custódia a serem realizadas, permi-tindo sua dispensabilidade em casos nos quais a pessoa presa em flagrante possa ser colocada em liberdade antes de sua apresentação judicial. De acordo com a Resolução nº 1143/2016 – COMAG, os autos de prisão em flagrante devem ser encami-nhados ao juiz competente, que, antes mesmo da audiência de custódia, poderá analisar aqueles autos e conceder a liberdade à pessoa presa, a título de relaxamento de prisão ou de liberda-de provisória. Mais do que isto, essa resolução prevê que o juiz poderá aprazar a audiência de custódia no prazo de 24 horas, o que a torna em um ato facultativo, em lugar de obrigatório, tal como disciplinado pela Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça, e pelos pactos internacionais ratificados pelo Brasil.

Não é preciso ter grandes luzes para perceber que esse dispositivo – claramente utilitarista – cria uma regra de exceção que a Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça, jamais previu. Aliás, nenhum dos textos internacionais ratificados pelo Brasil permite qualquer exceção à realização da apresentação judicial da pessoa presa, o que faz com que sobre a Resolução nº 1143/2016 – COMAG deva incidir um forte controle de con-vencionalidade (MAZZUOLI, 2009).

Ao permitir que o juiz expeça “desde logo eventual alvará de soltura”, a Resolução afasta completamente a possibilidade de atuação do Ministério Público e da defesa anteriormente àquela decisão, mas sem a incidência de qualquer daquelas hi-póteses já previstas em nossa legislação, a saber, urgência e perigo de ineficácia da medida (artigo 282, § 3º do Código de Processo Penal). Noutras palavras, o ato normativo emitido pelo Poder Judiciário do Rio Grande do Sul vai em sentido contrário à Resolução nº 213, que prevê a necessidade de manifestação prévia daqueles sujeitos processuais anteriormente à emissão de qualquer decisão em sede de audiência de custódia (artigo 8º, § 1º). Ao impedir a manifestação prévia do Ministério Público e da defesa, o Poder Judiciário do Rio Grande do Sul normati-zou uma verdadeira causa de cerceamento de acusação e de

da observância de um direito daquelas pessoas, este último pre-sente em textos internacionais ratificados pelo Brasil.

É por isso que a vedação à realização dessas apresentações em conjunto deve ser foco de atenção por parte do Conselho Nacional de Justiça, com sua vedação de modo expresso na Re-solução nº 213, de 15 de dezembro de 2015. Do contrário, a permanecer sua atual redação, as audiências de custódia, a de-pender de um setor da magistratura nacional, seguirão sendo diminuídas em sua importância e efetividade, colocando-se os interesses dos juízes à frente dos interesses dos titulares de um direito resguardado internacionalmente por textos protetivos dos direitos humanos.

Impossibilidade de análise antecipada do auto de prisão em flagrante

Outra demonstração de má vontade com a audiência de custódia pode ser encontrada não em uma postura individual por parte de magistrados que a veem como um problema, mas por parte – nada mais, nada menos – dos órgãos de administra-ção de um Tribunal. Melhor explicando, a Resolução nº 213 não teve a pretensão de excluir eventuais regulamentações com-plementares por parte dos Tribunais estaduais ou regionais. Ao contrário, esta autorizou a expedição de atos administrativos, por parte daqueles Tribunais, voltados à adaptação da audiência de custódia às realidades locais.

Com base nesta possibilidade, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por meio de seu Conselho Superior da Magistra-tura, emitiu a Resolução nº 1143/2016 – COMAG, a qual dispôs “sobre a implementação de audiências de custódia no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul”. Nesta, foi inserido um dis-positivo que, não somente desrespeita claramente a Resolução nº 213, do Conselho Superior de Justiça, mas também os pró-prios pactos internacionais ratificados pelo Brasil, que tornaram obrigatória a realização da audiência de custódia em todo o ter-ritório nacional.

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prisional e à necessidade de um processo célere e sem dilação indevida, tal como o próprio texto constitucional já impõe (inc. LXXVIII do art. 5º). Abriríamos, com isso, um novo estágio na discussão daquele instituto, voltado à maximização do aprovei-tamento do ato.

Citação pessoal

Em razão dos altos índices de reiteração delitiva apresen-tados em nosso país, não raras vezes, as pessoas presas em flagrante já foram anteriormente condenadas na esfera criminal ou, no mínimo, vêm respondendo a outros processos criminais ainda pendentes de uma decisão definitiva. Nesta última hipóte-se, são frequentes aqueles casos nos quais a pessoa presa está respondendo a um ou mais processos criminais que se encon-tram suspensos por força do art. 366 do Código de Processo Penal, ou seja, por não haverem sido localizadas quando da sua citação pessoal, motivo pelo qual foram citadas de forma editalícia.

Frente a situações como esta, o Ministério Público costu-ma apresentar seu pedido de prisão preventiva à pessoa presa em flagrante, sob o argumento da garantia da aplicação da lei penal. Sua lógica é simples: se essa pessoa, em feito anterior, forneceu endereço onde ela não foi encontrada, igual proce-dimento poderá ser adotado por esta no auto de prisão em flagrante objeto da audiência de custódia. Presume-se, portan-to, a má fé da pessoa conduzida à presença do juiz.

Uma alternativa que poderia evitar prisões desnecessá-rias – já que a não localização da pessoa citada por edital pode decorrer de vários fatores, que não só o agir de má fé – é sua citação na própria audiência de custódia, mas relativa àquele(s) processo(s) que se encontra(m) suspenso(s) em virtude de uma citação ficta. Para tanto, não seria necessária a realização de qualquer alteração legislativa, já que um juiz de qualquer comar-ca do país poderia determinar a citação da pessoa processada, inclusive em outro Estado da federação, atendendo ao pedido formulado por colega seu em carta precatória.

defesa, frente à possibilidade não só de uma soltura que não conta com a concordância do acusador público, mas de uma soltura com vínculos que não contam com a concordância do defensor estatal ou constituído.

Por esta razão, também, o CNJ necessita alterar sua Resolução nº 213, visando impedir verdadeiros atos de sabota-gem à audiência de custódia, mesmo quando criados com uma aparente imagem ou status de legalidade, como é o caso das normatizações efetuadas pelos Tribunais estaduais ou regionais.

Otimização do momento procedimental

Com um maior ou menor grau de acerto em sua regula-mentação pelo Conselho Nacional de Justiça, é inegável que a implantação da audiência de custódia tornou-se, felizmente, um caminho sem volta para o direito processual penal brasileiro. Nesse caminho, é certo que eventuais modificações poderão/deverão ocorrer, seja por parte do próprio CNJ, seja por parte do Congresso Nacional (ao finalmente legislar sobre a matéria), com o intuito de aperfeiçoar os problemas que a doutrina e o dia a dia trazem.

Independentemente de ocasionais modificações realizadas com esse intuito, há espaço para outra categoria de proposições, que nada se assemelham a eventuais equívocos ou omissões constatáveis na Resolução 213. Referimo-nos à possibilidade de aproveitamento do instituto da audiência de custódia para algumas práticas tendentes a propiciar a prevalência do status libertatis do sujeito preso em flagrante, uma maior celeridade à persecução penal como um todo e uma importante economia de custos por parte do Poder Judiciário.

Longe de se traduzirem em proposições afrontosas aos in-teresses dos atores processuais penais com assento obrigatório na audiência de custódia, elas dizem respeito a certas práticas que, sem descurar, por óbvio, do necessário respeito das garan-tias e dos direitos constitucionalmente reconhecidos àqueles, também se amoldariam ao objetivo de enxugamento do sistema

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Oferecimento da acusação com base no auto de prisão em flagrante

Além da medida proposta, também, outras poderão atin-gir as mesmas finalidades já expostas. No entanto, agora, elas dependeriam da participação de um dos atores da audiência de custódia – no caso presente, do Ministério Público – e de eventuais alterações legislativas, destinadas a permitir que o juiz daquele ato também seja o competente para a prática de outros tantos.

Ajuizamento da Ação Penal Durante a Audiência de Custódia

Há certos autos de prisão em flagrante que apresentam um alto grau de complexidade fática, seja em razão do número de pessoas presas, seja em razão do número de infrações penais cometidas. Entretanto, essa não é uma realidade que atinge a maior parte dos autos encaminhados diariamente ao conheci-mento do Poder Judiciário.

Para esta classe delitiva, não há grandes entraves que im-peçam o Ministério Público de, na esteira do que já prevê a Lei nº 9.099/95, oferecer sua acusação já em audiência. Quiçá, o melhor exemplo disso possa ser encontrado junto àquelas infra-ções penais que, a depender de contra quem forem praticadas, poderão ter seu processamento junto ao Juizado Especial Crimi-nal ou ao Juizado da Violência Doméstica.

No primeiro juizado, a infração penal poderá ser objeto de acusação oral apresentada logo após a superação da fase de transação penal; no segundo juizado, a mesma infração penal será objeto de uma acusação escrita. Noutros termos, inexis-te qualquer justificativa para que tais infrações penais, quando futuramente submetidas a processamento – que não aquele próprio dos Juizados Especiais Criminais –, não venham a ter sua ação penal condenatória ajuizada pelo acusador público já em audiência, seja de modo verbal ou por escrito anteriormente redigido.

Para a pronta colocação em prática dessa proposição, basta que a comarca onde aquele sujeito atualmente responde ao(s) processo(s) suspenso(s) e a comarca a qual esteja sendo realizada a audiência de custódia sejam a mesma. De modo a evitar problemas burocráticos, o que se faz necessário é que a Corregedoria-Geral de Justiça – ou algum outro órgão do Poder Judiciário local – se encarregue de permitir a comunicação entre as mais variadas varas criminais de uma mesma Comarca, ao ser detectada a prisão em flagrante de uma pessoa que tenha um processo criminal suspenso por força daquele dispositivo legal.

Por certo que há situações em que o magistrado da audiên-cia de custódia irá se deparar com processos criminais suspensos em comarcas diversas da sua, o que levaria à impossibilidade de uma pronta obtenção de informações e de documentos que permitissem a citação pessoal do sujeito que se encontra na sua frente. Para resolver situações como estas, seria necessária a construção de um banco de mandados de citação, nos moldes daquele já instituído pelo CNJ para os mandados de prisão, a ser alimentado por juízes de todo o país, assim que ocorresse uma citação por edital em processo criminal.

Com a possibilidade de acesso a tais informações em to-dos os cantos de um país continental, não só o decreto de prisão preventiva poderá ser evitado na audiência de custódia, como, também, poderá ser revisto eventual decreto de prisão preven-tiva emitido no processo suspenso – revisão a ser feita pelo juízo de origem, é bom que se diga –, assim como, ser retomado o andamento de um processo criminal que ainda pende sobre aquela pessoa. Por fim, também haverá um importante impac-to nos custos operacionais que um processo suspenso provoca nos cofres do Poder Judiciário, tais como, gastos com Oficial de Justiça e com rotineiras buscas para se obter a localização da pessoa acusada neste.

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a imediata colocação dessa proposição em prática. Para tanto, basta que o Ministério Público tenha acesso prévio ao auto de prisão em flagrante – a fim de bem avaliar a pertinência, ou não, do oferecimento de sua acusação em audiência –, e que a ele seja disponibilizado tempo suficiente para estruturar uma acu-sação que não seja inquinada de inepta, por inobservância de regras básicas para o seu ajuizamento. Lembramos que a es-truturação da peça acusatória pode se dar no ato da própria audiência (modo verbal) ou pode ser apresentada por escrito, sendo redigida previamente.

Já, na hipótese de comarcas nas quais o juiz presidente da audiência de custódia não venha a ser o mesmo do futuro processo criminal, o entrave é mais que claro: falta-lhe a devida competência para a prática do recebimento (ou não) da acusa-ção, com a consequente citação do sujeito preso. Para superar tal impeditivo de ordem técnica, necessária se faz a participação do Congresso Nacional, com o intuito de reformar o Código de Processo Penal não só no que diz respeito às disposições próprias da audiência de custódia. Além deste ponto a ser alte-rado – que, diga-se de passagem, esperamos que ocorra desde 2011, ano de apresentação do Projeto de Lei do Senado nº 554 –, é importante que sejam alteradas as regras de competência que atingem o juiz com atuação naquela audiência, sob pena de infringência ao princípio constitucional do juiz natural.

Ajuizamento da Ação Penal em Momento Posterior à Audiência de Custódia

Se há situações que, dadas as suas peculiaridades, impe-dem o Ministério Público de oferecer sua acusação ainda na audiência de custódia, é bem verdade que essa complexidade pode levar a dois caminhos diversos: a) a necessidade de instau-ração de inquérito policial para uma melhor elucidação do fato objeto do auto de prisão em flagrante; ou b) a necessidade de mais tempo para a compreensão do fato objeto daquele mesmo auto, o que prescindiria da instauração de uma investigação cri-minal formal.

Quanto ao catálogo das demais infrações penais, há um grande número destas que também não apresenta um grau de complexidade que impeça o Ministério Público de oferecer sua acusação na audiência de custódia. Referimo-nos aos crimes de receptação dolosa, furto simples, tráfico de drogas, porte ilegal de armas, enfim, todas aquelas que, dada a baixa complexidade dos fatos e circunstâncias ali presentes, permitiriam ao acusador público seguir a mesma lógica presente nos Juizados Especiais Criminais.

Por certo, o Ministério Público não pode ser compelido a oferecer sua acusação logo após os procedimentos próprios da audiência de custódia, visto que a complexidade do conteúdo do auto de prisão em flagrante só por ele pode ser aquilatada, ao menos no que diz respeito à (im)possibilidade de pronto ajui-zamento da ação penal condenatória. Entretanto, é importante que a ele seja dada essa oportunidade, a qual traria reflexos positivos não só para o efeito de evitar o decreto de prisão preventiva para a garantia da aplicação penal (na hipótese de a pessoa submetida à audiência de custódia ter, contra si, ou-tros processos criminais que se encontrem suspensos, tal como abordado no tópico anterior). Outros efeitos benéficos também seriam sentidos, tais como:

a) permitir o pronto contato do – agora – acusado com o seu defensor, o que resolveria um dos grandes problemas en-volvendo a relação entre defensores e réus economicamente hipossuficientes;

b) imediata citação do acusado, a ser realizada após a análise preliminar do magistrado, voltada ao recebimento ou re-jeição da acusação, o que permitiria ao Poder Judiciário lograr uma significativa economia de gastos com sua folha de pessoal (i.e., redução do número de servidores para os atos hoje neces-sários até a citação do réu); e

c) oferecimento e negociação da proposta de suspensão condicional do processo, nas hipóteses nas quais são admissí-veis sua incidência.

Em comarcas onde há somente um juiz com competência para temas de ordem criminal, não há maiores entraves para

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Audiência de custódia e seu atual estágio no direito brasileiro: entre reparos necessários e sua otimização procedimental.Vanessa Pedroso Coelho e Mauro Fonseca Andrade

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Negociação de pena: seria viável?

Bem sabemos que a negociação de pena, nos moldes ge-néricos como presente no direito americano (plea bargaining), não possui previsão legal em nosso ordenamento. Quando mui-to, o que temos é a delação premiada, com todas as discussões e críticas das quais é alvo.

Em que pese isso, a negociação de pena foi inserida, como mínimo, em dois projetos de lei de alta significância, quais se-jam, o projeto de novo Código de Processo Penal e o projeto de novo Código Penal. Só por isso, entendemos conveniente sua abordagem em um texto que procura dar um máximo apro-veitamento ao momento denominado audiência de custódia, sobretudo, após a sugestão de oferecimento da acusação já na-quele ato.

Feita esta necessária observação, e abstraídas as co-nhecidas críticas – nacionais e estrangeiras – ao instituto da negociação de pena, não nos parece que ela deva incidir na au-diência de custódia. Isso porque, a própria lógica da negociação de pena exige tempo para sua realização, o que não teria lugar naquele momento da persecução penal.

Melhor explicando, por haver uma típica negociação, seria necessária a presença de elementos suficientemente claros no auto de prisão em flagrante, de modo a permitir ao Ministério Público e à defesa conhecerem integralmente a abrangência e ramificações do fato flagrado, bem como, as vantagens e desvan-tagens do acordo a ser firmado. Tudo isso poderia levar, como mínimo, semanas para se conhecer de forma integral, a fim de dar segurança a ambos os atores da persecução penal. Em um acordo mal feito, resultante da precipitação de quem representa a sociedade ou a pessoa acusada, alguém sempre sai perdendo. Entretanto, liberdade e segurança pública não combinam com a possibilidade de tal perda. Por essa razão, audiência de custódia e negociação de pena parecem ser institutos que não devessem ocorrer em um mesmo ato.

No que diz respeito à segunda hipótese, o que temos, por-tanto, é um auto de prisão em flagrante que, por seu conteúdo, não permitiu ao Ministério Público oferecer prontamente sua acusação já na audiência de custódia. No entanto, tampouco há a necessidade de instauração de inquérito policial para me-lhor averiguar o fato que foi objeto de sua atenção, pois todas as informações necessárias para a confecção da peça acusató-ria estão ali presentes. O que houve, simplesmente, é que o acusador público não conseguiu, em curto espaço de tempo, construir a peça acusatória adequadamente.

Para situações como esta, acreditamos que um procedi-mento simples poderia ser adotado pelo juízo, nas hipóteses em que fosse concedida liberdade (mediante liberdade provisória ou relaxamento de prisão) à pessoa que lhe foi apresentada na audiência de custódia.

Uma das medidas cautelares pessoais diversas da prisão que apresentam um reduzido efeito invasivo sobre a liberda-de e rotina de quem for alvo de uma investigação ou processo criminal é a que determina o “comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades” (inciso I do artigo 319 do Código de Pro-cesso Penal). Pois bem; fixado este prazo para a apresentação de 30 em 30 dias à pessoa levada à audiência de custódia, já seu primeiro comparecimento em juízo poderá ser também uti-lizado para que seja efetuada sua citação pessoal. Para tanto, basta que o Ministério Público tenha, antes do comparecimento daquela pessoa em juízo, oferecido sua acusação junto ao juízo competente para o processamento do fato objeto do auto de prisão em flagrante.

Com iniciativas como essa, evitar-se-á que a pessoa – ago-ra – acusada tenha contra ela um decreto de prisão preventiva, caso não seja localizada no endereço anteriormente fornecido ao juízo da audiência de custódia. Também se poderá propor-cionar uma significativa economia de tempo e gastos ao Poder Judiciário, que, hoje em dia, são destinados aos atos necessá-rios até que a citação do réu seja efetivada.

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Audiência de custódia e seu atual estágio no direito brasileiro: entre reparos necessários e sua otimização procedimental.Vanessa Pedroso Coelho e Mauro Fonseca Andrade

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perder. Por vezes, a própria pessoa presa pode, no momento de sua entrevista na audiência de custódia, informar o juízo que estava em um local onde havia câmeras de segurança, para que as imagens por elas captadas demonstrem sua inocência. Com isso, haveria a pronta determinação de obtenção dessa prova, que muito auxiliaria na obtenção de um maior grau de certeza nas decisões cautelares ou de mérito a serem proferidas nos atos processuais posteriores à audiência de custódia.

Para tal fim, novamente há a necessidade de uma altera-ção em nossa legislação processual, com o intuito de tornar o juiz da audiência de custódia competente para a emissão desse tipo de decisão. Do contrário, outra vez se maculará o princípio do juiz natural, resguardado constitucionalmente.

Conclusão

A audiência de custódia possui uma lógica internacional-mente reconhecida de preservação de garantias e dos direitos humanos de toda pessoa presa ou detida. Em que pese isso, é possível observar dois pontos de sufocamento deste ato: pri-meiro, de parte de setores do Poder Judiciário, ao procurarem, de um modo ou outro, contrariar as disposições da Resolução nº 213, do Conselho Nacional de Justiça, ou do próprio Códi-go de Processo Penal aplicáveis a ela; segundo, de parte de setores mais ortodoxos da nossa doutrina, que veem, em toda e qualquer inovação nos atos que poderiam vir a ser realizados naquela audiência, um verdadeiro atentado aos interesses da pessoa apresentada.

Com o devido respeito a ambos, não há como negar que o momento processual denominado audiência de custódia deve ser preservado dos ataques de setores do Poder Judiciário. Além deste possuir um potencial muito grande a ser explorado, apesar da ferrenha resistência doutrinária, diversas práticas ou institutos processuais podem, ainda, ser incorporados àquela audiência de apresentação, sem que se fale, necessariamente,

Produção probatória

Quando se fala em atividade probatória durante a audiência de custódia, a doutrina se volta, via de regra, para duas linhas de discussões, quais sejam: a) possibilidade de se perguntar à pessoa apresentada sobre o fato objeto de sua prisão; e b) possibilidade de utilização da entrevista no futuro processo de conhecimento (BRANDALISE, 2016a, p. 69-14; BRANDALISE, 2016b, p. 139-160; PAIVA, 2015, p. 90; PRUDENTE, 2015, p. 13). O que pouco ou nada se fala, entretanto, é sobre a possibilidade do juiz deter-minar, na audiência de custódia, a obtenção ou preservação de determinada prova que somente será utilizada futuramente em sede policial ou processual. Expliquemos melhor.

A utilização de câmeras de captação de imagem pode ser apontada como um fenômeno mundial na busca, cada vez maior, por segurança em espaços públicos, estabelecimentos comerciais ou propriedades privadas. Mais recentemente, essa captação de imagem vem sendo utilizada, inclusive, para mo-nitorar o tráfego de veículos em grandes cidades. Isso importa dizer que, onde quer que se esteja ou se vá, há uma grande pro-babilidade de, em algum momento, a imagem de uma pessoa ter sido captada no local onde esteve ou no trajeto que fez.

Consequência prática disto é que a investigação crimi-nal vem, cada vez mais, fazendo uso dessas imagens captadas de forma aleatória pelo setor público ou privado, sendo estas decisivas na elucidação dos fatos que são objeto daquela apu-ração. Contudo, a lógica inversa também é verdadeira, pois tais imagens também podem se prestar a comprovar que a pessoa presa em flagrante simplesmente não estava no local do crime ou, caso ali estivesse, não praticou o fato que lhe foi imputado.

Para que possa haver a preservação dessas imagens e sua incorporação aos autos da futura investigação criminal, é preci-so que haja a devida ordem judicial. Esta deve ocorrer do modo mais rápido possível, pois não há como esperar a instauração do inquérito policial (que ocorrerá alguns dias após a lavratura do auto de prisão em flagrante) e que a autoridade policial perceba a necessidade daquelas imagens, sob pena de elas virem a se

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Audiência de custódia e seu atual estágio no direito brasileiro: entre reparos necessários e sua otimização procedimental.Vanessa Pedroso Coelho e Mauro Fonseca Andrade

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F.; ALFLEN, P. R. (Org.) Audiência de Custódia: Da Boa Intenção à Boa Técnica. Porto Alegre: FMP, 2016b.

DWORKIN, R. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

MAZZUOLI, V. de O. O Controle Jurisdicional da Convencionalida-de das Leis. São Paulo: RT, 2009.

PAIVA, C. Audiência de Custódia e Processo Penal Brasileiro. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

PRUDENTE, N. M. Lições Preliminares acerca da Audiência de Custódia no Brasil. In: Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre, a. XVI, n. 93, p. 9-31, ago./set. 2015.

que estas estariam voltados unicamente à preservação dos inte-resses persecutórios do Estado.

Para que tais objetivos sejam alcançados, faz-se necessária uma revisão da própria Resolução nº 213, a fim de que o CNJ crie mecanismos que impeçam práticas judiciais voltadas a um verda-deiro boicote de tais audiências. Da mesma forma, faz-se necessária uma atuação mais efetiva do Congresso Nacional, não só para que se aprove a inserção da audiência de custódia em nossa legisla-ção ordinária, mas também para que inovações voltadas a sua otimização possam ser agregadas ao projeto ainda em tramitação. Enquanto isso não ocorrer, a audiência de custódia seguirá fragili-zada aos olhos de quem ainda a vê como um problema em nossa praxe processual ou como um instituto a ser tratado de forma en-gessada, sem proporcionar claros avanços rumo à preservação dos interesses e valores envolvidos na persecução penal.

Referências

ANDRADE, M. F. A audiência de custódia na concepção da Justiça Gaúcha: análise da Resolução nº 1087/2015 e das práticas esta-belecidas. In: ANDRADE, M. F.; ALFLEN, P. R. (Org.) Audiência de Custódia: Da Boa Intenção à Boa Técnica. Porto Alegre: FMP, 2016.

ANDRADE, M. F. ALFLEN, P. R. 2. ed. Audiência de Custódia no Processo Penal Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016.

BRANDALISE, R. da S. Comentários ao artigo 12. O apensamento do termo de audiência de custódia. O aproveitamento posterior das decisões autoincriminatórias. In: ANDRADE, M. F.; ALFLEN, P. R. Audiência de Custódia. Comentários à Resolução 213 do Con-selho Nacional de Justiça. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016a.

______. Sobre o aproveitamento das declarações autoincrimina-tórias do flagra do em audiência de custódia. In: ANDRADE, M.

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CONDIÇÕES E POSSIBILIDADES DE CUMULAÇÃO DAS SANÇÕES

PARLAMENTARES EM FACE DAS ESTABELECIDAS PELA LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA E SEU TRATAMENTO NA

JURISPRUDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO1

Eduarda Simonetti Pase2

1 O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema patologias corruptivas nas relações entre Estado, Administração Pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos — Parte II: discutindo formas de enfren-tamento do fenômeno”, coordenado pelo professor doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas (CIEPPP).

2 Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), com bolsa Prosup/Capes, modalidade Taxa, na linha de pesquisa sobre Constitucio-nalismo Contemporâneo. Graduada em Direito pela Unisc. Advogada. E-mail: [email protected].

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Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela lei de improbidade administrativa e seu tratamento na jurisprudência do poder judiciário brasileiro

Eduarda Simonetti Pase

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Abstract

This work aims to identify if it occurs accumulation of sanctions in the case of punishing officers who commit acts that violate more than one legal system, especially acts that constitute administrative dishonesty by parliamentarians and also authorize the processing of fact by the Legislature its culminating thus the loss of the parliamentary mandate and, therefore, the suspension of political rights. For this, at first, it is a brief statement about the sanctions that can be applied by the legislature to its members, identifying the acts which constitute breach of parliamentary decorum from the Constitution to the acts in kind listed in each code ethics and Parliamentary Decorum (House of Representatives, the Senate and Rio Grande do Sul Legislative Assembly). Are likewise exposed the sanctions provided for in the Administrative Improbity Law (AIL), when it is made a brief statement on the legal nature of the sanctions provided for by law and may also be applied by the Legislative Houses for the end address and identify the (non) cumulation of penalties. So part from the hypothesis that the sanctioning of a parliamentarian who has violated both the law protected by the AIL (Law No 8,492/1992) as the disciplinary order of honor of the legislature does not constitute bis in idem in if the suspension of political rights, which the AIL may or may not be applied and decorum break is due to the loss (cancellation) of the mandate.

Keywords: Condemnation for Breach of Decorum. Parliamentary Decorum. Administrative Dishonesty. Suspension of Political Rights.

Resumo

Com este trabalho, objetiva-se identificar se ocorre cumulação de sanções quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que violem mais de uma ordem jurídica, espe-cialmente atos que configurem improbidade administrativa por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do fato pela Casa Legislativa respectiva, culminando, assim, com a perda do mandato do parlamentar e, consequentemente, a suspensão dos direitos políticos. Para isso, em um primeiro mo-mento, faz-se uma breve exposição das sanções que podem ser aplicadas pelo Poder Legislativo a seus membros, identificando os atos que configuram quebra de decoro parlamentar desde a Constituição Federal (CF) até os atos em espécie elencados em cada Código de Ética e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados Federais, Senado Federal e Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma, são expostas as sanções previstas na Lei de Improbidade Administrativa (LIA), momento em que é feita uma breve exposição das naturezas jurídicas das sanções previstas na lei e que também podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao final abordar e identificar a (não) cumulação das sanções. Assim, parte-se da hipótese de que o sanciona-mento de um parlamentar que tenha infringido tanto a ordem jurídica protegida pela LIA (Lei no 8.492/1992) quanto a ordem disciplinar da honra do Poder Legislativo não configura bis in idem, no caso da suspensão dos direitos políticos, que na LIA pode ou não ser aplicada e na quebra de decoro é decorrência da perda (cassação) do mandato.

Palavras-chave: Condenação por Quebra de Decoro. De-coro Parlamentar. Improbidade Administrativa. Suspensão dos Direitos Políticos.

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Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela lei de improbidade administrativa e seu tratamento na jurisprudência do poder judiciário brasileiro

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ação de improbidade administrativa, tendo, em ambos os casos, o mesmo fato gerador. Isso porque as esferas de responsabiliza-ção são distintas; uma tem caráter disciplinar, e a outra, caráter civil-administrativo, em que pese a sanção de perda da função e a suspensão dos direitos políticos tenha caráter eminentemente político.

Para isso, em um primeiro momento, faz-se uma breve exposição das sanções que podem ser aplicadas pelo Poder Le-gislativo a seus membros, identificando os atos que configuram quebra de decoro parlamentar desde a Constituição Federal (CF) até os atos em espécie elencados em cada Código de Ética e Decoro Parlamentar (Câmara dos Deputados Federais, Sena-do Federal e Assembleia Legislativa gaúcha). Da mesma forma, são expostas as sanções previstas na Lei de Improbidade Admi-nistrativa (LIA), momento em que é feita uma breve exposição das naturezas jurídicas das sanções previstas na lei e que tam-bém podem ser aplicadas pelas Casas Legislativas para ao final abordar e identificar a (não) cumulação das sanções.

As sanções parlamentares e as sanções da LIA: breve exposição

Em várias legislaturas, veem-se os membros do Poder Le-gislativo terem seu mandato questionado por possível prática de atos que violem o decoro parlamentar, fazendo surgir diver-sas questões jurídicas em torno do tema. Tais questões ganham importância porque os parlamentares, quando vencidos na es-fera política, geralmente tentam a manutenção do mandato por meio da intervenção do Poder Judiciário, trazendo a lume ra-zões jurídicas para contrapor o julgamento, tido como político, realizado por seus pares parlamentares.

Entretanto, também é importante depositar atenção quando a sanção imposta pelo próprio parlamento também pu-der ser processada na esfera judicial para tratar, por exemplo, das consequências de uma imposição de sanção em seara par-

A pesquisa que se pretende desenvolver no presente tra-balho buscará analisar as consequências dos fatos que

importam em improbidade administrativa, comparando-as e di-ferenciando-as das sanções aplicáveis pelo Poder Legislativo a seus membros em processos que visem a investigar a quebra de decoro parlamentar. O estudo justifica-se para que a sanção não se configure nunca em bis in idem, mas apenas no correto sancionamento de ilícitos administrativos, na forma preconizada pelo legislador.

A crise de representação parlamentar tem se tornado co-mum no atual cenário político mundial e parece ter se instalado sistematicamente no Brasil. Entretanto, a preocupação com o tema se justifica, na medida em que o estudo dos processos de julgamento de quebra de decoro revela, além de uma forma essencial de proteção da instituição Poder Legislativo, desigual-dades no tratamento dos casos e vulnerabilidade dos mandatos a interesses políticos. Ao se falar em suspensão dos direitos po-líticos, o cuidado na aplicação de tal sanção deve sempre estar amparado por uma das hipóteses constitucionalmente autoriza-das. Quando se fala em suspensão de direitos políticos de um membro do Poder Legislativo, o cuidado deve ser ainda mais alto, tendo em vista que significa a ruptura da vontade popular e deve ocorrer em caráter de excepcionalidade, proibindo-se sua utilização como espécie de instrumento de constrangimento.

Assim, para responder à proposta inicial, qual seja, identi-ficar se ocorre cumulação de sanções quando se tratar de punir agentes que pratiquem atos que violem mais de uma ordem jurídica, especialmente os que configurem improbidade ad-ministrativa por parte de parlamentares e também autorizem o processamento do fato pela Casa Legislativa respectiva por quebra de decoro, culminando, assim, na perda do mandato do parlamentar e, consequentemente, na suspensão dos direitos políticos, parte-se da hipótese (que poderá ser refutada ou, no caso, confirmada) de que a aplicação da sanção de perda do mandato em julgamento por quebra de decoro parlamentar não configura bis in idem para com a sanção de perda da função pública e suspensão dos direitos políticos aplicada em sede de

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Condições e possibilidades de cumulação das sanções parlamentares em face das estabelecidas pela lei de improbidade administrativa e seu tratamento na jurisprudência do poder judiciário brasileiro

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do, quando trata do decoro, a própria Constituição expressa-se com decoro parlamentar em seu art. 55, II, e não com decoro do parlamentar. Esse esforço é feito para sinalizar que o real titular do comportamento decoroso que se espera de um titular de mandato eletivo no Poder Legislativo, isto é, o destinatário des-sa norma constitucional não é o parlamentar em si, o deputado, senador, vereador, mas a própria instituição do Parlamento, isto é, o Poder Legislativo propriamente dito. Ou seja,

[…] é ele, Parlamento, Congresso Nacional, quem tem o direito a que se preserve, através do comportamento digno de seus membros, sua imagem, sua reputação e sua digni-dade. Saímos do exercício do mandato parlamentar (objeto de proteção pelas imunidades) e chegamos à honra obje-tiva do Parlamento, que deve ser protegida de comporta-mentos reprováveis por parte de seus membros. (PINHEI-RO, 2006).

Daí por que se dizer que o bem jurídico tutelado pela norma do art. 55, II, da CF/1988 é a confiabilidade, a honorabili-dade do Poder Legislativo. Ainda nesse aspecto, Pinheiro (2006) esclarece que

[…] é exatamente por isso, também, que só ele, Parlamen-to, no exercício de típico poder censório, tem competência para decidir qual conduta considera ofensiva à sua honra objetiva e qual conduta reputa admissível, tolerável. Este juízo, portanto, em cada caso concreto, daquilo que seja ou não incompatível com o decoro parlamentar, é exclusivo de cada Casa do Poder Legislativo, sem nenhuma inter-ferência de qualquer outro poder, incluindo-se, aí, o Poder Judiciário. Porque não cabe ao Poder Judiciário interferir no Parlamento a ponto de substituir-lhe no julgamento e na preservação de sua própria imagem, ditando-lhe determi-nado padrão moral. (grifos do original).3

Não se busca defender a não intervenção ou controle do Poder Judiciário sobre determinados atos que são inerentes ao procedimento de apuração de quebra de decoro pelas Casas

3 Outro não é o entendimento do STF, que, desde sua primeira manifestação sobre o tema (RMS 4.241, rel. min. Luiz Gallotti) até sua recente jurisprudência (RE 113.314; MS 21.443; MS 23.529), não tem admitido revisão judicial de julgamento político atinente à cassação de mandato parlamen-tar por quebra de decoro.

lamentar (no exercício de seu poder disciplinar) e a imposição de sanção pelo mesmo fato na esfera judicial. Em se tratando, especificamente, de sanções aplicadas a agentes nos casos de improbidade administrativa que também configurem atos a serem analisados pelas casas legislativas, primeiramente é ne-cessário analisar quais das sanções previstas na LIA também podem ser aplicadas em sede de Poder Legislativo a seus pares.

Assim, primeiramente precisa-se estabelecer os tipos e as espécies de sanções aplicáveis pelo Poder Legislativo a seus membros para depois catalogar as sanções aplicáveis no caso de condenações por atos de improbidade administrativa que também possam ser tratados e sancionados pelo próprio Poder Legislativo, quando tais atos forem praticados por membro seu. Uma vez feita essa identificação, será necessário estabelecer também a natureza jurídica dessas sanções para que ao final seja possível construir um panorama da possibilidade ou não de cumulação de sanções parlamentares em face das estabelecidas pela LIA, sendo o que se passa a construir nos tópicos a seguir.

Espécies de sanções aplicadas aos parlamentares em suas casas legislativas

Aqui, serão catalogadas as sanções aplicáveis a parla-mentares por suas respectivas casas legislativas a partir do que estabelece a CF/1988. Especialmente, serão analisadas as san-ções e as condutas previstas nos regimentos internos das Casas do Congresso Nacional e, de formal supletiva, a disposição da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, visto que todos têm como parâmetro as disposições constitucionais.

Antes de adentrar o tema propriamente dito, é válido retomar alguns aspectos que permeiam a noção de decoro par-lamentar. Ainda que o conceito de decoro possa parecer fluido ou indeterminado, a CF/1988 oferece um indicativo no qual é possível pautar o ato de interpretação. Veja-se. Quando a Cons-tituição trata das imunidades de deputados ou senadores no art. 53, § 8o, ela refere que as imunidades são prerrogativas exercidas e titularizadas pelos parlamentares como tais. Contu-

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O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados Federais prevê, em seu art. 10, quatro espécies de sanção disciplinar, a saber: I – censura, verbal ou escrita; II – suspensão de prerrogativas regimentais por até seis meses; III – suspensão do exercício do mandato por até seis meses; IV – perda de mandato. A CF/1988, contudo, em seu art. 55, prevê somente a perda do mandato, deixando aberta a regulamen-tação do artigo, a qual foi feita pelo Código de Ética e Decoro Parlamentar, no caso da Câmara dos Deputados Federais, que ampliou o rol de atos passíveis de ferirem o decoro parlamen-tar, pois a própria CF/1988 atribuiu essa prerrogativa às Casas Legislativas, tendo em vista que esse aspecto de sanções serve para preservar a imagem e a honra do próprio Poder Legislati-vo como instituição pública, sendo, portanto (no entender do Constituinte Originário), a melhor figura a definir o que fere a instituição ou não, uma vez que tais instrumentos são institu-tos destinados à garantia do exercício do mandato popular e à defesa do Poder Legislativo. As previsões desses regimentos devem estar amparadas pelas bases fixadas na Constituição, e o que exorbitar a margem de atuação fica, sem dúvida, submetido à apreciação do Poder Judiciário para o controle de constitucio-nalidade concentrado.

Assim, no que tange à Câmara dos Deputados, as hipóte-ses de ofensa ao decoro parlamentar são assim punidas:

Legislativas, mas reforçar que o Poder Judiciário só está autori-zado a controlar esse procedimento em seus aspectos legais e formais, como será demonstrado adiante. Isso, pois, quanto ao mérito das questões, ou seja, no que tange à específica defini-ção do que seja o decoro parlamentar, a Constituição limita-se a exemplificar duas hipóteses (abuso das prerrogativas e per-cepção de vantagens indevidas — § 1o do art. 55 da CF/1988), reservando ao Regimento Interno das Casas Legislativas a de-finição de outras situações em que se verificará esse desvio de procedimento (PINHEIRO, 2006). Esse aspecto será relevante para o trabalho, tendo em vista que duas das formas previstas como quebra de decoro já na própria CF/1988 são as que confi-guram também improbidade administrativa.

Assim, a CF/1988 estabelece, em seu art. 55, § 1o, que são três (duas já definidas no texto constitucional e uma aberta para definição pelo próprio Poder Legislativo) as hipóteses constitu-cionais de quebra de decoro parlamentar: I – os casos previstos no Regimento (a mais ampla de todas e na qual o constituinte deu margem de atuação ao próprio Poder Legislativo); II – o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados Federais e Senado Federal), Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores; e III – a per-cepção de vantagens indevidas (em que ocorrerá com maior frequência a possibilidade de o ato configurar afronta ao decoro parlamentar e também ser ato de improbidade administrativa). No caso do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, essa regra vem disposta em seu art. 4o, I e II.

O Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados Federais trata as sanções previstas nele e aplicáveis aos deputados federais como sanções disciplinares. Isto é, para o Código de Ética e Decoro Parlamentar, a natureza jurídica das sanções é disciplinar. Isso se extrai do parágrafo único do art. 1o da Resolução no 25/2001 (que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara), exemplificadamente dos arts. 1o, parágrafo único, 2o, e 10, § 1o, todos do Código de Ética da Câmara dos Deputados Federais.

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Em comparação ao que estabelece o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, neste aconte-ce a suspensão do exercício do mandato por até seis meses, enquanto no Senado é a perda temporária sem prazo máximo fixado. Outra diferença, também, é que no Senado não há pre-visão da suspensão das prerrogativas do mandato, enquanto na Câmara dos Deputados ela existe. Ainda em termos compara-tivos, no Senado Federal existe a possibilidade de aplicação de advertência como sanção, enquanto na Câmara dos Deputados Federais a sanção mais branda é representada pela censura (ver-bal ou escrita).

No que se refere às sanções aplicadas pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul aos deputados es-taduais que ferirem o decoro parlamentar, o Regimento Interno da Assembleia prevê, em seu art. 41, como sanções a serem aplicadas: I – censura (verbal ou escrita); II – suspensão do exer-cício do mandato; ou III – perda do mandato. Nesses termos, no âmbito do Poder Legislativo gaúcho, a perda do mandato poderá ser aplicada ao deputado estadual: I – que infringir qual-quer das proibições do art. 33 do Código de Ética Parlamentar; II – que reincidir, por três vezes na mesma legislatura, em con-duta ofensiva à imagem da Assembleia Legislativa, na forma do

No que se refere ao Senado Federal, são as sanções aplicá-veis pelo próprio Senado aos parlamentares senadores quando da quebra de decoro parlamentar, que é quando tanto a Consti-tuição quanto o Regimento Interno das casas, por meio de seus Códigos de Ética e Decoro Parlamentar, permitem que o Poder Legislativo sancione seus membros.

Assim, no Senado, as sanções previstas são, conforme o art. 7o de seu Código de Ética e Decoro Parlamentar: I – adver-tência; II – censura (verbal ou escrita); III – perda temporária do exercício do mandato; e IV – perda do mandato. Essas sanções também têm caráter disciplinar, como estabelecido na Câmara dos Deputados. Dessa forma, no Senado, os atos que violem o decoro parlamentar têm definidas as sanções na seguinte disposição:

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[…] a licença por motivos pessoais (por prazo limitado) ou por motivos de saúde, além da investidura nos cargos de Ministro de Estado, Secretário de Estado ou chefe de mis-são diplomática, entre outros, não gera a perda do manda-to parlamentar. É dizer: muito embora o congressista esteja investido no cargo de Ministro, não exercendo, portanto, suas funções congressuais, ele, deputado/senador, conti-nua titular de seu mandato. Ou seja, há a titularidade do mandato, muito embora não haja o efetivo exercício.

Com esse cenário, tem-se que é possível a cassação do mandato, por quebra de decoro parlamentar, de congressista que esteja afastado do exercício das funções de representante eleito, ou seja, os atos praticados por parlamentares no exer-cício do cargo de ministro ou secretário de Estado podem dar ensejo à perda do mandato por quebra de decoro, tendo em vista ainda titularizar o mandato de representante, e que, diante da potencial possibilidade de esse parlamentar reassumir sua vaga no Poder Legislativo, ele tem a prerrogativa de processar membro seu, buscando proteger a honra objetiva do próprio Poder Legislativo, que é o que move a ideia de decoro parla-mentar. Até porque as situações do art. 56 da CF/1988 preveem um afastamento eminentemente temporário do exercício das funções parlamentares, que pode cessar a qualquer tempo, in-clusive por um ato de vontade do próprio titular do cargo. Ou seja, abre-se o processo para que seja aniquilado o direito do parlamentar de retornar à instituição. Porque seu retorno, que não pode ser impedido por nenhum outro parlamentar, pode trazer para a Casa efeitos maléficos em sua honra. É como se a Casa agisse preventiva (se o congressista ainda estiver licencia-do ou investido nos cargos elencados no inciso I do art. 56 da Carta Política) ou repressivamente, caso o parlamentar já tenha reassumido suas funções parlamentares (PINHEIRO, 2006).

Exemplificando: imagine-se que um parlamentar esteja li-cenciado por motivos pessoais (hipótese do art. 56, II, da CF) e que, durante essa licença, cometa um crime de estupro, por exemplo. Nessa conjectura, tem todo o interesse a Casa Legis-lativa, na qual tem mandato esse parlamentar, que ele o perca definitivamente, tendo também por consequência a perda do

art. 34; III – que tiver declarado o excesso de faltas, na forma do art. 42; IV – que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V – quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos na CF/1988; VI – que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado.

Observe-se, que nos casos das hipóteses I, II e VI, a perda do mandato será decidida pelo Plenário da Assembleia Legisla-tiva, por voto aberto e maioria absoluta, mediante provocação da Mesa ou de partido político com representação na Casa, em processo disciplinar instruído pela Comissão de Ética Parlamen-tar. E, nos casos previstos nas hipóteses III, IV e V, a perda será declarada pela Mesa da Assembleia Legislativa. Não obstante, o Código de Ética Parlamentar gaúcho mantém a ordem consti-tucional do art. 56 da CF/1988.

Um ponto importante que também pode ser pensado, antes de se debaterem os aspectos centrais do decoro e, poste-riormente, da improbidade em si, é se é possível submeter um parlamentar a procedimento de quebra de decoro sobre atos praticados quando ele não estiver exercendo a função de par-lamentar, nos casos previstos no art. 56, I e II,4 da CF/1988, por exemplo. Não obstante, ainda sobre esse cenário, surge outro questionamento: se esse parlamentar, afastado de suas funções, a partir da posição do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o caso, poderá ser processado por improbidade estando sujeito a processo por crime de responsabilidade? Ainda, altera-se o cenário sobre o aspecto do decoro parlamentar?

Para responder a tais questionamentos, parte-se das hipó-teses de que o parlamentar seja investigo em cargos de ministro de Estado ou secretário de Estado. Ademais, a resposta passa pelos incisos do art. 56 da CF/1988, e, com o auxílio de Pinheiro (2006), extrai-se que

4 “Art. 56. Não perderá o mandato o Deputado ou Senador:I – investido no cargo de Ministro de Estado, Governador de Território, Secretário de Estado, do Dis-

trito Federal, de Território, de Prefeitura de Capital ou chefe de missão diplomática temporária;II – licenciado pela respectiva Casa por motivo de doença, ou para tratar, sem remuneração, de inte-

resse particular, desde que, neste caso, o afastamento não ultrapasse cento e vinte dias por sessão legislativa.”

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ções em um Poder por pessoa que é titular (embora não exerça) de mandato parlamentar. Desse modo, a figura do titular se des-taca da figura daquele que exerce a função de parlamentar. O parlamentar continua sendo titular do mandato, mas afastado do exercício. Nesse sentido, tem-se uma importante decisão proferida pelo STF:

O membro do Congresso Nacional que se licencia do man-dato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, I). […]. […] ainda que licenciado, cumpre-lhe guardar estrita observância às vedações e incompatibilida-des inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como às exigências ético-jurídicas que a Constituição (CF, art. 55, § 1o) e os regimentos internos das casas legisla-tivas estabelecem como elementos caracterizadores do de-coro parlamentar. (MS 25.579-MC, rel. para o ac. min. Joa-quim Barbosa, julgamento em 19/10/2005, Plenário, DJ de 24/8/2007).

A resposta do primeiro questionamento deve ser positiva, isto é, pode um parlamentar sofrer processo por quebra de de-coro parlamentar e, eventualmente ter declarada a perda de seu mandato quando praticar atos indecorosos nas hipóteses do art. 56, I e II, da CF/1988. O que esse dispositivo constitucional veda é a perda do mandato do deputado ou senador que se afas-tar do exercício das funções de parlamentar para assumir o das funções ali elencadas. Mas as ações que esse parlamentar prati-car como titular da função de ministro de Estado, por exemplo, pode ter reflexos diretos na manutenção da titularidade de seu mandato como parlamentar.

Quanto ao segundo questionamento, sobre a possibilidade de o parlamentar ser processado por improbidade administra-tiva ou por crime de responsabilidade, a discussão é bastante densa e, nesse caso, esta proposta se restringirá a realizar uma breve reflexão, indicando a existência da discussão, sem preten-der esgotá-la. O que importa para este estudo não é saber se o parlamentar está submetido ao regime de responsabilização dos crimes de responsabilidade (por exercer função que tenha essa prerrogativa fixada constitucionalmente, como é o caso

direito de, a qualquer momento, retornar para a Casa em que era titular de mandato. Isso porque esse retorno pode compro-meter de modo significativo a respeitabilidade da instituição.

Outro exemplo que ilustra esse cenário e que se enquadra melhor na proposta aqui trabalhada é o caso de determinado parlamentar ser investido nas funções de ministro de Estado ou secretário de Estado e ser acusado de praticar atos que confi-gurem improbidade administrativa. Esse congressista pode ter tolhido seu direito de reassumir o exercício do mandato a qual-quer momento, e, no dizer de Pinheiro (2006), se pode sugerir uma cassação preventiva desse direito, a ser motivada pelo fun-dado receio de que o indivíduo retorne à sua Casa Legislativa trazendo consigo toda a pecha de imoralidade decorrente do exercício de outra função pública: a de ministro ou secretário de Estado, ou qualquer das outras elencadas no art. 56, I, da CF/1988.

Ainda nesse exemplo, a saída não poderia ser diferente, tendo em vista que, caso o parlamentar já tenha retornado ao exercício de seu mandato com seus pares, pode esse deputa-do/senador/vereador sofrer processo por quebra de decoro parlamentar como qualquer outro colega seu, desde que, obvia-mente, a prática desses atos comprometa a honorabilidade do Poder Legislativo. É por isso que existe o decoro parlamentar, isto é, para proteger a honra objetiva do Poder Legislativo. Esse fato levanta outro aspecto, que é a inexigibilidade de que a prá-tica do ato indecoroso seja contemporânea ou concomitante ao exercício ou à titularidade do mandato parlamentar.

Sobre o aspecto da concomitância do exercício do man-dato para com a prática do ato indecoroso, é preciso reforçar a alegação de que parlamentares investidos em outros cargos não poderiam ser cassados por quebra de decoro, tendo em vista que o princípio da separação dos Poderes proíbe o exercício simultâneo de funções em mais de um poder (PINHEIRO, 2006). A dúvida surgiria nos casos do art. 56, I, da CF, que é quando o afastamento do exercício do mandato eletivo se dá em razão do exercício de função em outro cargo, cargos esses pertencentes ao Poder Executivo. Nesse caso, há o exercício efetivo de fun-

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jará a aplicação das sanções previstas para cada ordem, sem que isso acarrete, necessariamente, bis in idem.

Tal afirmação é possível de se sustentar no momento em que se consideram a sanção de perda do mandato e a suspen-são dos direitos políticos aplicada em processo que investigue quebra de decoro parlamentar como sanções disciplinares. Nesse sentido, Borin e Lemes (2013) auxiliam no entendimento sustentando que

[…] essas sanções [as aplicadas em sede de improbidade administrativa] têm natureza, em regra, administrativa; mas, diferentemente das demais sanções administrativas, apenas podem ser impostas através da via jurisdicional. E elas, em princípio, não excluem as demais esferas jurídicas de sanções, administrativas ou não.

A LIA ressaltou a necessidade de honestidade no tra-to público, criando novas sanções de natureza administrativa e, materializando a intenção constitucional do art. 37, § 4o, da CF/1988, previu também sanções políticas e novos instrumentos para a recomposição civil dos prejuízos causados à Adminis-tração e a anulação de atos de enriquecimento ilícito, ou seja, estando alheia a sanções disciplinares (BORIN; LEMES, 2013).

Assim, observando a disposição sistemática da LIA, tem-se que ela contempla três espécies de atos de improbidade: (i) aqueles que importam o enriquecimento ilícito (art. 9o); (ii) os que causam prejuízo ao erário (art. 10); e (ii) aqueles que atentam contra os princípios da Administração Pública (art. 11). Essas “espécies” de improbidade podem ocorrer isoladamente ou até mesmo combinando-se; por exemplo, um sujeito pode, com um mesmo ato, incorrer em enriquecimento ilícito (art. 9o) e causar prejuízo ao erário (art. 10). Observa-se que a última espécie de improbidade, a do art. 11,5 violação aos princípios

5 A título de complementação informativa, é interessante olhar a análise feita nos artigos “Quais as modalidades mais incidentes de condenação pela Lei de Improbidade Administrativa: enriqueci-mento ilícito, dano ao erário ou inobservância dos princípios da Administração Pública? Possíveis conclusões”, de autoria de Cynthia Juruena e Denise Friedrich, e “Os princípios que fundamentam as condenações por improbidade administrativa pelo artigo 11/LIA: uma análise a partir da jurispru-dência do TJRS”, de Karine Santos e Ricardo Hermany. Ambos estão disponíveis na obra: LEAL, R. G.; BITENCOURT, C. M. Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

de ministro de Estado) ou ao regime de responsabilização da LIA, mas se a possível alteração do regime de responsabiliza-ção influencia a possibilidade de processo do parlamentar por quebra de decoro parlamentar. Ou seja, independentemente de o parlamentar ser juridicamente responsabilizado pelo regime de responsabilização dos crimes de responsabilidade ou da LIA, aquele que, eventualmente, praticar um ato desonroso quando afastado do exercício da função parlamentar poderá ser proces-sado por quebra de decoro e perder o mandato por julgamento pela própria Casa Legislativa de que for membro.

Assim, vistas quais são as condutas que podem gerar a instauração de processo para apuração de quebra de decoro parlamentar a partir da CF/1988 e dos institutos jurídicos inter-nos às Casas do Congresso Nacional, bem como da Assembleia Legislativa gaúcha, busca-se explorar as espécies de sanções previstas na LIA para que, ao final, seja possível identificar quais as sanções da dessa lei se identificam com a consequência mais grave do processo de um parlamentar por quebra de decoro, que é a perda do mandato, para então mais uma vez identificar a existência de duplo grau sancionatório.

Espécies de sanções previstas na LIA

Apresentadas as hipóteses que, uma vez realizadas, po-dem configurar a instauração de processo por quebra de decoro parlamentar contra membro do Poder Legislativo, passa-se a verificar as condutas configuradoras de improbidade adminis-trativa que poderão também gerar a instauração de processo por quebra de decoro nos casos praticados por parlamentares. Outrossim, passa-se a verificar as sanções previstas pela LIA para identificar se existem sanções comuns entre as aplicadas nos casos de processo do parlamentar por sua Casa Legislativa e se quando punido judicialmente por prática de improbidade administrativa. Assim, ao final, será possível confirmar ou não a hipótese levantada, isto é, de que não há cumulatividade de sanções nesses casos, não se configurando bis in idem, tendo em vista que, se o fato violar mais de uma ordem jurídica, ense-

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pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remune-ração percebida pelo agente; e (v) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos (art. 12, III).

Acerca das sanções da LIA, é imprescindível, para o traba-lho, abordar as questões sobre sua natureza jurídica. Descarta-se de antemão a possibilidade de natureza penal a partir da pró-pria interpretação do dispositivo constitucional que autoriza a proteção da probidade administrativa. Isso porque prescreve o art. 37, § 4o, da Constituição que os atos de improbidade ad-ministrativa importarão na suspensão dos direitos políticos, na perda da função pública, na indisponibilidade dos bens e no ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível. A parte final do dispositi-vo reflete que as sanções ali previstas não têm caráter penal. Ademais, caso um ato de improbidade também se configure em ilícito penal, suas consequências serão apuradas em processo penal próprio, distinto, portanto, da apuração de improbidade da Lei no 8.429/1992 (BORIN; LEMES, 2013).

Ainda sobre a natureza jurídica da LIA, não é possível con-fundi-la com as sanções funcionais, por exemplo, tendo em vista que estas têm natureza estritamente administrativa, em decor-rência do princípio da hierarquia que rege o serviço público, as quais, no mais das vezes, consistem em advertência, suspensão e demissão. Ou seja, “as faltas funcionais, além de violar os es-tatutos, podem configurar-se, concomitantemente, em atos de improbidade administrativa, quando haverá a necessidade da apuração dos fatos (e aplicação das sanções cabíveis) tanto na esfera administrativo-funcional” (BORIN, LEMES, 2013, p. 18) — por meio do processo administrativo disciplinar ou da sindi-cância, ou, no caso deste estudo, do processo por quebra de decoro parlamentar — quanto na esfera da LIA — por meio de ação judicial. Assim, “caso o ato realmente configure-se [em] falta funcional e ato de improbidade administrativa, dever-se-á aplicar tanto as sanções previstas na Lei no 8.112/90 (na esfera

da Administração Pública, é a única que pode ser considerada isoladamente, pois, uma vez praticada qualquer uma das outras duas espécies, por meio de uma correta interpretação do siste-ma de sanções da LIA, esta a considera absorvida dentro das demais.

Decorrente dessa divisão dos atos que impliquem, nota-damente, improbidade administrativa, a LIA cuidou de separar também em três grupos as sanções aplicáveis às espécies de improbidade, sem estabelecer previamente a qual ilícito se apli-cariam. Será o art. 12 dessa lei que irá estabelecer as sanções aplicáveis a cada espécie de ato ilícito, tendo estabelecido, para os atos que impliquem enriquecimento ilícito (art. 9o), a sujeição do sujeito: (i) à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; (ii) ao ressarcimento integral do dano; (iii) à perda da função pública; (iv) à suspensão dos direitos políticos de oito a 10 anos; (v) ao pagamento de multa civil de até três vezes o va-lor do acréscimo patrimonial; e (vi) à proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de 10 anos (art. 12, I).

Não obstante, para os atos que impliquem prejuízo ao erário (art. 10), a LIA estabeleceu que o agente está sujeito: (i) ao ressarcimento do dano; (ii) à perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio; (iii) à perda da função pública; (iv) à suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos; (v) ao pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano; e (vi) à proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos (art. 12, II).

Por fim, para os atos que violem os princípios da Administra-ção Pública (art. 11), as sanções poderão ser: (i) o ressarcimento integral do dano; (ii) se houver a perda da função pública; (iii) a suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos; (iv) o

dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 2015.

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há de se olvidar que essa sanção é aplicada em sede de proces-so judicial.

Já é possível perceber que as sanções aplicáveis no caso de quebra de decoro parlamentar avaliado pela Casa legislativa de determinado parlamentar nem previsão exata tem na LIA. Os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar preveem a perda do mandato (cassação), que tem como decorrência a suspensão dos direitos políticos. O que permanece em discussão é se a suspensão dos direitos políticos aplicáveis em sede de impro-bidade administrativa configuraria, portanto, um bis in idem para a suspensão decorrente da perda do mandato por quebra de decoro parlamentar. A elementaridade de tal discussão tem como pano de fundo o fato de os direitos políticos consistirem em um conjunto de regras constitucionais e infraconstitucio-nais que regulam e autorizam o pleno exercício da soberania popular, sobretudo em regimes democráticos representativos, por meio do sufrágio universal, expressado principalmente pelo voto secreto, direto e igual para todos, tendo em vista que, em se tratando do ordenamento jurídico brasileiro, conferem ao su-jeito os atributos da cidadania plena. Não obstante,

[…] a suspensão dos direitos políticos, decorrente de ato de improbidade administrativa, é autônoma, e imposta no juízo cível na sentença que julgar procedente a ação civil de improbidade administrativa. A imposição decorre do juízo cível e é executada pela Justiça eleitoral, depois da ciência do trânsito em julgado da decisão. (BORIN; LEMES, 2013, p. 19).

Assim, as condutas tipificadas como configuradoras de improbidade administrativa pela Lei no 8.429/1992, em geral, abrirão a possibilidade de sanção por parte da Casa legislativa da qual o parlamentar é titular. Como compete ao Poder Legis-lativo, na maior parte dos casos, decidir o que irá ser conduta apta a quebrar o decoro e submeter o parlamentar a determina-da sanção, pode haver casos em que haja o processo do sujeito por improbidade administrativa, mas que, na esfera disciplinar, se entenda o contrário (ainda que raro). A sanção de perda do

federal, repita-se) quanto aquelas previstas na Lei no 8.429/92” (BORIN; LEMES, 2013, p. 18).

Nesse sentido, Maria Silvia Zanella di Pietro (2009) con-clui que as sanções têm natureza eminentemente civil e explica que a Lei no 8.429/1992 ampliou o espectro sancionatório para além do previsto na Constituição (suspensão dos direitos po-líticos, perda da função pública, indisponibilidade dos bens e ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível), para então inserir, também como sanções (art. 12): a) a perda dos bens ou valores acresci-dos ilicitamente ao patrimônio; b) a multa civil; e c) a proibição de contratar com o Poder Público ou receber incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermé-dio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário.

Contudo, há algumas leituras sobre as sanções da LIA que ultrapassam seu caráter puramente civil, destacando-se seu ca-ráter político, como no caso da suspensão dos direitos políticos, principal sanção que interessa a este estudo. Por exemplo, em Borin e Lemes (2013, p. 19), quando afirmam que a perda ou a suspensão dos direitos políticos é uma consequência grave,

[…] a que o ordenamento constitucional apenas prevê em situações peculiaríssimas (cancelamento da naturalização — artigos 15, I, e 12, § 4o, I; perda da nacionalidade brasileira em razão de aquisição voluntária de outra nacionalidade — art. 12, § 4o, II; recusa de cumprimento de obrigação legal a todos imposta ou de satisfação de prestação alternativa — artigos 15, IV, e 5o, VIII; incapacidade civil absoluta — art. 15, II; condenação criminal transitada em julgado — art. 15, III; e condenação irrecorrível em ação de improbidade ad-ministrativa (artigos 15, V, e 37, § 4o).

Contudo, não se pode falar que a sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de condenação por improbidade administrativa tem caráter político. Seu caráter é jurídico, tendo reflexos, inevitavelmente, na esfera da vida política do sujeito. Seus reflexos são políticos, mas em sua aplicação os critérios devem ser jurídicos. Se fosse admitido o contrário, estar-se-ia admitindo e legitimando a politização do Poder Judiciário. Não

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Anche in queste più moderne prospettive, sembra che il senso dela rappresentanza o della rapprentatività, a differenza della democrazia identitaria, si racchiuda nella controllabilità e prima ancora nella trasparenza di um rapporto basato sostanzialmente sulla responsabilità; che cioè la rappresentanza, al di là degli aspetti formali relativi all’investitura elettiva dei rappresentanti (parlamenti, governi, etc.), non sia politicamente troppo diversa dalla democrazia diretta, ma pur si differenzi da questa sotto um profilo que direi senz’altro giuridico. Quando il diritto è sapientemente manipolato, può persino fare dei miracoli!

Assim, a necessidade de responsabilização decorre da an-tevisão constitucional de algumas hipóteses nas quais certos princípios constitucionais colocam-se em situação de antago-nismo. Esse é o caso de quando a moralidade e a probidade entram em colisão com o direito à representação, por exem-plo. Isto é, “a continuidade mesma no exercício de determinado mandato parlamentar, pelos desvios eventualmente registrados, pode configurar fator de corrosão da essência de valores funda-mentais, afetando a própria ideia de Constituição” (PINHEIRO, 2016), sendo avesso, portanto, à noção de democracia e de um mandato que prime pela realização dos direitos fundamentais. Com essas questões no entorno, a LIA, em seu âmbito de res-ponsabilidade e bem jurídico que pretende proteger, busca a responsabilização quando do atingimento desse bem protegido. Já em outro ramo de proteção, os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar das Casas Legislativas previram, a partir da autori-zação constitucional, a possibilidade de responsabilização dos parlamentares quando da ofensa da honra objetiva do Poder Legislativo.

Resta, então, entender a suspensão de direitos políticos decorrentes de perda de mandato por parlamentar que in-corra na quebra de decoro. Nesse ponto, ajuda o texto a Lei Complementar no 64/1990, com sua alteração pela também Lei Complementar no 81/1994. Esta última altera a redação da alínea b do inciso I do art. 1o daquela para elevar de três para oito anos o prazo de inelegibilidade para os parlamentares que perde-rem o mandato por falta de decoro parlamentar. Assim, tem-se que são inelegíveis os membros do Congresso Nacional, das

mandato por quebra de decoro é disciplinar, mas o entorno do cenário em que ela será aplicada é político.

A suspensão dos direitos políticos decorrente de perda de mandato em sede de sanção parlamentar em face

da suspensão estabelecida pela LIA: a problemática pela ótica da jurisprudência

brasileira

A discussão em torno do sancionamento de membros do Poder Legislativo que tenham seus direitos políticos suspensos, seja por condenação direta em ação de improbidade adminis-trativa, seja por consequência da perda de mandato em sede de processo por quebra de decoro parlamentar, tem como pano de fundo a necessidade inerente à ideia de democracia representa-tiva, na qual a responsabilização dos detentores do poder visa a alcançar uma maior qualidade na atuação das instituições de-mocráticas, por exemplo e especialmente a instituição do Poder Legislativo. A necessidade de investigação e responsabilização com as sanções previstas no ordenamento jurídico faz-se ainda mais necessária quando o cenário de uma nação política é mar-cado pela descrença do cidadão quanto ao corpo de sujeitos que lhe representam no cenário político. Assim,

[…] a responsabilidade, portanto, é um mecanismo ineren-te ao sistema representativo, que procede do pensamento político liberal presente nas revoluções burguesas, através do qual o povo elege integrantes do seu meio para repre-sentá-lo, sendo que tais representantes estariam aptos a efetuar uma apreciação mais prudente da vontade popular, melhor protegendo os interesses da coletividade. (SAN-SON; JUNQUEIRA, 2013, p. 114).

Conforme as lições de Giorgio Berti (1994, p. 68):

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suspensão decorrente de perda de mandato por quebra de de-coro parlamentar. Nesse sentido, para os casos de improbidade,

[…] o prazo deve ser contado de oito anos após o cumpri-mento das sanções impostas, por exemplo, na ação civil de improbidade administrativa. A jurisprudência do TSE é nesse sentido, pois está arrimada nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade no 29 e no 30 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade no 4.578/DF, julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, que declararam a constitucionalidade da Lei Complementar no 135/2010, além de se reconhecer in-cidência da nova causa de inelegibilidade sobre fatos ante-riores. (RAMAYANA, 2012, p. 293).6

Veja-se no caso julgado pelo Tribunal de Justiça gaúcho, em que se fraudou um processo seletivo para estagiários, no qual um vereador teria se beneficiado dos serviços prestados pelos estagiários. Nesse caso, além da suspensão dos direitos políticos do vereador, o Tribunal sentenciou com a perda da fun-ção pública, o que fez com que o vereador perdesse, portanto, seu mandato junto à Câmara Municipal, sem a necessidade de processamento do vereador pela Câmara de Vereadores por quebra de decoro parlamentar:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONTRA-TAÇÃO SIMULADA DE ESTAGIÁRIO. INEXISTÊNCIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS OU QUALQUER ATO QUE JUSTIFIQUE O PERCEBIMENTO DA BOLSA-ENSINO. DIS-TRIBUIÇÃO DO VALOR AOS DEMAIS PARTICIPANTES DO ATO. VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO

6 “5. Veja-se ainda o entendimento exarado pelo STJ, no Recurso Especial no 993.658, de relatoria do Ministro Francisco Falcão: A sanção de suspensão temporária dos direitos políticos, decorrente da procedência de ação civil de improbidade administrativa ajuizada perante o juízo cível estadual ou federal, somente perfectibiliza seus efeitos, para fins de cancelamento da inscrição eleitoral do agente público, após o trânsito em julgado do decisum, mediante instauração de procedimento administrativo-eleitoral na Justiça Eleitoral. 6. Consectariamente, o termo inicial para a contagem da pena de suspensão de direitos políticos, independente do número de condenações, é o trânsito em julgado da decisão, à luz do que dispõe o art. 20 da Lei 8.429/92, verbis: ‘a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos só se efetivam com o trânsito em julgado da sentença condenatória’. 7. A título de argumento obiter dictum, sobreleva notar, o entendimento sedimen-tado Tribunal Superior Eleitoral no sentido de que ‘sem o trânsito em julgado de ação penal, de improbidade administrativa ou de ação civil pública, nenhum pré-candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral’. Precedentes do TSE: Respe 29.028/MG, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, publicado em sessão em 26.8.2008, e CTA no 1.607, Rel. Min. Caputo Bastos, DJ de 6.8.2008” (grifos do original).

Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais que hajam perdido os respectivos mandatos por infringência do disposto nos incisos I e II do art. 55 da CF/1988 (que trata da decoro parlamentar), dos dispositivos equivalen-tes sobre perda de mandato das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas dos Municípios e do Distrito Federal, para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao tér-mino da legislatura.

No que se refere à sanção de suspensão dos direitos polí-ticos decorrente de condenação direta em ação de improbidade administrativa, devem preencher dois requisitos básicos, sendo o primeiro a necessidade de que “a decisão na ação de impro-bidade tenha sido prolatada de forma colegiada por maioria ou unanimidade, por exemplo, por uma das câmaras do Tribunal de Justiça do Estado, ou tenha ocorrido o trânsito em julgado da decisão monocrática ou colegiada” (RAMAYANA, 2012, p. 294). Ainda, essa suspensão pela LIA exige, como segundo requisito, que a condenação se dê em sede de decisão monocrática ou colegiada. A suspensão dos direitos políticos por meio de con-denação em improbidade administrativa deve estar expressa na sentença, caso contrário não será causa da inelegibilidade do art. 1o, I, l, da Lei Complementar no 64/1990.

No caso da inelegibilidade decorrente da Lei Comple-mentar no 64/1990, lembra-se que, com a alteração da Lei Complementar no 135/2010, o ato de improbidade deve, neces-sariamente, ser um ato doloso que importe lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito; isto é, são as duas condutas em uma. A suspensão, nesses casos, ocorre desde a condenação ou o trânsito em julgado até o transcurso do prazo de oito anos após o cumprimento da pena. Assim, a suspensão dos direitos políticos decorrente de condenação direta em improbidade ad-ministrativa, no caso da ofensa aos princípios da Administração Pública, decorre da previsão constitucional do art. 15, V, com-binado com o art. 37, § 4o. Ou seja, o prazo de cumprimento da suspensão dos direitos políticos no caso de condenação em improbidade administrativa tem seu decurso independente da

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A partir desse entendimento, poder-se-ia pensar na hipó-tese de que o processamento de um parlamentar por sua Casa Legislativa (quando já condenado em improbidade administrati-va à perda da função e suspensão de seus direitos políticos) no caso de quebra de decoro teria como resultado proporcionar um retorno à sociedade que aquele corpo de parlamentares re-presenta, tendo em vista que o objetivo máximo a ser alcançado com o processo por quebra de decoro é a perda (cassação) do mandato, e a consequente suspensão dos direitos políticos já o fora. Ocorre que nem em todos os casos a sanção de suspensão dos direitos políticos é aplicada em sede de ações de impro-bidade que tenha como réu um membro do Poder Legislativo, tendo em vista que na etapa de fixação das sanções, pela regra de necessidade de graduação da sanção à gravidade do ato, a sanção de suspensão dos direitos políticos é tida como necessá-ria de se graduar de acordo com a gravidade real do ato. Como exemplo dessa afirmação, serve o seguinte acórdão do Tribu-nal de Justiça gaúcho, oportunidade na qual o Tribunal excluiu das sanções aplicadas ao caso a suspensão dos direitos políticos que haviam sido fixados em sede de sentença no primeiro grau:

ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. VEREADORES. DIÁ-RIAS E DESPESAS DE INSCRIÇÃO EM EVENTO. AUSÊN-CIA DE FREQUÊNCIA. ART. 9o, CAPUT, E INCISO XI, LEI DE IMPROBIDADE. Corresponde a inequívoco ato de im-probidade, enquadrado em o art. 9o, caput, e inciso XI, Lei no 8.429/92, o recebimento de diárias por vereadores, assim como o ressarcimento das despesas de inscrição, quanto a curso que não frequentaram efetivamente, como se confir-ma pela ausência das assinaturas na listagem de presença. IMPROBIDADE E SANÇÕES. ART. 12, I, LEI No 8.429/92. APLICAÇÃO ISOLADA OU CUMULATIVA. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. EXCLUSÃO DAS PENAS DE PERDA DE FUNÇÃO PÚBLICA E SUSPEN-SÃO DOS DIREITOS POLÍTICOS. MULTA CIVIL E PROPOR-CIONALIDADE. Não há cogente incidência, modo cumula-tivo, das sanções traçadas no art. 12, Lei de Improbidade, podendo se aplicar os apenamentos isolada ou cumulativa-mente, sob o enfoque dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, o que leva, no caso dos autos, à exclusão das sanções de perda de função pública e suspensão dos direitos políticos. Justifica-se, pela menor ofensa, a redução

PÚBLICA E PREJUÍZO AO ERÁRIO. Conforme revela a pro-va dos autos, houve a simulação de contrato de estágio, nunca tendo havido o concurso do estagiário, que repas-sava parte da bolsa aos réus. Um, Vereador, suposto bene-ficiário do trabalho, outro, intermediário da falsa contrata-ção. Ato doloso que se mostra atentatório aos princípios da Administração Pública (art. 11, I, da Lei de Improbidade) e causa prejuízo ao erário (art. 10, I, da Lei no 8.429/1992), sujeitando todos os participantes às penas correspon-dentes previstas na Lei de Improbidade. Irrelevância da absolvição dos réus no processo criminal, haja vista a falta de identidade dos tipos e independência das sanções administrativas (art. 12 da Lei no 8.429/1992). Apelação dos réus desprovida. Apelação do Ministério provida. (Apela-ção Cível no 70.034.862.912, Vigésima Primeira Câmara Cí-vel, Tribunal de Justiça do RS, relator: Marco Aurélio Heinz, julgado em 17/11/2010).

Dessa decisão, em fase de cumprimento de sentença, o vereador agravou e o Tribunal manteve sua decisão, oportunida-de em que expressou ser o entendimento daquele órgão que a condenação em improbidade com perda da função e suspensão dos direitos políticos gera a perda do mandato automaticamen-te, sem a necessidade de processamento por quebra de decoro parlamentar por parte da Câmara de Vereadores.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE IMPROBIDADE. CONDENAÇÃO À SUSPENSÃO DOS DIREITOS POLÍTI-COS. PERDA DO MANDATO. VEREADOR. É vedada a cas-sação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de improbidade administrativa (art. 15, V, da CF). Perderá o mandato, o Deputado, Senador, e, pelo princípio de simetria, o Vereador, que perder ou tiver sus-pensos os direitos políticos (art. 55, IV, da CF). O agravante foi condenado à suspensão dos seus direitos políticos e à perda da função pública, em razão da prática de ato de im-probidade, por sentença transitada em julgado. A extinção do mandato de vereador decorre dessa punição, cumprin-do à Mesa Diretora da Câmara de Vereadores, apenas de-clarar a perda do mandato do condenado. Precedente des-ta Corte. Agravo desprovido. (Agravo de Instrumento no 70.053.358.784, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Marco Aurélio Heinz, julgado em 8/5/2013). (grifo nossos).

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ao decoro, desde a Constituição de 1946, foi Eduardo Barreto Pinto, por se ter deixado fotografar de casaca e cuecas pela revista O Cruzeiro. Não obstante, “em 1989 [já sob o ordena-mento jurídico da CF/1988], Felipe Cheidde e Mário Bouchardet também perderam o mandato não por falta de decoro, mas por não comparecerem a mais de um terço das sessões ordinárias na mesma sessão legislativa” (FROTA, 2012, p. 18). Ademais, apresenta que, “em 1991, o deputado Jabes Rabelo foi cassado por tráfico de drogas e, em 1993, os deputados Itsuo Takaya-ma, Nobel Moura e Onaireves Moura, por compra e venda de filiações partidárias” (FROTA, 2012, p. 19), indicando, assim, a alteração nos sentidos de decoro parlamentar. Ao todo, desde a legislatura 1987-1991 até a legislatura 2015-2019, 23 deputados federais tiveram declarada a perda do mandato por quebra de decoro parlamentar e três senadores. O primeiro senador foi Luiz Estevão (sua cassação ocorreu em 2000, acusado de desviar R$ 170 milhões, destinados à construção do Fórum Trabalhista de São Paulo, tendo sido o primeiro senador cassado na história do Brasil). O segundo senador a sofrer a perda do mandato foi Demóstenes Torres (em 2012, acusado de associação a Carlinhos Cachoeira, a partir de investigações decorrentes do escânda-lo do Mensalão). E o terceiro e último a perder o mandato foi Delcídio do Amaral (em 2016, acusado de utilizar o cargo para obstrução da justiça a partir de investigações da Operação Lava Jato).

Em pesquisa preliminar junto à jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi possível firmar a posição dos tribunais superiores a respeito da limitação de intervenção do Poder Judiciário nas questões meritórias em processos que analisam a quebra de decoro parlamentar.7 Exemplo disso po-de-se ter na Apelação Cível no 70.009.566.043, de relatoria do desembargador João Carlos Branco Cardoso, na qual se levou à

7 Nesse sentido, julgado paradigma do STF: “Ato da Mesa da Câmara dos Deputados, confirmado pela Comissão de Constituição e Justiça e Redação da referida Casa legislativa, sobre a cassação do mandato do impetrante por comportamento incompatível com o decoro parlamentar. […] Não cabe, no âmbito do mandado de segurança, […] discutir deliberação, interna corporis, da Casa Legislativa. Escapa ao controle do Judiciário, no que concerne a seu mérito, juízo sobre fatos que se reserva, privativamente, à Casa do Congresso Nacional formulá-lo” (MS 23.388, rel. min. Néri da Silveira, julgamento em 25/11/1999, Plenário, DJ de 20/4/2001; grifos nossos).

da multa civil para o mínimo previsto em o art. 12, I, Lei no 8.429/92, parâmetro este adotado pela sentença, aliás, no que tange à suspensão dos direitos políticos. (Apelação e Reexame Necessário no 70.058.317.900, Vigésima Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Armínio José Abreu Lima da Rosa, julgado em 30/4/2014). (grifos nossos).

É por esse modo que determinada Casa Legislativa poderá entender pela necessidade de cassação do mandato de terminado parlamentar, membro seu, muito embora não tenha sido aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de ação de improbidade, por exemplo. Esse procedimento é absolutamente legítimo, e as questões meritórias não podem ser revistas pelo Poder Judiciário. Assim, muito embora em determinadas ações de improbidade administrativa, que tenham como réu um parlamentar, não seja aplicada a sanção de suspensão dos direitos políticos e a perda da função pública, poderá essa Casa Legislativa, seja Câmara dos Deputados Federais, Senado, Assembleias Legislativas ou até mesmo Câmaras de Vereadores, processá-lo por quebra de decoro parlamentar, se for o caso, e ter aplicada a perda do mandato. Isso porque, como já destacado, o processo por quebra de decoro visa a proteger a honra da instituição Poder Legislativo, e a prática de determinado ato de improbidade, ainda que não sancionado na esfera judicial com a suspensão dos direitos políticos, pode, sim, dotar-se de potencial altamente lesivo à imagem daquela Casa Legislativa, legitimando, portanto, a cassação do mandato por quebra de decoro. Contudo, esse modo de extinção do mandato deve ser sempre visto e aplicado em caráter de excepcionalidade, para não incorrer-se em rupturas habituais do mecanismo de representação popular.

Com base nas lições de Canotilho (2003), a legitimidade dos órgãos representativos não decorre simplesmente da dele-gação da vontade do povo, mas também do conteúdo de seus atos, que, quando justos, permitem aos cidadãos, mesmo com suas diferenças, se reencontrarem nos atos de seus represen-tantes. Nesse sentido, indica Frota (2012, p. 18) que, em nível nacional, “o primeiro deputado a perder o mandato por ofensa

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Em um segundo Reexame Necessário (no 70.067.912.113), dessa vez em sentença de mandado de segurança impetrado por Vilmar Soares contra o presidente da Câmara de Vereadores de Caiçara, o Tribunal reformou a decisão de cassação do man-dato do vereador por entender que o trâmite do processamento feriu os dispositivos legais que regem a matéria. Destacou ainda que

[…] não é de competência do Judiciário a análise do mérito do ato administrativo, sendo possível, apenas, o controle dos aspectos formais da legalidade do procedimento utili-zado pela Câmara de Vereadores, em razão do princípio da separação dos poderes, previsto no artigo 2o da Constitui-ção Federal. E, nessa perspectiva, destaco que o processo de cassação de mandato de vereador, dadas suas gravís-simas repercussões, deve obedecer às rígidas formalida-des legais, não se admitindo o atropelo de regras legais expressas em nome da celeridade ou da instrumentalidade do processo de apuração das faltas imputadas ao vereador acusado. E, no caso, verifico que o processo não obedeceu aos ditames do Decreto-Lei no 201/67. (Reexame Necessá-rio no 70.067.912.113, p. 3; grifos do original).

Esse foi um caso no qual houve a reforma da decisão pro-ferida pela Câmara de Vereadores (reintegração do vereador à sua função) sem a necessidade de enfrentar o mérito dos fatos que levaram ao processo por quebra de decoro parlamentar. Nesse sentido ainda, no julgamento do Mandado de Segurança no 21.443 pelo STF, restou estabelecido que, no caso de cassa-ção de mandato de parlamentar (art. 55, II, da CF/1988), o ato disciplinar é da competência privativa da Câmara respectiva, si-tuado em instância distinta da judiciária e dotado de natureza diversa da sanção penal, mesmo quando a conduta imputada ao deputado coincida com tipo estabelecido no Código Penal, tendo sido denegada a segurança pleiteada no caso. Nesse as-pecto, o entendimento expressado nesse julgamento se adapta ao tema aqui trabalhado, quando, por exemplo, o relator explica que “a sanção disciplinar imposta pela Câmara dos Deputados difere da natureza da condenação criminal, é processada em ou-tra instância que a do Poder Judiciário, cabendo privativamente à Câmara dos Deputados” (Mandado de Segurança no 21.443), e

análise do Tribunal a possível nulidade do processo por quebra de decoro do vereador de Santa Vitória do Palmar, Aluízio Alegre Machado. As questões a serem analisadas pelo Tribunal diziam respeito à regularidade do procedimento adotado pela Comis-são Processante da Câmara de Vereadores, que extrapolou o prazo legal de 90 dias para encerrar o processo. Entendeu-se, então, que não houvera caracterizado irregularidade ou ilegali-dade alegada pelo vereador, pois

[…] a Comissão processante só não concluiu seus traba-lhos integralmente no prazo previsto, porque, corretamen-te, deferiu o pedido de realização de perícia grafotécnica formulado pelo autor, que, por sua vez, não foi localiza-do para intimação da sessão de julgamento, dando ense-jo à expiração do prazo, ocultando-se. (Apelação Cível no 70.009.566.043).

