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CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
Braslia DF2007
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A sade dos mdicos no Brasil. / coordenao de Genrio Alves Barbosa et alli. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 2007.220p. ;
ISBN 978-85-87077-13-4
I- Conselho Federal de Medicina. II- Barbosa, Genrio Alves, coord. III- Andrade, Edson de Oliveira, coord. IV- Carneiro, Mauro Brando, coord. V- Gouveia, Valdiney Veloso, coord. 1- Mdicos Brasil. 2- Doenas profi ssionais.
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SUMRIO
Lista de Figuras e Tabelas.................................................................. 06Nota Sobre os Autores....................................................................... 08Apresentao....................................................................................... 11
1. A Profi sso Mdica e o Ser Mdico........................................... 152. Bem-estar e Sade Mental........................................................ 29 2.1. O Estresse Como Processo de Adoecimento................. 32 2.2. O Burnout Como Sndrome que Acomete os Mdicos.. 37 2.3. Fadiga, Distrbios Psiquitricos e Ideao Suicida....... 433. Doenas Orgnicas e Uso de Medicamentos............................. 494. As Drogas Psicotrpicas............................................................ 575. Consideraes Metodolgicas da Pesquisa Sade do Mdico... 896. Informaes Scio-Demogrfi cas dos Mdicos........................... 103 6.1. Sexo, Faixa Etria e Cor................................................. 104 6.2. Situao Familiar........................................................... 107 6.3. Sexualidade................................................................... 112 6.4. Religiosidade................................................................. 1147. Formao Profi ssional e Mercado de Trabalho........................... 119 7.1. Formao Profi ssional.................................................... 120 7.2. Desemprego e Situao Laboral Atual........................... 125 7.3. Efetivo Exerccio da Profi sso........................................ 130 7.4. Nmero de Atividades, Jornada de Trabalho e Renda... 134 7.5. Planto, Urgncia / Emergncia e EPIs.......................... 1398. Indicadores de Sade Mental..................................................... 143 8.1. A Sndrome de Burnout Entre os Mdicos..................... 141 8.2. Sintomas Psiquitricos.................................................. 147 8.2.1. Evidncias de Ansiedade e de Depresso......... 147 8.2.2. A Sensao de Fadiga...................................... 150 8.2.3. Indcios de Ideao Suicida............................. 1539. Doenas Diagnosticadas e Medicamentos Prescritos................. 15810. Uso de Drogas Psicotrpicas................................................... 17311. O Contexto Atual da Sade dos Mdicos................................ 18312. Aes e Perspectivas de Promoo da Sade dos Mdicos...... 191
Referncias........................................................................................ 201
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LISTA DE FIGURAS E TABELAS
FIGURA 1. DESCRIO DA VIA METABLICA PRINCIPAL DO ETANOL
FIGURA 2. DESCRIO DAS VIAS QUE TRANSFORMAM O ETANOL EM
ACETALDEDO
FIGURA 3. DISTRIBUIO DA FADIGA ENTRE OS MDICOS PESQUI-
SADOS
TABELA 1. HERDABILIDADE DA DEPENDNCIA A ALGUMAS DROGAS
TABELA 2. TEOR ALCOLICO EM FUNO DO TIPO DE BEBIDA
TABELA 3. USO DE DROGAS PSICOTRPICAS NO BRASIL
TABELA 4. UNIVERSO E AMOSTRA ESTIMADA PARA CADA UNIDADE
DA FEDERAO (UF)
TABELA 5. PARTICIPAO DOS MDICOS DE CADA UNIDADE DA FE-
DERAO (UF)
TABELA 6. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO SEXO, FAIXA ETRIA
E COR
TABELA 7. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO ESTADO CIVIL, SEPA-
RAES, N DE FILHOS E PENSO
TABELA 8. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO DIMINUIO DA LIBI-
DO E SATISFAO COM A VIDA SEXUAL
TABELA 9. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO A RELIGIO QUE
ADOTAM E O GRAU DE RELIGIOSIDADE
TABELA 10. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO A IES ONDE SE GRA-
DUARAM, TEMPO DE FORMADO E ESPECIALIDADE EXERCIDA
TABELA 11. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO DESEMPREGO, SITU-
AO LABORAL E REGIO
TABELA 12. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO LOCAL ONDE ATU-
AM, ATIVIDADES, CARGA HORRIA E RENDA
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TABELA 13. CLASSIFICAO DO BURNOUT ENTRE OS MDICOS QUE
ATUAM NO BRASIL
TABELA 14. DISTRBIOS PSIQUITRICOS ENTRE OS MDICOS
TABELA 15. DISTRIBUIO DAS PONTUAES NO FATOR IDEAO
SUICIDA NEGATIVA
TABELA 16. DISTRIBUIO DAS PONTUAES NO FATOR IDEAO
SUICIDA POSITIVA
TABELA 17. MDICOS PORTADORES DE PATOLOGIAS POR GRUPOS DE
CAUSAS CONSTANTES DA CID-10
TABELA 18. USO DE MEDICAMENTOS SOB PRESCRIO MDICA POR
GRUPOS DE CAUSAS DA CID-10
TABELA 19. DEPENDNCIA ENTRE USURIOS NA POPULAO ESTA-
DUNIDENSE
TABELA 20. DEPENDNCIA ENTRE MDICOS BRASILEIROS USU-
RIOS
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Edson de Oliveira Andrade, Presidente Conselho Federal de Medicina
AP R E S E N T A O
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Os mdicos clamam por ateno e respeito. H mais de uma
dcada, o Conselho Federal de Medicina vem alertando para este
aspecto, que pode, em si, comprometer a sade da populao. Ini-
cialmente, apontaram-se as precrias condies de trabalho, com
jornadas extenuantes, multiplicidade de atividades, desgaste profi s-
sional e reduo dos salrios (MACHADO, 1996). Em pesquisa mais
recente publicada com o ttulo O Mdico e seu Trabalho (CARNEIRO
e GOUVEIA, 2004) , este Conselho foi ainda mais enftico, respal-
dado por evidncias empricas sobre a realidade laboral dos mdi-
cos que exercem o seu ofcio no Brasil. Foram realados os aspectos
negativos anteriormente listados, agravando-se sua situao com o
estreitamento desenfreado do mercado de trabalho que, brevemen-
te, poder colapsar com a criao, sem precedentes, de escolas m-
dicas por todo o pas. A qualidade do ensino discutvel, com mui-
tas Faculdades funcionando sem oferecer condies adequadas de
aprendizado e treinamento profi ssional, como as viabilizadas pelas
Residncias Mdicas.