No Agravo de Instrumento no 70.035.870.161, por sua vez, as questões levadas à análise dizem respeito a irregulari-dades na instauração da Comissão Processante pela Câmara de Vereadores de Erebango, a qual foi instalada para processar de-terminado vereador por quebra de decoro por suposta agressão física a outro vereador. No caso, a irregularidade configurou-se pelo fato de a Câmara não ter instalado a comissão no prazo es-tabelecido pelo regimento interno e ter sido composta apenas depois da ocorrência do fato que seria processado.

No Reexame Necessário (no 70.035.792.522) da sentença proferida nos autos do mandado de segurança impetrado por Francisco Tadeu Magnus contra ato do presidente da Câmara de Vereadores de Xangrilá, o Poder Judiciário foi instado a se ma-nifestar em assunto decorrente de procedimento que apurava quebra de decoro parlamentar quando o vereador processado teceu críticas ao secretário de Administração e Finanças do Mu-nicípio. Reconheceu-se que tais opiniões estão protegidas pela imunidade material do parlamentar. Afirmou-se que, em se tra-tando de manifestações proferidas por vereador no exercício de mandato eletivo, a CF/1988 (art. 29, VIII) e a Lei Orgânica do Município (art. 39) asseguram a inviolabilidade por suas opi-niões, palavras e votos, confirmando-se, portanto, a sentença.

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e ético por parte daqueles que ocupam os postos de represen-tantes da vontade popular e que, caso violada essa honra, é passível de sancionamento para se resguardar a imagem de uma das instituições mais essenciais no processo de representação política democrática, o Poder Legislativo. Fala-se aqui do deco-ro parlamentar.

Para isso, apresentaram-se as condutas que, de acor-do com a CF/1988 e conforme os Códigos de Ética e Decoro Parlamentar tanto das Casas do Congresso Nacional quanto da Assembleia Legislativa gaúcha, configuram-se em condutas indecorosas e passíveis de sanção. A partir disso, adentrou-se especialmente a sanção da perda do mandato (cassação) por quebra de decoro parlamentar e tentou-se analisar se a suspen-são dos direitos políticos decorrente de cassação de mandato eletivo por quebra de decoro configuraria uma espécie de bis in idem quando analisada com a sanção de suspensão dos direitos políticos aplicável em sede de ação de improbidade administra-tiva. Tudo isso sob o enfoque da atividade legislativa.

Sobre esse ponto, com o auxílio da jurisprudência dos tribunais superiores e verificando também a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, foi possível concluir e confirmar a hipótese levantada, isto é, de que a aplicação da sanção de suspensão dos direitos políticos em sede de ação de improbidade administrativa não configura bis in idem com a suspensão dos direitos políticos decorrentes de perda (cas-sação) do mandato eletivo por quebra de decoro parlamentar, sanção essa aplicada em sede de procedimento interno das Ca-sas Legislativas. Isso porque as esferas de responsabilização são distintas; uma tem caráter disciplinar, e a outra, caráter civil-ad-ministrativo, embora a sanção de perda da função e suspensão dos direitos políticos tenha caráter eminentemente político.

Por fim, foi possível identificar ainda a posição do Po-der Judiciário no que tange ao dever de não intervenção nas questões meritórias de procedimentos que tratem da quebra de decoro parlamentar pelas Casas Legislativas, reservando-se, sim, o dever de intervenção e análise, quando solicitado, em questões formais e de regularidade legal de tais processos.

continua: “nem seria compreensível que, nas hipóteses presumi-velmente as mais graves de quebra de decoro (as coincidentes com tipos delituosos), a ação de disciplina da Câmara ficasse tolhida pela dependência e à espera não só da deliberação do Poder Judiciário, como da própria iniciativa do órgão do Minis-tério Público” (Mandado de Segurança no 21.443). Por fim, o relator ressaltou que “é certo que condenação criminal transi-tada em julgado acarreta necessariamente a perda do mandato (art. 55, VI, da CF/1988), mas essa previsão não impede que a Câmara, qualificando um procedimento (criminoso ou não) como incompatível com o decoro, imponha a sanção disciplinar correspondente (perda do mandato)” (Mandado de Segurança no 21.443).

Ou seja, as instâncias de aplicação de sanções (responsa-bilização em improbidade administrativa e quebra de decoro parlamentar) são distintas e não podem se confundir. No caso da instância penal, há de se lembrar que vinculará as demais quando restar sentenciada a inexistência do fato ou negativa de autoria. Mas, nas demais instâncias, improbidade administrativa, por exemplo, por serem instâncias diversas e com naturezas jurí-dicas também diversas, as sanções aplicadas em cada seara não poderão ser tidas como passíveis de ocorrência de bis in idem, sob pena de se aniquilar uma das formas de se responsabilizar um indivíduo que tenha infringido tais ordens.

Considerações finais

A partir das premissas expostas no decorrer deste estu-do, pode-se perceber que a responsabilização de indivíduos que transgridam regras de ordens jurídicas preestabelecidas é inerente à democracia representativa, sobretudo quando a transgressão ocorre no trato para com a coisa pública, que é o caso da improbidade administrativa. Não obstante isso, foi pos-sível perceber que no Estado democrático de direito, no qual predomina o exercício da democracia pela representação políti-ca, faz-se essencial manter determinado comportamento moral

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Considerações acerca do ativismo judicial

Tutela à efetivação de direitos transindividuais

Lia Sarti1

1 Advogada sócia do escritório Amir Sarti Advogados Associados. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Estado do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestranda em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público, tendo como linha de pesquisa as tutelas para a efetivação dos direitos transindividuais. E-mail: [email protected].

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Abstract

This paper analyzes the judicial activism phenomenon that has been increasingly studied in doctrine and Brazilian jurispru-dence, due to the observance of a more proactive role of the judiciary, examining still — albeit simple and superficial way — issues such as neoconstitutionalism and the legalization of politics. It is also intended to address the theory of the princi-ples of Robert Alexy and criticism against it facing the constant search for security and the effectiveness of fundamental rights, in addition to the omissions perpetrated by the Legislature and Executive, responsible, according to much of the doctrine by practice of judicial activism — the main theme of the work.

Keywords: Judicial Activism. Judicialization of Politics. Neoconstitutionalism.

Resumo

O presente trabalho analisa o fenômeno do ativismo ju-dicial, que vem sendo cada vez mais estudado na doutrina e na jurisprudência brasileiras em razão da observância de uma atuação mais proativa do Poder Judiciário, examinando ainda — embora de forma singela e superficial — questões como o neoconstitucionalismo e a judicialização da política. Pretende-se também abordar a teoria dos princípios de Robert Alexy e as críticas contra ela voltadas, a constante busca da garantia e da efetividade dos direitos fundamentais, além das omissões per-petradas pelos Poderes Legislativo e Executivo, responsáveis, segundo grande parte da doutrina, pela prática do ativismo ju-dicial, tema principal do trabalho.

Palavras-chave: Ativismo Judicial. Judicialização da Políti-ca. Neoconstitucionalismo.

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a decisão judicial resvale para a arbitrariedade e o discriciona-rismo, mediante deturpação do aceitável “ativismo judicial”. Assinale-se, desde logo, que não se tem uma ideia fechada so-bre o ativismo judicial como algo bom ou ruim.

Na segunda parte, busca-se analisar a questão da judiciali-zação da política, fenômeno acentuado a partir da CF/1988, em razão do extenso rol dos direitos fundamentais outorgados ao cidadão. Nesse ponto, o estudo pretende investigar o motivo dessa atuação mais incisiva do Poder Judiciário na resolução do caso concreto, que não raro traduz o referido “ativismo judicial”.

E a terceira tratará do ativismo judicial propriamente dito, momento em que se tentará levar ao conhecimento do leitor a posição da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.

A metodologia a ser utilizada é a dialética, propondo-se a discussão do fenômeno “ativismo judicial” na prática contempo-rânea como instrumento eficaz para a concretização dos direitos fundamentais estabelecidos expressamente na CF/1988.

Vale lembrar que o objetivo do presente trabalho é ape-nas noticiar a existência desse novo fenômeno, cada vez mais difundido, dissecando — ainda que superficialmente — algumas questões que talvez possam explicar e justificar seu surgimento. Naturalmente, não se pretende esgotar o assunto, até porque cada um dos temas aqui ventilados poderia, sem sombra de dú-vidas, merecer um estudo específico bastante alentado.

Neoconstitucionalismo e a teoria dos princípios

É bem sabido que a CF/1988 consagrou uma gama de di-reitos e garantias fundamentais para o cidadão, e nem poderia ser diferente, porque, como explica Canotilho (2003, p. 377),

[…] o local exato desta positivação jurídica é a Constitui-ção. A positivação de direitos fundamentais significa a in-corporação na ordem jurídica positiva dos direitos conside-rados “naturais” e “inalienáveis” do indivíduo. Não basta

Ativismo judicial é a denominação dada pela doutrina con-temporânea para tentar explicar a postura mais proativa

adotada pelo Poder Judiciário nos últimos tempos para a re-solução dos casos concretos. Qualquer estudo sobre ativismo judicial passa necessariamente pelos temas do neoconstitucio-nalismo e da judicialização da política, fenômeno constatado na recente atuação dos tribunais, especialmente do Supremo Tribu-nal Federal (STF).

O neoconstitucionalismo é uma concepção verificada prin-cipalmente a partir da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), que trouxe um amplo rol de direitos e garantias fundamentais insculpidos em regras e princípios, dotados de força normativa e com aplicação imediata, o que estimula os cidadãos a exigir seus direitos, reclamando do Estado sua concretização. Vale dizer, a Carta Magna deixou de ser apenas um diploma de intenções e se tornou um instrumento efetivo para a realização dos direitos fundamentais.

A judicialização da política, por sua vez, resulta justamente dessa luta pelos direitos individuais e coletivos perante o Poder Judiciário, diante da negativa ou da omissão dos Poderes Le-gislativo e Executivo. Ou seja, atualmente, as questões da vida prática — inclusive aquelas que seriam da competência origi-nária dos demais Poderes — acabam sendo levadas ao Poder Judiciário, onde frequentemente encontram a devida solução.

Como comenta Luis Roberto Barroso (2012, p. 1-7), no Bra-sil e no mundo tem-se vivenciado a “[…] ascensão institucional do Judiciário nos últimos anos […], o reconhecimento da impor-tância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas […]”.

Diante disso, o presente artigo foi estruturado em três par-tes: a primeira abordará a visão neoconstitucionalista a partir da teoria dos princípios, destacando-se, em especial, a força nor-mativa da Constituição. As regras e os princípios constitucionais passaram a ser aplicados de forma imediata, e notadamente os últimos começaram a prevalecer nos julgados para a solução do caso concreto. Procura-se demonstrar os métodos adequados para priorizar os princípios em detrimento das regras, sem que

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dos valores, a essencialidade dos direitos fundamentais e, so-bretudo, o reconhecimento da normatividade dos princípios são apontados como características marcantes da investida pós-po-sitivista” (NOVELINO, 2012, p. 194).

Antes de tratar do neoconstitucionalismo propriamente dito, porém, parece conveniente falar, ainda que de maneira sucinta, sobre a teoria dos princípios, de Robert Alexy. Sabida-mente, trata-se de teoria um tanto complexa, impossível de ser esgotada em um trabalho com as limitações do presente. Bem por isso, o que se pretende é tão somente dar notícia ao leitor sobre a existência do instituto e tentar mostrar, em apertadíssi-ma síntese, sua importância na prática forense.

Robert Alexy lembra que existe diferença entre as regras e os princípios. Para ele, os princípios estabelecem deveres prima facie, sendo mandados de otimização, pois “[…] exigem que algo seja realizado na maior medida possível dentro das pos-sibilidades jurídicas e fáticas existentes […]”, ao passo que as regras impõem uma ação ou omissão ao sujeito, descrevendo o que é permitido, proibido ou obrigatório: “[…] as regras exigem que seja feito aquilo que elas ordenam, elas têm uma determina-ção da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas […]”. Com base nesse entendimento, o dou-trinador sustenta a ideia de que os princípios sempre têm um sentido genérico, orientando determinada conduta sem a força impositiva da regra, que tem caráter definitivo (ALEXY, 2015a, p. 103-104). Explica o respeitado jurista:

Um tal modelo parece estar presente em Dworkin, quando ele afirma que as regras, se válidas, devem ser aplicadas na forma do tudo ou nada, enquanto os princípios apenas con-têm razões que indicam uma direção, mas não têm como consequência necessária uma determinada decisão […]. (ALEXY, 2015a, p. 104).

Embora Alexy (2015a) compartilhe do entendimento de que os princípios e as regras têm modelos diferenciados de apli-cação, sustenta que deve haver uma cláusula de exceção para permitir que se aplique o princípio em lugar da regra, em deter-minados casos concretos. Isso porque as regras não são capazes

uma qualquer positivação. É necessário assinalar-lhes a di-mensão de Fundamental Rigths colocados no lugar cimeiro das fontes de direito: as normas constitucionais. Sem essa positivação jurídica, os direitos do homem são esperanças, aspirações, ideias, impulsos, ou até, por vezes, mera retó-rica política, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional.

Pode-se dizer, assim, que a Constituição deixou de ser uma abstração, um mero diploma de intenções, um documen-to puramente político, objeto de alta teorização, para tornar-se um instrumento de aplicação prática do direito constitucional, com regras dotadas de efetiva força normativa, concretamente aplicáveis na solução dos casos reais, especialmente aqueles con-siderados “difíceis”. Esse movimento recebeu a denominação de “neoconstitucionalismo” (ÁVILA, 2009) ou de “pós-positivismo”.

Em outras palavras, a Constituição tornou-se ferramenta eficaz para a realização dos ideais neoconstitucionalistas, pois, como observa Marcelo Novelino (2012, p. 196):

O que hoje parece óbvio, todavia, não era o entendimento adotado até meados do século XX, quando os princípios e normas eram tratados como espécies distintas.[…]Sendo a Constituição compreendida como um documento jurídico dotado de força normativa, por conseguinte, todos os dispositivos por meio dos quais ela emite seus coman-dos devem ter o seu caráter normativo reconhecido. É pou-co sensato imaginar que o legislador constituinte, investido em tão relevante função, pudesse se dar ao trabalho de ela-borar disposições ociosas, sem força cogente, de simples valor ético ou moral. Todos os dispositivos constitucionais possuem eficácia jurídica, ainda que a intensidade imediata de conformação seja variável.

O neoconstitucionalismo está intimamente relacionado com o chamado pós-positivismo, termo empregado no Brasil primeiramente por Paulo Bonavides, inspirado nas doutrinas de Friedrich Muller, Robert Alexy e Ronaldo Dworkin, defensores da ideia de que os princípios, por conterem valores importan-tíssimos, têm força normativa. Logo após, outros doutrinadores se dedicaram ao assunto, vindo observar que “[…] a ascensão

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co desse modelo é a relação de vinculação e de abertura. Quando regras podem, sem mais, determinar a decisão de um caso, o sistema jurídico manifesta alto grau de vincula-ção. Quando, contudo, não é esse caso, como ocorre na hipótese em que o sistema jurídico não dispõe de uma re-gra para a decisão de um caso, o juiz está livre para se valer de critérios extrajurídicos — no modelo de sistema guiado exclusivamente por regras, o juiz somente está vinculado juridicamente por regras. (GAVIÃO FILHO, 2010, p. 20).

Do mesmo modo, não se poderia cogitar de um sistema abarcado somente por princípios, porque isso, em razão de sua considerável indeterminação, “[…] aniquilaria a irrenunciável exigência da segurança jurídica” (GAVIÃO FILHO, 2010, p. 21).

Portanto, o entendimento que se adota aqui também é no sentido de que o ideal é a combinação de regras e princípios para garantir a segurança jurídica, evitar a arbitrariedade nas decisões e alcançar a justiça do caso concreto.

É nesse contexto que se entende o surgimento da visão neoconstitucionalista (ou pós-positivista), que não se confunde com o jusnaturalismo, nem com o juspositivismo. Enquanto es-tes preveem um distanciamento entre a prescrição normativa e a descrição, o neoconstitucionalismo amplia os horizontes da teoria do direito, prestigiando a validade formal das normas ju-rídicas e sua eficácia social.

Veja-se a lição de Marcelo Novelino (2012, p. 194-195):

A teoria jurídica assume uma dimensão prática e funcional extremamente importante para a redução da incerteza do direito, fornecendo os elementos necessários para a solu-ção de problemas estabelecidos para casos difíceis.[…]Segundo o professor Kiel, o direito tem uma “dupla natu-reza”: a dimensão real ou fática é representada pelos ele-mentos contidos nos conceitos positivistas (validade formal e eficácia social), ao passo que a dimensão ideal ou crítica encontra expressão no elemento de correção moral, que adicionado aos elementos anteriores faz com que surja um conceito não positivista de direito. […] A incorporação da correção substancial ao conceito de direito tem por finali-dade estabelecer um patamar mínimo de justiça material

de prever todas as situações do mundo dos fatos, e, quando isso ocorre, torna-se necessária a utilização de outros instrumentos para a solução do caso específico. Assim, a regra perde seu ca-ráter definitivo e abre espaço para a utilização dos princípios, sempre mediante argumentação. A aplicação de um princípio se faz sempre por meio da ponderação, ou seja, no caso concreto se atribui peso maior a um princípio em detrimento de outro. A regra não funciona dessa forma:

[…] a regra não é superada pura e simplesmente quando se atribui, no caso concreto, um peso maior ao princípio contrário que sustenta a regra. É necessário que sejam superados também aqueles princípios que estabelecem que as regras que tenham sido criadas pelas autoridades legitimadas para tanto devem ser seguidas e que não se deve relativizar sem motivos uma prática estabelecida. Tais princípios devem ser denominados “princípios formais”. Em um ordenamento jurídico, quanto mais peso se atribui aos princípios formais, tanto mais forte será o caráter prima facie de suas regras. Somente quando se deixa de atribuir algum peso a esse tipo de princípios — o que teria como consequência o fim da validade das regras enquanto regras — é que regras e princípios passam a ter o mesmo caráter prima facie. (ALEXY, 2015b, p. 105; grifo do original).

Entretanto, não quer dizer que o caráter prima facie das regras seja idêntico ao dos princípios, pois, como dito, estes podem ser fortalecidos ou enfraquecidos pela ponderação em favor de um ou outro: “Mesmo uma regra sobre ônus argu-mentativo não excluí a necessidade de definir as condições de precedência no caso concreto” (ALEXY, 2015a, p. 106).

Anízio Pires Gavião Filho (2010, p. 20) observa, com mui-ta propriedade, que um Estado democrático de direito deve, necessariamente, ser orientado pelo sistema de regras e princí-pios, uma vez que “[…] é o ponto de partida para a identificação das normas de direitos fundamentais […]”, ainda que sejam pas-síveis de colisão e, consequentemente, de ponderação. Como explica o acatado doutrinador:

Os problemas de um sistema jurídico constituído exclusi-vamente por regras são bem conhecidos. O característi-

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Os ideais neoconstitucionalistas mereceram a crítica de Humberto Ávila (2009, p. 2), para quem o neoconstitucionalismo transformou o modo de aplicação do direito:

[…] princípios em vez de regras (ou mais princípios do que regras); ponderação no lugar de subsunção (ou mais pon-deração do que subsunção); justiça particular em vez de justiça geral (ou mais análise individual e concreta do que geral e abstrata); Poder Judiciário em vez dos Poderes Le-gislativo ou Executivo (ou mais Poder Judiciário e menos Poderes Legislativo e Executivo); Constituição em substi-tuição à lei (ou maior, ou direta, aplicação da Constituição em vez da lei).

A aplicação do direito no neoconstitucionalismo, segundo Ávila, está baseada em quatro modelos: o normativo, o meto-dológico, o axiológico e o organizacional. O normativo trabalha com a ideia de aplicação preponderante ou até exclusiva dos princípios no lugar das regras. Porém, como sustenta esse doutrinador, na verdade em caso de conflito entre regra e prin-cípio deveria prevalecer a regra, sendo os princípios utilizados somente quando a regra fosse totalmente incompatível ou de-sarrazoada para a solução do caso. O modelo metodológico diz respeito ao método utilizado, em que predominaria a pondera-ção em vez da subsunção. Humberto Ávila comenta que, se não forem observados os critérios para a aplicação dos princípios, isso poderá representar ofensa ao papel democrático do Poder Legislativo, porquanto a Constituição reservou expressamente ao Legislativo a competência para regular as situações concre-tas. O axiológico significa a promoção de uma justiça individual em detrimento da geral, uma vez que, por meio da pondera-ção, se cria uma norma posterior e individual exclusiva para o caso concreto. E o método organizacional diz respeito, como já ventilado, à invasão pelo Poder Judiciário do espaço do Po-der Legislativo, mediante o uso indiscriminado e inadequado da ponderação (ÁVILA, 2009).

Luiz Roberto Barroso (2005) comenta que, a partir da constitucionalização do direito, surge a necessidade de cons-truir outros métodos de solução dos casos, pois a maneira convencional — simples subsunção — já não se mostra mais sa-

que deve estar presente em qualquer ordenamento jurídico e fixar um limite para além do qual o direito não pode ter validade: a extrema injustiça. (grifo do original).

Ronald Dworkin, ao fazer severas críticas ao positivismo jurídico, criou a teoria dos princípios, que, salvo melhor juízo, foi inspiradora do neoconstitucionalismo. A ideia é de que as normas jurídicas frequentemente são vagas, não conseguindo prever todas as condutas sociais e conferir soluções adequadas. Daí por que o aplicador do direito, especialmente o julgador, deve se valer de outras fontes — por exemplo, os princípios — para decidir o caso concreto. Nas palavras de Robert Alexy (2015b, p. 164):

[…] essas regras, por causa de sua vagueza, não vinculam, através de uma consequência jurídica, aquele que decide, então ele deve decidir de acordo com os critérios não per-tencentes ao ordenamento jurídico, uma vez que o direito não lhe fornece qualquer critério. Se, contudo, alguém só pode decidir com base em critérios não pertencentes ao ordenamento jurídico, ele então não está, através de sua decisão, ligado ao ordenamento jurídico, e tem, portanto, poder discricionário […].

Para evitar a discricionariedade arbitrária, é preciso lem-brar os ensinamentos de Dworkin, para quem as regras são aplicadas na forma do tudo ou nada, sem prejuízo da referida cláusula de exceção. Já para a aplicação dos princípios são esta-belecidos pesos que devem ser ponderados em caso de colisão: um terá peso maior que o outro, “[…] constituindo fundamento para a decisão judicial. Isso, contudo, não significa que o prin-cípio de menor peso seja inválido e, por força disso, deva ser despedido do ordenamento jurídico” (GAVIÃO FILHO, 2010, p. 21-22).

Objetivamente, as regras são aplicadas na forma da sub-sunção, busca-se enquadrar a norma no caso concreto; os princípios obedecem ao critério da ponderação para dirimir con-flitos entre eles (GAVIÃO FILHO, 2010).

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A judicialização da política

Até aqui, buscou-se demonstrar que a CF/1988, por trazer uma série de direitos e garantias fundamentais para o cidadão, provocou mudança significativa no pensamento dos operadores do direito e na própria aplicação do ordenamento jurídico. Nos dizeres de Luis Roberto Barroso (2005, p. 26),

A partir de 1988, e mais notadamente nos últimos cinco ou dez anos, a Constituição passou a desfrutar já não apenas da supremacia formal que sempre teve, mas também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade de seus princípios. Com grande ímpeto, exibindo força normativa sem precedente, a Constituição ingressou na paisagem ju-rídica do país e no discurso dos operadores jurídicos.

Essa mudança deve-se também, e muito, ao comporta-mento do jurisdicionado, que passou a exigir com maior vigor a concretização de seus direitos, consagrados no amplo, extenso e profundo conteúdo da Carta Magna de 1988. Segundo Bar-roso (2005, p. 44), “[…] sob a égide da Constituição de 1988, aumentou de maneira significativa a demanda por justiça na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, pela redescoberta da cidadania e pela conscientização das pessoas em relação aos próprios direitos […]”.

Partindo dessa premissa, não é por acaso que se observa, já há algum tempo, a atuação contundente do Poder Judiciário ao decidir sobre fatos da vida, que originariamente poderiam e/ou deveriam ser solucionados tanto pela Administração Pública, por meio das políticas públicas, quanto pelo Poder Legislativo, por meio da criação de leis. Esse é o fenômeno denominado ati-vismo judicial, decorrente da chamada judicialização da política, que, como bem explica Luiz Paulo Rosek Germano (2013, p. 9), está

[…] relacionada à preservação e a efetivação dos direitos fundamentais, iniciando-se como verdadeira “marcha” do jurisdicionado, através da qual o cidadão busca perante o Judiciário a salvaguarda e a concretização de seus direitos,

tisfatória: nem sempre a norma resolve o caso concreto. É nesse ponto que entram em jogo os princípios, cláusulas abertas, ge-rais, indeterminadas, que permitem, exatamente por isso, uma amplitude maior de interpretação e de adaptação ao mundo dos fatos. Nas palavras desse constitucionalista, os princípios são “[…] dotados de plasticidade, que fornecem um início de signi-ficação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto […]” (BARROSO, 2005, p. 12).

Toda essa metodologia vai ao encontro do que pensam os neoconstitucionalistas: a CF/1988 teria previsto mais princípios do que regras. Todavia, há quem sustente que essa afirmação é falsa porquanto,

[…] embora ela contenha, no Título I, princípios, todo o res-tante do seu texto é composto de alguns princípios e mui-tas, muitas regras […]. Em outras palavras, a opção consti-tucional foi, primordialmente, pela instituição de regras e, não, de princípios. Tanto que a Constituição Brasileira de 1988 é qualificada de “analítica”, justamente por ser de-talhista e pormenorizada, características estruturalmente vinculadas à existência de regras, em vez de princípios […]. A leitura do ordenamento constitucional facilmente com-prova essa constatação — a Constituição Brasileira de 1988 é uma Constituição de regras.A escolha constitucional por regras tem uma justificativa […]: as regras têm a função de eliminar ou reduzir proble-mas de coordenação, conhecimento, custos e controle de poder. A descrição daquilo que é permitido, proibido ou obrigatório diminui a arbitrariedade e a incerteza […]. (ÁVI-LA, 2009, p. 4).

No fundo, pouco importa se a CF/1988 é composta de regras ou de princípios, ou de ambos; o que parece inegável é que trouxe uma gama de direitos e garantias fundamentais dotados de total força normativa que levaram a uma atividade mais intensa dos três Poderes, especialmente do Judiciário, por meio da denominada “judicialização da política”.

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Judicialização significa que algumas questões de larga re-percussão política ou social estão sendo decididas por ór-gãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo — em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de po-der para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão di-retamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro.

Seja como for, não se pode deixar de reconhecer que o Poder Judiciário vem ganhando cada vez mais espaço na con-cretização dos direitos e das garantias fundamentais, até porque é notório que os demais Poderes, o Executivo e o Legislativo, vivem momento de grave crise, com total descrédito perante a sociedade.

Na medida em que a CF deixa de ser um mero diploma de intenções e passa a ser o efetivo centro do ordenamento jurídico, norteando de fato a produção das regras infraconstitu-cionais e a atuação de todas as instituições públicas, está claro que o papel do Poder Judiciário só tende a crescer na tutela dos direitos fundamentais, ainda mais em vista das indisfarçáveis omissões do Executivo e do Legislativo.

Como destaca Luiz Roberto Barroso (2005, p. 28), a cons-titucionalização do direito impõe aos Poderes Legislativo e Executivo “[…] deveres negativos e positivos de atuação, para que observem os limites e promovam os fins ditados pela Consti-tuição […]”. Quando isso não acontece, torna-se imprescindível a “[…] participação do Judiciário na concretização dos direitos fundamentais e, por que não dizer, na realização de políticas públicas […]” (GERMANO, 2013, p. 12-13).

Melhor dizendo: a constitucionalização do direito, a busca de justiça e a atuação mais intensa do Poder Judiciário são os fa-tores que contribuíram sobremaneira para a “[…] judicialização de questões políticas e sociais, que passaram a ter nos tribunais a sua instância decisória final […]” (BARROSO, 2005, p. 45).

previamente constituídos e não implementados ou obser-vados pelo Executivo.

Para Luis Roberto Barroso (2012a, p. 6):

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. (grifo do original).

Vale ressaltar que a judicialização decorre tanto do des-crédito das instituições políticas e administrativas quanto da morosidade ou até mesmo inércia dos Poderes Executivo e Legislativo na solução de questões vitais para a sociedade, de modo que atividade judicial acabou se tornando indispensável no contexto das democracias modernas (BARROSO, 2012a).

A judicialização da política propicia o ativismo judicial, na medida em que se transfere para o Poder Judiciário a tomada de decisões que deveriam ocorrer nos espaços políticos tradicio-nais do Executivo e do Legislativo (CAMPOS, 2014). Luiz Paulo Germano (2013, p. 11) compartilha desse entendimento, espe-cialmente quando se trata daqueles “[…] atos cuja prerrogativa de execução seria primordialmente do Executivo, responsável pelo exercício da Administração Pública […]”, circunstância em que o Poder Judiciário transbordaria de sua esfera natural de atuação. Contudo, o professor não deixa de observar que a ju-dicialização não desencadeia, por si só, o ativismo judicial, “[…] pois nem tudo o que é judicializado poderá ser procedente ou mesmo merecerá um esforço rumo à sua concretização […]” (GERMANO, 2013, p. 11).2

A esse respeito, Luiz Roberto Barroso (2008, p. 2) escreveu:

2 Luiz Paulo Germano (2013, p. 11) acrescenta: “[…] há uma tendência litigiosa, há anos constatada, no sentido de se provocar a manifestação do Judiciário em muitas situações absolutamente impró-prias e até descabidas, valendo-se os cidadãos inadvertidamente do sistema jurisdicional e proces-sual brasileiro para indevidamente barganhar ou até mesmo se desobrigar de responsabilidades que lhes são próprias”.

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fenômenos conexos. A judicialização é um fato decorrente da nova concepção constitucional e está absolutamente vinculada à lei (BARROSO, 2008); já o ativismo judicial representa uma es-colha de interpretar a Lei Maior, de modo a ampliar seu alcance (BARROSO, 2012b).

Luis Roberto Barroso (2012a, p. 11) observa que o ativismo judicial se instala

[…] em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo deslocamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que determinadas demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva. O oposto do ativismo é a au-tocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procu-ra reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos Poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos.

O ativismo judicial tem permitido a solução de casos há muito pendentes na esfera do Executivo e/ou do Legislativo, mas não se ignora que a judicialização da política poderá dar ensejo a um ativismo judicial nem sempre saudável. Ainda assim, se for praticada dentro dos critérios estabelecidos para a corre-ta atuação judicial — em especial a ponderação dos princípios —, desvios indesejáveis poderão ser evitados.

O ativismo judicial e a concretização dos direitos e das garantias fundamentais

A ideia da força normativa da Constituição, da imediata aplicabilidade de suas regras e princípios, somada a um maior conhecimento da sociedade sobre seus direitos, tem culminado

Se a CF for realmente, como todos hoje reconhecem que é, a expressão da vontade do povo e a diretriz do ordenamento jurídico, naturalmente deve caber ao Poder Judiciário a tarefa precípua de fazer valer no mundo dos fatos a supremacia da Lei Maior, consolidando-se, ao fim e ao cabo, como instância final na preservação dos valores constitucionais (BARROSO, 2005).

De modo nenhum se está defendendo a ideia de que o Judiciário estaria legitimado para atuar à margem da lei e para invadir as esferas de atuação dos demais Poderes. Contudo, se o Executivo e o Legislativo falham na efetivação dos direitos e garantias constitucionais — por omissão, por negativa, por inér-cia, seja por que motivo for —, não há como evitar a intervenção jurisdicional mediante provocação do interessado. O Poder Ju-diciário não atua de ofício e tem de dar uma resposta, positiva ou negativa, às petições que lhe são apresentadas.

Assim, parece forçoso concluir que a judicialização das questões sociais e políticas representa um grande avanço no sistema jurídico brasileiro. Como comenta Luis Paulo Rosek Ger-mano (2013, p. 18),

O Brasil vive um momento de clara proatividade do Poder Judiciário, especialmente no que tange à concretização de direitos. Não se trata, sob o ponto de vista jurídico, de uma reação dos órgãos jurisdicionais a impropérios havidos no Executivo e no Legislativo, frutos, mormente, de escânda-los públicos que abalam, sem distinção, todos os Poderes da República. O ativismo judicial, da maneira como prota-gonizado pelo Supremo Tribunal Federal — STF, tem dado um passo à frente na resolução de questões extremamente polêmicas, cujas decisões da Suprema Corte tornam-se im-portantes instrumentos ao fortalecimento da segurança ju-rídica. Ainda que polêmicas, os julgados patrocinados pelo Pretório Excelso em determinados temas e matérias têm sido um divisor de águas entre o marasmo, característica de muitos processos que avolumam o Judiciário brasileiro, sem que apontem respostas concretas, e a efetividade, que atende aos anseios do cidadão.

Essa atuação mais viva do Poder Judiciário na resolução do caso concreto é o que se tem denominado “ativismo judi-cial”, que não se confunde com “judicialização”, embora sejam

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completo descrédito na visão da sociedade. Daí a exigência de uma maior participação do Judiciário na concretização dos direi-tos fundamentais (NELSON; MEDEIROS, 2015), pois,

[…] se cabe ao Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal) proteger a Constituição, também cabe a ele dar guarida aos direitos fundamentais. Por isso, a necessidade de re-pensar a sistemática jurídica da tripartição dos Poderes, de modo que o ativismo judicial e a judicialização da política sejam vistos como democraticamente legítimos, no com-passo harmônico de uma nova hermenêutica e de um novo constitucionalismo — neoconstitucionalismo. (NELSON; MEDEIROS, 2015, p. 160).

Essa atuação mais ativa da Corte Suprema deve ser compreendida

[…] dentro dos parâmetros constitucionais a ela permiti-dos exercer, especialmente a partir da interpretação dos princípios e regras promulgados na Magna Carta. Ainda que exista uma linha tênue entre a permissão da atuação do Judiciário e a eventual indevida interferência nas atri-buições atinentes aos outros Poderes, o que muitas vezes desencadeia uma série de críticas e discussões acerca da indevida intromissão, as decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal — STF têm sido saudadas, uma vez que representam, em última instância, a efetivação de direitos e a valorização dos princípios e regras estabelecidas na Cons-tituição. (GERMANO, 2013, p. 64-65).

A constatação, já muito referida no presente estudo, da força normativa da Constituição e da aplicabilidade imediata dos princípios constitucionais a partir do neoconstitucionalismo mostra que “[…] não se pode dissociar a realidade constitucional da realidade social […]” (NELSON; MEDEIROS, 2015, p. 154).

A conduta judicial não pode, de forma alguma, no entan-to, desviar-se para a arbitrariedade, resultando em uma prática de ativismo “negativo”. Como sustenta Humberto Ávila (2009), faz-se indispensável a utilização de critérios para a aplicação da regra, do princípio, para a solução dos conflitos entre normas e princípios em cada caso concreto.

na prolação de decisões que buscam valorizar os direitos fun-damentais, dando-lhes a efetividade que faltava em razão da carência de regulamentação infraconstitucional (GERMANO, 2013).

A partir de 1988, observa-se uma atuação mais efetiva do Poder Judiciário, notadamente do STF, na solução de questões que deveriam originariamente ser resolvidas pelos Poderes Le-gislativo e Executivo (GERMANO, 2013), o que tem sido visto pela doutrina e pelos operadores do direito como um extrapo-lamento da atividade judicial.

Denominou-se “ativismo judicial” essa crescente atuação do Poder Judiciário, muito inspirado no sistema americano, que, durante longo período, viu sua Suprema Corte interferir em matéria de direitos fundamentais à revelia de qualquer ato do Congresso ou de decreto do presidente da República. Por esse motivo, a conduta do Poder Judiciário americano tem sido con-siderada, muitas vezes, como arbitrária e imprópria, assumindo “[…] uma conotação negativa, depreciativa, equiparada ao exer-cício impróprio do poder judicial […]” (BARROSO, 2012a, p. 10). No Brasil, embora não haja consenso, muitos entendem que essa prática ativista é negativa.

Insista-se que, no ativismo judicial, se verifica uma

[…] participação mais ampla e intensa do Judiciário na con-cretização dos valores e fins constitucionais, com maior in-terferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes. A postura ativista se manifesta por meio de diferentes con-dutas, que incluem: (i) a aplicação direta da Constituição a situações não expressamente contempladas em seu texto e independentemente de manifestação do legislador or-dinário; (ii) a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a imposição de condutas ou de abstenção ao poder público, notadamente em matéria de políticas pú-blicas. (BARROSO, 2008, p. 4).

Conforme a doutrina majoritária, no Brasil o ativismo judi-cial é resultado da omissão do Legislativo e do Executivo, sem esquecer o fato de que atualmente esses Poderes estão em

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a melhor solução, pode o aplicador desprezar o curso de ação prescrito pela regra quando o caso se enquadra nos seus termos? Em outras palavras: está o aplicador autoriza-do a buscar a melhor solução por meio da consideração de todas as circunstâncias do caso concreto, eventualmente desprezando a “solução da lei” em favor da construção da “lei do caso”?

Esse é um caso típico de ativismo judicial virtuoso, que, nos dizeres de Luis Roberto Barroso (2012b, p. 9),

[…] tem uma face positiva: o Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve no serviço público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais. O aspecto negativo é que ele exibe dificuldades enfrentadas pelo Po-der Legislativo — e isso não se passa apenas no Brasil — na atual quadra histórica. A adiada reforma política é uma ne-cessidade dramática do país, para fomentar autenticidade partidária, estimular vocações e reaproximar a classe políti-ca da sociedade civil.

Com efeito, “[…] decisões ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados. Mas não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade […]” (BAR-ROSO, 2012b, p. 10).

Apesar de tudo, não há um consenso sobre o que significa efetivamente “ativismo judicial”.

O ministro Celso de Mello (2008, p. 5), certa vez, disse que

[…] a prática de jurisdição, quando provocada por aque-les que atingidos pelo arbítrio, pela violência e pelo abu-so, não pode ser considerada […] um gesto de indevida interferência desta Suprema Corte na esfera orgânica dos demais Poderes da República. Práticas de ativismo judicial […] tornam-se uma necessidade institucional, quando os ór-gãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessiva-mente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos por expressa determinação do próprio estatuto constitu-cional […] o Poder Judiciário […] não pode se reduzir a uma posição de passividade.

De início, deve prevalecer a regra constitucional e, quando esta não existir, se valer da regra infraconstitucional compatível com os princípios constitucionais. A convocação dos princípios estaria autorizada somente na hipótese de não haver nem regra constitucional nem regra infraconstitucional, ou ainda quando esta se mostrar irrazoável para a solução do caso concreto. Ou seja, nessas hipóteses, estará o julgador autorizado a valer-se dos princípios mediante criteriosa ponderação, atribuindo um peso maior àquele que for considerado mais adequado para a resolução da controvérsia. Jamais se deverá admitir a aplicação de princípios sem demonstração das razões para tanto e dos critérios empregados para escolher um princípio em detrimen-to de outro. Se o julgador deixar de aplicar a regra existente — constitucional ou infraconstitucional — pura e simplesmente porque prefere um princípio, estará praticando forma condená-vel de ativismo judicial (ÁVILA, 2009).

Como comenta Humberto Ávila (2009, p. 8):

[…] a mera desconsideração da regra legal […] culmina com a desconsideração do próprio princípio democrático e, por consequência, do princípio da separação dos Poderes […]. Daí a importância de insistir na eficácia das regras frente aos princípios, na separação dos Poderes e no controle fra-co da proporcionalidade como mecanismos de salvaguar-dar a liberdade de configuração do Poder Legislativo, no lugar de simplesmente exaltar a importância dos princípios e da ponderação.

Todavia, muitas vezes a aplicação das regras poderá pro-vocar resultados injustos. Formuladas de forma geral e abstrata, as regras podem não ter levado em conta determinados ele-mentos que seriam imprescindíveis para a correta solução do caso concreto, o que deve ser considerado pelo julgador. Em tal situação, o operador do direito pode deixar de aplicar a regra, baseando-se no princípio da razoabilidade (ÁVILA, 2009).

Essa questão é abordada por Humberto Ávila (2009, p. 14):

[…] se a solução dada pela regra não se apresenta, sob o seu ponto de vista, ainda que alicerçada numa alegada interpretação sistemática e principiológica, como sendo

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Seria inaceitável, aliás, que o Poder Judiciário — em especial a Corte Suprema — fosse incorrer nas mesmas omissões dos de-mais poderes, abandonando os jurisdicionados à própria sorte, sem alternativa de socorro.

No momento atual, de absoluto descrédito da Administra-ção Pública e dos legisladores, parece forçoso reconhecer que a atuação mais efetiva do Poder Judiciário vem funcionando como uma espécie de paliativo para amenizar a crise que assola o país.

Referências

ALEXY, R. Teoria discursiva do direito. Tradução de Alexandre Travessoni Gomes Trivisonno. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-versitária, 2015a.

______. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2015b.

ÁVILA, H. “Neoconstitucionalismo”: entre a “ciência do direito” e o “direito da ciência”. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, v. 17, jan./fev./mar. 2009.

BARROSO, L. R. Ano STF: judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Revista Consultor Jurídico, 2008. Disponível em: <http://www.conjur.com.br-dez-22/judicializacao_ativismo_legiti-midade_democratica>. Acesso em: 8 ago. 2016.

______. Constituição, democracia e supremacia judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da Uerj, n. 21, 2012. Disponível em: <http://www.e-publi-cacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/1794>. Acesso em: 27 jul. 2016.

______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direi-to. Revista de Direito Administrativo, v. 240, 2005. Disponível em: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rda/article/view/43618>. Acesso em: 24 jul. 2016.

Como dito, uma atuação mais proativa do Poder Judiciário justifica-se pela omissão dos Poderes Legislativo e Executivo, tornando indispensável o papel criativo na solução dos casos concretos a fim de garantir a efetividade dos direitos constitu-cionalmente consagrados (MIARELLI; LIMA, 2012).

Assim, no mais das vezes — pelo menos no Brasil —, o ativismo judicial deve ser considerado positivo, pois “[…] o juiz cria o direito no caso concreto para realizar a vontade da Cons-tituição, o que se coaduna com o cumprimento dos direitos fundamentais […]” (NELSON; MEDEIROS, 2015, p. 169).

Conclusão

O presente estudo procurou demonstrar a importância da visão neoconstitucionalista na resolução dos casos concre-tos. Principalmente a partir de 1988, os operadores do direito passaram a dar-se conta de que a força normativa da Consti-tuição, com suas regras e princípios, precisa ter aplicabilidade imediata. O extenso rol de direitos e garantias fundamentais, de um lado, e a omissão dos Poderes Legislativo e Executivo, de outro, fizeram com que a sociedade brasileira fosse buscar no Poder Judiciário a concretização de seus direitos fundamentais. Questões da vida prática passaram a ser solucionadas, em últi-ma análise, por via da prestação da atividade jurisdicional, sem esquecer o importante fenômeno da judicialização da política.

Houve uma mudança no pensamento dos juristas, que, inspirados no neoconstitucionalismo, passaram a dar maior importância à aplicação dos princípios no lugar das regras, à ponderação no lugar da subsunção. Daí o “ativismo judicial”, que tenta realizar a justiça do caso concreto, inúmeras vezes em decorrência das omissões dos Poderes Legislativo e Executivo. Como parece ter ficado claro, a prática ativista, em si, não é sempre boa ou ruim. De modo geral, essa forma de atuação do Poder Judiciário — especialmente do STF — vem sendo vista, no Brasil, por parte da doutrina como algo positivo e necessário, porque permite a realização concreta dos direitos fundamentais.

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Lia Sarti

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DA USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL E SUA APLICABILIDADE NO ÂMBITO

EXTRAJUDICIAL1

Marcus Aurelio Neves Reis2

1 Artigo com eixo temático em sustentabilidade urbana: institutos e mecanismos.2 Formado em Direito pela Universidade Luterana do Brasil (2004), com Especialização em Direito

Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) (2006) e Es-pecialização em Direito Imobiliário pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (2010). Mestrando em Direito pela Fundação Escola do Ministério Público (FMP). E-mail: [email protected].

BRASIL. Novo CPC comparado. Coordenação de Luiz Fux. Orga-nização de Daniel Amorim Assumpção Neves. 2. ed. São Paulo: Método, 2015.

CAMPOS, C. A. A. Dimensões do ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Forense, 2014.

CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da Consti-tuição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003.

GAVIÃO FILHO, A. P. Colisão de direitos fundamentais, argumentação e ponderação. Tese (Doutorado em Direito), Uni-versidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. 386 f.

GERMANO, L. P. R. O ativismo judicial e a evolução jurispruden-cial brasileira: as novas decisões do Supremo Tribunal Federal — STF. Programa de Pós-doutoramento, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Ius Gentium Conimbrigae — ICG, 2013.

MELLO, C. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2008-abr-3/ativismo_judicial_compensa_omissao_poder_publico?>. Acesso em: 12 ago. 2016.

MIARELLI, M. M.; LIMA, R. M. Ativismo Judicial e a efetivação de direitos no Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Sergio Anto-nio Fabris, 2012.

NEGRÃO, T.; GOUVÊA, J. R. F. Código de Processo Civil e legis-lação processual em vigor. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

NELSON, R. A. R. R.; MEDEIROS, J. T. S. Reflexões sobre o ativis-mo judicial. Revista da Faculdade de Direito da Uerj, n. 27, 2015.

NOVELINO, M. Direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Método, 2012.

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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Abstract

This article seeks to present the legal innovation of the acquisition of property in the Brazilian legal system by the advent of non-judicial recognition of the Institute of adverse possession brought by the new Civil Procedure Code — Law No 13.105/2015, which amended and added to the Public Records Act — Law No 6.015/1973 the possibility of acquiring original registration of ownership through non-judicial procedural. Initially, we address the fundamental right to housing, its judicial efficiency and the legalization of the phenomenon in Brazil. In the second part, we comment other regulations that led to the administrative level of the notarial activity and registral voluntary legal provision. Finally, we emphasize the new legal instrument for the acquisition of property on non-judicial, pointing its legislative contribution to the effectiveness of the fundamental right to housing, as well as highlight the high degree of administrative requirement for the applicability of non-extrajudicial prescription institute.

Keywords: Non-judicial Usurpation Institute. Legal Requirements and Its Applicability at the Administrative Scope of Property Registration.

Resumo

O presente artigo busca apresentar a inovação jurídica da aquisição de propriedade no ordenamento jurídico brasileiro. O instituto tem origem no reconhecimento extrajudicial da usuca-pião trazida no Novo Código de Processo Civil (NCPC) (Lei no 13.105/2015), o qual alterou a Lei dos Registros Públicos (Lei no 6.015/1973) e acrescentou a possibilidade do registro de aqui-sição originária de propriedade por meio de procedimentos extrajudiciais. Inicialmente, aborda o direito fundamental à mo-radia, sua eficácia jurisdicional e o fenômeno da judicialização no Brasil. Na segunda parte, comenta outros regulamentos que conduziram para âmbito administrativo da atividade notarial e registral e a prestação jurídica voluntária. Ao final, enfatiza o novo instrumento legal de aquisição da propriedade no âmbito extrajudicial, apontando sua contribuição legislativa para a efi-cácia do direito fundamental à moradia, bem como destaca o elevado grau de exigência administrativa para a aplicabilidade do instituto da usucapião extrajudicial.

Palavras-chave: Propriedade. Direito à Moradia. Usuca-pião Extrajudicial. Registro Público.

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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6.015/1973 (Lei de Registros Públicos) dita os atos de competên-cia do registrador imobiliário. A partir disso, o requerente deve ater-se a inúmeras exigências, entre elas a que vem disciplinada especificamente no § 2o5 do art. 1.071, o que poderá representar momento de grande dificuldade para os interessados, podendo inclusive inviabilizar sua pretensão na esfera administrativa.

É importante destacar que a “usucapião extrajudicial” se trata de novo procedimento legal para a aquisição originária da propriedade, o qual prima pela celeridade, desjudicialização e efetivação do direito à propriedade, servindo como alternativa jurídica para satisfazer a efetividade do direito fundamental à moradia, recentemente incluído no texto constitucional.6

O direito fundamental à moradia, a jurisdição constitucional e a

judicialização no brasil

Antes de tratar do tema principal deste trabalho — usu-capião extrajudicial —, é importante atentar para o momento histórico e social brasileiro no qual foi criada a lei instituidora desse novo instituto jurídico para que se possa conhecer sua eficácia constitucional.

§ 7o Em qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei.§ 8o Ao final das diligências, se a documentação não estiver em ordem, o oficial de registro de imóveis

rejeitará o pedido.§ 9o A rejeição do pedido extrajudicial não impede o ajuizamento de ação de usucapião.§ 10. Em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, apresentada

por qualquer um dos titulares de direito reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, por algum dos entes pú-blicos ou por algum terceiro interessado, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.”

5 Lei no 6.015/1973, art. 1.071: “§ 2o Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoal-mente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpretado o seu silêncio como discordância.”

6 Lei no 6.015/1973, art. 6o: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”

A Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, conhecida como Novo Código de Processo Civil (NCPC), em seu art. 1.071,

criou o que vem sendo denominado por alguns autores (PAIVA; BURTET, KOLLET, 2008; BRANDELLI, 2011) usucapião extraju-dicial.3 No caput do citado artigo, constou o que seria o novo instituto jurídico, in verbis: “pedido de reconhecimento extraju-dicial de usucapião”; em seguida, em cinco incisos e 10 capítulos, criou todo o andamento do procedimento legal administrativo.

Entre os inúmeros passos procedimentais administrativos — o primeiro deles uma ata notarial, única providência adminis-trativa realizada pelo tabelião de notas —, o art. 216-A4 da Lei no

3 Esse diploma legal veio alterar a Lei no 6.015/1973, passando a lhe acrescer o art. 216-A.4 Lei no 6.015/1973, art. 216-A: “Prejuízo da via jurisdicional, é admitido o pedido de reconhecimento

extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado, instruído com:

I – ata notarial lavrada pelo tabelião, atestando o tempo de posse do requerente e seus antecessores, conforme o caso e suas circunstâncias;

II – planta e memorial descritivo assinado por profissional legalmente habilitado, com prova de anota-ção de responsabilidade técnica no respectivo conselho de fiscalização profissional, e pelos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes;

III – certidões negativas dos distribuidores da comarca da situação do imóvel e do domicílio do reque-rente;

IV – justo título ou quaisquer outros documentos que demonstrem a origem, a continuidade, a natu-reza e o tempo da posse, tais como o pagamento dos impostos e das taxas que incidirem sobre o imóvel.

§ 1o O pedido será autuado pelo registrador, prorrogando-se o prazo da prenotação até o acolhimento ou a rejeição do pedido.

§ 2o Se a planta não contiver a assinatura de qualquer um dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, esse será notificado pelo registrador competente, pessoalmente ou pelo correio com aviso de recebimento, para manifestar seu consentimento expresso em 15 (quinze) dias, interpreta-do o seu silêncio como discordância.

§ 3o O oficial de registro de imóveis dará ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, pessoalmente, por intermédio do oficial de registro de títulos e documentos, ou pelo correio com aviso de recebimento, para que se manifestem, em 15 (quinze) dias, sobre o pedido.

§ 4o O oficial de registro de imóveis promoverá a publicação de edital em jornal de grande circulação, onde houver, para a ciência de terceiros eventualmente interessados, que poderão se manifestar em 15 (quinze) dias.

§ 5o Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis.

§ 6o Transcorrido o prazo de que trata o § 4o deste artigo, sem pendência de diligências na forma do § 5o deste artigo e achando-se em ordem a documentação, com inclusão da concordância expressa dos titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes, o oficial de registro de imóveis registrará a aquisição do imóvel com as descrições apresentadas, sendo permitida a abertura de matrícula, se for o caso.

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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Para Streck (2004, p. 56-57), o Estado democrático de di-reito emerge como um aprofundamento da seguinte fórmula: de um lado, o Estado de direito e, de outro, o Welfare State, sendo esse conceito aplicado na Constituição brasileira, observado já em seu art. 1o.8 Para essa formulação de Estado democrático de direito, o constituinte brasileiro utilizou-se de outras constitui-ções produzidas em situações similares, como as constituições portuguesa e espanhola, as quais foram produzidas em proces-sos internos de redemocratização.

O surgimento desse Estado de bem-estar social (Welfare State) também tem seu princípio nas Constituições mexicana, de 1917, e alemã de Weimar, de 1919, na qual o Welfare State seria aquele Estado no qual o cidadão, independentemente se sua situação social, tem direito a ser protegido, sendo também aquele que garante renda mínima, alimentação, saúde, habi-tação e educação, assegurando ao cidadão direitos sociais e políticos (STRECK, 2004, p. 56).

Nesse sentido, Sarlet (2010, p. 9-11) esclarece que os di-reitos sociais, econômicos e culturais, inicialmente consagrados pelas constituições de Estados socialistas (como Alemanha, de 1919, e México, de 1917), passaram a ser internacionalmente reconhecidos a partir da Declaração Universal dos Direitos Hu-manos, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948.

Entre os direitos sociais assegurados e reconhecidos in-ternacionalmente, para o presente estudo se faz importante enfatizar o direito à moradia, que, em 1948, integrou o texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos nos seguintes temos: “Art. XXV, 1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-es-tar, inclusive alimentação, vestuário, habitação […]” (ONU, 2009 [1948], p. 13).

A partir da Declaração Universal de 1948, assim como to-dos os demais direitos sociais — cite-se o direito à alimentação, ao vestuário, à educação e à saúde —, o direito à moradia pas-

8 CF/1988, art. 1o: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos […].”

Partindo da premissa de que o direito deve ser criado, interpretado e aplicado a partir de regras e princípios consti-tucionais; de que essas garantias constitucionais servem como fundamento para as transformações legislativas infraconsti-tucionais e constitucionais; e de que essas regras e princípios também estão sujeitos à interpretação jurídica, percebe-se que o Brasil, após a redemocratização de 1988 — com o fortaleci-mento de um Poder Judiciário independente e forte o suficiente para a preservação das regras da democracia e proteção dos direitos fundamentais, acompanhado por um progressivo des-crédito da política majoritária e por uma incapacidade do Poder Legislativo de conseguir consenso democrático —, passa a viver uma notória e crescente procura pelo Poder Judiciário, razão de a jurisdição ter se tornado um importante instrumento para a realização dos direitos fundamentais e para a resolução de con-flitos (BARROSO, 2010).

Nesse sentido, vale lembrar os ensinamentos de Streck (2004, p. 22), para quem, no Estado democrático de direito, em face da noção de força normativa da Constituição, pode vir a ocorrer um deslocamento das decisões do Legislativo e do Exe-cutivo para o plano da jurisdição constitucional. Com a inércia do Poder Executivo e a falta de atuação do Poder Legislativo, o cumprimento do Estado social, que deveria ser de intervenção do Poder Executivo, pode ser satisfeito pelo Poder Judiciário justamente mediante a utilização dos mecanismos jurídicos constantes na Constituição, a qual estabeleceu o Estado demo-crático de direito.

Prossegue o autor afirmando que a Constituição brasileira é densa de valores e voltada para a transformação das estrutu-ras econômicas e sociais, em que a carga elevada de valores e o caráter compromissário do texto constitucional, combinados com o princípio da dignidade da pessoa humana, trazem uma disposição legal e os mecanismos necessários para implantação das políticas do Welfare State7 (STRECK, 2004, p. 18-20).

7 Welfare State é um modelo de Estado que garante tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educação, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como direito político (STRECK; MORAIS, 2003, p. 71).

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dispor de um controle constitucional misto, envolvendo a for-ma de controle difuso e controle concentrado, em que tanto um juiz de primeiro grau pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei como também pode haver uma demanda diretamen-te perante o Supremo Tribunal Federal (STF) na busca da (in)constitucionalidade.

Nesse sentido, pode-se citar um trecho do parecer do Projeto do NCPC, no qual o ilustríssimo relator-geral deputado Sérgio Barradas Carneiro faz constar a seguinte ponderação:

Alguns exemplos desta transformação científica: hoje, dife-rentemente de outrora, há o generalizado reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e do papel cria-tivo e também normativo da função jurisdicional — as deci-sões recentes do Supremo Tribunal Federal confirmam isso. Assim segue relatando: […] O acesso à justiça foi muito fa-cilitado nos últimos anos; o progresso econômico, com a incorporação de uma massa de consumidores, antes alheia à economia, repercutiu diretamente no exercício da função jurisdicional, com um aumento exponencial do número de processos em tramitação. (BRASIL. Senado Federal, 2012).

Partindo da premissa da crescente busca do Poder Judi-ciário para a efetivação dos direitos fundamentais, o legislador passa a implementar políticas públicas sociais que buscam sal-vaguardar a efetivação desses direitos, bem como a efetivação prestacional ao direito à moradia por meio de mecanismos que dispensam a intervenção jurisdicional para sua eficácia. Como exemplo disso se pode citar a criação de linhas de financiamento para a construção de casa de famílias de baixa renda, despesas com habitação com pagamento de alugueres, a usucapião co-letiva, a concessão de direito real de uso e a concessão de uso especial para fins de moradia prevista no Estatuto da Cidade, sendo esse um passo decisivo do legislador para a implementa-ção do direito à moradia no Brasil (SARLET, 2000, p. 38).

Segundo Sarlet (2000, p. 42), a Constituição de um Estado democrático de direito jamais poderá se descuidar do desenvol-vimento social, sob pena de afetar sua força normativa e suas possibilidades de atingir a efetividade.

sou a ser reconhecido internacionalmente e a constar em outros documentos, como no Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966; na Declaração de Vancouver de Assentamentos Humanos, de 1976; e na Agenda Habitat II de Istambul, de 1996. Todos esses documentos asseguraram o direito à moradia como direito básico da pessoa humana, sendo o Brasil deles signatário. Trata-se de documentos internacio-nais que priorizam o bem-estar e a igualdade social, os quais influenciaram a inserção do direito à moradia na ordem jurídica brasileira, que passou a constar expressamente na Constituição Federal (CF) a partir da Emenda Constitucional no 26/2000 (SAR-LET, 2010, p. 11).

Embora o direito à moradia não seja algo novo no or-denamento brasileiro, uma vez que o Brasil é signatário dos documentos internacionais citados, após 2000, por força do art. 6o da CF, ele é incorporado na ordem jurídica interna. Dessa forma, com a positivação expressa do direito à moradia, surgem novas dimensões e importâncias no que diz respeito à sua eficá-cia e efetividade, pressupondo-se que a Constituição e o direito não devem normatizar o inalcançável (SARLET, 2010, p. 13).

Nesse sentido, o direito à moradia passou a integrar os de-bates políticos e sociais voltados para a efetivação dos direitos fundamentais, e a busca de sua efetividade vem contribuindo para o significativo crescimento de demandas judiciais (LIMA, 2015, p. 20).

Streck (2004, p. 21), ao discorrer sobre a carga e os valo-res substantivos agregados pela Constituição de 1988, assevera que esta adquire fundamental relevância no papel da justiça constitucional, sendo-lhe reservada uma atuação concreta, e aos órgãos do Poder Judiciário é atribuída função no plano do con-trole constitucional difuso, no sentido de verificação dos atos legislativos e administrativos.

Por sua vez, Barroso (2010) afirma que, no Brasil, encon-tram-se alguns fatores que potencializam o fenômeno chamado de judicialização, como o fato de se dispor de uma Constituição analítica, com normas constitucionais abrangentes, contemplan-do inúmeras regras e princípios. Também contribui o fato de se

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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bens garantidos pela alienação fiduciária, até alcançar a consoli-dação da plena propriedade em nome de credor fiduciário.

A Lei no 10.931/2004, que autoriza a retificação de registro imobiliário sem a necessidade de qualquer intervenção judicial, traz em seu texto normativo os procedimentos a serem adota-dos pelas partes e pelo Registro de Imóveis. Essa lei representou uma medida concreta na direção de desafogar o Poder Judiciá-rio. O intuito foi simplificar o sistema, normatizando algumas questões que já vinham sendo objeto de posicionamento pelo próprio Judiciário. A nova alternativa presta-se à melhor realiza-ção dos serviços de registro, pois possibilita que a morosa via judicial seja evitada. O legislador ampliou os poderes do oficial de Registro de Imóveis para simplificar o procedimento de re-tificação do registro. Para tanto, a lei elencou as hipóteses em que o oficial registrador poderá atuar de oficio, retirando, tanto quanto possível, a intervenção do juiz no processo retificatório.

Cite-se também a Lei no 11.441/2007, que dispõe sobre a realização de inventário, partilha, separação consensual e divór-cio consensual pela via administrativa, dizendo claramente que a escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o Registro Civil e o Registro de Imóveis. Em 2007, igualmente passou a viger a Lei no 11.481, que, entre outros interesses, dispõe sobre a regularização fundiária para zonas especiais de interesse social, legitimando os cartórios extraju-diciais a atuarem na prevenção de litígios e homologar acordos, competindo ao âmbito administrativo da União o procedimento de localização e confecção de documentos que ingressarão no Registro de Imóveis.

As leis citadas demonstram que a busca do Poder Judi-ciário para a solução dos conflitos e a efetivação dos direitos fundamentais nem sempre é necessária, podendo a atividade notarial e registral absorver tais demandas exclusivamente no âmbito extrajudicial, trazendo maior celeridade processual e efi-cácia jurídica.

Além disso, o legislador, com a promulgação do NCPC, transportou opcionalmente para a esfera extrajudicial o modo originário de aquisição de propriedade, dando ao cidadão a

Procedimentos legais existentes

A seguir, são analisadas algumas leis infraconstitucionais que vieram afastar da apreciação do Poder Judiciário e promo-ver a efetivação dos direitos fundamentais, passando para o âmbito administrativo da atividade notarial e registral o proces-samento e a efetivação de tais direitos.

Primeiramente, a Lei no 8.560/1992, que se refere ao re-conhecimento de paternidade, em que o requerente busca o reconhecimento de paternidade diretamente perante o Registro Civil das Pessoas Naturais. Esse diploma teve sua aplicabilidade estendida para o reconhecimento de filho “socioafetivo”, em atenção ao Provimento no 16 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual foi acolhido e publicado por Corregedorias Es-taduais dos Estados do Ceará, Pernambuco, Maranhão, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Este último, pelo Provimento no 013/2016, o qual alterou os arts. 133 e 133-A da Consolidação Notarial e Registral da Corregedoria do Estado do Rio Grande do Sul.9

A Lei no 9.514/1997 busca uma célere execução extra-judicial, tratando-se de um exemplo de efetivação do direito fundamental à propriedade, uma vez que não requer qualquer intervenção do Poder Judiciário para sua consolidação. À luz dos procedimentos impostos pela lei, todo processo se perfaz na via extrajudicial, iniciando-se com a notificação do devedor inadimplente, passando pela venda por leilão extrajudicial dos

9 “Art. 133. A averbação do reconhecimento de filho será concretizada diretamente pelo Oficial da serventia em que lavrado o assento de nascimento, independentemente de manifestação do Minis-tério Público ou decisão judicial, mas dependerá de anuência escrita do filho maior, ou, se menor, da mãe.

§ 1o A colheita dessa anuência poderá ser efetuada não só pelo Oficial do local do registro, como por aquele, se diverso, perante o qual comparecer o reconhecedor.

§ 2o Na falta da mãe do menor, ou impossibilidade de manifestação válida desta ou do filho maior, o caso será apresentado ao Juiz de Direito Diretor do Foro da Comarca ou Juiz da Vara dos Registros Públicos, onde houver.

§ 3o Sempre que qualquer Oficial de Registro de Pessoas Naturais suspeitar de fraude, falsidade ou má-fé, não praticará o ato pretendido e submeterá o caso ao magistrado, comunicando, por escrito, os motivos da suspeita.

Art. 133-A. As regras deste Capítulo aplicam-se, no que couber, ao reconhecimento de filho socioafeti-vo” (RIO GRANDE DO SUL. Corregedoria Geral de Justiça, 2016).

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tigo CPC, como: a própria petição fundamentada, devidamente firmada por profissional — advogado; a apresentação da plan-ta do imóvel objeto da usucapião; e a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiente e dos confinantes.

Agora, além dos documentos já consolidados pelo CPC/1973, e que novamente integraram a formalidade obri-gatória do pedido para aquisição por meio da usucapião extrajudicial, o art. 1.071 do NCPC, ao criar a usucapião com possibilidade procedimental no âmbito extrajudicial, determi-nou e exigiu maior complexidade legal e documental ao pedido.

A usucapião extrajudicial, como defendido por Paiva (2015), visa a uma célere, segura e eficiente declaração jurídica. Como afirma o autor, é nesse momento procedimental extrajudi-cial que haverá um problema de difícil solução, ou seja, quando do cumprimento do § 2o.

A despeito disso, aqui se apresentam as inovações proces-suais e procedimentais trazidas pela nova legislação.

Evidentemente que a grande novidade do NCPC é o pro-cessamento exclusivamente no âmbito extrajudicial, sem que se tenha necessidade de manifestação judicial, fazendo com que todo o encaminhamento se dê junto ao Registro de Imóveis do local do imóvel. Outra novidade do instituto é quanto à apresen-tação de uma ata notarial.

A ata notarial é o primeiro ato jurídico a ser realizado no procedimento extrajudicial, vindo a acontecer antes mesmo da apresentação do pedido diante do local de seu processamen-to — Registro de Imóveis. Esse documento notarial busca a comprovação do tempo de posse do requerente e seus anteces-sores, conforme o caso e suas circunstâncias.

No conceito de Ceneviva (2003), a ata notarial vem ga-rantir a fidelidade na narrativa dos eventos. A neutralidade e a rigorosa vinculação à verdade são essenciais, convindo que o notário reproduza fielmente as declarações pronunciadas pelas partes, embora possa orientá-las, na área de sua competência estrita, a respeito do que pretendem fazer constar da ata.

oportunidade de buscar exclusivamente no âmbito administrati-vo cartorário o reconhecimento e a efetivação de seu direito, ou seja, sem a necessidade de manifestação do Poder Judiciário.

Nesse sentido, Kumpel (2014) assim se refere à desjudi-cialização das demandas e à importância da atividade notarial brasileira:

Uma realidade cambiante, temos uma sociedade pós-mo-derna marcada pela tecnologia e pela extrema celeridade da informação, fontes legítimas dá a sensação de acelera-ção da passagem do tempo, fazendo inclusive muitos cre-rem tratar-se de um fenômeno físico, a redução de horas e minutos ao longo do dia. Daí uma das necessidades da cria-ção de um novo Código de Processo Civil para substituir o atual Código da década de 70, que primava pela cognição em detrimento da efetivação dos direitos substantivos. O Projeto vem ao encontro do clamor pela celeridade e efici-ência. É nesse sentido, que deveria ser inserida uma amplia-ção funcional da atividade notarial e registral em socorro ao Poder Judiciário. Geneticamente pautada pela eficiência e celeridade, as atividades extrajudiciais potencializaram-se, ao longo dos últimos anos, recebendo, cada vez mais, no-vas atribuições, recebendo, cada vez mais, novos encargos em atendimento à desjudicialização, em consonância com a EC 45/04.

Com o mesmo objetivo dos diplomas citados, o novo instituto da usucapião extrajudicial, trazido pelo Livro Com-plementar das Disposições Finais e Transitórias do Código de Processo Civil vem proporcionar ao direito brasileiro agilidade, simplicidade, celeridade e segurança nos atos jurídicos (PAIVA, 2008, p. 15).

Da usucapião extrajudicial

O CPC/1973, em seu art. 942 e seguintes, dispunha sobre o procedimento da ação judicial de usucapião, e o instituto im-punha algumas regras obrigatórias, entre elas a apresentação da planta do imóvel usucapiente. O legislador, ao editar o novo diploma legal, claramente utilizou-se de algumas regras do an-

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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nificar um aperfeiçoamento desse instituto que nasce das inovações trazidas pelo novel Código de Processo Civil.

A fim de padronizar a prática dos atos notariais e uniformi-zar as normas técnicas para a prestação dos serviços de registro e notas concernentes à usucapião extrajudicial, a ilustríssima corregedora ministra Nancy Andrighi apresentou, junto ao CNJ, minuta de provimento10 que estabelece diretrizes gerais para

10 “MINUTA DE PROVIMENTO SOBRE USUCAPIÃO EXTRAJUDICIAL. PROVIMENTO No .............., DE .............. DE ............. DE 2016. Estabelece diretrizes gerais para regular o procedimento de usu-capião extrajudicial a ser observado pelos Serviços Notariais e de Registro de Imóveis, nos termos do que estabelece o art. 216-A da Lei no 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), acrescido pelo art. 1.071 da Lei no 13.105/2015 (Código de Processo Civil). A Corregedora Nacional de Justiça, Minis-tra Nancy Andrighi, no uso de suas atribuições legais e constitucionais, CONSIDERANDO o dispos-to no § 1o do art. 236 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, que estabelece a fiscalização dos atos notariais e de registro pelo Poder Judiciário, bem como o previsto no inciso XIV do art. 30, combinado com o art. 38 da Lei no 8.935, de 18 de novembro de 1994, que prevê estarem os notários e registradores obrigados a cumprir as normas técnicas es-tabelecidas pelo juízo competente; CONSIDERANDO que, ‘sem prejuízo da via jurisdicional, é ad-mitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório do registro de imóveis da comarca em que estiver situado o imóvel usucapiendo, a requerimento do interessado, representado por advogado’, consoante determina o art. 216-A da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos, acrescido pelo art. 1.071 da Lei no 13.105, de 16 de março de 2015, que dispõe sobre o Código de Processo Civil; CONSIDERANDO que compete às Corregedorias Gerais de Justiça zelarem para que os serviços notariais e de registro sejam prestados com rapidez, com qualidade satisfatória e de modo eficien-te, bem como estabelecer medidas para o aprimoramento e a modernização de sua prestação, para proporcionar maior segurança no atendimento aos usuários; CONSIDERANDO a necessidade de padronizar e uniformizar a prática dos atos notariais e de registros indispensáveis ao reconhecimen-to extrajudicial de usucapião em todos os Estados da Federação; CONSIDERANDO a necessidade de adequar as disposições que codificam os atos normativos das Corregedorias Gerais de Justiça dos Estados relativos aos serviços notariais e de registros, às novas regras estabelecidas pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015; CONSIDERANDO a necessidade de uniformização, em todo território nacional, das normas técnicas específicas para a concreta prestação dos serviços notariais e de registro concernentes à usucapião extrajudicial; 2 RESOLVE: Art. 1o Sem prejuízo da via juris-dicional, é admitido o pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, que será processado diretamente perante o cartório de registro de imóveis da circunscrição em que estiver situado o imóvel usucapiendo, independentemente de que este possua origem tabular, a requerimento do usucapiente, representado por advogado, nos termos do que estabelece o art. 216-A da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973, com a redação determinada pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. […] § 3o Para fins de notificação de confrontante será observado, no que couber, o dispos-to no § 2o do art. 213 e seguintes da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. § 4o A existência de ônus real ou de gravame na matrícula do imóvel usucapiendo não impede o reconhecimento extrajudicial de usucapião, hipótese em que o título de propriedade será registrado respeitando-se aqueles direitos, ressalvado o cancelamento mediante anuência expressa do respectivo titular de tais direitos. § 5o O consentimento expresso pode ser manifestado pelos confrontantes e titulares de direitos reais a qualquer momento, em documento particular com firma reconhecida ou por instrumento público. Art. 6o Considera-se outorgado o consentimento, dispensando a notificação prevista no caput do art. 5o deste provimento (ou resolução), quando for apresentado pelo reque-rente, título ou instrumento que demonstre a existência de relação jurídica entre o titular registral e o usucapiente, acompanhada de prova de quitação das obrigações e certidão do distribuidor cível

A exigência da apresentação de uma ata notarial atestando o tempo de posse vem causando discussões sobre a compe-tência e os limites da pessoa do notário, na medida em que o tempo de posse deve ser comprovado perante o registro imobi-liário, cabendo ao tabelião reproduzir as declarações das partes.

Jacomino (2006, p. 306), ao tratar da Lei no 10.207/2001, asseverou que:

[…] assim, a alteração da descrição, divisas e área será sem-pre judicial quando se verificar a existência de conflitos e prejuízos. A regra de socorrer-se do procedimento judicial deverá ser, então, excepcional. Para desencadeá-lo, ter-se--á o conflito atual, não a sua mera presunção. Melhor dito: inverte-se a presunção; dá-se a presunção iuris tantum de não conflito quando os interessados comparecem ao notá-rio (§ 5o e 7o do Decreto no 4.449/2002) e manifestam sua vontade livre de peias burocráticas. Trata-se, no limite, da recuperação do sentido da livre disposição de direitos e autonomia da vontade. Se o confinante pode extrajudicial-mente o mais (alienar), por qual razão não poderia o menos (retificar ou permitir retificar)?

Superada a primeira das exigências legais — confecção da ata notarial —, é indispensável o enfrentamento das outras ino-vações, aquelas constantes nos §§ 2o, 3o, 4o, 5o e 6o, ou seja, as referentes à concordância das partes, inclusive ciência à União, ao Estado, ao Distrito Federal e ao Município, a publicação de edital e, se necessária, a realização de diligência.

Para Paiva (2015):

Será no § 2o que haverá um problema de difícil solução, ou seja, na hipótese em que haja o silêncio do titular do direito real sem que isso signifique propriamente discor-dância com a realização do procedimento (§ 2o do art. 216-A), mas signifique indiferença às consequências de sua não manifestação expressa, que talvez venha a ser uma hipó-tese bastante recorrente no futuro, dada a forma como o procedimento foi concebido. Temos convicção, por outro lado, que as dificuldades encontradas na prática reiterada do procedimento, aliadas à possibilidade de que a matéria venha a ser regulamentada pelo CNJ — da mesma forma como ocorreu com a Lei no 11.441/2007 —, poderão sig-

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inventariante é legitimado a assinar? Para isso, na inexistência de inventariante nomeado, qualquer um dos herdeiros que de-monstre essa condição será legitimado? Nessas hipóteses, o Estado do Acre, por sua Corregedoria Geral de Justiça, publi-cou o Provimento no 5, de 2016, no qual estabeleceu:

Art. 5o Na hipótese de algum titular de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinan-tes ser falecido, pelo princípio da saisine, poderão assinar a planta e memorial descritivo seus herdeiros legais, des-de que apresentem uma escritura pública declaratória de únicos herdeiros com nomeação de inventariante. (ACRE. Corregedoria Geral de Justiça, 2016).

Nesse sentido, Gláucia Alves da Costa (2015) questiona a utilidade da possibilidade de requerer a usucapião pela via administrativa. A própria autora responde dizendo que essa possibilidade é útil, porém precisa ser muito bem avaliada, sem o manto de grandes ilusões, cabendo ao advogado analisar o caso com serenidade para orientar seu cliente na melhor escolha do procedimento a ser adotado ao caso concreto.

Assim, com a porvindoura publicação do provimento do CNJ citado, com outras possíveis leis que possam ser editadas em complementação e com as regulamentações administrativas a serem publicadas pelas Corregedorias Estaduais, inúmeras difi-culdades da aplicabilidade do instituto “usucapião extrajudicial” serão uniformizadas, possibilitando que as partes obtenham a efetivação de seus direitos fundamentais.

Segundo Salomão e Deléo (2015, p. 1), a usucapião ex-trajudicial trata-se de procedimento mais simples e rápido que qualquer ação judicial, tendo trâmite mais rápido e custos redu-zidos, possibilitando a regularização de inúmeras propriedades nas grandes cidades brasileiras, que, em decorrência do frágil controle ocupacional existente no Brasil, em sua maioria, são irregulares. Dessa forma, o referido instituto vem ao encontro do preceito constitucional, em especial o direito à moradia, previsto no art. 6o da Magna Carta, possibilitando que as famí-lias brasileiras possam prestar garantias e ter possibilidades de

regular o procedimento. No texto da referida minuta, a ministra utilizou-se de determinações constantes em outras leis, como o exemplo da definição de confrontante descrita no § 10 do art. 213 da Lei no 6.015/1979; as hipóteses de dispensa da con-cordância do titular do direito real subscrito no título (matrícula imobiliária); e a possibilidade de registro independentemente da existência de ônus real. Essas regulamentações corroboram a teoria de Paiva (2015) de que a regulamentação poderá trazer aos operadores do direito maior segurança jurídica e a real utili-zação do instituto da usucapião extrajudicial.

Para Cyrino (2016, p. 1), entre os entraves para a concre-tização desse instituto está o fato de estar relacionado com um modo de aquisição originária da propriedade, havendo posicio-namento de que na usucapião extrajudicial não se cancelam os ônus que gravam o imóvel. Nesse entendimento, os atos judi-ciais existentes no álbum imobiliário permanecem e, caso não exista a anuência do titular do ônus, em razão da usucapião, o direito de propriedade poderá ser reconhecido, contudo o ônus já existente será mantido. Dessa forma, não serão canceladas as restrições administrativas, ambientais, as cláusulas restritivas de inalienabilidade e indisponibilidades referentes à propriedade. Na hipótese de existência de relação jurídica anterior entre o usucapiente e o proprietário anterior, pode-se já considerar que essa anuência já estaria suprida? Nesses casos, o reconhecimen-to do direito de propriedade pode se dar em razão da usucapião, no caso de apresentação de uma promessa de compra e venda ou de uma escritura com vício insanável. Nos casos de titular registral e de confrontantes falecidos, como obter a concor-dância? Em caso de falecimento comprovado com certidão, o

demonstrando a inexistência de ação judicial contra o usucapiente ou seus cessionários. § 1o São exemplos de títulos ou instrumentos a que se refere o caput: a) Compromisso de compra e venda; b) Cessão de direitos e promessa de cessão; c) Pré-contrato; d) Proposta de compra; e) Reserva de lote ou outro instrumento no qual conste a manifestação de vontade das partes, contendo a indica-ção da fração ideal, do lote ou unidade, o preço, o modo de pagamento e a promessa de contratar; f) Procuração pública com poderes de alienação para si ou para outrem, especificando o imóvel; g) Escritura de cessão de direitos hereditários especificando o imóvel; e h) Documentos judiciais de partilha, arrematação ou adjudicação. […] Art. 12. Em qualquer caso, é lícito ao usucapiente suscitar o procedimento de dúvida, observado o disposto no art. 198 e seguintes da Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Art. 13. Este Provimento entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, ............ de ............ de 2016. Ministra NANCY ANDRIGHI, Corregedora Nacional de Justiça.”

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cidadão brasileiro celeridade procedimental e consequente efe-tivação de direitos fundamentais. Em especial, destaca-se o art. 1.071 do NCPC, o qual trata da usucapião extrajudicial e vem promover a dignidade da pessoa humana, representando impor-tante instrumento para a efetividade do direito fundamental à moradia e à propriedade.

Referências

ACRE. Corregedoria Geral de Justiça. Provimento no 5, de 4 de fevereiro de 2016. Dispõe sobre os procedimentos admi-nistrativos concernentes ao reconhecimento extrajudicial de usucapião. Disponível em: <http://www.tjac.jus.br/wp-content/uploads/2016/02/Provimento_COGER_TJAC_05_2016.pdf>. Aces-so em: 12 set. 2016.

BARROSO, L. R. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. In: SILVA, C. O. P.; CARNEIRO, G. F. S. (Coord.). Con-trole de constitucionalidade e direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Gilmar Mendes. Rio de Janeiro: Lu-men Juris, 2010. p. 241-254.

BRANDELLI, L. Teoria geral do direito notarial. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BRASIL. Código de Processo Civil (2015). Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 14 ago. 2016.

______. Constituição (1998). Constituição da República Federati-va do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 20 set. 2016.

______. Lei no 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6015compilada.htm>. Acesso em: 14 ago. 2016.

acesso ao crédito com garantia real, contribuindo inclusive para a função social da propriedade, a qual é amplamente difundida no ordenamento pátrio.

Considerações finais

A Constituição de 1988, em seu art. 5o, XXXV, prevê o di-reito de acesso à Justiça, fazendo com que o Poder Judiciário passe a integrar as discussões políticas e sociais e a represen-tar importante mecanismo para a concretização das garantias fundamentais. Apesar da consagração do direito de acesso à Justiça, é possível observar que, desde a década de 1990, o Poder Judiciário vem se mostrando insuficiente em garantir re-sultados que sejam individuais e socialmente justos, com a plena observância das garantias constitucionais.

A crescente demanda de ações judiciais tem resultado na morosidade da Justiça, fator que inevitavelmente se mostra intensificador para a desigualdade entre as partes e contribui ne-gativamente para o deslinde das demandas judicializadas. Sob essa inspiração e na busca da celeridade processual, a Emenda Constitucional no 45, de 2004, denominada “Reforma do Poder Judiciário”, resultou em uma expressiva reforma da ordem pro-cessual e em alterações substanciais nos moldes do exercício da jurisdição e no funcionamento dos órgãos que compõem o Poder Judiciário.

A constitucionalização do direito compreende três atores principais: o Legislativo, a doutrina e o Judiciário, sendo o Le-gislativo o processo de constitucionalização mais lento, porém o mais efetivo e menos problemático para a realização de refor-mas. A ação conjunta dos três atores torna possível interligar o direito e a sociedade às novas concepções, interpretações, valores e princípios que aperfeiçoam e incorporam o neoconsti-tucionalismo (LIMA, 2015, p. 18-19).

Nesse sentido, com a Reforma do Poder Judiciário (Emen-da Constitucional no 45) e a promulgação do NCPC, o legislador veio beneficiar a desjudicialização das demandas, trazendo ao

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Da usucapião extrajudicial e sua aplicabilidade no âmbito extrajudicialMarcus Aurelio Neves Reis

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Marcus Aurelio Neves Reis

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DEMOCRACIA NA EUROPA EM CRISERELAÇÕES TENSIONAIS ENTRE

MERCADO, ESTADO E SOCIEDADE

Flávia Hagen Matias1

1 Advogada e mestranda em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). E--mail: [email protected].

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Democracia na Europa em crise relações tensionais entre mercado, estado e sociedadeFlávia Hagen Matias

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Abstract

This article aims to analyse the impact of the current European crisis on the rights mitigation. More precisely, the consequences of the austerity measures imposed in the european countries —as a way to reverse the public debt— to embrittlement of fundamental rights, citizenship and democracy itself. Therefore, we present the context of the recent economic crisis, the power of Troika —formed by the European Commission, the European Central Bank and the International Monetary Fund— in the determination of such programs and the place of democracy in a system led to the point where the markets command the governments and those who suffer the consequences of the irresponsibility of the banks is the people. The method used is the literature review, building up the text to inductively to apply as well, the analysis of the case, the main theoretical results achieved.

Keywords: Europe. Austerity Measures. Economic Crisis. Democracy.

Resumo

O presente artigo pretende analisar os impactos da atual crise europeia na mitigação de direitos. Mais precisamente, as consequências das medidas de austeridade impostas nos países europeus — como forma de reverter a dívida púbica — para a fragilização dos direitos fundamentais, da cidadania e da própria democracia em si. Para tanto, apresenta-se o contexto da recen-te crise econômica, o poder da Troika — formada pela Comissão Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo Fundo Monetário Internacional — na determinação dos programas de gestão de crise e o lugar da democracia em um sistema levado a tal pon-to que os mercados comandam os governos e quem sofre as consequências da irresponsabilidade dos bancos é o povo. O método utilizado é o de revisão bibliográfica, construindo-se o texto ao modo indutivo, para aplicar assim, na análise do caso concreto, os principais resultados teóricos alcançados.

Palavras-chave: Europa. Medidas de Austeridade. Crise Econômica. Democracia.

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O raciocínio envolvido é o de que umas transações compen-sam às outras e o risco se dilui. E, para cobrir tais riscos, existem os seguros, mas até mesmo as seguradoras cedem o capital que deveriam reservar para fazer frente a sinistros. O efeito perver-so desse sistema é que, quanto menos garantias tiverem, mais rentáveis as operações serão para as instituições financeiras e seus dirigentes.4 Nesse mecanismo, ficam à margem dos ganhos do mercado livre as pequenas e médias empresas5 e os países mais fracos e menos “desenvolvidos”, que estão constantemen-te em uma espécie de “prisão perpétua por dívidas” externas (NUNES, 2003, p. 76). O mito do desenvolvimento econômico exigiu que os países emergentes adotassem as estruturas dos países capitalistas industrializados;6 contudo, essa colonização cultural, em vez de reduzir as distâncias, acentuou a existência de uma nova dependência e de um novo subdesenvolvimento, aumentando o fosso entre países pobres e países ricos. O capi-talismo imitativo falhou (NUNES, 2003, p. 76).

Contudo, recentemente alguns países desenvolvidos tam-bém passaram a vivenciar essa realidade. Nos últimos anos, os países europeus mais afetados precisaram recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para obtenção de empréstimos de programas de gestão de crise e, em contrapartida, foram obrigados a impor medidas de austeridade, significando cor-

4 “À semelhança do que a teoria refere para os mercados do oligopólio, também neste mercado financeiro global os operadores tendem a atuar em função daquilo que eles pensam vai ser o com-portamento dos demais operadores. A turbulência causada pela especulação em um dado país ou região (agravada pela manipulação dos novos ‘produtos financeiros’) tende a propagar-se a todo o sistema financeiro mundial graças ao comportamento mimético dos grandes especuladores” (NU-NES, 2003, p. 77).

5 “Pesquisas realizadas pelo Banco Central Europeu sobre os 130 maiores bancos da União Europeia descobriram que estes não apoiam a economia real — onde as pessoas vivem, trabalham, produ-zem e consomem. As pequenas e médias empresas da União Europeia oferecem 80% ou 90% de todo o emprego disponível, mas continuam tendo muitos problemas para receber empréstimos. Desde 2008, os bancos endureceram suas condições de concessão de crédito” (GEORGE, 2015).

6 “Tal mito tem sido, como salienta o grande economista brasileiro Celso Furtado, ‘um dos pilares da doutrina que serve de cobertura à dominação dos povos dos países periféricos dentro da nova es-trutura do sistema capitalista’. Ele tem servido para narcotizar a consciência dos economistas, dos políticos e dos próprios povos, empurrando-os para uma corrida sem sentido na mira de objetivos inatingíveis e desviando-os da tarefa essencial de diagnosticar as necessidades fundamentais da humanidade, de identificar os recursos para as satisfazer (potenciados pelas enormes conquistas da ciência e da tecnologia), e de adequar estes recursos à satisfação daquelas necessidades” (NUNES, 2003, p. 104).

A crise econômica atual é, sobretudo, a crise da globalização financeira: o processo de internacionalização do sistema fi-

nanceiro, com a livre mobilidade de capitais e a flexibilidade e a volatilidade das taxas de câmbio e de juros, no qual os merca-dos são integrados de tal modo a criarem um “único” mercado monetário mundial, perante um quadro no qual inexistem re-gras reguladoras e instrumentos de política macroeconômica, inevitavelmente gerará futuros colapsos financeiros e, por con-seguinte, as recessões globais.

A Europa está sofrendo direta e severamente as conse-quências desse sistema desenfreado desde quando o Lehman Brothers declarou falência e levou consigo todos os demais bancos envolvidos na prática de especulação econômica, de-nominada maturação descompensada, que consistia em emitir obrigações de curto prazo para captar dinheiro para investir em ativos de longo prazo,2 e para cuja sobrevivência eram necessá-rios reinvestimentos contínuos.

Em face dessa extrema liberdade concedida aos espe-culadores com o processo de globalização financeira, surgiu a chamada economia de cassino, na qual, diariamente, as institui-ções financeiras criam capital virtual3 por meio dos denominados derivativos, que constituem apostas na evolução futura de todo tipo de preço. As instituições emprestam esses valores umas às outras, aumentando o capital circulante e, por conseguinte, os juros e as comissões a serem recebidos. Em média, os bancos dispõem de apenas 3% do capital que devem ao público (quan-do em 5% são considerados solventes). Enquanto isso, 95% do dinheiro dos depositantes alimentam incessantemente ope-rações que envolvem múltiplos credores e devedores em um mercado extremamente volátil (CASTELLS, 2011).

2 A regra de ouro da gestão financeira esclarece que o crédito que o banco concede deve corres-ponder quantitativa e qualitativamente ao crédito que ele recebe. Somente assim pode o perigo da insolvência ser evitado.

3 “Vivemos na era da burocracia predatória. Que porcentagem da receita familiar é extraída direta-mente pelo setor financeiro? Estranhamente, estas são as estatísticas econômicas mais difíceis de conseguir, mas, quando os economistas fazem as estimativas, encontram algo em torno de 20% a 40%. A maior parte do lucro já não vem do setor produtivo. No entanto, quando pensamos na história do capitalismo, pensamos nas indústrias, no trabalho pesado. Isso, claramente, não é o que temos hoje” (GRAEBER, 2016).

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do Parlamento Europeu e do Conselho da Comissão Europeia (2016). Sobre o FMI e sua importância, é cabível um olhar mais aprofundado.

No contexto do pós-Segunda Guerra Mundial,8 surgiu a necessidade de se instituir uma Ordem Monetária Internacional, capaz de coordenar e de regular as relações entre os sistemas monetários internos sujeitos a regras cambiais comuns, e, para tanto, criou-se o Fundo Monetário Internacional. Seu ato consti-tutivo instituiu uma nova organização internacional de vocação universal com personalidade jurídica própria para poder exercer as funções que lhe foram atribuídas na gestão do Sistema Mo-netário Internacional.9 Suas principais atribuições consistem na fiscalização do cumprimento das normas cambiais estatutárias e, sobretudo, na tomada de decisões sobre as condições de uso dos seus recursos financeiros.

Para aderir ao FMI, é necessário realizar o pagamento de uma cota constitutiva do capital comum do Fundo e se adequar às regras previstas nos estatutos. As cotas são fundamentais para o funcionamento da organização, pois formam o capital do Fundo para os “direitos especiais de saque”, que constituem os recursos financeiros alocados a um Estado-membro em difi-culdade. Ou seja, a subscrição de cotas determina os “direitos especiais de saque”. Esse mecanismo, em contrapartida, obriga o Estado a recomprar as reservas do FMI em um prazo de cinco anos e na medida em que melhore seu balanço de pagamentos (art. V, Seção 7, do Estatuto do FMI). Em síntese, o Estado-mem-bro resgata uma reserva monetária previamente depositada em direitos de saque junto ao Fundo com a obrigação de recom-prá-la futuramente segundo as condições determinadas pela Diretoria Executiva.

Não obstante, a utilização dos recursos financeiros do Fundo é condicionada pelo cumprimento de uma política

8 “Em meio à 2a Guerra Mundial, os futuros vencedores desenharam o que seriam as atuais relações econômicas internacionais. Ao adotar a Carta do Atlântico, em 14.08.1941, e o acordo de Assistên-cia Mútua, em fevereiro de 1942, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha resolveram instaurar os prin-cípios liberalizantes que iriam reger os intercâmbios econômicos internacionais do pós-2a Guerra Mundial” (BICHARA, 2014, p. 163).

9 Art. IX, Seções 1 e 2, dos Estatutos do FMI (BICHARA, 2014, p. 175).

tes nas despesas sociais justamente quando a população mais necessitava dos serviços públicos em face do desemprego generalizado.7 Nesse cenário, ocorre total desconsideração à democracia, que se encontra fragilizada em sua efetivação, ao passo que o Estado se encontra atado, pois submetido ao que determina a Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu [BCE] e FMI).

Nessas condições, é objetivo do presente trabalho anali-sar os impactos da atual crise europeia na mitigação de direitos. Mais precisamente, as consequências das medidas de austerida-de impostas nos países europeus — como forma de reverter a dívida pública — para a fragilização dos direitos fundamentais, da cidadania e da própria democracia em si. Para tanto, apresen-ta-se o contexto da recente crise econômica, o poder da Troika na determinação de tais programas e o lugar da democracia em um sistema levado a tal ponto que os mercados comandam os governos e quem sofre as consequências da irresponsabilidade dos bancos é o povo. O método utilizado é o de revisão biblio-gráfica, construindo-se o texto ao modo indutivo, para aplicar assim, na análise do caso concreto, os principais resultados teó-ricos alcançados.

A troika (BCE, Comissão Europeia e FMI)

O termo Troika é usado como referência à cooperação do BCE, da Comissão Europeia e do FMI na negociação com os paí-ses membros dos programas de crédito da zona do euro. O BCE gere o euro e define e executa a política econômica e monetária da União Europeia (UE), com o objetivo principal de manter a estabilidade dos preços e de apoiar o crescimento econômico e a criação de emprego. A Comissão Europeia é o órgão executi-vo da UE, sendo responsável pela elaboração de propostas de novos atos legislativos europeus e pela execução das decisões

7 “In times are hard, governments need to invest more—or, at the very least, cut where it does least harm. It is dangerous and economically damaging to cut vital supports at a time when people need them most” (HENLEY, 2013).

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diretores. Assim, “as decisões da Diretoria Executiva expres-sam de outra perspectiva o deficit da representação política dos membros do FMI que, consequentemente, repercute nas for-mulações e execuções das respostas dadas às problemáticas da economia mundial” (BICHARA, 2014, p. 179).

Neoliberalismo e democracia

Conforme Norberto Bobbio (2000, p. 91): “a relação entre liberalismo e democracia foi sempre uma relação difícil”. Histori-camente, os dois estão estreitamente associados: uma economia de mercado propicia as condições necessárias para o desenvolvi-mento da democracia e a manutenção das instituições políticas. Concomitantemente, guardam um paradoxo:11 a economia de mercado a longo prazo invariavelmente gera desigualdades nos recursos políticos a que os diferentes cidadãos têm acesso. E, por conseguinte, resulta por prejudicar também a igualdade política, pois cidadãos economicamente desiguais têm grande probabilidade de ser também politicamente desiguais.

Conforme a experiência histórica pôde demonstrar, um sis-tema com decisões econômicas descentralizadas em indivíduos e em firmas relativamente independentes evita a necessidade de um governo central forte, geralmente relacionado com o au-toritarismo. Ademais, a descentralização propicia uma produção de bens muito mais eficiente. O desenvolvimento econômico, por sua vez, proporciona recursos em que todos ganham algu-ma coisa12 e cria um excedente fundamental necessário para o apoio à educação e aos demais setores sociais, sendo capaz, desse modo, de promover uma cidadania instruída e ativa. Con-tudo, essa é a visão ideal dos benefícios que o capitalismo pode

11 “Quando abordamos o capitalismo de mercado de um ponto de vista democrático, examinando bem de perto descobrimos que ele tem dois rostos. Como a figura de Janos, o deus grego, esses dois rostos apontam direções opostas. Um deles, o rosto amistoso, aponta para a democracia. O outro, um rosto hostil, aponta na outra direção” (DAHL, 2001, p. 190).

12 “Linguagem da teoria do jogo: na ausência de desenvolvimento os conflitos econômicos tornam-se ‘soma-zero’: o que eu ganho, você perde — o que você ganha, eu perco. Assim, a cooperação é inútil” (DAHL, 2001, p. 185).

determinada pela própria organização na resolução dos dese-quilíbrios das balanças de pagamentos pelo Estado solicitante, determinada em acordo internacional bilateral. O princípio da condicionalidade rege a utilização da assistência financeira do FMI, e as metas são definidas e votadas conforme um sistema decisório que faz prevalecer os interesses dos Estados mais influentes no Fundo, os quais privilegiam as políticas econômi-cas favoráveis às suas economias.10 António José Avelãs Nunes (2003, p. 101) adverte: “O FMI encarregou-se de impor dra-conianamente o fundamentalismo monetarista aos países com dificuldades ao nível da balança de pagamentos, obrigados a aceitar os tristemente célebres planos de estabilização.”

Não obstante, o montante das cotas subscritas também determina o peso do voto de um Estado-membro no proces-so decisório dos órgãos do FMI. Com efeito, este acaba por representar os Estados em função da importância das cotas pa-gas por cada um deles, logo dando primazia aos interesses dos maiores subscritores na gestão do Sistema Monetário Interna-cional ou ainda na gestão dos sistemas monetários internos dos Estados-membros que recorreram aos empréstimos do Fundo. Inevitavelmente, essa realidade configura uma desigualdade entre os membros do FMI e, por conseguinte, afeta a própria condução do Sistema Monetário Internacional.

A desigualdade dos membros na Ordem Monetária Inter-nacional aparece também na composição do órgão executivo do FMI, responsável pela condução das atividades do Fundo. Ele é composto por 24 diretores nomeados pelos membros. Cinco são nomeados diretamente pelos membros com maiores cotas e 19 pelos demais Estados-membros pela regra de 85% do total do poder de votos (art. XII, Seção 3, b, i e ii, dos Estatutos do FMI). As escolhas são feitas de maneira discricionária, abrindo, desse modo, margem à subjetividade no processo seletivo dos

10 “A 14a Revisão Geral de Quotas do FMI, que está em vigor desde 26 de janeiro, foi resultado de uma longa negociação que se deu no período pós-crise de 2008 e culminou em um acordo em 2010. O acordo só está sendo implementado agora em função da demora de sua ratificação pelo Congresso dos Estados Unidos. Essa reforma desloca maior influência em favor dos países de mercados emergentes e em desenvolvimento para reconhecer seu papel crescente na economia global” (CAMPOS, 2016).

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governos locais subordinados ao governo do país. Os gover-nos nacionais da atualidade seriam, desse modo, nada mais do que governos locais submetidos a governos democráticos in-ternacionais. Em face disso, a dificuldade dos novos tempos é garantir que o processo democrático e seus meios de controle sejam efetivados nas decisões proferidas em nível internacional, ou seja, é democratizar as organizações internacionais (DAHL, 2001, p. 128).

A UE, apesar de ter estruturas nomeadamente democráti-cas, como as eleições populares e um parlamento, paralelamente tem um enorme deficit democrático, considerando que as deci-sões e os limites são impostos não por processos democráticos, mas, sobretudo, pela concordância entre negociadores, movi-dos por seus interesses nos mercados nacionais e internacionais. Na prática, são os últimos que determinam o direcionamento das decisões, apenas cabendo aos processos democráticos ra-tificá-los. Pensar que os institutos democráticos são ineficazes na UE diminui a esperança quanto aos demais sistemas interna-cionais. A solução para a democratização da internacionalização continua sem forças para se desenvolver (DAHL, 2001, p. 129). Como o professor doutor Plauto Faraco de Azevedo (2001, p. 167) afirma: “fala-se no bem da humanidade, mas não se conse-gue encobrir o primado do econômico sobre o humano”.

A crise europeia

Nos últimos anos, foi possível presenciar os equívocos as-sumidos pela Europa nos confrontos com a lógica financeira. Os 27 países-membros da UE caíram na armadilha de tentar salvar os bancos e, para tanto, utilizaram-se de instrumentos legais e políticos nacionais para extorquir recursos dos contribuintes para um fundo destinado, principalmente, às grandes institui-ções financeiras globais (MARTINS, 2010).

A Grécia se encontra particularmente prejudicada com a atual conjuntura, tendo corrido o risco em diversos momentos de sair da zona do euro. A crise teve início seis anos atrás e

trazer a um governo democrático. O capitalismo em sua forma desenfreada mais cedo ou mais tarde tenderá a conduzir a de-mocracia para caminhos mais obscuros.

Ao mesmo tempo, não é possível conceber a democra-cia inserida em uma economia planificada, não pela possível ineficiência dessa, mas sim por suas consequências sociais e políticas: “uma economia centralmente planejada deixa os re-cursos de toda a economia à disposição de líderes do governo” (DAHL, 2001, p. 186). Ainda que a democracia só tenha existido em países com uma economia capitalista, o capitalismo, por sua vez, existiu em países não democráticos, como Taiwan e Coreia do Sul, cujos líderes autoritários inadvertidamente plantaram as sementes da própria destruição na medida em que os fatores que costumam acompanhar o desenvolvimento econômico e uma economia de mercado ajudaram a produzir a democratiza-ção. Desse modo, o liberalismo não é favorável aos regimes não democráticos.

Com uma avaliação mais detida, percebe-se que a atual globalização apenas reformulou as estruturas de dependência de origem colonial, do imperialismo de fins do século XIX e do capitalismo periférico dominante de 1930 a 1980. O discurso da globalidade está sendo, com efeito, utilizado para uma verda-deira “reconversão da dependência” (CASANOVA, 2002, p. 49), na medida em que, frequentemente, oculta os efeitos sociais negativos da política neoliberal conservadora em diversos paí-ses do mundo; trata-se de um colonialismo da Idade Moderna. A reconversão é, em grande medida, uma recolonização antes direcionada para os países emergentes, agora também atingin-do economias desenvolvidas: países europeus fragilizados pela última crise econômica.

Falar de globalidade significa também, invariavelmente, falar de internacionalização. No final do século XX, iniciou-se um processo irrefreável de internacionalização econômica, cultural, social e política, levando os governos a, gradativamente, ceder parte de seu poder a algum tipo de governo internacional. Po-der-se-ia comparar esse contexto com o das cidades-estados perante os Estados nacionais ou com o de Atenas e Veneza,

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Contudo, paradoxalmente, uma semana depois, o primei-ro-ministro grego assinou o acordo pelos mesmos programas contra os quais buscava combater. Sobre essa mudança repen-tina de posicionamento, Tsipras se pronunciou afirmando que “é nosso dever nacional manter o nosso povo vivo e na zona do euro” (LOWEN, 2015). Ou seja, a Grécia ficou encurralada e precisou decidir entre aceitar o acordo ou sair da zona do euro. Percebe-se que, além dos direitos fundamentais que têm sido paulatinamente desrespeitados, a opinião pública, nesse con-texto pós-plebiscito, foi completamente desconsiderada, não importando o que a população grega considerava melhor para seu país.

Concomitantemente, na Espanha, após vários anos de gra-ve recessão, o índice de desemprego voltou a recuar, do pico de 26,9%, em 2008, para 21%, em 2013. A estimativa é que continue retrocedendo paulatinamente nos anos por vir. O mes-mo pode ser dito sobre a Irlanda, apelidada de “tigre celta” em face de seu elevado crescimento econômico, que foi do boom ao desastre financeiro em apenas três anos (ENTENDA…, 2010). A Irlanda foi o primeiro país a deixar o resgate internacional. Enquanto os países da zona do euro cresceram, em média, 0,3% no terceiro trimestre de 2014, o PIB irlandês cresceu 5,2% e 7% na primeira metade desse ano em face do mesmo período do ano passado (WELLE, 2015).

Já para Itália e Portugal, a situação continua ainda bastan-te obscura. A Itália adota uma política de reduções tributárias sobre investimentos, de bônus fiscal mensal de 80 euros para pessoas de baixa renda e de corte nos impostos. O primeiro-mi-nistro Matteo Renzi anunciou que o desemprego caiu e que os contratos de trabalho de longo prazo estão aumentando. Con-tudo, muitos afirmam se tratar apenas de marketing político, tendo em vista que um número elevado de pessoas saiu perma-nentemente do mercado de trabalho e já não está mais sendo considerado na contagem de desempregados. E os contratos de longo prazo não representam novos empregos sendo cria-dos, mas pessoas que estão apenas trocando a natureza de seus atuais contratos de trabalho. Até o pequeno crescimento no se-

foi quando os socialistas (Pasok) cederam à política econômica de austeridade imposta pela Troika, obtendo em retorno 110 bilhões de euros. Contudo, logo essa quantia se mostrou insufi-ciente e um segundo resgate elevou a cifra total para 240 bilhões de euros, em 2012. Contudo, após cinco anos de empréstimos, restou clara a incapacidade de tais programas, na medida em que o país sofria uma queda de produtividade de 25%, nível de desemprego de 26% — no qual, para a faixa entre 25 e 35 anos, chegava a 50% — e com mais de 30% da população na miséria. Destaca-se: a taxa de juros era mais alta que a de crescimento (CARTA, 2015).

Esse grave contexto social propiciou a eleição de Alexis Tsipras (partido Syriza)13 no ano 2015, com sua pauta de rene-gociação da dívida com os credores internacionais e do fim da política de austeridade para conferir maior poder aquisitivo ao povo. Contudo, o preço para isso seria alto: mais ajuda financeira dos credores internacionais. O temor chegou a seu ápice quan-do venceu o último programa de ajuda financeira e o governo, além de não pagar a dívida, decidiu que tampouco aceitaria as condições humilhantes impostas pelas instituições financeiras. Em face dessa encruzilhada, Tsipras resolveu deixar a decisão final sobre a aceitação ou não das medidas impostas pelos cre-dores para a obtenção de novos empréstimos nas mãos dos cidadãos gregos, e para isso convocou um plebiscito. Este con-tinha a seguinte pergunta: “Deve ser aceito o acordo proposto, que foi apresentado pela Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional no Eurogrupo de 25/6/2015 e consiste de duas partes, que constituem sua pro-posta unificada? O primeiro documento é chamado ‘Reformas para a conclusão do atual programa e além’, e o segundo, ‘Aná-lise preliminar de sustentabilidade da dívida’” O “não” venceu com 61% (ENTENDA…, 2010).

13 A Coligação da Esquerda Radical nasceu de uma aliança eleitoral de 13 organizações e partidos po-líticos, que inclui maoístas, trotskistas, comunistas, ambientalistas, social-democratas e populistas de esquerda. Somente passou a ter destaque a partir da crise econômica, do colapso dos partidos tradicionais e da forte influência carismática do Alexis Tsipras (Syriza: o partido que dá esperança e medo aos gregos. Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150124_syriza_grecia_ru>. Acesso em: 30 out. 2016).

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iniciou uma verdadeira revolução, reivindicando seus direitos básicos. Esse movimento histórico inédito promovido pela popu-lação islandesa, que ficou conhecido por Revolução das Panelas e Frigideiras,14 foi um exemplo de participação popular singular e gerou as bases para pensar uma nova forma de sair da crise.

Por meio de um referendo, com 93% dos votos (ABAD, 2011), o governo islandês foi obrigado a renunciar ao paga-mento das dívidas resultantes de atividades especulativas dos bancos privados, agora nacionalizados, nomeadamente aos in-vestidores do Reino Unido e da Holanda.

A crise antes econômica tornou-se política e, sobretudo, sistêmica. O governo conservador (formado no fim dos anos 1970 por um grupo neoliberal denominado “Locomotiva”, cujo futuro primeiro-ministro, David Oddsson, viria a presidir o ex-traordinário crescimento do setor financeiro por 14 anos15 até se instalar no comando do Banco Central, em 200416) caiu e subiu uma coligação de esquerda dos Social-democratas, os Verdes de Esquerda e mais os Partidos Progressista e Liberal. O novo governo reergueu o sistema de seguridade social, nacionalizou os bancos quebrados e renegociou as dívidas de pequenos e grandes empreendedores.

Quatro anos depois, o país se encontrava praticamente recuperado. O PIB, que caíra 6,6%, em 2009, e 4%, em 2010, passou a crescer 2,1% ao ano, bem acima do nível da maioria dos países europeus. Ainda, o empréstimo emergencial do FMI foi pago (REVOLUÇÃO…, 2011). Para o período de 2015 a 2017, o FMI antecipou uma queda da taxa de desemprego para 4% e

14 Os utensílios de cozinha viraram batuques, e o povo foi em frente ao Parlamento exigir uma mudan-ça de postura dos governantes perante o colapso econômico.

15 A superabundância de crédito permitiu que a população comemorasse o fim de décadas de con-trole do crédito pelas redes políticas — o “Polvo”: enfim, os islandeses sentiam-se verdadeira-mente “independentes”, e talvez por isso foram denominados “o povo mais feliz do mundo”. A administração Oddsson flexibilizou a regulamentação das hipotecas garantidas pelo Estado, auto-rizando empréstimos que atingiam até 90% do valor de um bem. Os bancos, recém-privatizados, apressaram-se em oferecer condições ainda mais “generosas”. Os impostos sobre a renda e o valor agregado (IVA) baixaram, no quadro de uma estratégia que buscava fazer da Islândia um centro financeiro internacional, abençoado pela moderação fiscal. Era o início da dinâmica de bolha.

16 Questiona-se se um político sem qualquer formação sobre economia e mercados financeiros estaria apto a ocupar o cargo de presidente do Banco Central da Islândia.

tor industrial pode ser explicado por fatores externos, como a queda no preço do petróleo, o euro mais fraco e taxas de juros mais baixas (por causa do influxo de dinheiro para os bancos graças a uma intervenção do BCE). Ainda assim, Renzi vende a ideia de que a confiança na economia italiana cresce e anunciou cortes nos impostos no valor de mais de 50 bilhões de euros nos próximos cinco anos (WELLE, 2015).

Porém, os números não mentem, e a dívida pública da Itá-lia continua alarmante, representando 130% do produto interno bruto (PIB) — a segunda maior taxa na Europa, atrás apenas da Grécia. Apesar da demonstração de apoio aos gregos, quando a situação ficou crítica a Itália aconselhou a Grécia a aceitar a oferta da zona do euro. Isso porque o país poderia perder mais de 40 bilhões de euros em empréstimos diretos para o país se a Grécia desse o calote e deixasse o euro (WELLE, 2015).

Paralelamente, Portugal corre risco de voltar a sofrer um declínio econômico. O Commerzbank, banco germânico, lançou uma nota recentemente mostrando seu receio sobre uma imi-nente recessão portuguesa, decorrente da inversão da marcha na política econômica feita pela nova coligação de esquerdas, liderada por António Costa. O salário mínimo foi aumentado em 5% no início do ano, a redução de jornada de trabalho de 35 ho-ras para funcionalismo público, o regresso dos quatro feriados e a provável recuperação dos três dias de férias adicionais para quem não falta ao trabalho (CAETANO, 2016). Em face disso, existe a possibilidade de um novo corte de rating que deixaria a dívida nacional inelegível para o programa de compra de ativos do BCE.

Islândia, um caso à parte

A Islândia, pequeno arquipélago situado ao norte da Europa, fez diferente dos demais países europeus. Após uma tentativa falha do governo de recuperação econômica — por meio de um programa de gestão de crise com o FMI e da im-posição de uma taxa de 130 euros mensais a cada cidadão a ser paga dentro de um período de 15 anos —, o povo islandês

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cial importância da participação popular na cessação dos abusos governamentais em face do abuso econômico.

Considerações finais

Recentemente, foi trazida à tona uma importante lembran-ça: o perdão das dívidas da então República Federal Alemã, em 1953. Segundo o economista Thomas Piketty, se o mundo tives-se despendido à Alemanha o mesmo rigor que o país reserva à Grécia atualmente, é bem provável que os alemães tivessem demorado muito mais tempo para se recuperar da miséria devas-tadora na qual se encontravam no pós-Segunda Guerra Mundial. As potências ocidentais tiveram o entendimento de reconhecer que era preciso tratar do futuro, dada a importância geopolítica da Alemanha e reconhecendo que parte das dívidas abatidas no montante provinha do fim da Segunda Guerra Mundial. O endividamento criou duras condições de austeridade econômi-ca, que contribuíram para a ascensão do Partido Nazista, sob a liderança de Adolf Hitler, no início da década de 1930. O mesmo paralelo é possível fazer com a presente situação grega. A crise financeira de 2008-2009 foi a maior desde 1929. O PIB grego diminuiu 25% entre 2009 e 2015, comparável às recessões na Alemanha entre 1929 e 1935. Não se negam os erros cometidos pelos gregos: até 2009, o governo de Atenas estava acostuma-do a maquiar seus balanços. A atual geração grega não deve ser penalizada por esses erros durante décadas a fio. Deve-se justamente recordar que a Europa não foi fundada em cima da ideia de eterna penitência, e sim no esquecimento das dívidas e no investimento no futuro (PIKETTY, 2015).

Contudo, a Grécia não detém a mesma importância con-ferida ao país alemão no início da Guerra Fria. O ministro das Finanças alemão parece inclusive acreditar que uma saída da Grécia da zona do euro aceleraria a consolidação europeia. Po-rém, o efeito imediato seria a proliferação de uma séria crise de confiança que hoje já existe. Os mercados financeiros imediata-mente voltariam suas atenções para o país seguinte.

um crescimento na economia em 3%. E o PIB islandês vai crescer em torno de 6%.

O país não seguiu as tradicionais ortodoxias remanescentes do mundo financeiro ocidental. Optou por introduzir controles de divisas, deixar os bancos falirem e descartar a imposição de medidas de austeridade, como acontece atualmente no resto da Europa, entendendo que não cabe ao povo arcar com os fra-cassos das instituições financeiras.17 Outro importante fator de sucesso para a rápida recuperação da Islândia se deveu à des-valorização da moeda, que chegou a 70%. O declínio da moeda nacional criou as “proporções saudáveis” da economia nacional para beneficiar plenamente a recuperação da economia global.

Tendo o povo forçado o governo, de forma inédita, a re-cusar o pagamento das dívidas dos bancos com o dinheiro dos indivíduos, no ano 2012, o Tribunal da Associação Europeia do Livre Comércio (EFTA) decidiu, nesse sentido, isentar o país de qualquer ressarcimento, pois reconheceu a grave crise financeira em que a Islândia se encontrava (TRIBUNAL…, 2013). De arreba-te, a ilha nórdica retirou, em 2015, o pedido de adesão à União Europeia, após iniciada a crise do euro, em contraste com a es-plêndida recuperação econômica islandesa (SANTIAGO, 2015).

Percebe-se que a crise financeira global acabou por eviden-ciar não somente uma crise econômica, como também política e democrática. As estruturas são frágeis diante dos interesses do sistema financeiro internacional, não conseguindo se sobrepor de modo a garantir os interesses da sociedade civil em oposição aos interesses dos grupos econômicos dominantes. A Islândia foi um caso à parte, o qual teve diversos fatores propiciado-res: o tamanho do país, não pertencimento à União Europeia e, logo, não uso do euro como moeda corrente; e, por fim, a cru-

17 “Por que é que os bancos são considerados as igrejas sagradas da economia moderna? Por que é que bancos privados não são como companhias aéreas e de telecomunicação às quais é permitido irem à bancarrota se tiverem sido dirigidas de um modo irresponsável? A teoria de que você tem de salvar bancos é uma teoria em que você permite aos banqueiros desfrutaram em seu próprio proveito o seu êxito e deixa as pessoas comuns arcarem com os seus fracassos através de impostos e austeridade. O povo em democracias esclarecidas não vai aceitar isso no longo prazo […]” (fala do presidente da Islândia, Olafur Ragnar Grimmson; MARTIN, 2016).

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financeiras, extinguir os paraísos fiscais, obrigar Luxemburgo a desmantelar sua proteção às empresas sonegadoras.

Não obstante, é crucial mudar a forma de atuação BCE, que não empresta dinheiro aos países, tão somente aos bancos privados. Estes pedem créditos ao BCE a menos de 1% de juros ao ano, para em seguida emprestar os mesmos recursos aos países com juros altíssimos, às vezes mais de 6%. O BCE deveria emprestar diretamente aos países, cobrando os mesmos 1% ou menos, e os governos europeus deveriam poder emitir títulos em euros (GEORGE, 2015). O professor doutor Plauto Faraco de Azevedo sintetiza esses absurdos: “tudo é pensado a curto prazo, como se o caminho histórico só tivesse uma vida, na bus-ca do ganho imediato, no menor tempo possível, ainda que às expensas da dignidade e solidariedade humanas, cuja perda não é vista como problema” (AZEVEDO, 1999, p. 114).

Percebe-se que o futuro da democracia dependerá em grande parte da forma como os cidadãos e os líderes resolvam as dificuldades. E as forças contrárias que impedem seu maior avanço e aprofundamento são justamente as vigentes na atua-lidade. A luta pelos direitos teve como primeiro adversário o poder religioso, seguido pelo poder político para chegar ao po-der econômico hoje (BOBBIO, 2004, p. 96).

Piketty propõe uma conferência sobre todas as dívidas europeias, como depois da Segunda Guerra Mundial, e, nessa, uma reestruturação das dívidas não somente gregas, mas de muitos países europeus. É fundamental a existência de uma nova instituição democrática europeia que decida sobre o nível de en-dividamento possível, a fim de evitar um novo surto de dívidas. Propõe que seja uma câmara parlamentar europeia recrutada dos parlamentos nacionais, na medida em que não podem ser retiradas de suas competências as decisões orçamentárias. A Alemanha sabota a democracia na Europa ao insistir nas regu-lações automáticas no tocante ao endividamento dos Estados (PIKETTY, 2015).

Michael R. Krätke também propõe uma solução: basta-ria que os Estados da zona do euro se apoiassem mutuamente mediante um empréstimo garantido por todos e pelo BCE, um empréstimo que, graças ao Banco de Inversões da UE, poderia se organizar rapidamente e se colocar facilmente nos mercados financeiros que nadam em dinheiro. Com a solidariedade dos eu-ropaíses, ganhar-se-ia tempo para finalmente se reavaliarem os problemas estruturais da UE e da zona do euro, especificamente sobre os extremos desequilíbrios entre os países-membros.

Contudo, essa alternativa é pouquíssimo provável. O ex-tremo dogmatismo neoliberal da Comissão Europeia e do BCE induzem-no a crer que é possível ter uma moeda comum sem, em contrapartida, ter-se uma política econômica coordenada e um sistema de compensação financeira. Se a UE fosse, de fato, uma aliança política e econômica, como se acreditou até en-tão, não existiria uma dívida “grega”, mas europeia, e como tal seria assumida. A dívida grega era muito pequena dentro do conjunto europeu, portanto, bastava que fosse assumida como dívida europeia e as taxas de juros teriam sido muitíssimo me-nores. Boaventura de Sousa Santos se manifesta, dizendo ser a favor de uma “União Europeia dos Povos”, com uma igualdade democrática tanto econômica quanto política, primada pela so-lidariedade e pela reciprocidade.

É fundamental o controle sobre a separação dos bancos comerciais dos de investimento, cobrar imposto das instituições

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É POSSÍVEL A UTILIZAÇÃO DO RITO PROCESSUAL DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA APLICAR A LEI DE

IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA? UM ESTUDO DA POSTURA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL

COMPARADO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA TUTELAS À EFETIVAÇÃO

DE DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

Juliana Machado Fraga1 Paulo José Dhiel2

1 Mestra em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Mestra em Direitos Humanos pela Universidade do Minho. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e Direito Previdenciário. Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado, Adminis-tração Pública e Sociedade: Patologias Corruptivas”, coordenado pelo professor doutor Rogério Gesta Leal. Integrante do grupo de pesquisa “Constitucionalismo Contemporâneo”, coordenado pelo professor pós-doutor Clovis Gorczevski. Advogada. E-mail: [email protected].

2 Mestrando em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Integrante do grupo de pesquisa internacional “Estado, Administração Pública e Sociedade: Pato-logias Corruptivas”, coordenado pelo professor doutor Rogério Gesta Leal. Integrante do grupo de pesquisa “Estado, Administração Pública e Sociedade”, coordenado pela professora doutora Denise Bittencourt Friedrich. Advogado. E-mail: [email protected].

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É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do tribunal de justiça do rio grande do

sul comparado do superior tribunal de justiça tutelas à efetivação de direitos transindividuaisJuliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

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Abstract

This work has the scope to address the issue of the applicability of the Administrative Misconduct Law, Law No 8.429, the rite of Public Civil Action, which is properly provided for in Article 129, III of the Federal Constitution and regulated by Law No 7.347/1985. Addressed to this theme from an analysis of decisions of the State Court of Rio Grande do Sul in comparison with the Superior Court of Justice, in accordance with Brazilian legislation, in order to see how these courts come to positioning on issues concerning the possibility and basis of public civil action by Administrative Misconduct and how this action is emerging as a means of repression of corruptive acts. For this work we used the deductive method research approach and as an auxiliary method took advantage of the historical method. It used also the literature, aiming carry out the development of the proposed topic from theoretical.

Keywords: Public Civil Action. Corruption. Administrative Dishonesty. Court Of Justice. Superior Justice Tribunal.

Resumo

O presente trabalho tem como escopo abordar a questão da aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), Lei no 8.429, pelo rito da ação civil pública, a qual está devi-damente prevista no art. 129, III, da Constituição Federal (CF) e regulamentada na Lei no 7.347/1985. Abordou-se a presen-te temática a partir de uma análise de decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul em comparativo com o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em consonância com a legisla-ção pátria, com o objetivo de verificar como esses tribunais vêm se posicionando quanto às questões referentes a possibilidade e embasamento da ação civil pública por improbidade admi-nistrativa e como essa ação vem se delineando como meio de repressão aos atos corruptivos. Para a realização deste trabalho, utilizou-se o método dedutivo de abordagem de pesquisas, e como método auxiliar valeu-se do histórico. Utilizou-se, também, a pesquisa bibliográfica, visando a realizar o desenvolvimento do tema proposto a partir de referencial teórico.

Palavras-chave: Ação Civil Pública. Corrupção. Improbi-dade Administrativa. Tribunal de Justiça. Superior Tribunal de Justiça.

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É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do tribunal de justiça do rio grande do

sul comparado do superior tribunal de justiça tutelas à efetivação de direitos transindividuaisJuliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

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A LIA e sua aplicabilidade na ação civil pública

A conexão entre os atos de improbidade administrativa e sua aplicabilidade na ação civil pública é a Constituição de 1988, estando intimamente ligada à fundamentação de interesse pú-blico de questões centrais, como os princípios da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

A expressão “improbidade administrativa”, no direito bra-sileiro, teve sua inicial menção na Constituição Cidadã de 1988, notadamente em seus arts. 15, V, e 37, XXI, § 4o. Contudo, a le-gislação infraconstitucional decorrente (Lei no 8.429/1992) é que veio a regulamentá-la. O Código Penal (CP) brasileiro também faz referência (art. 29) ao tema no momento em que estende a responsabilidade a qualquer pessoa que venha a induzir, con-correr para a consumação do ato de improbidade ou dele se favorecer de qualquer maneira, direta ou indiretamente, mesmo não sendo agente da Administração Pública.

Não obstante, é o art. 37, § 4o, da CF, ao dispor sobre as sanções políticas, civis e administrativas aplicáveis aos agen-tes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública direta, indireta ou fundacional, que inaugura e impulsiona a le-gislação, tendo como desígnio a probidade no trato com a coisa pública.

A menção ao ato de improbidade administrativa remete in-variavelmente à malversação de recurso público, à imoralidade e à ilegalidade, consoante isso tem sido verdadeiro sinônimo para corrupção e desonestidade por quem está investido em cargo ou função pública ou por que com ele mantém relações, seja por ação, seja por contexto omissivo de falta de zelo (FERRACINI, 2001). Tem, portanto, a ver com deslealdade no desempenho da função pública, com transgressão da legislação e dos princípios que norteiam a Administração Pública.

É sabido que a ação civil pública objetiva resguardar os di-reitos protegidos pela Constituição Federal (CF) brasileira,

podendo ter por fundamento a inconstitucionalidade de lei, ato normativo ou ato lesivo à coletividade. Em geral, os legiti-mados para a propositura da ação civil pública são: Ministério Público, pessoas jurídicas de direito público interno e entidades paraestatais.

A ação civil pública demonstra-se como instrumento pro-cessual para o exercício do controle popular sobre os atos dos poderes públicos. Pode ser definida como meio de repressão aos danos à coletividade, sejam direitos de ordem ambiental, econômica, histórica, turística ou interesses difusos. Pela ação civil pública pode-se exigir a reparação do dano causado ao patrimônio público por ato de improbidade, assim como a apli-cação das sanções especificadas no art. 37 da CF/1988 quando decorrentes de conduta irregular de agente público.

Por sua vez, a Lei de Improbidade Administrativa (LIA), Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, veio por complementar o que foi definido pelo poder constituinte, definindo as sanções apli-cáveis aos agentes públicos, nos termos do art. 37, § 4o, da CF, para os casos de enriquecimento ilícito por meio da prática de ato de improbidade administrativa.

Nesse sentido, evidencia-se que esses dois institutos se mostram como mecanismos de controle popular das ações do Poder Público no que tange à proteção de bens públicos, erário, moralidade e probidade.

Dessa forma, é imprescindível que se verifique como essas ferramentas podem ser utilizadas conjuntamente para garantir interesses coletivos e difusos, bem como que se realize uma aná-lise contundente da jurisprudência dominante acerca do tema.

Assim, pesquisou-se no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com o verbete “ação civil pública lei improbidade” (sem aspas), acór-dãos entre as datas de 1o de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2015, a fim de verificar como tem sido decidida tal matéria e no STJ. O presente trabalho é, em suma, uma verificação de como tem sido decidido o tema em apreço em nossos tribunais.

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agentes políticos. A intenção do legislador era atender aos de-mais princípios, como da eficiência, mas com clara preocupação de combater a corrupção e instrumentalizar meios de evitar a impunidade e o enriquecimento ilícito (LEAL, 2013). É isso que se pode depreender do § 4o do art. 37: “os atos de improbidade administrativa importarão a perda da função pública, a indis-ponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

Incumbiu à Lei no 8.429/1992 regulamentar as disposições constitucionais, e ela identifica três tipos de atos de improbida-de administrativa: atos que representem enriquecimento ilícito; atos que causem prejuízo ao erário; e atos de improbidade ad-ministrativa que atentem contra os princípios da Administração Pública.

A partir disso, fica clara a conexão direta entre probidade administrativa e moralidade administrativa. Assim, temos que toda conduta que atente contra a moralidade administrativa en-seja ser, também, ato configurador de improbidade. Já o inverso nem sempre confirma a mesma lógica. Nem todo ato de impro-bidade administrativa atenta contra a moralidade administrativa. Por essa ótica, a probidade administrativa fica identificada como um mínimo da moral contida nessa. Assim, a improbidade re-vela a qualidade da pessoa que não procede bem, por não ser honesta, agindo indignamente, sem caráter, atuando com inde-cência, consoante descreve Silva (2003).

Independentemente dessa discussão quanto ao gênero ou espécie, a etimologia da palavra improbidade nos ajuda a enten-der esse que é um dos maiores males que afetam a Administração Pública brasileira. Improbidade deriva do latim improbitas, que significa má qualidade, malícia. No caso da Administração Pú-blica, rotineiramente representa sinônimo de desonestidade e corrupção (GONZÁLEZ-PÉREZ, 2000).

Tendo em mente que um dos princípios da Administração Pública é a legalidade, temos que os atos dos agentes públi-cos devem por essa premissa para atender, também, às demais, como moralidade e probidade. Essa é uma das razões de os atos ilícitos também serem considerados uma infração, sendo enseja-

A definição dos atos de improbidade administrativa tem sido um desafio atual, consoante sua comparação com o direito penal, pelos efeitos de suas decisões. A legislação regulamenta-dora aponta uma série de situações a ensejarem a improbidade, mas resiste a uma tipificação encapsulada, como ocorre no di-reito penal. Reside nesse aspecto o maior debate, tanto nos tribunais quanto na própria doutrina. De igual sorte, há uma dis-simetria sobre a aplicabilidade da legislação sobre improbidade administrativa com a dos crimes de responsabilidade (LEAL, 2013). Existem verdadeiras antinomias e incompatibilidades na cominação de sanções entre a Lei de Crimes de Responsabilida-de e a LIA, ainda mais quando muito se discute a que nível de agentes nas funções públicas uma ou outra é aplicável.

Os princípios norteadores da Administração Pública, já ci-tados, têm na moralidade e na probidade uma relação intrínseca e de relevância na análise dos atos ensejadores de punição no âmbito da LIA. Na doutrina, há alguma distinção identificando a moralidade como gênero e a probidade com uma espécie dessa. Nessa linha, os atos atentatórios à probidade seriam ao mesmo tempo atentatórios à moralidade pública, conforme expõe Fer-racini (2001).

Porém, Di Pietro (2002) defende ser a moralidade e a pro-bidade expressões que significam a mesma coisa, haja vista que se relacionam com a ideia de honestidade na Administração Pública. A probidade ou a moralidade administrativa significam mais do que a mera legalidade formal da atuação administrativa; devem ser observados, também, os princípios éticos, de lealda-de, de boa-fé e de regras que assegurem a boa Administração Pública.

Já segundo Ferracini (2001), a probidade seria um mínimo da moral contida nessa, e não geral, como pretende a minoria dos doutrinadores, esclarecendo-se que o próprio direito é par-te da moral.

O fato de o art. 37 da CF/1988 prever expressamente a moralidade como um dos princípios da atividade estatal eviden-cia uma preocupação com a ética na Administração Pública de modo mais amplo do que até então, quando era restrita aos

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coletivo. Considera ser da essência do Ministério Público zelar pela res publica, e a própria Lei no 8.429 identifica o Ministério Público como um dos legitimados para a propositura da ação civil pública, englobando todo ato potencial a caracterizar ato atentatório contra a probidade administrativa.

Reside aqui uma questão importante, que não está total-mente pacificada na doutra. A LIA não exige expressamente a anterior instauração de inquérito civil como requisito para pro-por uma ação de improbidade. Ainda assim, tem-se no inquérito civil um meio eficaz, a partir dos poderes requisitórios para a apuração e coleta de elementos comprobatórios da ocorrên-cia de eventual ilícito, assim como a identificação quanto à sua autoria.

A adequação da ação civil pública como meio para res-ponsabilizar agentes por atos de improbidade administrativa é o tema proposto nesta discussão. Nesse sentido, o Ministério Público tem a incumbência de fiscalizar a legalidade da conduta administrativa e sua razoabilidade, isto é, a adequação entre os meios e fins, conforme aduz Meirelles (2008). Contudo, ficam limitados quanto à análise de mérito dos atos administrativos, notadamente na dimensão de oportunidade e conveniência, es-ses aspectos intrínsecos da discricionariedade do administrador.

E a ação civil pública pode servir para responsabilizar por ato de improbidade? A ação civil pública é o instrumento pro-cessual, previsto na CF brasileira e em leis infraconstitucionais, de que pode se valer o Ministério Público. De igual sorte, há ou-tras entidades legitimadas para a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e, portanto, para a proposi-tura da mesma ação.

Muito embora não possa ser chamada de ação constitu-cional, a ação civil pública tem status constitucional, questão pacificada na doutrina, uma vez que a Constituição atribui ao Ministério Público tal função institucional (art. 129, II e III, da CF/1988), assim como a outras entidades, notadamente associa-ções civis (art. 129, § 1o, da CF/1988). Assim, não há exclusividade do Ministério Público em propor a ação civil pública, mas legiti-midade concorrente (art. 5o da Lei no 7.347/1985).

dores de punição de seus autores. Não basta que os atos sejam honestos e morais, terão de atender aos princípios da legali-dade (LEAL, 2013). De igual sorte, ainda que tenham respaldo legal, esse aspecto por si só não impede eventual responsabili-zação se foram imorais e desonestos.

Previstos na CF/1988, mas regulamentados pela Lei Fede-ral no 8.429/1992, os atos de improbidade são conceituados e agrupados em três categorias: a) os do art. 9o, que versam so-bre enriquecimento ilícito do agente público, causando ou não prejuízo econômico ao erário; b) os do art. 10, que são os con-cretamente lesivos ao erário; e c) os elencados no art. 11, que afrontam os princípios da Administração Pública e podem ou não causar prejuízo ao erário ou enriquecimento ilícito.

Em que pese que a descrição dos atos identificados nos arts. 9o e 10 seja mais precisa, o termo aberto dos atos de im-probidade administrativa descritos no art. 11 tem sido tema de grande discussão acadêmica e doutrinária, não menos na jurisprudência.

Um dos meios de controle da atividade administrativa recai sobre a atuação do Ministério Público, entidade constitu-cionalmente criada (art. 127 e segs. da CF/1988) para tutelar os valores e interesses da sociedade. Precisamente nesse con-texto é que ocorre a relação com a ação civil pública. Trata-se de instrumento disponível ao Ministério Público (ainda que não exclusivamente a ele) justamente para atuar na defesa dos inte-resses coletivos e difusos e buscar a sanção daqueles que lesam o patrimônio público (MEIRELLES, 2008).

O instrumento da ação civil pública surge para suprir uma lacuna até então existente, eis que não há, a rigor, um controle ministerial direto sobre a ação administrativa por parte do Mi-nistério Público, considerando que sua incumbência é demandar no Poder Judiciário. É a partir da ação civil pública que o Minis-tério Público participa do controle jurisdicional como guardião constitucional da probidade, conforme elucida Ferracini (2001).

Nessa senda, a doutrina tem se posicionado no sentido de que incumbe ao Ministério Público o dever de promover a ação civil pública na defesa de todo e qualquer direito difuso ou

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no 8.078/1990, art. 51, § 4o). Esse aspecto deixa claro que, além de sua premissa preventiva e repressiva, não deixa de ter cará-ter constitutivo, pois cria situação jurídica nova.

Nesse diapasão, superadas as premissas iniciais desse tema, passar-se-á à análise de como o Tribunal de Justiça do Es-tado do Rio Grande do Sul tem decidido sobre o cabimento da ação civil pública para os casos de improbidade administrativa.

O posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul acerca da

aplicabilidade da LIA

O tema da ação civil pública por improbidade administra-tiva encontra-se pacificado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no que tange a seu cabimento. Na pesquisa realizada para a feitura do presente trabalho, encontraram-se 163 acórdãos no período de 1o de janeiro de 2015 a 31 de de-zembro de 2015 na busca pelos vocábulos “ação civil pública lei improbidade”. Essas decisões em 100% foram pelo cabi-mento do rito da ação civil pública para casos de improbidade administrativa.

Entretanto, somente algumas dessas decisões se pres-taram a uma análise criteriosa do cabimento do rito da ação civil pública. Somente cerca de 8% dos acórdãos analisados especificaram a razão do cabimento da ação de improbidade administrativa pelo rito da ação civil pública, e alguns apenas entraram no cerne dessa questão quando suscitadas questões diversas, como arejada por uma das partes a possibilidade de in-gresso de ação popular, e não de ação civil pública,3 ou quando questionada a legitimidade da Defensoria Pública na propositu-ra da última.4

3 Trata-se do Julgado no 70.065.844.581, que discute o cabimento da ação popular, e não da ação civil pública, para casos de improbidade administrativa.

4 Caso dos Julgados no 70.067.061.267 e no 70.065.077.406, nos quais se discute a possibilidade de ingresso da ação civil pública pela Defensoria Pública.

É a Lei no 7.347/1985 que disciplina a ação civil pública, incutindo-lhe o propósito de prevenir e reprimir danos ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio público, aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico, por infração da ordem econômica e da economia popular, ou da or-dem urbanística. Seu objeto pode ser tanto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Cabe aqui lembrar a disciplina constitucional sobre o Ministério Público: “O Ministério Público é instituição permanente, essen-cial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127 da CF/1988).

Tendo como um dos aspectos centrais servir como impor-tante canal de acesso à jurisdição, a ação civil pública tem no Ministério Público um ator importante. Com certeza, é o mais atuante em sua propositura e atuação, consoante se evidencia na análise de jurisprudências do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul e do STJ. Assim, caso não seja parte direta no processo, terá necessária intervenção na condição de fiscal da lei.

Aliás, essa atuação está plenamente respaldada pela CF, como se depreende de seu art. 129: “São funções institucio-nais do Ministério Público: I – promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; […] III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio públi-co e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos.”

A doutrina, assim como a jurisprudência, tem se posiciona-do no sentido de que a ação civil pública não deve limitar-se a buscar o ressarcimento de danos ao erário público.

Para Meirelles (2008), citando Luís Roberto Barroso, a ação civil pública tem alternatividade. Isso não impede a cumulação de pedidos em uma mesma ação, como de indenização pecu-niária ou de fazer ou não fazer. Além disso, os fins aos quais se destina a ação civil pública constam em outras normas. Exem-plo é o Código de Defesa do Consumidor (CDC), que a indica como meio para buscar a invalidação de cláusulas abusivas (Lei

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Pode-se perceber que, diante dos julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, a ação civil pública é de fato o mecanismo utilizado para a proteção do patrimônio público, dos princípios constitucionais da Administração Pública e, ainda, como método de repressão aos atos ímprobos, lesi-vos, imorais ou ilegais, conforme previsão do art. 12 da Lei no 8.429/92 e art. 3o da Lei no 7.347/1985.

Dos dados analisados, somente 8% das decisões enfrentam o cabimento da improbidade administrativa por ação civil públi-ca sem suscitar questões diversas do processo. Esse percentual é muito baixo para que se possam analisar criteriosamente as possibilidades de enfrentamento da corrupção pela LIA.

Nesse sentido, Di Pietro (2013, p. 880) aduz que:

[…] constitui pressuposto da ação civil pública o dano ou a ameaça de dano a interesse difuso ou coletivo abrangi-dos por essa expressão o dano ao patrimônio público e social, entendida a expressão no seu sentido mais amplo, de modo a abranger o dano material e o dano moral. Com a expressão direito difuso ou coletivo, constante no arti-go 129, III, da Constituição, foram abrangidos interesses públicos concernentes a grupos indeterminados de pesso-as (interesse difuso) ou toda sociedade (interesse geral); a

Pode-se verificar pelo gráfico adiante que as decisões des-se tipo de ação, em geral, não têm o condão de elucidar o tema da improbidade administrativa, pois entendem que há previsão expressa quanto ao cabimento da ação civil pública na Lei no 7.347/1985, quando esta menciona em seu art. 1o que cabe a essa demanda a proteção dos direitos coletivos e difusos, bem como a responsabilização por infrações de ordem econômica e por lesão ao patrimônio público e social.

Ainda, apega-se à CF em seu art. 37, § 4o, o qual menciona a possibilidade de sanções de cunho cível e administrativo, sem prejuízo da ordem penal, refutando, assim, qualquer alegação de inviabilidade da ação civil pública por coisa julgada em outra esfera.

Nesse tocante, o gráfico demonstra que as decisões do Tri-bunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul pouco servem como meio de elucidar o tema da improbidade administrativa, pois, embora considerem o cabimento ou não da demanda e julguem o caso concreto, pouco discutem a possível utilização de ritos diversos para essas ações e quando seria possível a utili-zação desses mecanismos repressivos de atos ímprobos. Tem-se que essa atitude seria de grande valia para os operadores do direito, sejam eles integrantes do Ministério Público, Defensoria Pública ou juízes de primeiro grau, a fim de obterem mecanis-mos de combate à corrupção com uma possível interpretação e maior compreensão sobre como o Tribunal vem decidindo ques-tões que abordem esse assunto.

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é o meio adequado para recuperação dos valores indevi-damente apropriados pelos réus, pois visa a proteção dos interesses difusos e coletivos, do patrimônio público e so-cial. 5. Os argumentos trazidos no recurso não se mostram razoáveis para reformar a decisão monocrática. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO. (Agravo no 70.063.852.149, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, relator: Sergio Luiz Grassi Beck, julgado em 15/4/2015).

Pode-se observar no julgado supra que, sendo a ação ci-vil pública o instrumento adequado para proteção dos direitos coletivos e difusos, incluindo a matéria de improbidade adminis-trativa, cabendo ao réu a comprovação de não enquadramento dos atos ímprobos, sendo esta pela descaracterização inequívo-ca da intenção do agente se desviar dos princípios basilares da Administração Pública, não basta mera conduta irregular ou até mesmo ilegal para justificar aplicação das sanções reservadas na LIA.

Cumpre destacar, ainda, que inúmeras decisões alertam para o in dubio pro societate,5 ou seja, o dever de prossegui-mento da demanda enquanto não houver certeza inequívoca da não caracterização do ato ímprobo. Assim, o objetivo maior dessa ação é garantir o bem público e proteger a sociedade da corrupção e da improbidade.

Logo, evidencia-se que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido as questões relacionadas com a improbidade administrativa com lucidez e apreço à legis-lação pátria. Embora haja ausência de explanação hermenêutica em seus julgados, demonstrando de forma contundente o cabi-mento do mecanismo da ação civil pública para conter atos de improbidade administrativa, pode-se perceber que as decisões demonstram alinhamento com o cerne da LIA, tal sendo a puni-ção daqueles que de forma comprovada utilizaram-se de cargos públicos para violar e lesar o patrimônio coletivo, cabendo-lhes sanções mais duras do que as de mera conduta ilegal.

5 A exemplo do Julgado no 70.067.243.550.

expressão interesse coletivo não está empregada, aí, em sentido restrito, como ocorre com o mandado de seguran-ça coletivo, mas em sentido amplo, como sinônimo de inte-resse público ou geral.

Moraes (2007) leciona também que o mecanismo para re-pressão dos atos ímprobos e todo e qualquer ato lesivo, ilegal ou imoral, é de fato a ação civil pública. Contudo, a caracteri-zação do ato de improbidade é fundamental para a ação civil pública por improbidade administrativa, ou seja, não cabe me-ramente a demonstração da ilegalidade, e sim a comprovação do dolo e a tentativa de iludir a boa-fé, a fim de obter proveito ilegítimo para si ou para terceiro.

Improbidade administrativa requesta como elemento sub-jetivo de sua configuração a voluntariedade do agente público, pois na conduta livre e voluntária concebeu a realização de um plano eticamente reprovável preordenada à concessão de van-tagem pessoal ou de terceiro em detrimento da Administração Pública, conforme elucida Costa (2005).

Assim, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul tem decidido de acordo com a doutrina majoritária acerca da improbidade administrativa e da necessidade de comprovação da presença de dolo, como se colaciona a seguir a ementa do Acórdão no 70.063.852.149:

AGRAVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PÚBLI-CO NÃO ESPECIFICADO. DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. RECEBIMENTO DA AÇÃO. REQUI-SITOS CONFIGURADOS. 1. A ação proposta preenche to-dos os requisitos exigidos pelos artigos 295 do CPC, tendo sido relatado todos os fatos e a participação de cada réu nos alegados atos ímprobos, estando devidamente funda-mentada a peça. 2. A exordial foi devidamente instruída com documentos que demonstram os indícios acerca da materialidade e autoria dos fatos, através do qual se carac-teriza o ato ímprobo, cumprindo a exigência do art. 17, §§ 6o e 8o da Lei no 8.429/92. Precedente deste Tribunal. 3. O Ministério Público é parte legítima para a propositura da ação civil pública, cuja competência lhe foi atribuída pela art. 129, § 1o da Constituição Federal, artigo 5o da Lei no 7.347/85 e art. 17 da Lei no 8.429/92. 4. A ação civil pública

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Diante dessas ponderações, o recorte no presente artigo será feito na análise dos recursos especiais suscitados para apre-ciação do STJ. Dos 192 acórdãos publicados em 2015 pelo STJ envolvendo o tema “ação civil pública lei improbidade”, 51 são de recursos especiais, representando 26,56%, conforme tabela a seguir. Ainda no aspecto estatístico, o que se denota é certo “equilíbrio” entre os recursos especiais providos e não providos.

Já em relação às demandas oriundas do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, apenas quatro são acórdãos de recursos especiais relacionadas especificamente com ação ci-vil pública e improbidade administrativa. Eles serão objeto de uma análise direta para identificar o posicionamento do STJ em

Dessa forma, passar-se-á a analisar a aplicabilidade e a ha-bilidade dessa norma no STJ comparando suas decisões com as do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Comparativo da aplicabilidade da LIA quando da propositura de ação civil

pública no Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul com o STJ

O propósito do presente trabalho é analisar a aplicabili-dade da ação civil pública nas ações por atos de improbidade administrativa e traçar um comparativo desse ponto nas deci-sões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul com as decisões do STJ.

Em que pese a análise da fundamentação em suas decisões, incumbe aqui registrar alguns dados para melhor elucidação do volume de ações versando sobre o tema.

A pesquisa foi realizada no site do STJ, delimitando a abrangência em “acórdãos” ao longo do ano 2015 com as se-guintes palavras: “ação civil pública lei improbidade”. O retorno da pesquisa resultou em 192 acórdãos, dos quais apenas 6% são oriundos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Levando-se em conta o número de ações apreciadas nesse Tribunal em 2015, o número de demandas oriundas dele e apre-ciadas em 2015 no STJ é bastante reduzido. Todavia, cabe aqui a ressalva de que não se está analisando as mesmas demandas em ambos os tribunais. Por óbvio, apenas como exemplo, uma demanda julgada em dezembro de 2015 no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul dificilmente poderia ter nova apreciação no STJ ainda no mesmo ano.

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cisões, pois expõem o recebimento dessas demandas de ações civis públicas por improbidade administrativa, ainda que se limi-tem a pouca fundamentação e explanação quanto à motivação do recebimento e cabimento destas. De todo modo, importa sa-lientar que esses tribunais vêm servindo a seu propósito quanto à aplicabilidade das normas constitucional e infraconstitucional, ao passo que em seus julgados aplicam a proteção dos direitos difusos da coletividade e em apreço à probidade econômica no resguardo do princípio do in dubio pro societate, ou seja, na dúvida protege-se a sociedade em face dos indícios de improbi-dade administrativa.

Nesse diapasão, são de grande valia os julgados aborda-dos neste trabalho, pois demonstram o poder de controle social e dos mecanismos de defesa do patrimônio público na defesa dos direitos da coletividade e, principalmente, a forma coerente com que nossos tribunais têm abordado assunto de tamanha complexidade que é a improbidade administrativa, com ponde-ração, embora haja a relevância de proteger o bem público sem, no entanto, deixar de garantir os direitos constitucionais do réu.

Considerações finais

Conclui-se com a presente pesquisa que os tribunais bra-sileiros, mais especificamente o STJ e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, têm se mostrado aliados à proteção do patrimônio público e dos direitos difusos da cole-tividade, haja vista que seu posicionamento de recebimento da ação civil pública por improbidade administrativa evidencia seu alinhamento com a necessidade de proteção do bem público.

Tem-se, então, que o manejo do instituto da ação civil pú-blica na persecução dos interesses difusos, direitos coletivos e do patrimônio público é primordial para que se alcancem os objetivos diante do Poder Judiciário. É nesse sentido que se tem firmado entendimento na jurisprudência, a fim de proteger o patrimônio público e a sociedade com o exercício da defesa

relação à aplicabilidade da ação civil pública como meio de res-ponsabilização para atos de improbidade administrativa.

Dos quatro recursos especiais julgados em 2015 e que tiveram como origem o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, três6 têm relação direta com o tema de ação civil pública e improbidade administrativa. Contudo, nenhum deles ataca diretamente o tema do cabimento da ação civil pública para responsabilidade em casos de improbidade administrativa.

Já um dos recursos especiais versa sobre matéria proces-sual civil. Sua inclusão no retorno da pesquisa jurisprudencial no STJ deu-se apenas por menção a precedentes similares, no REsp. 1.257.058, no sentido de que “[…] isso não impede que, a partir da sua realização, haja pertinente utilização como prova emprestada em Ações de Improbidade que envolvem os mesmos fatos, assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório”.7

A análise desse recorte feito na jurisprudência do STJ per-mite identificar que resta superada qualquer discussão quanto ao cabimento da ação civil pública em questões que envolvam atos de improbidade administrativa. Isso se evidencia tanto pela ausência de questionamento pelas partes quanto em um debate específico nos votos dos ministros nos mencionados recursos especiais. Além disso, está superada qualquer discussão quanto ao cabimento da ação civil pública em ações de improbidade administrativa pelo próprio regular conhecimento e apreciação dos recursos especiais pelo STJ.

Nesse sentido, pode-se perceber, pelas pesquisas realiza-das para feitura deste trabalho, que ambos os tribunais — tanto o STJ quanto o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul — entendem pelo cabimento da ação civil pública como instrumento de defesa em face dos atos de improbidade admi-nistrativa, motivo pelo qual há total recebimento dessas ações perante os tribunais.

Pode-se evidenciar que o STJ e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul demonstram afinidade em suas de-

6 REsp. 1.569.324/RS; REsp. 1.380.926/RS; e REsp. 1.171.503/RS.7 Trata-se do REsp. 1.257.058/RS, em que se discute a licitude de dados obtidos em interceptações

telefônicas e escutas ambientais em ação de execução fiscal.

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É possível a utilização do rito processual da ação civil pública para aplicar a lei de improbidade administrativa? Um estudo da postura do tribunal de justiça do rio grande do

sul comparado do superior tribunal de justiça tutelas à efetivação de direitos transindividuaisJuliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

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coletiva. Os resultados do levantamento jurisprudencial vão ao encontro desse fato.

O instrumento da ação civil pública como mecanismo de defesa e proteção do bem público, consoante o art. 129, III, da CF/1988, aliado à Lei no 7.347/1985, define a modalidade de controle da corrupção e atos ímprobos por meio do Poder Judiciário. Assim, esse instrumento tem sido amplamente aceito pelos tribunais e se evidencia como uma forma contundente de combate à corrupção, trazendo inúmeros benefícios às formas e ao controle social.

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Juliana Machado Fraga e Paulo José Dhiel

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INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS E AS

AÇÕES COLETIVAS: CONTENÇÃO DA LITIGIOSIDADE DE MASSA

Alexandre Lipp João1

1 Procurador de justiça e mestrando em Direito pela Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). E-mail: [email protected].

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Incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas: contenção da litigiosidade de massaAlexandre Lipp João

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Abstract

Alternative forms of dispute resolution and reduce the number of demands have been identified as necessary options against overloading of the judiciary, in order to maintain healthy female the judicial assistance, especially in the face of mass conflicts. Overloading the judiciary, today, has many causes and can be appointed from the population growth itself, the mass of legal relations, which can display accurately in the consumer market by adopting practices and standardized contracts, the emergence of new technologies, as well as an anachronistic procedural law and the lack of material and human resources in the judicial services. From this reality, efforts are aimed at achieving a balance between increased access to jurisdiction and efficient conflict resolution. procedural tools have emerged as a way to answer the call mass litigation, as the request for standardization of interpretation of federal law under the Special Courts Federal Civil (Law 10,259/2001), the overall impact on the extraordinary appeal (Law 11,418/2006) the suspension of security to prevent violation of the order, health, safety and public economy (Law 8,437/92 and 12,016/2009) and the application of uniform interpretation of the law in the Special Courts of the Treasury (Law 12,1533/2009). Unprecedented in the 1973 Code or special legislation, IRDR set out in Articles 976-987, aims to seek solutions to the mass conflicts with prior definition of a common legal interpretation to numerous repetitive actions.

Keywords: Repetitive Actions. Class Actions. Rights Homogeneous Individuals. Effectiveness and Preservation of Court Provision.

Resumo

Formas alternativas de resolução de litígios e redução do número de demandas têm sido apontadas como opções neces-sárias em face da sobrecarga do Poder Judiciário, de modo a manter hígida a prestação jurisdicional, especialmente diante dos conflitos de massa. A sobrecarga do Judiciário, nos dias atuais, tem várias causas, podendo ser apontado desde o próprio cres-cimento da população, a massificação das relações jurídicas, que se pode visualizar com precisão no mercado de consumo pela adoção de práticas e contratos padronizados, o surgimento de novas tecnologias, bem como uma legislação processual anacrô-nica e a escassez dos recursos materiais e pessoais na prestação jurisdicional. A partir dessa realidade, os esforços são voltados a alcançar um equilíbrio entre a ampliação do acesso à jurisdi-ção e a eficiente solução de conflitos. Instrumentos processuais foram surgindo como forma de atender à chamada litigiosidade de massa, como o pedido de uniformização da interpretação de lei federal no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis Federais (Lei no 10.259/2001), a repercussão geral no recurso extraordinário (Lei no 11.418/2006), a suspensão da segurança para evitar vio-lação à ordem, saúde, segurança e economia públicas (Leis no 8.437/1992 e no 12.016/2009) e o pedido de uniformização da interpretação de lei nos Juizados Especiais da Fazenda Pública (Lei no 12.1533/2009). Sem precedentes no Código de 1973 ou na legislação especial, o IRDR, previsto nos arts. 976 a 987, tem como finalidade buscar solução para os conflitos de massa, me-diante definição prévia de uma tese jurídica comum a inúmeras ações repetitivas.

Palavras-chave: Ações Repetitivas. Ações Coletivas. Di-reitos Individuais Homogêneos. Efetividade e Preservação da Prestação Jurisdicional.

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Incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas: contenção da litigiosidade de massaAlexandre Lipp João

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Esse desígnio restou perseguido, resultando do mesmo a instituição de um incidente de coletivização dos denomi-nados litígios de massa, o qual evitará a multiplicação das demandas, na medida em que suscitado o mesmo pelo juiz diante, numa causa representativa de milhares de ou-tras idênticas quanto à pretensão nelas encartada, imporá a suspensão de todas, habilitando o magistrado na ação coletiva, dotada de amplíssima defesa, com todos os re-cursos previstos nas leis processuais, proferir uma decisão com amplo espectro, definindo o direito controvertido de tantos quantos se encontram na mesma situação jurídica, plasmando uma decisão consagradora do principio da iso-nomia constitucional.

No presente trabalho, serão examinados os reflexos do novo instituto em face do direito de ação e das ações coletivas para tutela dos direitos e interesses individuais homogêneos.

Origens do incidente

O instituto, embora inovador em nosso ordenamento jurí-dico, tem suas origens no direito estrangeiro.

A Alemanha, desde 1991, incorporou ao Estatuto da Justiça Administrativa o denominado procedimento modelo (Musterverfahren), voltado à suspensão de ações homogêneas para julgamento de um só processo, tido como piloto. Além desse modelo, adotou-se procedimento (Kapitalanleger-Mus-terverfahrensgesetz ou KapMug) similar na legislação voltada ao mercado de capitais, dividido em três fases, mais próximo do instituto adotado pela legislação brasileira. A primeira fase diz respeito ao requerimento para admissibilidade, a segunda en-volve o processamento e o julgamento do caso paradigmático ou piloto, enquanto na terceira são julgados os processos ho-mogêneos a partir do resultado obtido naquele paradigmático.

Além da Alemanha, a Inglaterra também tem previsão, desde 2000, voltada à contenção da litigiosidade repetitiva pela identificação de um processo que apresente o potencial de re-produzir inúmeros outros casos similares quanto à matéria de

O processo civil, desde a edição da Lei no 7.347/1985, a cha-mada Lei da Ação Civil Pública, também passou a tratar dos

direitos difusos e coletivos em sentido estrito (NERY JR., 1992). Mais adiante, com a edição do Código de Defesa do Consumi-dor (CDC), foi disciplinada, no Capítulo II do Título III, a ação civil coletiva, voltada à proteção dos direitos e interesses individuais homogêneos. Dessa forma, dois sistemas processuais passaram a conviver, um voltado à defesa de direitos individuais, e outro, à defesa de interesses e direitos coletivos, intitulado de proces-so coletivo (ARAÚJO, 2016).

A despeito das inovações introduzidas no Código de Pro-cesso Civil de 1973 (CPC/1973), o resultado ainda mostrou-se distante, motivando, dessa forma, a elaboração de uma nova lei processual que pudesse efetivar o chamado processo justo.

O Ato no 379, de 30 de setembro de 2009, do presidente do Senado Federal instituiu comissão de juristas encarregada de elaborar anteprojeto do Novo CPC (NCPC), o qual foi aprova-do pela Lei no 13.105, de 16 de março de 2015. O incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) foi introduzido com a finalidade de conter a litigiosidade repetida.

O ministro Luiz Fux, presidente da comissão instituída com a finalidade de elaboração de um novo CPC, em correspondên-cia2 ao presidente do Senado Federal, senador José Sarney, quando apresentou as proposições iniciais voltadas à elabora-ção do anteprojeto, destacou o surgimento do incidente, com a seguinte ênfase:

A Comissão, atenta à sólida lição da doutrina de que sem-pre há bons materiais a serem aproveitados da legislação anterior, bem como firme na crença de que a tarefa não se realiza através do mimetismo que se compraz em apenas repetir erros de outrora, empenhou-se na criação de um novo código erigindo instrumentos capazes de reduzir o número de demandas e recursos que tramitam pelo Poder Judiciário.

2 Disponível em: <http://www.senado.gov.br/comunica/agencia/docs/novocpc.doc>. Acesso em: 2 nov. 2015.

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Incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas: contenção da litigiosidade de massaAlexandre Lipp João

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A suspensão independe de decisão própria, pois decorre automaticamente da admissão do incidente, devendo ser comu-nicada aos órgãos jurisdicionais competentes (art. 982, § 1o).

A comunicação da suspensão é fundamental para que as partes possam se insurgir,4 objetivando demonstrar que a questão comum a ser decidida no IRDR não é a mesma de seu processo individual. A postulação deve ser endereçada ao juiz ou relator, conforme o atual estágio de tramitação do processo. E, se o processo é aquele designado para instrução, o pedido será dirigido ao relator do IRDR. A decisão desafiará agravo de instrumento ou, se o processo estiver no tribunal, agravo inter-no (art. 1.037, § 13, do NCPC).

Se o processo individual é daqueles que exige a interven-ção do Ministério Público como fiscal da ordem jurídica, além da parte, a manifestação de inconformidade quanto à suspensão e os recursos cabíveis poderão, conforme o caso, ser apresenta-dos pelo Parquet (art. 179, I e II, do NCPC).

A suspensão do processo poderá ser parcial ou total,5 pois há casos em que o autor deduziu mais de um pedido, indepen-dentes entre si, e apenas algum se mostra compatível com a tese jurídica tratada no IRDR. Assim, a suspensão não seria inte-gral do processo, apenas em face da questão comum.

Embora a suspensão do curso prescricional das ações indi-viduais não tenha sido objeto de expressa previsão, inegável tal reconhecimento, sob pena de o IRDR acarretar grave prejuízo aos autores das ações suspensas. A prescrição, contudo, ficará suspensa até o julgamento definitivo do IRDR.

4 Enunciado no 348 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (arts. 987, 1.037, II, §§ 5o, 6o, 8o e segs.): “Os interessados serão intimados da suspensão de seus processos individuais, podendo requerer o prosseguimento ao juiz ou tribunal onde tramitarem, demonstrando a distinção entre a questão a ser decidida e aquela a ser julgada no incidente de resolução de demandas repetitivas, ou nos recursos repetitivos. (Grupo: Precedentes)” (Disponível em: <http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf>. Acesso em: 02/15/2015).

5 Art. 982, caput, I e § 3o: “Havendo cumulação de pedidos simples, a aplicação do art. 982, I e § 3o, poderá provocar apenas a suspensão parcial do processo, não impedindo o prosseguimento em relação ao pedido não abrangido pela tese a ser firmada no incidente de resolução de demandas repetitivas” (Disponível em: <http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de--Vit%C3%B3ria.pdf>. Acesso em: 10/15/2015).

fato e de direito, recebendo, então, um tratamento coletivo. Trata-se da chamada group litigation order (GLO) — ordem de litígio em grupo.

Esses procedimentos criados na Alemanha e na Inglater-ra não obstaculizaram o uso das ações coletivas, tampouco das ações individuais.

A comissão de juristas3 formada para a elaboração do ante-projeto do NCPC reconheceu, expressamente, que o incidente de resolução de demandas repetitivas teve origem no modelo alemão, ou seja, julgada uma causa-piloto, os casos homogê-neos são decididos igualmente.

No entanto, como será examinado neste estudo, o IRDR, no âmbito do Senado e da Câmara dos Deputados, recebeu tra-tamento diferenciado, distanciando-se do modelo alemão.

Nesse cenário, o processo civil brasileiro passa a contar com esse instituto, voltado a combater a litigiosidade repetiti-va, o que importa na avaliação das consequências resultantes, especialmente diante do uso já consagrado e maduro das ações coletivas, o que se fará mais adiante.

Efeitos da admissibilidade: a suspensão das ações individuais

O IRDR tem cabimento quando houver, simultaneamente, (i) efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito e (ii) risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (art. 976 do CPC).

Após o exame da admissibilidade pelo órgão colegiado, o art. 982 do NCPC prevê a suspensão dos processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou não região, respectivamente sob a competência do Tribunal de Justiça, Tri-bunal Regional Eleitoral, Tribunal Regional Federal ou Tribunal Regional do Trabalho.

3 BRASIL. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de juristas responsável pela elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Brasília, 2010. p. 21.

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A decisão terá efeito vinculante, inclusive sobre os proces-sos em andamento nos juizados especiais,6 conforme o art. 985, I, do NCPC.

Mesmo aos processos que não estejam suspensos é aplica-da a tese obtida no incidente. Na hipótese de o processo ter sido sentenciado e estar aguardando julgamento da apelação, com entendimento contrário àquele oriundo do IRDR, deve-se apli-car o art. 1.040 do NCPC, negando-se seguimento ao recurso.

Em relação aos processos que venham a ser ajuizados, a eficácia da decisão obtida no IRDR permitirá o julgamento ime-diato da improcedência do pedido (art. 332, III, do NCPC).

Para o caso de descumprimento da decisão proferida no IRDR, em relação aos processos suspensos ou não, bem como àqueles que venham a ser ajuizados, está prevista a reclamação (arts. 985, § 1o, e 988, IV e § 4o).

Um importante efeito do julgamento do IRDR refere-se à possibilidade de desistência da ação, em primeira instância, an-tevendo possível insucesso, sem necessidade de anuência do réu (art. 1.040, §§ 1o e 3o). Se a desistência ocorrer antes da con-testação, o autor não suportará custas e honorários advocatícios (art. 1.040, § 2o).

Além disso, destaca-se o poder do relator, em qualquer recurso, de julgar monocraticamente, aplicando a tese definida no incidente (art. 932, IV, c), ou julgar de plano conflito de com-petência (art. 955, parágrafo único, II).

A decisão do IRDR também dispensa a remessa necessária, quando a sentença aplicar entendimento firmado no incidente (art. 496, § 4o, III).