Os mdicos padecem de estigmas e expectativas sociais. Se por
um lado podem ser objeto de adorao e reconhecimento por aqueles
que gozam imediatamente de seus benefcios, so cobrados a nunca
errar e sempre fazer viver mais ou no deixar morrer ningum, como
se estivesse ao alcance deles o prprio dom da vida. Tratado outrora
quase como um membro da famlia, ascendentes e descendentes sa-
biam a quem recorrer em momentos difceis, quando se mesclavam
funes diversas, hoje realizadas por especialistas. Em caso de dor
de barriga do neonato, acudia-se ao doutor da famlia; mas tambm
quando no se conseguia dormir, quando o rapazinho quebrava o
brao, se o pai cortasse o dedo ou a me deixasse de menstruar. O
mesmo mdico concentrava mltiplas habilidades. Todos da cidade
o conheciam e rendiam suas homenagens, fosse convidando-o para
padrinho dos fi lhos ou agraciando-o com uma galinha de capoeira ou
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um cabrito bem cevado. Este doutor cada dia mais uma caricatura,
lembrada apenas pelos mais velhos.
Os mdicos de hoje em dia precisam viver em uma sociedade
de pleno consumo, sendo geralmente obrigados a vender sua fora
de trabalho a valores no condizentes com sua formao e seu pre-
paro, que demandam cerca de 10 anos (PIMENTEL, ANDRADE e
BARBOSA, 2004). A imensa maioria dos gestores pblicos massacra
continuamente a categoria mdica com salrios infames, provocando
uma evaso sem precedentes de profi ssionais do Sistema nico de
Sade, principalmente nos grandes centros urbanos. So propositais
as tentativas esprias de substituir o mdico por outros profi ssionais
na assistncia aos mais carentes, enganando a populao. Os con-
cursos pblicos no so mais atraentes, e o outrora respeitado status
de funcionrio pblico hoje desprezado pelos mdicos recm-for-
mados. Espremidos por Planos de Sade com afs estritamente fi -
nanceiros, sem qualquer preocupao com a sade dos brasileiros,
uma populao j ofegante, em que a classe mdia tem sucumbido
s demandas de arcar com sua sade, educao e lazer, as exigncias
de aperfeioamento contnuo e o estrangulamento do mercado de
trabalho, estes profi ssionais j no encontram solues individuais
ao seu alcance.
Embora geralmente por vocao e/ou escolha pessoal, aque-
les que se fazem mdicos almejam, alm da realizao profi ssional
e pessoal, melhores ganhos econmicos, mas paradoxalmente so
acreditados pela populao como ricos. Esta expectativa social cer-
tamente infl uencia no momento de os mdicos se desdobrarem em
mltiplas atividades e plantes, sem com isso ter a segurana de um
descanso anual remunerado ou mesmo contar com uma aposentado-
ria digna, como ocorre com algumas pessoas, a exemplo dos juzes
e polticos (BENEVIDES-PEREIRA, 2002; CARNEIRO e GOUVEIA,
2004).
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No preciso ir muito longe para constatar que os mdicos
esto em situao precria. Basta observar como difcil ter que dei-
xar sua residncia em fi nais de semana e dias festivos, no ter hora
nem ocasies para parar de trabalhar, ver morrer pessoas que precisa
cuidar, mas por precariedade das condies, nada poder fazer. Mas,
qual a conseqncia deste contexto laboral adverso? Justamente por
j ter reunido conhecimentos slidos acerca desta realidade (CAR-
NEIRO e GOUVEIA, 2004; MACHADO, 1996), o Conselho Federal de
Medicina, por intermdio de sua Diretoria, recomendou ao seu Cen-
tro de Pesquisa e Documentao (CPDOC) que planejasse e levasse
a cabo um estudo sobre como os mdicos esto sentindo e viven-
do seu trabalho e que implicaes isso poderia ter sobre sua sade.
Neste caso, considerou-se um conceito amplo, incluindo indicadores
psiquitricos, diagnstico de doenas orgnicas, uso de substncias
psicotrpicas, entre outros. Esta pesquisa detalhada aqui, permi-
tindo que a Categoria, as Entidades de Classe e os gestores de Sade
possam refl etir a respeito e encontrar alternativas coletivas para os
problemas vivenciados pelos mdicos.
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Munir MassudGenrio Alves Barbosa
A PR O F I S S O M D I C A E O SE R M D I C O
CA
PT
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O 1
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Tem-se como certo, de h muito, que a vocao para a Medici-
na um chamado, do qual os membros no conseguem separar sua
vida. Depreende-se desde os textos gregos oriundos de Cs e Cnide,
reunidos na Coleo hipocrtica que, apesar de serem escolas dis-
tintas, o comum a todos os autores e a todos os textos
[...] seguramente esse humanismo mdico que sempre con-sidera o paciente como um indivduo com direito ao respeito e sempre ressalta as exigncias imensas que a arte de curar, tal como um sacerdcio, impe aos seus melhores curas. (SALEM, 2002, p. 20).
No dizer de Bennett e Plum (1996, pp. 1-2), no h profi ssio-
nais de meio expediente; tendo atendido ao chamado, fi ca-se obri-
gado a viv-lo ou deix-lo. possvel que tal chamado venha a
ocorrer aps a escolha inicial, com o passar do tempo, j no exerccio
da profi sso, no encontro com o sofrimento humano e com a gran-
deza e o privilgio de acudi-lo. Nos espritos sensveis esse chamado
ocorrer inevitavelmente. Apercebe-se, ento, que para o profi ssional
que se tornar mdico, signifi ca comprometer-se a passar toda a vida
aprendendo, principalmente porque a Medicina avana de modo no-
tvel e, para alm desse domnio intelectivo, o exerccio da profi sso
reclama com veemncia o concurso de atributos excepcionais do ca-
rter. No sendo assim, no existe autntica Medicina, seno o mero
exerccio de uma tcnica que nunca guardada na memria nem
no corao de qualquer paciente ou de seu praticante que, quando
muito, no passa de um curandeiro tecnolgico.
Desta forma, sendo a Medicina moderna uma profi sso fun-
dada nas cincias genunas, devem ser os mdicos treinados como
cientistas, no apenas para poderem exercer corretamente seu ofcio,
mas para diferenci-lo de outras prticas oriundas de mera imagina-
o e que esto a afrontar o saber validado pelo mtodo cientfi co,
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17A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
carrasco e implacvel, porm sistemtico, objetivo e pautado em evi-
dncias empricas refutveis (POPPER, 1974). Quando se diz que a
Medicina uma arte, equivale a dizer:
[...] a existncia de uma tcnica adquirida, organizada, efi ciente, da qual somente os prticos qualifi cados so os verdadeiros de-positrios. Eles tiveram que fazer compreender que a medicina uma arte, uma techn, e no uma prtica sem regras, fundada apenas sobre o reclamo, a gritaria, as receitas de charlates (SA-LEM, 2002, p. 19).