E, em relação à interposição do recurso extraordinário, será presumida a repercussão geral para fins de admissibilida-de, quando a decisão dos tribunais tenha contrariado a decisão obtida no IRDR (art. 1.035, § 3o, II).

6 Enunciado no 93 do Fórum Permanente de Processualistas Civis: “Admitido o incidente de reso-lução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região” (Disponível em: <http://portalprocessual.com/wp-content/uploads/2015/06/Carta-de-Vit%C3%B3ria.pdf>).

Por outro lado, durante a suspensão, o eventual pedido de tutela de urgência deverá ser apresentado ao juízo no qual se encontra tramitando o processo suspenso.

Além da comunicação da suspensão, outros efeitos são de-correntes da admissibilidade do IRDR, como a possibilidade de o relator requisitar informações a órgãos em cujo juízo tramita processo no qual se discute o objeto do incidente, que deverão ser prestadas em 15 dias, bem como intimar o Ministério Público para se manifestar no prazo de 15 dias.

Os processos individuais ou coletivos na origem devem permanecer suspensos pelo prazo-limite de um ano (art. 980), salvo se o julgamento do IRDR demorar mais e o relator do tribunal proferir decisão justificando a prorrogação (art. 980, pa-rágrafo único).

Com o julgamento do IRDR, haverá, naturalmente, o tér-mino da suspensão, caso não interposto recurso especial ou extraordinário (art. 982, § 5o).

Efeitos do julgamento

O julgamento do mérito do IRDR implica reconhecer que a tese jurídica resultante da questão de direito será, obrigato-riamente, aplicada a todos os processos repetitivos, individuais ou coletivos, que estavam suspensos ou que sejam instaurados após o julgamento de mérito do incidente (DIDIER JR.; ZANETTI JR., 2016).

A decisão do IRDR, dessa forma, alcançará todos os pro-cessos que tenham idêntica questão de direito e que estejam tramitando na área de jurisdição do respectivo tribunal, salvo se a extensão territorial nacional tiver sido reconhecida pelos tribunais superiores (art. 982, § 3o) ou a decisão do incidente ti-ver sido objeto de recurso especial ou extraordinário (arts. 982, § 5o, e 987).

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uma forma de opt-out. O IRDR não permite, pois a vinculação é absoluta, independentemente de requerimento, além de não haver opção de exclusão.

A última inconstitucionalidade é decorrência da submissão dos Juizados Especiais às decisões prolatadas no IRDR, pois não há vínculo de subordinação entre o Juizado Especial e o Tribunal Regional Federal ou Tribunal de Justiça.

A tese jurídica fixada no IRDR pelo Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal será aplicada aos processos que tra-mitem nos Juizados Especiais do respectivo Estado ou região, conforme o art. 982, I, do NCPC. Ora, enquanto o juiz de direito é vinculado ao Tribunal de Justiça, o juiz do Juizado Especial o é à Turma Recursal.

Em face das inconstitucionalidades apontadas e das crí-ticas à própria finalidade do IRDR, mostra-se pertinente, nesta pesquisa, resgatar a importância histórica e a maturidade das ações coletivas para a proteção de direitos e interesses coleti-vos, que também se mostram imprescindíveis à contenção da litigiosidade repetitiva.

O IRDR e as ações coletivas

A admissibilidade do IRDR, entre outros efeitos, implica suspensão dos processos individuais ou coletivos no âmbito da jurisdição do Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, bem como Juizados Especiais. A suspensão de todos os pro-cessos individuais ou coletivos em curso no território nacional dependerá da interposição de pedido ao Supremo Tribunal Fe-deral (STF) ou Superior Tribunal de Justiça (STJ) pelas partes, Ministério Público ou Defensoria Pública.

Resta, então, indagar se o IRDR poderia determinar a sus-pensão de uma ação coletiva.

Antes de enfrentarmos a pergunta, convém destacar que a ação coletiva7 é um instrumento processual já consagrado, fruto

7 Utilizamos a expressão ação coletiva com o mesmo significado de ação civil pública, embora te-

Outro efeito refere-se à presunção de omissão da deci-são que deixar de considerar o julgamento do IRDR, permitindo, como consequência, o cabimento de embargos de declaração (art. 1.022, parágrafo único, I). O juiz, portanto, deverá obri-gatoriamente se manifestar sobre o julgamento realizado no âmbito do incidente.

Efeito do julgamento do IRDR, outrossim, refere-se à questão de direito envolvendo serviço concedido, permitido ou autorizado. O resultado do julgamento deverá ser comunicado ao órgão, ao ente ou à agência reguladora encarregada da fisca-lização da aplicação da tese (art. 985, § 2o).

O exame da constitucionalidade do IRDR

A doutrina aponta quatro principais inconstitucionalidades de que padece o instituto do IRDR (NERY JR.; NERY, 2015, p. 1966).

A primeira diz respeito à ofensa à independência funcional dos juízes e à separação funcional dos Poderes. A vinculação da tese jurídica aos juízes de hierarquia inferior ao órgão prolator da decisão não tem previsão na Constituição Federal.

A segunda refere-se à violação do devido processo legal e contraditório, pois a decisão favorável e, especialmente, a des-favorável alcançarão com força vinculante todos os processos repetitivos. Essa determinação do NCPC viola flagrantemente o devido processo legal e o princípio do contraditório. Além dis-so, é ausente o controle da representatividade como condição para que a decisão de mérito desfavorável a vincule aos proces-sos dos litigantes ausentes do incidente processual coletivo.

A terceira inconstitucionalidade abrange a violação à ga-rantia do direito de ação na ausência de previsão do direito de o litigante requerer sua autoexclusão do julgamento coletivo.

O autor do processo suspenso não tem opção de requerer o prosseguimento de sua ação. No modelo alemão, ele tem a opção de requerer sua exclusão do procedimento por meio de

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Essa singela constatação já permite demonstrar que o IRDR não tem a mesma amplitude e dimensão das ações coleti-vas, posto que restrito a questões de direito.

Quanto aos efeitos da decisão prolatada no IRDR e nas ações coletivas, novamente podemos verificar que as sentenças prolatadas nas ações coletivas têm muito maior eficácia, pois estarão atreladas à natureza dos direitos e interesses tutelados e à dimensão do dano, ou seja, local, regional ou nacional (MA-ZZILLI, 2007).

O IRDR tem seus efeitos limitados à jurisdição do Tribu-nal de Justiça ou Tribunal Regional Federal respectivo e só terá eficácia nacional se houver interposição de recurso especial ou extraordinário.

Nas ações coletivas, como se disse, a eficácia da sentença será erga omnes ou ultra partes (art. 103 do CDC). A limitação territorial imposta ao art. 16 da Lei da Ação Civil Pública pela Lei no 9.494/1997 vem sendo afastada pelo STJ (MANCUSO, 2014).

Dessa forma, se um produto foi considerado defeituoso, reconhecendo-se o dever do fornecedor (réu) de indenizar to-dos os lesados (sentença condenatória genérica — art. 95 do CDC), e a decisão transitar em julgado após exame do recurso ao Tribunal de Justiça, a eficácia será irrestrita, ou seja, o reco-nhecimento do defeito não poderá ser contestado em qualquer outra ação, assim como o dever de indenizar os lesados, por-quanto cobertos pela autoridade da coisa julgada. Além disso, os consumidores localizados em qualquer comarca no Brasil po-dem, com base na cópia ou certidão da sentença, aproveitar para liquidar e executar.

Não há o risco de existirem ações coletivas idênticas, pois a propositura da demanda, conforme o art. 2o, parágrafo único, da Lei da Ação Civil Pública, prevenirá a jurisdição para outras idênticas (MAZZILLI, 2007).

Dessa forma, é necessário definir o juízo competente a partir das regras previstas no art. 2o, caput, combinado com o art. 93, I e II, do CDC. Se o dano é regional ou nacional, a com-petência será concorrente entre o juízo da capital do Estado

da harmonização das normas previstas na Lei no 7.347/1985 e do Título III do CDC.

As ações coletivas permitem, pela ampla dilação probató-ria, a obtenção de provimentos judiciais voltados à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos em sentido estrito e indi-viduais homogêneos. As duas primeiras categorias identificam litígios essencialmente coletivos, enquanto a terceira, litígios acidentalmente coletivos (MOREIRA, 1991, p. 187).

A Lei da Ação Civil Pública, que completou 30 anos de vigência, visa à proteção do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio cultural, da ordem econômica, da ordem urbanís-tica, do patrimônio público e social, da honra e da dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, entre outros direitos e interesses difusos e coletivos (MANCUSO, 2013). O Capítulo II do Título III do CDC, por sua vez, instituiu a chamada ação civil coletiva para reparação das pessoas lesadas (individuais homogêneos).

Nessas ações coletivas, são admitidos todos os pedidos necessários à efetiva prevenção ou reparação, conforme o art. 83 do CDC (DIDIER JR.; ZANETTI JR., 2011).

Além disso, as ações coletivas versam sobre questões de fato e de direito. A tal respeito, pode-se citar a quantidade de temas oriundos do direito do consumidor que podem ser ob-jeto de ações coletivas, como as práticas comerciais abusivas, entre elas publicidade, oferta e cobranças, colocação no mer-cado de consumo de produtos impróprios ou defeituosos e os consequentes prejuízos e danos decorrentes. Enfim, as ações coletivas de consumo, na grande maioria das vezes, versam sobre questões de fato, não apenas sobre questões de direito (OSNA, 2014).

Assim também ocorre em relação a ações civis públicas ambientais, urbanísticas, da criança e do adolescente, do idoso, da ordem econômica, em que são enfrentadas questões de fato, além de questões de direito (MANCUSO, 2014).

nham origens distintas em nosso ordenamento jurídico. Ambas se completam em face do micros-sistema resultante da complementação da Lei no 7.347/1985 pelo Título III do CDC.

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Incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas: contenção da litigiosidade de massaAlexandre Lipp João

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A par dessas considerações sobre a prevalência ou desca-bimento do IRDR em face da ação coletiva, devem ser levadas em consideração, ainda, as apontadas inconstitucionalidades.

Conclusão

Como vimos anteriormente, o IRDR é, inegavelmente, uma das mais significativas alterações introduzidas no NCPC (DIDIER JR.; ZANETTI JR., 2016), cuja finalidade é dar solução à litigio-sidade de massa, mediante a obtenção de uma tese jurídica idêntica em um chamado processo-modelo ou causa-piloto, a ser aplicada a todos os processos, atuais ou futuros, que se ocu-pem dessa mesma tese.

O IRDR, portanto, pressupõe a efetiva repetição de pro-cessos, a identidade da questão de direito que se repete e o risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (art. 976, I e II, do NCPC), pressupondo ampla publicidade para alcançar a maior efetividade possível.

É reconhecido papel relevante ao Ministério Público, que detém legitimidade concorrente para a instauração do proce-dimento ou, não sendo o autor, oficiará como fiscal da ordem jurídica. Caso o autor do incidente desista ou abandone, o Mi-nistério Público poderá assumir a titularidade. Além disso, em qualquer das formas de atuação, poderá requerer a realização de diligências com o objetivo de elucidar a questão de direito e interpor embargos de declaração, recurso especial ou recurso extraordinário.

Por outro lado, o IRDR suscita controvérsia sobre algumas inconstitucionalidades, que certamente serão objeto de exame pelo Judiciário tão logo o IRDR passe a ser utilizado.

Merecerá, igualmente, manifestação do Judiciário as in-terações e os reflexos do IRDR em face da consagrada ação coletiva. Como vimos anteriormente, há uma utilidade bem maior no uso da ação coletiva em face do IRDR, que se limita a questões de direito, enquanto aquela também permite veicular

ou do Distrito Federal, observando-se a prevenção. Uma vez definido o único juízo competente, a eficácia da sentença, após o esgotamento dos recursos cabíveis, observará o art. 103 do CDC, já mencionado (GRINOVER, 2007).

Em relação às ações individuais que possam discutir a mes-ma matéria de fato e de direito veiculada em uma ação coletiva, a solução, atualmente, é a suspensão de ofício, evitando a des-necessária sobrecarga do Judiciário. Uma vez procedente a ação coletiva, haverá o transporte dessa procedência para as ações que estavam suspensas, partindo para a fase de cumprimento de sentença (OSNA, 2014).

Observadas corretamente essas regras, vimos que não é possível a repetição de ações coletivas, o que afasta a instaura-ção do IRDR em relação à ação coletiva.

Poder-se-ia admitir o IRDR em relação à matéria de direito que possa ser comum entre ações coletivas e ações individuais. Mas, se essas ações individuais foram suspensas de ofício pelo juízo, após tomar conhecimento da propositura de ação coletiva, parece que o requisito previsto no art. 976, II, estaria ausente.

Não se pode perder de vista que a ação civil coletiva8 tem por objetivo ampliar o acesso à Justiça, a otimização, a econo-mia e a rapidez da prestação da jurisdição, pois uma única ação coletiva pode evitar a propositura ou suspender o andamento de centenas ou milhares de ações individuais. E, se a ação civil coletiva é julgada improcedente, diferentemente do IRDR, não prejudica o direito de ação de cada cidadão.

Por outro lado, poderia ser instaurado o IRDR em uma ação coletiva? Não há, em tese, óbice, basta que a ação coletiva te-nha o potencial de ser o processo-modelo. E, em se tratando de ação civil coletiva para reparação dos lesados, essa perspectiva é bem maior. Aqui, será necessário avaliar se eventuais ações in-dividuais já foram ajuizadas e estão suspensas, o que esvaziaria o requisito previsto no inc. II do art. 976 do NCPC.

8 Utilizamos a terminologia expressa do art. 91 do CDC.

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Incidente de resolução de demandas repetitivas e as ações coletivas: contenção da litigiosidade de massaAlexandre Lipp João

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MOREIRA, J. C. B. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo, v. 61, p. 187, jan. 1991.

NERY JR., N. Aspectos do processo civil no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Re-vista dos Tribunais, n. 1, p. 200-221, 1992.

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OSNA, G. Direitos individuais homogêneos: pressupostos, fun-damentos e aplicação no processo civil. Direção de Luiz Guilherme Marinoni. Coordenação de Sérgio Cruz Arenhart e Daniel Miti-diero. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. Coleção O Novo Processo Civil.

questões de fato, cuja eficácia da sentença é erga omnes ou ul-tra partes, de acordo com a dimensão local, regional ou nacional do dano, e que também prevê a suspensão das ações individuais como forma de preservar a função jurisdicional do Estado em face das ações repetitivas.

Dificilmente o IRDR alcançará o objetivo de evitar a liti-giosidade de massa, pois foi limitado ao exame de questões de direito. Considerando-se apenas os conflitos consumeristas, como se disse, que têm o potencial de gerar milhares de ações repetitivas, e também envolvem questões de fato, o IRDR sim-plesmente não terá aplicação, ou sua aplicação será limitada.

Referências

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JUSTIÇA AMBIENTAL E A TUTELA DO MEIO AMBIENTE: UMA ANÁLISE

DA UTILIZAÇÃO DO TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA NO CASO

DA POLUIÇÃO ATMOSFÉRICA EM RIO GRANDE/RS

Vanessa dos Santos Moura1 Anderson Orestes Cavalcante Lobato2

1 Bacharela em Direito. E-mail:<[email protected]>.2 Doutor em Direito Público. E-mail: <[email protected]>.

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Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente: uma análise da utilização do termo de ajustamento de conduta no caso da poluição atmosférica em rio grande/rsVanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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Abstract

The research aims to demonstrate the importance of the Conduct Adjustment Agreement (TAC) in the protection of the atmospheric air through the analysis of extra-judicial activities of the First Prosecutor’s Specialized Office of the Prosecution of the State of Rio Grande do Sul (MPRS) in the negotiation, and subsequent assignment of the agreement that led to the implementation of the Monitoring Station of the Air Quality (EMQAr) installed in Rio Grande/RS. The research problem was to perceive the station as a measure of environmental justice that lessened the deterioration of the atmospheric air quality from the municipality due to the pollution produced by fertilizer industries. The study sought subsidies through particular micro/local situation analysis to think about the pollution problem on a larger scale. The research was organized in four axes. Firstly we analyzed the city of Rio Grande on terms of the air pollution problem, and located the Judicial District of Rio Grande. Per second, we investigated the Conduct Adjustment Agreement as an environmental protection instrument, analyzing its role. Per third, we made a critical analysis of the instrument compared to the legalization of environmental issues. We brought the contri-bution of contemporary theorists – Ulrich Beck, Boaventura de Sousa Santos, Nicklas Luhmann– who helped to apprehend the sociological context in order to understand the TAC as a possi-bility that the Brazilian Law has to oxygenate the dynamics of litigations, to rethink the excessive judicialization of demands that could be better resolved if there were negotiations with those under the jurisdiction. Per fourth, we analyzed the EMQAr as an instrument of environmental justice. The methodology consisted of a literature review; analysis of data collected in the institutional platform from the MPRS; analysis of the TAC con-tent and also of the production process and pollutants.

Keywords: Atmospheric pollution. Conduct Adjustment Agreement. Environmental justice. Judicialization of environ-mental conflicts.

Resumo

A pesquisa teve como proposta demonstrar a importância do instrumento Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) na tutela do ar atmosférico através da análise da atuação extrajudicial da Pri-meira Promotoria de Justiça Especializada do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) na negociação e posterior firmatura de compromisso que culminou com a implantação da Es-tação de Monitoramento da Qualidade do Ar (EMQAr) instalada no Município do Rio Grande/RS. O problema de pesquisa consiste em perceber tal instalação como uma medida de justiça ambiental que teve impacto positivo na redução da deterioração da qualidade do ar atmosférico da municipalidade em razão da poluição produzida pelas indústrias de fertilizantes. O trabalho buscou subsídios, por intermédio da análise de determinada situação micro/local, para pensar o problema da poluição em escala maior. A pesquisa organi-zou-se em quatro eixos. Primeiramente, situou-se o município do Rio Grande relativamente ao problema da poluição do ar e localizou-se a Comarca do Rio Grande no concernente à divisão administrativa proposta pelo MPRS. Por segundo, perquiriu-se o Termo de Ajusta-mento de Conduta como instrumento de tutela do meio ambiente, analisando-se sua função. Por terceiro, fez-se uma análise crítica do instrumento quando comparado à judicialização das questões ambientais. Trouxe-se a contribuição de teóricos contemporâneos – Ulrich Beck, Boaventura de Sousa Santos, Nicklas Luhmann– que auxiliaram na apreensão do contexto sociológico para compreender o TAC como uma possibilidade que o ordenamento pátrio possui para oxigenar a dinâmica do trâmite judicial, de modo a repensar a excessiva judicialização de demandas que poderiam ser mais bem solucionadas caso houvesse negociação com o administrado. Por quarto, analisou-se a EMQAr como instrumento de justiça ambien-tal. A metodologia consistiu em revisão bibliográfica,e análise de dados coletados na plataforma institucional do MPRS, do conteúdo ajustado no TAC e do processo produtivo e poluentes.

Palavras-chave: Judicialização dos conflitos ambientais. Jus-tiça ambiental. Poluição atmosférica. Termo de ajustamento de conduta.

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Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente: uma análise da utilização do termo de ajustamento de conduta no caso da poluição atmosférica em rio grande/rsVanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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O presente estudo3 teve como proposta fundamental de-monstrar a importância do instrumento Termo de Ajustamento de Conduta na tutela do ar atmosférico por meio da análise da atuação extrajudicial da Primeira Promotoria de Justiça Espe-cializada do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPRS) na negociação e posterior firmatura de Compromisso que culminou com a implantação da Estação de Monitoramen-to da Qualidade do Ar (EMQAr) instalada no município do Rio Grande/RS.

O problema de pesquisa girou em torno de perceber tal instalação como uma medida de justiça ambiental que teve im-pacto positivo na redução da deterioração da qualidade do ar atmosférico da municipalidade em razão da poluição produzida pelas indústrias de fertilizantes locais. Com base nesse ques-tionamento, buscaram-se subsídios, por intermédio da análise de determinada situação micro/local (i.e., do município/comarca do Rio Grande), para pensar o problema da poluição em escala maior.

A pesquisa organizou-se em quatro eixos. Primeiramente, situou-se o município do Rio Grande relativamente ao proble-ma da poluição do ar e localizou-se a comarca do Rio Grande no concernente ao MPRS. Em seguida, perquiriu-se o Termo de Ajustamento de Conduta como instrumento de tutela do meio ambiente, analisando-se sua função. Posteriormente, fe-z-se uma análise crítica do instrumento quando comparado à judicialização das questões ambientais. Trouxe-se a contribui-ção de teóricos contemporâneos – Ulrich Beck, Boaventura de Sousa Santos, Nicklas Luhmann –, que auxiliaram na apreensão do contexto sociológico para compreender o TAC como uma possibilidade que o ordenamento pátrio possui para oxigenar a dinâmica do trâmite judicial, de modo a repensar a excessiva judicialização de demandas que poderiam ser mais bem solucio-nadas caso houvesse negociação com o administrado. Por fim, analisou-se a EMQAr como instrumento de justiça ambiental. A

3 pesquisa desenvolvida na qualidade de trabalho de conclusão de curso do curso de Direito da Uni-versidade Federal do Rio Grande (FURG), sob orientação do prof. dr. Anderson Lobato, tendo sido defendido e aprovado em dezembro de 2015

O ordenamento jurídico pátrio prevê o direito ao meio am-biente ecologicamente equilibrado como um direito

fundamental, vide caput do art.225 da Constituição Federal. Calha destacar que, diferentemente dos textos constitucionais prévios, a Lei Maior promulgada em 1988 destinou ao meio am-biente um capítulo próprio, a saber, o “Capítulo VI ‒ Do Meio Ambiente”, que se acha inserto no “Título VIII ‒ Da Ordem So-cial”. Na mesma senda, frise-se que o legislador disciplinou, pois, um dos conteúdos normativos mais progressistas quando comparado a outros textos constitucionais, prevendo um con-junto articulado de comandos, obrigações e instrumentos para que fosse tutelado e efetivado o referido direito fundamental.

Houve, também, o estabelecimento de uma responsabili-dade compartilhada entre o Poder Público e a coletividade com o fito de preservar o meio ambiente. Inserido nessa primeira categoria, na qualidade de órgão estatal fiscalizador, está o Ministério Público, a quem o legislador atribuiu funções insti-tucionais ‒ insculpidas nos arts.127 e seguintes da Carta Magna ‒ para que fosse adequadamente tutelado o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Contudo, o cenário de progressiva degradação ambiental ‒ especialmente da qualida-de do ar atmosférico, que é o que interessa a esta pesquisa ‒ vem desafiando a capacidade de salvaguarda ministerial, que se vê compelido a atuar nas frentes processual/judicial e extra-processual/administrativa para que seja preservada a higidez ambiental para as presentes e futuras gerações.

Diante dessa conjuntura, mister se faz o estudo porme-norizado dos instrumentos passíveis de utilização pelo parquet que, segundo apontam a doutrina e as pesquisas acadêmicas, reveste-se de eficiência e eficácia na tutela do meio ambiente ‒ entendido como um direito metaindividual, na modalidade in-teresse difuso. Dentre esses mecanismos, optou-se pela análise do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), também chama-do de Compromisso de Ajustamento de Conduta, instrumento extraprocessual que pode figurar como alternativa prévia à in-vocação do Judiciário para dirimir os conflitos de interesse de caráter metaindividual.

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Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente: uma análise da utilização do termo de ajustamento de conduta no caso da poluição atmosférica em rio grande/rsVanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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isso impacta severamente na higidez atmosférica e na saúde humana.

Vistos os elementos indispensáveis para compreender o problema da poluição no município do Rio Grande partido das indústrias de fertilizantes, passa-se à análise da situação da co-marca do Rio Grande. Mais especificamente, buscou-se trazer elementos para entender a atuação da Primeira Promotoria de Justiça Especializada de Rio Grande, encarregada da matéria ambiental, sobretudo sua atuação extrajudicial e, dentro desta, do andamento dos TACs.

Há de se destacar que ao Ministério Público é atribuída a função constitucional de – conjuntamente com outros inte-grantes do Poder Público e a coletividade – zelar pelo meio ambiente saudável. Cediço que a Constituição Federal de 1988 ampliou as funções institucionais do parquet; calha trazer a de-finição disposta no caput do art. 127, verbis: “[...] é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incum-bindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis».5

Entre as suas funções institucionais, que se acham elen-cadas no art. 129, destaca-se o inciso III, no qual tem-se que cabe ao órgão ministerial “promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. As-sim, na qualidade de instituição estatal detentora de parcela da soberania do Estado, vê-se a existência de expressa previsão constitucional de sua legitimidade para agir quando ameaçados os bens supramencionados. Em outras palavras, o Ministério Público detém, pois, a atribuição constitucional de zelar pelo respeito aos direitos assegurados tanto na Constituição comona legislação infraconstitucional.

A doutrina é contumaz em apontar que a nova configura-ção institucional do Ministério Público, o surgimento da ação civil pública e a elaboração de um conceito de direito de massa,

5 A Lei Orgânica do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul reproduz ipsis litteris o texto constitucional no seu art. 1º, caput.

metodologia consistiu em revisão bibliográfica; análise de dados coletados na plataforma institucional do MPRS; análise do con-teúdo ajustado no TAC e do processo produtivo e poluentes.

Situando o município e a comarca do Rio Grande/RS

Rio Grande é, de forma geral, um município industriali-zado e que desde os anos 2000 vem se desenvolvendo como decorrência da expansão e diversificação dos serviços logísticos portuários, com destaque àqueles relacionados à carga contei-nerizada. Num primeiro momento, houve um forte investimento nos projetos ligados ao setor naval e, quase que imediatamente, na sequência, assistiu-se à expansão (e, em alguns casos, à recu-peração) da indústria de fertilizantes, com a instalação de várias empresas misturadoras e a intenção das empresas industriais já consolidadas em ampliar as suas instalações ‒ justamente o tipo de empreendimento que interessou à pesquisa.

Houve a instalação de diversos empreendimentos no muni-cípio, dos quais se destacaram duas produtoras de fertilizantes químicos:TIMAC Agro Indústria e Comércio de Fertilizantes Ltda. (integrante do Grupo Roullier) e Yara Brasil Fertilizantes S/A,4empresas compromissadas no TAC objeto de estudo – fir-mado nos autos do Inquérito Civil nº 00852.00072/2004. No pertinente aos poluentes lançados na atmosfera em decorrência do processo produtivo de fertilizantes (as fases de preparação da matéria-prima, acidulação e granulação), quais sejam, ma-teriais particulados, amônia e compostos fluoretados, importa destacar 1) que os procedimentos de fabricação liberaram gases na atmosfera; 2) que o uso de pás carregadoras lança material particulado na atmosfera; 3) que se faz uso de amônia, entre outros produtos químicos nocivos à saúde humana – e que tudo

4 Ambas as indústrias, Timac e Yara, são categorizadas, pela Fundação Estadual de Proteção Am-biental Henrique Luiz Roessler/RS (FEPAM), como “químicas” (inscritas sob Código C20) e de alto potencial poluidor, cujas atividades acham-se cadastradas sob o código 2.020,40, isto é, seus licen-ciamentos referem-se à “FABRICAÇÃO DE FERTILIZANTES E AGROQUÍMICOS”.

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Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente: uma análise da utilização do termo de ajustamento de conduta no caso da poluição atmosférica em rio grande/rsVanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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que apresente os dados em uma interface amigável ao usuário, tal aplicativo carece de dados aprimorados, inexistindo estatís-tica de produtividade e efetividade da atuação, especialmente a extrajudicial. Se por um lado vê-se claramente a atuação do MPRS em números, por outro há deficiência na apresentação da atuação qualitativamente.

Na seção “Mapa das Regiões Administrativas”, vê-se que o estado encontra-se dividido em 16 regiões administrativas. Rio Grande situa-se, dentro da divisão da atuação do parquet, na região administrativa Sul, sendo o único município integrante da comarca de Rio Grande. Observa-se que houve a instauração de 69 expedientes relacionados à poluição atmosférica na re-gião administrativa Sul nos anos de 2011 até meados de 2015, sendo que 8 referem-se à comarca do Rio Grande:

Tabela 1 - Expedientes relacionados à poluição atmosférica na re-gião administrativa Sul instaurados de 2011 a meados de 2015

Comarca Nº de expedientes instaurados

Porcentagem

Arroio Grande 8 11,6%

Camaquã 10 14,5%

Canguçu 2 3%

Herval 0 0%

Jaguarão 3 4,3%

Pedro Osório 0 0%

Pelotas 22 32%

Pinheiro Machado 0 0%

Piratini 9 13%

Rio Grande 8 11,6%

Santa Vitória do Palmar 3 4,3%

São José do Norte 1 1,4%

São Lourenço do Sul 3 4,3%

TOTAL = 69 TOTAL = 100%Fonte: Seção “Atuação Região Administrativa” do Ministério Público do

Estado do Rio Grande do Sul (dados organizados pelos autores).

Em estrita observância dos dados, percebe-se que os números da Primeira Promotoria de Justiça Especializada de Rio Grande estariam aquém das demais comarcas da região

transindividual, difuso ou coletivo em diversas áreas de inte-resse social (das quais se destaca o meio ambiente), são todos fenômenos intimamente relacionados entre si e que se explicam pelas necessidades resultantes das transformações ocorridas no país.6 Daí que o “novo” Ministério Público que surge a partir de 1988 possui não só importantes garantias institucionais e pes-soais, com possibilidade de atuação nas já tradicionais searas penal e cível, mas também lhe é viabilizada a atuação extraju-dicial, e “com os poderes de investigação e de utilizar outras medidas extrajudiciais para a defesa do patrimônio público e social” (RODRIGUES, 2011, p. 59).

O direito pátrio municiou o parquet de consideráveis instrumentos judiciais para levar a efeito a tutela dos direitos metaindividuais; nomeadamente, são a ação popular, a ação civil pública, a ação coletiva, a ação de improbidade administrativa, o mandado de segurança coletivo e o mandado de injunção co-letivo. Por seu intermédio– ou na condição de autor, ou como custus legis –, poderá o Ministério Público agir para resguardar os interesses da coletividade. No pertinente à atuação extrajudi-cial, esta pode se dar através das audiências públicas, reuniões, procedimento administrativo preliminar, inquérito civil, proce-dimento investigatório criminal, recomendações e, destaca-se, termo de ajustamento de conduta. Nessa atuação, o Ministério Público toma conhecimento das demandas oriundas da socie-dade, podendo instaurar de ofício procedimentos com natureza investigatória para a tutela dos direitos metaindividuais.

É importante situar o município do Rio Grande no que se refereà divisão administrativa por comarcas proposta pelo MPRS. O sítio virtual do órgão dispõe de seção intitulada “Dados Aber-tos MPRS”, no qual há aplicativo que permite a interação do usuário com os dados catalogados no portal. No entanto, ainda

6 É neste exato sentido o entendimento de Geisa de Assis Rodrigues (2011, p. 57), que, dissertando sobre o Estado Democrático de Direito e o Ministério Público, assevera: “Não se deve a uma mera casualidade o fato de o mesmo texto constitucional que implementou o Estado Democrático de Direito no Brasil ter sido responsável pela nova essência do Ministério Público. Na verdade, nos países que tiveram processos constituintes similares ao brasileiro também foram concebidas insti-tuições destinadas primordialmente à defesa dos interesses da sociedade, especialmente em face de violações perpetradas pelo Poder Público, como o ombudsman ou o defensor do povo”.

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Justiça ambiental e a tutela do meio ambiente: uma análise da utilização do termo de ajustamento de conduta no caso da poluição atmosférica em rio grande/rsVanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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pecializada de Rio Grande ao longo do marco temporal definido anteriormente deu-se da seguinte forma: 1) Outras hipóteses ambientais com 1.174 expedientes (77,80%); 2) Poluição Sonora com 259 (17,16%); 3) Fauna com 32 (2,12%); 4) Resíduos Sólidos (urbanos, industriais, hospitalares) com 17 (1,13%); 5) Flora com 10 (0,66%); 6) Poluição Hídrica (efluentes domésticos etc.) com 8 (0,53%); 7) Poluição Atmosférica com 8 (0,53%); 8) Poluição Vi-sual com 1 (0,07%). Tais dados podem ser observados no gráfico extraído da referida seção:

Figura 1 - Atuação da Primeira Promotoria de Justiça Especializada de Rio Grande

Fonte: Seção “Atuação por Comarca” do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (informações do gráfico filtradas pelos autores).

Sobre o, respeitante ao conjunto Atividade Extrajudicial, no atinente às entradas, nos Grupos de Procedimentos, aplican-do os mesmos filtros de Comarca (Rio Grande) - Assunto (Meio Ambiente) - Assunto (Defesa Comunitária/Poluição Atmosférica), houve a entrada de 3 Notícias de Fato (representando 37,50% das entradas) e 5 Investigatórios (representando 62,50%), totali-zando os 8 procedimentos. O tipo de procedimento instaurado pela Primeira Promotoria de Justiça Especializada de Rio Gran-de foi: 4 Inquéritos Civis(50%), 3 Atendimentos (37,50%) e 1 Procedimento Preparatório (12,50%). Há de se pontuar que

administrativa Sul. Nesse sentido, veja-se que Camaquã, por exemplo, município muitíssimo menos industrializado que Rio Grande, conta com mais expedientes instaurados a respeito da poluição atmosférica.

Há de se considerar, contudo, que a análise quantitati-va não reflete o aspecto qualitativo dos expedientes levados a efeito. É que as variáveis disponibilizadas no aplicativo não comportam a complexidade das situações que existem na práti-ca. À guisa de exemplo, há de se mencionar que um expediente a tratar da poluição atmosférica produzida por pequeno em-preendimento – como uma padaria, oficina de pintura de carros, entre outros – é considerado, quantitativamente, da mesma for-ma que um procedimento relacionado a um complexo industrial – o que reforça a crítica ao aspecto qualitativo da informação da seção “Dados Abertos MPRS”.

A referida seção ainda permite, via aplicativo, verificar a atuação tanto judicial como extrajudicial (que é o que interessa a esta pesquisa, particularmente) das comarcas, individualmente ou em gráfico comparativo, ao longo do tempo. Nesse sentido, verifica-se a disponibilização de dados particularizados da atua-ção das promotorias de Justiça por área. O conceito de “Área”, trazido no referido Glossário, define-a como a “esfera de abrangência de atuação do Ministério Público: Cível, Criminal, Defesa da Cidadania, Defesa Comunitária, Infância e Juventude e Eleitoral”.

In casu, fala-se nos dados referentes à atuação da Primeira Promotoria de Justiça Especializada de Rio Grande, incumbida da salvaguarda do meio ambiente (Defesa Comunitária), cujo ti-tular é, atualmente, o promotor de Justiça dr. José Alexandre da Silva Zachia Alan. Com efeito, dentro das hipóteses de “Defe-sa Comunitária”, tem-se a classificação em: 1) Outras hipóteses ambientais; 2) Fauna; 3) Flora; 4) Resíduos Sólidos (urbanos, in-dustriais, hospitalares); 5) Poluição Sonora; 6) Poluição Hídrica (efluentes domésticos etc.); 7) Poluição Atmosférica; 8) Poluição Visual.

Por intermédio do uso dos filtros, observou-se, por primeiro, que a atuação da Primeira Promotoria de Justiça Es-

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promotoria no atinente à investida na atuação extrajudicial para a solução de conflitos ambientais. É que cediço o (ainda) bai-xo sucesso nas tentativas conciliatórias em todas as esferas do direito.

Ademais, há de se ponderar que parte desse desfecho pode ser atribuída ao administrado, que talvez não veja vanta-gens na firmatura do termo. Conforme ver-se-á adiante, não há obrigatoriedade na adesão ao compromisso; cuida-se de uma negociação, portanto bilateral, em que, caso um dos compro-missados creia que o enfrentamento de ação judicial lhe seja mais vantajoso, por certo não fará a opção pela solução extra-judicial. Da mesma forma, em razão da independência entre as esferas cível e penal, muitos compromissos deixam de ser firma-dos – é que, quando o dano já ocorreu, e, a depender do caso, um crime já foi cometido, a firmatura do termo livrar-lhe-á do ajuizamento da ação civil pública, mas não da ação penal pública (que segue incondicionada).

Se por um lado o parquet deve investir na solução negocia-da dos conflitos, por outro é preciso destacar que não depende somente da instituição os bons resultados da negociação; mais, em razão do conteúdo negociado ser direito indisponível (in casu, mais especificamente, direito difuso), a transação precisa-rá ter limites muitíssimo bem estabelecidos – o que pode não ser, no entendimento do administrado, a melhor solução para si. Assim, fica constatado que as causas pelas quais o Ministério Público eventualmente deixa de firmar os ajustamentos – e po-dem ser inúmeras – ainda não são contempladas nos números fornecidos pela seção “Dados Abertos MPRS”.

Por certo, tal levantamento não traz ao leitor as minúcias das atividades extrajudiciais levadas a cabo pelo parquet – e este não é o intuito desta sondagem. Os elementos trazidos serviram para analisar o TAC que foi objeto de estudo dentro de um contexto de atuação da promotoria, entendida como um órgão preocupado com a tutela efetiva da higidez ambiental e que, para tanto, investe na solução extrajudicial, especialmente no ajuste preventivo da conduta dos administrados, porque vê em tal instrumento negocial um meio eficiente de prevenção e,

são possíveis os seguintes procedimentos relativos à entrada: recebimentos diversos; inquéritos civis; atendimentos; proce-dimentos preparatórios; outros procedimentos investigatórios; procedimentos investigatórios criminais; notícia e sindicância.

Figura 2 - Expedientes extrajudiciais de natureza ambiental: entra-da por tipos de procedimentos e grupos de procedimentos

Fonte: Seção “Distribuição por Áreas de Atuação” do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (informações do gráfico filtradas pelos

autores).

Extrai-se da análise destes dados – quais sejam, partidos dos filtros Comarca (Rio Grande) ‒ Assunto (Meio Ambiente) ‒ Assunto (Defesa Comunitária/Poluição Atmosférica), bem como considerando “investigatórios” e “notícias de fato” – que o número de termos de ajustamento de conduta é igual ao de ajuizamento de ação nos expedientes cuja temática é poluição atmosférica, quais sejam, três.

Não obstante metade dos expedientes tenha sido judicia-lizada, tais números não expressam um insucesso por parte da

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Ele “preconiza que sempre que possível o sistema jurídico deve evitar a ocorrência dos atos ilícitos e dos danos”, sendo que o TAC “foi concebido como um mecanismo de solução extra-judicial de conflito justamente para propiciar esta prevenção” (RODRIGUES, 2011, p. 107).

A farta jurisprudência a respeito de inúmeras questões atinentes à matéria ambiental não deixa negar que os confli-tos estão chegando ao Poder Judiciário. Conforme apontado, é possível afirmar que existe acesso à Justiça no Brasil, fruto das “sucessivas ondas” do Movimento de Acesso à Justiça em solo nacional. O grande problema que se impõe agora, no entanto, é a efetividade do processo, que ainda não foi garantida ao bra-sileiro. Daí a necessidade de busca por meios alternativos que garantam, pois, não mais a efetividade do processo, mas, sim, a efetividade do direito.

O período compreendido entre o final do século XX e o início do XXI representou uma mudança paradigmática no que atine às preocupações com a salvaguarda do ambiente. O de-senvolvimento tanto social como econômico e tecnológico desse período complexificou e radicalizou as funções da socie-dade, fazendo com que o direito passasse a disciplinar uma série de aspectos da vida até então impensáveis de ser regulados por este – à guisa de exemplo, menciona-se a tutela do meio ambiente, cuja preocupação referente à proteção vinculava-se estritamente à defesa da saúde humana (numa visão antropo-cêntrica do ambiente).

Ademais, a nova configuração institucional do Ministério Público insculpida na Lei Maior o qualificou como detentor de parcela da soberania do Estado e incumbiu, como já pontuado, de zelar pelo meio ambiente saudável. Para tanto, municiou-o de instrumentos de ordem processual e extraprocessual. Contu-do, para que consiga bem desempenhar o seu mister, é preciso que tal aparato esteja adequado às novas demandas sociais.

Tais demandas vêm sofrendo profunda alteração com a progressiva complexificação e globalização da sociedade, de modo que as respostas emanadas do Estado não estão vindo dotadas de efetividade. Isso denota, pois, que urge uma mudan-

(somente) quando esta não é possível, de reparação de danos ambientais.

Termo de Ajustamento de Conduta

Inicialmente, é preciso tecer algumas linhas a respeito da origem do instituto;7 com efeito, o TAC a respeito do qual este trabalho versa é aquele que tem sua previsão no §6º do art. 5º da Lei nº 7.347/1985.8 Isso porque a doutrina aponta a existência de outras modalidades de ajustamento de conduta, verbi gratia, o Compromisso de Cessação de Conduta da Lei nº 12.529 ou mesmo os termos de compromisso previstos na Lei de Crimes Ambientais.

A doutrina aponta que o referido instrumento adveio na chamada “Segunda Onda” do Movimento de Acesso à Justiça no Brasil (GRAVONSKI, 2010, p. 96). O Movimento tem como objetivo superar o que Boaventura de Sousa Santos (2000, p. 168) denomina de três obstáculos do Direito: culturais, eco-nômicos e sociais. Para superá-los, houve um movimento de “ondas”, não necessariamente sucessivas, posto que em alguns contextos ocorreram concomitantemente (consecutivamente no Brasil), mas que traziam a lume a necessidade de intervenção es-tatal na garantia de direitos e que os mesmos direitos deveriam possuir instrumentos adequados para a sua efetivação.

A visão da natureza jurídica do TAC à qual perfila-se esta pesquisa é aquela adotada pelo STJ, qual seja, a de percebê--lo como uma transação híbrida. Isso importa no entendimento do TAC como um negócio jurídico bilateral, sendo regido tanto por princípios de direito público como privado. Com efeito, o princípio precípuo que norteia o TAC é o da Tutela Preventiva.

7 A doutrina aponta que o TAC não guarda nenhuma sorte de similitude com nenhum instrumento alienígena, diferentemente de outras formas de resolução de conflitos adotadas no Brasil como a transação penal da Lei nº 9.099/1995 e as ações coletivas nos moldes da Lei nº 7.347/1985, sendo, portanto, eminentemente brasileiro (PINHO; FARIAS, 2009).

8 «§6º Os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamen-to de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial.”

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a engendrar, por meio do processo de industrialização estandar-dizada – que, a bem da verdade, teve início muitíssimo antes, com os modelos de produção taylorista e fordista –, uma cultura de consumo verdadeiramente desenfreada. É nesse contexto que emergem novas demandas sociais, que culminam com a positivação de novos direitos fundamentais na década seguinte (1980), com destaque para a tutela dos direitos difusos.

Daí que os riscos produzidos pelo modelo econômico vi-gente (capitalismo globalizado) puseram na pauta questões ambientais complexas e passaram a demandar respostas quanti-tativa e qualitativamente muitíssimo distintas do que a sociedade moderna estava até então habituada. O que se conclui é que há uma evidente inabilidade do paradigma jurídico vigente em, por um lado, dar conta da velocidade de mutação da sociedade complexa e, por outro, dar ao administrado segurança jurídica e assegurar a efetividade do direito positivado. Disso decorre a necessidade de um novo paradigma jurídico, apto a dar conta dessas demandas.

Esse fenômeno de crise da modernidade enquanto pa-radigma societal é bem explicado por Boaventura de Sousa Santos. Em síntese, Santos afirma que vive-se, hodiernamente, numa transição de paradigmas, em que o paradigma moderno vem paulatinamente perdendo força, fruto do colapso daquilo que chama de pilar da regulação. Tal período de transição para-digmática encerra duas dimensões primordiais, a saber, uma de cunho epistemológico e a outra de cunho societal. A transfor-mação epistemológica dá-se entre o paradigma dominante da ciência moderna, em evidente declínio, em prol da ascensão de um paradigma emergente, ou também denominado de conheci-mento prudente, para uma vida decente. Já a transição societal dá-se do paradigma dominante (caracterizado por uma socieda-de patriarcal, produção capitalista, consumismo individualista, identidades fortaleza, democracia autoritária e desenvolvimento global e excludente) em prol de um conjunto (portanto, plural) de paradigmas que ainda não se sabe exatamente o que vêm a ser (SANTOS, 2000, p. 77).

ça daquilo que entende-se como meio adequado para alcançar o direito pelo Estado aos administrados. Assim, serão tecidos breves comentários a respeito do conceito de risco e, ao depois, empreender sucinta reflexão a respeito da necessidade de um novo paradigma.

Ulrich Beck é, pois, o grande pensador da globalidade da ameaça, cunhando o termo “sociedade de risco”, tão caro aos que se debruçam sobre o Direito Ambiental. A tese central que perpassa sua obra – e pede-se vênia por reduzir o pensamento de Beck a uma frase – é a de que os perigos são fabricados pela sociedade industrial. Para ele, a “sociedade de risco designa um estágio da modernidade em que começam a tomar corpo as ameaças produzidas até então no caminho da sociedade indus-trial” (BECK; GIDDENS; LASH, 1997, p. 17).

Novas preocupações emergiram como fruto do processo de globalização econômica, o que, na proposta de Beck, trans-mutou a sociedade hodierna em uma modernidade tardia, de forma que o mundo não mais se preocupa com a produção e a distribuição de riquezas, mas sim com a produção e distribuição social dos riscos. De acordo com o sociólogo, um dos traços marcadores da identidade de nossa sociedade, essencialmen-te pós-industrial, é que vivemos permanentemente sob risco, o que desencadeia uma sensação generalizada de insegurança (BECK, 2011, p. 23-24).

Se por um lado é certo que desde os primórdios o homem vive sob a ameaça do risco, isto é, de que ele não é fruto da contemporaneidade, por outro é possível afirmar, com alguma margem de certeza, que os riscos de hoje são muitíssimo distin-tos daqueles enfrentados pelos nossos antepassados. É que os riscos enfrentados por aqueles que nos antecederam figuravam, majoritariamente, na esfera individual; hoje, com o advento das novas tecnologias, os riscos são outros, possuem uma dimensão maior, sendo marcados pelo seu alcance global.

O risco, por ser globalizado, e embora não gere igualda-de, equaliza os homens. Assim, e retomando o trabalhado no primeiro capítulo, aponta-se que as décadas de 1960 e 1970 foram determinantes para a percepção de que o homem estava

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O paradigma da modernidade não consegue responder satisfa-toriamente às demandas dessa nova sociedade que se afigura, cujas relações sociais são massificadas e cuja economia e cuja cultura são eminentemente globalizadas. A sociedade hodier-na é marcada por esta (excessiva) “especialização funcional dos subsistemas sociais”, conforme apontado pelo sociólogo Niklas Luhmann (2013).

Há de se frisar que a referida complexificação social foi acompanhada de uma especialização funcional dos subsistemas sociais (dentre os quais o direito, a economia, a política, a ciên-cia etc.) até então nunca vista, sendo que cada um desenvolveu autonomamente seus próprios códigos e regras, e nem sempre os fizeram de forma harmônica com o universo jurídico. O des-colamento que teve impactos mais profundos, sem dúvida, foi o da economia relativamente ao direito, que passou a buscar autorregulações bastante perigosas em termos sociais; nesse sentido, assevera Alexandre Gravonski (2010, p. 44), a respeito da globalização econômica e da transnacionalização do capital: “Como não há, de fato, uma ordem jurídica internacional efe-tivamente cogente nem um Estado Nacional que tenha força suficiente para impor globalmente seu ordenamento, a atividade econômica se desenvolve cada vez mais à margem do direito”.

O Brasil enfrentou (e ainda enfrenta) os problemas da mo-dernização e da industrialização tardia, não ficando apartado dos reflexos globais da dinâmica econômica mundial. Tais re-flexos dão origem ao que a doutrina convencionou chamar de “crise da lei” ou “crise de efetividade”, que não é mais do que a incapacidade de o direito prover respostas adequadas às mu-danças cotidianas, que se operam em velocidade nunca antes vista.

Do exposto, conclui-se ser patente que os instrumentos por meio dos quais o direito opera, particularmente o brasileiro, não são garantidores da efetividade dos direitos. Impende uma radical transformação da ideia de que a “sentença” é o único meio de se ter a garantia do direito – ela não é. Mais. A senten-ça sequer é um meio paritário. Daí a urgência da construção de uma nova mentalidade não só nos operadores do direito, mas

Nessa senda, a racionalidade prático-moral do direito traz a lume alguns dilemas – 1) os valores da modernidade estão divorciados das práticas políticas e do cotidiano; 2) a regula-mentação da vida social alimenta-se do afastamento do cidadão do senso comum e da aproximação deste com um conhecimento jurídico que o “esmaga”; 3) a modernidade confinou os sujeitos numa ética individualista que os torna incapazes de pensar em responsabilidades por acontecimentos globais – que, ao fim e ao cabo, desbordam em impasse ético. É que se por um lado a ética vigente, individualista e liberal não nos permite responder adequadamente aos problemas que enfrentamos (por exemplo, tomar a responsabilidade pela poluição do meio ambiente), por outro não há a emergência de uma “macroética” capaz de en-globar ações coletivas em escala interplanetária (por exemplo, capaz de abarcar questões como a poluição transfronteiriça). Com efeito, ainda que não se possa falar na “macroética”, San-tos percebe fissuras no discurso, apontando emergência de novos discursos, um novo jusnaturalismo assente em uma nova concepção de direitos humanos e do direito dos povos à au-todeterminação, bem como uma nova ideia de solidariedade, concreta e planetária.

Santos conclui seu argumento diferenciando-se da con-cepção habermasiana quanto ao “futuro do paradigma da modernidade”. É que enquanto Jürgen Habermas (2011) crê que o projeto de modernidade é incompleto, podendo, então, ser completado posteriormente recorrendo-se aos instrumen-tos analíticos, políticos e culturais desenvolvidos pela própria modernidade, Santos (2000, p. 93) acredita “que o que quer que falte concluir da modernidade não pode ser concluído em termos modernos sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega-armadilha que a modernidade nos preparou: a transfor-mação incessante das energias emancipatórias em energias regulatórias”, do que decorre a imperiosidade de se “pensar em descontinuidades, em mudanças paradigmáticas e não me-ramente subparadigmáticas”.

De todo o exposto, se extrai que, atualmente, vive-se uma desintegração (fruto da síntese) da regulação e da emancipação.

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O Ministério Público vem desempenhando papel ímpar na utilização de expedientes administrativos, conferindo à tu-tela dos direitos metaindividuais efetividade por intermédio da negociação com os particulares via uso do TAC. No atinente à referida efetividade, o termo alia todas as vantagens das téc-nicas extraprocessuais – i.e., informalidade e consenso – com a eficácia de um título executivo. Em outras palavras, ambos, compromitente e compromissário, possuem vantagens com o ajustamento.

Ademais, o TAC contribui favoravelmente à tutela coletiva na medida em que 1) “permite que a discussão seja ampliada para além da irregularidade motivadora da negociação, ajustan-do-se à lei, no compromisso, outras condutas do interessado”; 2) “enseja previsão de mecanismos eficazes na repressão ou prevenção de condutas futuras”; 3) “permite que também se faça a adequação à lei da conduta de vários interessados con-comitante e identicamente, sem o tumulto que isso causaria em um processo com inúmeros réus”; 4) “enseja maior participação da sociedade na identificação das soluções jurídicas à questão (mormente quando o compromisso de ajustamento é precedido de audiências públicas), permitindo que sejam mais adequadas às reais necessidades da comunidade envolvida” (GRAVONSKI, 2010, p. 414).

Ora, o TAC em testilha ilustra bem as vantagens arroladas. É que, 1) in casu, não foi verificada a materialidade da ocor-rência de dano ambiental em razão da atividade produtiva das empresas de fertilizantes, mas sim o compromisso com a aqui-sição de equipamento capaz de monitorar a qualidade do ar atmosférico sem presença de dano, tudo de modo a prevenir a sua ocorrência; 2) o monitoramento feito pela estação, cujos dados estarão de posse do parquet e também da FEPAM (para além das empresas), haverá de dar eficácia à prevenção e à eventual repressão de condutas; 3) certamente a negociação, as conversas entre os peritos, o fomento ao diálogo, tudo isso foi de valor muitíssimo maior para a tutela do meio ambiente do que o arrolamento dos quesitos numa lide; 4) esse tipo de

na sociedade como um todo, de que a solução negociada pode ser um “bom negócio”. O Ministério Público, ao menos na es-fera local em que se deu este pequeno estudo, já se deu conta de que se vive em uma sociedade complexa, pautada pelos ris-cos, e que a sua (boa) atuação reclama novas formas de prover efetividade aos direitos; a via extrajudicial, mormente o TAC, afigura-se como uma das soluções possíveis.

A EMQAr como medida de justiça ambiental

Primeiramente, destaca-se que a ótica de “justiça ambien-tal” acolhida nesta pesquisa tem menos a ver com as propostas (filosóficas) de Acserald, Mello e Bezerra (2009) e mais com um pragmatismo orientado pela percepção de determinados ins-trumentos jurídicos (democráticos) como proporcionadores de efeitos verdadeiramente empíricos na qualidade de vida e bem--estar das pessoas. Dito isso, passa-se à defesa da percepção do TAC como um instrumento de justiça ambiental, com destaque para a sua efetividade.

Há de se dizer que a complexidade social torna impossível a regulação legal (aqui no sentido de lei emanada do Estado) de toda sorte de conflito que emerge no seio social. As técnicas extraprocessuais de tutela de direitos coletivos, mais flexíveis e informais, são bons instrumentos a ser difundidos para a forma-ção de soluções negociadas e, portanto, consensuais.

É preciso apontar que, no Brasil, a solução negociada vem ganhando muito recentemente o apoio que merece, produto não de uma mudança na mentalidade do brasileiro, mas do abar-rotamento do Judiciário e da inviabilidade de oferecer qualquer sorte de presteza jurisdicional. Não temos, ainda, a cultura da autocomposição e da extrajudicialidade como meios seguros e vantajosos, e é por isso que as vantagens desses instrumentos, ainda que brilhantemente trabalhadas pela doutrina pátria, se-guem sendo ilustres desconhecidas dos administrados.

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Assim, conclui-se este subcapítulo respondendo uma per-gunta que consistiu no fio condutor de tudo aquilo que se tratou até aqui: será a EMQAr uma medida de Justiça Ambiental? Es-pera-se que se tenha fornecido elementos mínimos para que a resposta seja positiva.

Conclusão

A investigação perquiriu a possibilidade de se conceber a implantação da EMQAr, fruto da atuação extrajudicial da Primei-ra Promotoria de Justiça Especializada do MPRS, que culminou com ajustamento de caráter preventivo com as empresas TIMAC Agro e Yara Brasil, como uma medida de justiça ambiental que teve impacto positivo na redução da deterioração da qualidade do ar atmosférico da municipalidade em razão da poluição pro-duzida pelas indústrias de fertilizantes. Através da análise do TAC firmado, tem-se que o instrumento jurídico estudado é uma possibilidade que o ordenamento pátrio possui para oxigenar a dinâmica do trâmite judicial brasileiro, de modo a repensar a excessiva judicialização de demandas (ambientais) que pode-riam ser mais bem solucionadas caso houvesse negociação com o administrado.

Buscou-se, modestamente, contribuir para o estudo das soluções negociadas empreendidas na seara extrajudicial, per-mitindo concluir que o TAC – quando calcado na negociação, respeitados os princípios de direito público e privado que o regem, e construído por meio do diálogo com os particulares – pode oferecer resposta jurídica efetiva à questão ambiental. A análise do TAC firmado em Rio Grande, a tratar de situação micro, pode ser facilmente ampliada para outros âmbitos, tudo com o fito de demonstrar que a atuação positiva do Ministério Público na prevenção dos riscos e na busca por uma atuação levada a efeito em um contexto de mudanças paradigmáticas pode trazer, verdadeiramente, efetividade no alcance de direi-tos aos cidadãos.

solução jurídica (e não judicial) traz benefícios à comunidade em termos de informação ambiental precisa e adequada.

No que diz respeito ao compromitente, este também tem a sua participação na concretização do direito ampliada quan-do comparada à judicialização do conflito, sendo que o TAC contribui efetivamente para a solução negociada, portanto, utili-zando-se de meios menos gravosos para a consecução da tutela do direito metaindividual. Ainda, a disposição do compromiten-te em ajustar sua conduta voluntariamente, conforme pontuam Geisa Rodrigues (2011, p. 134) e Alexandre Gravonski (2010, p. 414), “costuma contribuir para a sua boa imagem junto à popu-lação ou aos consumidores, sem que seja imprescindível [...] o reconhecimento explícito de culpa”.

Por ser solução negociada – e não uma sentença impos-ta pelo Poder Judiciário – a probabilidade do adimplemento voluntário é maior, garantido-se maior resolutividade na solu-ção. Conforme Nelson Nery Júnior, o TAC serve especialmente para equacionar controvérsias envolvendo atividades que, não sendo em absoluto ilícitas, como aquelas levadas a efeito por indústrias e que poluem o meio ambiente, afetam interesses co-letivos igualmente legítimos, i.e. o direito a um meio ambiente sadio, sendo que a proteção deste último deve ser compatibili-zada com do desenvolvimento econômico e com a manutenção e criação de empregos. O TAC, afirma o eminente jurista, será a melhor garantia de que o consenso prevalecerá (apud GRA-VONSKI, 2010, p. 415).

A opção pelo TAC justifica-se por inúmeras razões, dentre as quais se destaca o papel da consensualidade, que carrega consigo a maior probabilidade de cumprimento das obrigações acordadas e a final obtenção do resultado almejado em ACP sem que seja acionada a máquina judiciária; evita-se, ainda, a moro-sidade da prestação jurisdicional; evita-se a preponderância da ótica privatista em detrimento de interesses transindividuais nas decisões judiciais, conforme a análise da jurisprudência do TJRS evidenciou, bem como os altos custos dos processos. Ademais, se não for cumprido, tem caráter de título executivo extrajudi-cial, efetivação dos direitos.

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Vanessa dos Santos Moura e Anderson Orestes Cavalcante Lobato

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LEI ANTICORRUPÇÃO BRASILEIRA: A IMPORTÂNCIA DA EFETIVA

APLICAÇÃO DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA

Tutelas à Efetivação de Direitos Públicos Incondicionados

Patologias Corruptivas e Interesses Públicos

Indisponíveis

Caroline Fockink Ritt1 Chaiene Meira de Oliveira2

1 Doutoranda em Direito na UNISC, mestre em Direito e professora de Direito Penal da UNISC. Coor-dena o grupo de pesquisa “Fundamentação e formatação de políticas de combate à corrupção no Brasil: responsabilidades compartidas entre espaço público e privado”. E-mail: <[email protected]>.

2 Graduanda do curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) e bolsista de iniciação científica sob orientação da professora doutoranda Caroline Fockink Ritt na pesquisa “Fundamen-tação e formatação de políticas de combate à corrupção no Brasil: responsabilidades compartidas entre espaço público e privado”. E-mail: <[email protected]>.

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Lei anticorrupção brasileira: a importância da efetiva aplicação dos acordos de leniência tutelas à efetivação de direitos públicos incondicionados patologias corruptivas e

interesses públicos indisponíveisCaroline Fockink Ritt e Chaiene Meira de Oliveira

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Abstract

The present article aims to study the possibilities of Leniency Agreement provided by Brazilian Anticorruption Law – Federal Law 12.846/2013, it applicability and consequences in the face of sanctions to be imposed on legal person. At a first moment, pretends to define what is leniency agreements and it prevision at legal order, being that the prevision of leniency agreements derived from north American law, which has as a principal aim to maintain competitive order. In this way, demonstrate that leniency agreement is an instrument of extremely importance in the application of the Anticorruption Law considering that from it is possible to identify other corrupting practices enabling application of sanctions. With regard to possible exemption or reduction of sanctions to be imposed on legal person that concluded the agreement there needs to be balance, so that the penalty does not become ineffective or reach other procedures to which the entity is responding, so that the leniency agreement can achieve its goal of full.

Key words: Leniency Agreements. Corruption. Law. Anticorruption Law.

Resumo

O presente trabalho tem como objetivo realizar um estudo acerca das possibilidades do acordo de leniência previsto na Lei Anticorrupção Brasileira (Lei nº 12.846/2013), sua aplicabilidade e suas consequências em face das sanções a serem impostas à pessoa jurídica. Em um primeiro momento, pretende-se definir o que é acordo de leniência e sua previsão no ordenamento ju-rídico. A previsão é de que os acordos de leniência derivam do direito norte-americano, tendo como principal objetivo a manu-tenção da ordem concorrencial. Dessa forma, demonstra-se que o acordo de leniência é um mecanismo de extrema importância na aplicação da lei, tendo em vista que a partir dele é possível identificar demais práticas corruptivas, possibilitando aplicação de sanções. No tocante à eventual isenção ou atenuação das sanções a serem impostas à pessoa jurídica que celebrou o acor-do, é preciso haver ponderação, de forma que a sanção não se torne sem efeito nem atinja os demais procedimentos aos quais a pessoa jurídica esteja respondendo, para que, ao contrário da Medida Provisória nº 703, a qual restou revogada tacitamente, o acordo de leniência possa atingir seu objetivo de forma plena.

Palavras-chave: Acordo de Leniência. Corrupção. Direito. Lei Anticorrupção.

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a pessoa jurídica fornece informações, também, sobre seus atos (COSTA, 2014).

O acordo de leniência é considerado um instrumento alter-nativo, e, se for bem-disciplinado, proporcionará a capacidade de concretizar as mesmas finalidades que a sanção tradicional, ou seja, a harmonização das relações sociais e saneamento de irregularidades, trazendo desincentivo para as práticas ilícitas e facilitando os procedimentos de investigação (FIDALGO; CA-NETTI, 2015, p. 225).

A criação de programas de leniência no cenário internacio-nal, conforme alguns estudos, vem trazendo um impacto muito positivo e expressivo com relação à tomada de decisões estra-tégicas por empresas que participam dos cartéis, fazendo com essas empresas, através de seus assessores legais, reconside-rem a tradicional estratégia jurídica de, sistematicamente, negar as acusações pela prática dos ilícitos previstos na legislação (FI-DALGO; CANETTI, 2015, p. 256).

A origem dos acordos de leniência no direito norte-americano

Considerado por alguns como um instrumento imoral e por outros como instrumento de consensualidade, o acordo de leniência tem a sua origem nos Estados Unidos, na década de 1970.

É instrumento voltado à viabilização das investigações de determinados tipos de ilícitos, principalmente no âmbito concorrencial, econômico e, mais recentemente, de combate à corrupção. Para essa viabilidade de investigações ocorrer, o acordo de leniência prevê a criação de incentivos à delação vo-luntária, principalmente no aspecto de proporcionar a redução das penalidades que seriam impostas ao delator, na esfera ad-ministrativa ou até criminal, caso as informações prestadas pelo delator sejam úteis à investigação (FIDALGO; CANETTI, 2015, p. 254-255).

Na melhor definição, leniência vem do verbo lenificar e sig-nifica lenidade, no sentido de brandura, suavidade, doçura,

mansidão. Assim, trata-se de um lenimento, de um elemento que abranda ou amolece, de um lenitivo (CARVALHOSA, 2015, p. 371).

A leniência, portanto, é a característica daquilo que é mar-cado pela suavidade. Uma qualidade do que é agradável, suave ou doce, ou no sentido de mansidão ou lenidade. Já o acordo de leniência é um tipo de ajuste que possibilita ao infrator fazer parte da investigação, com o intuito de prevenir ou restaurar um dano por ele cometido, e, por fazer isso, receberá determinados benefícios (ANTONIK, 2016, p. 53).

A previsão dos acordos de leniência deriva do direito nor-te-americano, e tem como principal objetivo a manutenção da ordem concorrencial. Assim observam Ayres e Maeda (2015, p. 248):

Destarte, tendo como parâmetro o direito norte-america-no, em que tal instituto é comumente utilizado, tem-se que a celebração de Acordos de Leniência é extremamente im-portante na repressão e no combate à corrupção, tendo em vista que: incentivam a denúncia de atos lesivos praticados em face da Administração Pública; permitem o acesso a in-formações que, em decorrência da atual estrutura comple-xa das grandes empresas, dificilmente seriam obtidas de outra forma; reduzem o gasto da administração com dili-gências altamente custosas; permitem que empresas com programas de integridade adequados possam ter suas san-ções reduzidas em caso de celebração de um acordo.

No direito brasileiro, a previsão de tal mecanismo é en-contrada pela primeira vez na antiga Lei nº 8.884/94, conhecida como lei antitruste, que tinha como principal objetivo a de-fesa da ordem econômica, tendo em vista que beneficiava as empresas que denunciassem práticas ilegais – como trustes – cometidas por outras empresas. Já no Direito Penal, os acordos de leniência são encontrados na forma do mecanismo de dela-ção premiada, previsto na Lei nº 9.807/99. Diferentemente da esfera penal, em que, na delação premiada, o indivíduo fornece informações sobre delitos de terceiros, no acordo de leniência

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em especial referentes à comunicação da conduta ilícita às auto-ridades de forma voluntária e célere, além da efetiva cooperação na investigação (AYRES; MAEDA, 2015, p. 141).

As autoridades contam com políticas de clemência para detectar, investigar e processar casos graves de cartéis. Juris-dições que operam programas de clemência reconhecem os benefícios da gratificação, em forma de leniência, não somente para aquele que denuncia o cartel, mas também para os re-querentes ulteriores que fornecem comprovação útil ou novas provas. Observa-se que os requerentes ulteriores muitas vezes fornecem a cooperação considerada essencial para o proces-so bem-sucedido de investigação e de punição de práticas de cartéis, demonstrando toda a extensão de um cartel e ofere-cendo uma boa base de provas. Com o objetivo de conseguir o benefício da leniência, a sua recompensa, os chamados re-querentes ulteriores deverão cumprir uma série de exigências para conseguir algum benefício ou até imunidade. Essas exigên-cias, geralmente, dizem respeito a requisitos de qualificação, de cooperação e de sincronização, que variam de acordo com a respectiva jurisdição. Na maioria das jurisdições, os requeren-tes ulteriores costumam ser obrigados a fornecer a cooperação completa e contínua ao longo do processo. Terminada a sua par-ticipação no cartel, devem manter o fato de sua cooperação de forma confidencial (OECD, 2012).

E o benefício que as empresas sujeitas à legislação nor-te-americana podem ter, por reportar condutas ilícitas para autoridades e cooperar com as investigações, é bastante signifi-cativo. Pode haver a redução das penalidades ou, dependendo da situação, eximição de sanções, além de outras consequências favoráveis (AYRES; MAEDA, 2015, p. 242).

A partir de 1993, o programa de leniência nos Estados Unidos foi reestruturado, ganhando os contornos que possui na atualidade, o chamado Programa de Leniência Corporati-va (Corporate Leniency Policy ou Amnesty Program) (VILARD; PEREIRA; DIAS NETO, 2008, p. 144-145). Esse programa, que ocorre na área concorrencial, estabelece a concessão automáti-ca de leniência caso não existisse conhecimento e investigação da infração previamente à espontânea manifestação da empresa e da pessoa jurídica. O programa também admite a possibilida-de de concessão de leniência, mesmo após a existência de atos investigatórios, o que garante, aos diretores e aos funcionários, que se disponham a cooperar com as autoridades, visando à imunidade penal.

No âmbito da aplicação do FCPA norte-americano, seja em relação a acusações criminais seja em casos de natureza civil, as autoridades americanas deverão observar o Prin-ciples of Federal Prosecution of Bussiness Organizations, editado pela Departamento de Justiça do Governo norte--americano, e o U.S. Sentencing Guidelines, editado pela United States Sentencing Commission, que determinam que as condutas de cooperação com a investigação serão seriamente consideradas na formulação da acusação e mes-mo na aplicação das sanções. (PETRELLUZZI, 2014, p. 92).

Com a positiva influência da política antitruste norte-a-mericana, vários órgãos de defesa da concorrência em outros países acabaram adotando programas de leniência. O objetivo principal desses países era o de desarticular cartéis. Dentre eles, são citados Reino Unido, Alemanha, França, Canadá e Coreia. Em 1996, a União Europeia instituiu o programa denominado Europe Union Leniency Agreement (VILARD; PEREIRA; DIAS NETO, 2008, p. 145).

Nos Estados Unidos, desde o ano de 1999, o U.S. Depart-ment of Justice, o Departamento de Justiça norte-americano, publica memorandos que estabelecem diretrizes a serem segui-das pelos promotores federais, ao decidirem se devem ou não propor ações de natureza penal contra as pessoas jurídicas. Isso inclui fatores que são levados em consideração pelas autorida-des norte-americanas, no momento de aplicação das sanções,

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Lei nº 6.826 (“PL 6.826”), que deu origem à Lei nº 12.846/2013 (LAC), não tratou da possibilidade da realização desses acordos. A redação original do Projeto de Lei nº 6.826 se limitava a dizer que a cooperação na apuração das infrações seria levada em consideração na ocasião da aplicação das sanções. Mas, poste-riormente, como consequência de proposta, que foi apresentada pela Comissão Anticorrupção e Compliance do IBRADEMP, em relatório encaminhado ao Relator do PL 6.826,3 em novembro de 2011, como também em audiência pública, foi sugerido que constasse no texto da lei a previsão que autorizasse a celebra-ção de acordos de leniência. Então, conforme expressamente reconhecido pelo Relator do PL 6.826 em seu primeiro substi-tutivo ao projeto de lei, acabou sendo incluída a possibilidade de celebração de acordo de leniência no texto do projeto de lei aprovado (AYRES; MAEDA, 2015, p. 144).

Leniência, portanto, no contexto da Lei Anticorrupção, re-presenta um pacto de colaboração firmado entre a autoridade processante e a pessoa jurídica que foi indiciada ou que já está sendo processada. Nesse pacto de colaboração se estabelece a promessa de abrandamento das penalidades instituídas no art. 6º da Lei Anticorrupção,4 desde que alcançada grande abran-gência do concurso delitivo em termos de pessoas jurídicas ou de agentes públicos envolvidos.

No Brasil, existe uma sensível resistência ao instituto, prin-cipalmente por razões de ordem cultural e da tradição jurídica

3 Disponível em: <http://www.ibrademp.org.br/UserFiles/File/IBRADEMP_-_Comentários_ao_PL_6826-2010.pdf>.

4 Art. 6o Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções:

I - multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e

II - publicação extraordinária da decisão condenatória.§1o As sanções serão aplicadas fundamentadamente, isolada ou cumulativamente, de acordo com as

peculiaridades do caso concreto e com a gravidade e natureza das infrações.§2o A aplicação das sanções previstas neste artigo será precedida da manifestação jurídica elaborada

pela Advocacia Pública ou pelo órgão de assistência jurídica, ou equivalente, do ente público.§3o A aplicação das sanções previstas neste artigo não exclui, em qualquer hipótese, a obrigação da

reparação integral do dano causado.§4o Na hipótese do inciso I do caput, caso não seja possível utilizar o critério do valor do faturamento

bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 (seis mil reais) a R$ 60.000.000,00 (sessenta milhões de reais).

Os acordos de leniência no direito brasileiro

O Brasil seguiu forte tendência mundial, introduzindo o acordo de leniência em nosso direito concorrencial através da Medida Provisória nº 2.055, de 11 de dezembro de 2000, pos-teriormente convertida na Lei nº 10.149/2000, que, inclusive, acrescentou à Lei nº 8.884/94 os arts. 35-B e 35-C (VILARD; PE-REIRA; DIAS NETO, 2008, p. 145).

Acordos de leniência são acordos celebrados entre o Po-der Público e o agente envolvido em uma infração. O objetivo da colaboração é conseguir informações, principalmente com relação a outros partícipes e autores. Essa colaboração ocorrerá através da apresentação de provas materiais de autoria. E, em contrapartida da colaboração, ocorrerá a liberação ou a diminui-ção das penalidades que sejam impostas.

Observa-se que a Lei nº 8.884/94, com as alterações pro-movidas pela Lei nº 10.149/2000, foi revogada pela Lei do CADE nº 12.529/2011. O acordo de leniência está previsto, atualmente, no seu art. 86. Essa legislação trata exclusivamente do acordo de leniência no âmbito dos crimes contra a ordem econômica, de competência do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrên-cia, que é a nossa Lei Antitruste, cujo acordo cabe ao CADE fechar. Já a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) também trata sobre o acordo de leniência; porém, na LAC, o acordo poderá ser proposto e aceito pela “autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública”. Em casos envolvendo o Executivo federal, por exemplo, o responsável pela condução é a Controladoria Geral da União (CGU) (ANTONIK, 2016, p. 54).

O acordo de leniência está previsto nos arts. 16 e 17 da Lei Anticorrupção brasileira (Lei nº 12.846/2013), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas ju-rídicas pela prática de atos contra a administração nacional ou estrangeira.

Analisando os aspectos históricos do acordo de leniência, com relação a sua previsão na Lei Anticorrupção, o Projeto de

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A previsão do acordo de leniência na Lei Anticorrupção brasileira

Antes de se abordar especificamente o acordo de leniência em nossa legislação anticorrupção, ressalta-se que as pessoas jurídicas não têm obrigação de comunicar um ato lesivo, real ou potencial, previsto na Lei nº 12.846/2013, às autoridades. Dessa forma, as pessoas jurídicas podem optar por não denunciar as ilegalidades que estão acontecendo sem que sejam apenadas pelas autoridades por isso. Mas, embora a apresentação volun-tária e a cooperação com as investigações e com o processo administrativo não sejam obrigatórios, podem ser estrategi-camente muito benéficas para as empresas, em determinadas situações (AYRES; MAEDA, 2015, p. 245).

A Lei Anticorrupção brasileira prevê, em seu art. 16,6 a pos-sibilidade de celebraçãode acordos de leniência com pessoas

6 Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniên-cia com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração re-sulte:

I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; eII - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração.§1o O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente,

os seguintes requisitos:I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração

do ato ilícito;II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data

de propositura do acordo;III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as in-

vestigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

§2o A celebração do acordo de leniência isentará a pessoa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6o e no inciso IV do art. 19 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o valor da multa aplicável.

§3o O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.

§4o O acordo de leniência estipulará as condições necessárias para assegurar a efetividade da colabo-ração e o resultado útil do processo.

§5o Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pessoas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeitadas as condições nele estabelecidas.

§6o A proposta de acordo de leniência somente se tornará pública após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativo.

§7o Não importará em reconhecimento da prática do ato ilícito investigado a proposta de acordo de leniência rejeitada.

§8o Em caso de descumprimento do acordo de leniência, a pessoa jurídica ficará impedida de celebrar

brasileira. A cultura latina não valoriza a figura do delator, pois estaria caracterizado como um traidor. No direito norte-ameri-cano, que não apresenta essa carga de preconceito inerente à cultura latina, esses institutos são de larga utilização, como o instituto da delação premiada, dirigido às pessoas naturais, e os acordos de leniência corporativa, com relação às empresas (PETRELLUZZI, 2014, p. 91-92).

Dentre os principais benefícios dos acordos de leniência, estão:

Primeiro: incentivo à denúncia de atos lesivos praticados contra a administração pública.

Segundo: celebração de acordo de leniência, que pode ser fundamental justamente para a identificação de envolvidos e a obtenção de provas consideradas relevantes. O acorde de leniência acaba trazendo, para as autoridades investigantes, o conhecimento de informações que, de outra maneira, não se-riam obtidas.

Terceiro: celebração de acordos de leniência também permite a melhor utilização dos recursos públicos. Isso ocorre porque documentos e informações, fornecidos para as autori-dades, na maioria das vezes somente poderiam ser obtidos por meio de investigações e diligências muito custosas.

Quarto: permite que as pessoas jurídicas diligentes e que se preocupam em atuar de forma ética – tendo, por exemplo, um programa de compliance5 bem feito e eficaz, mas que ainda assim estão suscetíveis de serem sancionadas por atos lesivos cometidos por seus funcionários, ainda que tais funcionários cometam atos contrários às determinações da pessoa jurídica – possam ter suas sanções reduzidas, no caso de optarem por celebrar um acordo de leniência.

5 Conjunto de políticas e procedimentos criado para evitar, detectar e corrigir irregularidades ocorri-das no âmbito empresarial.

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O objetivo do acordo não é proteger a pessoa jurídica que o firmou, mas, sim, de estender e aprofundar as investigações a outras pessoas jurídicas e a outros agentes públicos que agi-ram em concurso, nas condutas corruptivas tipificadas na Lei Anticorrupção. A “motivação” ou o “incentivo” não fazem parte dos propósitos do regime de leniência e por isso não produ-zem qualquer efeito com relação ao seu cumprimento (HEINEN, 2015, p. 241-242).

Observa-se que, ao mesmo tempo, o pedido da pessoa jurídica, buscando submeter-se ao regime de leniência, deverá atender ao critério de sua própria conveniência, e por isso deve ser espontâneo e facultativo. A autoridade processante não tem permissão de constranger a pessoa jurídica, indiciada ou ré, a requerer o benefício em nenhum momento das investigações, do inquérito ou do processo administrativo (HEINEN, 2015, p. 241-242).

Além disso, o acordo só poderá ser celebrado se a pessoas jurídica atender aos requisitos previstos no art.16. Não seria ra-zoável entabular-se uma tratativa, de acordo de leniência, ao mesmo tempo em que a empresa continuar a fraudar o erário (HEINEN, 2015, p. 241-242).

Com relação ao terceiro requisito, expresso no art. 16, em seu inciso III, para se qualificar para a leniência, a pessoa jurídica deve admitir a sua participação no ato ilícito, e cooperar plena-mente com as investigações e com o processo administrativo. Assim, em conformidade com o primeiro requisito, é necessário que a pessoa jurídica tenha tempo hábil para apurar os fatos. Também é necessário que se admita a proposta de acordo de leniência, mesmo após a existência de procedimentos para in-vestigar a empresa. Entende-se como cooperação “plena e emergente” com as investigações e o processo administrativo o fornecimento de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração. Da mesma forma, também o compareci-mento, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até ocorrer o seu encerramento (AYRES; MAE-DA, 2015, p. 246-247).

jurídicas responsáveis pela prática de atos contra a Administra-ção Pública que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo.

É um acordo em que o infrator, pessoa jurídica responsável pela prática de atos ilícitos, assume a qualidade de colaborador efetivo nas investigações e no processo administrativo.

O acordo de leniência somente poderá ser celebrado com pessoa jurídica. Não foi prevista a possibilidade de que fosse realizado com as pessoas naturais eventualmente envolvidas no caso ou mesmo com determinado agente público participan-te do ato ilegal. O texto da Lei Anticorrupção é bastante claro em apenas mencionar a possibilidade de se efetuar a transação com as sociedades envolvidas, embora, conforme art. 3º da Lei Anticorrupção, possam ser punidas também as pessoas natu-rais. O acordo de leniência está condicionado a determinados resultados decorrentes da colaboração, os quais também estão definidos no art. 16.

No acordo de leniência, os deveres da pessoa jurídica surgem com a pactuação, ou seja, a partir de sua assinatura. O dever de atenuação do Poder Público apenas estará concre-tizado se houver efeito útil da colaboração da pessoa jurídica (HEINEN, 2015, p. 241-242).

Ressalta-se que, para que o acordo de leniência possa exis-tir, nos termos do art. 16, incisos I e II, da Lei nº 12.856/2013, a colaboração deve resultar na “identificação dos demais envol-vidos na infração, quando couber” e na “obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apu-ração”. Da mesma forma, o acordo de leniência só poderá ser celebrado se preenchidos ainda, cumulativamente, , os requisi-tos que estão previstos no art. 16, parágrafo primeiro.

novo acordo pelo prazo de 3 (três) anos contados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento.

§9o A celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos previstos nesta Lei.

§10o A Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente para celebrar os acordos de leniên-cia no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.

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administrativa, a pessoa jurídica, da publicação extraordinária da decisão condenatória. E a multa9 terá redução em até 2/3. Com relação à responsabilização judicial, conforme o previsto no art. 19, inciso IV, poderá ocorrer o afastamento de proibição de receber incentivos.10

O acordo de leniência pode ser bastante vantajoso para aquele que se dispõe a colaborar com o Poder Público, porque a celebração do acordo isentará a pessoa jurídica das sanções de: publicação extraordinária da decisão condenatória e da proi-bição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de institui-ções financeiras públicas ou sob controle do Poder Público pelo prazo de, no mínimo, um ano e, no máximo, de cinco anos. É importante que o acordo de leniência faça previsão expressa no sentido de que a redução de até dois terços do valor da multa não fique em patamar inferior ao benefício auferido pelo ato ilícito cometido. Essa interpretação tem a finalidade de conferir sistematicidade aos dispositivos da Lei Anticorrupção, principal-mente ao coligar com o que determina o art. 6º, em seu inciso I (HEINEN, 2015, p. 244).

Os benefícios à pessoa jurídica, definidos no art. 16, §2º, da Lei Anticorrupção, são vinculados, ou seja, não poderão ser sonegados quando feito o acordo de leniência e cumpridas as suas cláusulas. Também é vedada a estipulação de outros be-nefícios que não aqueles previstos na Lei Anticorrupção. A responsabilidade de quem quer que seja não pode ser objeto de transação, nem mesmo do acordante. O ajuste, no acordo de leniência, apenas permite a redução de pena de quem tran-saciona, e de mais ninguém, salvo no caso do parágrafo quinto, do art. 16, quando as pessoas jurídicas do mesmo grupo econô-mico venham a também firmar o ajuste e respeitem as cláusulas nele pactuadas.

9 No valor de 0,1% a 20% do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação. Caso não seja possível utilizar o critério do faturamento bruto da pessoa jurídica, a multa será de R$ 6.000,00 a R$ 60.000.000,00.

10 O acordo de leniência não exime a pessoa jurídica da obrigação de reparar integralmente o dano causado.

O resultado do pacto de leniência importa necessaria-mente na condenação das outras pessoas jurídicas que foram apontadas? Não necessariamente. Ressalta-se que o resultado da colaboração da pessoa jurídica tem como base a qualidade dos seus depoimentos e da prova testemunhal e documental que ela apresentou. Essas deverão atender sempre e estarem de acordo com o conjunto probatório. Se, devido a outras circuns-tâncias próprias do processo administrativo, forem absolvidas as demais pessoas jurídicas, indicadas em virtude do acordo de leniência – como pode ocorrer, por exemplo, em consequência de razões prescricionais, previstas no art. 25 da Lei Anticorrup-ção –, o resultado do acordo de leniência poderá se verificar em benefício da pessoa jurídica pactuante (inciso III do art. 16).

O resultado da denúncia pactuada, para os fins do acor-do de leniência instituída, se verifica com a consistência das provas oferecidas pelo pactuante, pelo fato de essas provas se apresentarem acima de qualquer dúvida razoável e não pela condenação das pessoas jurídicas, objeto de tais provas (CAR-VALHOSA, 2015, p. 278).

Principais efeitos do acordo de leniência

O art. 16, §2º, da Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) dispõe que “a celebração do acordo de leniência isentará a pes-soa jurídica das sanções previstas no inciso II do art. 6º7 e no inciso IV do art. 19,8 e reduzirá em até 2/3 (dois terços) o va-lor da multa aplicável” (AYRES; MAEDA, 2015, p. 247). Nesse caso, a celebração do acordo de leniência isentará, na esfera

7 Art. 6o Na esfera administrativa, serão aplicadas às pessoas jurídicas consideradas responsáveis pelos atos lesivos previstos nesta Lei as seguintes sanções:[...]II - publicação extraordinária da decisão condenatória.

8 Art. 19. Em razão da prática de atos previstos no art. 5o desta Lei, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à IV - proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públi-cas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público, pelo prazo mínimo de 1 (um) e máximo de 5 (cinco) anos. aplicação das seguintes sanções às pessoas jurídicas infratoras:

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pacto. Então, a delação premiada não poderá ser admitida no processo administrativo (CARVALHOSA, 2015, p. 381).

A celebração do acordo de leniência não isenta a pessoa jurídica de reparar os danos ao poder público. O dano causa-do não será objeto de acordo, conforme art. 16, §3º, porque o princípio da indisponibilidade do patrimônio público impede que assim se proceda. Há a necessidade de que a pessoa jurí-dica venha a reparar o dano de modo integral, sendo que tal exigência não é negociável, pois não pode se dispor do patrimô-nio público. Pode ser permitido o pagamento parcelado desse dano, como ocorre com outras dívidas constituídas em relação ao erário; o que não se permite é a sua isenção (HEINEN, 2015, p. 243-244).

Os efeitos do acordo de leniência serão estendidos às pes-soas jurídicas que integram o mesmo grupo econômico, de fato e de direito, desde que firmem o acordo em conjunto, respeita-das as condições nele estabelecidas.

Com relação ao art. 16, §5º, da Lei Anticorrupção, além da diminuição das penas, tal como foi estipulado no §2º, ha-verá a extinção da solidariedade passiva das demais pessoas jurídicas integrantes do grupo econômico a que pertence aque-la indiciada ou processada, desde que também firmem o acordo de leniência. Esse dispositivo de extinção de solidariedade re-fere-se diretamente ao processo de responsabilização judicial (Capítulo VI) e não ao processo administrativo (CARVALHOSA, 2015, p. 389).

A cada caso concreto cabe à autoridade administrativa es-tabelecer as condições necessárias para assegurar efetividade da colaboração e o resultado útil do processo. Conforme o art. 16, §4º, o instrumento do pacto de leniência, do §4º do art. 16, deve conter, de forma objetiva, todos os elementos que garan-tam a efetividade da colaboração da pessoa jurídica pactuante, para que assim se cumpra o objetivo da Lei Anticorrupção, que é o de restaurar a moralidade pública no caso concreto. De um lado, a Lei Anticorrupção impõe a multa e, também, afasta, por inidoneidade, as pessoas jurídicas condenadas no devido processo administrativo. Por outro lado, expurga dos quadros

A lei brasileira não deu margem ao Poder Público de po-der negociar os benefícios de colaboração que foi feita pelo acusado, ou seja, as vantagens, para aquela emprega que fez o acordo de leniência são fixadas na própria lei anticorrupção Essa opção normativa brasileira é diferente da lei norte-ame-ricana (FCPA) que fixa uma margem livre para negociações e o grau de benefício a ser obtido pela empresa. O Departamento de Justiça norte-americano possui discricionariedade no que se refere a aceitar termos de acordo e os resultados esperados (HEINEN, 2015, p. 243).

Com relação à multa, observa-se que o legislador não definiu o limite mínimo de sua redução, apenas o máximo. A proposta do acordo de leniência, então, poderia não reduzir em nada o valor da referida penalidade, ou algo próximo disso. Res-salta-se que a celebração do acordo de leniência não isenta a pessoa jurídica de todas as sanções, pelo contrário – a pessoa jurídica continua suscetível a sanções significativas. Em especial, no âmbito judicial, continua sujeita à sanção de dissolução com-pulsória e suspensão ou interdição parcial das atividades. Essas sanções, por sua gravidade, devem ser aplicadas apenas nos casos mais graves, como naqueles em que a pessoa jurídica foi constituída para finalidade ilícita (AYRES; MAEDA, 2015, p. 248).

O resultado do pacto de leniência em benefício da pes-soa jurídica, que é a ré, vai ocorrer pela observância de todo o conjunto probatório, ou seja, na questão do oferecimento de provas além de qualquer dúvida razoável. Atendida essa quali-dade do conjunto probatório, caberá a atenuação das penas, na forma e com os efeitos previstos no §2º do art. 16, já analisado (CARVALHOSA, 2015, p. 380).

O pacto de leniência poderá ser requerido e celebrado na fase instrutória do devido processo administrativo. Pode ser requerido no início do processo administrativo, em virtude das conclusões das investigações que o precedem. E poderá tam-bém ocorrer o pedido de celebração do acordo de leniência, em meio ao processo administrativo, ou seja, na sua fase instrutória. Encerrado o período instrutório, não haverá mais utilidade no

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Estado, os secretários-gerais, os presidentes das estatais, os presidentes da Câmara e do Senado, o presidente dos tribunais e os diretores dos entes possam arrogar-se dessa competên-cia de entabular e firmar o pacto de leniência e muito menos a competência de instaurar e de julgar os devidos processos administrativos instituídos na Lei Anticorrupção (

Todas essas “autoridades máximas” são susceptíveis – ou, de acordo com o referido autor, por que não dizer “natural-mente vocacionadas” – a ser atingidas pelos delitos corruptivos praticados pela pessoa jurídica, principalmente quando é feito o acordo de leniência, que aumenta a extensão dos seus pro-tagonistas e que, em geral, chega até as próprias “autoridades máximas” investidas de competências político-administrativas em absoluto conflito formal de interesses. Então, para ele, a “autoridade máxima” não pode ser considerada competente para instaurar nem para julgar e muito menos para negociar e firmar com a pessoa jurídica ré o pacto de leniência (

Essa competência deverá ser reservada aos órgãos correcionais e disciplinares dos entes implicados, tanto na in-vestigação (inquérito) como no processo administrativo. Para o referido autor, somente esses órgãos correcionais e disciplina-res na pessoa de seus titulares podem ser competentes para negociar e firmar pactos de leniência. Por possuírem – ou ao menos se presume legalmente que possuam – a independência frente às “autoridades máximas”, por isso investidos de especí-ficas atribuições e funções investigativas e administrativamente judicantes (

O art. 17 da Lei nº 12.846/201311 estende a aplicação do acordo de leniência aos ilícitos previstos na Lei nº 8.666/93 (Lei de Licitações), em seus arts. 86 a 88.12 A possibilidade de cele-

11 Art. 17. A administração pública poderá também celebrar acordo de leniência com a pessoa jurídica responsável pela prática de ilícitos previstos na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, com vistas à isenção ou atenuação das sanções administrativas estabelecidas em seus arts. 86 a 88.

12 Art. 86. O atraso injustificado na execução do contrato sujeitará o contratado à multa de mora, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato.§1o A multa a que alude este artigo não impede que a Administração rescinda unilateralmente o contrato e aplique as outras sanções previstas nesta Lei.§2o A multa, aplicada após regular processo administrativo, será descontada da garantia do res-pectivo contratado.

políticos, administrativos e judiciários os agentes públicos que compuseram o concurso corruptivo no caso concreto (CARVA-LHOSA, 2015, p. 389).

A proposta de acordo de leniência somente se tornará pú-blica após a efetivação do respectivo acordo, salvo no interesse das investigações e do processo administrativAlém disso, a pro-posta que foi rejeitada não implica o reconhecimento da prática do ato ilícito investigado.

O descumprimento do acordo celebrado impede nova celebração desse tipo de ajuste pelo período de três anos, con-tados do conhecimento pela administração pública do referido descumprimento, como prevê o art. 16, §8º. E, conforme o art. 16, §9º, a celebração do acordo de leniência interrompe o prazo prescricional dos atos ilícitos preconizados nessa lei.

A Lei nº 12.846/2013 permite que diferentes autoridades tenham competência de investigar a ocorrência de atos lesivos e aplicar sanções. Nos casos em que o ato lesivo alcance várias ju-risdições, as pessoas jurídicas devem considerar o envolvimento de todas as autoridades competentes no acordo para evitar que uma autoridade não honre a leniência de outra autoridade. No âmbito federal, caberá à Controladoria-Geral da União (CGU) celebrar os acordos de leniência, bem como no caso de atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.

Para Carvalhosa (2015, p. 390), deve ser desconsiderado em parte o caput do art. 16 para prevalecer a regra contida no seu referido §10º, também nos planos estadual e municipal, bem como nos demais Poderes – Legislativo e Judiciário – nas três instâncias federativas. Para o referido doutrinador, embora o caput do art. 16 outorgue genericamente competência para a autoridade máxima do ente público envolvido possa celebrar o acordo de leniência, o §10º do art. 16 retifica, o que ele consi-dera “essa intransponível aberração”, determinando que cabe à CGU celebrar tais pactos no âmbito do Poder Executivo federal, bem como nos “atos lesivos praticados contra a administração pública estrangeira”.

Exemplifica o referido autor que não é possível imaginar que o prefeito, o governador, os ministros, os secretários de

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É importante que as autoridades brasileiras estejam aten-tas às práticas de sucesso de outros países, uma vez que tais práticas, compatibilizadas com o ordenamento jurídico nacional, também podem ser adotadas e incorporadas. O acordo de le-niência deve atender à finalidade precípua da Lei Anticorrupção, que é a de restaurar a moralidade do Poder Público, abrangendo necessariamente as demais pessoas jurídicas corruptivas, bem como os agentes políticos, administrativos ou judiciários que compõem o concurso delitivo (CARVALHOSA, 2015, p. 377).

Conclusão

Diante do breve estudo realizado, é possível concluir que o acordo de leniência é um mecanismo de extrema importância na aplicação da lei, tendo em vista que, a partir dele, é possível identificar outras práticas corruptivas, possibilitando aplicação de sanções.

No tocante à eventual isenção ou atenuação das sanções, impostas à pessoa jurídica que celebrou o acordo, é preciso ha-ver ponderação, de forma que a sanção não se torne sem efeito nem atinja os demais procedimentos aos quais a pessoa jurídica esteja respondendo. Assim, ao contrário da Medida Provisória nº 703, a qual restou revogada tacitamente, o acordo de leniên-cia pode atingir seu objetivo de forma plena.

É preciso sempre levar em consideração que a Lei Anti-corrupção Brasileira tem como principal objetivo o combate à corrupção e a preservação da moralidade na administração pública. Embora as sanções sejam reduzidas ou até mesmo a pessoa jurídica seja isentada, é necessário ponderação. Confor-me mencionado, é impossível prever assim como era durante o período que a Medida Provisória nº 703 esteve em vigor, que a mera celebração do acordo de leniência impeça a continuação ou a instauração de procedimentos em outras esferas, uma vez que hoje, com a atual redação da lei, não há tal previsão

A corrupção, conforme estudado, é uma patologia que afeta os direitos fundamentais, e se faz necessário seu combate.

bração de acordos de leniência trazida pela Lei Anticorrupção, em linha com a experiência norte-americana, é considerada uma ferramenta importante para o combate à corrupção no Brasil. É fundamental que as autoridades brasileiras se conscientizem sobre a importância desses acordos para o combate à corrupção (AYRES; MAEDA, 2015, p. 249).

O acordo de leniência não tem a finalidade de criar outros incentivos, além da diminuição das penas para as pessoas jurídi-cas pactuantes no acordo, conforme foi abordado no presente trabalho.

O Estado, ao instituir o regime de leniência, se beneficia imensamente de sua adoção. A partir dele, consegue atingir, no caso concreto, o núcleo dos delitos de corrupção praticados, extraindo, inclusive, os seus efeitos sistêmicos (CARVALHOSA, 2015, p. 377).

§3o Se a multa for de valor superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, a qual será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou ainda, quando for o caso, cobrada judicialmente.Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções: I - advertência;II - multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;III - suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Adminis-tração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;IV - declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação peran-te a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.§1o Se a multa aplicada for superior ao valor da garantia prestada, além da perda desta, responderá o contratado pela sua diferença, que será descontada dos pagamentos eventualmente devidos pela Administração ou cobrada judicialmente.§2o As sanções previstas nos incisos I, III e IV deste artigo poderão ser aplicadas juntamente com a do inciso II, facultada a defesa prévia do interessado, no respectivo processo, no prazo de 5 (cinco) dias úteis.§3o A sanção estabelecida no inciso IV deste artigo é de competência exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, facultada a defesa do interessado no respectivo processo, no prazo de 10 (dez) dias da abertura de vista, podendo a reabilitação ser requerida após 2 (dois) anos de sua aplicação. [Vide art. 109, inciso III.]Art. 88. As sanções previstas nos incisos III e IV do artigo anterior poderão também ser aplicadas às empresas ou aos profissionais que, em razão dos contratos regidos por esta Lei:I - tenham sofrido condenação definitiva por praticarem, por meios dolosos, fraude fiscal no reco-lhimento de quaisquer tributos;II - tenham praticado atos ilícitos visando a frustrar os objetivos da licitação;III - demonstrem não possuir idoneidade para contratar com a Administração em virtude de atos ilícitos praticados.

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Porém, além de haver leis, é preciso que estas proporcionem segurança jurídica. Assim, a corrupção precisa continuar sendo estudada e combatida. Embora não vá ser extinta em sua to-talidade, conforme referido ao longo do presente trabalho, o combate faz-se necessário a fim de que seja garantida a concre-tização dos direitos fundamentais dos cidadãos.

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MAUERSCHÜTZEN - O CASO DOS ATIRADORES DO MURO:

A Fórmula Radbruch e a pretensão de correção de

Robert Alexy

Alexandre Lipp João1

1 Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Especia-lista em Contratos e Responsabilidade Civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: <[email protected]>.

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Mauerschützen - o caso dos atiradores do muro: a fórmula radbruch e a pretensão de correção de Robert AlexyAlexandre Lipp João

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Abstract

This study aims to analyze the judgment given by Justice German, especially the Federal Constitutional Court, at the trial of military personnel killed fugitives from the former GDR, facts that had wide repercussions and are now called MAUERSCHÜTZEN - the case of the wall shooters. The Federal Constitutional Court ruled correct application of Formula Radbruch, as recognized as extremely unfair the planned justification in Border Law of the GDR, which exempted worth the military to kill fugitives. The work will address the Robert Alexy correction claim, ie the relationship between law and morality that corrects.

Keywords: The case of the wall shooters; Radbruch formula; injustice; correction claim; law and morality; hermeneutics.

Resumo

O presente trabalho busca analisar as decisões proferi-das pela Justiça alemã, especialmente o Tribunal Constitucional Federal, por ocasião do julgamento dos militares que mataram fugitivos da extinta RDA, fatos que tiveram ampla repercus-são e passaram a ser denominados de MAUERSCHÜTZEN – o caso dos atiradores do muro. O Tribunal Constitucional Federal entendeu correta a aplicação da Fórmula Radbruch, pois reco-nheceu como extremamente injusta a justificativa prevista na Lei de Fronteiras da RDA, que isentava a pena aos militares que matassem fugitivos. O trabalho vai abordar a pretensão de cor-reção de Robert Alexy, ou seja, a relação entre o direito e uma moral que o corrige.

Palavras-chave: Caso dos atiradores do muro; Fórmu-la Radbruch; injustiça; pretensão de correção; direito e moral; hermenêutica.

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Entre 1949 e 1961, ano da construção do Muro de Berlim, aproximadamente 3 milhões de pessoas fugiram da RDA para a RFA. Para evitar as fugas, na manhã de 13 de agosto de 1961, soldados da RDA começaram a construir o Muro de Berlim, de-marcando, inicialmente, a linha divisória com arame farpado, tanques e trincheiras. Posteriormente, foi erguido o muro com concreto armado, fortemente vigiado por guardas armados em centenas de guaritas.

Ao longo dos 28 anos de existência do muro, centenas de pessoas perderam a vida tentando fugir para o lado ocidental.

Com a crise política na União Soviética e a enorme pres-são popular na RFA, a RDA autoriza seus cidadãos a cruzar a fronteira e o muro, em 9 de novembro de 1989, começa a ser derrubado.

Cai, dessa forma, um dos maiores símbolos da opressão dos regimes socialistas, simbolizando o fim da Guerra Fria e o marco zero da reunificação da Alemanha.

O caso dos atiradores do muro – Mauerschützen

Em 28 anos de existência do muro, muitas pessoas per-deram a vida tentando ingressar na RFA. Com a reunificação da Alemanha, surgiram intensas discussões sobre a possibilidade de responsabilizar criminalmente os guardas, seus superiores e demais agentes políticos da RDA envolvidos no controle de fronteira.

Um dos casos ganhou notoriedade pela densa contro-vérsia temática e discussão filosófica, passando a ser conhecido como o caso dos atiradores do muro, julgado pelo Tribunal Su-premo Federal em 3 de novembro de 1992.

Robert Alexy estudou profundamente as decisões, lan-çando, em 1993, um artigo denominado “O caso dos atiradores do muro: Acerca da relação entre direito, moral e punibilidade”.

A divisão da Alemanha e o Muro de Berlim

A devida compreensão dos julgamentos realizados pelos tribunais alemães no caso dos atiradores do muro exige identifi-car a tensão política e social durante a Guerra Fria.

Com efeito, após a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, as quatro potências vencedoras, União Soviéti-ca, Estados Unidos, França e Reino Unido, dividiram o país em quatro zonas de ocupação.

As três zonas de ocupação dos Estados Unidos, França e Reino Unido foram unidas e, em 20 de junho de 1948, foi cria-do um Estado provisório sob seu controle, implantando-se uma grande reforma monetária. A União Soviética, no entanto, rea-giu à reforma monetária na Alemanha Ocidental ordenando que o lado ocidental de Berlim fosse bloqueado, interditando todas as comunicações por terra. Isolado das zonas ocidentais e de Berlim Oriental, o oeste de Berlim permaneceu sem luz ou ali-mentos de 23 de junho de 1948 até 12 de maio de 1949. A população sobreviveu em razão de uma ponte aérea organizada pelos países Aliados, que garantiu seu abastecimento.

No dia 23 de maio de 1949, surge a República Federal da Alemanha (RFA) e a cidade de Bonn sua capital; a União Sovié-tica anunciou, em outubro de 1949, a fundação da República Democrática Alemã (RDA) e Berlim Oriental sua capital.

A RDA adotou o regime comunista e a economia planifi-cada, dando prosseguimento à socialização da indústria e ao confisco de terras e demais propriedades privadas. O povo deveria ser transformado em uma coletividade homogênea, e aqueles que resistissem seriam classificados de inimigos da so-ciedade. Para evitar rebeliões e detectar eventuais insurgentes, a RDA ampliou a atuação do seu serviço secreto (Stasi), que pas-sou a vigiar a vida dos cidadãos. A par disso, o Partido Socialista Unitário (SED) era único na “democracia” alemã-oriental.

Com a divisão, surgem dois blocos político-econômicos antagônicos. Era o início da Guerra Fria, que em nenhuma outra parte do mundo se manifestou com tanta intensidade.

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Fronteiras da RDA, que autorizava repelir fugas com disparos de arma de fogo. As fugas eram consideradas crimes graves puni-dos com pena de 1 a 8 anos de prisão, conforme §213, inc. 3º, do Código Penal da RDA.

A decisão invocou o princípio do Estado de Direito e, mais especificamente, o princípio da proporcionalidade, pois os dis-paros não poderiam ter sido feitos de forma ininterrupta, mas de forma mais branda, apenas para alertar o fugitivo. Além disso, o Tribunal Territorial destacou que o princípio proibia sacrificar a vida, como bem jurídico supremo, frente a outros interesses. Restou afastada qualquer causa de justificação, pois a forma de prevenção de um crime não poderia ser considerada como bem superior à preservação da própria vida.

Os réus, inconformados, interpuseram recurso de revi-são para o Tribunal Supremo Federal, que, em 3 de novembro de 1993, manteve a condenação, mas adotou fundamentos diversos.

O julgamento pelo Tribunal Supremo Federal

A primeira questão examinada pelo Tribunal Supremo Fe-deral dizia respeito à aplicação da lei vigente na RDA na época do fato.

O Tratado de Reunificação da Alemanha, de 3 de outubro de 1990, determinou a aplicação em todo o território da extinta RDA do direito federal vigente na RFA.

Havia, entretanto, exceções previstas no Anexo I, como a aplicação do princípio da retroatividade da lei penal mais be-néfica ao ocorrido na RDA. Em face disso, o Tribunal Supremo Federal entendeu que a morte de Michael-Horst não poderia ser julgada pela legislação da RFA, e que a conduta dos guardas só poderia ser punida se o ato fosse considerado crime, na época dos fatos, na RDA.

Com efeito, o crime de homicídio estava previsto no §112 do Código Penal da RDA, mas o agente não poderia ser punido se estivesse ao abrigo de uma causa de justificação, tal como a prevista no §27 da Lei de Fronteiras.

Os fatos

Michael-Horst Schmidt, um jovem de 20 anos, na madru-gada do dia 1º de dezembro de 1994, utilizando uma escada, tentou pular o Muro de Berlim (VIGO, 2006, p. 232). Logo após conseguir ultrapassar o primeiro muro, o fugitivo foi avistado pelas sentinelas que faziam a guarda no local.

O cabo W., ao perceber a tentativa de fuga, enviou o sol-dado H. para a faixa de terra de 29 metros entre os dois muros, com o objetivo de solicitar que o fugitivo desistisse do seu in-tento. Michael-Horst, entretanto, ignorou os avisos do soldado, continuando a correr, o que fez com que alarmes fossem aciona-dos quando escalou o alambrado. Quando alcançou o segundo muro, posicionou sua escada e começou a subir nos degraus. Os guardas, então, decidiram atirar, como única forma de impedir a fuga.

O soldado H., a uma distância de 110 metros, realizou 25 disparos ininterruptamente. O cabo W., a 150 metros do local onde se encontrava o fugitivo, efetuou 27 disparos também de forma ininterrupta. Muito embora os militares tenham mirado nas pernas do fugitivo, Michael-Horst foi atingido nas costas e no joelho, quando estava no topo do muro. Como o fugitivo havia alcançado o outro lado, seu atendimento não era respon-sabilidade dos guardas. Isso implicou em uma demora de duas horas para o transporte ao hospital, onde veio a falecer. Essa demora foi considerada decisiva para a sua morte.

O julgamento pelo tribunal territorial de berlim

O Tribunal Territorial de Berlim, em 5 de fevereiro de 1992, condenou os dois guardas por homicídio em coautoria. O cabo W., menor na época dos fatos, recebeu uma pena juvenil de 1 ano e 6 meses, enquanto o soldado H. recebeu uma pena privativa de liberdade de 1 ano e 9 meses. Ambos receberam suspensão condicional da pena.

O Tribunal reconheceu que as condutas dos militares não estavam ao abrigo da justificativa prevista no art. 27 da Lei de

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Mauerschützen - o caso dos atiradores do muro: a fórmula radbruch e a pretensão de correção de Robert AlexyAlexandre Lipp João

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O jurista elabora um breve texto intitulado “Os cinco mi-nutos de filosofia do Direito” e, em 12 de setembro de 1945, distribui aos seus alunos da Faculdade de Direito de Heidelberg. Nesse texto, suscita o debate acerca do direito e moral e, con-sequentemente, sobre a validade de uma lei injusta.

PRIMEIRO MINUTO. Ordens são ordens, é a lei do solda-do. A lei é a lei, diz o jurista. No entanto, ao passo que para o soldado a obrigação e o dever de obediência cessam quando ele souber que a ordem recebida visa à prática dum crime, o jurista, desde que, cem anos antes, desapareceram os últimos jusnaturalistas, não conhece exceções desse gênero à validade das leis nem ao preceito de obediência que os cidadãos lhes devem. A lei vale por ser lei, e é lei sempre que, como na gene-ralidade dos casos, tiver do seu lado a força para se fazer impor. Essa concepção da lei e sua validade, a que chamamos positivis-mo, deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais criminosas. Torna equivalentes, em última análise, o direito e a força, levando a crer que só onde estiver a segunda estará também o primeiro.

SEGUNDO MINUTO. Pretendeu-se completar ou, antes, substituir esse princípio por este outro: direito é tudo aquilo que for útil ao povo. Isso quer dizer: arbítrio, violação de trata-dos, ilegalidade serão direitos desde que sejam vantajosos para o povo. Ou melhor, praticamente: aquilo que os detentores do poder do Estado julgarem conveniente para o bem comum, o capricho do déspota, a pena decretada sem lei ou sentença an-terior, o assassínio ilegal de doentes, serão direito. E pode até significar ainda: o bem particular dos governantes passará por bem comum de todos. Dessa maneira, a identificação do direito com um suposto ou invocado bem da comunidade, transforma um “Estado de Direito” num “Estado contra o Direito”. Não, não deve dizer-se: tudo o que for útil ao povo é direito; mas, em vez disso: só o que for direito será útil e proveitoso para o povo.

TERCEIRO MINUTO. Direito quer dizer o mesmo que von-tade e desejo de justiça. Justiça, porém, significa: julgar sem consideração de pessoas; medir a todos pelo mesmo padrão. Quando se aprova o assassínio de adversários políticos e se or-

Essa justificação envolvia a situação de utilização de recur-so extremo para impedir o cometimento de crime grave ou a fuga de um suspeito de crime grave, quando não existisse outro modo.

Definida a legislação aplicável ao caso, o Tribunal Supremo Federal afastou os fundamentos adotados pelo Tribunal Territo-rial de Berlim. Destacou que os princípios do Estado de Direito e da proporcionalidade não poderiam ser compatíveis com o regime autoritário da RDA.

O Tribunal Supremo Federal reconheceu que os fatos praticados pelos militares contra o fugitivo se enquadram na justificativa prevista no §27, inc. 2º, da Lei de Fronteiras, pois atiraram como última forma existente para impedir a fuga, con-siderada crime grave.

Outra questão suscitada pelo Tribunal Supremo Federal dizia respeito à aplicação do Pacto Internacional sobre Direi-tos Civis e Políticos, de 1966, firmado pela RDA. No entanto, o Pacto previa exceções à liberdade de saída nas fronteiras, não sendo capaz de afastar o §27 da Lei de Fronteiras da RDA.

Diante da insuficiência de elementos oriundos do direito positivo para afastar a justificação em tela, o Tribunal Supremo Federal utilizou uma causa supralegal. Ou seja, a morte do fugi-tivo constitui uma injustiça extrema? Surge a discussão sobre a Fórmula Radbruch.

A fórmula Radbruch

Gustav Radbruch, um dos mais importantes juristas e fi-lósofos alemães, após presenciar os crimes, as atrocidades e a barbárie praticados na Segunda Guerra, concluiu que o positi-vismo jurídico foi responsável pelas condutas cometidas pelos nazistas, que deixou sem defesa o povo e os juristas contra as leis mais arbitrárias, cruéis e criminosas, a partir do princípio a lei é a lei (GODOY, 2014).

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pensamentos acham-se expressos em duas passagens do Novo Testamento. Está escrito numa delas (S. Paulo, Aos romanos, 3, 1): “deveis obediência à autoridade que exerce sobre vós o poder”. Mas numa outra (Atos dos Apóstolos, 5, 29) está escrito também: “deveis mais obediência a Deus do que aos homens”. E não é isso aí, note-se, a expressão dum simples desejo, mas um autêntico principio jurídico em vigor. Poderia tentar-se resol-ver o conflito entre essas duas passagens, é certo, por meio de uma terceira, também do Evangelho, que nos diz: “dai a Deus o que é de Deus e a César o que é de César”. Tal solução é, po-rém, impossível. Esta última sentença deixa-nos igualmente na dúvida sobre as fronteiras que separam os dois poderes. Mais: ela deixa afinal a decisão à voz de Deus, àquela voz que só nos fala à consciência em face de cada caso concreto (MATZENB-CHER, 2011).

Sustenta, portanto, que se deve ponderar se uma lei má, nociva ou injusta deverá ainda reconhecer-se válida pelo amor da segurança do direito, ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade deverá ser recusada.

Logo a seguir, em 1946, Gustav Radbruch lança a impor-tante obra Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht (Arbitrariedade legal e direito supralegal), dela se extraindo a Fórmula Radbruch.

Em um primeiro momento, a fórmula tem o propósito de atacar os fundamentos do positivismo, que fez com os juris-tas alemães simplesmente se limitassem à máxima “lei é lei”, tornando-os impotentes contra leis de conteúdo arbitrário e cri-minoso, com os seguintes contornos (CORREIA JUNIOR, 2016):

[...] o conflito entre justiça e certeza jurídica pode ser bem resolvido do seguinte modo: o direito positivo, assegurado pela legislação e pelo poder, tem prioridade mesmo quan-do o seu conteúdo é injusto e não beneficiar as pessoas, a menos que o conflito entre a lei e a justiça chegue a um grau intolerável em que a lei, como uma “lei defeituosa”, deva clamar por justiça.

A seguir, Radbruch, ao buscar explicar sua tese, acaba por aprofundá-la nesses termos (CORREIA JUNIOR, 2016):

dena o de pessoas de outra raça, ao mesmo tempo que ato idêntico é punido com as penas mais cruéis e afrontosas se pra-ticado contra correligionários, isso é a negação do direito e da justiça. Quando as leis conscientemente desmentem essa vonta-de e desejo de justiça, como quando arbitrariamente concedem ou negam a certos homens os direitos naturais da pessoa huma-na, então carecerão tais leis de qualquer validade, o povo não lhes deverá obediência, e os juristas deverão ser os primeiros a recusar-lhes o caráter de jurídicas.

QUARTO MINUTO. Certamente, ao lado da justiça, o bem comum é também um dos fins do direito. Certamente, a lei, mesmo quando má, conserva ainda um valor: o valor de garantir a segurança do direito perante situações duvidosas. Certamen-te, a imperfeição humana não consente que sempre e em todos os casos se combinem harmoniosamente nas leis os três valo-res que todo o direito deve servir: o bem comum, a segurança jurídica e a justiça. Será, muitas vezes, necessário ponderar se a uma lei má, nociva ou injusta deverá ainda reconhecer-se va-lidade por amor da segurança do direito; ou se, por virtude da sua nocividade ou injustiça, tal validade lhe deverá ser recusada. Mas uma coisa há que deve estar profundamente gravada na consciência do povo e de todos os juristas: pode haver leis tais, com tal grau de injustiça e de nocividade, que toda a validade e até o carácter de jurídicas não poderão jamais deixar de lhes ser negados.

QUINTO MINUTO. Há também princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, de tal modo que toda a lei que os contrarie não poderá deixar de ser privada de validade. Há quem lhes chame direito natural e quem lhes chame direito racional. Sem dúvida, tais princípios acham-se, no seu pormenor, envoltos em graves dúvidas. Contudo, o esforço de séculos conseguiu ex-trair deles um núcleo seguro e fixo, que reuniu nas chamadas declarações dos direitos do homem e do cidadão, e fê-lo com um consentimento de tal modo universal que, com relação a muitos deles, só um sistemático ceticismo poderá ainda levantar quaisquer dúvidas. Na linguagem da fé religiosa, esses mesmos

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Robert Alexy critica a inserção das causas de justificação fora do Código Penal, entendendo como uma injustiça legal es-condida intencionalmente (GUBERT, 2006, p. 28).

Então, após examinar o caso à luz da legislação vigente na RDA, eliminando a hipótese de justificação pela aplicação da Fórmula Radbruch, sob o ponto de vista dos direitos humanos, e constatar que não há ferimento ao princípio da irretroatividade da lei penal prevista no art. 103.2, o Tribunal Supremo Federal passou ao exame da culpabilidade.

A culpabilidade

Os soldados que atiraram no fugitivo atuaram sob uma ordem e, em face disso, não teriam consciência de violar uma norma penal?

O Tribunal Supremo Federal entendeu que a morte de um fugitivo desarmado, mediante ininterruptos disparos de arma de fogo, constitui um agir privado de qualquer justificação racio-nal (VIGO, 2006, p. 207).

Robert Alexy, no entanto, aduz que os soldados deveriam ser absolvidos, pois se tratava de um caso de cegueira moral, muito comum entre jovens soldados da RDA, que sofreram in-tensa doutrinação (GUBERT, 2006, p. 31).

O Tribunal Constitucional Federal

Provocado por vários recursos constitucionais,2 o Tribunal Constitucional Federal, em 24 de outubro de 1996, pronunciou-se sobre os julgamentos, entendendo que estavam de acordo com a Constituição.

2Um desses recursos envolvia o caso de um guarda de fronteira que, em 1972, havia causado a morte de um fugitivo. O argumento do recurso estava centrado na violação do princípio da irretroativida-de da lei penal, com a aplicação da Fórmula Radbruch à hipótese de justificação, bem como ofensa ao princípio da culpabilidade, haja vista que a violação da norma penal não era tão evidente ao soldado.

[...] é impossível traçar uma linha bem-definida entre casos de ilegalidade positivada e leis que são válidas apesar de seus defeitos. Uma linha de distinção, contudo, pode ser traçada com máxima nitidez: quando não há nem mesmo uma tentativa de fazer justiça, onde equidade, o âmago da justiça, é deliberadamente traído na essência do direito po-sitivo, então a lei não é meramente uma ‘lei defeituosa’, ela perde completamente a real natureza de direito.

Partindo do caso alemão, Radbruch questiona a obediên-cia devida a ordens injustas dadas por superiores hierárquicos.

A fórmula conclui que a justiça prevalecerá sobre a lei que se revelou insuportavelmente injusta. Não se trata de qual-quer lei injusta, mas quando não há nem mesmo uma tentativa de fazer justiça, onde a equidade, como o âmago da justiça, é suprimida pela essência do direito positivo, então a lei perde completamente a real natureza de direito (VIGO, 2006, p. 204).

O Tribunal Supremo Federal utilizou a Fórmula Radbruch no julgamento, fundamentando a tese da extrema injustiça fren-te aos direitos humanos, notadamente em face da previsão de saída e da proteção da vida preconizadas no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (VIGO, 2006, p. 205).

A irretroatividade da Lei Penal

Uma questão de extrema importância no julgamento dos guardas alemães envolve a irretroatividade da lei penal prevista no art. 103, §2º, da Constituição alemã.

O Tribunal Supremo Federal entendeu que a sentença condenatória não feriu o princípio, pois o §27, inc. II, da Lei de Fronteiras da RDA permitiu uma interpretação favorável aos di-reitos humanos.

Partiu o Tribunal do reconhecimento do direito à vida e suas exceções proporcionais, previsto na própria Constituição da RDA, para afastar, já na data do fato, a causa de justificação, permitindo, assim, a condenação dos guardas.

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to e circunstâncias do fato. Ao final, no entanto, limita-se a dizer que a morte de fugitivo desarmado, mediante fogo intenso, consubstanciou-se em um ato horroroso e reprovável (VIGO, 2006, p. 222).

Pretensão de correção de Robert Alexy

Mais recentemente, Robert Alexy defendeu uma versão da fórmula de Radbruch, propondo argumentos distintos e mais sofisticados que aqueles que foram aduzidos pelo próprio Radbruch.

Alexy também colocou a fórmula de Radbruch dentro de um contexto maior de análise conceitual e de teorias sobre a natureza do direito.

Tanto Radbruch como Alexy alegam que suas posições são incompatíveis com o positivismo jurídico, e, por isso, funcionam como uma rejeição (e talvez refutação) dele.

Robert Alexy endossou a fórmula de Radbruch e a tornou uma peça central de sua teoria do direito, construindo uma teo-ria que combina a fórmula com a própria tese de adequação de Alexy (BRIX, 2016).

O argumento de Alexy, de que, para ser qualificada como jurídica, uma norma individual ou um sistema de normas deve alegar adequação, exibe uma forte semelhança com o argumen-to de Joseph Raz de que sistemas jurídicos necessariamente reivindicam às suas normas um status impositivo. Entretanto, Alexy deixa de fazer companhia a Raz quando afirma não ape-nas que um sistema jurídico que não reivindica a autoridade/adequação não é um sistema jurídico, como também quando afirma que um sistema jurídico (ou uma norma jurídica) que não tem bom êxito em ser correto/impositivo deveria ser por isso “defectivo” (BRIX, 2016).

Raz, ao contrário, deixa claro que um sistema que pre-tende ser impositivo, mas falha, ainda se mantém jurídico. Raz acredita que essa é a caracterização mais comum da maioria dos sistemas jurídicos.

A Fórmula de Radbruch

O Tribunal Constitucional Federal considerou que a juris-prudência do Tribunal Supremo Federal, baseada na Fórmula Radbruch, é compatível com a Lei Fundamental.

Reconheceu uma contradição insuportável entre o direito positivo e a justiça, reconhecendo que o princípio da segurança jurídica possa ser menos valioso que o de justiça material.

O Tribunal Constitucional Federal refere-se a um direito estatal extremamente injusto. Reconheceu, dessa forma, que o homicídio de fugitivos não pode ser reconhecido como um direi-to aplicado, mas uma injustiça extrema.

O princípio da irretroatividade da Lei PenalO Tribunal Constitucional Federal reconheceu que o art.

103, §2º, da Constituição da Alemanha, que prevê o princípio da irretroatividade da lei penal, é uma regra compatível com a democracia, os direitos humanos e a separação dos poderes.

Dessa forma, em face da ausência de democracia, se-paração de poderes e respeito aos direitos humanos na RDA, também o princípio da irretroatividade está afetado, não haven-do violação, pois o mesmo perdeu sua natureza absoluta.

Para Robert Alexy, a fundamentação do Tribunal não está correta, questionando como algo possa ser, ao mesmo tempo, absoluto e limitado. Para o autor, melhor seria se o Tribunal reco-nhecesse o princípio com validade absoluta, como regra geral, e uma exceção para os casos de ordenamentos injustos (GUBERT, 2006, p. 42).

Culpabilidade

Para enfrentar o argumento dos soldados, o Tribunal Constitucional Federal entende diferentemente do Tribunal Supremo Federal, pois destaca que a existência de uma grave violação aos direitos humanos não é suficiente para comprovar a culpabilidade.

Assim, para o Tribunal, o exame da culpabilidade deve ocorrer individualmente, considerando educação, doutrinamen-

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Conclusão

A condenação dos soldados pelas mortes dos fugitivos na RDA foi possível a partir da aplicação da Fórmula Radbruch, bem como pela flexibilização do princípio da irretroatividade da lei penal, o que significou o reconhecimento de uma moral cor-retiva ao direito.

No artigo “Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht” (“Injustiça legal e direito supralegal”), Gustav Radbruch elaborara a célebre fórmula de Radbruch, recuperada no pensa-mento jurídico recente por Robert Alexy.

A Fórmula Radbruch, criada após o final da Segunda Guer-ra Mundial, em face das atrocidades e barbáries praticadas pelo Estado nazista, busca superar a distinção entre direito e moral defendida pelo positivismo, naquelas situações em que a lei é insuportavelmente injusta.

A justiça alemã, ao aplicar a Fórmula Radbruch, reconhe-ceu que existe direito além das leis, uma espécie de direito “suprapositivo” (VIGO, 2006, p. 323).

No entanto, críticas são feitas ao Tribunal Constitucional Federal. A principal dela diz respeito à prática de um grande re-trocesso, na medida em que excepcionou o princípio do nullum crimen, nulla poena sine lege, o qual, inegavelmente, representa um avanço no Estado Democrático de Direito.

Robert Alexy, ao definir direito, também busca ultrapassar o modelo positivista de separação entre direito e moral, através de três argumentos: argumento da correção (o direito sempre formula uma pretensão de correção); quando a aplicação do di-reito constituir uma insuportável injustiça perderá sua validade (Fórmula Radbruch); os princípios, especialmente utilizados para casos difíceis e que contêm argumentos morais.

Para Robert Alexy, a injustiça extrema a que Radbruch se refere consiste em violar os direitos humanos, ou seja, direitos universalmente válidos, originariamente morais, obrigatoria-mente traduzíveis em direito positivo, prioritários em relação ao direito positivo, fundamentais (ligados à satisfação de ne-

Alexy poderia responder que mesmo se essa parte de sua variação da tese de Radbruch não é característica ao direito, ela é, não obstante, essencial ao direito. Alexy pode recorrer à sua mais ampla “reivindicação pela adequação” (BRIX, 2016).

Alexy sustenta ser imanente ao direito uma pretensão de correção, que é, na realidade, a pretensão de justiça. Para tanto, busca examinar as teses positivistas e não positivistas, que têm no conceito de direito a inclusão ou não do elemento moral. A grande distinção entre as teses, portanto, envolverá a separa-ção ou vinculação da moral ao direito.

Alexy propõe um conceito de direito onde três elemen-tos são essenciais: legalidade, eficácia social e correção material do conteúdo. Entende, portanto, que existem conexões concei-tuais e normativas necessárias entre direito e moral.

A correção seria a base para os sistemas jurídicos, normas individualmente consideradas e as decisões judiciais.

Alexy retoma a Fórmula Radbruch para afirmar que as nor-mas que ultrapassam limites de justiça perdem o caráter jurídico dentro do sistema a que estão vinculadas. Mas enfatiza que não basta a norma ser injusta, ela deve ser insurportavelmente injusta.

A pretensão de correção não é, ao contrário do que possa parecer, subjetiva. Alexy explica que tal formulação tem caráter objetivo, pois não é um assunto privado do operador do direi-to, mas é feita por pessoas em nome do direito: o juiz formula uma pretensão de correção em razão das partes do processo; o legislador formula uma pretensão de correção em razão dos destinatários da lei.

Em face disso, a pretensão de correção tem caráter uni-versal. São integrantes da pretensão de correção a garantia da fundamentação e uma expectativa normativa, ou seja, que os destinatários reconheçam como correta.

Em síntese, o argumento dos princípios e o da injustiça extrema utilizados por Robert Alexy para sustentar a tese da vinculação entre direito e moral estão baseados no argumento da correção.

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A análise conceitual em geral e as teorias sobre a natureza do direito em particular podem ser problemáticas no mais das vezes, e se elas estão para ser todas justificadas é importante que suas bases sejam exploradas. Ademais, é importante que qualquer e todas as conexões pretendidas entre teorias sobre a natureza do direito e teorias sobre como decidir casos sejam explicadas e justificadas. A famosa fórmula de Gustav Radbruch – tanto a original quanto a utilizada por Robert Alexy – oferece uma importante declaração sobre o modo de tomar decisões judiciais, mas ela é indubitavelmente muito mais improvável e infundada quando relançada como uma teoria sobre a natureza do direito (BRIX, 2016).

Referências

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Alexandre Lipp João

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O CONTROLE SOCIAL EM FACE DA CORRUPÇÃO: UM ESTUDO DE CASO DA

AÇÃO POPULAR N.º 700324841981

Jonathan Augustus Kellermann Kaercher 2 Carla Luana da Silva3

1 *Eixo temático: Patologias corruptivas e interesses públicos indisponíveis. Este artigo é resultado de pesquisas feitas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Polí-

ticas Públicas (CIEPPP), do Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da Uni-versidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), em Santa Cruz do Sul/RS, vinculado ao Diretório de Grupo do CNPq intitulado “Estado, administração pública e sociedade”, coordenado pelo prof. titular dr. Rogério Gesta Leal, decorrente de projeto de pesquisa intitulado “Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade: causas, consequências e tratamentos”.

2 Advogado. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito com Conceito 5 na Capes (mes-trado e doutorado) da Universidade de Santa Cruz do Sul/RS (UNISC), 2015-2016, em Santa Cruz do Sul/RS, com Taxa PROSUP/CAPES, na linha de pesquisa Políticas Públicas. É integrante do grupo de pesquisa “Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração e sociedade: causas, consequências e tratamentos”, coordenado pelo professor doutor Rogério Gesta Leal, vinculado ao PPGD-UNISC e certificado pelo CNPq. E-mail: <[email protected]>.

3 Advogada. Mestranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e douto-rado) da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), em Santa Cruz do Sul/RS, com bolsa PROSUP/CAPES, modalidade Taxa, na linha de pesquisa Constitucionalismo Contemporâneo. Integrante do Grupo de Pesquisa “Estado, administração pública e sociedade”, coordenado pelo prof. dr. Rogé-rio Gesta Leal, na linha de Patologias Corruptivas, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Direito (mestrado e doutorado) da UNISC. E-mail: <[email protected]>.

<http://www.institutoconceito.com/?p=392>. Acesso em: 23 out. 2016.

VIGO, Rodolfo Luis. La Injusticia extrema no és derecho: de Radbruch a Alexy. Buenos Aires: Facultad de Derecho de la Uni-versidad de Buenos Aires; Editorial La Ley, 2006.

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O controle social em face da corrupção:

um estudo de caso da ação popular n.º 70032484198Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

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Abstract

This work will deal about the Popular Action as an instru-ment of social control of the corruptive acts. Thus, the central problem of this research revolves around whether Popular Ac-tion might serve as social control corruptive practices? For this, the Popular Action in application in case of corruption as the acts performed in the Town Hall Council of Pelotas, in the State of Rio Grande do Sul (RS). So, in addition to a bibliographical study, this article will look at the case law of the Court of the State of Rio Grande do Sul, the contributions required for the comments of how this has been handled aiming at the control of public procurement with regard to commit corruptive acts, in this case, the practice of nepotism.

Keywords: Popular Action; Social control; Corruption.

Resumo

O presente trabalho versará sobre a ação popular como instrumento de controle social dos atos corruptivos. O problema central desta pesquisa gira em torno de analisar se a ação po-pular poderá servir como controle social às práticas corruptivas. Analisaremos a ação popular em aplicação no caso concreto de corrupção quanto (RS). Assim, para além de um estudo biblio-gráfico, o presente artigo buscará na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul os aportes necessá-rios para as observações de como tal ação tem sido manuseada visando ao controle da contratação pública no que diz respeito à prática de atos corruptivos – no caso, a prática de nepotismo.

Palavras-chaves: Ação popular; Controle social; Corrupção.

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O controle social em face da corrupção:

um estudo de caso da ação popular n.º 70032484198Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

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recimento de dinheiro” (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014, p. 19-20).

Nas palavras de Nucci (2015), conceituar corrupção seria uma tarefa quase que impossível pelo fato de comportar, além de muitas consequências, diversos significados. Um ponto claro que se pode perceber é que a corrupção, de qualquer forma, seria um ponto negativo, jamais positivo, para as sociedades.

As condutas corruptivas são entendidas como extre-mamente complexas, onde se envolvem agentes públicos e privados, pessoas físicas e pessoas jurídicas. É difícil encontrar uma definição ou até mesmo um único conceito que venha a contemplar todas as possibilidades que o vocabulário encerra (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014). Livianu (2014) conceitua corrupção como toda e qualquer vantagem obtida pelos agen-tes públicos estando no exercício de suas funções e causando prejuízo a interesses, bens e serviços do Estado.

Já Leal (2013) observa que na tradição do pensamento político ocidental, não há consenso sobre o que vem a ser cor-rupção, ou seja, não há uma definição nesse sentido. Portanto, não se pode falar de uma única teoria política de corrupção, pois existem diferentes abordagens sobre o tema, através de determinados marcos teóricos e filosóficos.

La corrupción tiene semejanza com la palabra corrosión, efectivamente, la acción corrupta se puede dar em forma instantánea, pero tras de ella hay todo um proceso en el que la conciencia y la voluntad han sido poco a poco cor-roídas. Incluso las fuentes originales de esta tendencia per-versa trascienden nuestro momento histórico. (GONZÁLEZ LLACA, 2015, p. 168). 4

Em outras palavras, esse fenômeno é difícil de se com-preender e definir, haja vista que possui diversos campos de conhecimento, pois inúmeros são os conceitos que esclarecem essa prática. Logo, é possível também entender que a corrup-ção vem a surgir como uma ideia de destruição e degradação.

4 A corrupção tem semelhança com corrosão, onde de fato a ação corrupta pode se dar instanta-neamente, mas por trás dela há todo um processo em que a consciência terá sido gradualmente corroída. As fontes originais dessa tendência vão além do nosso momento histórico.

Inicialmente, salienta-se que os contornos sociais e econômicos que são dados em torno da corrupção expõem diariamente

consequências que passam do âmbito da administração pública brasileira, gerando variadas consequências à sociedade. Assim, diante da crescente preocupação com a corrupção, surgem os meios de controle para sua inibição, sendo um desses mecanis-mos existentes o controle social exercido por meio do instituto da ação popular.

Aborda-se, especificadamente, no presente artigo, o con-trole social exercido por meio da Ação Popular nº 70032484198 contra a prática do nepotismo na Câmara Municipal de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul (RS). Considerando que o ne-potismo é uma prática corruptiva que está vinculada às relações de parentesco no trabalho e emprego, e que o seu desencadea-mento viola as garantias constitucionais, pergunta-se: poderá a ação popular servir como controle social às práticas corruptivas?

Para desenvolver uma resposta ao presente questiona-mento, faz-se, primeiramente, um estudo do que vem a ser a corrupção, seus feitos e as estratégias para sua inibição. Em um segundo momento, traz-se os mecanismos de controle a essas práticas, dentre os quais o controle social pelo cidadão por meio da ação popular. Assim, tem-se que o tema central do presente estudo é a ação popular como instrumento de controle social dos atos corruptivos, tendo em vista sua aplicação pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Eis o tema desenvolvido.

Ponderações conceituais sobre a corrupção como fenômeno multifacetado

A corrupção é um fenômeno definido pela Organização das Nações Unidas como sendo o “abuso da função pública para ganho pessoal direto ou indireto”, enquanto o Dicionário Houaiss a define como um “ato ou efeito de subornar uma ou mais pessoas em causa própria ou alheia, geralmente com ofe-

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Logo, a corrupção tanto pode sugerir a ideia de destruição como a de mera degradação, assumindo uma perspectiva natural, como evento efetivamente apurado na realidade fenomênica, ou meramente valorativa.

Assim, a corrupção é entendida como uma relação social estabelecida por duas pessoas ou dois grupos de pessoas com-postos por corruptos e corruptores, com a intenção de transferir renda ilegal, tanto da sociedade como de fundo público, para a concretização de fins exclusivamente privados.

Tal relação também abrange a troca de favores estabeleci-da entre os grupos ou pessoas e, comumente, ao pagamento dos corruptos com a utilização de propina ou de quaisquer outros tipos de incentivos, compactuados pelas regras do jogo e, em consequência, pelo sistema de incentivos que delas insurgem.

Ademais, as histórias que são difundidas sobre o tema da corrupção buscam esclarecê-la como um fenômeno multifacetá-rio, cujos aspectos são culturais, políticos, sociais, institucionais e econômicos. É definida como um padrão de comportamento que se afasta de normas predominantes em um dado contexto, sendo que tal comportamento é associado a uma particular mo-tivação que, conforme tratado anteriormente, é o ganho privado a expensas do público (BREI, 2016). E as suas consequências são inúmeras:

[…] la corrupción ha provocado en la administración pública desgracias semejantes: pérdida de efectividad, aumento de costos en la burocracia y de gastos en la sociedad; resul-tados fuera de control y los programados absolutamente precarious. En un gobierno corrupto, entrar a una oficina pública es dar un paso en el abismo; el riesgo y la incerti-dumbre campean. Lá pérdida de reglas y el dominio de la informalidad convierten a la tramitología en una película de terror, todo puede suceder. (LLACA, 2015, p. 168).5

5 A corrupção tem provocado na administração pública desgraças semelhantes: perda de efetivida-de, aumento de custos da burocracia e de gastos com a sociedade; resultados fora de controle e programas absolutamente precários. Em um governo corrupto, entrar em um setor público é dar um passo na direção do abismo; o risco e a incerteza predominam. A perda de regras e o domínio da informalidade convertem a burocracia em um filme de terror, onde tudo pode acontecer.

Assim, nessa perspectiva, ela acaba por degradar um interesse público em face de um interesse privado “vale dizer, aquele que, a um só tempo, propicia uma vantagem indevida para si próprio e enseja um benefício para o particular que compactuou com a prática corrupta” (GARCIA, 2013, p. 68). Esse tipo de benefício não passa a ser somente econômico: no âmbito político, por exemplo, a exploração do prestígio e a conduta desviada com o intuito de obter vantagem de natureza política, mesmo que não tenha finalidade econômica, caracteriza igualmente a corrupção (PETRELLUZZI; RIZEK JÚNIOR, 2014). Isso não ocorre somente em esfera pública, mas também em esfera privada, como é o caso de empresas que são corrompidas por meio de seus funcio-nários, os quais se utilizam do cargo que ocupam a fim de obter ganhos pessoais próprios ou alheios.

Logo, dá para se considerar que quem, para se firmar no controle, utiliza, ilegalmente, de sua função, mesmo que não obtenha vantagem econômica, está também agindo de maneira corrupta. Ademais, a ausência de consciência coletiva somada à supremacia do interesse privado sobre o público é igualmente um poderoso elemento de estímulo à corrupção, tornando-se socialmente aceitável (GARCIA, 2013).

Com isso, dá para se estabelecer o entendimento de que a corrupção deve ser entendida em um sentido amplo, ou como um problema amplo, onde qualquer locupletamento indevido de-corrente da prática de um ato ilegal ou antiético para beneficiar alguém ou alguma atividade, ou ainda ter um comportamento indevido para obter algum benefício para si ou para outrem con-figura um ato de corrupção, ainda que sem valor econômico. Nesse sentido amplo, por exemplo, também seriam “atos de corrupção o do empregado que assina o livro de presença por outro ou o funcionário que pula a catraca controladora de entra-das e saídas para burlar a vigilância de horário de expediente” (GRECO FILHO; RASSI, 2015, p. 16).

O fenômeno da corrupção, portanto, é definido como um tema amplo e difícil de compreender, em razão de abranger variados campos do conhecimento, havendo, nesse sentido, va-riados conceitos que esclarecem o que vem a ser esta prática.

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nal. Governos caíram. Partidos há muito no poder foram ex-pulsos do comando. Presidentes, primeiros-ministros, par-lamentares e caciques corporativos antes poderosos foram questionados/investigados, à exaustão, por promotores, e engrossam os registros de processo judiciais. Itália, França, Japão, Coréia do Sul, Índia, México, Colômbia, Brasil, Áfri-ca do Sul: nenhuma região escapou e pouquíssimos países estão imunes. (GLYNN, P.; KOBRIN, S. J.; NAÍM, M., 2002, p. 27).

Diante disso, depreende-se que a corrupção tem efeitos significativos sobre a democracia, no sentido de que ela rom-pe com os pressupostos fundamentais do regime, tais como a igualdade política e a participação. Minimiza a influência da população no processo de tomada de decisões, seja em razão de fraudes nos processos decisórios, como nas eleições, seja pela desconfiança e pela suspeita que ela vem a gerar entre os próprios cidadãos com relação ao governo e às instituições democráticas. Acaba, por fim, minimizando a transparência das ações dos governantes (MENEGUELLO, 2011).

A corrupção não pode ser considerada um fenômeno exclusivamente de uma sociedade ou de um momento de seu desenvolvimento, conforme sugerem algumas teorias evolutivas modernizantes, haja vista que ela está corrente nas formações sociais mais distintas, consoante comprovam trabalhos publica-dos nos últimos anos nas ciências sociais (BEZERRA, 1995).

Além do exposto, as práticas definidas como corruptas ou, em outras palavras, corruptoras não são idênticas, pois sofrem uma variação significativa. De fato, o fenômeno da corrupção possui uma dimensão legal, histórica e cultural que não pode ser negligenciada quando se pretender estudá-la (BEZERRA, 1995).

A corrupção, portanto, é um dos assuntos mais debatidos no processo comunicativo de globalização, em que se reúnem esforços e auxílios internacionais para o seu combate, bem como para a implementação e o fortalecimento de ferramen-tas preventivas e de diagnósticos precisos, pois tal debate é um objetivo comum frente aos povos civilizados e democráticos (OSÓRIO, 2013).

A par disso, é necessário ressaltar que a corrupção é trazida por meio de temas centrais no processo comunicativo de globa-lização, em que se buscam unir esforços internacionais, tanto para o seu controle como para uma provável execução, difusão e fortalecimento de ferramentas preventivas e de diagnósticos que sejam eficazes, buscando, com isso, objetivos comuns aos povos civilizados e democráticos (OSÓRIO, 2013).

Em verdade, quando a corrupção se encontra espalhada em todo o corpo politico e tolerada pela comunidade, as pes-soas mais necessitadas, por consequência, sentem os efeitos dessa mazela social de forma mais direta, em razão de que as estruturas dos poderes instituídos se ocupam, por vezes, com questões que lhes rendam vantagens, seja de grupos, seja de indivíduos, do que com interesses públicos vitais existentes (LEAL, 2013). Em consequência disso,

[…] hospitais públicos deixam de atender pacientes na for-ma devida porque são desviados recursos da saúde para outras rubricas orçamentárias mais fáceis de serem manipu-ladas e desviadas como prática de suborno e defraudação; famílias em situação de pobreza e hipossuficiência material não podem se alimentar porque os recursos de programas sociais são desviados para setores corruptos do Estado e da Sociedade Civil; as escolas públicas não têm recursos orçamentários à aquisição de material escolar em face dos desvios de recursos para outros fins, e os alunos ficam sem condições de formação minimamente adequadas. (LEAL; KAERCHER, 2015, p. 02).

Infelizmente, quando as pessoas se tornam mais conscien-tes dos danos que a corrupção provoca a interesses públicos e mesmo privados, elas ficam sensibilizadas com medidas de enfrentamento e tratamento dessa patologia (LEAL, 2014). Em razão de ser uma patologia manifesta em grande parte do mun-do, deixou de ser somente uma preocupação nacional. Assim, ao longo dos anos, a corrupção se tornou uma preocupação pre-dominantemente nacional ou regional, transformando-se em um tema de debate global. Vê-se que

[...] em menos de meia década a reação mundial contra a corrupção tomou de assalto o cenário político internacio-

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aspecto, surgem para esse contexto os meios de controle da administração pública, com especial relevância o meio de con-trole social exercido através do cidadão pelo instituto da ação popular. Tem-se que a ação popular é um remédio constitucio-nal onde qualquer cidadão tem a legitimidade para o exercício de um poder de natureza essencialmente política, constituindo, desse modo, manifestação direta da soberania popular (SILVA, José, 2007).

Como bem ensina Justen Filho (2005), o controle da ativi-dade administrativa dependeria da utilização de instrumentos adequados e satisfatórios, e os instrumentos que trazem em seu bojo a participação popular, os controles sociais, atenderiam essas expectativas. Furtado (2015, p. 62) aponta que “a neces-sidade de controlar as atividades administrativas desenvolvidas pelo Estado, é percebida de modo evidente pela comunidade como instrumento imprescindível de combate e prevenção da corrupção”.

Diz–se que foi com o término do período autoritário, vi-gente de 1964 a 1985, que acaba por constar na agenda política brasileira o controle social, tendo com ele a proposta de ele-var o nível de transparência do Estado brasileiro (BOTELHO, 2010). Consoante Botelho, o controle social surgiria como uma esperança de que por meio de organizações formais e informais ocorresse a fiscalização das organizações públicas, tornando seu exercício efetivamente exercido.

Segundo Mancuso (2001, p. 17), o modelo de Estado de Direito, sendo substancialmente democrático, dependeria da eficácia desse controle social sobre o poder com o intuito de se prevenir da consequência do perecimento das instituições bási-cas que o compõem: “A Constituição Federal vigente instaurou, claramente, uma democracia participativa, que conclama os ci-dadãos, isoladamente ou reunidos em associações ou sindicatos, a colaborarem na gestão e fiscalização da coisa pública”. Reflete ainda Mancuso que no Brasil o vigor democrático é expresso na Constituição Federal de 1988 por meio de mecanismos ju-risdicionais de controle dos atos do poder público, em especial

No entanto, uma das respostas que parece ser mais viável é que o Estado deve procurar fomentar a utilização de mecanis-mos de “controle” já existentes, bem como a criação de novos meios que auxiliem na minimização de atos corruptivos. A partir daí, como já está acontecendo, se entende que algumas mudan-ças acontecerão, mesmo que vagarosamente.

É interessante frisar que a tarefa de buscar a inclusão social das parcelas da população menos favorecidas encontra di-ficuldades na progressiva carência de recursos financeiros, não só no nosso País, como em grandes potências mun-diais, como os Estados Unidos. Mas, no Brasil, o problema é mais crônico, pois, além da grande desigualdade social com a qual convivemos, deparamo-nos com altos índices de corrupção praticada por agentes que deveriam estar a serviço da sociedade e não de interesses pessoais. (BOTE-LHO, 2010, p. 120).

A par disso, dentre tantos mecanismos que estão presen-tes no sistema brasileiro, um deles que parece ser de grande relevância é o instituto da ação popular. Botelho (2010, p. 185), nesse sentido, dispõe que: “a Ação Popular é um instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para que se possa anular ato lesivo ao patrimônio público, exercendo grande rele-vância no combate a corrupção”. A partir dessa visão é que se analisa a possibilidade do instituto de a ação popular servir como controle social pelo cidadão em face das práticas corruptivas.

Esse é o tema que se passa a analisar, com o auxílio de um estudo de caso, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, envolvendo a prática de nepotismo.

O controle social exercido através da ação popular contra a corrupção: análise do caso

concreto nº 70032484198

Frente a um cenário de uma corrupção desenfreada e multifacetada, surgiria a necessidade de buscar mecanismos de controle para inibição desse fenômeno. Pensando nesse

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cidadão, que, tendo o poder de escolher os governantes, deve ter, também, a faculdade de lhes fiscalizar os atos da administra-ção.” (MEIRELLES, 2010, p. 129).

Quanto ao segundo requisito, a ilegalidade ou ilegitimida-de do ato a invalidar diz-se que seria aquele contrário ao Direito, infringindo “normas específicas que regem sua prática ou por se desviar dos princípios gerais que norteiam a Administração Pública” (MEIRELLES, 2010, p. 129), resultando em lesão ao pa-trimônio público. Falando em patrimônio público já nota-se que o terceiro requisito é justamente a lesividade7 ao mesmo, onde lesivo será “todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração, assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívicos e culturais, ambientais ou his-tóricos da comunidade” (MEIRELLES, 2010, p. 129).

Justen Filho (2005) argumenta que o presente instru-mento teria fins preventivos, buscando impedir efeitos lesivos, como também repressivos, sendo proposta depois da lesão, com o intuito de anular o ato e responsabilizar os causadores do dano. Nesse sentido, toma-se como base o caso concreto nº 70032484198 do Tribunal de Estado do Rio Grande do Sul, para analisar esses aspectos específicos de aplicação da ação popular, como meio repressivo, anulando atos lesivos, entendi-dos aqui pelas práticas corruptivas:

APELAÇÃO CÍVEL. REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO POPU-LAR. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MUNICÍPIO DE PELOTAS. CÂMARA MUNICIPAL DE VEREADORES. PRÁTICA NEPÓTICA. AUSÊNCIA DE INTERESSE PROCES-SUAL AFASTADA. EFETIVIDADE E UTILIDADE DA AÇÃO CONSTITUCIONAL. SUMULA VINCULANTE Nº 13, SUPRE-MO TRIBUNAL FEDERAL. MORALIDADE ADMINISTRATI-VA. AGRAVO RETIDO. 1. Agravo retido. Não se conhece de agravo retido sobre o qual a parte deixa de reiterar seja apreciado nas razões de apelação. Aplicação do art. 523, §1º, do CPC. 2. Interesse processual. Considerando-se que a atividade administrativa fundamenta-se nos primados da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e efi-ciência, e que ao Estado compete zelar pelo meio ambiente

7 A lesividade que abrange o texto constitucional abrange tanto o patrimônio material como o moral, bem como estético, espiritual e histórico.

pela criação de instrumentos processuais vinculados à defesa da cidadania.

Sendo disposta como um desses instrumentos constitucio-nais de defesa da cidadania, sabe-se que a ação popular é um importante remédio constitucional. Na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso LXXIII, e na Lei Infraconstitucional nº 4.717 de 1965, dispõe a presente, ser um meio constitucional posto à disposição de qualquer cidadão para obter a invalidação de atos ilegais ou lesivos ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.

Conforme explica Justen Filho (2005, p. 777), a ação popular irá se configurar uma garantia inerente ao sistema de-mocrático, no sentido de resguardar a participação popular no controle da atividade administrativa:

A Ação Popular se caracteriza pela legitimação de qualquer cidadão para questionar atos administrativos, o que propi-cia a ampliação significativa da participação popular na vida comunitária e representa um modo de integração entre a sociedade e o Estado. Esta natureza justifica um regime ju-rídico próprio e peculiar, diferenciado em face dos demais instrumentos processuais.

Analisando seu conteúdo, a ação popular seria um ins-trumento de defesa dos interesses da coletividade, não se amparando por ela direitos individuais próprios, mas da comu-nidade, sendo beneficiário direto e imediato o povo, titular do direito subjetivo de um governo honesto (MEIRELLES, 2010). Botelho (2010) explica que são requisitos da ação popular o ajuizamento da ação feito por cidadão brasileiro, a presença de ilegalidade ou ilegitimidade do ato a invalidar e que o ato seja lesivo ao patrimônio público.

Especificando, o primeiro requisito de ser cidadão6 reflete-se no fato de ser toda pessoa humana no uso e gozo de seus direitos cívicos e políticos, tendo a qualidade de eleitor. “Isso porque tal Ação se funda essencialmente no direito político do

6 Os inalistados, os partidos políticos, entidades de classe ou qualquer outra pessoa jurídica não têm qualidade para propor ação popular. Vide Súmula nº 365 do STF.

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tação de servidores públicos) e a condenação dos responsáveis pela prática de nepotismo no âmbito do Poder Legislativo local.

Na mesma oportunidade da apelação foi interposto agra-vo retido, o qual, por unanimidade, não foi conhecido pela turma nos termos do art. 523, §1º, do CPC. No acórdão da apelação também houve a exclusão da lide de um corréu, bem como parcial provimento ao recurso. Thiago Seidel apresentou suas razões recursais, no entanto, apenas uma litisconsorte apresen-tou resposta pleiteando sua exclusão da lide, porquanto não mais ocupará cargo de confiança junto ao Poder Legislativo do município de Pelotas.

Nos termos do art. 1º da Lei nº 4.717/65, os desembarga-dores constataram a possibilidade do manejo de ação popular para obstar a prática de nepotismo, objetivando a anulação dos atos de admissão de servidores comissionados ou contratados para exercer função gratificada junto à Câmara. Alude o art. 1º da Lei nº 4.717/65 que qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios e que, [...]. §1º - Consideram-se patrimônio público para os fins referidos, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico.

Nesse sentido, constatou-se que o ato lesivo é aquele que pode ser classificado como algo que malfere a moralidade admi-nistrativa, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural, servindo a ação para atacá-lo. Essa manifestação foi destacada pela Constituição Federal em seu art. 5º, LXXIII, quando diz que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou à entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência.

Sob a orientação dessas disposições, determinou-se como finalidade principal do manejo do instituto da ação popular a ces-sação desse ato lesivo, que pode concretizar-se por providência constitutiva negativa, como é o caso da anulação. O objetivo fim

e pelo patrimônio cultural lato sensu, em ocorrendo lesão a tais direitos, qualquer cidadão eleitor estará autorizado a fazer valer em juízo a tutela desse bem, valor ou interesse, por meio de actio popularis, conforme a norma constitucio-nal – art. 5º, inciso LXXIII. Se a providência desconstitutiva e/ou condenatória for insuficiente para frear o ato lesivo ou ameaçador ao patrimônio público, outras medidas a ela se somarão, face à máxima efetividade e maior utilidade da ação. Interesse processual do autor popular reconhecido, do que decorre a impositiva desconstituição da sentença para iniciar-se a fase instrutória, a fim de que se comprove a imoral prática de nepotismo na seara do Poder Legislativo do Município de Pelotas, demonstrando-se a condição de servidores públicos dos réus e o grau de parentesco destes com os Srs. Vereadores. AGRAVO RETIDO NÃO CONHE-CIDO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA. (Apelação e Reexame Necessário nº 70032484198, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 17/03/2011).

Pode-se observar a utilização do controle social por meio da ação popular em face da corrupção. Trata-se de decisão jul-gada em 17 de março de 2011 e publicada em 6 de abril do mesmo ano, pela Terceira Câmara Cível, em reexame necessário de Apelação Cível nº 70032484198 interposta por Thiago Seidel em face da sentença que extinguiu, sem resolução de mérito, a ação popular ajuizada contra a Câmara Municipal de Pelotas, seus respectivos vereadores e seus parentes, em razão da ina-dequação da via eleita.

No caso em tela, o senhor Thiago Seidel ajuizou ação po-pular contra a Câmara de Vereadores do município de Pelotas, contra seus respectivos vereadores e os parentes de tais agen-tes, investidos em cargo comissionado ou de confiança, e ainda de função gratificada, no Poder Legislativo local. O objetivo da ação visava à demissão de todos os parentes até terceiro grau já contratados pelos senhores vereadores, e a proibição em defini-tivo de contratação desse tipo.

In verbis, a sentença foi extintiva, ao argumento de que o cunho da ação popular é desconstitutivo e, subsidiariamente, condenatório, não servindo para determinar a obrigação de fazer ou não fazer, como a desconstituição de ato tido ilegal (contra-

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gal constitucional e infraconstitucional. Contudo, observando a constituição do ato lesivo, desconstitui-se a sentença e determi-nou-se o retorno dos autos ao primeiro grau para que tais dados aportem aos autos, autorizando o julgamento de mérito.

Vê-se que nesse caso concreto a ação popular figuraria como controle da prática de nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra atos tidos como cor-ruptos. Essa, por sua vez, em sua utilização, mostrou resultados positivos, visto que tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público em sentido lato, como tão bem se configura pela corrupção.

O manuseio da ação popular estaria concretizando a par-ticipação popular, refletida pela abertura à cidadania dada pela Constituição, e, como visto, seus efeitos são essencialmente efetivos. Como já relacionado, pelo fato de a corrupção deli-near-se como um fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva para sua inibição parece estar na utilização dos ins-trumentos à disposição da sociedade, que seria a peça-chave para essa realização do objetivo de construir uma sociedade em prol do interesse público.

Todavia, mesmo vendo a efetividade da utilização da refe-rida ação como meio de controle social a práticas corruptivas, Botelho (2010) aponta que a população ainda não está acostuma-da a exercer esse controle social sobre os atos da administração pública, deixando uma atuação muito a desejar, sendo muitas vezes até mesmo utilizada de forma desvirtuada como instru-mento de oposição política. Esse é um fato a se pensar.

Conclusão

De fato, um dos grandes problemas enfrentados pela so-ciedade, tanto a nível nacional como global, é a corrupção. Esta, por sua vez, entendeu-se como um fenômeno extremamente complexo, visto que, por ter um largo campo de abrangência, não tem como se obter uma definição ou mesmo um único con-ceito do que vem a se constituir. Mesmo não tendo como se

seria sempre a máxima efetividade e a maior utilidade da ação popular, devendo sempre prevalecer a interpretação que confira a maior extensão da proteção dos interesses em questão.

Na oportunidade, viu-se que tal prática contraria a Súmula Vinculante nº 13 do STF,8 que proíbe a prática do nepotismo no âmbito dos três Poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, e possui função normativa, vinculando os órgãos do Poder Judiciário à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Essa práti-ca estaria caracterizando indiscutivelmente uma das formas de corrupção, que como visto, traz em seu bojo efeitos nefastos à sociedade.

Por tudo, admissível é o pedido em ação popular, além de visar à desconstituição do ato contrário à moralidade admi-nistrativa (anulação das nomeações dos parentes comissio-nados dos vereadores do Município de Pelotas, por prática nepótica), dispensável a demonstração de lesividade ao patrimônio público, também contemplar a ordem de abs-tenção de novas contratações ao arrepio da diretriz cons-titucional, para conferir efetivamente àquele comando, o que vai ao encontro da Súmula Vinculante nº 13 (Apelação e Reexame Necessário nº 70032484198, Terceira Câmara Cí-vel, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rogério Gesta Leal, Julgado em 17/03/2011).

Foi reconhecida, então, a possibilidade de manejo de ação popular ao caso em tela, visto que a prática do ato corruptivo de nepotismo estaria sendo lesiva à moralidade administrativa, estando até mesmo por infringir súmula do Supremo Tribunal Federal.

No caso, constatou-se que não haveria provas seguras da condição de servidores públicos dos réus, nem mesmo do grau de parentesco com os vereadores do legislativo local, matéria a ser aferida em nível de primeiro grau, no devido processo le-

8 A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investi-do em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.

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Referências

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______. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 abr. 2016.

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______. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869.htm>. Acesso em: 12 jul. 2016.

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BREI, Zani Andrade. Corrupção: dificuldades para definição e para um consenso. Disponível em: <file:///C:/Users/Usu%C3%A1rio/Downloads/8128-17567-1-PB.pdf>. Acesso em: 24 maio 2016.

FURTADO, Lucas Rocha. As raízes da corrupção no Brasil: estu-dos de caso e lições para o futuro. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

GARCIA, Emerson. Improbidade administrativa. 7. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

GLYNN, P.; KOBRIN, S. J.; NAÍM, M. A globalização da corrupção. In: ELLIOTT, Kimberly Ann (Org.). A corrupção e a economia glo-bal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

chegar a uma unanimidade conceitual, compartilhou-se da ideia de que a corrupção tem efeitos significativos sobre as esferas da sociedade.

Viu-se que, frente a esse cenário, a procura de mecanismos para a inibição da corrupção tornou-se um tema relevante a se considerar. Assim, dentre tantos mecanismos que estão presen-tes no sistema brasileiro, o que pareceu assumir o papel de ser a solução mais efetiva foi o instituto da ação popular, entendida como controle social da administração pública. A ação popu-lar constituiu-se como um instrumento constitucional posto à disposição do cidadão para anular atos lesivos ao patrimônio público, exercendo grande relevância no controle da corrupção.

Sob esse viés, analisou-se, então, o caso concreto da Ação Popular nº 70032484198 do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, ação manuseada, visando ao controle da contra-tação pública no que diz respeito à prática de ato corruptivo. Nessa avaliação, entendeu-se que a ação popular figuraria como controle da prática de nepotismo, sendo, portanto, um controle social por parte do cidadão contra atos tidos como corruptos.

Nessa aplicação, sua utilização mostrou resultados positi-vos, visto que, tenha atendido seu objetivo de anular atos que sejam lesivos ao patrimônio público, no caso em tela lesivo à moralidade administrativa. Assim, o manuseio da ação popu-lar estaria concretizando a participação popular, refletida pela abertura à cidadania dada pela Constituição. Considerando que a corrupção torna-se um fenômeno cada vez mais complexo, a solução mais efetiva para sua inibição parece estar na utiliza-ção dos instrumentos à disposição do cidadão. E, nesse sentido, concluiu-se que o instrumento da ação popular serve como con-trole social efetivo a ela.

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O controle social em face da corrupção:

um estudo de caso da ação popular n.º 70032484198Jonathan Augustus Kellermann Kaercher e Carla Luana da Silva

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O PARADIGMA DA CIÊNCIA MODERNA E CRISE DA LEI: capacidade normativa e conjuntura.

José Elias Gabriel Neto1 Raquel Fabiana Lopes Sparemberger2

1 Mestrando em Direito da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público – FMP. Advogado. E-mail: [email protected].

2 Pós-doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Advogada. E-mail: [email protected].

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O paradigma da ciência moderna e crise da lei: capacidade normativa e conjuntura.José Elias Gabriel Neto e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

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Abstract

This study deals with the transformation of the political--legal system with the passage of the Liberal state model for the welfare state, which culminated in the “crisis of the law.” As a byproduct, there was a sharp legislative inflation that broke with the traditional paradigm of tripartism powers, so that the executive branch has to perform ordinary duties of the legisla-ture, a phenomenon known as delegificação. The methodology is useful in the literature, as shown by national and foreign lite-rature properly articulated in the quotations and footnotes. The method of approach was inductive and history.

Keywords: Crisis of the law. Liberal State. Legislative infla-tion. Welfare state.

Resumo

O presente estudo trata da transformação do ordena-mento político-jurídico com a passagem do modelo de Estado Liberal para o Welfare State, o qual culminou na chamada “crise da lei”. Como um subproduto, houve uma acentuada inflação le-gislativa que rompeu com o paradigma tradicional da tripartição de poderes, de modo que o Poder Executivo passou a exer-cer as atribuições ordinárias do Poder Legislativo, fenômeno conhecido como delegificação. A metodologia utilizada tem fun-damento na pesquisa bibliográfica, como se vê pela bibliografia nacional e estrangeira devidamente articulada nas citações e notas de rodapé. O método de abordagem foi o indutivo e o histórico.

Palavras-chave: Crise da lei. Delegificação. Estado Liberal. Inflação legislativa. Welfare state.

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O paradigma da ciência moderna e crise da lei: capacidade normativa e conjuntura.José Elias Gabriel Neto e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

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ainda mais, a “crise da lei” a que nos referimos desde o início destas ponderações.

O paradigma da ciência moderna

O paradigma da ciência moderna baseado na racionalidade científica que delineou o modo de agir do homem contemporâ-neo tem como principais influências o pensamento cartesiano3 e a filosofia kantiana. É nele que se fundamenta o direito como ciência jurídica, isto é, o Direito Positivo, alicerçado na ideia de ciência linear e cumulativa, principal fonte do Direito brasileiro.

Para Boaventura de Sousa Santos (1999, p. 15) o mode-lo de racionalidade fundamenta-se nas ciências naturais, tendo como centro a matemática e, por consequência, passa a ser re-gida por um rigoroso determinismo, apoiando-se na formulação de leis à luz de regularidades observadas. Nessa perspectiva, que caracteriza o paradigma das ciências modernas, “o rigor científico afere-se pelo rigor das medições” e conhecer passa a ser compreendido como quantificar, dividir e classificar.

Assim, a ciência moderna desconfia metodicamente das evidências da nossa experiência imediata, do senso comum, co-locando o ser humano e sua racionalidade, inclusive acima da natureza, a qual deve ser controlada e dominada, uma vez que seus componentes e movimentos são passíveis de estudos e análises que posteriormente são relacionados sob a forma de leis. O método científico moderno assenta-se na fórmula de re-dução das complexidades, fundando-se em um paradigma que privilegia o “como funciona das coisas em detrimento de qual o agente e qual o fim das coisas” (SANTOS, 1999, p. 16) rom-pendo, dessa forma, com o senso comum e prático que não separam causa e intenção. É isso que permite à ciência moderna

3 René Descartes, em sua obra O discurso do método, apresenta um método de raciocínio de base matemática que objetiva o uso correto da razão, partindo-se do ponto que todos os homens são ra-cionais, assim, a dúvida ou a diversidade de opiniões seriam um mau uso da razão. Nas palavras do autor: “desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como falso tudo aquilo que pudesse supor a menor dúvida.” (DESCARTES, 2000, p. 61).

O estudo objetiva discutir a chamada crise da lei — erigida, inicialmente, como um dos pilares e modo essencial de fun-

cionamento do modelo Liberal de Estado e de Direito — a partir das transformações do papel do Estado, nomeadamente com o advento do Estado de Bem-Estar (Welfare State). Essas transfor-mações rompem com o paradigma tradicional da tripartição de funções, tão caro ao ideário da Revolução Francesa, na medida em que fazem com que boa parte desse poder normativo se concentre, novamente, no Poder Executivo.

O trabalho divide-se em três itens. Inicia-se com uma breve abordagem sobre a ideia de ciência moderna e seus paradig-mas, na sequência, num segundo momento, analisa o modelo liberal de Estado e de Direito e a crença que o modelo liberal atribuiu à lei enquanto fonte capaz de regular as relações entre Estado e sociedade e de disciplinar, de modo único, as relações interprivadas.