Um enorme esforo exige a atitude cientfi ca, a mente inquisi-
tiva, a anlise de dados, a defi nio de limites, a postura epistemol-
gica adequada. Assim, a cada instante da sua ao a mente do mdi-
co defronta-se com a inquirio que pe em dvida sua conduta, sua
concluso, mesmo que o assista o rigor do mtodo, dada a enorme
complexidade envolvida no exerccio do seu mister.
Mas, a atitude cientfi ca constitui apenas uma faceta importan-
te da profi sso de mdico. O objeto de sua ao o ser humano, a
exigir um atributo mpar de quem o assiste a sensibilidade, qualida-
de que torna a interao um ato satisfatrio. inegvel o fato de que
imensamente importante para o paciente que o mdico se interesse
por ele. Assim, para surpresa e decepo de alguns, no basta ape-
nas acudir com rigor tcnico. A competncia tcnica isoladamente
no basta, embora seja, evidentemente, parte essencial do processo.
Nas doenas crnicas notadamente, nas doenas de prognstico
ominoso, nas situaes de sofrimento intenso , no basta a esper-
teza, a boa tcnica, que sempre se mostram insufi cientes. Solidarie-
dade e sensibilidade so atributos que ornam o esprito do mdico
e tornam suas relaes com os pacientes um fenmeno supremo.
E no poderia ser diferente, quando o enfermo compartilha com o
seu mdico os seus pensamentos mais profundos, seus temores e os
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seus segredos mais prezados. Assim, exige-se, do mdico completo,
o despertar interior dos qualifi cativos que mais adornam o esprito
humano, como a sensibilidade e a compaixo. Evidentemente, tais
atributos devem ser expressos de acordo com preceitos da psicolo-
gia mdica, a nortear as atitudes dos mdicos frente aos enfermos e
suas necessidades peculiares.
De tudo isso se depreende que o profi ssionalismo mdico as-
pira competncia profi ssional, mas tambm sinceridade, altrusmo,
honra, responsabilidade, integridade e respeito pelos outros (RE-
ZENDE, 2003). indubitvel que tais atributos no so alcanados
unicamente pelo aprendizado, mas aprimorado por ele; o conjun-
to de traos psicolgicos e morais que caracteriza a individualidade
apresenta um cerne inato que pode ser aprimorado, mas que no
, na sua totalidade, produto da cultura. Parece evidente que existe
uma capacidade inata de sentir compaixo. Esse entendimento ne-
cessrio para a compreenso de que a educao mdica no forma o
carter do estudante de Medicina. Compaixo, entrega, sensibilidade
e compromisso no so qualidades eminentemente adquiridas. Po-
dem ser despertados e aprimorados, mas no criados pela cultura.O
comportamento das pessoas depende de suas experincias dentro da
prpria cultura, mas o conjunto de suas possibilidades herdado.
Conscienciosidade substancialmente, embora no totalmen-
te, um atributo herdado, visto que a sua carncia que defi ne o
transtorno de personalidade anti-social, para o qual h mesmo evi-
dncia da participao de fatores genticos em sua etiologia. Como
qualifi car a indiferena do mdico no exerccio do seu ofcio seno
por ausncia, defi cincia ou morbidez dos sentimentos, apesar da
educao que recebeu, dos exemplos que teve, dos sofrimentos dos
quais foi testemunha? Disso decorre o fato inevitvel de que no se
pode esperar que todos os mdicos mantenham uma conduta condi-
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19A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
zente com a majestade do seu mister, componham eles uma amostra-
gem de qualquer grupo ou classe social.
Assinalara Alxis Carrel (1950, p. 115) que
[...] a escola no pode contribuir para a salvao da nossa civili-zao, seno alargando o seu quadro. Importa que ela abandone o seu ponto de vista puramente intelectual, e que os exames de-ixem de classifi car as crianas e os jovens apenas pela memria. [...] Os diplomas de instruo no tm em qualquer considerao o valor real dos candidatos, porque esse valor conta tanto pelo psicolgico e moral, quanto pelo intelectual. necessrio que os diplomas atestem no apenas os conhecimentos de ordem intelec-tual, mas tambm os resultados morais e psicolgicos.
O que desejava dizer Carrel com atestar resultados morais, caso
fossem eles meramente produtos do aprendizado? Que as escolas
negligenciavam a educao moral e os exemplos de moralidade, per-
mitindo que se deixassem abertas as comportas dos instintos? Parece
evidente que at os micrbios necessitam de um meio apropriado
para proliferar; mas igualmente verdade que no surgem micrbios
por gerao espontnea. Susceptibilidade gentica e meio conjugam-
se para determinar o fentipo. Talvez o estmulo quase exclusivo
capacidade de recordar, deduzir, imaginar, descobrir, de arquitetar
construes lgicas, tenha ajudado sobremaneira a separar a inteli-
gncia do sentimento e a carncia de estimulao das atividades no
intelectuais do esprito, como a coragem, a audcia, a veracidade, a
fi delidade, a abnegao, o herosmo e o amor. Em tais circunstncias,
as pessoas de boa ndole no aprimoram suas potencialidades mais
virtuosas, enquanto os psicopatas constantes e circunstanciais en-
contram terreno propcio para o sucesso (MEALEY, 1995).
No Brasil, semelhana do que constatara Carrel em tempos
idos, para ser mdico exige-se um enorme esforo cognitivo, de me-
morizao e de raciocnio, mas nenhuma exigncia feita no plano
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20 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
moral e os diplomas de graduao, conseqentemente, no atestam
resultados morais. Mas, seria justo que se fi zesse tal exigncia? Quais
escolas poderiam fornecer diplomas que atestassem o carter ilibado
dos seus diplomados? A resposta afi rmativa s seria possvel supon-
do que a educao operasse o milagre de determinar o carter. Quais
testes vlidos e precisos deveriam ser aplicados aos estudantes, quem
teria o direito de possuir um dossi dessa natureza e quem garan-
tiria a sua inviolabilidade? Ademais, numa sociedade democrtica,
como se deveria proceder, caso se pudesse identifi car pessoas com
transtornos de personalidade, sem que ainda no tivessem cometido
delitos?
Enfi m, parece ingnuo crer que o fato de se formarem em Me-
dicina, pela natureza sublime dos desgnios dessa profi sso, todos
os mdicos devam apresentar dotes de carter condizentes com tais
anseios. Embora muito possa ser aprendido, essa crena romntica
e decorre de concepes metafsicas e da idia absolutamente falaz
da mente humana como uma tbula rasa e da exclusividade da
cultura na formao do carter. Os concursos vestibulares s exigem
memorizao e raciocnio. No existe, pois, qualquer garantia de que
todos os aprovados nesses concursos venham a ser susceptveis
doutrinao moral e tica proporcionada por um curso de Medici-
na.