Em um terceiro tópico, procura-se demonstrar como esse modelo de Estado e de Direito, ao longo do tempo, revelou-se disfuncional. Demandas por justiça social impuseram profundas alterações no modelo de Estado e no próprio Direito e, por que não dizer, na “função da lei”. O Estado abandona o seu papel de garantidor, apenas, de direitos a prestações negativas. Por meio das Constituições do final do século XIX e início do século XX e, bem assim, pela legislação infraconstitucional, passam-se a exigir do e contra o Estado direitos ditos sociais, que exigem intervenção ativa, diversamente do modelo até então vigoran-te, no qual direitos eram simplesmente atribuídos pela lei aos indivíduos.

No quarto item, demonstra-se como o aumento dos en-cargos de intervenção legislativa nesse novo modelo de Estado conduz a um esgotamento das atividades tradicionais exercidas pelos parlamentos, que não conseguem se desincumbir dessa sobrecarga de demandas. Ocorre aí uma indesejada, mas qua-se que inevitável transferência da disciplina de determinadas matérias da esfera legislativa para a normativa ou regulamentar do Poder Executivo e de sua malha burocrática, evidenciando,

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da comunidade para aplicar as medidas de coerção decretadas pela ordem”.

Assim, o Direito surge pela necessidade da criação de um organismo responsável pela regência das relações intrassociais e das relações entre Estado e sociedade, de forma a garantir a ordem e valores sociais pré-estabelecidos. Assim, segundo Kel-sen (1998, p. 233):

A questão da necessidade do Direito é idêntica à questão da necessidade do Estado. Pois o Estado é uma ordem coercitiva, uma ordem jurídica, relativamente centraliza-da, relativamente soberana – uma comunidade constituída por tal ordem jurídica. Se o Estado for definido por uma organização política, isso significará uma ordem coercitiva. O elemento especificamente “político” consiste em nada mais que o elemento de coerção.

Desse modo, o Direito serve de instrumento para as forças políticas que organizam, estruturam e institucionalizam o Esta-do, bem como para os regimes políticos que gerem as relações entre Estado e sociedade, o que torna o Direito um fenômeno eminentemente político. O Estado é uma comunidade política que cria ou executa a ordem social chamada Direito Positivo, criada por ele.

O discurso de Kelsen instituiu a ideia de que o direito é razão em si mesmo, sem qualquer vinculação com a ética, socio-logia, política ou filosofia, pois é definido, exclusivamente, pelas ideias de normatividade e validade, portanto só pode ser defi-nido dentro do direito positivo, estigmatizando como invenção ou idealismo tudo o que está fora dele.

O advento do Estado Liberal e a “crença no direito e na lei”

A Revolução Francesa de 1789 marcou o surgimento do Estado Liberal-burguês. Serviu, além disso, para pôr fim ao ab-solutismo, que era caracterizado pela centralidade da figura do rei, o qual legislava, administrava e julgava a um só tempo. De-

“responder à pergunta sobre os fundamentos do seu rigor e da sua verdade com o elenco dos seus êxitos na manipulação e na transformação do real.” (SANTOS, 1999, p. 16-17).

Por esse motivo, o positivismo jurídico, baseado no pa-radigma da ciência moderna, traz a ideia de mundo ordenado, mecânico e estável através de leis, de modo que as ações do homem, independentemente do tempo, seriam atos circulares e possivelmente previsíveis. No século XIX, o positivismo ganha força uma vez que destinado a atender os propósitos da bur-guesia consolidada no poder.

Esta ideia do mundo-máquina é de tal modo poderosa que as vai transformar na grande hipótese universal da época moderna, o mecanicismo. Pode parecer surpreendente e até paradoxal que uma forma de conhecimento, assente numa tal visão do mundo, tenha vindo a construir um dos pilares da ideia de progresso que ganha corpo no pensa-mento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burguesia. (SANTOS, 1999, p. 17)

Nessa seara, há um paralelo crescimento do direito com um crescimento da ordem, da expansão do mercado, da intensi-ficação da acumulação do capital, da fetichização do progresso e do aparelhamento do Estado, que se tornam partes da ban-deira positivista (BITTAR, 2009, p. 67). No século XX, nasce o dito direito científico de Hans Kelsen, com a sua Teoria Pura do Direito que transformou o conceito do objeto da ciência jurídica, trazendo uma noção vazia de conteúdo axiológico, desconsi-derando qualquer valor jusnaturalista, produzindo, então, um direito técnico, cuja validade se dá pela sua natureza científica autônoma.

Para o jurista italiano Noberto Bobbio (1995, p. 239), há três aspectos do positivismo jurídico, independentes entre si, quais sejam: o método para o estudo e a prática do Direito; a teoria do Direito; e a ideologia do Direito. Nas palavras de Kel-sen (1998, p. 233): “Direito consiste no estabelecimento de uma ordem coercitiva, por meio da qual é constituído um monopólio

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Pela teoria da tripartição dos poderes, ao Poder Legislativo caberia a confecção das leis de alcance geral que são impostas ao povo e ao próprio Estado. Caberia à Câmara Baixa e à Alta, por meio dos seus respectivos representantes eleitos, revogar ou aprimorar as normas. Ao Poder Executivo competiria a admi-nistração do Estado e, por fim, ao Judiciário, a função de punir os criminosos e resolver as lides entre os particulares, sendo os magistrados apenas “a boca que pronuncia as palavras da lei, seres inanimados que não podem moderar sua força, nem seu rigor.” (MONTESQUIEU, 1993, p. 171).

Nesse período, já sob o domínio de Napoleão, é que surge o Código Civil de 1804 (ou Código Napoleônico), e com ele a Es-cola da Exegese, que permitiu segundo Rafael Lazarotto Simioni (2014, pp. 21-32), uma larga vantagem de tempo e de esforço, pois

Se antes — ao tempo da escola histórica — era necessário argumentar, para justificar uma resposta do direito a uma questão, sob as diversas — e incontroláveis — variáveis dos costumes históricos de cada estrato social, agora torna-se possível simplesmente argumentar que a resposta a tal questão jurídica é esta porque o texto da lei diz que é esta e não outra. O ganho de tempo e de simplicidade na argu-mentação jurídica é significativo.Essa concepção de direito foi conhecida também como o legalismo da codificação pós-revolucionária. Nessa concep-ção, não há nenhuma diferença entre direito e texto legal. Direito e texto de lei confundem-se em uma única identi-dade dogmática. O direito é o texto da lei, tanto quanto o texto da lei é o direito. E assim a escola da exegese permi-tiu entender o direito e exatamente segundo os ideais da Revolução Francesa: negando os costumes e tradições que vinham das “trevas” da Idade Média, para permitir apenas a legitimidade esclarecida da lei editada segundo as exi-gências do século das Luzes.

Nessas condições, há uma identificação entre o Estado e o Direito, ou melhor, a vontade do Estado é expressada pelo Direito, através da lei, uma vez que os poderes na doutrina de Montesquieu estavam a ela submetidos. Competia ao Poder Ju-diciário e ao Executivo aplicar a lei.

ve-se a Montesquieu, em sua famosa obra O espírito das leis, a proposição criativa de limitar o poder estatal.

Tripartidas as funções do Estado, evitar-se-ia a concentra-ção do poder nas mãos do soberano. Nesse contexto, a lei, no Estado Liberal-burguês adquire um papel de centralidade, na medida em que passa ela a ser visualizada como a expressão maior das aspirações da emergente burguesia. A lei é a fonte representativa da vontade do povo.

Pode-se dizer que havia nesse período a firme crença de que a lei, e, por conseguinte, o direito, serviriam como li-mitadores do poder do Estado e forma de regular as relações interprivadas e, sobretudo, de evitar qualquer interferência do Estado no plano dos direitos e interesses dos indivíduos.

Não é por menos que a lei é central para o Estado Liberal, sendo a pedra angular de todo esquema: é redigida de maneira geral, impessoal e abstrata, partindo de uma igualdade formal, própria desse modelo de Estado. Quanto mais abrangente e mais abstrata, mais seria a lei capaz de dar azo a interpretação, mormente nesse período. Tanto a lei quanto o direito consti-tuíam “um edifício fechado”, calcado este em uma linguagem rigorosa, insuscetível a interpretações.

Nesse quadrante de prevalência da lei, o que existia de uma forma mais ou menos consistente, do ponto de vista institu-cional, era a expressão da supremacia do parlamento, tal como pensou Montesquieu e foi reforçando anos depois com outra corrente de pensamento, que remonta a Rousseau, e que vê a lei como expressão da vontade da nação.

Razão assiste a Apostolova (1998, p. 12), nesse aspecto, quando afirma que na base da teoria da tripartição de poderes:

[...] estava contida a ideia de separação entre Política e Di-reito, que determinou a neutralização da política no exercí-cio da jurisdição. A finalidade precípua da divisão do poder estatal basicamente em duas funções, da criação e da exe-cução do direito, correspondia à ideia da inibição recíproca dos poderes que impedia, em última instância, o exercício do poder.

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O paradigma da ciência moderna e crise da lei: capacidade normativa e conjuntura.José Elias Gabriel Neto e Raquel Fabiana Lopes Sparemberger

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uma rígida distinção entre Estado e sociedade (indivíduos), de modo que a estes, para evitar que fossem subjugados, assegu-rar-se-iam direitos às prestações negativas, vale dizer, direitos contra o Estado, capazes de garantir o pleno desenvolvimento do indivíduo.

Contudo, o Estado passa, paulatinamente, por crises e transformações, de modo que esses direitos a prestações ne-gativas (não interferência do Estado na esfera do indivíduo), regulados por lei de caráter geral e abstrato, passam a sofrer questionamentos.

As primeiras transformações ocorrem em searas para as quais a regulação geral e abstrata da lei não se mostrou sufi-ciente a evitar conflitos e paradoxos. Cite-se como exemplo a regulação por meio de contratos individuais das relações entre o capital e o trabalho.

O contrato, na órbita privada, era tido como expressão de uma lei entre particulares, mas passa a sofrer releituras, sobre-tudo a partir de reivindicações de amplos setores da sociedade colocadas à margem dos benefícios econômicos e políticos que o modelo de Estado liberal — e porque não dizer, o próprio capitalismo — almejava. A necessidade de disciplinar e impor uma jornada máxima de trabalho, a regulação do trabalho de mulheres e crianças, o surgimento das metrópoles, o êxodo ru-ral, o surgimento de uma sociedade de produção, demandas por mais educação, saúde, moradia, transporte, necessidade de controle de problemas ambientais, entre várias outras de-mandas, evidenciou a necessidade de modificação das técnicas legislativas, já que estas se demonstraram inadequadas para normatizar esquemas de segurança social ou leis em matéria de investimentos, concorrência, consumo e assim por diante.

Nesse norte, cada vez mais, diferentemente do que ocor-ria no modelo liberal de Estado, no qual a sociedade era deixada total ou parcialmente aos seus mecanismos de autorregulação, passam a ocorrer constantes interferências do Estado no senti-do de orientar e controlar os processos econômicos e políticos, sobretudo para evitar os efeitos disfuncionais de um desenvol-vimento econômico não controlável.

Nesse sentido, a lição de José Luís Bolzan de Morais (1996, p. 79),

[...] o privilegiamento das liberdades negativas, através de uma regulação restritiva da atividade estatal. A lei, como instrumento da legalidade, caracteriza-se como uma ordem geral e abstrata, regulando a ação social através do não im-pedimento de seu livre desenvolvimento; seu instrumento básico é a coerção através da sanção das condutas contrá-rias. O ator característico é o indivíduo.

O mesmo autor faz questão de ressaltar que a noção de Estado de Direito:

[...] mesmo em sua acepção liberal originária, não é con-ceito a ser utilizado descontextualizado de seus vínculos materiais, para não se cair na deformação do Estado Legal. Deve-se tratá-lo nos seus laços externos, e, aqui, vemos que, desde os primórdios, ele se confunde com o conteúdo global do liberalismo, como dito acima. O que se impõe é que ao conceito de Estado de Direito está adstrito um con-teúdo específico, sob pena de perder-se a própria ideia do mesmo. (MORAIS, 1996, p. 79)

E arremata:

A nota central deste Estado Liberal de Direito apresenta--se como limitação jurídico-legal negativa, ou seja, como garantia dos indivíduos — cidadãos frente à eventual atua-ção do Estado, impeditiva ou constrangedora de sua ação cotidiana. Ou seja, a este cabia o estabelecimento de ins-trumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvi-mento das pretensões individuais ao lado das restrições impostas à sua atuação positiva. (MORAIS, 1996, p. 72)

O princípio da isonomia, no sentido de que todos seriam iguais perante a lei, é nuclear nesse sistema, pois para o pleno desenvolvimento dos indivíduos não importam as desigualda-des materiais. A lei assegura uma igualdade formal e é sobre ela que o indivíduo, formalmente igual, desenvolve suas potenciali-dades individuais, políticas e econômicas.

Nesse quadrante, as Constituições que surgiram ao lon-go dos séculos XVIII e XIX, prestigiando essa mesma igualdade material, preocupavam-se em organizar o Estado e assegurar

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víduos. Os grupos e não os indivíduos são os protagonistas da vida política numa sociedade democrática, na qual não existe mais um soberano, o povo ou a nação, composto por indivíduos que adquiriram o direito de participar direta ou indiretamente do governo, na qual não existe mais o povo dividido de fato em grupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomia diante do governo central (autonomia que os indivíduos singulares perderam ou só tiveram num modelo ideal de governo democrático sempre desmentido pelos fatos).

Se, por um lado, ao tempo do Estado Liberal, de um pon-to de vista estrutural-funcional, as constituições caracterizam-se pelas normas definidoras de competências, de processo, da organização do Estado e de garantias de direitos fundamen-tais, com o surgimento e progressiva instalação do Estado de Bem-Estar Social passaram elas a determinar os fins do estado, princípios e diretivas jurídico-constitucionais, princípios políticos conformadores da organização social e imposições legiferantes, fenômeno esse que adquiriu maior realce com as constituições dirigentes do segundo pós-guerra (CANOTILHO, 1994, pp. 153-154).

Como sintetiza Canotilho (1994, p. 154), à Constituição foi atribuída a função de ser, simultaneamente, uma constituição “estadual” e uma “constituição social”, ou seja, a constituição a um só tempo como norma e tarefa, refletindo a interpendência do estado e da sociedade, fornecendo linhas de direção política, sem a impedir ou a substituir. Resumidamente, nas constituições inseriram-se normas e meios jurídicos permitindo a sua invoca-ção como direito diretamente aplicável aos casos concretos, reconhecendo-se diferentes eficácias às normas constitucionais, introduzindo mecanismos para suprir as omissões legislativas, com normas de conteúdo aberto nas ordens social e econômica, diante de instrumentos jurídicos mais efetivos.

Conforme Mauro Cappelletti (1993, p. 20 e ss), a transfor-mação no caráter da legislação constitucional também produziu modificações no caráter da legislação infraconstitucional vigoran-te, em que pese o conteúdo dessa legislação infraconstitucional sempre tenha sido menos ampla do que o das normas cons-

García-Pelayo (1982, pp. 22-23), nesse contexto, diz que, ao contrário do modelo liberal — no qual a sociedade é deixada total ou parcialmente aos seus mecanismos de autorregulação — nessa nova configuração do Estado parte-se da ideia de que a autorregulação conduz a uma pura irracionalidade, de modo que só a ação estatal torna possível neutralizar por meio de técnicas administrativas, econômicas, de programação de decisões, os efeitos que chama de “disfuncionais” de um desenvolvimento econômico não controlado.

As transformações no papel do estado: o welfare state e as consequentes

transformações no papel do direito e da lei

Como se pode perceber pelo que até aqui foi exposto, chega-se ao final do século XIX com um modelo de Estado co-locado diante de um elemento novo, a saber, a justiça social enquanto forma de “apoiar os indivíduos quando a sua autocon-fiança e iniciativa não poderiam dar-lhe proteção ou quando o mercado não mostrava a sensibilidade ou flexibilidade que era suposto demonstrar nas suas necessidades básicas”, segundo ensinam Lenio Luiz Streck e José Luiz Bolzan de Morais (2000, pp. 56-47).

O que se vê, portanto, é o surgimento de um novo modelo de Estado, chamado de Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State, que se alastra como consequência das políticas definidas a partir das duas grandes guerras e da depressão econômica da década de 1930, notadamente na Europa e nos EUA.

Esse caminho do Estado liberal ao Estado Social coincide, como acentua Norberto Bobbio (2000, p. 35), com o incremento das democracias na sociedade moderna:

Sujeitos politicamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandes organizações, associações da mais di-versa natureza, sindicatos das mais diversas profissões, par-tidos das mais diversas ideologias, e sempre menos os indi-

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overload da função legislativa. Significa dizer, um intenso blo-queio ou obstrução dessa função por conta de um excessivo aumento das intricadas questões econômicas, políticas e sociais a serem reguladas por legislação, ao menos em estados demo-cráticos (KOOPMANS apud CAPELLETTI, 1993, p. 43).

Paradoxalmente, os parlamentos não conseguiram se de-sincumbir dessa sobrecarga de demandas legislativas. Viram-se obrigados, para evitar a paralisia, a transferir a outrem grande parte de sua atividade, de maneira que “suas ambições termi-naram em abdicação” (KOOPMANS apud CAPELLETTI, 1993, p. 40).

E resultaram em verdadeira abdicação porque essa ativi-dade foi transferida essencialmente ao Poder Executivo e a seus anéis burocráticos, aos quais foram confiadas tarefas normativas e administrativas. Aqui cabe verificar como há uma transforma-ção e instauração de uma verdadeira “crise da lei”, pois se ao tempo do Estado liberal o Poder Legislativo era a fonte quase que única e primária da produção legislativa, com o Estado de Bem-Estar Social isso não mais ocorre, passando o Poder Execu-tivo a ser o grande responsável pela edição de leis até mesmo de caráter geral, subvertendo em boa medida o ideário liberal--burguês próprio da Revolução Francesa de 1789.

Giuseppe de Vergottini (1999, pp. 166-167) analisando a situação italiana de constante necessidade que os partidos po-líticos têm de satisfazer a demanda de intervenções suscitadas pelos mais diversos tipos de interesses e o recurso caótico e contínuo que se faz à lei para resolver tais problemas, chama esse fenômeno de transferência da disciplina de determinadas matérias ou atividades da esfera legislativa para a normativa ou regulamentar de “Governo de Delegificação”. Nas palavras do autor:

[...] segundo a teoria liberal da separação dos poderes, ao Parlamento era atribuída a função de fazer as normas jurídi-cas gerais e abstratas, enquanto ao Governo cabia a função de seguir a vontade normativa da assembleia representa-tiva. Ao contrário, hoje a lei assume frequentemente um conteúdo especial e concreto, enquanto o Governo, para

titucionais. Embora nos países centrais, ao tempo do Estado liberal, houvesse uma legislação voltada, por exemplo, para a segurança e a higiene do trabalho ou versando sobre as obri-gações financeiras do empregados e os efeitos dos acordos de trabalho, as leis eram confeccionadas ainda de acordo com a técnica legislativa tradicional, tendo como norte estipular regras de condutas a seus destinatários.

Como se viu, essa técnica se revelou inadequada ou in-suficiente para normatizar esquemas mais amplos de regulação econômica ou social, seja para evitar monopólios em setores considerados estratégicos ao próprio capitalismo, seja para propiciar uma coordenação nas intervenções públicas, de forma que a tônica da atividade legislativa, característica do estado li-beral, desloca-se progressivamente das regras de conduta para medidas e acomodações institucionais (KOOPMANS apud CA-PELLETTI, 1993, p. 40).

Obviamente a tônica não está mais na regulação de di-reitos individuais, garantidos contra um Estado que deve ser mínimo, mas em direitos sociais, garantidos pelo exigíveis de um Estado promocional.

Em suma, os direitos que eram atribuídos por lei ao in-divíduo passam a ser garantidos/protegidos e devem sem implementados pelo Estado.

A crise da lei e o “governo de delegificação”

O crescimento do papel do Estado importou em intensi-ficação da atividade legislativa. Era necessário um arcabouço legal destinado a servir de suporte para as alterações que se faziam necessárias para enfrentar os novos desafios que se co-locavam ao capitalismo. Houve um aumento dos encargos de intervenção legislativa.

Contudo, esse progressivo aumento, em médio prazo, trouxe um subproduto ao qual a doutrina anglo-saxã chamou de

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povo muito pouco decidem, e os que decidem, carecem de grande representatividade política.

No Brasil, assim como em outros países, essa crise da lei ou do legislativo enquanto produtor primário das normas jurídi-cas é visível a partir do número de medidas provisórias editadas desde a redemocratização, em 1985 (BRASIL, 2016). O quadro abaixo sintetiza o que se está a afirmar:

Quadro 1 – Medidas provisórias editadas pelos Presidentes da República

PRESIDENTE Número de MPs

José Sarney 125

Fernando Collor 89

Itamar Franco 142

Fernando H. Cardoso 334 (160 - 1º mandato; 174 - 2º mandato)

Luiz Inácio Lula da Silva 414 (239 - 1º mandato; 175 - 2º mandato)

Dilma Rousseff 200 (144 - 1º mandato; 6 até 12.05.16)

Michel Temer 66 (em exercício)

Fonte: BRASIL. Portal de Legislação (2016).

De acordo com estudos do IPEA, os números de medidas provisórias:

[...] mostram que o governo José Sarney editou uma média de 5,9 MPs por mês; Fernando Collor, 2,9; Itamar Franco, 4,2; Fernando Henrique Cardoso, 3,1; Lula, 3,4 e Dilma (até 2014), 2,4. A média inclui apenas as medidas provisórias de caráter não-orçamentário. (SANTOS, 2016)

Por outro lado, nesse mesmo período, o estudo do IPEA mostra que o Congresso Nacional apresentou um maior número de projetos de lei referentes a homenagens e datas comemo-rativas, entre 2007 e 2014. A produção parlamentar cingiu-se, prevalentemente, das chamadas homenagens, algo “[...] tido

satisfazer o crescimento da demanda de normas caracterís-ticas do Estado Social, tende muito frequentemente a fazer uso, e em alguns casos o abuso — pensamos no fenômeno do crescimento da decretação de urgência ou dos decre-tos legislativos integrativos e corretivos — de seus poderes normativos e corretivos — de seus poderes normativos, a fim de deixar óbvia a incapacidade do instrumento legis-lativo de satisfazer em tempo razoável, as exigências de normas (a assim denominada fome de normas). O tempo excessivamente longo do processo legislativo impede o Parlamento de atender com intempestividade as mudanças sociais e requer, portanto, a ampliação dos poderes norma-tivos do Governo. (VERGOTTINI, 1999, pp. 166-167)

A delegificação, do ponto de vista histórico, tem origem com o advento do Welfare State e é um efeito direto desse deslocamento da função legislativa (estado legislativo), para os exercentes da função de governo (estado administração). Isso gera, por certo, uma profunda crise na concepção da separação de poderes, como ressalta Giuseppe de Vergottini (1999).

Certamente, com tais ponderações não se está a negar que o Poder Executivo nos estados democráticos nunca teve ou não detenha parcela de função legislativa, assertiva que estaria divorciada dos ensinamentos de Montesquieu e da própria rea-lidade. O que se observa, no entanto, é que o Poder Executivo, ao se valer do poder de regulamentar situações contingen-ciais e momentâneas, acabou — e acaba — extrapolando e transformando instrumentos jurídicos excepcionais (antigos de-cretos-leis e as atuais medidas provisórias) em forma ordinária de criar normas jurídicas em sentido lato, até mesmo em situa-ções que não se caracterizam como passageiras ou conjunturais.

Um exemplo disso, no Brasil, é a instituição de tributo por meio de medida provisória. (OLIVEIRA, 1999, pp. 5-11).

Como destaca Alexandre de Moraes (2000, p. 47):

[...]a ideia básica do Estado Liberal, onde a crença da so-berania popular e da representação política permaneciam intocáveis, como instrumentos infalíveis da participação da sociedade no poder, foi afastada pela chegada do Estado Social, demonstrando claramente que, diante das grandes transformações socioeconômicas, os representantes do

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Reflexo disso, em outro plano, é o constante demandar do Poder Judiciário para resolver este emaranhado de normas e re-gras, por vezes conflitantes e paradoxais, sem se falar que, não raro, redunda em um excessivo ativismo e decisionismo judiciais.

Considerações finais

A passagem do Estado Liberal para o Estado-Providên-cia contribuiu, decisivamente, para desencadear uma crise da doutrina da separação dos poderes e da concepção racional-normativista de direito, já que essas se mostraram insuficientes para explicar as novas realidades socioeconômicas surgidas a partir do final do século XIX. O Estado abandonou a postura de mero protetor de direitos individuais, inscrevendo-se, também, como realizador de direitos políticos e sociais.

Essa mudança no papel do Estado, que atingiu o próprio Direito, refletiu-se nas Constituições modernas e também nas leis infraconstitucionais, que trataram de regular o novo e com-plexo quadro que se desenhou.

Porém, os parlamentos, por meio de tradicionais proces-sos legislativos, não conseguiram se desincumbir de suas novas e complexas tarefas normativas, transferindo constantemente, desse modo, a disciplina de determinadas matérias para a es-fera normativa ou regulamentar do Poder Executivo, fenômeno conhecido como delegificação.

Esse fenômeno, bastante comum no mundo atual, de-monstra que a crise da lei e da própria concepção de direito na pós-modernidade continua candente e não parece encontrar uma solução em curto espaço de tempo. A sociedade se reinven-ta e se mostra dinâmica e a lei, ao procurar regular o complexo quadro, ao invés de servir como indutora de condutas, acaba, por vezes, causando mais caos, incertezas e inseguranças.

como secundário dentro do processo legislativo”. (SANTOS, 2016).

A constatação da pesquisa foi de que a atividade legisla-tiva produziu leis de valor questionável em vista das questões relevantes para a sociedade, dando espaço para a edição de medidas provisórias (SANTOS, 2016) a fim de regulamentar e legislar sobre matérias que deveriam seguir o curso normal do processo legislativo.

A edição desse instrumento normativo, sob a (pseudo) jus-tificativa de relevância e urgência, que deveria ser usado por exceção, passa a ser regra e sem limites. Para além da falta de debates sobre o que se pretende regulamentar, a edição per-manente de MPs carreta uma inflação legislativa, levando a uma crise do direito.

Se persiste, de um lado, a necessidade de o Poder Exe-cutivo editar as medidas provisórias, de outro o subproduto é uma tremenda insegurança/incerteza jurídica, sendo necessário resolver a constante antinomia de normas. (BOBBIO, 2007, pp. 219-259).

Plauto Faraco de Azevedo (2014, p. 19), nesse diapasão, assinala que:

Efetivamente, deve o direito atentar às diferentes condi-ções de cada sociedade, nos diferentes momentos históri-cos. As relações sociais modificam-se continuamente, por vezes de modo vertiginoso em nossos dias, exigindo um constante trabalho de adaptação do direito, sob pena de tornar-se ineficaz sua ação disciplinadora do convívio. Mas tudo é questão de grau, de senso de medida. Não será por certo a inflação legislativa que propiciará a adaptação do direito ao processo histórico. “A abundância das leis pode ser uma necessidade em tempos em que o intervencionis-mo se impõe. Mas se constitui uma necessidade, é teme-rário considerá-la um progresso”. Ao contrário, a extrema mobilidade da legislação, a existência de leis temporárias ou excepcionais “apressadamente preparadas e frequente-mente votadas na desordem das ideias” constitui uma das causas da crise do direito.

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OS ATOS CULPOSOS DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA À LUZ DO

DIREITO FUNDAMENTAL À BOA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA1

Luiz Egon Richter2 Augusto Carlos de Menezes Beber3

1 O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Adminis-tração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. Eixo temático: Tutelas à Efetivação de Direitos Públicos Incondicionados.

2 Doutorando em Direito. Mestre em Desenvolvimento Regional. Especialista em Direito Constitucio-nal pela UNISC e Especialista em Direito das Coisas pela Unisinos. Professor da graduação da Uni-versidade de Santa Cruz do Sul, titular da disciplina de Direito Administrativo. Registrador Público. E-mail: [email protected]

3 Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante dos grupos de pesquisa Teorias do Direito e Patologias Corruptivas, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected]

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Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direito fundamental à boa administração públicaLuiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

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Abstract

This paper aims to discuss the necessity of observing the right of good public administration in the hypothesis of configuration of culpable acts of administrative improbity. Considering that the jurisprudence has already consolidated its position in the direction of demanding the willing of damage in the kinds of the articles 9º and 10, it’s proposed here that the cases of guilt must also involve the break of the act of improbity with the republican background, or it will be done an unreasonable interpretation of the 8.429/92 Act.

Keywords: Administrative improbity. Good public administration. Guilt.

Resumo

O presente artigo visa discutir a necessidade da obser-vância do direito à boa administração pública nas hipóteses de configuração de atos de improbidade administrativa culposos. Considerando que a jurisprudência já se consolidou no sentido de exigir o elemento volitivo prejudicial ao erário nos tipos pu-ramente dolosos (arts. 9º e 10), sustenta-se que as hipóteses de culpa também devem abordar o rompimento do ato com o pano de fundo republicano, sob pena de se fazer uma interpretação desarrazoada da Lei 8.429/92.

Palavras-chave: Improbidade administrativa. Culpa. Boa administração pública.

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Os atos culposos de improbidade administrativa à luz do direito fundamental à boa administração públicaLuiz Egon Richter e Augusto Carlos de Menezes Beber

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A tese aqui esposada é de que, se os atos de improbi-dade de conduta dolosa exigem uma vontade de malversação do patrimônio público, os atos culposos, por serem violações a deveres jurídicos, também devem estar retroligados ao des-respeito voluntário ao pano de fundo normativo que orienta a Administração Pública.

Assim, no compasso da jurisprudência, advoga-se a ne-cessidade de as ações culposas – sejam elas realizadas por negligência, imprudência ou imperícia – estarem combinadas com violações aos postulados republicanos para poderem ense-jar as sanções por improbidade.

Considerando-se ainda que o bem jurídico protegido pela Lei 8.429/92 não é o “numerário” administrativo em si, mas a probidade administrativa e os princípios que emergem da Cons-tituição, não se mostra razoável exigir uma conduta altamente qualificada para as sanções dos artigos 9º e 11, e, no caso do ar-tigo 10, pelo fato de haver dano material, exigir-se apenas uma técnica jurídica mais simples.

Notadamente, os incisos II, III, VII, XIV, XV, XVI, XVII, XVIII do artigo 10 fazem menção expressa ao dever de observação das formalidades legais. Entretanto, a não observância de algu-ma formalidade pode acarretar de forma imediata as sanções por improbidade?

A resposta para tanto é dúplice: se a ação culposa resultar de mero equívoco, não; por outro lado, se importar em violação ao pano de fundo jurídico que orienta e fundamenta o direito administrativo, sim.

Logo, o ponto nevrálgico da presente problemática está no que o direito brasileiro vem assistindo irromper no direito internacional, especialmente no direito europeu, como direito fundamental à boa administração pública, que, por seu turno, corresponde a um plexo de direitos exigíveis subjetivamente.

Conforme Juarez Freitas (2007), o direito fundamental à boa administração pública contém em si o direito a uma admi-nistração transparente, dialógica, imparcial, proba, respeitadora

A improbidade administrativa, conforme extraída do art. 37, §4º, da Constituição Federal, constitui espécie jurídica

que encerra atos que mitigam a atuação da Administração e o atendimento ao interesse público, razão pela qual pode ser en-quadrada dentro do gênero corruptivo.

Por sua vez, dando sequência ao referido comando cons-titucional, a Lei 8.429/92, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa, classifica sumariamente e de forma exemplificati-va os três grandes grupos de atos de improbidade, encontrados respectivamente nos artigos 9º (atos que importam em enrique-cimento ilícito), 10 (atos que configuram dano ao erário) e 11 (atos que violam os princípios da Administração).

Após pesquisas realizadas anteriormente,4 constatou-se que, através de interpretação gramatical e sistemática da Lei, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça5 inclinou-se no sentido de que somente os atos de improbidade que ensejam dano ao erário podem ser configurados a título de culpa. Por consequência, para a tipificação de atos de improbidade que importem em enriquecimento ilícito ou em violação aos princí-pios da Administração Pública, é necessária a constatação da conduta dolosa do agente.

Trata-se de um entendimento jurídico que se ampara no caráter violador e desonesto da improbidade, a qual não pode ser confundida com a mera ilegalidade, razão pela qual a sua configuração depende da comprovação da vontade do agente em prejudicar a Administração Pública.

Por conseguinte, em continuidade aos estudos confeccio-nados, parte-se do entendimento jurídico exposto para, neste momento, investigar especificamente a forma com que os atos de improbidade são tipificados quando sua configuração ocorre a título de culpa.

4 Para tanto, ver o artigo intitulado “Dos argumentos/critérios preponderantes utilizados em acór-dãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul para a reforma/manutenção de de-cisões de 1º grau em Ações Civis Públicas por improbidade administrativa”, publicado na obra Temas polêmicos da jurisdição do Tribunal de Justiça: dos crimes aos ilícitos de natureza pública incondicionada.

5 Ver, por exemplo, os acórdãos paradigmáticos REsp nº 842.428/ES, Rel. Min. Eliana Calmon; e EResp nº 479.812/SP, Rel. Min. Teori Zavascki.

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O direito fundamental à boa administração pública como pano de fundo da atividade

administrativa

Ann Abraham (2009) sabiamente vaticina que a prática ad-ministrativa representa uma interface crítica entre o Estado e seus cidadãos, sendo mediadora das operações que transfor-mam as aspirações jurídicas dos direitos humanos em realidade concreta. Nestes termos, a prática administrativa opera através de escolhas, as quais, segundo o magistério de Juarez Freitas, devem ser caracterizadas no Estado Constitucional como esco-lhas administrativas legítimas.

Ademais, hodiernamente entende-se que, no Estado Cons-titucional, a Administração deve observar o plexo de princípios a que está vinculada, agindo nos limites do Direito, o qual confere a ela o dever de escolher bem, dentro de uma janela de pos-sibilidades que não a torna escrava de programas legislativos pré-definidos, mas que lhe dá margem para traçar estratégias criativas de governança (FREITAS, 2007).

A partir dessa ótica, Jaime Rodríguez-Arana Muñoz (2012), em tenaz leitura da Constituição Espanhola de 1978, anota como função precípua dos poderes públicos a promoção do exercício da liberdade e da igualdade dos indivíduos, de forma a integra-lizar e tornar pleno o acesso e a participação na vida política, econômica, cultural e social.

Assim como Freitas, amparado no princípio da dignidade da pessoa humana, Arana Muñoz vê o indivíduo como finalidade da ação estatal e centro da vida pública, tornando o aperfeiçoa-mento das condições que permitem um exercício aprofundado e qualitativo das liberdades individuais um elemento inseparável dos objetivos da boa administração (MUÑOZ, 2012).

No mesmo sentido, Ann Abraham (2009), em consonân-cia com o exposto, levanta a necessidade de a Administração sofrer um processo de humanização, no qual se resgata o pro-pósito de atender às demandas do cidadão comum, esquecidas ou desvirtuadas pela burocracia. Para a autora, a importância

da legalidade temperada, eficiente, eficaz, econômica e teleolo-gicamente responsável.

De mais a mais, a boa administração pública é um direito de núcleo flexível, razão pela qual nele podem ser encontrados outros elementos, como o dever de moralidade, participação social e motivação, e, como acrescenta Freitas (2007), a obser-vância aos princípios da precaução e da prevenção.

Logo, a atuação administrativa deve ser pautada por atos comedidos e bem planejados, tendo por base escolhas legíti-mas que privilegiem o interesse público. Por consequência, as medidas tomadas pela Administração em cumprimento ao seu dever constitucional precisam encontrar um termo médio entre o agir exacerbado e a falta de diligência, em consonância com o princípio da proporcionalidade.

Voltando-se à improbidade administrativa, nota-se que a configuração de culpa tipificadora dos atos ímprobos requer ne-cessariamente a observância das formas jurídicas culposas e dos elementos da boa administração pública.

Neste ponto, conforme se verá adiante, concorda-se com a jurisprudência, no sentido de que a culpa que tipifica a impro-bidade deve sofrer interpretação que a qualifique, de forma a uniformizar o entendimento sobre a matéria, vez que o direito, à luz da integridade, não pode ser contado aos pedaços.

A partir dessas considerações, serão analisados acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, buscando-se ques-tionar como a jurisprudência vem enfrentando as questões aqui levantadas, bem como se tem sido identificados atos culposos, e qual o tratamento jurídico dado a eles.

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Por conseguinte, adotando-se o reformismo de Muñoz, a função administrativa deve mostrar-se articulada com a realida-de àa qual pertence, de modo a buscar, em máximo grau, tornar efetivos os direitos que celebram a dignidade humana, tornando a função pública o medium jurídico necessário para concretizar os direitos humanos.

Neste cenário, notadamente integrador e de cunho mar-cadamente principiológico, consagra-se e concretiza-se o que Freitas conceituou como direito fundamental à boa administra-ção pública:

[...] trata-se do direito fundamental à administração pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de seus deve-res, com transparência, motivação, imparcialidade e respei-to à moralidade, à participação social e à plena responsa-bilidade por suas condutas omissivas e comissivas. a (sic) tal direito corresponde o dever de a administração pública observar, nas relações administrativas, a cogência da totali-dade dos princípios constitucionais que a regem (FREITAS, 2007, p. 20). (Grifos do original).

Observa-se, assim, que o direito à boa administração pú-blica compreende um plexo de princípios jurídicos com força normativa, os quais constituem o alicerce sobre o qual as admi-nistrações devem se orientar.

Tal direito, em consonância com o exposto, privilegia os destinatários da atividade estatal, de modo que o seu cum-primento é medida necessária para legitimar a ação do poder público nas esferas pública e privada.

Anota-se que o contexto do direito à boa administra-ção vem de um movimento em que países membros da União Europeia aproximam-se em um ideal de aperfeiçoamento da gestão do interesse público compartilhado pelas comunidades nacionais.

Para Vasilica Negrut (2011), a literatura especializada aponta para uma definição de boa administração que envolve necessariamente elementos como o direito de acesso à informa-ção, proteção eficiente dos direitos fundamentais e do direito de defesa, e o dever de motivação dos atos estatais.

de postulados da boa administração deve envolver uma discus-são sobre os direitos humanos, tendo em vista o impacto que a qualidade da gestão pública causa diretamente no exercício dos direitos individuais e no desenvolvimento humano.

Nestes termos, o pleno exercício da discricionariedade legítima requer o protagonismo da sociedade, verdadeira de-tentora e destinatária dos frutos do poder, invocada a participar das deliberações públicas (FREITAS, 2007). Arana Muñoz (2012) chega a destacar que a articulação entre as ações estatais e a opinião dos cidadãos é um elemento necessário para o suces-so dos bons governos e das boas administrações, vez que uma burocracia desvinculada da realidade não tende a promover as melhores políticas públicas, ainda que dotadas de perfeição técnica.

Para o autor espanhol, a boa administração e o bom go-verno encontram-se em uma posição denominada reformista da Administração Pública. Arana Muñoz, em sua análise, afasta-se de uma posição imobilista, caracterizada pelo desejo de manu-tenção estática das estruturas sociais, econômicas e culturais, do mesmo modo como refuta a posição revolucionária, que busca subverter a ordem existente com base na rejeição total da situação presente (MUÑOZ, 2012). Para o autor espanhol, a posição reformista mostra-se adequada, portanto, por aceitar o que está posto sem cair em conformidade, mas produzindo alte-rações que visam uma melhora autêntica das estruturas sociais.

Além disso, a razão para adotar-se o reformismo como bandeira decorre igualmente da mutação constante a que o te-cido social está submetido. As administrações não estão isentas de enfrentar fenômenos como a imigração, o desenvolvimento de novas tecnologias ou mesmo de reformas políticas. Logo, a modernização encontrada no bojo do reformismo se torna mais um processo de atuação contínua, necessário ao bom desempe-nho da máquina pública (MUÑOZ, 2012).

Nesse diapasão, impende também trazer à baila o princí-pio da dignidade da pessoa humana, estampado no artigo 1º, III, da Constituição da República de 1988, o qual deve nortear toda atividade pública.

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encerrados tiveram como causa pedidos de informação e acesso a documentos; 19,3%, questões envolvendo a aplicação de Tra-tados; 19,3%, concursos e processos de seleção; 16%, questões políticas e institucionais; 11,3%, Administração e Estatuto dos Funcionários; 8,3%, adjudicação de contratos ou atribuição de subvenções e 6%, a execução de contratos.

Diante disso, mostra-se que a boa administração tem ga-nhado espaço como direito e garantia dos indivíduos em ter um respaldo daqueles que exercem o poder em seu nome, o que ratifica o fato de que a atividade administrativa não pode ser vista ou tratada como um fim em si mesma, mas como um ins-trumento para dignidade da pessoa humana.

Por consequência, crê-se que as demandas da boa admi-nistração, por envolverem o cerne da atividade estatal, são o verdadeiro objeto a ser tutelado pelas leis do direito adminis-trativo sancionador.

Logo, em se tratando de improbidade administrativa, a maior, ou única, violação que pode ensejar a sua configuração é a violação ao pano de fundo que deve ser o norte da atividade estatal. Não se pode inverter os valores jurídicos da Lei – o que qualifica a improbidade não é tão somente a perda patrimonial do erário –, mas a atuação em desconformidade com as normas que regem a função administrativa do Estado.

Tal entendimento, consubstanciado no que se descreveu como o argumento do interesse público, é adotado pela juris-prudência do Tribunal de Justiça, a qual entende ser a probidade administrativa o bem tutelado pela Lei 8.429/92, e não o patri-mônio propriamente dito:

A alta relevância da moralidade e da probidade administra-tiva são argumentos que os desembargadores usam para tomar decisões que, em um jogo de interesses e princípios eminentemente privados, não tomariam. Explica-se: com este argumento, entende-se que, não importando o valor ou o dano causado pelo ato dito ímprobo, o que se fere com a conduta desonesta não é o dinheiro, a moeda, mas a moralidade administrativa, de inestimável valor (BEBER; RICHTER, 2015, p. 276).

Nesse sentido, o artigo 41º, 1, da Carta de Direitos Fun-damentais da União Europeia de Nice estampa o direito à imparcialidade no tratamento aos cidadãos, à equidade e à du-ração razoável das demandas.

Em sequência, o artigo 41º, 2, por seu turno, elenca o direi-to de qualquer pessoa ser ouvida antes de ser tomada decisão a seu respeito, bem como do acesso aos processos que lhes refi-ram e o dever da Administração em fundamentar suas decisões. Ainda conforme o artigo 42º, deve ser resguardado o direito de acesso aos documentos públicos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão. Ao cabo, o artigo 43º estabelece o direito de apresentar petição ao Provedor de Justiça Europeu para apontar casos de má-administração.

Entretanto, destaca Negrut (2011) que, ainda que haja re-ferências ao direito à boa administração na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, ou mesmo no Código Euro-peu de Boa Conduta Administrativa, as considerações temáticas mais relevantes encontram-se nas decisões da Corte Europeia de Justiça e na Corte Europeia de Direitos Humanos.

De mais a mais, a Carta de Direitos Fundamentais repre-sentou um avanço para os povos de países que não previam em suas Constituições um plexo de direitos como o direito à boa administração pública. Negrut (2011) destaca o caso da Romê-nia, que, a nível constitucional reconhece o direito estrangeiro a ponto de suprir o direito nacional com as garantias estabeleci-das com a referida Carta.

No Brasil, hodiernamente ocorre o fenômeno da instrumen-talização dos direitos encontrados na Constituição, semelhantes ao plexo de direitos articulados sob o manto da boa administra-ção pública da Carta Europeia. Notadamente, a Carta Magna de 1988 também traz como garantias fundamentais o direito à ra-zoável duração do processo (Art. 5º, LXXVIII ), ao contraditório e à ampla defesa (Art. 5º, LV ), à impessoalidade e à isonomia (Art. 37) e o direito à informação e o acesso aos documentos públicos (Art. 5º, XXXIII).

Ademais, conforme o relatório anual publicado pelo Prove-dor de Justiça Europeu, em 2014 cerca de 21,5% dos inquéritos

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O agir administrativo entre a vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot)

Em sequência ao presente estudo, discorrer-se-á bre-vemente sobre os parâmetros pelos quais se pode analisar a possível incidência da improbidade administrativa em razão de atos culposos, admissíveis nos termos do artigo 10 da Lei 8.429/92.

Abordar-se-á o assunto sob a perspectiva da boa adminis-tração pública, conforme exposto anteriormente, ratificando-se a tese de que o bem jurídico tutelado da Lei é a probidade no trato público, além do plexo de direitos que se reúne no pano de fundo da boa administração.

Inicialmente, renova-se a fala exposta, no sentido de que a atuação administrativa se faz através de escolhas, as quais, sob o paradigma democrático, devem se caracterizar como escolhas administrativas legítimas.

Nesse sentido, Freitas (2007) leciona que cabe à Adminis-tração, sob a égide do Estado constitucional, tecer suas ações de forma respeitar o direito à participação, aos fundamentos da República e aos direitos fundamentais individuais.

No entanto, não basta a Administração almejar a concreti-zação de direitos. Ela deve fazê-lo na medida em que não cause desequilíbrio nas relações sociais e jurídicas do sistema. Des-sa forma, percebe-se que a juridicidade dos atos estatais tem a necessidade de estar alinhavada com a vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (unter-massverbot). Sobre o assunto, Gervasoni e Bolesina asseveram que

o Estado, ao atuar em prol dos direitos fundamentais, é limitado, de um lado, por meio dos limites superiores da proibição de excesso e, de outro, por meio de limites in-feriores da proibição da não-suficiência. Tais parâmetros, associados à noção de proporcionalidade (também conhe-cidos como dupla face da proporcionalidade) referem-se,

Do mesmo modo posiciona-se a doutrina, conforme se depreende da leitura das lições de Mateus Bertoncini (2010, p. 15), que consagra o direito à probidade como direito subjetivo fundamental:

embora interesse ao homem individualmente considerado, o direito fundamental à probidade administrativa visa à proteção do povo e da Nação brasileira contra a corrupção administrativa, direito reconhecido na Constituição Fede-ral em face dos diversos princípios e regras destinados a enfrenta-la, referidos inicialmente, da Lei de regência (LIA), e, no plano transnacional, das Convenções Interamericana (CICC) e da ONU Contra a Corrupção, internalizadas pelo nosso ordenamento jurídico. (BERTONCINI, 2010, p. 15)

Nesse sentido, a jurisprudência se posicionou em afirmar que a mera ilegalidade não se confunde com a improbidade. Improbidade é deslealdade, má-fé. A problemática jurídica que surge em relação a tanto é: como então a patologia da improbi-dade se identifica?

A resposta que se sustenta é a seguinte: para se identificar a improbidade, é preciso anteriormente identificar quais foram os bens jurídicos violados. Assim, uma vez que o pano de fundo da atividade estatal se encontra espelhado no plexo jurídico que é o direito à boa administração pública, a sua violação, somada ou não à subtração patrimonial do Estado, é que se mostra ele-mentar à configuração da improbidade.

Assim, nas ações de improbidade, o ônus do Estado não é provar somente a perda patrimonial do erário (pois esta pode ser inclusive reavida com uma ação de ressarcimento, que é imprescritível), mas sim provar que o agente público atuou em desconformidade com o regime jurídico que deveria observar.

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Paralelamente, a Organização das Nações Unidas apontou para o mesmo período a América Latina e a região do Caribe como as regiões com maior índice de desigualdade social do mundo.6

No caso brasileiro, a situação se torna ainda mais grave por haver uma reversão à equação que diz que melhores arre-cadações deveriam refletir em melhores serviços públicos, logo, em maior qualidade de vida. Notadamente, se é possível elen-car variáveis que impedem a devida conversão, deve-se incluir, no mínimo, elementos como a corrupção e a má gestão dos re-cursos públicos.

Ann Abraham (2009) anota que, em geral, a noção que se tem de má-administração é associada a termos como preconcei-to, negligência, desatenção, atraso, incompetência, inaptidão, perversão, arbitrariedade e torpeza. Ao lume do Estado Consti-tucional, a perda de qualidade das prestações públicas importa em grave violação aos preceitos básicos de uma boa administra-ção pública, especialmente seu núcleo principal, a dignidade da pessoa humana.

O exercício mal empregado do poder se revela em esco-lhas realizadas que não observam os padrões constitucionais de juridicidade e que não se confundem com a discricionarie-dade. Realizar obras novas quando há outras inacabadas, traçar projetos sem observância de normas básicas de engenharia, adquirir material desnecessário, são todos exemplos de atos empregados de forma contrária aos princípios contidos no di-reito fundamental à boa administração pública, o que torna a prática não apenas ineficiente no plano fático, mas ilícita no pla-no jurídico.

À luz do direito fundamental à boa administração pública, trata-se de uma prerrogativa dos cidadãos e um dever do Estado de fazer as vezes de administrador negativo, contornando as

6 Apesar de, nos últimos anos, ter havido um avanço em relação a indicadores de desenvolvimento humano, o Brasil ainda carece dar um respaldo aos seus cidadãos, especialmente quanto ao de-sencontro que os dados estatísticos refletem. Pode-se observar que países como a Dinamarca, que está entre as nações com maiores índices de desenvolvimento humano do mundo, possuem uma tributação muito superior à brasileira, preferindo a incidência fiscal em relação à renda, lucro e ganho de capital do que sobre bens e serviços, que representam a maior parcela arrecadatória brasileira.

portanto, à proibição do excesso (Übermassverbot) e à proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot). Am-bas exercem a função de parâmetro de avaliação da consti-tucionalidade das intervenções praticadas nos direitos fun-damentais. A primeira dita que estas não podem ocorrer de modo excessivo; já a proibição de proteção insuficiente (Untermassverbot) pode ser compreendida, de certa for-ma, como um imperativo de tutela, destinado a assegurar um “mínimo” de proteção em face de um padrão constitu-cionalmente estabelecido. (GERVASONI; BOLESINA, 2014, p. 49)

Ou seja: tanto uma atuação administrativa que não dê efe-tividade ao princípio da dignidade da pessoa humana, quanto uma atuação que exorbite seu poder de interferência social, não encontram resguardo jurídico, podendo ensejar a configuração de improbidade, ainda que a título de culpa.

Notadamente no plano prático encontram-se muito mais situações de descaso e de proteção insuficiente com a coisa pú-blica, o que acarreta uma verdadeira ilegalidade por omissão estatal. Nesse sentido, são válidas as contribuições de Pedro Roberto Decomain:

[...] a improbidade marcada pela culpa em sentido estrito existirá, aqui, antes no terreno da negligência – conduta displicente – do que no terreno da imprudência – conduta afoita e com inobservância de regras de cautela. Isso resul-ta claro a partir da própria dicção do inciso X do artigo, que considera improbidade o agir negligente na conservação do patrimônio público. (DECOMAIN, 2014, p. 122)

Ao cabo, convence-se que o debate sobre as insuficiên-cias (e incongruências) do agir estatal deve ser enfrentado para a questão da improbidade. Por certo que, se todos os entes estão vinculados ao dever de boa administração pública, a má prestação dos serviços públicos, ou a não transformação das ri-quezas nacionais em benefícios à população, pode ter por causa uma gestão que, por omissão ou incongruência, comete ato de improbidade.

Segundo relatório anual da Receita Federal, em 2014 o Brasil registrou a maior carga tributária geral da América Latina.

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nais do ato praticado. A arbitrariedade por omissão, por outro lado, ocorre quando a atuação administrativa se dá de forma impotente ou inoperante, rompendo com o dever de diligência positiva e com os princípios da prevenção e da precaução (FREI-TAS, 2007).

Conforme Gavião Filho (2011), a diligência exigível daquele que realiza a escolha pública restringe-se aos limites do desen-volvimento geral e científico conhecido, uma vez que afronta à razoabilidade a exigência de conhecimento global sobre todas as medidas alternativas possíveis. Face ao exposto, mesmo que após a tomada de decisão surjam alternativas mais favoráveis à Administração, o gestor público estará imune de sanções em relação à medida tomada, mesmo que ela não seja a que melhor atenda ao interesse público.

O Tribunal de Contas da União, em observância ao princí-pio parcial da necessidade, atribui ao gestor a noção de homem médio, ou seja, daquele que possui a razoável diligência que de todos se espera, para analisar o cumprimento necessário ao dever de zelo na prática administrativa.7

Com isso, chega-se à conclusão de que, tratando-se de atos culposos de improbidade administrativa, a sua configu-ração, observado o pano de fundo da boa administração, vai depender da inobservância dos deveres constitucionais de ve-dação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot).

Nesta senda, a proteção jurídica dos administradores pú-blicos repousa no agir diligente, pelo qual, empregando-se os meios adequados e acessíveis no espaço-tempo, se garante uma proteção suficiente aos direitos fundamentais.

7 Nesse sentido, ver AC 10642/2015 - Segunda Câmara, data da sessão: 17/11/2015, Rel.: Ana Ar-raes; AC 1001/2015 – Plenário, data da sessão: 29/04/2015, Rel.: Benjamin Zymler. Destaca-se o enunciado extraído do acórdão 1275/2011 – Plenário, data da sessão: 18/05/2011, Rel.: Raimundo Carreiro: A regra é o gestor agir de acordo com os pareceres técnicos e jurídicos. Somente nos casos em que o parecer contém erros perceptíveis aos olhos do homem médio, ou seja, aquele que age com a razoável diligência que de todos é esperada, é razoável exigir do gestor que aja de modo diverso do indicado no parecer.

mazelas de decisões além ou aquém dos limites desenhados pela Constituição.

Assim, em termos de improbidade administrativa, advoga-se que não é a mera irregularidade que configura o ato ímprobo (conforme vem sustentando a jurisprudência), mas elementar à tipificação é a violação aos deveres constitucionais que são ine-rentes à atividade pública.

Sabidamente, os atos culposos se caracterizam ordinaria-mente por resultados não volitivos do agente. Entretanto, ao contrário do que o senso comum pode esperar, tais atos po-dem ensejar a responsabilidade de quem os praticou, quando este assumiu o ônus da atividade, especialmente da atividade pública.

Logo, o corpo social não pode arcar com os custos de uma má-administração, como vem infelizmente ocorrendo no cenário brasileiro. Neste ponto, inarredável complementar: má--administração, essa não caracterizada por meros equívocos administrativos, mas pela violação ao pano de fundo da ativida-de administrativa. Conforme Decomain:

A ação descuidada, marcada pelo desinteresse na preser-vação daquilo que pertence à Administração Pública, é que configura a improbidade. E esse pouco caso pela coisa pú-blica insere-se também no terreno da desonestidade. Não com a marca do propósito de produzir desfalque patrimo-nial (como acontece em relação a outros incisos), mas pelo menos com a marca da incúria no exercício da função, pro-duzindo com isso o dano que, houvesse o agente atuado como deveria, realizando o esforço que o cargo lhe impu-nha para a preservação do patrimônio público, não teria tido lugar. (DECOMAIN, 2014, p. 122)

Neste diapasão, a arbitrariedade não se confunde com a discricionariedade. A arbitrariedade por ação e a arbitrariedade por omissão, no entendimento de Freitas (2007), são na verdade os dois principais vícios da discricionariedade administrativa.

A arbitrariedade por ação resume-se na atuação do agen-te público fora do amparo de norma válida, ou mesmo quando há algum desvio abusivo das destinações legais ou constitucio-

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de maio de 2016, de lavra do Des. Joaquim Aquino Flôres de Camargo, teceram-se as seguintes considerações a respeito do tema:

Culpa grave. Art. 10 da Lei 8.429/92. Conduta do agente dolosa ou, pelo menos, eivada de culpa grave. Configura-se a conduta culposa quando, apesar de o agente não pre-tender o resultado, atua com negligência, imprudência ou imperícia, denotando imperdoável descuido com a coisa pública. Daí punir-se a má gestão administrativa, fruto de erro inescusável de diligência, denotativo de má-fé. (BRA-SIL, 2016, grifos nossos).

Percebe-se pelo acórdão citado que, para adequar a hi-pótese de sanção por culpa ao conceito de improbidade construído, a jurisprudência entendeu por bem alicerçar uma categoria especial para os atos culposos, os quais, além dos ele-mentos ordinários (negligência, imprudência ou imperícia), deve abranger um descuido com a coisa pública.

Semelhantemente, na Apelação Cível nº 70063372346, jul-gada em 28 de maio de 2015, o Tribunal apreciou o caso de agentes políticos que deixaram disponíveis cheques em branco a servidor (o qual se apropriou de verbas públicas), não havendo qualquer controle dos valores dispendidos.

Na análise do caso, do qual foi relatora a Des.ª Marilene Bonzanini, o Tribunal entendeu configurada a culpa grave dos agentes, tendo em vista que a sua ação omissiva permitiu a ocorrência do evento danoso ao erário. Veja-se:

tenho que, tendo em vista que foram deixados cheques em branco à disposição de servidores municipais, sem qual-quer controle de sua destinação, e havendo apropriação particular de valores pertencentes ao ente público munici-pal em virtude dessa conduta desidiosa, resta configurada, de forma plena, a culpa grave que permite a condenação em improbidade administrativa com dano ao erário, nos termos do art. 10 da 8.429/92 (BRASIL, 2015, grifo nosso)

Assim prossegue a relatora:

O Prefeito e o Secretário da Fazenda assumiram a respon-sabilidade pela assinatura de cheque em branco colocado

A tutela da boa administração na configuração dos atos culposos de

improbidade administrativa: uma discussão necessária na jurisprudência

Após as considerações tecidas anteriormente, impor-ta discorrer sobre o instituto da improbidade administrativa configurada por atos culposos, conforme a leitura dada pela ju-risprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Inicialmente, o artigo 10 da Lei de Improbidade Admi-nistrativa elenca as espécies de atos de improbidade passíveis de sanção a título de culpa, dentre os quais pode-se citar, a título de exemplo, a realização de operações financeiras sem observância dos trâmites legais (inciso VI), permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro enriqueça ilicitamente (inciso XII), dentre outros.

Assentadas as premissas teóricas, busca-se agora de-fender a tese de que a configuração da culpa ímproba, a qual depende de uma atuação negligente, imprudente ou imperita, deve estar relacionada a uma violação dos preceitos da boa ad-ministração pública, e não tão somente (ou primordialmente) ao prejuízo do erário.

Notadamente, para tanto deve ser realizada uma (re)inter-pretação do conceito de improbidade que a jurisprudência vem se amparando. Afinal, se o agente ímprobo é aquele que agiu de má-fé, como a culpa pode qualificar a improbidade, quando esta tem por escopo o descuido ou a desatenção?

A partir dessa problemática, muitos julgados têm buscado qualificar a culpa que atende o disposto na Lei, chamando-a por vezes de culpa grave ou culpa consciente.8 Em acórdão de 19

8 A respeito disso, veja-se o julgamento paradigmático do REsp 879.040/MG, Rel. Ministro Luiz Fux, julgado em 21/10/2008, DJe 13/11/2008, de onde se extrai a seguinte premissa: “3. (...) Ora, o ato de improbidade administrativa pela própria articulação das expressões refere-se a condutas não apenas ilegais, pois ao ato ilegal é adicionado um plus que, no caso concreto, pode perfazer ou não um ato de improbidade. Daí que parte da doutrina bate-se pela perquirição do elemento subjetivo capaz de identificar não qualquer culpa praticada pelo agente público, mas necessariamente, um campo de culpa consciente, grave, denotando indícios de conduta dolosa”.

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Analiticamente, observa-se que, em ambos os casos em que se entendeu configurada a improbidade, fundamentou-se a condenação dos réus com base na desídia e no prejuízo ao erário.

Considerando o exposto ao longo da presente narrativa, considera-se que as decisões também deveriam ter enfrentado o rompimento com o pano de fundo da boa administração, a qual deve orientar a prática administrativa.

Veja-se que, tratando-se de jurisdição, não basta apenas a sustentação argumentativa da relevância dos fatos (sob pena de tornar cada caso uma análise de gravidade pontual), mas deve-se construir e demonstrar a violação ao direito.

No primeiro julgado, em que houve a cedência de cheques em branco a servidor que se apropriou de valores do erário, entende-se que, para a configuração da improbidade na modali-dade culposa, se deve demonstrar que a negligência dos atores resultou no rompimento com o dever de boa administração, em especial com o dever de proteção e de zelo com a coisa pública.

Lembra-se que, conforme exposto, a proibição à proteção insuficiente (untermassverbot) exige que os administradores tomem as medidas necessárias para evitar que um direito fun-damental – no caso do acórdão, a probidade na administração – tenha seu núcleo mínimo violado.

Uma vez que os agentes políticos trataram com descui-do a coisa pública, violando o pano de fundo administrativo, a improbidade deve restar demonstrada, sendo o dano ao erário apenas exaurimento da má-conduta pública.

Não se pode transferir o foco argumentativo à discussão da perda patrimonial. Se o dano ao erário admite um maior al-cance de tipificação do que a pura violação aos deveres de boa administração, estar-se-ia admitindo que a proteção ao patrimô-nio material – ainda que por vezes ínfimo – deve possuir guarda jurídica maior do que os princípios que norteiam a Administra-ção no Estado brasileiro.

Da mesma forma, no segundo caso indicado, o que se mos-tra imprescindível para a configuração da improbidade (culposa)

à disposição de servidor sem verificar, previamente, a exis-tência de nota de empenho. E mais ainda no caso dos autos que sequer cuidaram de posterior fechamento e concilia-ção de contas, tanto que a apropriação indevida somente veio a ser detectada meses após.[...]E não se diga que é praxe administrativa e que, por isso, há justificativa: a administração da máquina pública não deve ser feita como a administração da própria casa, em que é natural deixar cheques ou valores para os filhos ou respon-sáveis pela guarda da casa para os gastos cotidianos. Na administração de verba pública deve-se atentar à legislação e ao dever dos gestores para com os administradores – fato notoriamente não observado no caso em tela.[...]Não se cuida também de mera ilegalidade, mas de culpa grave aferível objetivamente. O Prefeito e o Secretário da Fazenda, assinando cheque em branco sem controlar des-tinação, assumem os riscos desse proceder. (BRASIL, 2015, grifos nossos).

Outrossim, na Apelação Cível nº 70062396577, julgada em 19 de agosto de 2015, também houve a configuração de culpa, sem menção ao adjetivo “grave”. O caso analisado pelo Tribunal era relativo à compra de fármacos sem a realização de procedi-mento licitatório, o que gerou um custo quase três vezes maior ao município.

De se registrar que o depoimento de Dionei Ruggeri, te-soureiro municipal no período de fevereiro de 2005 a agos-to de 2009, fl. 1.696, foi no sentido de que o controle inter-no (do qual ele fazia parte) do Município, o setor jurídico, a assistência social e o demandado tinham conhecimento de que a compra direta dos fármacos ultrapassava o valor má-ximo para a dispensa de licitação, bem como que o proce-dimento licitatório via pregão eletrônico gerava economia ao erário, situação que evidencia o agir no mínimo culposo – pela desídia com o dinheiro público – do então Prefeito Municipal.Nesse contexto, prudente salientar que os atos de improbi-dade administrativa que causam prejuízo ao erário dispen-sam a prova do dolo, sendo suficiente para a sua caracteri-zação a presença de culpa. (BRASIL, 2015).

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deve somar esforços na tarefa de aperfeiçoamento da forma de gestão e de interpretação dos assuntos públicos.

Por isso, defende-se que a violação à boa administração é um dos elementos principais que caracterizam o ato de impro-bidade administrativa. Sendo ela o pano de fundo da atividade estatal, é o seu rompimento que configura uma transgressão jurídica, o que pode ter como exaurimento a perda patrimonial.

Tal posicionamento se reflete nos atos culposos, em que não há intenção de lesionar o erário. Uma vez que a atuação administrativa deve se pautar entre a vedação ao excesso (übermassverbot) e a proibição à proteção insuficiente (unter-massverbot), o descuido, ou o rompimento com o dever de zelo, que compõe o pano de fundo da boa administração, deve corro-borar para a caracterização da improbidade.

Ademais, entende-se que o cumprimento ao dever de boa administração é também garantia do gestor público. A ação diligente, pautada pela cautela nas atividades administrativas, tende a atender os pressupostos de legitimidade do Estado Constitucional, inclusive isentando de responsabilidade o agen-te de um eventual dano futuro, uma vez que as decisões públicas são tomadas em espaço e tempo finitos.

As consequências da má-administração já são muito bem conhecidas – até mesmo vivenciadas. Resta agora compreen-der os preceitos de uma boa administração e inclui-los nos fundamentos que trabalham a improbidade, que, sem dúvida alguma, é uma das patologias mais inibidoras da melhor prática administrativa.

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é a ação que não buscou a aquisição mais econômica e eficiente para o interesse público, o que resultou em perda patrimonial.

Com isso, sustenta-se que, à luz do Estado Constitucional, a tutela da boa administração é o bem protegido pela Lei de Improbidade Administrativa, razão pela qual a sua violação deve restar fundamentada para haver a incidência de qualquer espé-cie condenatória da norma.

Por derradeiro, encerrando-se o discurso, mas não o de-bate, reitera-se o acórdão da lavra da Des.ª Marilene Bonzanini: a culpa grave tem um revestimento que permite identificá-la objetivamente. A explicação para tanto, a qual ainda deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário, é a seguinte: a tutela da boa administração é o escopo do espírito republicano, que deve ser preservado considerando-se a dimensão objetiva de seus pos-tulados jurídicos, os quais não tomam por efeito a motivação interna dos agentes.

Considerações finais

Ao fim e ao cabo, é mister advogar, em sede de considera-ções finais, que, se o tema da improbidade administrativa resta cada vez mais atual, também o é o tema da boa administração pública.

De origem europeia, o direito à boa administração públi-ca compreende um plexo de direitos e garantias que devem orientar a atividade pública, a qual deve ser entendida em sua dimensão instrumental, com fundamento na realização da digni-dade da pessoa humana.

Por sua vez, a improbidade administrativa, disciplinada no Brasil pela Lei 8.429/92, tutela a probidade na Administração, sancionando uma série de atos que são qualificados pela deso-nestidade no trato público.

Considerando-se que ambos os temas preocupam-se com o mesmo objeto – ou, ao menos, com objetos muito próximos –, uma reflexão que agregue a boa administração e a improbidade

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PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NA UNIÃO EUROPEIA E O

ADVENTO DO REGULAMENTO (UE) 2016/679: CONTRIBUIÇÕES PARA O ORDENAMENTO JURÍDICO

BRASILEIRO

Nicholas Augustus de Barcellos Nether1

1 Mestrando em Direito e Especialista em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministé-rio Público (FMP). Advogado. E-mail: [email protected].

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Abstract

This article will focus on the protection of personal data in the European Union, addressing the general characteristics of the laws of the countries on the subject (both Civil Law, as the Common Law), still based on Directive 95/46/EC was repealed by the new Regulation (EU) 2016/679 (General Regulation on Data Protection). It is noteworthy that the legal systems of nations should welcome such a standard in the coming years, adapting to the regulation of relations created due to the implementation of new technologies. By last, the work will examine the situation of personal data protection in Brazil with a focus on the bill on the subject, the result of extensive government debate with society, making the comparison with the contributions that the models of European countries can offer to development of brazilian legislation.

Keywords: Personal data. Internet. Privacy. Protection. European Union.

Resumo

O presente artigo versará sobre a proteção de dados pessoais na União Europeia, abordando as características ge-rais das legislações dos países sobre o tema (tanto do Direito Continental, quanto do Direito Anglo-Saxônico), ainda baseadas na Diretiva 95/46/CE, que foi revogada pelo novo Regulamento (UE) 2016/679 (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados). Ressalta-se que os ordenamentos jurídicos das nações deverão recepcionar tal norma nos próximos anos, adequando-se para a regulação das relações criadas em virtude da implementação de novas tecnologias. Por derradeiro, o trabalho analisará a situa-ção da proteção de dados pessoais no Brasil com enfoque no projeto de lei sobre o tema, fruto de amplo debate do governo com a sociedade, fazendo o cotejo com as contribuições que os modelos dos países europeus podem oferecer à elaboração da legislação pátria.

Palavras-chave: Dados pessoais. Internet. Privacidade. Proteção. União Europeia.

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Antes de examinar propriamente o assunto, será apresen-tado o conceito de dados pessoais:

Dado pessoal é o dado relacionado a um indivíduo iden-tificado ou identificável, independentemente do suporte em que se encontre registrado (escrita, imagem, som ou vídeo). Entende-se por identificado o indivíduo que já é co-nhecido; e por identificável, a pessoa que pode ser conhe-cida diretamente pelo próprio possuidor de seus dados, ou indiretamente através de recursos e meios à disposição de terceiros [grifo do autor]. (CASTRO apud VIEIRA, 2007, p. 214)

A União Europeia preocupa-se com a proteção de dados pessoais, assim como se empenha em garantir a segurança de redes e da informação, tendo uma legislação específica, uma estratégia política e agência própria destinada puramente à or-ganização de atos alusivos à segurança da informação: refere-se à Agência da União Europeia para a Segurança das Redes e da Informação, cujo poder foi acentuado pelo Regulamento (EU) 526/2013, de 21 de Maio de 2013 (MENDES, 2013, p. 247).

Entre outras atividades, o mencionado órgão divulga fre-quentemente pesquisas referentes à segurança da informação, privacidade e proteção de dados pessoais, abrangendo, exem-plificativamente, relatórios sobre as circunstâncias técnicas de cumprir o direito ao esquecimento na Internet (ENISA apud MENDES, 2013, p. 248) e a fiscalização do consumidor no plano da publicidade comportamental digital (ENISA apud MENDES, 2013, p. 248).

Desde 2004 existe a Agência Europeia para a Proteção de Dados, cuja função principal é a de “Garantir que todas as insti-tuições e organismos da UE [União Europeia] respeitem o direito à privacidade dos cidadãos quando processam os seus dados pessoais” (UNIÃO EUROPEIA, 2016).

Antes da Diretiva 95/46/CE, o primeiro regramento sobre proteção de dados pessoais foi a Convenção nº 108 do Conselho da Europa – Convenção para a proteção das pessoas relativa-mente ao tratamento automatizado de dados pessoais –, cuja abertura ocorreu em 28 de Janeiro de 1981 em Estrasburgo,

Desde 1995, a União Europeia regulamenta a proteção de dados pessoais (através da Diretiva 95/46/CE) em seus paí-

ses-membros, que editaram leis sobre o tema, com o intuito de garantir a privacidade do uso de informações de seus cidadãos.

Decorridos cerca de vinte anos, verificou-se a necessidade de atualização do regramento, haja vista a introdução de novas tecnologias (tais como as redes sociais) que mudaram o modo como pessoas se relacionam cotidianamente entre si e com as empresas. Tal modernização resultou no Regulamento (UE) 2016/679, que será internalizado no ordenamento jurídico dos países europeus em um prazo máximo de dois anos, além das Diretivas (UE) 680 e 681 também de 2016.

Em que pese a importância da proteção de dados pessoais para a preservação da privacidade, o Brasil ainda não possui uma legislação específica sobre o assunto, o que deixa seus in-divíduos vulneráveis a possíveis violações de seus direitos.

No entanto, está tramitando na Câmara dos Deputados um projeto de lei oriundo do Ministério da Justiça, que foi elaborado por meio de ampla discussão entre sociedade civil, empresas, universidades e governo em 2015, cujo conteúdo será analisado oportunamente.

Proteção de dados pessoais na União Europeia: breve histórico e o advento do

regulamento (UE) 679 e das diretivas (UE) 680 e 681 de 2016

A preocupação com a proteção de dados pessoais, na União Europeia, não é nova, existindo registro da regulamen-tação da matéria desde 1981. Em 1995, avança-se na tutela da privacidade com a Diretiva 95/46/CE (até então o instrumento mais importante, que vigorou durante vinte anos) e, recente-mente, tem-se a atualização da proteção de dados pessoais ajustada à nova realidade tecnológica com a entrada em vigor do Regulamento (UE) 2016/679.

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Antes de analisar detidamente cada diploma legal euro-peu, devem-se apresentar as características essenciais das leis (CATE apud REINALDO FILHO, 2013, p. 855), quais sejam: a) impõem-se – geralmente – tanto ao setor público, quanto ao se-tor privado; b) são previstas para uma ampla gama de serviços, entre os quais a coleta de dados, armazenamento, uso e disse-minação; c) determinam responsabilidades a qualquer cidadão que participe dessas operações; e d) normalmente, possuem poucas limitações de área, ou seja, empregam-se sem distinção a qualquer classe de dados.

No mundo, o diploma legal pioneiro sobre a proteção de dados pessoais foi editado em 1970 pelo estado alemão de Hessen. Em 1977, foi aprovada a lei federal germânica sobre o tema. Entretanto, a proteção de dados recebeu a importância merecida daquele país no julgamento do Tribunal Constitucional Federal em relação ao recenseamento populacional, ocorrido na Alemanha no ano de 1983 (MENKE, 2015, p. 205).

É importante salientar que a referida decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão estatuiu um novo direito funda-mental, qual seja, o da autodeterminação informativa (MENKE, 2015, p. 205). Nesse sentido, apresenta-se a doutrina do direito geral da personalidade, na qual se pode diferenciar três clas-ses, de acordo com a elaboração do aludido Tribunal: o direito à autodeterminação, o direito à autopreservação e o direito à autoapresentação (MENKE, 2015, p. 210).

A autodeterminação informativa insere-se na última cate-goria do direito geral da personalidade, nos seguintes termos:

(...) o direito à autoapresentação possibilita que o indiví-duo se insurja contr as falsas, não autorizadas, degradantes ou deturpadas representações de sua pessoa, bem como o protege das observações secretas e indesejadas de sua personalidade. É nessa última categoria que se enquadra a autodeterminação informativa, ao lado de, entre outros, os direitos à imagem, à palavra escrita e falada, à prote-ção contra a escuta clandestina e contra o monitoramen-to por vídeo em locais públicos (PIEROTH; SCHLINK apud MENKE, 2015, p. 210).

entrando em vigor em 1º de Outubro de 1985 (CONSELHO DA EUROPA, 2016).

Em muitos considerandos, verifica-se que a Diretiva 95/46/CE já corroborava a assertiva da Convenção de Estrasburgo, de acordo com a qual a proteção de dados pessoais incorpora-se aos direitos fundamentais dos indivíduos, mencionando dire-tamente o artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e do Cidadão (BESSA, 2011, p. 62).

Também se assinala que o capítulo 1 da diretiva estabe-lecia o equilíbrio entre o tratamento de dados e o progresso econômico, o desenvolvimento do comércio e a promoção do bem-estar do homem, apresentando os dois lados que a prote-ção da dignidade da pessoa humana atinge no que se refere à administração de informações pelos arquivos de dados de pro-teção ao crédito: auxilia na concessão de crédito para compra de bens e produtos variados e colabora para o bem-estar mate-rial e uma vida melhor; em contrapartida, expõe – em constante tensão – a intimidade da pessoa, ao manejar seus dados pes-soais (BESSA, 2011, p. 62).

Ainda quanto à referida diretiva, é de frisar que a norma básica de segurança da informação estava prevista em seu artigo 17, no que tange à proteção de dados pessoais. De acordo com tal dispositivo, o encarregado pelo tratamento precisa empre-gar “medidas técnicas e organizativas adequadas para proteger os dados pessoais contra a destruição acidental ou ilícita, a per-da acidental, a alteração, a difusão ou acesso não autorizados” (artigo 17, 1). Ainda, o regramento indica que, na hipótese de subcontratação, o incumbido pelo tratamento deverá assegu-rar o suporte aos mesmos critérios de segurança da informação pelo subcontratante (artigo 17, 2), Finalmente, o preceito impõe ao executor do tratamento que registre a adesão das ações de segurança com o objetivo de preservar a prova (artigo 17, 3) (MENDES, 2013, pp. 251-252).

É importante salientar que a Diretiva 95/46/CE foi revo-gada em razão do novo Regulamento (UE) 2016/679 que, assim como as Diretivas (UE) 680 e 681 também de 2016, serão anali-sados posteriormente.

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tiva privada. Eis que, atualmente, os cidadãos são “expostos a modelos de negócios, equipamentos e a programas de com-putador que, a todo momento, coletam dados e informações relativos a sua personalidade” (MENKE, 2015, p. 217).

No período entre a lei do estado de Hessen e a lei federal alemã, a Suécia editou o seu diploma legal sobre o assunto (Da-talegen) – Lei nº 289, de 11 de Maio de 1973 (REINALDO FILHO, 2013, p. 855).

Em 8 de julho de 1978, a Dinamarca normatizou a proteção de dados pessoais através das Leis nos 243 e 244, cuja peculiari-dade foi a ampliação do direito para as pessoas jurídicas (Idem).

O Código italiano de proteção de dados pessoais inseriu o princípio da “necessidade do tratamento de dados” (artigo 3º), de acordo com o qual o referido tratamento é um “mal ne-cessário”, cuja adoção se dá em ocasiões nas quais a destinação pretendida não pode ser alcançada de outro modo. O aludido princípio origina-se da legislação alemã, na qual está previsto o que a doutrina denominou de “recusa à formação de bancos de dados”, que seria o “recurso à consulta aos dados pessoais antes que todas as outras alternativas sejam exauridas” (SIMITIS apud DONEDA, 2003, p. 127).

Ainda em relação ao princípio da necessidade, observa-se a importância dele no sentido de atentar para a proporciona-lidade presente na regra: o tratamento de dados pessoais é considerado uma atividade de natureza perigosa (artigo 15), obrigando o causador de dano a indenizar na hipótese de não apresentar provas de que utilizou todos meios e cuidados fun-damentais a fim de impedi-lo, conforme preceitua o artigo 2.050 do Código Civil italiano (DONEDA, 2003, p. 127).

Do exposto, infere-se que:

Assim, é possível extrairmos um critério interpretativo pelo qual (i) a mera constituição de um banco [de] dados pessoais deve ser evitada, somente empreendida quando sua inevitabilidade em relação aos fins pretendidos a jus-tifiquem; (ii) ainda no caso de justificada sua necessidade, deve-se ter em conta que os métodos e a arquitetura do sistema informático utilizado devam ser tais que reduzam

Ainda sobre a decisão, o Tribunal Constitucional Federal assinala que a autodeterminação informativa ultrapassa a prote-ção da privacidade:

(...) Ela confere ao indivíduo o poder de basicamente de-terminar por si próprio sobre a divulgação e a utilização de seus dados pessoais. A autodeterminação informativa complementa a proteção constitucional da liberdade com-portamental e da privacidade (MENKE, 2015, p. 218).

Em 27 de Fevereiro de 2008, a mesma Corte reconheceu um novo direito fundamental no que concerne à proteção de da-dos pessoais: a garantia da confidencialidade e da integridade dos sistemas técnico-informáticos (MENKE, 2015, p. 215).

Há de se salientar que o aludido direito “resguarda o próprio sistema e os dados vistos no seu sentido mais amplo” (BVerfGE apud MENKE, 2015, p. 219).

O direito à garantia da confidencialidade e à integridade dos sistemas técnico-informáticos foi objeto de consideração por parte do Tribunal Constitucional Federal alemão em virtude da impossibilidade de a autodeterminação informativa salvaguar-dar a pessoa de todas as possíveis violações à personalidade, como aquelas em que “o usuário de um sistema técnico-infor-mático (por exemplo, um computador) confia em dados desse sistema ou os envia a outrem” (MENKE, 2015, p. 219).

Quanto às hipóteses de aplicação, tem-se que:

[...] a sua proteção serve para os casos em que a interven-ção compreenda sistemas informacionais que, considera-dos individualmente ou acerca de suas possibilidades de conexões técnicas, contenham dados pessoais do indivíduo numa extensão e numa variedade que o acesso a esse sis-tema possibilite vislumbrar as diversas facetas da condução de sua vida pessoal ou até mesmo uma “fotografia” de sua personalidade (MENKE, 2015, pp. 221-222).

É importante ressaltar que a decisão que reconheceu o direito à autodeterminação informativa ocorreu em face da atuação estatal, enquanto o julgamento a partir do qual surgiu a garantia da confidencialidade e da integridade dos sistemas técnico-informáticos abrange tanto o Estado, quanto a inicia-

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Assim como na Itália, a Espanha possui “a Agência Es-panhola de Proteção de Dados, cuja finalidade é velar pelo cumprimento da legislação própria, bem como controlar sua aplicação, em especial no que diz respeito aos direitos emer-gentes da informação” (TADEU, 2011, p. 95).

Há de se salientar que a Espanha caracteriza-se por pos-suir um dispositivo constitucional que define o regramento da proteção da privacidade contra invasões da atividade informáti-ca (artigo 18, § 1º) (REINALDO FILHO, 2013, p. 855).

Portugal também dispõe de previsão constitucional sobre o tema. Entretanto a Constituição de 1977 aprofunda-se, uma vez que abrange o direito do indivíduo de se informar sobre os dados que lhe são atinentes, de que essas informações sejam utilizadas segundo a destinação para a qual foram colhidas e, ainda, de corrigi-las (na hipótese de equívoco) e de atualizá-las (REINALDO FILHO, 2013, p. 855).

Na legislação francesa, existem dispositivos esclarecedo-res sobre o direito de acesso a arquivos, que preveem sanções penais rigorosas. A lei de proteção de dados pessoais desse país define que a informática está à disposição dos indivíduos, não violando a dignidade da pessoa humana, tampouco os direi-tos do homem ou as liberdades individuais ou públicas (RUARO, RODRIGUES e FINGER, 2011, p. 152).

O Reino Unido possui o Gabinete do Comissário das Infor-mações (Information Commissioner’s Office – ICO), um órgão público independente, que atua na defesa dos direitos de infor-mações em benefício das pessoas, proporcionando a abertura por entidades estatais e a privacidade dos dados para cidadãos. A referida autoridade monitora e fiscaliza a Lei de Proteção dos Dados, a Lei da Liberdade de Informação, a Lei de Informação sobre Meio Ambiente e a Lei sobre Privacidade e Regulamenta-ção das Comunicações Eletrônicas (NABAS, 2012, p. 175).

Em relação às atividades do gabinete, tem-se:

[...] educar e determinar a promoção de boas práticas, for-necerem informações e aconselhamento para resolver pro-blemas; responder elegíveis queixas de pessoas que pen-sam que os seus direitos foram violados; impor penalidades

ao mínimo a utilização de dados pessoais – neste particular, é interessante que ele fornece um parâmetro para julgar a adequação ou não de uma determinada técnica, algo im-portantíssimo quando percebemos que os próprios riscos no tratamento de dados pessoais são oriundos de deter-minadas arquiteturas de informação, favorecidas por tec-nologias que frequentemente se balizam pelo critério da eficiência e no mínimo relutantes em relação à influência de outros parâmetros; (iii) favorecem-se critérios de segu-rança, estabelecendo a preferência pela utilização, quando possível, de dados anônimos ou de instrumentos que iden-tifiquem a identidade da pessoa à qual se referem os dados somente quando a necessidade de apresenta (DONEDA, 2003, pp. 127-128).

No tocante às regras gerais para o tratamento de dados, o Código italiano descreve-as nos artigos 11 a 17, assim como elenca as normas para o tratamento feito por sujeitos públicos (artigos 18 a 22) e por sujeitos privados ou “estes públicos eco-nômicos”, previstas nos artigos 23 a 27. Para essa classificação, considerou-se que o nível de garantia dos dados pessoais se-ria preservado de modo permanente, atentando-se – contudo – que essa tutela se adapte a situações características que o tratamento apresenta de acordo com o sujeito que os trata (DO-NEDA, 2003, p. 128).

Em seu capítulo final, o Código italiano estrutura a Au-toridade Garante para a Proteção de Dados Pessoais. Sua competência abrange vários pontos do tema; ressalta-se o ca-ráter de órgão parajurisdicional, uma vez que se pode recorrer à própria entidade em relação a muitos direitos de que trata o referido diploma legal. Há de se salientar que o recurso é alter-nativo (é permitida a opção ao Poder Judiciário), não cumulativo e impossibilita a interposição de futuro recurso à justiça comum pelas mesmas partes e idêntico objeto (DONEDA, 2003, p. 131).

A autoridade italiana de garantia caracteriza-se por ser um órgão colegiado, composto por quatro membros com um presidente e o respectivo mandado de quatro anos, possuindo uma independência funcional assegurada pela eleição de seus integrantes pelas casas do parlamento, sem presença nem cor-relação ao Poder Executivo (DONEDA, 2003, pp. 131-132).

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Entre as inovações trazidas pelo novo Regulamento, res-salta-se a consagração do direito ao esquecimento, previsto no artigo 17; a proteção do tratamento de dados pessoais que en-volvam crianças, cuja licitude vale através do preenchimento do quesito de maior de 16 anos, ou – na falta – por meio de consen-timento dos pais e/ou responsáveis, nos termos do artigo 8º/1; o direito à portabilidade dos dados e o direito de oposição, pre-vistos nos artigos 20 e 21, respectivamente (CASTRO, 2016).

No que concerne ao administrador do tratamento dos dados pessoais, ou o subcontratante, atenta-se para a obriga-toriedade – em determinadas situações – da nomeação de um encarregado de proteção de dados, prevista no artigo 37/1, nas seguintes condições (CASTRO, 2016):

[...] a) O tratamento for efetuado por uma autoridade ou organismo público, excetuando os tribunais no exercício da sua função jurisdicional; b) As atividades principais do res-ponsável pelo tratamento ou do subcontratante consistam em operações de tratamento que, devido à sua natureza, âmbito e/ou finalidade, exijam um controlo regular e siste-mático dos titulares dos dados em grande escala; ou c) As atividades principais do responsável pelo tratamento ou do subcontratante consistam em operações de tratamento em grande escala de categorias especiais de dados nos termos do artigo 9º e de dados pessoais relacionados com conde-nações penais e informações a que se refere o artigo 10º [grifo do autor].

Ainda quanto ao encarregado de proteção de dados (cuja função não é totalmente nova), observa-se que “(...) poderá ser um trabalhador ou prestador de serviços contratado pela entida-de responsável pelo tratamento de dados ou pelo subcontratante, especializado em matéria de proteção de dados [grifo do autor] (Art.º 37/5 e 6)” (CASTRO, 2016). Suas tarefas, entre outras, a serem desempenhadas com independência, consistirão em “(...) avaliar e promover a implementação dos mecanismos de cumpri-mento da legislação em matéria de proteção de dados, prestar aconselhamento devido mediante solicitação, e cooperar com a autoridade de controlo, em relação à qual actuará como ponto de contacto (Art.ºs 38 e 39).” (CASTRO, 2016).

utilizando sanções legais contra aqueles que ignorarem ou não a assumir suas obrigações, por exemplo, a ICO pode impor multas em organizações que cometerem graves vio-lações da Lei de Proteção de Dados (NABAS, 2012, p. 175).

Frisa-se que o aludido órgão possui capacidade jurídica a fim de assegurar a implementação dos preceitos dos referidos diplomas legais (NABAS, 2012, p. 177).

Ainda, destacam-se os meios que o gabinete possui para alterar a conduta de empresas e pessoas que estejam colhendo, usando e armazenando dados pessoais sob a Lei de Proteção dos Dados e de Privacidade e Regulamentação das Comuni-cações Eletrônicas. Tais instrumentos abrangem ações cíveis e penas, procedimento administrativo e auditoria. O gabinete também possui a competência de imputar pena pecuniária no controlador de dados (NABAS, 2012, p. 177).

A Escócia também dispõe de norma própria: Regulamento Escocês sobre Informações Ambientais e a Lei de Liberdade de Informação (Escócia) Ato 2002 – que são regradas pelo Gabinete do Comissário de Informações da Escócia (NABAS, 2012, p. 175).

Em 4 de Maio de 2016, foi publicado, no Jornal Oficial da União Europeia, o “Regulamento (UE) 2016/679 [grifo do autor] – do Parlamento Europeu e do Conselho de 27.4.2016 re-lativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE [grifo do autor] (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados)” (CASTRO, 2016).

Paralelamente, foi publicada a Diretiva (UE) 2016/680, que versa sobre a “(...) proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais pelas autoridades com-petentes para efeitos de prevenção, investigação, detecção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, e à livre circulação desses dados” [grifo do autor] (CASTRO, 2016).

Por fim, entrou em vigor a Diretiva (UE) 2016/681, que tra-ta da “(...) utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (PNR) para efeitos de prevenção, detecção, inves-tigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave” [grifo do autor] (CASTRO, 2016).

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mente alguns dispositivos esparsos na legislação constitucional e infraconstitucional.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não possui previsão sobre a proteção de dados pessoais, à semelhança de países como Espanha e Portugal. Existem dispo-sitivos esparsos a partir dos quais se alcança a tutela, tais como o habeas data (artigo 5º, inciso LXXII), a proteção à intimidade e à vida privada no artigo 5º, inciso X, a inviolabilidade das co-municações (artigo 5º, inciso XII) e a proteção ao consumidor (artigo 5º, inciso XXXII) (LIMBERGER, 2007, p. 224).

Nos diplomas legais infraconstitucionais, tem-se que o Código Civil de 2002 protege a inviolabilidade da vida privada dos indivíduos (artigo 21), delegando ao Poder Judiciário – por requisição do interessado – o estabelecimento de medidas necessárias com o objetivo de evitar ou interromper possível violação do direito. Ainda, o referido dispositivo prevê que a exposição de informações sem permissão e correspondente desrespeito à privacidade são suscetíveis de reparação por da-nos materiais ou morais (artigo 186) (GONÇALVES, BERTOTTI e MUNIZ, 2013, p. 56).

Por seu turno, o Código de Defesa do Consumidor esta-tui que os consumidores precisam ser informados por escrito acerca da coleta de dados para abertura de fichas ou cadastros, além de tutelar o acesso a suas informações – pessoais ou co-merciais – com a possibilidade de correção ou atualização dos dados incorretos, conforme os artigos 43 e seguintes. Já nos artigos 72 a 74, estão caracterizadas as infrações penais de im-possibilitar ou obstaculizar ao consumidor alcance a seus dados pessoais e deixar de atualizá-los, embora tenha conhecimento de que estão equivocados (GONÇALVES, BERTOTTI e MUNIZ, 2013, p. 57).

A Lei nº 12.737/2012 dispõe sobre delitos informáticos, acrescentando ao Código Penal crimes como o ingresso em aparelhos com o fito de obter, adulterar ou destruir dados particulares sem permissão (artigo 154-A) e a interrupção ou per-turbação de serviço informático, telemático ou de informação

Em relação à atuação dos países, das autoridades de controle, do Comitê e da Comissão, o Regulamento prevê que eles deve-rão promover a elaboração de códigos de conduta com o objetivo de garantir a correta aplicação da aludida norma em consonância com a permissão de que as associações e outras entidades repre-sentantes de categorias de responsáveis pelo tratamento ou de subcontratantes poderão igualmente criar os referidos códigos de conduta, alterá-los ou acrescê-los em razão da mesma finalidade de garantir a aplicação do Regulamento (CASTRO, 2016).

Finalmente, ressalta-se a consideração progressiva das agências nacionais de controle, polos nacionais de contato e de ação intra e internacionais, cuidando da aplicação e fiscalização do Regulamento, que atuarão com “(...) total independência e não estando sujeitos a influências externas, diretas ou indiretas no desempenho das suas funções e no exercício dos seus pode-res (conforme Art.ºs51 e seguintes)” [grifo do autor] (CASTRO, 2016). As atribuições das agências estão previstas, exaustiva-mente, no artigo 57; e os poderes, no artigo 58 (CASTRO, 2016).

Como se pode observar, o Regulamento surgiu de amplo debate legislativo, alicerçado na necessidade da edição de um novo regramento (a Diretiva 95/46/CE completou 20 anos de vigência em 2015) sobre a proteção de dados pessoais em razão da ausência de normatização das relações advindas da imple-mentação de novas tecnologias, cujo uso indevido pode violar a privacidade dos cidadãos europeus.

Proteção de dados pessoais no Brasil: panorama da situação atual e contribuições

da legislação europeia

Conforme visto anteriormente, a Europa regula o trata-mento dos dados pessoais há muito tempo – com destaque para o novo Regulamento –, o que indica a preocupação com a tutela da privacidade de seus cidadãos. Já em nosso país, o assunto ainda não teve a merecida importância, possuindo so-

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te será obrigado a disponibilizar os registros dos usuários mediante ordem judicial. Nesse caso, caberá ao juiz tomar as providências necessárias à garantia do sigilo das infor-mações recebidas e à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do usuário, podendo de-terminar segredo de justiça, inclusive quanto aos pedidos de guarda de registro [grifos do autor] (AQUINO JÚNIOR, 2014).

Sobre a falta de tratamento legal adequado e à proteção de dados pessoais, Fabiano Menke assinala que:

Não há dúvidas: estamos longe de considerar a privacida-de como um valor fundamental, e o ordenamento jurídico brasileiro, em parte, reflete essa realidade, ainda que te-nhamos uma importante garantia constitucional sobre o as-sunto e mesmo que a doutrina venha chamando a atenção para a problemática envolvida. O Brasil ainda não editou uma lei de proteção de dados, algo bastante recomendável (MENKE, 2015, pp. 228-229).

Nesse sentido, Anderson Schreiber (2011, p. 133) defende a ampla proteção da privacidade, não se restringindo à admi-nistração da coleta de dados pessoais, abrangendo todas as etapas do processo informativo, estabelecendo um exame ri-goroso da veracidade das informações prestadas, sua guarda assegurada, a averiguação frequente de sua situação, seu uso limitado à destinação para o qual seus dados foram fornecidos, sua eliminação no momento em que for alcançada a finalidade, o perene acesso do detentor às informações coletadas para o fito de conhecimento ou retificação, entre outros procedimentos.

No ano de 2015, foi elaborado um anteprojeto de lei pelo Ministério da Justiça, resultado de ampla discussão com a so-ciedade civil, que, entre outras disposições, prevê a criação do Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais, ao qual serão atribuídas competências com o objetivo de assegurar a eficácia dos direitos dos titulares das informações (GIACCHET-TA e MENEGUETTI, 2012, p. 67).

Ainda, o anteprojeto possibilita a formação de “Códigos de Boas Práticas” reservados a categorias profissionais, os quais deverão fixar regras quanto à organização, regime de funciona-

de utilidade pública (artigo 266, § 1º) (GONÇALVES, BERTOTTI e MUNIZ, 2013, p. 57).

Em 2014, foi sancionada a Lei nº 12.965, conhecida como “Marco Civil da Internet”, cujo objetivo é regular a rede mundial de computadores no Brasil por meio da adoção de princípios, ga-rantias, direitos e deveres para os usuários, além de “disciplinar a atuação do poder público no estabelecimento de mecanismos de governança multiparticipativa, transparente, colaborativa e democrática, com a colaboração do governo, do setor empresa-rial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica” (AQUINO JÚNIOR, 2014).

Em relação à privacidade das pessoas, o aludido diploma legal tutela a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, além da proteção e reparação em caso de dano material ou moral oriundo de sua transgressão. Igualmente, garante a “in-violabilidade e sigilo do fluxo de comunicações pela Internet e das comunicações privadas, salvo por ordem judicial, exigindo-se consentimento expresso sobre coleta, uso, armazenamento e tratamento de dados pessoais” [grifo do autor] (AQUINO JÚ-NIOR, 2014).

A lei também trata da proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas nos artigos 10 e 11, nos seguintes termos:

Os arts. 10 e 11 do Marco Civil da Internet dispõem sobre a proteção dos registros, dos dados pessoais e das comu-nicações privadas, estabelecendo que a guarda e a dispo-nibilização dos registros de conexão e acesso a aplicações de Internet, bem como de dados pessoais e de conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas. Além disso, em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comuni-cações por provedores de conexão e de aplicações de In-ternet em que pelo menos um desses atos ocorra em terri-tório nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção de dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. O provedor responsável pela guarda somen-

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Considerações finais

Como se pode observar, os países europeus (sejam eles do sistema da Civil Law, sejam eles do sistema da Common Law) editaram leis sobre a proteção e o tratamento de dados pessoais, além de criarem órgãos e cargos públicos voltados para a fiscaliza-ção e punição daqueles que violarem os direitos de seus cidadãos, o que demonstra a importância do assunto na atualidade.

Em comum, percebe-se que as informações dos indivíduos mereceram muito cuidado a ponto de serem objeto de tutela específica, tanto na esfera legislativa, quanto na esfera do Poder Executivo, sem desconsiderar a possibilidade de propositura de ação no Poder Judiciário desses países, quando da violação do direito à privacidade.

Ademais, há de se ressaltar a preocupação da Europa em atualizar a legislação sobre a proteção de dados pessoais, re-sultando no Regulamento (UE) 2016/679, que foi amplamente discutido em razão do longo tempo transcorrido desde a Di-retiva 95/46/CE, considerando que novas tecnologias foram introduzidas na vida das pessoas, criando relações impossíveis de serem previstas ao tempo da referida norma.

Sobre o Brasil, constata-se a inexistência de uma lei que regule a proteção de dados pessoais. Entretanto, em 2015, foi elaborado um anteprojeto que trata do assunto, abrangendo todas as questões atinentes em virtude de amplo debate do go-verno com a sociedade. Tal documento converteu-se em projeto de lei em 2016, e se almeja que os congressistas continuem a discutir o tema, a fim de que o País tenha uma legislação compa-tível com a importância da privacidade dos cidadãos.

De todo o exposto, infere-se que o regramento da prote-ção de dados pessoais é necessário, a fim de que se preserve a privacidade dos indivíduos. Contudo, não se pode desprezar o caráter global que o tema adquire em razão da facilidade de comunicação entre as pessoas – ultrapassando as fronteiras dos países – o que demandará uma atuação coletiva das nações em termos de legislação e de fiscalização do correto tratamento das informações dos cidadãos.

mento, procedimentos aplicáveis, normas de segurança, padrões técnicos e obrigações específicas para os direitos envolvidos no tratamento e no uso de dados pessoais (GIACCHETTA e MENE-GUETTI, 2012, p. 67).

Nesse sentido, a autoridade de garantia deverá aprovar os referidos códigos e o auxílio à sua elaboração, especificamente no que se refere à vigilância e monitoramento, publicidade e marketing direto, bancos de dados de proteção ao crédito e seguros (GIACCHETTA e MENEGUETTI, 2012, p. 67).

Em 13 de maio de 2016, o Poder Executivo Federal apre-sentou o mencionado anteprojeto na Câmara dos Deputados, que se transformou no projeto de lei nº 5.276 (PROJETO DE LEI Nº 5.276/2016).

O texto original do projeto contém cinquenta e seis artigos, resultado do debate abrangente promovido pelo Ministério da Justiça com a participação de muitos setores da sociedade civil. Como exemplo, pode-se citar os vários direitos que regerão a proteção de dados pessoais, entre os quais se destaca a autode-terminação informativa (PROJETO DE LEI Nº 5.276/2016).

Comparando-se as inovações trazidas pelo Regulamento (UE) 2016/679 com o projeto de lei nº 5.276/2016, observa-se que esse guarda semelhanças com aquele, uma vez que aborda o direito ao esquecimento (com um número menor de situações previstas), o tratamento diferenciado para crianças e adolescen-tes, o direito de portabilidade dos dados, o direito de oposição, a atuação do encarregado de proteção de dados, os códigos de conduta e o funcionamento do futuro órgão responsável pela fiscalização do tratamento de dados pessoais (CASTRO, 2016) (PROJETO DE LEI Nº 5.276/2016).

Espera-se que, assim como ocorreu na União Europeia, o projeto de lei nº 5.276 seja amplamente debatido pelos parla-mentares, para que se produza um diploma legal que permita ao Estado controlar o tratamento dos dados pessoais, preservando a atividade econômica das empresas (e das entidades públicas, quando for o caso) e os direitos dos indivíduos.

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REPONDERANDO O CASO LÜTH: uma abordagem à luz da teoria da ponderação de Robert Alexy

Andrea da Silva Uequed1

1 Mestranda em Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público, Promotora de Justiça, titular da 2ª Promotoria Cível de Canoas, RS. E-mail: [email protected]. Artigo entregue em: 30 out. 2016.

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Abstract

This paper develops a study about the pioneering decision of the German Federal Constitutional Court on the “Lüth Case” and its importance for modern constitutionalism, especially by the dissemination of the weighting idea as a mechanism for conflict resolution that fomented the construction of the theory of principles by Robert Alexy . With this view, the objective is to assess if the historic decision was structured based on the same design and if it is viable, technically, to remake this weighting idea mechanism in the light of the law questioned, according to the German’s philosopher weight formulas, checking whether, in this model, it would reach or not to the same conclusion the German Court.

Keywords: Case Lüth. Proportionality. Weighting. Formula weight. Robert Alexy.

Resumo

O presente artigo desenvolve um estudo sobre a pionei-ra decisão do Tribunal Constitucional Federal Alemão no “Caso Lüth” e sua importância para o constitucionalismo moderno, es-pecialmente pela disseminação da ideia de ponderação como mecanismo para solução de conflitos e que fomentou a constru-ção da teoria dos princípios de Robert Alexy. Com esta visão, objetiva-se avaliar se a decisão histórica se estruturou com base na mesma concepção e se é viável, tecnicamente, refazer-se a ponderação à luz do direito posto em causa, de acordo com as fórmulas de peso do filósofo alemão, verificando-se se, neste modelo, chegar-se-ia, ou não, à mesma conclusão do Tribunal germânico.

Palavras-chave: Caso Lüth. Proporcionalidade. Pondera-ção. Fórmula de Peso. Robert Alexy.

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Contextualizando o caso LÜTH

A consolidação dos direitos individuais, com a especial limitação de poder do Estado Liberal, provocada pelo movi-mento iluminista e pela Revolução Francesa, culminou, segundo Comparato (2016, p. 66), com um grande empobrecimento das massas proletárias. Estas, então, se organizaram, fazendo res-surgir os direitos humanos, mais plenamente reconhecidos com a Constituição mexicana de 1917 (e sua ênfase nos direitos so-ciais) e com a Constituição de Weimar, de 1919 (e sua ênfase nos direitos fundamentais).2 Ocorre que esta, em que pese te-nha trazido sessenta e seis artigos de regulações de direitos e deveres fundamentais limitando, v.g., a liberdade econômi-ca do particular em prol de uma ordem social justa, carecia de efetividade, ante a ausência de um tribunal constitucional que garantisse vigência concreta a estes direitos, acabando por con-ter normas meramente programáticas (ALEXY, 2015, p. 98).

Neste contexto, foi somente com a derrocada do nazis-mo e a promulgação, em 1949, da lei fundamental da Alemanha que, viabilizado pela existência de um Tribunal Constitucional Federal, se passou, de fato, a construir concretamente uma teo-ria do ordenamento de valores dos direitos fundamentais. Tal legislação, em seu art. 1º, alínea 1, declara a dignidade huma-na como valor constitucional supremo e professa os direitos do homem como invioláveis e inalienáveis, elencando uma série de direitos fundamentais.

Todavia, como afirmado por Alexy, “aos déficits que nascem de um demasiado pouco em direitos fundamentais, acrescem perigos que residem em um em demasia em direitos fundamentais” (2015, p. 102), risco este que se evidencia pela probabilidade de, à vista de uma colisão destes direitos funda-

2 Os direitos fundamentais, que iniciaram sua carreira triunfal no fim do século XVIII com as magnas Declarações de Direitos Humanos, os Bill of Rights na América, e as Declarações francesas de 1789 a 179539, só com titubeios foram admitidos, já entrado o século XIX, nas Constituições dos Estados 60/391 alemães, por exemplo, nas Constituições da Baviera e Baden de 1818, na Constituição de Wurtemberg de 1819, ou — bem mais tarde — na Constituição prussiana de 1850. Porém, nem sequer naqueles Estados nos quais chegaram a formar parte da Constituição desempenharam, na prática, um papel considerável 40. Sua virtualidade se conseguiria pela primeira vez na raiz da revolução de 1848, com a tentativa de fundação do Reich (HESSE, 2009, pp. 60-61).

Considerando a decisão do Bundesverfassungsgericht — o Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF) — no conhe-

cido “caso Lüth” como pioneira no reconhecimento da eficácia horizontal dos direitos humanos e, especialmente, da inserção da ponderação como postulado para análise dos direitos funda-mentais, semente do que depois se consolidou como a teoria dos princípios de Robert Alexy, e à luz das diretrizes desta, o presente estudo objetiva analisar a citada decisão e verificar a viabilidade de julgamento do caso segundo os estritos critérios da teoria do filósofo alemão, refazendo a ponderação a partir das nuances naquele caso ressaltadas, segundo os registros his-tóricos e à luz da legislação constitucional da época.

Não se tem, absolutamente, a pretensão de questionar o acerto ou não da decisão, uma vez que sua referência e impor-tância históricas são inarredáveis, apenas busca-se efetuar um exercício de aplicação da teoria dos princípios em um caso real e, especialmente, neste que propiciou o desenvolvimento deste modelo argumentativo, cuja complexidade suscita muitas críti-cas, especialmente pela dificuldade de sua concreção.

Para desenvolver o tema, inicialmente trataremos de con-textualizar o caso e a decisão analisada, com base nos registros históricos, pontuando as particularidades mais significativas para o presente trabalho, e, em seguida, debruçaremo-nos sobre a teoria de Robert Alexy, especialmente quanto ao detalhamen-to da teoria da proporcionalidade, com ênfase na ponderação, sem maior digressão teórica para viabilizar a contextualização prática do tema.

Ao final, passaremos à ponderação dos princípios envolvi-dos na sentença-Lüth, buscando equacionar o conflito amparado na proporcionalidade, segundo a concepção de Alexy em sua teoria dos princípios, inserta no contexto de um constitucio-nalismo discursivo, de cujos elementos fundantes — direitos fundamentais, jurisdição constitucional, discurso, representação e ponderação (ALEXY, 2015, p. 155) — focaremo-nos, especial-mente, na ponderação e suas nuances em relação ao caso em análise.

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proporcionalidade, especialmente por ressaltar a necessidade de ponderação no caso concreto, em caso de colisão de direitos (SCHWABE, 2005, pp. 381-382, 389 e 392).

Situando-se na matéria fática, os protagonistas do con-flito são: Erich Lüth (1902-1989), um cineasta alemão que foi o representante da cinematografia alemã no período nazista, e Veit Harlan (1899-1964), um judeu, crítico de cinema e di-retor do Clube de Imprensa de Hamburgo. Harlan, durante o regime nacional-socialista, produziu o filme Jud Süß, cujo con-teúdo, idealizado pelo próprio Joseph Goebbels (Ministro da Propaganda de Hitler), era eminentemente antissemita, sendo instrumento de disseminação de ódio aos judeus pelos alemães. O que se seguiu no Terceiro Reich já é por todos conhecido.

Pois bem, findo o regime, Harlan foi julgado e absolvido por seus atos durante o nazismo, não tendo sido punido com qualquer vedação ao exercício de sua profissão no processo de desnazificação. Assim, seguiu dirigindo filmes, tendo, em 1950, emplacado uma obra cinematográfica romântica, chamada Uns-terbliche Geliebte (Amada imortal), apresentada na Semana do Filme Alemão, em setembro de 1950.

Lüth, por ocasião da abertura do referido evento, como diretor do Clube de Imprensa, emitiu manifestação de repúdio à participação de Harlan4, cuja reputação como representante do cinema nazista maculava a imagem do novo cinema alemão, su-gerindo, implicitamente, aos distribuidores e proprietários das salas de cinema que não exibissem o referido filme.

Harlan, seus produtores e patrocinadores interpelaram Lüth a se explicar, e este, então, publicou nos órgãos de im-

4 Depois que a cinematografia alemã no terceiro Reich perdeu sua reputação moral, certo homem é o menos apto de todos a recuperar esta reputação: trata-se do roteirista e diretor do filme JudSüß. Poupemo-nos de mais prejuízos incomensuráveis a todo o mundo, o que pode ocorrer, na medi-da em que se procura apresentar justamente ele como sendo o representante da cinematografia alemã. Sua absolvição em Hamburgo foi tão somente uma absolvição formal. A fundamentação daquela decisão (já) foi uma condenação moral. Neste momento, exigimos dos distribuidores e pro-prietários de salas de cinema uma conduta que não é tão barata assim, mas cujos custos deveriam ser assumidos: caráter. E é um tal caráter que desejo para a cinematografia alemã. Se a cinemato-grafia alemã o demonstrar, provando-o por meio de fantasia, arrojo óptico e da competência na produção, então ela merece todo apoio e poderá alcançar aquilo que precisa para viver: sucesso junto ao público alemão e internacional.

mentais entre si, não se manejar adequadamente um correto instrumento de concreção e, assim, não se obter êxito na con-clusão a respeito de qual solução é, de fato, a mais justa no caso em análise. Para tanto, pois, é necessário que se disponha de um perfeito modelo interpretativo que garanta a correta aplica-ção da lei, de forma que a expectativa teórica de justiça possa materializar-se.

Referência em pioneirismo teórico e fonte filosófica para a doutrina internacional, o Bundesverfassungsgericht — o Tribunal Constitucional Federal Alemão (TCF) 3 — que detém o controle concentrado de constitucionalidade no país europeu, com status de órgão constitucional e autônomo por não se enquadrar em instância recursal —, vem, como intérprete autêntico da Grunds-gesetz (GG) — a Constituição germânica —, construindo estas soluções em mais de cinquenta anos de existência, com diversos casos significativos para o constitucionalismo internacional.

Tais decisões, inclusive, fundamentaram uma rica obra que ora usaremos como fonte de dados objetivos do litígio em co-mento, intitulada Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão (SCHWABE, 2005), abarcando o constitucionalismo germânico e analisando diversas decisões que foram referência para este movimento. Uma destas deci-sões é a do conhecido “Caso Lüth” ou “sentença-Lüth”, como a ela se refere Alexy (2015, p. 106), e cujos fundamentos torna-ram-se referenciais no constitucionalismo moderno, pois foi tida como o marco inicial de uma cadeia de precedentes argumenta-tivos encaixados de forma a construir um sistema coeso (ALEXY, 2015, p.115). Neste caso, especialmente, firmou-se por lançar as bases dogmáticas gerais dos direitos fundamentais; da figura da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkungou Ausstrahlungswirkung), como efeito de irradiação destes nas demais esferas do direito; do efeito limitador dos direitos funda-mentais em face de seus limites (Wechselwirkung) e da teoria da

3 Ressalte-se a distinção do modelo alemão e brasileiro, onde o STF é a última instância recursal e não um tribunal autônomo, como o TCF. Este somente analisa os aspectos relevantes para o direito constitucional, avaliando a possível violação de direito fundamental cometida pelos tribunais ordi-nários. Não havendo revisão, o TCF limita-se a suspender a decisão violadora, devolvendo os autos para uma segunda decisão, que cabe, então, ao tribunal ordinário (SCHABE, 2005, p. 383).

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Interposta a apelação junto ao Superior Tribunal Estadual de Hamburgo e, ao mesmo tempo, a Reclamação Constitucio-nal7, alegando violação do seu direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento, garantida pelo Art. 5, I, 1, da GG8, julgou-se procedente a reclamação, caçando-se a decisão do Tribunal Estadual, para que nova fosse proferida, com a se-guinte síntese: deve o juiz cível ponderar o valor do bem jurídico protegido pela lei geral em relação aquele protegido pelo direi-to fundamental. Uma ponderação incorreta pode violar o direito fundamental e, assim, fundamentar a Reclamação Constitucional junto ao Tribunal Constitucional Federal (SCHWABE, 2005, p. 393 [grifo nosso]).

Mais detalhadamente, os argumentos foram os de que incorporam-se às normas de direito fundamental um ordena-mento axiológico objetivo, valendo para todas as áreas do direito como um fundamental mandamento constitucional, o que se denomina efeito de radiação (Ausstrahlungswirkung), alcançando, no caso, o direito civil, e estando, pois, presente nas relações dos particulares; as cláusulas gerais do direito ci-vil são, assim, o ponto de infiltração dos direitos fundamentais. Também afirmou-se que as leis gerais, ao mesmo tempo limitam e são limitadas pelos direitos fundamentais, cabendo ao intér-prete esta medida, que, no caso, consubstancia-se na liberdade do puro efeito da livre expressão do pensamento.

Neste contexto, segue a decisão afirmando necessária, en-tão, uma ponderação de bens jurídicos, devendo-se examinar se o reclamante, na busca de seus objetivos, não ultrapassou a medida necessária e adequada do comprometimento dos inte-resses de Harlan e das sociedades cinematográficas, concluindo,

7 A Reclamação Constitucional, no sistema alemão, é remédio autônomo na forma de ação extraordi-nária, para defesa de direitos fundamentais, dirigida diretamente ao TCF, com requisitos próprios, entre os quais o esgotamento das vias ordinárias.

8 Artigo 5 [Liberdade de opinião, de arte e ciência](1)Todos têm o direito de expressar e divulgar livremente o seu pensamento por via oral, por escrito e por imagem, bem como de informar-se, sem impedimentos, em fontes de acesso geral. A liberdade de imprensa e a liberdade de informar através da radiodifusão e do filme ficam garantidas. Não será exercida censura. (2) Estes direitos têm por limites as disposições das leis gerais, os regulamentos legais para a proteção da juventude e o direito da honra pessoal.(3)A arte e a ciência, a pesquisa e o ensino são livres. A liberdade de ensino não dispensa da fidelidade à Constituição.

prensa uma “carta aberta”5 na qual reiterava a essência de seu manifesto e conclamava o povo ao boicote do filme, iniciando-se a batalha judicial com uma ação cominatória de Harlan, produ-tora e distribuidora contra Lüth, com base no § 826 do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch), o Código Civil alemão, que obriga a todo aquele que, por ação imoral, causar dano a outrem, a uma prestação negativa, sob cominação de uma pena pecuniária.6

Foi deferida uma liminar pelo Tribunal Estadual de Ham-burgo e, ao final, condenado Lüth, sob pena pecuniária a ser fixada judicialmente ou de prisão, tanto a deixar de pedir aos proprietários de anfiteatros e empresas de distribuição de fil-mes que não incluíssem o filme em sua programação, quanto a deixar de conclamar o público alemão a não assisti-lo.

Os fundamentos da decisão do Tribunal Estadual de Ham-burgo foram os de que, podendo qualquer filme, através do trabalho de direção de Harlan, transformar-se num filme repre-sentativo, o objetivo de impedir sua apresentação como “criador de filmes representativos” acarretaria o seu desligamento, na prática, da produção de filmes normais de ficção.

Tendo ele sido absolvido no processo criminal, sem qual-quer limitação ao exercício profissional, segundo o processo de desnazificação (Entnazifizierung), a atitude do reclamante se chocaria com a “democrática concepção moral e jurídica do povo alemão”, sendo, pois, imoral. A ênfase da decisão não está na análise jurídica da expressão de uma opinião negativa, mas quanto à atividade laboral, comercial e ameaça de prejuízo pa-trimonial aos autores.

5 O Tribunal do júri não negou o fato de que Veit Harlan foi, por um grande período, o “diretor nº 1 da cinematografia nazista” e que seu filme JüdSüß foi um dos expoentes mais importantes da agitação assassina dos nazistas contra os judeus. Pode ser que dentro da Alemanha e no exterior existam empresários que não fiquem repudiados com um retorno de Harlan. A reputação moral da Alemanha não pode, entretanto, ser novamente arruinada por pessoas inescrupulosas, ávidas por dinheiro. Com efeito, a volta de Harlan irá abrir feridas que ainda não puderam sequer cicatrizar e provocar de novo uma terrível desconfiança que se reverterá em prejuízo da reconstrução da Ale-manha. Por causa de todos esses motivos, não corresponde somente ao direito do alemão honesto, mas até mesmo à sua obrigação, na luta contra este representante indigno do filme alemão, além do protesto, mostrar-se disposto também ao boicote.

6 “§ 826 Sittenwidrige vorsätzliche Schädigung - Wer in einer gegen die guten Sitten verstoßenden Weise einem anderen vorsätzlich Schaden zufügt, ist dem anderen zum Ersatz des Schadens verpfli-chtet.”

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Claro que se mostra necessário o completo domínio da técnica para evitar-se decisionismos e oportunização de espa-ço para arbitrariedades nas argumentações jurídicas. Talvez aí resida o maior entrave à ponderação: o domínio da correta aplicação da técnica. Quiçá, também, por não saber ponderar corretamente, se decida arbitrária, irracional e irrefletidamente, como sustentou Habermas, pois se os cálculos matemáticos de ponderação se evidenciam viáveis ao pensamento alemão de seu criador, talvez exijam conhecimento e disciplina não tão fa-cilmente atingíveis pelos demais operadores do direito.

É que para a ponderação é necessário que se domine diversas áreas do conhecimento, como o próprio conceito de democracia (e a representação argumentativa do julgador), a dimensão dos direitos fundamentais (como princípios, suas extensões horizontais e verticais etc.), a argumentação jurídica (mais especificamente a teoria do discurso), a teoria da decisão (entre outras abordagens com a fenomenológica, atinente à psique e aos comportamentos do intérprete) etc. que não há como serem aqui aprofundadas; exige, ainda, domínio da matemática, vez que a estrutura de cálculos impõe visão lógica perfeita, especialmente para dimensionar todos os fatores que possam influenciar no resultado do cálculo, como, por exemplo: qual peso atribuir ao princípio, como operar quando houver conjunto de princípios ou quando houver interseção10 de ele-mentos nestes conjuntos etc.

Por esta razão, mostra-se um desafio a busca de uma correta ponderação alexyana ao caso em estudo, pelo que, primeiro, é necessário que se explicite em que consiste a pon-deração na visão do filósofo alemão. Para tanto, parte-se de Dworkin que consolidou uma distinção entre princípios e regras, com estas sendo aplicadas tudo ou nada, pelo silogismo, com o enquadramento do fato na abstrata moldura da lei, e aqueles tendo, entre si, uma dimensão de peso.11 Todavia, Dworkin não

10 Um elemento faz parte da interseção de dois ou mais conjuntos se ele pertence a todos esses conjuntos ao mesmo tempo. Assim, quando se está diante de mais de dois princípios em colisão necessário que se analise se há elementos comuns ao conjunto e, havendo, qual a influência e peso desta interseção no cálculo final.

11 “Argumentei que princípios, como os que mencionei, entram em conflito e interagem uns com os

pois, que não seriam imorais os motivos das expressões, por: não perseguir nenhum interesse de natureza econômica; não se encontrar Lüth em uma relação de concorrência com os demais, nem haver “motivos indignos ou egoísticos”, limitando-se a motivação apenas a impedir que Harlan se firmasse como repre-sentante da cinematografia alemã, e pudesse ser interpretado — sobretudo no exterior — como se na vida cultural alemã nada tivesse mudado desde o tempo nacional-socialista, o que não seria imoral.

Claramente se observa nestas fundamentações postas na sentença-Lüth o embrião da teoria dos princípios ou, mais es-pecificamente, da proporcionalidade, com expressões próprias (razão dos grifos supra), como se verá a seguir, e com um con-texto bem assemelhado ao que se construiu depois. Não é à toa, pois, que tal decisão é tão festejada e reconhecida por seu pioneirismo e relevância ao constitucionalismo atual.

A ponderação pela teoria dos princípios de Robert Alexy

A par das críticas à teoria dos princípios, especialmente as de Habermas9, afirmando que a ponderação enfraquece os direitos fundamentais por reduzi-los ao plano de objetivos, sem força normativa, e propiciar decisões sem critérios racionais, ar-bitrárias e irrefletidas, afastando a pressuposição de correção essencial ao direito (ALEXY, 2015, p. 108), a ponderação pode revelar-se como técnica de decisão que atenda às necessidades daqueles casos em que a mera subsunção não se mostra ade-quada, ou quando, com a aplicação da norma ao caso concreto, diversos direitos evidenciam-se igualmente válidos, de forma que a subsunção não tenha condições de definir qual a solução mais acertada.

9 “Princípios e regas não tem estrutura teleológica. Eles não podem ser entendidos como preceitos de otimização — conforme é sugerido pela ponderação de bens — “nas demais doutrinas meto-dológicas — porque isto suprimiria o seu sentido de validade deontológica” (HABERMAS, 2012, p. 258).

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Ainda há a Lei da Ponderação Epistêmica (ALEXY, 2015, p. 150), reguladora da influência dos espaços epistêmicos em-píricos e normativos na ponderação e, segundo a qual, “quanto mais pesada for a intervenção em um direito fundamental, tanto maior terá que ser a certeza das premissas nas quais essa inter-venção se baseia” (ALEXY, 2015, p. 69 e 123). Por isso, devemos analisar, também, o grau de segurança dos elementos avaliados, o que, segundo o TCF, possui três graus de intensidade de con-trole na decisão de codeterminação: controle intensivo quanto ao conteúdo, controle de sustentabilidade e controle de evidên-cia, correspondente aos três graus epistêmicos: certo ou seguro (g), sustentável ou plausível (p) e não evidentemente falso (e), em valores matemáticos: 2º, 2ˉ¹ ou 2ˉ², ou, ainda, 1, ½ e ¼.

Pela lei da ponderação, para o cálculo são necessários três passos: 1) comprovação do grau de prejuízo ao princípio (não cumprimento); 2) comprovação da importância do cumprimento do princípio contrário; e 3) definição quanto a se a importân-cia do cumprimento de um justifica o prejuízo do outro, ou, em outras palavras, fixar o valor do princípio questionado, o do prin-cípio em sentido contrário e calcular o efeito de um em relação ao outro. Segundo Gavião Filho, “um caso de colisão de direitos fundamentais resolvido pela ponderação resulta no estabeleci-mento de uma relação de precedência condicionada conforme as circunstâncias concretas da situação particularmente toma-da” (2011, p. 249).

Ao conteúdo teórico soma-se, então, a estrutura matemáti-ca da fórmula de peso, que possui viés aritmético, geométrico e, neste caso, ainda prevê formulação para o caso de multiplicida-de de princípios envolvidos, consubstanciando-se nas seguintes fórmulas de graus e fatores, segundo Alexy (2015, pp.137-153): Graus: a) materiais: leve (l), médio (m) e alto/severo(s), respecti-vamente, em escala aritmética, aos pesos 1, 2 e 3, e, em escala geométrica, aos pesos 2º, 2¹ ou 2² (1, 2 ou 4); e b) epistêmicos: certo ou seguro (g), sustentável ou plausível (p) e não eviden-temente falso (e), cuja escala é, respectivamente: 2º, 2ˉ¹ ou 2ˉ², ou 1, ½ e ¼. Fatores: a) intensidade de intervenção no princípio “i”, representada por Ii como variável simplificada da expressão

foi além, tarefa executada por Alexy, definindo princípios como mandamentos de otimização, que se cumprem prima facie, ou seja, em medida tão alta quanto possível, limitados faticamente pela reserva do possível e juridicamente por princípios em sen-tido contrário (ALEXY, 2015, p. 123).

Segundo este filósofo, a ponderação racional comporia um postulado maior — o da proporcionalidade — que é composto por três elementos: a idoneidade, a necessidade e a pondera-ção (2015, p. 110). A idoneidade vista como a possibilidade de a medida empregada propiciar a realização de um direito fun-damental protegido constitucionalmente, ou seja, legítimo, e a necessidade se expressando pela escolha do meio menos dano-so ao princípio violado, entre dois ou mais meios possíveis, se todos realizam bem o princípio preponderante. Aqui se objetiva que a medida escolhida realize o princípio pelo menos na mes-ma quantidade, de modo igual ou melhor e com a mesma ou maior probabilidade do que a medida preterida ou, por outro prisma, que seja tão ou mais eficaz, tão ou mais rápida e promo-va tantos ou mais aspectos relevantes (GAVIÃO FILHO, 2011, p. 245). Estes princípios parciais dizem respeito às possibilidades fáticas de realização do direito fundamental.

Sinteticamente, na interpretação de Ávila, no postulado da proporcionalidade, o meio é adequado quando promove mini-mamente o fim; necessário quando não houver meios outros que possam promover igualmente o fim, sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados, e proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais (2005, p. 131).

A Lei da ponderação diz com as possibilidades jurídicas de realização do direito fundamental e preconiza que “quanto maior o grau de não cumprimento ou de restrição de um prin-cípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro” (ALEXY, 2014, p. 7).

outros, de modo que cada princípio relevante para um problema jurídico particular fornece uma razão em favor de uma determinada solução, mas não a estipula. O homem que deve decidir uma questão vê-se, portanto, diante da exigência de avaliar todos esses princípios conflitantes e antagô-nicos que incidem sobre ela e chegar a um veredicto a partir desses princípios, em vez de identificar um dentre eles como válido.” (DWORKIN, 2002, p. 114).

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com os elementos históricos disponíveis, à luz da teoria de Ro-bert Alexy tal qual a concebemos hoje?

Para iniciarmos este enquadramento teórico, é necessário ter presente que a ótica do ponderador é a do julgador da lide, ou seja, uma posição de neutralidade em relação aos detentores dos direitos protegidos pelos princípios e que identifiquemos os principais argumentos, direitos e princípios postos em causa com clareza, para que se possa pontuá-los corretamente. Neste sentido, segundo o TCF, são direitos reconhecíveis no litígio, uma vez limitando-se este à irresignação contra o boicote: a li-berdade de expressão do pensamento e de informação (art. 5, GG)13 e o direito civil à indenização por ato ilícito — no caso ação imoral danosa (parágrafo 826 do BGB).14

É possível vislumbrar na decisão uma referência à proteção da honra, mas tal é citado de forma abstrata sob afirmação de que é “inaceitável que prescrições que protejam a honra ou outros bens jurídicos da personalidade humana não possam limitar o direito fundamental”, sem que, com clareza, expressamente, enfrentasse este argumento como direito fundamental de personalidade a ser ponderado, no caso concreto, em favor de Harlan.

Assim, na decisão original, como vimos, pode-se concluir que, expressamente, somente um direito fundamental foi, de fato, analisado — o da livre expressão do pensamento e in-formação, e esta somente em favor de Lüth, não de Harlan, construindo-se o raciocínio no sentido de uma ponderação de bens jurídicos, mais parecendo que a ponderação se dava entre a regra de direito civil e o direito fundamental, o que, em verda-de, acaba por ser a eficácia horizontal, pelo efeito de irradiação do direito fundamental sobre o direito civil, não se confundindo com ponderação propriamente dita.

13 Artigo 5 [Liberdade de opinião, de arte e ciência] (1) Todos têm o direito de expressar e divulgar livremente o seu pensamento por via oral, por escrito e por imagem, bem como de informar-se, sem impedimentos, em fontes de acesso geral. A liberdade de imprensa e a liberdade de informar através da radiodifusão e do filme ficam garantidas. Não será exercida censura. (2) Estes direitos têm por limites as disposições das leis gerais, os regulamentos legais para a proteção da juventude e o direito da honra pessoal.

14 Parágrafo 826 BGB: Todo aquele que, por ação imoral, causar dano a outrem fica obrigado a uma prestação negativa, sob pena de multa pecuniária.

IPiC, que representa a intensidade de intervenção no princípio conforme as circunstâncias do caso concreto; corresponde a esta variável a antagônica, que seria a intensidade da interven-ção hipotética por não intervenção no princípio contrário, “j” (IPjC ou, simplesmente, Ij); b) peso abstrato do princípio “i”, representada por Gi, como variável simplificada da expressão GPiA, que representa o peso abstrato do princípio; c) preferên-cia em um caso concreto (PiPPj)C, que se justifica pela fórmula peso; d) peso concreto relativo de Pi (GPi,jC); e) importância ou peso concreto não relativo correspondente ao produto de I e G, representado por W e f) grau de segurança das suposições empíricas sobre a realização e a não realização dos princípios colidentes, representada por SPiC ou simplesmente Si. Fórmu-las: a) da diferença (Gi,j = Ii – Ij); b) Cociente (Gi,j = Ii : Ij); c) Fórmula de peso (Gi,j = Ii .Gi : Ij . Gi); d) Fórmula de Peso Com-pleta (Gi,j = Ii . Gi . Si : Ij. Gj . Sj) e e) Fórmula de Peso Ampliada (Gi,j-n = Ii.Gi.Si : [(Ij.Gj.Sj)+(In.Gn.Sn)].12

Ainda, há a Lei da Ponderação Epistêmica (ALEXY, 2015, p. 150), reguladora da influência dos espaços epistêmicos em-píricos e normativos na ponderação e, segundo a qual, “quanto mais grave uma intervenção em um direito fundamental pesa, tanto maior deve ser a certeza das premissas apoiadoras da intervenção”. Por esta, devemos avaliar, também, o grau de se-gurança dos elementos avaliados, o que, segundo o TCF, possui três graus de intensidade de controle na decisão de codeter-minação: controle intensivo quanto ao conteúdo, controle de sustentabilidade e controle de evidência, correspondente aos três graus epistêmicos: certo ou seguro (g), sustentável ou plau-sível (p) e não evidentemente falso (e), em valores matemáticos: 2º, 2ˉ¹ ou 2ˉ², ou, ainda, 1, ½ e ¼.

Feitas todas estas considerações, evolui-se para a questão central deste estudo: é possível uma ponderação do caso Lüth,

12 Aqui é necessária alusão à fórmula de peso completa refinada, ou ampliada refinada, que valoriza o critério grau de segurança das suposições empíricas (S) como sendo o resultado da multiplicação do valor das premissas empíricas e das premissas normativas, ambas com fatores ditados pela escala 2º, 2ˉ¹ ou 2ˉ², ou 1, ½ e ¼ (TRIVISONNO, 2014, pp. 54-56).

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No que tange à dignidade humana (art.1, GG16) e ao direi-to de personalidade (art.2. GGB)17, possível que se manifestem em ambos os lados pelos princípios já existentes (liberdade de expressão e honra, respectivamente). Da mesma forma, o direi-to de expressão artística de Harlan (art.5, 3, da GG), já abarcado pelo direito ao livre exercício da profissão. Por este motivo, uma operação de adição não atenderia ao critério da heterogeneida-de dos princípios, devendo-se afastar, pois, o princípio menos específico.

Ainda, em que pese o direito civil referido em favor dos demais litisconsortes de Harlan, e de uma possível cogitação do princípio da autonomia privada, não se expressam, prima facie, direitos fundamentais protegidos em seu favor que se eviden-ciem em colisão com o direito de liberdade de expressão de Lüth.

Superadas estas considerações, passamos à análise, pro-priamente dita, do postulado da proporcionalidade no caso. Inicialmente, indaga-se se o meio empregado por Lüth era idô-neo, ou seja, apto faticamente, a realizar um fim legítimo, ou seja, não proibido, meio este que, no caso, era a convocação ao boicote. Aqui se poderiam supor diversos fins como possíveis, até mesmo vingança privada em razão das condutas antissemi-tas de Harlan; todavia, como não se tem acesso à prova dos autos, inafastável que a análise se limite aos argumentos postos nas decisões, e, no caso, se vê que tal foi afastado pelo TCF18, restando, pois, reconhecido o argumento de que a finalidade de Lüth era evitar que Harlan fosse reconhaecido como repre-

16 Artigo 1. [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos –Vinculação jurídica dos direitos funda-mentais] (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo. (3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário.

17 Artigo 2 [Direitos de liberdade] (1) Todos têm o direito ao livre desenvolvimento da sua personali-dade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral. (2) [...].

18 “até mesmo o tribunal estadual verificou, em sua decisão nos autos do processo da ação cautelar, que a audiência não revelou nada no sentido de se concluir que o reclamante teria agido em função de ‘motivos indignos ou egoístas’. Isto não foi contestado por nenhuma das partes” (SCHWABE, 2005, p. 394).

Assim, aparentemente, se vislumbra que, pela irradiação, reconhecendo-se a norma de direito civil aberta e permeável, em razão de a expressão legal “imoral” do parágrafo 836 do BGB permitir uma gama de interpretações, reconheceu o TCF como pano de fundo a matéria constitucional para, de fato, rea-nalisar matéria de direito civil, qual seja, a moralidade ou não do ato de Lüth, sendo, todavia, patente que o faz com autori-dade argumentativa, definindo qual o conceito de moral é mais adequado no caso concreto. Nesta análise, acabaram ignorados os argumentos do julgador estadual de que todo filme tem car-ga representativa e de que os fatos utilizados como justificativa para o exercício do direito de opinião já haviam sido avaliados pelas autoridades competentes, pois, em última análise, Lüth negava vigência à decisão do tribunal de desnazificação.

Este sim parece um ponto nevrálgico, que conta nega-tivamente em relação à ponderação, qual seja, o fato de que se a acaba enfatizando os argumentos que são mais caros ao intérprete, por vezes até ignorando aqueles que, em sentido contrário, são mais difíceis de serem afastados. Ressaltar, de forma a, ao menos, sugerir reflexão sobre o assunto é o que se pretende com as considerações a seguir.

Para tal, observamos que, no contexto de direitos fun-damentais da Constituição Alemã, é possível, além daqueles direitos já analisados, associarem-se outros direitos fundamen-tais cuja relevância pode ser determinante na efetivação da ponderação, destacando-se, resumidamente, em favor de Lüth: o princípio constitucional da liberdade de expressão de pensa-mento e informação (art. 5, 1, da GG) e, em favor de Harlan: honra pessoal (art.5, 2, da GG) e liberdade de exercício da pro-fissão (art. 12, 1, da GG)15

15 Artigo 12 [Liberdade de escolha da profissão] (1) Todos os alemães têm o direito de eleger livre-mente a sua profissão, o lugar de trabalho e o de aprendizagem. O exercício da profissão pode ser regulamentado por lei ou em virtude de lei. (2) [...].(3) [...].

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realização dos princípios colidentes pelas medidas que estão em questão” (2015, p. 146).

Importante frisar que Alexy acaba de reformular sua fór-mula de peso para desmembrar a variável S (grau de segurança das suposições empíricas) em empírica e normativa, sendo S o produto destas duas variáveis, tornando-se, talvez, a mais com-plexa variável da fórmula de peso em termos de compreensão de sua dimensão. Preconiza-se, desta forma, que quanto maior a certeza das suposições empíricas e normativas referentes à le-são a um direito fundamental, mais se justifica a atuação da corte constitucional; por outro lado, quanto menor a certeza, mais se justifica deixar a questão a critério do legislador, atribuindo-lhe a discricionariedade para resolver a questão (TRIVISONNO, 2014, pp. 54-56).

Neste contexto, ainda, existindo mais de dois princípios a ponderar, traz Alexy a fórmula de peso ampliada, prevendo que, em havendo a colisão de mais de dois princípios, ao invés de se fazer a ponderação um a um, deve-se fazer todos jun-tos, agrupando-se os princípios colidentes conforme o lado em que se encontram, trocando-se o combate individual pela luta em grupo entre os princípios, através da seguinte fórmula peso completa ampliada: (Gi,j-n = Ii.Gi.Si : [(Ij.Gj.Sj)+(In.Gn.Sn)], onde Gi.j-n é o peso concreto da interferência no princípio i pelos princípios j e n juntos; no caso, o resultado da ponderação entre o grau que se atribua ao princípio da liberdade de expressão do pensamento em face do grau de intervenção nos princípios de proteção à honra pessoal e liberdade de exercício da profissão.

Passando-se, pois, à pontuação alexyana, temos, de um lado, o direito à livre expressão do pensamento de Lüth, direito de primeira grandeza, sendo um dos mais vinculados ao pró-prio exercício da democracia, recebendo, assim, peso abstrato máximo, ou seja, 4. Igualmente, uma eventual interferência no direito de livre exercício à expressão do pensamento, vedando-se, no caso concreto, a manifestação, importaria na completa negação do direito e, portanto, corresponde ao um alto grau de interferência, qual seja, 4. Já no que tange à evidência ou certeza empírica de lesão em caso de restrição, pode-se afirmar

sentante da cinematografia alemã, vez que identificado com a cinematografia nazista.

Neste contexto, é possível reconhecer como idônea à obtenção do fim a medida empregada por Lüth (convocação ao boicote), posto que promove a realização do direito funda-mental da liberdade de expressão e pensamento, em que pese configure uma intervenção nos direitos fundamentais à honra e ao livre exercício da profissão de Harlan.

Apto o meio ao resultado, passa-se à indagação sobre a necessidade da medida. Aqui, analisa-se se, dentre todos os meios possíveis e igualmente aptos, o escolhido foi o que menos interveio no direito contrário e, considerando a situação em que se encontrava Lüth, plausível reconhecer que, prima facie não é vislumbrável outro meio que alcançasse o objetivo almejado de modo igual ou melhor, com a mesma ou maior probabilidade de sucesso ou, por outro prisma, que fosse tão ou mais eficaz ou tão ou mais rapidamente promovesse o fim almejado (SCHWABE, 2005, p. 245). No caso, por mais que se possam conjecturar pos-sibilidades, o fato é que nos registros históricos disponíveis não há qualquer outra medida idônea que se pudesse reconhecer como menos interventora no direito fundamental colidente para que se pudesse afastar a necessidade da medida adotada por Lüth como forma de realizar o objetivo a que se propunha, atra-vés do exercício de seu direito fundamental.

Ainda, veja-se, poderia ter ele lançado mão de outras me-didas menos nobres, mas limitou-se aos argumentos morais de convencimento do público e dos empresários envolvidos, não se utilizando nenhum outro meio menos legítimo de intervenção concreta nas relações.

Superados estes pressupostos de possibilidades fáticas de realização do direito, passa-se ao pressuposto de possibilidade jurídica que se evidencia como a ponderação, terceira etapa da análise da proporcionalidade.

Para tanto, Alexy consagra a fórmula de peso, cuja formata-ção completa contém “ao lado das intensidades de intervenção, os pesos abstratos dos princípios colidentes e os graus de se-gurança das suposições empíricas sobre a realização e a não

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Lüth não se vislumbram como grave intervenção na liberdade de exercício de profissão, mormente porque nenhuma ação con-creta houve que impedisse tal exercício, o que ocorreria se, v.g., a atuação impedisse-lhe de dirigir ou divulgar seu filme. A ação de Lüth não lhe vedou o trabalho, apenas turbou-lhe o exercício, em uma atuação que se pode considerar de intervenção média, pois também não se a pode considerar leve à medida que con-clama parte considerável a boicotar o trabalho e impedir o livre exercício da profissão. Assim, em um grau médio, atribui-se-lhe o valor 2. No que tange à liberdade de exercício da profissão, é possível reconhecer como certa a lesão pela não intervenção, assim como certa também é a proteção jurídica constitucional no caso. Ambos os fatores com variável 2º, ou seja 1, resultado, pois, 1.

Aplicando-se a fórmula da tríade completa, qual seja, Gi(-Gi,j-n = Ii.Gi.Si : [(Ij.Gj.Sj)+(In.Gn.Sn)], no caso teríamos Gi,j-n = 4.4.1/ (1.4.1/2) + (2.2.1), ou seja, Gi,j-n = 16/6, ou 2,67. As-sim, o peso concreto do princípio liberdade de expressão do pensamento de Lüth em função dos princípios honra pessoal e liberdade de exercício da profissão de Harlan é de 2,67, o que significa, por ser um resultado positivo, que há preponderân-cia do direito fundamental de Lüth (i) em relação aos direitos fundamentais de Harlan (j-n) neste caso concreto; há, pois, pre-ferência do princípio liberdade de expressão do pensamento de Lüth em relação aos princípios honra pessoal e liberdade de exercício da profissão de Harlan ou PiPPj-n, nesta situação, vez que a intensidade de intervenção naquele é maior que a impor-tância do cumprimento destes.

Importante ressaltar a figura da norma de direito fun-damental associada, trazida por Alexy na sua obra Teoria dos direitos fundamentais como norma de direito fundamental atri-buída e descrita como sendo aquelas que mesmo não estatuídas imediatamente no texto constitucional, mantém tal relação com as normas constitucionais que se constituem normas de direito fundamental (ALEXY, 2015, p. 69). Mais especificamente falando no que tange ao presente tema, qualifica-se o presente resul-tado de ponderação como uma norma de direito fundamental

ser certa a lesão, assim como também certa normativamente a proteção ao direito, o que confere o valor 1, como resultado da multiplicação 1.1.

De outro lado, analisando-se o direito à honra pessoal como direito fundamental da personalidade e expressão da dig-nidade humana, também se o reconhece como de peso abstrato alto, ou seja, 4. Todavia, na análise do grau de interferência que eventual não intervenção no direito de Lüth causaria ao direito à honra pessoal de Harlan, vislumbra-se uma gradação leve, posto que os fatos relativos à honra pessoal publicizados pelo diretor do Clube de Imprensa de Hamburgo já eram de conhecimento público, pois decorrentes de incontroversa situação de ser ele, em passado recente, representante do cinema nazista e, especialmente, antissemita, não sendo, pois, o ato em comento, grave ou moderadamente atentatório por si, à honra pessoal do cineasta envolvido, pelo que deve ser considerado leve e a si atribuído um grau 1. Avaliando-se o critério segurança empí-rica da lesão ao direito com a não intervenção, já não se pode concluir ser certa faticamente a lesão, senão plausível ou sus-tentável, pois a certeza somente decorreria de uma avaliação posterior dos efeitos de tal conduta, não previsíveis, especial-mente por não ser possível avaliar com clareza se a conduta de Lüth afetaria o conceito que a população já tinha de Harlan por conta de sua história nazista. Assim, conferível uma variável 2ˉ¹, ou seja ½. Já normativamente, é certa a proteção ao direito à honra, pelo que se atribui o valor 2º, ou seja: 1. Concluindo, tem-se a valoração final ½, resultado da multiplicação de ½ por 1.

Por fim, analisando-se o direito fundamental à liberdade de exercício da profissão, temos que, embora direito fundamental, não se reveste da mesma grandeza dos demais analisados, pois, na hierarquia constitucional, está garantido apenas pelo déci-mo segundo artigo do referido texto, ao passo que os demais estão contemplados no artigo quinto, superados apenas pelos direitos à dignidade, liberdade, igualdade, crença e consciência, o que pode sustentar um peso abstrato mediano em termos de direitos fundamentais, ou seja, 2. Ainda, as afirmações de

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Reponderando o caso Lüth: uma abordagem à luz da teoria da ponderação de Robert AlexyAndrea da Silva Uequed

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te de elementos e fundamentos para justificar a análise jurídica pretendida.

A ideia central cingiu-se à hipótese da viabilidade ou não de efetivar-se a ponderação na hipótese de acordo com a fór-mula de peso de Robert Alexy, utilizando-se dos fatos históricos disponíveis como elementos de ponderação e, ao final, verificar-se se o resultado desta, pela teoria alexyana, coincidiria ou não com a decisão do Tribunal Constitucional alemão.

Neste sentido, verificou-se que se aplicando a fórmula de peso ampliada, qual seja, Gi,j-n = Ii.Gi.Si : [(Ij.Gj.Sj)+(In.Gn.Sn)], o peso concreto do princípio liberdade de expressão do pen-samento de Lüth é preponderante em relação aos princípios honra pessoal e liberdade de exercício da profissão de Harlan, somados, ou seja, o peso da intensidade de intervenção naquele é maior que a importância do cumprimento destes, ensejando, pois, a convicção de que sim, é plenamente viável o exercício de ponderação alexyana no caso, utilizando-se critérios racio-nais para obtenção de um resultado justo; resultado este que culminou por convergir com a festejada decisão do caso Lüth, mais ainda, pois, confirmando a adequação do método do fi-lósofo alemão como forma de resolução de colisão de direitos fundamentais.

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associada, vez que, no dizer de Ludwig, é uma regra de solu-ção de caso que une ponderação de princípios colidentes com a formulação de uma regra (LUDWIG, 2015, p. 184). Neste con-texto, tem-se como uma nova norma de direito fundamental, identificada como associada, vez que não expressa no texto constitucional, mas resultado de ponderação, a preponderância do princípio da liberdade de expressão do pensamento em face dos princípios honra pessoal e liberdade do exercício da profis-são em casos identificados ao Lüth-Harlan.

Com este resultado, vê-se identidade entre o resultado da ponderação realizada com base na Teoria dos Princípios de Robert Alexy e aquela resultante da argumentação do Tribunal Constitucional Federal alemão, o que permite concluir a plena viabilidade de aplicação daquela, com a ressalva apresentada por Leivas (2015, p. 114), no sentido de que com a ponderação não se buscam certezas, mas justificações realizadas em um discurso jurídico, cuja pretensão de correção se funda em motivações racionais. Aliás, como afirma Barroso, existem argumentos que podem ser considerados sólidos e corretos e pessoas racionais e capazes de aceitá-los, sendo o constitucionalismo discursivo um projeto de institucionalização da razão e da correção (BAR-ROSO, 2014, p. 97).

Considerações finais

O presente estudo objetivou expor o postulado da propor-cionalidade de Robert Alexy, trazendo um referencial teórico, mas focando-se em uma construção prática que pudesse de-monstrar sua aplicabilidade a questões controversas de colisão de direitos fundamentais.

Para tanto, utilizou-se como pano de fundo o conhecido Caso Lüth, ante o pioneirismo da referida decisão, consagrado-ra do princípio da ponderação, base para a então futura teoria dos princípios de Alexy, e na qual pode-se observar todas as variáveis depois exploradas pelo filósofo germânico como: adequação, necessidade e ponderação, sendo, pois, rica fon-

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Reponderando o caso Lüth: uma abordagem à luz da teoria da ponderação de Robert AlexyAndrea da Silva Uequed

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UM ESTUDO DE CASO DA AÇÃO POPULAR N. 70056129380

CONTRA O MUNICÍPIO DE VIAMÃO: O CONTROLE SOCIAL DA TARIFA DOS

TRANSPORTES PÚBLICOS1

Augusto Carlos de Menezes Beber2

1 O presente artigo é fruto dos debates realizados no bojo do “Projeto Interinstitucional de redes de grupos de pesquisa sobre o tema “Patologias Corruptivas nas relações entre Estado, Adminis-tração Pública e Sociedade: Causas, Consequências e Tratamentos – PARTE II: discutindo formas de enfrentamento do fenômeno”, coordenado pelo Professor Doutor Rogério Gesta Leal, sendo as pesquisas desenvolvidas junto ao Centro Integrado de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas – CIEPPP. Eixo temático: Tutelas à Efetivação de Direitos Transindividuais.

2 Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Integrante dos grupos de pesquisa “Teorias do Direito” e “Patologias Corruptivas”, ambos do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISC. E-mail: [email protected]

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Um estudo de caso da ação popular n. 70056129380 Contra o município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicosAugusto Carlos de Menezes Beber

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Abstract

The present paper aims to discuss the possibility of social control over the taxes of the public transports, having as scope a case’s study of the popular process n. 70056129380 against the city of Viamão. For then, it was rebuilt the concept of social control from a procedimentalist perspective. After that, it was observed some institutes of administrative law that are about the theme of taxes of public tranports. In the end, it was analysed the case of the popular process, when it was concluded that the position of Rio Grande do Sul Appeal’s Court was right, and, observing the concept found of social control, it was also concluded that there is a possibility of social control related to the taxes by using the correct way for that.

Keywords: Public transports. Social control. Taxes.

Resumo

O presente artigo visa discutir a possibilidade de contro-le social da tarifa dos transportes públicos, tendo por escopo um estudo de caso da ação popular n. 70056129380, contra o município de Viamão. Para tanto, reconstruiu-se o conceito de controle social a partir de uma vertente procedimentalista, pas-sando-se à leitura de alguns institutos do direito administrativo que regem o tema das tarifas de transporte público. Ao cabo, analisou-se o caso da referida ação popular, pugnando-se pela aderência à decisão do Tribunal de Justiça e, ao fim, a partir do conceito encontrado, identificou-se positivamente a possibi-lidade de controle social em relação às tarifas, ressalvando-se o instrumento processual adequado para tanto.

Palavras-chave: controle social. Tarifas. Transportes públicos.

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Um estudo de caso da ação popular n. 70056129380 Contra o município de Viamão: o controle social da tarifa dos transportes públicosAugusto Carlos de Menezes Beber

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As dimensões do controle social e seu enfoque jurídico

O conceito de controle social a partir de uma vertente procedimentalista

A despeito de muito se falar sobre controle social, sua te-mática ainda se encontra permeada por uma intensa vagueza, sendo seu conceito rotineiramente confundido com o de partici-pação social ou com o de democracia participativa.

A nível semântico, os dicionários de língua portuguesa for-necem múltiplas definições para o vocábulo controle. Segundo Houaiss, controle significa tanto “monitoração ou fiscalização minuciosa de acordo, padrões, normas, etc.” quanto “poder, domínio ou autoridade sobre alguém ou algo” (2010, p. 197).

Para Ferreira, controle tem por definição “ato, efeito ou poder de controlar; domínio, governo” ou “fiscalização exercida sobre as atividades de pessoas, órgãos, departamentos, ou so-bre produtos, etc., para que tais atividades, ou produtos, não se desviem das normas preestabelecidas” (2010, p. 576).

A nível doutrinário, Pereira (2010) defende que contro-le corresponde à adequação ou ao redirecionamento de certo comportamento ou decisão, sempre relacionado a um critério reformador ou padrão referencial.

Por sua vez, Domingos Poubel de Castro assevera que controle vem do latim rotulum, que significa “relação de con-tribuintes”. Para Castro, historicamente, o vocábulo controle está vinculado à finanças, pois, em sua origem francesa, a pa-lavra contre-rôle significa “registro efetuado em confronto com o documento original, com a finalidade de verificação da fide-dignidade dos dados” (CASTRO, 2008, p. 27). Ainda, conforme sustenta o autor, foi com a transposição do termo controle para a língua portuguesa que este se corrompeu e assumiu também o atual sentido de dominação.

Em 1984, George Orwell demonstrou os riscos do totalitaris-mo através de um universo fictício, em que todos os sujeitos

de um país se sujeitavam ao controle realizado pela figura do Grande Irmão, mentor e estruturador da ordem estatal.

Desde estudos que datam do século XIX, a Sociologia tem se inclinado a chamar esse fenômeno de controle social, pois nele, através de institutos repressivos (como o direito penal), o Estado assumiria o poder de definir como deve ser o agir dos sujeitos, regulando suas ações, omissões e expectativas de vida.

Hodiernamente, e especialmente no meio jurídico, o con-trole social possui uma conotação muito diferente: trata-se, sobretudo, de uma forma de preservar o interesse público atra-vés do exercício de virtudes cívicas.

Com isso, grandes nomes do direito público, com desta-que para o direito administrativo, têm colocado com frequência o controle social ao lado das demais modalidades de controle da Administração, evidenciando assim uma tendência de parti-cipação e inclusão social nas estruturas burocráticas do Estado.

A partir deste cenário, intenta-se com o presente trabalho realizar uma análise crítica da ação popular n. 70056129380, na qual se discutiu a possibilidade de controle sobre o valor da ta-rifa dos transportes públicos no município de Viamão.

Com isso, pretende-se discorrer também sobre o concei-to de controle social, verificando-se a sua incidência ou não no caso concreto sub judice.

Nestes termos, a pesquisa se dividirá em três pontos: no primeiro, trar-se-á uma perspectiva procedimentalista para o conceito de controle social; no segundo, abordar-se-á a dogmá-tica do direito administrativo, especificamente no que tange ao tema das tarifas dos transportes públicos; e, no terceiro, far-se-á uma análise do referido julgado, buscando-se trabalhar as cate-gorias estudadas à luz do caso prático.

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Assevera-se, contudo, que os sentidos do controle social também assumem uma dimensão diferenciada quando este é considerado a partir de uma perspectiva jurídica.

Neste sentido, Carlos Ayres Britto (1992), então Ministro do Supremo Tribunal Federal, afirma que controle social é direito público subjetivo, e não poder, pois quando um cidadão exerce o direito ao controle social, está, na realidade, interferindo nos negócios políticos através da interpretação da Constituição.

Notadamente, o primeiro pensamento que surge em re-lação à função do controle social enquanto direito é o dever de o Estado acatar a conduta do particular. Porém, lembra-se que esta é uma conduta pré-estabelecida, pois é pressuposto do controle a existência anterior de uma norma pactuada e com-partilhada socialmente: “Em realidade, a regra condutora do direito subjetivo ao controle preexiste à manifestação da vonta-de individual e não aporta consigo uma autorização para o seu titular agir enquanto editor normativo.” (BRITTO, 1992, p. 4).

Por isso, Britto (1992) afirma que aquele que aciona as vias de controle do Poder Público não produz nova regra de direito, ou seja, não participa do processo de elaboração jurídica. Nisto reside a diferença primordial entre controle e participação: nes-ta, existe manifestação do poder político – notadamente, nos limites da abertura constitucional – e, naquele, há aplicação de norma constitucional preexistente.

Dessa maneira, o controle social enquanto processo não se configura em um momento estanque, mas necessita de di-versos atos engatados comunicativamente. A partir disso, a participação social integra o processo de controle, do mesmo modo como a democracia deliberativa revela o melhor cenário para o seu exercício.

Robert Alexy (2013), em sua teoria argumentativa, clas-sifica o discurso jurídico como um caso especial do discurso prático. Como consequência, o autor defende que o discurso jurídico sofre declinação a outras regras, além das impostas pela racionalidade comunicativa, pelo fato de estar necessariamente vinculado ao direito vigente.

A palavra social, adjetivo do substantivo controle, vem do latim sociale, e significa aquilo que pertence ou é relativo à sociedade. Logo, somado ao exposto, o controle social pode ser entendido semanticamente como “processo pelo qual uma sociedade ou grupo procura assegurar a obediência de seus membros por meio dos padrões de comportamento existen-tes.” (MICHAELIS, 2000, p. 578)

A produção dos sentidos do controle social, contudo, ultrapassa também a semântica e encontra respaldo na Sociolo-gia, a qual tem o controle por objeto de estudo desde o final do século XIX. De forma geral, o viés sociológico analisa os meios aplicados pela sociedade a determinado sujeito para fazer com que este adote um comportamento alinhado com valores sociais pré-estabelecidos. (SABADELL, 2013, p. 127).

Para Sabadell, quando uma professora ministra uma aula, quando celebridades na televisão se posicionam ou mesmo quando pais educam seus filhos, todos estão, de certo modo, exercendo uma espécie de controle social (SABADELL, 2013, p. 127).

Logo, para a socióloga, o controle social está imbricado com os processos que inserem o indivíduo dentro de valores e práticas sociais. Por esta razão, o “controle social está intima-mente relacionado com os conceitos de ‘poder’ e de ‘dominação política’, que criam determinada ordem social e integram os in-divíduos nela.” (SABADELL, 2013, p. 128, grifos no original).

Portanto, através de um juízo sumário, pode-se conceber o conceito de controle social como uma orientação coercitiva a uma direção pré-estabelecida, marcada por aspectos de norma-tividade e de executoriedade.

Assim, afere-se que, tanto semântica, sociológica ou dou-trinariamente, se defende que o controle é exercido com base em acordos – leia-se normas – estabelecidos socialmente, e posto em prática através de meios como reprimendas, calotes, exclusão, pressão pública ou pela simples expressão de ideias.

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possa assim exercer o poder social de maneira desembaraçada e genuinamente democrática. “Se o direito deve ser norma-tivamente fonte de legitimação e não simples meio fático da organização do poder, então o poder administrativo tem que ser retroligado ao poder produzido comunicativamente.” (HA-BERMAS, 2003, p. 235).

A partir disso, pode-se verificar que poder social e poder administrativo não se confundem, refletindo assim a dependên-cia do controle social em relação aos processos institucionais que permitem o seu exercício. Se poder social e poder adminis-trativo se confundissem, não haveria necessidade de um agente estatal processar e executar os casos de desvio das normas, pois qualquer membro da comunidade faria esse papel independen-temente da ação dos demais.

Ainda que parcela da população acredite que algum agente político rompeu com as normas constitucionais às quais ele deve obediência, a retirada de seu cargo somente ocorre através de um processo regularmente formado, pautado pelas regras que os próprios membros da comunidade pactuaram anteriormente.

O direito forma o meio pelo qual o poder comunicativo é filtrado e transformado em poder administrativo, do qual o Estado faz uso para manter a ordem instituída normativamente. Assim, identifica-se um ciclo jurídico-político autofágico: enquan-to o poder dá suporte ao direito, o direito, por sua vez, garante o exercício do poder. E, neste sentido, “o direito funciona como meio de organização do poder do Estado. Inversamente, o po-der, na medida em que reforça as decisões judiciais, serve para a constituição de um código jurídico binário.” (HABERMAS, 2003, p. 182).

À guisa desse entendimento, retoma-se a ideia de que o controle social não é um fenômeno que ocorre somente à luz do direito, mas que nele adquire um sentido latente de manu-tenção e promoção da integridade social. Consequentemente, o controle social dos atos estatais, no medium jurídico, torna-se assim um instituto regrado pelo direito em prol da atuação da sociedade sobre ela mesma.

Em decorrência disso, o discurso jurídico deve estar ne-cessariamente pautado por argumentos referentes à lei, à dogmática e aos precedentes do direito positivo. Logo, o cam-po do discursivamente possível é mais restrito, tendo em vista as formas e as regras das quais os falantes devem partir para construir um argumento jurídico (ALEXY, 2013).

Nisto, ao analisar o controle social na dimensão do discur-so prático, os agentes têm o dever de observar tão somente as regras da racionalidade discursiva. Por outro lado, ao acionar o controle social na dimensão do discurso jurídico, aos agentes cabe relacionar seus argumentos aos condicionantes que o pró-prio direito enquanto instituição determina.

Os sujeitos do controle social a partir da separação entre Estado e Sociedade

De acordo com a linha de pensamento exposta, falar em discurso jurídico implica discorrer sobre o local em que este é produzido: o Estado. Nisto, para Habermas,

o Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, porque os direitos têm que ser im-plantados, porque a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e porque a formação da vontade política cria programas que têm que ser implementados. (2003, p. 171)

O princípio da separação entre Estado e sociedade tam-bém serve para ilustrar o fato de que os atores do controle social dos atos estatais só podem ser agentes não-estatais, membros da sociedade civil. Na dicção de Siraque, “o controle social é realizado por um particular, por pessoa estranha ao Estado, in-dividualmente, em grupo de pessoas ou através de entidades juridicamente constituídas” (2004, p. 112).

Neste diapasão, Habermas (2003) assevera que o princí-pio da separação entre Estado e sociedade exige uma cultura política desacoplada das estruturas de classe, de forma que se possam amortecer as divisões sociais que existem e seus efei-tos redutores da livre comunicação entre os pares, para que se

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As tarifas de transporte a partir da dogmática contemporânea do direito

administrativo

Breves notas sobre o modelo de Estado Regulador

Exposto o conceito de controle social com o qual se traba-lhará, mostra-se necessário elucidar o pano de fundo que rege a temática da decisão a ser analisada. Assim, para o correto des-linde da presente pesquisa, é mister que se aborde, ainda que brevemente, o cenário jurídico perpassado pela decisão, a sa-ber, o modelo estatal regulatório.

Inicialmente, destaca-se que o referido modelo exsurge como uma contrapartida ao Welfare State, no qual se encontra uma orientação positiva da função estatal, marcada pelo ativis-mo socioeconômico dos organismos políticos (JUSTEN FILHO, 2002).

O modelo regulatório, como a própria nomenclatura in-dica, encerra em si o propósito de distribuição das tarefas públicas essenciais, as quais, no modelo do Welfare State, o Po-der Público não teve condições de efetivar sozinho. Assim, aos particulares, sob a regulação do Estado, coube a prestação de atividades antes de trato exclusivamente estatal.

Desse modo, mormente não haja uma substituição do modelo prestacional do Estado em favor do modelo regulador, hodiernamente se aceita o papel do particular no provimento dos serviços públicos, devendo o Estado fiscalizar sua presta-ção, mantendo sob atuação direta apenas as atividades em que a organização econômica representar um risco para a coletivi-dade em razão da lógica de mercado aplicada (JUSTEN FILHO, 2002).

Logo, a regulação estatal das atividades desempenhadas pelos particulares, a título de serviço público, submete-se aos fins e aos meios de execução determinados ou determináveis

Diante disso, admite-se que nem sempre é fácil reconhecer a diferença entre participação e controle social. Uma manifesta-ção contra a corrupção pode ser entendida como controle na medida em que exige o cumprimento dos princípios do artigo 37 da Constituição, que obrigatoriamente devem ser observa-dos pela Administração Pública.

Entretanto, normalmente os protestos têm uma roupa-gem muito difusa, e raramente visam produzir efeitos em um ato concreto. Assim, as manifestações, ao tempo em que não visam produzir norma nova – portanto, não se caracterizando como participação – na qualidade de controle, não conseguem estabelecer espaços comunicativos sólidos que proporcionem ao Poder Público contra-arrazoar ou até mudar sua posição.

Para resolver este problema, o medium do direito cria canais institucionalizados de exercício do controle social que permitem a formação discursiva de consensos. Através desses canais, a pretensão corretiva associa-se à pretensão de retidão, fazendo valer os pactos firmados: “A institucionalização jurídica do código de direito exige, finalmente, a garantia dos caminhos jurídicos, pelos quais a pessoa que se sentir prejudicada em seus direitos possa valer suas pretensões.” (HABERMAS, 2003, p. 162).

Por exemplo, no ordenamento jurídico brasileiro encon-tram-se diversos meios de controle social institucionalizados em relação às ações do Estado, como são a Ação Popular, a Ação Civil Pública, as denúncias aos Tribunais de Contas, en-tre tantos outros instrumentos espalhados pela legislação infraconstitucional.

Logo, o controle social (como processo) tem seus contor-nos jurídicos realizados pelo direito positivo ao qual se vincula. Este, por sua vez, irá determinar quando, em que termos, e por quem o controle social poderá ser exercido.

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a promoção de audiências públicas para o debate sobre as con-dições de uso e sobre o dispêndio financeiro relativo aos meios de locomoção.

Assim, o tema das tarifas dos transportes públicos deve ser pensado à luz do modelo regulador de Estado, tendo em vista que as atividades prestadas pelos particulares enquanto serviço público submetem-se a especial fiscalização.

Deste modo, firmados os pontos estruturais, mostra-se necessário entender como o valor das tarifas de transporte é fixado, vez que, quando este é prestado na qualidade de serviço público, a sua variação no mercado deve obedecer necessaria-mente às normas de direito público, como se verá a seguir.