Em linha com o comentado previamente, Siqueira (1973) des-
taca que
evidente que a ignorncia e a mngua de inteligncia arras-tam a erros monstruosos, a crimes de toda a espcie, injustias, perseguies. Mas no se deve esperar muito do valor moral do ensino, pois no possui valor absoluto. [...] Erro supor-se a ex-istncia de conexo entre a cultura intelectual e a melhoria moral. A sociedade antes se prejudica, ao desenvolver artifi cialmente a inteligncia, sem levar em conta o carter. A cultura intelectual aumenta o poder que tm as emoes de manifestar-se e de alca-
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21A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
nar satisfao. [...] Tambm a educao, intensifi cando a fora de todas as emoes, ajuda a predominncia das piores, e as dis-ciplinas impostas pelos melhores podem ser mais facilmente in-fringidas (p. 103).
Essas observaes so fundamentais para que se possam com-
preender, sem surpreender-se, os desvios comportamentais de alguns
mdicos e os delitos graves que ocasionalmente cometem.
Alada condio da mais sublime das profi sses, com exi-
gncias tcnicas e humanitrias proporcionais a essa soberania, a
Medicina vista como uma profi sso sacerdotal. Afi nal, a atividade
mdica diz respeito aos mais apreciados valores humanos. No h,
pois, como subtrair do vulgo o sentimento de que a atividade mdica
exercida na sua plenitude se compare a um magistrio sacerdotal,
no sentido de misso elevada, quase divina. Tal carter realado
por Bonifcio Costa, citado pelo historiador Pereira Neto (2001), ao
ressaltar que a prtica mdica comporta um carter de moralidade,
de desinteresse, de abnegao e de sacrifcio que merece ser identi-
fi cada a um sacerdcio religioso e este carter consagra sua origi-
nalidade profi ssional.
A propsito, acrescenta Eduardo Meireles, citado pelo mesmo
historiador antes referido, que quem exercer esta profi sso sem pol-
vilh-la com a eucaristia do altrusmo poder ser um distribuidor de
drogas, mas nunca um verdadeiro mdico. Portanto, na construo
retrica desses oradores parece evidente que a ao do mdico seria
comparvel de um sacerdote. Mas, este tambm um sentimento
popular, das pessoas que compreendem que essa atividade no pode
ser exercida sem nobreza de carter e sem sacrifcios. por isso que
mesmo tendo decorridos tantos sculos de exerccio da Medicina, o
enfermo sempre se indigna diante do mdico que d escassa ateno
ou lhe trata sem a gentileza ou o interesse esperados.
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22 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Entretanto, no mundo absolutamente injusto do trabalho, essa
concepo sacerdotal utilizada demagogicamente para a prtica
escabrosa da explorao do trabalho mdico. Se a consagrao da
profi sso, quando exercida na sua completude, acalenta, conforta e
enobrece, ela tem constitudo igualmente uma condenao, em face
da atitude demaggica de algumas autoridades que dela se utilizam.
Assim, quando os mdicos exercem o direito soberano de reclamar
por melhores condies salariais o Poder Pblico utiliza o sentimento
do povo acerca da Medicina como sacerdcio para obrigar os m-
dicos a abdicar das suas atitudes contestatrias. comum que, nas
raras ocasies em que os mdicos entram em greve, fazem-se exal-
tados apelos santidade da profi sso mdica, para alegar que sua
destinao suprema deve superar qualquer anseio de ordem material
a sonegar-lhe o direito reivindicatrio, num reclamo descabido po-
pulao para que censure os mdicos grevistas. Mera parvoce, pois
se profi sso se atribui carter to elevado, fato que os mdicos se
alimentam, pagam tributos, criam fi lhos e que tm de enfrentar Pol-
ticas de Sade terrveis. Desta forma, o decantado sacerdcio mdico
constitui tanto uma coroa de glria quanto um fardo.
Falemos claro desde o incio: por mais que o trabalho eno-
brea o homem, tornando-o livre, belo e seguro, ainda assim no se
pode dizer que a maioria das pessoas [...] tenha (enquanto trabalha)
uma cara alegre (DE MASI, 1999, p. 31). Quis este autor se referir
insatisfao diante do que chamou infame organizao atual do
trabalho. De acordo com Carrel (1950, p. 35),
fato que o capitalismo conseguiu a expanso econmica do s-culo XIX, um enorme acrscimo da riqueza e uma melhoria geral da sade e das condies materiais da vida. Mas ao mesmo tempo criou o proletariado. E assim, desapossou os homens da terra, fa-voreceu o seu amontoamento nas fbricas e em mseras moradias, comprometeu sua sade fsica e mental, e dividiu as naes em classes sociais inimigas.
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23A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
Em que parcela deste contexto est envolvida a maioria dos
mdicos? A qual classe pertence a maioria e quais as inimigas?
Que caras apresentam? Em que isso interfere com suas atitudes, seu
comportamento cotidiano ou sua prpria sade fsica e mental?
Em recente publicao do Conselho Federal de Medicina CFM
(CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), de grande valor informativo acer-
ca do trabalho mdico no Brasil, encontra-se relatado que a expres-
siva maioria dos mdicos tem seu sustento obtido exclusivamente do
exerccio da Medicina. Esclarecedor o fato de que o setor pblico
constitui a fonte principal de exerccio da profi sso mdica, quando
antes, em pesquisa realizada nos anos 1990 (MACHADO, 1996), este
lugar era ocupado pelas atividades em consultrio. Ressalta ainda a
recente publicao do CFM que 85% dos mdicos neste pas exer-
cem duas ou mais atividades em Medicina; os que exercem trs ou
mais contabilizam 55,4%; e, penosamente, 28,2% exercem quatro
ou mais atividades mdicas (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004). evi-
dente que tais nmeros causam profunda consternao, pois revelam
a sobrecarga do trabalho mdico, demandando esforos sem limites
e dedicao mais do que incondicional; expressam uma dependncia
profunda destes profi ssionais a um mercado de trabalho aviltante,
do qual o SUS paradigmtico pela baixa remunerao, tornando
o exerccio da profi sso no Brasil uma coisa penosa e diminutiva,
numa evidente e acachapante contradio com a considerao que
se apregoa existir em relao a esse trabalho e sua importncia,
da qual ningum, em s conscincia, pensa em prescindir por um
minuto sequer.