O processo de contratação e as normas relativas às tarifas nas concessões de serviços públicos de transporte

Sabidamente, a Administração Pública, ao contratar, deve buscar o melhor atendimento ao interesse público, observados os princípios constitucionais do artigo 37, somados aos princí-pios setoriais do direito administrativo.

Com isso, o processo (ou procedimento) licitatório exsurge como uma etapa necessária para a contratação menos onerosa ao erário, razão pela qual suas modalidades e tipos são delinea-dos na Lei Federal 8.666/93 e nas leis administrativas paralelas a esta.

Uma vez finalizado o certame e definido o vencedor, ho-mologa-se o feito e opera-se a contratação com o particular, conforme minuta contratual fornecida pela Administração, a qual deve ser aderida pelo contratado.

Na minuta contratual, devem estar dispostas as cláusulas que irão reger a relação jurídica entre as partes, dentre as quais se menciona o valor cobrado pelos serviços prestados, bem como as formas de reajuste tarifário para manutenção do equilí-brio econômico-financeiro contratual, conforme dispõe o artigo 23, VI, da Lei 8987/95. Nesse sentido, Granziera afirma que

pelo ente público, consistindo em uma espécie de supressão da autonomia privada (JUSTEN FILHO, 2002).

Neste cenário encontram-se as agências reguladoras, marco de um novo perfil de atuação do Estado nas atividades econômicas. Conforme Menezello,

muda-se, com isso, a maneira de agir do Estado brasilei-ro na condução de algumas atividades para anunciar uma nova ordem, em que este se abstém de prestar serviços pú-blicos, reforçando, como dissemos, sua atuação na esfera da regulação e da fiscalização, a fim de desenvolver maior razão e eficácia. (2002, p. 58)

Por consequência, são atribuídas às agências reguladoras as funções de fiscalizar o cumprimento da legislação por parte do prestador da atividade regulada, a fim de que os interesses da sociedade como um todo sejam preservados (MENEZELLO, 2002). Na lição de Justen Filho,

cabe ao Estado fiscalizar a atividade do particular, se a ele tiver sido atribuído o encargo de prestar serviço público. Isso significa impossibilidade de o particular invocar sigilo de negócio ou interesse privado como argumento jurídico, manter indevassados seus livros, documentos ou condições negociais. O particular que presta serviço público encontra--se em situação de transparência perante a entidade conce-dente. (2002, p. 321)

Assim, no modelo de Estado regulador, esvazia-se o mo-nopólio da prestação direta dos serviços públicos por parte do Estado, entretanto, sem este deixar de exercer o seu papel de mantenedor e fiscalizador das atividades essenciais ao interesse público.

Para o tema dos transportes públicos, tal contextualização mostra-se deveras necessária, eis que tal segmento refere-se a serviço público prestado por particulares sob a supervisão do Estado.

Nesse sentido, salienta-se que no Rio Grande do Sul cabe à Agergs – Agência Estadual de Regulação dos Serviços Pú-blicos Delegados– a fiscalização de atividades de transporte público, tendo como uma de suas competências institucionais

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integram os custos para a prestação dos serviços. A título de exemplo, pode-se mencionar a minuta contratual das conces-sões de transporte público do município de Pelotas/ RS, na qual consta o seguinte termo:

2. O reajuste anual da TARIFA BASE e das tarifas diferencia-das dela decorrentes será realizado mediante a aplicação da seguinte fórmula: TR = TP * (1 + ((( PRDi / PRDo )* P1) + ( VINPC * P2 ) + ( VIGP-DI * P3 ))) (BRASIL, 2016)

Como se pode verificar, as incógnitas da equação incluem os custos com combustível, lubrificantes, pessoal, além da varia-ção inflacionária dos preços.

Logo, o fundamento para o controle das tarifas não é o valor em si, mas a legalidade da aplicação da cláusula contra-tual que estipula a forma de cálculo tarifário. Assim, em termos práticos, o controle incide sobre a tarifa apenas de forma trans-versa, na medida em que é o próprio contrato que deve ser questionado juridicamente.

O caso da ação popular n. 70056129380

Breve relato do ocorrido

Em conformidade com as ideias até então desenvolvidas, a premissa básica para a existência de controle social sobre a tarifa dos transportes públicos é a possibilidade de haver meca-nismos institucionais que incidam sobre o preço fixado.

Conforme discorrido, o atual modelo de gestão do Estado brasileiro delegou aos particulares, mediante concessão ou per-missão, a prestação da atividade de transporte, com a ressalva de que os contratos devem ser celebrados sob o regime da lei de licitações, estando sujeitos, quando for o caso, ao controle por parte das agências reguladoras.

Nesta senda, encontra-se o caso da ação popular n. 70056129380. Os autores do pleito buscaram judicialmente a re-

a cláusula de reajuste deve indicar o índice ou a fórmula mais adequada para manter o valor de execução do objeto do contrato. Se se trata da prestação de serviços de lim-peza, por exemplo, um percentual importante de seu valor deve ser reajustado de acordo com o dissídio coletivo anu-al. Já os materiais utilizados nos serviços podem ser reajus-tados por índices mais genéricos, como o Índice Geral de Preços (IGP). (2002, p. 165, grifos no original)

Naturalmente, no universo econômico das sociedades empresárias encontram-se diversos fatores que influenciam na definição do preço dos serviços. Encargos trabalhistas, varia-ções de câmbio e modificação no custo dos insumos são apenas alguns exemplos de variáveis que podem ter impacto direto nas despesas da atividade.

Por certo que, diferentemente do que opera em relações puramente privadas, em razão do caráter público da contrata-ção, não é uma simples mudança nos ventos empresariais que irá ensejar a possibilidade de alteração do contrato. A Lei 8.666/93, no artigo 65, §1º, obriga o suporte pela contratada de variações que podem ir de 25 a 50% em relação ao valor inicial pactuado.

Acrescenta-se ainda que os encargos de natureza tri-butária, via de regra, são inclusos ao preço, portanto, sendo repassados aos consumidor na prestação dos serviços. Nesse sentido, em decisão proferida no Recurso Especial nº 1185070/RS, o Min. Teori Zavascki, à época membro da referida Corte Especial, discorreu que

dada a natureza onerosa e sinalagmática da prestação dos serviços concedidos, é inafastável que a contraprestação a cargo do consumidor (tarifa) seja suficiente para retribuir, pelo menos, os custos suportados pelo prestador, razão pela qual é também inafastável que, na fixação do seu valor, sejam considerados, em regra, os encargos de natureza tri-butária. É também decorrência natural do caráter oneroso e sinalagmático do contrato de concessão a manutenção, durante toda a sua vigência, da equação econômico-finan-ceira original. (BRASIL 2010).

Por isso, as concessões públicas contém em seus res-pectivos contratos fórmulas que equacionam as variáveis que

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ter, necessariamente, uma vinculação à lesão ao erário, objeto de proteção da Lei.

Logo, correto o posicionamento do Tribunal de Justiça, eis que seria ônus dos autores demonstrarem (no mínimo) o caráter patrocinado da concessão – ou seja, o caráter de uma concessão em que há subsídio do Poder Público ao lado dos particulares para justificar a ação.

Em recente julgado, a Justiça Estadual de Mato Grosso proferiu a seguinte sentença nos autos de ação popular, tam-bém sobre o tema da tarifa dos transportes públicos:

Contudo, o autor popular deduziu a pretensão de anular atos administrativos que estariam a causar lesão ao patri-mônio e aos interesses particulares, ou seja, da população usuária do serviço de transporte coletivo municipal. O ato que se pretende a nulidade, qual seja, a Deliberação n.º 03/2016-ARSEC não encerra ato lesivo ao patrimônio pú-blico, mas sim, dos particulares que pagam o aumento da tarifa de transporte sem que haja a necessária melhoria do referido serviço. (BRASIL, 2016).

Sustentam ambos os tribunais que a eficácia da ação po-pular é desconstitutiva e condenatória, não sendo instrumento hábil para constituir obrigações ao Poder Público, como, por exemplo, a de construir rodovias.

Ademais, a tutela buscada pelos autores do pleito em aná-lise é a proteção do interesse difuso dos consumidores, usuários de transporte, e não a proteção ao erário, razão pela qual o instrumento eleito mostra-se inadequado.

Repita-se, o lesionado pela situação narrada na inicial é o consumidor, a população usuária do transporte urbano co-letivo, que paga caro e vem se sujeitando, há muito tempo, a um serviço de péssima qualidade, insuficiente e que não oferece condições de segurança e comodidade (BRASIL, 2016).

Outrossim, houve o impedimento do reajuste das tarifas de transporte público, circunstância ocorrida através do ajuiza-

dução das tarifas de transporte urbano do município de Viamão, face à redução dos encargos tributários que incidiriam sobre o valor do serviço. Além disso, os autores populares alegaram como vício a ausência de prévio procedimento licitatório.

Pela análise do caso, o juízo de primeiro grau extinguiu sumariamente o feito em razão da impossibilidade jurídica do pedido, tomando por fundamento o fato de que a ação popular não seria meio adequado para atender pretensão dos autores, diante da ausência do prejuízo ao erário.

Entendeu o juízo singular que, ainda que tenha havido uma redução do PIS e PASEP, assim como da COFINS, não in-corre em ilegalidade a omissão da Administração municipal em rever o contrato para reduzir o valor da tarifa dos transportes. No mesmo sentido, negou a pretensão relativa à ausência de licitação, pois não havia nos autos comprovação de efetivo dano ao erário.

Insatisfeitos, os autores apelaram ao Tribunal de Justiça, de cujos fundamentos passa-se à análise a seguir.

Da análise crítica do caso

Em concordância com o juízo singular, o Tribunal por una-nimidade confirmou as razões da sentença, mantendo-a nos termos em que extinguiu o feito sem julgamento de mérito.

Nisto, o principal argumento a ser enfrentado, o qual justificou o decisum, é a inadequação do instrumento da ação popular para a redução das tarifas de transportes, pois estas, em tese, são custeadas por consumidores, e não pelo erário.

Normativamente, pode-se verificar que a ação popular tem como viés a proteção do patrimônio público, compreendido como os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, conforme dicção do parágrafo §1º, do ar-tigo 1º da Lei 4.717/65.

Assim, tomando-se por base a premissa legal, a arguição relativa à possibilidade do cabimento do pleito popular deve

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Por outro lado, acrescenta-se que o enfoque demasiado na perda patrimonial dos cofres públicos não deve ser o funda-mento maior do decisum, principalmente quando enfrentada a questão da não ocorrência do certame licitatório. Assim se ma-nifestou o relator, em relação ao tema: “Mesmo a alegação de violação do princípio da licitação para a delegação do serviço a particular, não pode ser examinada pela via da ação popular em razão da ausência de alegação de prejuízo do erário” (BRASIL, 2016).

Veja-se que, conforme o raciocínio exposto, a ausência de alegação de prejuízo ao erário seria o óbice para o não en-frentamento da questão da licitação nos autos da ação popular ajuizada.

Entretanto, este enfoque não tem sido aplicado pela dou-trina moderna. Eis que, com o advento da Constituição Federal de 1988, ampliou-se o âmbito de proteção da ação popular, abarcando não somente o erário, mas a moralidade administra-tiva, o meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural. Nesse sentido posiciona-se Rodolfo de Camargo Mancuso:

Presente a ampliação do objeto da ação popular, a partir do novo conceito inserto no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal, impende destacar um aspecto muito importante: se a causa da ação popular for um ato que o autor reputa ofensivo à moralidade administrativa, sem outra conotação de palpável lesão ao erário, cremos que em princípio a ação poderá vir a ser acolhida, em restando provada tal preten-são, porque a atual CF erigiu a “moralidade administrativa” em fundamento autônomo para a ação popular. (2001, p. 100, grifos no original)

Por conseguinte, não diga o Tribunal que a ausência ou a não alegação de prejuízo ao erário seja fundamento para afastar a análise do pleito popular, pois a tutela do referido instrumen-to jurídico não se restringe ao patrimônio público em sentido econômico-financeiro.

Nesse diapasão, o Superior Tribunal de Justiça, na análise do Recurso Especial nº 1559292/ES, conforme acórdão lavrado pelo Min. Relator Herman Benjamin, exarou a seguinte decisão:

mento de ação civil pública pelo órgão de defesa do consumidor do Estado de Goiás.3

Logo, a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul mostra-se alinhada com o entendimento das de-mais cortes de justiça do país, vez que confirmou a sentença que extinguiu o feito sem resolução de mérito. Veja-se o que levan-tou o Des. Marco Aurélio Heinz, relator do acórdão gaúcho:

Os autores não apontam qual a lesividade aos cofres pú-blicos da não redução da tarifa que é suportada, não pelo erário, mas pelo passageiros do serviço concedido. De fato, a ação popular visa a proteção dos direitos difusos dos usu-ários do transporte coletivo, cujo bem jurídico não é alcan-çado pela ação popular (BRASIL, 2016).

Por conseguinte, entende-se que, para os autores lo-grarem sucesso em sua pretensão, os mesmos teriam que ter demonstrado o prejuízo ao erário (para legitimar o instrumento da ação popular).

De outra banda, na hipótese de ser viável a ação civil pública (instrumento correto para defesa do interesse dos con-sumidores), deveria ter sido demonstrada a ilicitude da tarifa dos transportes públicos, pois a mesma, conforme discorrido, é construída através de uma minuta contratual já pactuada no momento da licitação.

O Des. Francisco José Moesch, na mesma linha do relator, assim asseverou: “No caso, não restou demonstrada a lesividade ao patrimônio público. A ação popular foi proposta objetivando a redução da tarifa do transporte coletivo, o que viria em bene-fício, exclusivamente, dos usuários do serviço.”

Desse modo, concorda-se com a decisão proferida pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no sentido de que, na forma proposta, a ação popular não corresponde aos pleito intentado pelos autores.

3 Para mais informações sobre o caso, ver acórdão nº 201593928220, julgado pela 5ª Câmara Cível do TJGO em 10/03/2016, relator Des. Delitro Belo de Almeida Filho, disponível no Diário da Jus-tiça em 18/03/2016. Disponível em: http://www.tjgo.jus.br/jurisprudencia/showacord.php?nmfile=TJ_3928228420158090000%20_2016031020160407_75654.PDF.

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Não. Conforme visto, o valor das tarifas é calculado me-diante uma fórmula que está presente nos contratos públicos. Ademais, no contexto do Estado Regulador, havendo agências que versem sobre os temas, as mesmas estarão aptas a fiscalizar as condições de oferta do serviço.

Prosseguindo: na ausência de fiscalização, o ordenamento jurídico brasileiro prevê a incidência de mecanismos instrumen-tais de defesa dos usuários contra o aumento injustificado das tarifas, dentre os quais podem ser acionados por membros da sociedade civil?

Sim. Há canais institucionalizados que permitem a discus-são da legitimidade do valor das tarifas, tendo como parâmetro as dimensões contratuais pactuadas e os demais fatores legais incidentes.

Entretanto, conforme exposto ao longo do trabalho, a via da ação popular somente pode ser acionada quando há lesão ao erário ou a matéria a este relacionada diretamente, situação em que somente incorrem as concessões em que há dispêndio do patrimônio público ao lado do particular (por exemplo, as concessões patrocinadas).

Logo, a forma mais comum de discussão do valor das tari-fas de transporte público tem sido através da ação civil pública, a qual, embora admita como legitimada “popular” a associação constituída há pelo menos 1 ano, tem, na prática, sido manejada pelo Ministério Público em defesa dos consumidores.

Diante do exposto, pode-se concluir que é possível haver o controle social das tarifas dos transportes públicos, mas que, no direito brasileiro, conforme decidiu o Tribunal de Justiça, a ação popular em regra não é o instrumento hábil para tanto.

Sobre a necessidade de comprovação de dano em Ação Popular, é possível aferir que a lesividade ao patrimônio pú-blico é in re ipsa. Sendo cabível para a proteção da morali-dade administrativa, ainda que inexistente o dano material ao patrimônio público, a Lei 4.717/65 estabelece casos de presunção de lesividade, bastando a prova da prática do ato nas hipóteses descritas para considerá-lo nulo de pleno direito. (BRASIL, 2016)

Sendo assim, embora a ação popular não tenha sido o instrumento jurídico adequado para a revisão das tarifas de transporte público no caso em apreço, de acordo com as razões já expostas, a ausência de licitação, procedimento que tem como fim cabal o melhor atendimento ao interesse público, é mácula que deve ser imperativamente analisada, independentemente de lesão patrimonial do erário, em razão dos fundamentos da tutela administrativa.

Considerações finais

Ao fim e ao cabo, desenvolvidas as considerações acerca do tema ao longo do presente trabalho, pode-se então tecer algumas notas provisórias sobre a proposta realizada.

Primeiramente, sendo o controle social, através de uma vertente procedimentalista, um processo pelo qual se assegura o cumprimento dos padrões normativos instituídos socialmente, a primeira pergunta que se sobressai é: existe um padrão nor-mativo que justifique a sua exigibilidade pelo medium do direito em relação ao tema das tarifas dos transportes públicos?

A resposta é positiva. O ordenamento jurídico brasileiro protege os usuários de transporte coletivo, elegendo, desde o processo de contratação pública, as melhores condições para prestação do serviço.

A segunda pergunta é: a exigibilidade sobre a qual recai o controle depende de caracteres unicamente econômicos? Ou seja: o alto custo das tarifas dos transportes por si só justifica algo em direito?

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VINCULAÇÕES DAS RECEITAS DOS ESTADOS: RISCOS À EFETIVIDADE DO

FUNDO DE COMBATE À POBREZA1

Luís Antonio Zanotta Calçada2 Anizio Pires Gavião Filho3

1 Eixo Temático: Tutelas à efetivação de direitos transindividuais2 Mestrando em Direito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sencu da Faculdade de Direito da

Fundação Escola Superior do Ministério Público-FMP, Pós-Graduado em Direito Administrativo, Pós--Graduado em Gestão Pública, Auditor-Fiscal da Receita Estadual. E-mail: [email protected].

3 Doutor em Direito – UFRGS. Professor de Teoria da Argumentação Jurídica e Hermenêutica Jurídica da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP. Procurador de Justiça, RS. E-mail: [email protected].

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Vinculações das receitas dos estados: riscos à efetividade do fundo de combate à pobrezaLuís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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Abstract/Resumen/Résumé

This article aims to examine direct consequences of the use of incomes collected for the States Fund for Eradication of Poverty as several items to which the tax revenues are linked, such as the Fund for the Maintenance and Development of Basic Education and Educational Professionals Valorization - FUNDEB. The importance of the subject is in the own purpose of the funds creation, which is, promoting best social conditions of citizens, reducing social inequality in nutrition, housing, education, health, security, family income and other of relevant social interests programs to improve life quality. Possible consequences could directly strikes the execution of funds goals, reaching the impact of reducing social inequality policies.

Keywords/Palabras-claves/Mots-clés: Education. Fund for Eradication of Poverty. Fund for the Maintenance and Development of Basic Education and Educational Professionals Valorization. Health. Poverty.

Resumo

Esta investigação busca analisar as consequências diretas da utilização dos valores arrecadados e destinados aos Fundos de Combate à Pobreza Estaduais a diversos itens aos quais as receitas de arrecadação de impostos estão vinculadas. A impor-tância do assunto está na própria finalidade para a instituição dos fundos, notadamente, fomentar o acréscimo das condições sociais dos cidadãos, diminuindo a desigualdade social, nas áreas de nutrição, de habitação, de educação, de saúde, de se-gurança, de reforço de renda familiar e outros programas de relevante interesse social, voltados para melhoria da qualidade de vida. Eventuais consequências poderão atingir diretamente as atividades de execução dos fins para quais os fundos foram instituídos, minimizando os impactos das políticas de diminuição da desigualdade social.

Palavras-chave: Educação. Fundo de Combate à Pobreza. Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação. Pobreza. Saúde.

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Vinculações das receitas dos estados: riscos à efetividade do fundo de combate à pobrezaLuís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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cional. Essas questões referem-se à vinculação da arrecadação de determinados percentuais para o pagamento da dívida dos Estados com a União, repasse de valores, para o FUNDEB, do Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PA-SEP) e do mínimo a ser aplicado em educação e saúde. O que segue tem a pretensão de examinar esses pontos, desde a ini-ciativa legislativa de instituição dos fundos, sob o prisma das suas características, seus objetivos, da aplicação nos casos obje-to do estudo, com avaliação teórica e jurisprudencial. O estudo observa a metodologia de pesquisa bibliográfica comparativa.

Os fundos de combate à pobreza

A história e as razões da criação dos Fundos de Combate à Pobreza no cenário do ordenamento jurídico brasileiro reme-tem à Proposta de Emenda Constitucional 67/1999 do então Senador da República Antônio Carlos Magalhães. Na opor-tunidadade, as razões de justificação da inovação legislativa constitucional diziam com a urgente necessidade de se reduzir a desigualdade na distribuição de renda na sociedade brasileira, fenômeno indicado como determiante para os problemas so-ciais centrais no Estado. A pobreza e miséria, presentes no dia a dia da sociedade, seriam oriundas da tamanha desigualdade de renda existente. Afirmou-se, na época, que “os indicadores sociais brasileiros nos colocam abaixo de países de níveis de renda bem inferiores aos nossos”, pecando o Estado em “redu-zir o enorme fosso social construído ao longo de nossa história econômica” (Diário do Senado Federal, 1999, p. 1996).

Nesse sentido, então, a Proposta de Emenda Constitu-cional se apresentou lastreada na necessidade de que fossem cobrados valores da sociedade brasileira (tributos) para a im-plementação das mínimas condições de vida digna das classes menos favorecidas, de tal modo a se reduzir o grau de desi-gualdades. Essa proposta, na tramitação no Senado Federal, nos dois turnos, foi aprovada com mais de 85% dos votos dos Senadores presentes às sessões. Ao ensejo de sua tramitação na

A população brasileira convive diuturnamente com uma situa-ção de completa desigualdade social. Não há controvérsia

quanto ao fato de que um número expressivo da população bra-sileira vive ou tenta sobrevevir em condições sociais bastante desfavoráveis, sem saneamento, alimentação, saúde e educação mininamente aceitáveis.

Exatamente em atenção a esse contexto social, a Constitui-ção Federal de 1988, no seu catálogo de direitos fundamentais, arrolou um conjunto de direitos fundamentais sociais, buscando garantir condições mínimas de vida digna aos brasileiros. Não obstante essa fixação normativa constitucional, o Estado brasilei-ro não conseguiu concretizar minimamente melhores condições de vida social às camadas menos favorecidas da sociedade. Na perspectiva de reduzir esse descompasso, sobreveio nova normalização constitucional. Nesse sentido, a Emenda Consti-tucional n.º 31, de 14 de dezembro de 2000 (EC nº 31/2000), inseriu a disposição do art. 82 na Constituição Federal de 1988, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), de-terminação, aos Estados da Federação, da instituição de Fundos de Combate à Pobreza, através de adicional de até dois pontos percentuais na alíquota do Imposto sobre Circulação de Merca-dorias e Serviços – ICMS. A razão central para a criação desse adicional é dar efetividade às obrigações de o Estado melhorar as condições de vida dos grupos mais carentes.

A criação do Fundação de Combate à Pobreza produziu di-versos e significativos impactos na gestão dos recursos públicos, não somente pela finalidade instituída, mas pela existência da vinculação dos valores da arrecadação para alguns itens, como o percentual de gastos em educação e saúde, receita líquida real (pagamento da dívida pública) e o cálculo dos valores a se-rem remetidos ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação – FUNDEB.

Sob esta perspectiva, o objetivo desta investigação é analisar o impacto da arrecadação dos Fundos de Combate à Pobreza Estaduais, relacionado a algumas vinculações que podem retirar a efetividade que objetiva do legislador constitu-

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Vinculações das receitas dos estados: riscos à efetividade do fundo de combate à pobrezaLuís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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produtos, indiscriminadamente, reflete o caráter de seletivida-de. A seletividade tem uma faceta de extrafiscalidade, onerando bens considerados supérfluos, contrários à subsistência básica da sociedade (tanto que produtos da cesta básica são isentos, por exemplo). Além disso, estimula a produção e o comércio de produtos e serviços que atenderiam ao interesse nacional, ao povo, ao sustento das necessidades do ser humano (CAR-RAZZA, 2015b, p. 538). Logo, como se verifica, o princípio da seletividade também serve como uma forma de política social, concessão de benefícios e baixa tributação dos bens mais im-prescindíveis à população.

Roque Antonio Carrazza assim explicita a correlação entre o mínimo existencial e o princípio da seletividade, o que funda-menta a instituição do Fundo de Combate à Pobreza, a partir dos recursos do adicional de alíquota:

Logo, tudo o que está previsto, expressa ou implicitamen-te, na Lei Maior como integrante do chamado mínimo vital (ou mínimo existencial) deve receber tratamento tributário favorável. Isto significa que o Poder Público tem o dever de defendê-lo e preservá-lo, inclusive mediante a desone-ração, sempre que possível, da carga tributária que, afinal, onerará o consumidor final. (2015b, p. 545)

No caso do Fundo de Combate à Pobreza, o legislador, a fim de proteger o bem jurídico do mínimo existencial, estipulou a incidência do adicional justamente sobre bens supérfluos. É o que se depreende da determinação constitucional que dispen-sou tratamento tributário desfavorável, através do adicional de alíquota, para os bens considerados “não necessários”.

Uma questão central que deve ser bem compreendida sobre o tema é a de que o adicional de alíquota possui destina-ção especifica, na medida em que todo o valor é destinado ao Fundo de Combate à Pobreza. Isso demonstra que há uma vin-culação do adicional de alíquota ao fundo. Apesar de o imposto não ter natureza de destinação obrigatória, pode-se afirmar que o adicional de alíquota do ICMS, e somente ele (e não o ICMS em si), possui vinculação específica. Isso lhe confere um caráter híbrido, como se pode verificar deste precedente do Tribunal

Câmara dos Deputados, o parecer do relator, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania e de Redação, diz:

Em verdade, a presente Proposta de Emenda busca realizar um dos objetivos fundamentais da República, exortando o Estado a assumir de forma mais concreta seu papel de pro-vedor do bem-estar geral e, particularmente, do segmento da população mais sofrida e, lamentavelmente, até aqui, menos assistidas pelos recursos públicos. (Diário da Câma-ra dos Deputados, 2000, p. 33800)

Nos dois turnos de votação, a Proposta de Emenda Cons-titucional foi aprovada na Câmara de Deputados, retornando ao Senando Federal, quando, então, resultou na Emenda Constitu-cional 31/2000.

Os Fundos de Combate à Pobreza criados então com fundamento no art. 82 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, independentemente da nomenclatura ou desinga-ção que lhes seja dada pela legislação específica de cada Estado da Federação, têm seus recursos oriundos de adicionais de alíquota do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços- ICMS, incidente sobre os produtos e serviços supérfluos. Como se trata de um fundo com finalidades específicas, há a possibili-dade jurídica de repartição dos valores para os munícipios, salvo quanto ao disposto no art. 158, IV, da Constituição Federal.

No âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, o tema me-receu conformação do legislador estadual por intermédio da Lei Estadual n.º 14.742/ 2015, destinada à criação do Fundo de Proteção e Amparo Social do Estado do Rio Grande do Sul-AM-PARA/RS, do que resultou alteração na Lei Estadual 8.820/1989, exatamente no sentido de determinar o adicional de alíquota. Nesse sentido, então, a disposição do art. 13-A da Lei Estadual 8.820/1989 estabeleceu adicional de alíquota para bebidas al-coólicas e cerveja sem álcool; cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos, cigarreiras, fumos desfiados e encarteirados, fumos para cachimbos e fumos tipo crespo; perfumaria e cosméticos; e prestação de serviço de televisão por assinatura.

Essa caracterização de produtos e serviços supérfluos, com a não incidência do adicional de alíquota sobre todos os

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As contribuições, diferentemente do caráter de não afetação dos impostos, possuem destino certo e finalidade determinada. Isto é: os valores arrecadados relativos aos paga-mentos de contribuições somente poderão ser utilizados para alcançar as finalidades previstas na legislação. No caso, o tra-balho de diminuírem-se as desigualdades sociais faria parte da assistência social, integrante do conceito de seguridade social, de acordo com o artigo 195 da Lei Maior. Consoante esse ar-tigo, o custeio se dá por toda a coletividade, servindo como instrumento de atuação na área social. Para clarificar, eviden-cia-se que todas as áreas de aplicação do Fundo de Combate à Pobreza (utilizando-se, por base, os motivos constitucionais para a instituição do Fundo de Combate à Pobreza da União, mas que foram repetidos pela maior parte dos Estados) estão dispostas no artigo 6º da Constituição Federal e são Direitos So-ciais, direitos subjetivos de toda a população e de cumprimento compulsório do Estado.

O Fundo de Combate à Pobreza possui característica fina-lística, com a destinação específica de seus valores (CARRAZZA, 2015a, p. 687). Assim, como há contribuições com roupagem de impostos, também há, como no caso, um “imposto” (o adi-cional de alíquota) com roupagem de contribuição. De acordo com Sacha Calmon Navarro Coêlho (2012), pode-se considerar que o adicional de alíquota tem viés de imposto finalístico, o que configuraria uma exceção ao princípio da não vinculação dos impostos, tendo em vista seu caráter social, corroborando o caráter híbrido esposado na decisão colacionada acima.

O objetivo do adicional de alíquota (financiamento do com-bate à pobreza) é tão importante que o legislador constitucional criou o adicional de alíquota ao ICMS com viés de contribuição (atividade finalística). E isso pois, conforme disposto no art. 149, caput, da Constituição Federal, a competência para a instituição de Contribuições Sociais é exclusiva da União, excepcionando-se, aos Estados, somente a instituição para o custeio do regime previdenciário de seus servidores. A conclusão, então, somente pode ser a de que o legislador criou exceção ao art. 149, caput, da Constituição Federal.

Regional Federal da 1ª Região (Tribunal Regional Federal da 1º Região, 2012):

(...) 3 - A substituição do “IPMF” pela “CPMF” (exigência que era constitucional) decorreu - fundamentalmente - da intenção de vincular a arrecadação tributária a custos de setores públicos específicos (saúde pública, previdência so-cial e fundo de combate e erradicação da pobreza), não alterando, todavia, a essência da natureza jurídica da exa-ção, o que já se observa pelos fatos geradores de ambas; a legislação de regência apenas instituiu figura “híbrida”: imposto, mas com arrecadação “vinculada” a certas despe-sas. (...) (AC 0012275-92.2009.4.01.3300 / BA, Rel. DESEM-BARGADOR FEDERAL LUCIANO TOLENTINO AMARAL, SÉTIMA TURMA, e-DJF1 p.1115 de 13/04/2012).

Assim, cuida-se de um “imposto”, cujo fruto de sua arreca-dação está vinculado, pois afetado a uma finalidade específica. Enquanto o ICMS, instituído pelo artigo 155, inciso II, da Cons-tituição Federal, tem a total feição de imposto, isto é, sem qualquer vinculação, o adicional de alíquota do ICMS contém as marcas de contribuição, tendo em vista a destinação específica ao Fundo de Combate à Pobreza, na satisfação de um anseio da sociedade, como diz Marco Aurélio Greco:

As contribuições não são instituídas e cobradas “porque” há manifestação de capacidade contributiva (caso dos im-postos) ou atividade estatal especifica (taxas); ao revés, elas são instituídas e cobradas “para que” algo seja obtido (a satisfação de uma necessidade social através de uma po-lítica pública; o desenvolvimento de um setor econômico estratégico, etc). (grifo nosso) (2013, p. 569)

Apesar de o ICMS não ter caráter vinculado, pelo princípio da não vinculação dos impostos – da não afetação, no caso do Direito financeiro –, não se pode negar que a arrecadação estatal é vinculada à realização de suas obrigações para com os ad-ministrados, dotando a administração pública de recursos para atingir os seus objetivos. Contudo, novamente deve ser deixado claro que não há uma vinculação a atividades específicas, como determina a Constituição Federal no caso do Fundo de Comba-te à Pobreza, salvo quanto às próprias exceções constitucionais.

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A RLR é a receita realizada nos doze meses anteriores ao mês imediatamente prévio àquele em que se estiver apurando, excluídas as receitas provenientes de operações de crédito, de alienação de bens, de transferências voluntárias ou de doações recebidas, com o fim específico de atender a despesas de capi-tal e, no caso dos estados, às transferências aos municípios por participações constitucionais e legais.

A parcela mensal para o pagamento da dívida é calcula-da com base em percentual de 1/12 (um doze avos) da RLR. O percentual depende da negociação realizada com a União, no momento da assinatura do contrato. Os percentuais poderiam variar entre 11,5% (onze e meio por cento) e 15% (quinze por cento). O Estado de Goiás, por exemplo, no momento da as-sinatura, assumiu um compromisso de 15% (quinze por cento) da RLR, ao passo que o Rio Grande do Sul se obrigou com 13% (treze por cento).

A controvérsia se dá em razão de a União Federal possuir o entendimento de que os valores resultantes da arrecadação do adicional de alíquota devem fazer parte da RLR. A conse-quência direta do entendimento é a de que, das receitas para o Fundo de Combate à Pobreza, deverá ser deduzido o per-centual constante no contrato com o Estado. Assim, ao invés dos recursos serem aplicados nos propósitos dos fundos, serão utilizados para outros intentos.

Ademais, a inclusão, na base de cálculo, para o pagamen-to da dívida é totalmente contrária à consecução dos direitos fundamentais. O repassar os recursos à União, para pagamen-to da dívida, e não ao Fundo de Combate à Pobreza, implicará redução das despesas de custeio (despesas para erradicar a po-breza) para valorizar uma despesa de transferência de capital (pagamento de juros).

As normas consititucionais vinculam juridicamente. O de-dicido pelo legislador constituinte decidido está. O papel da interpretação constitucional é determinar o significado a ser atribuído às disposições jurídicas dadas pelo legislador consti-tucional. O dado autoritativamente já foi objeto de ponderação. Então, diante da decisão do legislador, a tarefa do interprete

Uma vez assentados os elementos centrais conformadores dos Fundos de Combate à Pobreza, o que tem o objetivo de mostrar alguns obstáculos à concretização de seus objetivos.

O Fundo de Combate à Pobreza e a receita líquida real para fins de

pagamento da dívida

Um dos aspectos que pode retirar a efetividade preten-dida com a instituição dos Fundos de Combate a Pobreza é a sistemática de cálculo da Receita Líquida Real dos Estados-Membros. Isso pois, dependendo do entendimento, recursos destinados à erradicação da pobreza podem ser utilizados para despesas diversas (nessa caso juros).

Em que pese à existência de acordo sobre o pagamento da dívida pública dos Estados com a União, que desvinculará o pagamento da parcela da receita auferida, deve-se fazer uma análise do tema tendo em vista que parcelas não pagas durante a vigência da liminar concedida pelo Supremo Tribunal Fede-ral (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, MS 34023, MS 34110, MS 34122 e MS 34141), em sede de Mandados de Segurança, deve-rão ser recalculadas e, sob estas, incide a análise deste tópico. Eventual pedido de restituição de valores supostamente pagos a maior pelos Estados, por conta da análise aqui realizada, não é objeto desta investigação.

No ano de 1997, tendo em vista a crise econômica de Esta-dos-Membros e de alguns Municípios, por conta do alto grau de endividamento, foi editada a Lei n.º 9.496, de 11 de setembro de 1997, que possibilitou a assunção e o refinanciamento, pela União, da dívida pública mobiliária, dentre outras, dos Estados e do Distrito Federal. Importa destacar que a Lei 9.496/97 criou o conceito de Receita Líquida Real (RLR), utilizado, basicamente, para o cálculo da parcela da dívida dos Estados e Municípios com a União.

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artigo 82 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. No mesmo sentido, a decisão na Ação Cautelar 268, da qual se extrai o seguinte excerto do decisum:

Então, o que ocorre? Esses dois pontos percentuais na alíquota do ICMS foram criados pelos Estados e têm uma destinação específica e única para o Fundo da Pobreza, que também tem destinação específica. (...) Ora, temos clara-mente em impacto líquido, porque, dessa receita nova de cem reais – constitucionalmente autorizada, absolutamente nova e criada só para esse fim ‒, estaríamos incidindo um pagamento não destinado à pobreza, mas, sim, destinado ao Estado. Daí porque não se deve – no nosso ponto de vista, na linha do Ministro-relator – considerar, para efeito da receita líquida real, a receita nova originária da alíquota de 2% do ICMS, porque tinha destinação pessoal. (AC 231 MC e AC 921 MC, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO)

Ressalta-se, entretanto, que as decisões acima foram pro-feridas em sede de cautelares, julgadas pelo pleno do STF, mas estão pendentes de julgamento as ações principais.

O Fundo de Combate à Pobreza e o FUNDEB

O FUNDEB, assim como os Fundos de Combate à Pobre-za, possui base constitucional, com destinação especifica de seus valores. No caso do FUNDEB, aplicado aos Estados, é de 20% (vinte por cento) das receitas, dentre outras, do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer bens ou direitos (ITCD), do Imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS) e do Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

Os valores arrecadados, então, são distribuídos aos en-tes, de acordo com uma complexa sistemática de cálculo, que considera um valor fixo por aluno, em cada etapa de ensino, e o número de matrículas realizadas. Isto é: um Estado poderá remeter valores maiores ao fundo do que os receberá. Exem-plo: o Rio Grande do Sul, no ano de 2015, destinou ao FUNDEB

e aplicador das disposições constitucionais é determinar, con-forme os cânones hermenêuticos conhecidos e os argumentos interpretativos relevantes, o significado a ser atribuído ao texto constitucional. Na solução dos problemas jurídico-constitucio-nais, como diz Canotilho, “deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima da lei funda-mental” (2003, p. 1226).

Assim, se houve a elevação do combate e erradicação à pobreza como programa de Estado, ao se instituir a obrigato-riedade do Fundo de Combate à Pobreza, com objetivos claros, as demais normas devem ser interpretadas de acordo com essa disposição jurídica. Logo, não há como destinar verbas arreca-dadas ao fundo a outros fins que não sejam o próprio fundo. A Constituição Federal definiu uma exceção ao princípio da não afetação, dedicando os recursos aos fins propostos (diminuição das desigualdades sociais).

Também sobre a exegese constitucional, Luís Roberto Bar-roso leciona que “o ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de nor-mas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins” (2001, p. 149). Assim, a dignidade da pessoa humana é um princípio constitucionalmente previsto, um dos objetivos da República Federativa do Brasil. A diminuição das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza, a garantia de um mínimo existencial são corolários do princípio. Diante desse impasse, poder-se-ia afirmar que há um conflito entre normas, de caráter hierárquico: enquanto a Constituição dispõe um des-tino específico para a arrecadação do adicional de alíquota, a União, com base em Lei Ordinária, tenta dar destinação diversa, o que fere de morte a hierarquia das normas.

Por fim, sublinha-se que, em via reflexa, a discussão acerca do tema já foi objeto de litígio, em sede de cautelar, perante o Supremo Tribunal Federal. Ao analisar a apuração da Receita Corrente Líquida para fins de amortização das dívidas dos Es-tados, o STF decidiu que “descabe considerar, para cálculo da amortização da dívida do Estado, a receita prevista no § 1º do

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Vinculações das receitas dos estados: riscos à efetividade do fundo de combate à pobrezaLuís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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Confirmando o entendimento acima, em situação similar, analisada no julgamento pelo STF na já mencionada Ação Cau-telar 231, entendeu o então presidente do STF, Nelson Jobim, que os “adicionais decorrentes dos 2% do ICMS deverão ser integralmente aplicados nas ações contra a pobreza”. Tal obser-vação demonstra a destinação específica dos valores do fundo.

Mais um argumento é o fato de a legislação do FUNDEB estabelecer que o ICMS faz parte da base para apuração do FUNDEB, mas não o adicional do Fundo de Combate à Pobreza:

ADCTArt. 60 ......II - os Fundos referidos no inciso I do caput deste artigo serão constituídos por 20% (vinte por cento) dos recursos a que se referem os incisos I, II e III do art. 155 [...]Lei 11.494/2007Art. 3º Os Fundos, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, são compostos por 20% (vinte por cento) das se-guintes fontes de receita:[...]II - imposto sobre operações relativas à circulação de mer-cadorias e sobre prestações de serviços de transportes in-terestadual e intermunicipal e de comunicação previsto no inciso II do caput do art. 155 combinado com o inciso IV do caput do art. 158 da Constituição Federal;

Como o princípio da legalidade, aplicado à Administração Pública, tem caráter positivo, o gestor público somente pode fazer o que a lei lhe permitir. Se a lei for omissa, não significará que é possível, mas justamente o contrário. Havendo lacuna, como acima visto, fica proibida a vinculação dos valores do Fun-do de Combate à Pobreza ao FUNDEB.

Ademais, os valores que constituem receitas do fundo não são ICMS na sua essência, sendo recursos de um fundo espe-cífico, um adicional com natureza de contribuição. Enquanto o inciso II, do artigo 155, da Constituição Federal, institui o ICMS, o artigo 82 do ADCT institui o Fundo de Combate à Pobreza e determina as suas fontes. Se a base de apuração do FUNDEB é o artigo 155, inciso II, da Constituição, os valores dos Fundos de

R$ 4.284.292.945,88 e recebeu R$ 3.866.108.438,36, de acordo com dados do sítio Transparência RS (RIO GRANDE DO SUL, 2016). Logo, como se pode vislumbrar, o Estado do Rio Grande do Sul remeteu mais valores do que recebeu.

Desta maneira, se houver a destinação de 20% (vinte por cento) dos recursos do adicional de alíquota ao FUNDEB, esses valores, no exemplo exposto, não retornarão para implementar uma educação de maior qualidade, no ente arrecadador, mas, sim, poderão ser remetidos a outro Estado. Tal fato distorce-ria a própria concepção dos Fundos de Combate à Pobreza, por esses possuírem caráter estadual, para uso da diminuição das desigualdades no ente instituidor do fundo. Caso extremo, como apresentado acima, será o fato de a arrecadação ter sido realizada por um Estado e remetida a diverso, que pode não ser instituído o fundo constitucionalmente previsto.

Se houver a remessa de valores dos fundos, cujo objeto é o de combate à pobreza, ao FUNDEB (educação), haverá a sua desvirtuação, pois os valores não serão integralmente utilizados para minimizar as desigualdades sociais, mas serão parcialmente destinados a um fim diverso do desejado pelo legislador (so-mente educação). Mesmo que haja a previsão da utilização dos recursos do fundo em educação, as receitas oriundas do FUN-DEB são classificadas como Receitas Correntes, não vinculadas ao Fundo de Combate à Pobreza.

Aqui, trata-se de conflito de normas com relação a dois bens jurídicos protegidos pela Constituição Federal: a educa-ção e o combate à pobreza (ou o mínimo existencial). Todavia, a resposta está no próprio texto constitucional. A Constituição Federal expressamente definiu o destino dos valores do adicio-nal de alíquota e, desde a sua criação, o legislador, como visto no início deste, já fez menção ao objetivo do fundo, do princí-pio/direito que será protegido.

Assim, a própria Constituição Federal já traz a solução para o caso concreto desse conflito: os recursos do adicional de alíquota somente serão destinados e utilizados para os Fun-dos de Combate à Pobreza, dentro das suas finalidades (mínimo existencial).

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Entretanto, como considerar que eventuais valores do Fun-do de Combate à Pobreza, se recolhidos ao Fundo PIS-PASEP, sejam utilizados em programas de desenvolvimento econômico, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social?

Não obstante programas de desenvolvimento econômico possam trazer benefícios à classe da população mais desprovi-da de recursos materiais (de difícil mensuração), tal destinação foge do objetivo original, que é a aplicação exclusiva em pro-gramas de combate e diminuição da pobreza, a garantia de um mínimo existencial.

Dessa forma, a expressa vinculação constitucional dos re-cursos impede a alocação dos valores do Fundo de Combate à Pobreza em outras funções e objetivos, motivos pelo qual não se podem considerar as receitas arrecadadas com o adicional de alíquota, para fins de base de cálculo para o pagamento do PIS-PASEP. Em suma, para fins do cálculo da base de cálculo do PIS-PASEP devem ser excluídos os recursos coletados pelo Estado relativo ao adicional de alíquota, sob pena de desvirtua-mento dos objetivos dos fundos.

O Fundo de Combate à pobreza e os percentuais constitucionais de aplicação

em educação e saúde

A Constituição Federal determina a aplicação de percen-tuais mínimos em educação (25% - artigo 212, caput) e saúde (12% - artigo 198, § 2º c/c artigo 6º da Lei Complementar n.º 141, de 13 de janeiro de 2012) para os Estados. O percentual, para o cálculo dos recursos obrigatório na manutenção e desen-volvimento do ensino, possui como base a “receita resultante de impostos”, e da saúde é “o produto da arrecadação dos impos-tos a que se refere o artigo 155 e dos recursos de que tratam os artigos. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II” (Estados).

Combate à Pobreza não devem ser considerados, visto terem sido fixados no ADCT, e não no artigo 155, inciso II. Ainda, a base de cálculo do Fundo de Combate à Pobreza é composta pelo ICMS incidente sobre os produtos e serviços supérfluos, o que reforça a ideia de que os valores desses fundos não devem ser somados à base de cálculo do FUNDEB.

O Fundo de Combate à Pobreza e o PASEP

O Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Pú-blico-PASEP, instituído pela Lei Complementar n.º 8, de 3 de dezembro de 1970 e pela Lei Complementar n.º 26, de 1975, foi unificado com o Programa de Integração Social (PIS), formando o Fundo PIS-PASEP. Atualmente, de acordo com a Constituição Federal (artigo 239, caput, e § 1º), a arrecadação do fundo fi-nancia o programa do seguro-desemprego, o abono PIS-PASEP (60% dos recursos desse Fundo) e programas de desenvolvimen-to econômico, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (40% dos recursos desse Fundo).

Seus recursos, consoante a Lei n.º 9.715, de 25 de novem-bro de 1998, provêm de pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno. Quanto às pessoas jurídicas de direito público interno, a contribuição se dá “com base no valor mensal das receitas correntes arrecadadas” (art. 2º, inciso III). O art. 7º do referido normativo ainda determina que “para os efeitos do inciso III do art. 2o, nas receitas correntes serão incluídas quais-quer receitas tributárias”. No caso do Fundo PIS/PASEP, caso se entenda que os valores do Fundo de Combate à Pobreza sejam parte da base de cálculo (tal qual no percentual para pagamento da dívida dos Estados com a União), é antagônico ao objetivo do Fundo de Combate à Pobreza. Não haveria grandes discordân-cias quanto à utilização de recursos para o seguro-desemprego (apesar de sua natureza previdenciária), uma vez que garante, durante um determinado período, as condições mínimas de vida para o desempregado.

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desses, e não criar uma nova fonte de receita para cobrir as des-tinações vinculadas à sua arrecadação de impostos.

Como visto no exemplo acima, a utilização dos recursos dos fundos para saúde e educação caracteriza um caso de des-virtuamento dos fundos, pois os Estados poderiam utilizar as receitas dos impostos somente para complementar os recursos do Fundo de Combate à Pobreza.

Caso se entenda conforme a Secretaria do Tesouro Nacio-nal, utilizando-se a arrecadação do adicional de alíquota para fins de aplicação do mínimo constitucional em educação e saú-de, deve-se, de outro lado, considerar, também, as despesas em tais itens, pois considerar somente as receitas, para fins de cálculo dos mínimos constitucionais a serem aplicados, e não as despesas dos Fundos de Combate a Pobreza, seria inconsisten-te. Considerar somente receitas e não despesas imporia ônus maior aos Estados com gastos em educação e saúde (os percen-tuais mínimos, assim, ficariam acima de 25% e 12%).

Ocorre que, como sublinhado, o objetivo da criação dos Fundos de Combate à Pobreza é que os Estados possam ar-recadar valores que não sejam utilizados em qualquer outra vinculação, mas sim com esse fim específico (erradicação da po-breza). É uma criação de novas receitas, mas com a respectiva criação de novas despesas e não mero suprimento financeiro para despesas atualmente existentes (como o percentual míni-mo de aplicação em educação e saúde).

Por isso, então, conclui-se que as receitas do adicional de alíquota não podem ser consideradas como base de cálculo para a aplicação mínima em educação e saúde, mas as despesas, com recursos do fundo, em educação e saúde, não podem ser utilizadas para análise do cumprimento do mínimo.

Com base nesses dispositivos legais, a Secretaria do Tesou-ro Nacional possui entendimento de que as receitas dos Fundos de Combate à Pobreza compõem a base para o cálculo da aplica-ção mínima em educação e saúde. Tal inteligência é formalizada no Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), que, no tocante à educação (BRASIL, 2014, p. 257), esclarece que “não poderá ser deduzida da base de cálculo das receitas [...], qualquer parcela de receita vinculada ao Fundo de Combate à Pobreza”, e à saú-de “não poderá ser deduzida da base de cálculo das receitas [...], quaisquer parcelas de impostos ou transferências constitu-cionais vinculadas a fundos ou despesas, aí se incluindo a receita vinculada ao Fundo de Combate à Pobreza”.

Essa interpretação dada pela Secretaria do Tesouro Na-cional não se mantém. Se as receitas dos Fundos de Combate à Pobreza devem ser consideradas para a aplicação em manuten-ção e desenvolvimento do ensino e ações e serviços públicos de saúde, é coerente afirmar que os gastos em educação e saúde, utilizando recursos dos Fundos, podem ser considerados como despesas de educação e saúde. Para elucidar, um exemplo prá-tico: caso um Estado ou Município tenha uma receita de 1.000, ter-se-á um mínimo de aplicação, em educação, de 250, e, em saúde, de 120. Se houver um adicional de alíquota de 100, os valores se alteram para 275 (educação) e 132 (saúde). Seguindo-se a lógica e a coesão de utilização dos valores do fundo para educação e saúde, visto a receita ser considerada para o cálculo, o Estado poderia se utilizar da receita do adicional de alíquota de 100, quitando despesas da saúde, e utilizando somente 32 das suas receitas “ordinárias” (arrecadação de impostos) como complementação.

Mas isso não reflete as razões da vinculação constitucional do Fundo de Combate à Pobreza. O art. 79 do ADCT é claro ao vincular as receitas do Fundo também a educação e saúde, mas não se pode confundir a obrigatoriedade de destinação das despesas “ordinárias” com a do adicional de alíquota, que, como visto, possui natureza híbrida. Justamente o objetivo dos Fundos de Combate à Pobreza é que possam os Estados auferir rendimentos a serem aplicados exclusivamente nas finalidades

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para o pagamento da dívida, muito menos para FUNDEB, PA-SEP e aplicações mínimas em educação e saúde, sob pena de trazer prejuízos ao Estado na consecução dos fins propostos pelo legislador.

Referências

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constitui-ção. 4.ed., São Paulo: Saraiva, 2001.

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Considerações finais

A desigualdade social afeta grande parte da população brasileira, na qual muitos têm pouco e poucos têm muito. A po-breza no Estado brasileiro é óbvia e está espalhada por toda a federação. Como exposto, muitos cidadãos vivem aquém do mínimo existencial. O Estado, apesar das prestações positivas constitucionalmente asseguradas, falha na tentativa de conce-der uma vida, ao menos, digna aos desamparados. O disposto pelo constituinte originária está longe de se tornar realidade.

O legislador constitucional derivado, a fim de ampliar a capacidade de o Estado cumprir com os objetivos de garantir condições mínimas de subsistência aos mais carentes, mais ne-cessitados, incluiu, no ADCT, a obrigatoriedade de os Estados instituírem Fundos de Combate à Pobreza. Grande parte dos Estados já criou o seu fundo estadual. Os fundos serão nutri-dos, dentre outras receitas, por adicionais de alíquotas ao ICMS. Entretanto, como os valores de impostos possuem algumas vin-culações, existe tal divergência de entendimentos entre a União e os Estados. Se prevalecer o entendimento da União, os fundos estaduais perderão recursos, evadindo-se parte da efetividade de suas políticas e, mesmo, de seus objetivos.

Diante de uma ótica hermenêutica constitucional, não deve prevalecer o entendimento da União.

Direitos Sociais, do qual fazem parte o mínimo existencial e a busca de garantia pelo Estado, fazem com que o combate e erradicação à pobreza seja um corolário. Diante disso, de serem os Direitos Sociais fundamentais à pessoa humana, à população brasileira devem eles ser elevados em detrimento de qualquer outra disposição legal. Inclusive, o Tribunal Constitucional já se manifestou quanto ao tópico da RLR, o que pode muito bem ser aplicado ao FUNDEB e aos demais itens aqui tratados, evitando-se o desvio de finalidade da instituição do adicional de alíquota e, por consequência, do Fundo de Combate à Pobreza.

Assim, está justificado formular que os valores percebidos, pelo Estado, como adicional de alíquota, conforme o disposto no art. 82, §1º, do ADCT, não devem servir de base de cálculo

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Vinculações das receitas dos estados: riscos à efetividade do fundo de combate à pobrezaLuís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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Luís Antonio Zanotta Calçada e Anizio Pires Gavião Filho

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O MINISTÉRIO PÚBLICO E A INTERDIÇÃO DE TODA FORMA

DE PRECONCEITO: OS CASOS DA APOLOGIA DO NAZISMO E DA

DISCRIMINAÇÃO CONTRA OS JUDEUS

Cesar Luis de Araújo Faccioli1 Bruno Heringer Júnior2

1 Procurador de Justiça. Coordenador do Núcleo de Incentivo aos Meios Autocompositivos de Con-flitos (MEDIAR/RS). Professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público (FMP). Ex-secre-tário de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul. Mestrando em Direito pela FMP.

2 Promotor de Justiça. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da Fundação Escola Supe-rior do Ministério Público (FMP). Doutor e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Univer-sidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

Data do julgado: 2 de abr. de 2012. Data da publicação: 13 de abr. de 2012. Disponível em: <http://arquivo.trf1.gov.br/AG-Text/2009/0012200/00122759220094013300_3.doc> Acesso em: 6 de jun.de 2016.

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O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito: os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os judeusCesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior

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O Brasil prometido pelo alvissareiro texto da Constituição Fe-deral de 1988 apresenta-se como um Estado republicano,

laico, democrático e social de direito. Esse arquétipo, conceitual e sintetizador, define, à evidência, apenas o – ou um – “projeto” de Brasil, cuja construção está, ainda, em fase incipiente – po-der-se-ia dizer em “início de execução” –, muito longe de seu término. Aliás, nossa Carta Cidadã (que representa as fundações desta simbólica edificação), anunciada com pompa e emoção por Ulysses Guimarães, tampouco demonstra definitiva solidez normativa (tanto que em muito já foi emendada e até um pouco desfigurada – e recorrentes ainda são os movimentos buscando novas revisões e, mesmo, propostas de uma nova constituinte).

Formula-se esta inicial advertência, um tanto alegórica, acerca da incompletude desta complexa obra que chamamos Brasil, sem que, por isso mesmo, se alinhe a discursos de sim-bólica desistência acerca da viabilidade de consumação exitosa deste belo plano. A primeira exortação, portanto, é de que não se pode fazer açodado e definitivo juízo de valor sobre um pro-cesso que está nos seus atos iniciais e sobre um Estado que nem sequer definiu os seus contornos conformadores (e que se formou, cumpre lembrar, antes mesmo da nação, esta, de resto, caracterizada por uma rica multiculturalidade).

O presente texto, portanto, traz um enunciado de discre-ta, mas motivada, esperança nas possibilidades de superação da crise e do desenvolvimento exitoso, nomeadamente no aspecto civilizatório, do projeto brasileiro.

Não se desconhece a crise, é claro – aliás, não se desco-nhecem as crises, já que são no plural, de vários âmbitos; a crise é política, jurídica, institucional, social, econômica, identitária e, sobretudo, uma crise ética sem precedentes. Nada disso nos é permitido desconhecer e não se olvida, por óbvio.

Há quem diga – e com bons argumentos – que a crise é da própria civilização. Comparato (2001, p. 251) é um destes – e define civilização como

a reunião de vários povos, que falam línguas da mesma famí-lia, partilham da mesma mentalidade coletiva, submetem--se às mesmas instituições de organização social e dispõem

Resumo

A Constituição brasileira de 1988 tem como pedra angular o princípio da dignidade da pessoa humana. Em uma de suas dimensões, essa diretriz axiológica interdita qualquer prática preconceituosa ou supremacista, já tendo alguns atos normati-vos infraconstitucionais, além de pactos internacionais subscritos pelo País, se voltado a sua prevenção e repressão. No modelo institucional em vigor, assoma o Ministério Público como órgão de Estado estruturado para a tutela dos valores mais elevados da ordem jurídica, notadamente aqueles relativos à centralida-de e à intangibilidade da pessoa humana. O combate a todas as formas de preconceito, exemplificadas pelos movimentos de apologia do nazismo e de discriminação contra os judeus, é re-velador da atuação institucional do Ministério Público em defesa dos direitos humanos fundamentais.

Palavras-chaves: Dignidade da pessoa humana. Multicul-turalismo. Apologia do nazismo e discriminação contra o povo judeu. Prevenção e repressão jurídica. Ministério Público.

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O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito: os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os judeusCesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior

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mador do Estado Democrático de Direito (BARROSO; MELLO, 2012). É ele a ideia-força que sintetiza o modelo civilizacional proposto pelo constituinte (SARLET, 2013).

Com efeito, como objetivo fundamental da República, a Carta Constitucional dispõe:

Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:[...]IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de ori-gem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. (Grifo nosso).

Ainda inserta nessa teia sistêmica e reveladora do Estado que se pretende ter, a Constituição elenca as diretrizes básicas das suas relações internacionais, ressaltando a importância dos direitos humanos, e o repúdio ao terrorismo e ao racismo:

Art. 4º - A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:[...]II - prevalência dos direitos humanos;[...]VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo;[...] (Grifos nossos).

Ao tratar dos direitos e das garantias fundamentais no Tí-tulo II, outrossim, nossa Carta Política prevê a inviolabilidade do direito à liberdade de consciência e de crença, além de tipificar a prática do racismo como crime inafiançável e imprescritível, assim dispondo os incisos VI e XLII do art. 5º:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es-trangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:[...]VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e

do mesmo saber tecnológico.Desse conjunto de elementos formadores de uma civilização, convém destacar a mentali-dade coletiva e as instituições de organização social.

A reflexão que se propõe neste artigo não é de descola-mento da realidade incontroversa, tampouco de negacionismo vazio do que é autoevidente, mas, diversamente, de desve-lamento de recortes importantes deste projeto de Brasil que se encontram, quais pedras preciosas, no texto constitucional e que desafiam, diuturnamente, a compreender e bem mane-jar – sejam, de um lado, os valores constitucionalizados como princípios orientadores da República, como o da proteção da dignidade da pessoa humana (GARCIA, 2015) e, sofisticando ainda mais o recorte temático, a interdição ao preconceito e à discriminação; sejam, de outro, as ferramentas disponibiliza-das pelo constituinte à cidadania para a defesa e a conservação da democracia, e, ao mesmo tempo, para a tutela e promoção de direitos humanos dotadas de reconhecida fundamentalidade (no caso aqui analisado, o referido compromisso de combate ao preconceito e à discriminação como garantia de exercício de direitos básicos de identidade humana). Neste último caso, fa-la-se especificamente de um desses instrumentos de defesa da cidadania, o Ministério Público brasileiro, refundado em 1988 e elevado a legitimado universal para a tutela e promoção dos direitos humanos e fundamentais, bem como para a busca, em juízo, da punição dos atos de desprezo e perseguição a indiví-duos e grupos humanos.

Principais instrumentos normativos de afirmação da dignidade humana e de interdição do preconceito e da

discriminação

O valor fonte de nossa República é enunciado, expres-samente, no inciso III do art. 1º da Constituição, que eleva a dignidade da pessoa humana a direito fundamental e confor-

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O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito: os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os judeusCesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior

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§1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que uti-lizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. [Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. [Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]§2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou pu-blicação de qualquer natureza: [Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. [Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]§3º No caso do parágrafo anterior, o juiz poderá determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência: [Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97] I - o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo; [Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]II - a cessação das respectivas transmissões radiofônicas, televisivas, eletrônicas ou da publicação por qualquer meio; [Redação dada pela Lei nº 12.735, de 2012]III - a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores. [Incluído pela Lei nº 12.288, de 2010]§4º Na hipótese do §2º, constitui efeito da condenação, após o trânsito em julgado da decisão, a destruição do ma-terial apreendido. [Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]

Esse microssistema de combate ao preconceito e à dis-criminação (se é que cabe a expressão), alavancado pela Lei Fundamental, evoluiu e expandiu-se para além de persecução penal – embora não se negue a relevância simbólica e peda-gógica da pena criminal –, buscando também a resolutividade de eventuais conflitos pela tutela coletiva no âmbito extrape-nal. Nesse particular, a Lei da Ação Civil Pública inaugurou, recentemente, uma nova fase, delineando horizonte inusitado, especialmente para a atuação do Ministério Público. Com efeito, em 24 de abril de 2014, foi editada a Lei nº 12.966, acrescen-tando ao texto da Lei nº 7.347/1985 a proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.

garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; [...]XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; [...] (Grifos nossos).

Por outro lado, no plano internacional, é importante regis-trar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969, da ONU (Decreto nº 65.810/1969), que, em seu art. IV, assim prescreve:

Os Estados Partes condenam toda propaganda e todas as organizações que se inspirem em ideias ou teorias base-adas na superioridade de uma raça ou de um grupo de pessoas de uma certa cor ou de uma certa origem étnica ou que pretendem justificar ou encorajar qualquer forma de ódio e de discriminação raciais e comprometem-se a adotar imediatamente medidas positivas destinadas a eli-minar qualquer incitação a uma tal discriminação ou quais-quer atos de discriminação com este objetivo [...] (Grifo nosso).

Na ordem infraconstitucional, o compromisso brasileiro com o combate ao preconceito e à discriminação, defluência dos princípios constitucionais já sublinhados, se corporifica, por exemplo, no Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962), recepcionada pela Lei Fundamental de 1988, que, no art. 53, prevê como ato abusivo e, portanto, ilícito, a promoção de campanha preconceituosa e discriminatória relati-vamente a classe, cor, raça ou religião.

Mais especificamente, em 1989, logo após a promulgação da Carta Magna, a Lei nº 7.716 tipificou os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor:

Art. 20 - Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou pre-conceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacio-nal. [Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]Pena: reclusão de um a três anos e multa. [Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97]

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O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito: os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os judeusCesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior

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Essa separação classificatória e discriminatória teria sido uma deliberação de humanos, por razões eminentemente políticas. Aqui, pois, encontram-se o “ovo da serpente”, a origem do mal segregacionista e, ademais, o argumento fundador da tese da hierarquia racial, da existência de raça superior e, por essa natureza, dominante. De outro lado, etnia refere-se à identida-de de grupos pelo compartilhamento de uma história e cultura comuns. Por fim, a religião seria a livre crença em uma ordem di-vina, adesão a seus signos e a prática de sua respectiva liturgia. São esses, portanto, os grupos e áreas temáticas que, desde a edição da Lei nº 12.966/2014, recebem, na dimensão coletiva, especial proteção de sua(s) peculiar(es) expressão(ões), notada-mente pelo Ministério Público.

O movimento nazista e o Holocausto: o crime dos crimes

A discriminação e o preconceito podem alcançar níveis extremos de menosprezo e ódio a grupos determinados, con-duzindo até mesmo à sua aniquilação física.

O exemplo histórico paradigmático disso é o Holocausto ou a Shoah (catástrofe), o genocídio de judeus – “o povo mais tenaz da história” (JOHNSON, 2010, p. 15) – durante o governo da Alemanha nazista em meados do século XX.

Seguindo um padrão que depois se chegaria até a genera-lizar doutrinariamente, o extermínio do povo judeu na Alemanha deveria dar-se de forma sistemática e por etapas, através do que podem ser consideradas “práticas sociais genocidas” (FI-NOCCHIARO, 2016, p. 65-69). Em um primeiro momento, operou-se a “erradicação da influência” do grupo perseguido a partir do estabelecimento de um antagonismo entre a cultura, a personalidade e o modo de vida dos judeus e os do povo ale-mão. Mais especificamente, logo após a eleição de Adolf Hitler como chanceler, o incêndio do Parlamento (Reichstag) em 1933 é tomado como motivo para a adoção de medidas autoritárias e

Sobre essa modificação legal, Mazzilli (2014) esclarece que até mesmo não seria, em princípio, necessária, pois a Lei da Ação Civil Pública não se limitava a proteger os interesses transindividuais nela expressamente mencionados (como o meio ambiente, o consumidor etc.), mas já previa uma norma de ex-tensão, segundo a qual o uso da ação civil pública se prestava à defesa de quaisquer outros interesses difusos ou coletivos (art. 1º, inciso IV). Todavia, o autor esclarece que

embora o acréscimo não fosse necessário, sob o aspecto prático foi inovação proveitosa, porque tem caráter didáti-co, ao permitir que o aplicador da lei (advogados, membros do Ministério Público, juízes, tribunais) tenha compreensão mais clara e exata de que a proteção até mesmo de grupos minoritários também está contida na lei. Evitam-se ou, ao menos, minimizam-se as oscilações da doutrina e da juris-prudência a respeito da questão. (MAZZILLI, 2014).

Veja-se que essa explicitação didática reafirma e tenta di-fundir, em escala máxima, o compromisso seminal do Estado brasileiro sonhado, ou seja, o respeito à diversidade como con-sectário lógico e ético do valor primeiro da República, o respeito a todas as dimensões de humanidade como única via do integral desenvolvimento das pessoas. Como afirma Barzotto (2010, p. 51), “a dignidade é inerente à identidade”.

E, nesse ponto, alguns conceitos básicos devem ser pro-blematizados, especialmente os referidos como bens jurídicos coletivos ou difusos tuteláveis pelo Ministério Público: os de raça, etnia e religião.

E o destaque primeiro e central é o relativo ao conceito de raça. A ciência contemporânea refuta a existência de raças humanas,3 afirmando a presença de uma única raça, a humana. Segundo esse entendimento, as variações morfobiológicas (cor de pele, estrutura capilar, estatura, cor dos olhos etc.) não se-riam relevantes para confirmar uma real fragmentação racial.

3 O racismo ou racialismo científico teria surgido em meados do século XIX como resposta à necessi-dade de justificar as desigualdades sociais na Europa e as raciais nos Estados Unidos, bem como o domínio ocidental na Ásia, através da obra de autores como Robert Knox (Races of Man, de 1850) e Arthur Gobineau (Essai sur l’inegalité des races humaines, de 1853/1855), entre outros (BETHEN-COURT, 2015, p. 364-391).

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O Ministério Público e a interdição de toda forma de preconceito: os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os judeusCesar Luis de Araújo Faccioli e Bruno Heringer Júnior

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plementação – pelo custo elevado e pela complicada logística de transporte e manutenção –, decidiu-se pela “solução final”, a eliminação física do grupo perseguido, como forma de apressar as mortes que já vinham ocorrendo principalmente pela fome e pelo excesso de trabalho.

Com isso, inicia-se a quarta etapa, o aniquilamento di-reto de pessoas em pequena escala e em lugares remotos ou fechados, como hospitais. A técnica adotada no começo foi o fu-zilamento sumário através de unidades móveis que avançavam à medida que novas áreas iam sendo conquistadas, podendo a invasão da União Soviética em 1941 ser considerada o marco ini-cial desses procedimentos, já que a maioria dos judeus habitava tais territórios.

Por fim, na quinta e última fase, partiu-se para o “exter-mínio total” do grupo perseguido, principalmente em campos de morte ou de extermínio. O método privilegiado foi o das câmaras de gás construídas em locais que ficaram tristemente famosos: Auschwitz, Birkenau, Sobibor e Treblinka, entre outros.

Estima-se que, até 1945, cerca de 6 milhões de judeus tenham sido exterminados pelo regime nazista (JONES, 2011, p. 234), com a colaboração ativa ou a negligência silenciosa de praticamente todo o povo alemão,5 o que levou Hannah Arendt (1964) a alertar acerca da “banalidade do mal”, ou seja, o fe-nômeno do comprometimento de pessoas comuns com uma prática cruel e desumana.

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a constatação do horror nazista, buscou-se, na esteira da criação da Organização das Nações Unidas, instituir um corpo normativo internacional que repudiasse, prevenisse e reprimisse tal prática, inicialmente chamada de “delito de barbaridade” (SHAWN, 2013).

Com esse objetivo, em 1948, é aprovada a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, já utilizan-do a expressão cunhada por Raphael Lemkin (1944, p. 79-95), jurista polonês que acabou emigrando para os Estados Unidos

5 Estudos recentes apontam que o governo nazista e a política de perseguição a judeus e outras minorias contavam com amplo apoio popular (JONES, 2011, p. 234).

repressivas contra os “inimigos do Estado”, cuja execução tocou a Gestapo (polícia política de caráter secreto). Ainda nesse mes-mo ano, já identificada a população judaica como alvo destacado da perseguição,4 passou-se a promover o boicote generalizado aos estabelecimentos comerciais e bancários de titularidade de empresários judeus. Em seguida, editaram-se diversas leis de caráter persecutório, para purgar o serviço público de elemen-tos indesejados, para excluir alunos e professores “não arianos” das escolas e universidades, para retirar a cidadania alemã dos judeus e até mesmo para proibir o casamento e o relaciona-mento sexual destes com pessoas de outras “etnias”. Todas essas medidas, que se deram em curtíssimo espaço de tempo, eram celebradas pelos principais formadores da opinião públi-ca, criando um amplo consenso na população acerca de quem deveria ser perseguido.

A escalada da violência contra pessoas de origem judaica e do vandalismo contra seus bens culminou na Noite dos Cris-tais (Kristallnacht), em 9/10 de novembro de 1938, ocasião em que vários foram mortos e seus pertences, inclusive residências, destruídos.

Na etapa seguinte, já conquistados corações e mentes da população em geral e erradicado eventual apoio ao povo ju-deu, é levada a efeito a “desterritorialização do outro”. Agora, o que se acentua – porque já vinha ocorrendo – é o isolamen-to espacial, o deslocamento voluntário ou a expulsão forçada de indivíduos judeus do território alemão. No caso específico do nazismo, a prática da formação de guetos e da identifica-ção pejorativa através da ostentação da estrela de Davi foi uma constante.

Em um momento subsequente, já definido politicamente o exílio, o problema passou a ser como e onde executá-lo. Três planos em larga escala foram concebidos pelos nazistas: Nisko, Madagascar e Sibéria. Contudo, dada a inviabilidade de sua im-

4 Apesar de o povo judeu, ao longo dos tempos, ter sido alvo de constante perseguição, o antisse-mitismo contemporâneo muito deve à doutrina cristã medieval e moderna, que lhe atribuiu o este-reótipo de malevolente e não confiável, responsabilizando-o pela morte de Jesus Cristo (JONES, 2011, p. 234).

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nia, ostenta a de protetor dos direitos humanos fundamentais e, nessa ampla plataforma atribucional, a de promover a tutela das liberdades e das manifestações identitárias de cidadãos e grupos, notadamente os vulneráveis e/ou minoritários. E aqui um desafio antepõe-se: o mesmo Ministério Público destacado a garantir a manutenção do sistema democrático (por conceito, majoritário, no sentido de fazer observar a vontade da maioria) é o defensor dos direitos fundamentais (por conceito, contrama-joritários, eis que pressupõem o respeito às minorias, aos não dominantes). Essa contradição há de ser “mediada” pelos mem-bros do Ministério Público, com racionalidade, compromisso humanista e responsabilidade social. Como aduz Mazzilli (2014):

A tutela jurídica coletiva assume maior importância, porque não raro estamos diante de grupos que, no fundo, são dis-criminados exatamente pela sua própria condição minoritá-ria. A grande conquista da civilização é o respeito às mino-rias. Foi por isso que ficou totalmente superado o conceito de democracia simplesmente como o governo da maioria do povo. Ora, a verdadeira democracia é mais do que isso, pois significa também o respeito aos diferentes. Ela é, sim, o governo da maioria do povo, mas respeitados os direitos das minorias. As minorias têm o direito de existir, de con-viver, de se manifestar, de fiscalizar a maioria, e até mesmo de um dia tornarem-se maioria. Se a maioria não aceitar es-ses direitos da minoria, não teremos democracia, e sim um despotismo da maioria contra a minoria. Ou, como disse James Bovard, ‘democracy must be something more than two wolves and a sheep voting on what to have for dinner’ […]

Essa delegação constitucional (na verdade, delegação do povo representado pelos constituintes), chancelou, confir-mando, o que se poderia denominar de vocação institucional presente no cerne atávico da atuação dos promotores e procu-radores de Justiça desde muito antes da Carta Cidadã de 1988, embora com pouca instrumentalização no agir – especialmen-te na luta pela interdição de toda forma de preconceito e de discriminação.

em 1941, devido à perseguição nazista, tendo sido contratado pelo governo norte-americano como consultor em Direito Penal Internacional (FINOCCHIARO, 2016, p. 33-35).

Apesar de haver alguma discussão acerca da origem eti-mológica da expressão, a palavra “genocídio” foi elaborada a partir da junção do prefixo grego “genos” (raça ou tribo) com o sufixo latino “cídio” (matar) (PONTE, 2013, p. 23).

Trata-se de um crime contra a humanidade, o qual “repugna profundamente a consciência jurídica da sociedade internacio-nal” (CRETELLA NETO, 2014, p. 310). Dada a gravidade das práticas sociais genocidas, que desumanizam o grupo atacado a ponto de promover a sua exterminação física, o genocídio é considerado “o crime dos crimes”,6 de modo que a comunidade internacional está visceralmente comprometida com a preserva-ção da memória histórica, buscando evitar o esquecimento de atrocidades passadas e o surgimento de movimentos racistas ou supremacistas.

O Brasil, como se viu, também conta com corpo normati-vo voltado para essa tarefa, conferindo ao Ministério Público, primordialmente, a atribuição de fiscalizar, prevenir e reprimir atos de discriminação e preconceito, incluindo especificamente os comportamentos de exaltação do nazismo e de menoscabo do povo judeu.

O Ministério Público e o enfrentamento do preconceito: Os casos da apologia do nazismo e da discriminação contra os

judeus

A Constituição de 1988 promoveu a reinvenção do Ministé-rio Público, criando um modelo inusitado nos sistemas jurídicos ocidentais, definindo contornos de uma Instituição que, dentre outras relevantes atribuições outorgadas em defesa da cidada-

6 Para Winston Churchill, o genocídio era “the crime without a name” (SCHABAS, 2000, p. 14).

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Por fim, pode-se apontar o “Caso da Biografia de Hitler”. Nesse recente processo, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro propôs ação penal cautelar requerendo a busca e a apreensão do livro Mein Kampf (Minha luta), autobiografia de Adolf Hitler. Escrita pelo fundador do partido nazista alemão, a obra prega o racismo e incentiva a eliminação de pessoas que fazem parte de minorias, como negros e judeus. Nos termos da denúncia, a lei brasileira faz referência expressa ao nazismo, proibindo a divulgação de seus símbolos, de modo que a con-duta dos editores e revendedores do livro seria criminosa, de acordo com previsto no art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/1989, nor-ma que estipula a pena de dois a cinco anos quando o crime de preconceito ou discriminação é “cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer nature-za”. A medida liminar pleiteada foi deferida em 3 de fevereiro de 2016.10

10 Disponível em: g1.globo.com. Acesso em: 01/10/2016.

Essa vocação do Ministério Público pode ser exemplifi-cada7 através de alguns casos paradigmáticos de sua atuação funcional.

No “Caso Ellwanger”, imputou-se a prática de crime a editor de livros com conteúdo discriminatório, principalmente contra os judeus, formulada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. De acordo com a acusação, os livros ven-didos por Siegfried Ellwanger, a partir de 2 de novembro de 1996, na Feira do Livro de Porto Alegre, traziam mensagens ra-cistas, discriminatórias e preconceituosas, incitando e induzindo o ódio e o desprezo contra o povo judeu. Ao final, foi o réu con-denado, com base no artigo 20 da Lei nº 7.716/1989, decisão mantida pelo Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, em sua composição plenária, ao tratar da imprescritibilidade do delito.8

Outro processo significativo foi o que decorreu do co-nhecido “Caso de Santos”, em 2014, acerca da manutenção de um site que difundia conteúdo neonazista.9 O Ministério Públi-co Federal, por meio da Procuradoria da República em Santos, denunciou um homem que incentivava a discriminação contra nordestinos, homossexuais e judeus na internet. Entre agosto de 2008 e abril de 2010, o responsável pelo site, identificado como um eletricista, postou conteúdo preconceituoso na forma de expressões e ilustrações discriminatórias e, nomeadamente, de cunho neonazista. O Ministério Público Federal conseguiu, durante as investigações, rastrear o responsável pelo e-mail de contato do site e, assim, identificar o denunciado. Embora o ho-mem não tenha assumido a autoria do crime, análises técnicas comprovaram que a utilização do correio eletrônico ocorreu em locais onde o denunciado costumava acessar a internet, em ho-rários compatíveis com suas visitas. O esforço ministerial, aqui também, redundou na condenação.

7 Outros casos são indicados por Christiano Jorge Santos (2010, p. 135-137).8 STF, Habeas Corpus nº 82.424-2/RS, Tribunal Pleno, rel. min. Maurício Corrêa, julgado em

17/09/2003. 9 Disponível em: g1.globo.com. Acesso em: 02/10/2016.

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decisões e ações, pode ser parecida com o que está escrito na Carta Magna. E uma maneira de afirmar esse compromisso com a dignidade dos humanos é não esquecer que somos, todos, integrantes de uma mesma raça, a humana, viventes de uma mesma comunidade global, com diferenças e convergências e com as memórias históricas das grandes rupturas desta aliança civilizatória e de seus trágicos efeitos – dentre todas, a mais de-sumana delas, o nazismo, o episódio sombrio do III Reich. Então, para garantir a convivência humana digna, é preciso exercer, com máxima vigilância, o dever fundamental de não esquecer – única vacina contra o risco da repetição.

E, por derradeiro, uma última referência, tão óbvia como necessária: este projeto de nação que está em andamento – e para cujo sucesso o modelo constitucional de Ministério Público tem papel relevante – ocorre, não podemos desconhecer, em um mundo globalizado, em uma sociedade ocidental líquida,12 axiologicamente debilitado, marcado pela informação rápida, fluida e superficial, pela pouca capacidade de armazenamento de referências complexas, especialmente pelos jovens. A me-mória histórica e o conhecimento não são mais totalizáveis, perdem-se na “nuvem” difusa do webspace. Neste mundo novo em que se propõe uma República comprometida com direitos humanos, os fatos rapidamente tornam-se obsoletos, perdem atualidade e ganham perigoso distanciamento.

Por isso, destaca-se, neste encerramento, o novo (ou res-significado) papel dos educadores, missão compartilhada com o Ministério Público, mesmo que em diferentes instâncias: a curadoria da memória, a luta pelo não esquecimento, a defesa de todas as ancestralidades e a difusão informativa desideolo-gizada dos escaninhos desumanos de nosso percurso enquanto projeto de humanidade. Como anunciado no título, confluên-cias, encontros, convergências de atores indispensáveis para a obra que nos desafia e que proporá o futuro.

12 A liquidez é uma metáfora para a fluidez das relações, a desintegração das instituições e a incerteza existencial que caracterizam a atual fase da modernidade (BAUMAN, 2001).

Considerações finais

O “rascunho” de Brasil, notadamente aquele que se extrai do texto original da Constituição Federal de 1988, é orientado por princípios de fraternidade, solidariedade e igualdade, que revelam um compromisso real com a promoção da dignidade da pessoa humana.

Parece evidente, ademais, que um dos eixos centrais de concreção desses princípios seminais e conformadores do Esta-do ambicionado é o da interdição de toda forma de preconceito e de discriminação, inclusive como meio de valorização da mul-ticulturalidade e de indução da interculturalidade, ferramentas estratégicas de qualificação da convivência humana.

Parece inegável, também, a condição de centralidade11 (não exclusividade, é claro) outorgada ao Ministério Público bra-sileiro, pela Constituição Federal de 1988, no enfrentamento de todas as formas de intolerância, especialmente as de cunho ra-cial, étnico e religioso.

Também parece claro que o sistema de Justiça, por apre-sentar adequada estrutura e qualificado capital humano, e por contar com um acervo normativo suficiente, tem a possibilidade de fazer a prevenção e o enfrentamento sancionador das condu-tas violadoras do respeito às diferenças.

Apesar das crises, portanto, o Brasil ostenta as condições básicas para construir um Estado de fato promotor dos direi-tos humanos e, especialmente, capacitado à mediação entre democracia e direitos fundamentais. Para tanto, cabe lembrar que o porvir brasileiro não é consequência de um imperativo necessário, nem de um determinismo das forças da natureza, de efeitos inevitáveis. Não, o futuro é produto de deliberações de humanos como nós, no âmbito da nossa liberdade, valor de que somos – apenas nós humanos – portadores. Cuida-se, pois, de decisões éticas, tomadas no espaço da contingência, do que pode ser diferente do que é ou da realidade que, por nossas

11 O Ministério Público é, de todas as instituições da área jurídica, a que detém o maior rol de atri-buições e responsabilidades em termos de defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (Cf. DI PIETRO, 2010. p. 8).

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