No resta dvida de que o trabalho mdico enobrecedor por
si mesmo e que a maioria dos mdicos se sente honrada e satisfeita
com a escolha profi ssional que fez. De acordo com Carneiro e Gou-
veia (2004), poucos so os mdicos que abandonaram a profi sso
para se dedicar a outras atividades, e escassos so aqueles que tm
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24 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
fontes de renda alm da Medicina. Mas, coaduna-se bem com os
dados anteriores o fato preocupante e revelador de 58,4% relatarem
que a profi sso desgastante. Esta pesquisa mostrou que a remu-
nerao dos mdicos aumentou na ltima dcada, mas foi acom-
panhada pelo aumento da jornada de trabalho, logo... A propsito,
cabe ressaltar que a precariedade salarial se refl ete igualmente nas
expectativas destes profi ssionais, que tm diminudo nos ltimos
anos. Na pesquisa de 2004 quase metade dos mdicos entrevistados
afi rmou que se contentaria com salrios equivalentes a U$ 4.000,00
(quatro mil dlares). Esta pretenso, longe de se tornar realidade
para a maioria dos mdicos, muito declinou em relao pesquisa
de 1996. Atualmente 72% dos mdicos possuem renda mensal indi-
vidual igual ou inferior a U$ 3.000,00 (trs mil dlares); pior ainda
que, de tal contingente, 37% ganham U$ 2.000,00 (dois mil dlares)
ou menos.
Quando se comparam tais valores com a importncia do tra-
balho mdico, percebe-se a condio deplorvel em que pode estar
a auto-estima desses profi ssionais. Finalmente, deve ser salientado
que cerca de 52% dos mdicos entrevistados na pesquisa recente
(CARNEIRO e GOUVEIA, 2004) exercem atividades de plantonista.
Conclui-se, necessariamente, que esta modalidade estafante de tra-
balho constitui parcela signifi cativa do mercado de trabalho mdico
no Brasil, com certa variao regional. Na maioria dos Estados brasi-
leiros as condies de assistncia sade da populao dependente
do setor pblico so amplamente defi citrias e, associadas baixa re-
munerao, a plantes seguidos em ambientes carentes de recursos
tecnolgicos imprescindveis, constituem um ambiente nefasto aos
anseios de mdicos e pacientes, pondo em risco a sade de ambos.
O que se depreende desses dados que para signifi cativa par-
cela de mdicos o trabalho em Medicina constitui a nica fonte de
poder aquisitivo. Para muitos, o trabalho excessivo certamente no
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25A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
produz socializao nem identidade, seno isolamento, angstia e
aborrecimento. Muitos mdicos passam parcela signifi cativa de suas
vidas em locais diversos de trabalho, no raro em plantes estafan-
tes, longe da famlia, privados de divertimentos. Se tal empenho la-
boral propicia benefcios pecunirios algo compensadores, o que est
longe de ocorrer para a maioria dos mdicos, constitui apenas uma
fonte de satisfao de ordem prtica, mas que no se traduz em bem-
estar pleno (CSIKSZENTMIHALYI, 1999).
Deve fi car claro que parte substancial da satisfao do mdico
obtida quando existem condies adequadas de trabalho; disponi-
bilidade de recursos tecnolgicos mnimos para que uma Medicina
moderna vivel possa ser exercida. fato consumado que uma satis-
fao enorme para o mdico o acerto diagnstico, a instituio da
teraputica adequada e bem-sucedida. Constitui um prazer curar, ali-
viar, acalmar. Somente no mbito da psicopatologia se pode conceber
que o ato mdico, exercido na sua plenitude, no satisfaa, enobrea,
exalte, acalente e encha de satisfao o esprito de qualquer mdico.
Assim, constitui uma imensa fonte de desprazer e de sentimentos
de inutilidade e impotncia o trabalho incompleto, fragmentado em
face da carncia de recursos. Essa carncia, quase sempre tida como
um ato de negligncia criminosa dos governos, coisa devastadora
para quem necessita desses recursos para exercer o seu trabalho e,
evidentemente, para os enfermos. Trabalhar em tais ambientes, s
vezes verdadeiras cafuas, desalentador e imensamente estressante.
No raro, os Conselhos Regionais de Medicina, em todo o Brasil,
denunciam a falta de condies de instituies de sade vinculadas,
freqentemente, ao Poder Pblico.
fato que nem todos os mdicos esto includos neste contex-
to, mas igualmente verdade que no so muitos e, portanto, repre-
sentam pouco a compreenso geral do trabalho mdico no Brasil.
Para estes mdicos, que tm asseguradas condies materiais muito
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26 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
satisfatrias, podem restar descontentamentos de ndoles diversas,
relacionados, ou no, ao trabalho. Mas no possvel uma discusso
crtica sobre valores abstratos que propiciam elevao do esprito,
transcendncia ou mesmo felicidade. O que parece desejvel, em um
trabalho conjunto dos mdicos e de suas instituies representativas,
tentar afastar ou minimizar o estresse que desencadeia ansieda-
de, inadaptao, descontentamento. O resto constitui uma busca de
cada indivduo.
No mundo capitalista do trabalho o sacerdcio mdico s va-
rivel relevante quando pode ser explorado em benefcio do lucro ou
de intentos polticos demaggicos. nscio quem imagina que pode
corrigir as mazelas da assistncia mdica com apelos de ordem hu-
manitria ou sobrenatural em um Pas capitalista, com uma das mais
perversas e mal empregadas cargas tributrias e com uma distribui-
o de renda que divide e desumaniza o territrio nacional. Nenhum
conceito moderno de gentica comportamental ou evolucionista am-
para esse intento, que se confi gura sempre como demaggico. Os
recursos materiais so fundamentais, e quando eles faltam alm de
certo limite, qualquer satisfao importante torna-se invivel.
lcito supor que a situao atual impe parcela signifi cativa
da populao mdica brasileira um modo de vida gerador de descon-
forto psicolgico, com conseqncias adversas, no raro graves, para
a sade desses profi ssionais. Deve ser salientado que o ambiente de
competitividade dos concursos vestibulares das Instituies Federais
de Ensino Superior (IFES), visto que a maioria dos mdicos delas
egressa, uma poderosa fonte de estresse sobre candidatos ao Curso
de Medicina e este, por si s, j constitui um incio devastador. Aps
a concluso do Curso, tambm a exigir esforo redobrado, acrescen-
ta-se outro concurso de ndole semelhante ao primeiro, para a ob-
teno de uma Residncia Mdica ou de Curso de ps-graduao de
qualquer natureza. Dessa trajetria difcil sair indene, em maior ou
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27A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
menor grau. Aps obterem seus intentos de ordem intelectual, caem
os esculpios no mercado de trabalho, cujas caractersticas foram
to bem demonstradas na pesquisa recente sobre os mdicos que
exercem seu ofcio no Brasil (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), aqui
sumariamente relembrada.
Em resumo, ser mdico dignifi cante e exige sacrifcios. Rece-
ber da populao o reconhecimento por seu labor, mas tambm a co-
brana para nunca errar, so apenas dois lados do mesmo desgnio.
Anos a fi o de estudos e o ideal de cumprir a vocao de amenizar a
dor e promover o bem-estar reforam o desejo de ser mdico. No
obstante, os mdicos so pessoas, como quaisquer outros profi ssio-
nais, e exigidos sem condies de trabalho dignas ou em troca de
mseros salrios obtidos em mltiplas atividades, incluindo os plan-
tes. Estes profi ssionais reclamam tambm a sua precria condio
de sade e, nas conversas informais, denunciam o pleno esgotamen-
to e o limite das suas capacidades de suportar a dor, no somente
fsica, mas emocional, e a perda, em sentido amplo (prestgio, status,
confi ana, etc.). Isso certamente deve ser espelhado no esgotamento
laboral que potencializa o surgimento ou a acentuao de quadros
nosolgicos orgnicos e psiquitricos. Portanto, demanda-se conhe-
cer mais a fundo estes aspectos, cuja abordagem se intenta no cap-
tulo a seguir.
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28 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
-
Valdiney V. GouveiaGenrio Alves BarbosaMunir Massud
BE M-E S T A R E SA D E ME N T A L
CA
PT
UL
O 2
-
30 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
As culturas nacionais parecem caminhar em direo ao indivi-
dualismo (HOFSTEDE, 1984) e ao ps-materialismo (INGLEHART,
1991). Quando saciadas as necessidades mais bsicas, como as fi sio-
lgicas e de segurana, tm lugar outras menos materialistas e/ou
mais voltadas a garantir ideais humanitrios, justia social, privaci-
dade e qualidade de vida. Embora outrora o salrio bastasse para as-
segurar a satisfao do trabalhador, este j no sufi ciente; as horas
de descanso, o convvio com a famlia, o reconhecimento do trabalho
e as oportunidades de aprimorar os conhecimentos so igualmente
metas valorizadas (RONEN, 1994), que se espera sejam implementa-
das com o fi m de promover o bem-estar dos trabalhadores (MOURA,
BORGES e ARGOLO, 2005). Portanto, os bens materiais refl etem um
tipo parcial de bem-estar, no levando obrigatoriamente satisfao
com a vida, felicidade, otimismo e vitalidade, componentes essen-
ciais do que se denomina de bem-estar subjetivo (CHAVES, 2003;
COMPTON e cols., 1996; DIENER, 2000; RYAN e FREDERICK, 1997).
O dinheiro ou o sentimento de realizao material como metas em
si trazem apenas satisfao temporria (CSIKSZENTMIHALYI, 1999;
INGLEHART, 1991). Porm, esta uma concepo mais recente, ten-
do evoludo a partir dos estudos sobre o bem-estar no fi m dos anos
1960 (DIENER, SUH, LUCAS e SMITH, 1999).
Esta preocupao com o bem-estar generalizou-se e passou
a despertar o interesse de diversas categorias ocupacionais, entre
elas, a dos mdicos vem recebendo ateno em diversos pases (por
exemplo, Canad, Espanha, Estados Unidos, Nova Zelndia). H
aproximadamente duas dcadas tiveram lugar os primeiros deba-
tes e as pesquisas sobre o desconforto psicolgico (distress) destes
profi ssionais, incluindo depresso e ansiedade, mas tambm o uso e
abuso de substncias psicotrpicas (SHANAFELT, SLOAN e HABER-
MANN, 2003). Provavelmente, a Canadian Medical Association rea-
lizou at ento a maior pesquisa nacional cujo foco principal era a
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31A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
situao precria dos mdicos; foram consideradas as respostas de
3.520 profi ssionais que atuam no Canad, tendo sido desenhado um
perfi l nada satisfatrio: 62% opinam que tm uma carga de trabalho
muito pesada; 55% relatam que sua famlia e vida pessoal sofrem
porque escolheram a Medicina como profi sso; e 65%, apesar de
insatisfeitos, vem oportunidades limitadas de mudar de profi sso
(SULLIVAN e BUSKE, 1998).
O desgaste profi ssional do mdico tambm se refl ete na
sua vida pessoal, provavelmente em maior medida do que ocorre
em outros ofcios, como o de advogado (LEVINE e BRYANT, 2000).
Maxwell (2001) indica que o trabalho do mdico afeta suas relaes
interpessoais devido falta de tempo, aos estressores acadmicos,
sobrecarga de trabalho, fadiga e privao de sono. A vulnerabilidade
a crises pessoais o leva a sentimentos de solido, depresso, ansie-
dade, insnia, problemas com lcool ou drogas psicotrpicas, assim
como outras manifestaes fsicas. Por certo, os fatores psicossociais
e a sade fsica mantm forte relao entre si; as doenas, a incapaci-
dade e mesmo a morte podem ser desencadeadas em detrimento do
tabagismo, dieta, uso de bebidas alcolicas e drogas psicotrpicas.
A profi sso mdica parece mesmo implicar um conjunto natu-
ral de estressores, com os quais se comea a conviver j como aca-
dmico (CARLOTTO, NAKAMURA e CMARA, 2006; DUTRA, 2005;
MIRANDA e QUEIROZ, 1991; PIMENTEL, ANDRADE e BARBOSA,
2004). Ros (2001), contando com uma amostra de 82 mdicos do
Hospital Geral Universitrio de Alicante, Espanha, levantou at 50
possveis fontes de estresse no contexto hospitalar, tendo sido os oito
seguintes os mais estressantes (as pontuaes poderiam variar de
= Nada estressante a = Extremamente estressante): as complica-
es graves do estado do doente [M (Mdia) = 7,9], as complicaes
durante a prescrio do medicamento [M = 7,4], o excesso de tra-
balho existente nas urgncias [M = 7,2], ter que tomar decises sem
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32 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
critrios claros de atuao [M = 7,1], os plantes de fi m de semana
[M = 7,0], ter que atender a um familiar ou um amigo [M = 6,9],
que a falta de coordenao na assistncia intra e extra-hospitalar re-
percuta no paciente [M = 6,5] e os dias de planto [M = 6,5]. Nesta
mesma direo, Smrdel (2003) observou que entre os mdicos da
Eslovnia existe um sentimento de culpa, atribuda a sua responsabi-
lidade pelo tratamento e a cura do paciente; quando esta no bem
sucedida, a experincia resultante de estresse laboral.
Na presente pesquisa, o Conselho Federal de Medicina procu-
rou conhecer inicialmente o quanto este desgaste profi ssional afeta
os mdicos brasileiros. Os tpicos a seguir tecem algumas conside-
raes acerca das perguntas abordadas no questionrio, envolvendo
o estresse, a ansiedade e a depresso e a ideao suicida. Antes, en-
tretanto, parece imprescindvel conhecer algo acerca do estresse e
da fadiga e mesmo do esgotamento ocupacional, tambm conhecido
como burnout. Embora este ainda no faa parte da nosografi a m-
dica, parece bastante pertinente t-lo em conta como a manifestao
mais direta das condies de trabalho, cuja implicao deveria ser
sentida nos sintomas psiquitricos anteriormente citados.
inegvel que o contexto do trabalho mdico estressante
e, portanto, que concorre efetivamente para gnese de distrbios
fi siolgicos ou psicolgicos. De fato o vocbulo estresse, derivado
do ingls stress, tenso, utilizado para signifi car distrbio causado
por circunstncia adversa, tendo sido incorporado medicina aps
os trabalhos de Walter Bradford Cannon (1871-1945) e Hans Se-
lye (1907-1982). O termo parece ter sido criado por este ltimo,
e dicionarizado em lngua portuguesa em 1945 (FERREIRA, 1999;
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33A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
HOUAISS e VILLAR, 2001). Os conceitos de meio interno e home-
ostasia, j sobejamente conhecidos, so necessrios compreenso
do signifi cado de estresse. A capacidade adaptativa do organismo
para a manuteno do seu meio interno o que Walter B. Cannon
popularizou em seu livro The wisdom of the body (1932). O termo, no
meio mdico, utilizado em acepo mais ampla, como o conjunto
de reaes do organismo frente a agresses de ordem fsica, psqui-
ca, infecciosa e outras, capazes de perturbar-lhe a homeostasia. Mas
a nfase dada neste captulo se refere, principalmente, ao estresse
laboral. importante notar o fato, j salientado por Selye (1959),
do paradoxo de que os sistemas fi siolgicos ativados pelo estresse
podiam no somente proteger e restaurar, mas tambm causar danos
ao organismo (ver tambm MCEWEN, 1998).
Muito se discute acerca dos estressores mais comuns, porm
parece evidente que eles variam com a idade e, entre aqueles mais
poderosos, citam-se os relacionados ao emprego, no adulto jovem, e
luta para alcanar a estabilidade fi nanceira, na faixa etria media-
na. Mais tardiamente, ainda no mbito laborativo, a aposentadoria
pode constituir uma fonte de tenso (MCEWEN, 1998). Outros es-
tressores, evidentemente, podem ser muito relevantes e somam-se a
esses em circunstncias diversas, como confl itos de famlia, distr-
bios conjugais, perdas afetivas etc. Parece muito evidente que as con-
dies inadequadas de trabalho, que incluem ambientes de trabalho
imprprios at por questes de higiene, conforto mnimo e mesmo
salubridade , salrios tidos como insufi cientes em relao ao valor
do trabalho, plantes excessivos, falta de lazer constituem igualmen-
te estressores poderosos que afetam o mdico.
As reaes em resposta a esses estressores podem ser ansieda-
de ou depresso, desenvolvimento de sintomas orgnicos, aumento
da ingesto de bebidas alcolicas. As respostas subjetivas incluem
medo (repetio do evento ou de sua inevitabilidade), raiva (ante
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34 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
a frustrao), culpa (em razo de atitudes agressivas) e vergonha
(incapacidade) (MCEWEN, 1998). O estresse agudo e reativado
pode-se manifestar por fadiga, inquietao ou excitao (tenso).
As reaes podem afetar o sono e causar difi culdade de concentra-
o. Este distrbio adaptativo em resposta ao estresse denominado
distrbio de ajustamento, especifi cado juntamente com o sintoma
principal, por exemplo, distrbio de ajustamento com humor depri-
mido (MCEWEN, 1998). Tais condies podem ser confundidas com
distrbios ansiosos, afetivos ou de personalidade exacerbados pelo
estresse, exigindo diagnstico diferencial que o conhecimento mdi-
co proporciona. Mais difcil convencer-se de que as manifestaes
somticas so de natureza psicognica, tendo em vista a experincia
mdica com doenas graves que se manifestam de forma semelhante,
passando ao temor de uma enfermidade orgnica grave e, no raro,
levando a pessoa a submeter-se a exames diversos. Por outro lado, s
vezes cientes ou desconfi ados da natureza de sua situao, passam
automedicao ou, mais rara e negligentemente, ao alcoolismo como
forma de atenuar o mal-estar psicolgico.
O estresse constante, crnico, leva ao que McEwen (1998) de-
nomina de carga alosttica. As alteraes fi siolgicas que se operam
diante do estresse, no sentido de manter a homeostase, compreen-
dem respostas dos sistemas endcrino, nervoso autnomo, cardio-
vascular, metablico e imunolgico, que tendem a proteger o corpo.
No entanto, o preo dessa acomodao durante meses ou anos pode
resultar em permanncia do estado de tenso com a possibilidade
de elevao da presso sangnea e, conseqentemente, de infarto
do miocrdio em pessoas susceptveis; e permanncia das alteraes
adaptativas depois da cessao do estresse, como ocorre em algu-
mas pessoas cuja presso sangnea no retorna aos nveis anteriores
aps o estresse agudo.
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35A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
O exemplo mais eloqente dos efeitos deletrios do estresse
crnico o que se verifi ca no sistema cardiovascular. Foi demons-
trado que fatores estressores oriundos do ambiente de trabalho au-
mentam o risco de doena coronariana, elevam a presso sangnea,
aumentam a massa ventricular esquerda e aceleram a aterosclero-
se (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SALONEN, 1996).
Alm disso, o estresse agudo afeta a funo do hipocampo e pre-
judica, embora de maneira reversvel, a memria em curto prazo e
causa atrofi a de dendritos de neurnios piramidais na regio CA3
do hipocampo por ao do cortisol, mas que pode ser fatal para es-
ses neurnios no estresse prolongado. Do ponto de vista imunol-
gico, o estresse agudo pode ampliar a hipersensibilidade retardada
a antgenos para os quais existe uma memria imunolgica. Se a
memria imunolgica no for um patgeno ou uma clula tumoral,
mas sim auto-imune, ento o estresse provavelmente exacerbar o
estado patolgico (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SA-
LONEN, 1996). Quando a carga alosttica aumentada pelo estresse
repetido, a resposta completamente diferente: a hipersensibilidade
retardada substancialmente inibida ao invs de ampliada (LYNCH,
KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SALONEN, 1996).
Est sobejamente provada a relao entre nveis socioecon-
micos e fatores de risco para diversas doenas, notadamente car-
diovasculares, em face de estressores (LYNCH, KAPLAN, COHEN,
TUOMILEHTO e SALONEN, 1996). Estudos clssicos de Whitehall,
citados por Marmot, Smith, Stansfeld, Patel, North, Head, White,
Brunner e Feeney (1991), com funcionrios pblicos na Inglaterra
haviam demonstrado aumento da morbidade e mortalidade do mais
baixo ao mais alto posto de uma escala de seis graus da administra-
o pblica. Uma nova coorte, compreendendo 10.314 funcionrios
pblicos (6900 homens, 3414 mulheres) foi estudada por Marmot
e seus colaboradores, confi rmando que nos 20 anos que separam os
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36 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
dois estudos no foi observada nenhuma diminuio na diferena de
morbidade entre as classes sociais em relao ao estudo anterior. A
hipertenso arterial foi um indicador sensvel de estresse no traba-
lho, bem como as concentraes de fi brinognio plasmtico. Salien-
tam ainda estes autores que durante o colapso social na Rssia, que
se seguiu derrocada do regime socialista, as doenas cardiovascu-
lares contriburam para 40% da taxa de mortalidade entre as pessoas
da populao geral deste pas.
O que mais parece contar quantitativamente para o estresse
a insatisfao com o exerccio profi ssional. A propsito deste aspec-
to, Zuger (2004) assinala que resultados de pesquisas sugerem que
o nvel de satisfao profi ssional diminuiu substancialmente entre os
mdicos estadunidenses durante as ltimas dcadas. Revela ainda
que, em 1973, menos que 15% de milhares de mdicos em atividade
mencionaram alguma dvida de que tivessem escolhido a profi sso
correta. Em contraste, pesquisas nos ltimos 10 anos mostraram que
30 a 40 por cento dos mdicos praticantes no escolheriam a pro-
fi sso mdica se tivessem que decidir novamente, sendo que uma
porcentagem inclusive mais alta no encorajaria seus fi lhos a seguir
a carreira mdica. Em outra pesquisa, 40% dos mdicos afi rmaram
que no recomendariam a profi sso a estudantes qualifi cados para
curso superior. Relata a mesma fonte que mdicos de Massachusetts
revelaram descontentamento com virtualmente todos os aspectos da
prtica mdica, incluindo renda, carga de trabalho e tempo consumi-
do na realizao das atividades.
Fatores acessrios que contribuem para produzir situaes
geradoras de insatisfao so as denncias de erro mdico, sempre
excessivas e, muitas vezes, exploradas pela imprensa de forma sen-
sacionalista. So potencialmente tambm preponderantes o nmero
excessivo de Faculdades de Medicina e, conseqentemente, de m-
dicos; as questes trabalhistas relacionadas ao Programa Sade da
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37A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
Famlia, fonte de emprego com melhor remunerao no setor pblico
atualmente, mas absolutamente insatisfatrio em relao aos direi-
tos dos profi ssionais; a explorao indevida do trabalho mdico por
Planos de Sade; e as cooperativas mdicas que distribuem mal sua
arrecadao, com ntido privilgio de empresas mdicas. Parece evi-
dente que as diferenas individuais (vinculadas a fatores genticos,
desenvolvimento e experincia) (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMI-
LEHTO e SALONEN, 1996) explicam a maior ou menor expressi-
vidade da ao mrbida desses estressores. No entanto, isso nada
justifi ca, at porque essas diferenas individuais so irrelevantes no
contexto geral e no h como determinar antecipadamente quem
mais ou menos resistente ao estresse.
Em resumo, o estresse representa o resultado de um
processo de adoecimento, resultado de mltiplos fatores adversos
com os quais as pessoas, repetidamente, precisam de se deparar.
No se restringe a uma rea especfi ca da vida nem se limita a uma
atividade profi ssional especfi ca. Portanto, trata-se de uma entidade
mrbida que emana um conjunto de respostas fi siolgicas, afetivas
e comportamentais que visam restabelecer a homeostase do corpo
enfermo. Um construto correlato a este, mas que tem relao direta
com o trabalho o burnout, abordado a seguir.
O burnout compreendido consensualmente mais como
uma resposta ao estresse laboral crnico, quando as estratgias de
enfrentamento falham em manej-lo satisfatoriamente. Neste senti-
do, fundamental ter clara a sua singularidade e diferena em rela-
o a outros construtos. De acordo com Menegaz (2004), o burnout
tem sempre um carter negativo, enquanto o estresse, por exemplo,
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38 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
pode ser negativo (implica perdas ou acarreta ameaas ao organis-
mo, denominado distress) e mesmo positivo (possibilita o crescimen-
to, prazer e desenvolvimento emocional e intelectual, chamado eus-
tress). Schaufeli e Enzmann (1998) procuram diferenciar o burnout
do estresse ocupacional, indicando que enquanto este resulta de um
confronto entre as demandas do trabalho e os recursos adaptativos
da pessoa e tende a ser unidimensional, reunindo um padro con-
sistente de respostas especfi cas, aquele, necessariamente, sugere a
existncia de um colapso neste processo de adaptao e compreende
um construto multidimensional. Sobre este aspecto, por exemplo,
a concepo de burnout introduz uma dimenso claramente nova,
nunca antes vista nos estudos sobre estresse: a despersonalizao
(TAMAYO, 2002).
O burnout, segundo Schaufeli e Enzmann (1998), tam-
bm se diferencia da Sndrome de Fadiga Crnica. Esta mais difu-
sa, no estando relacionada com qualquer esfera especfi ca da vida
do indivduo e apresenta sintomas fsicos, imunolgicos, hormonais,
gastrointestinais e neurolgicos. Por outro lado, o burnout, sua ex-
presso, tipicamente manifesta por meio de sintomas psicolgicos,
estando estreitamente relacionado com o trabalho. Destaca-se, ain-
da, a dimenso social do burnout, correspondendo ao tipo de ativi-
dade laboral do indivduo, sua relao com aqueles com os quais tm
que trabalhar no seu dia-a-dia (BENEVIDES-PEREIRA, 2002). No
se pode igualmente confundir o burnout com a depresso. Enquan-
to algum que experimenta o burnout percebe o seu trabalho como
promotor desta sensao, apresentando sentimentos de desaponta-
mento e tristeza dirigidos ao contexto laboral, aquele com depresso
pode no responsabilizar o trabalho especifi camente, e o sentimento
geralmente vivenciado de derrota, com uma submisso letargia
(MENEGAZ, 2004).
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39A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
O burnout, embora no faa parte da nosografi a mdica,
um construto legtimo e promissor, permitindo apreender as con-
seqncias do trabalho no mbito da sade mental dos profi ssionais.
Este permite atestar as conseqncias de um trabalho desgastante
no sentido amplo, no se atendo s precrias condies de trabalho
por si, mas considera igualmente as relaes entre as pessoas e a
possibilidade de desenvolver o potencial profi ssional de cada um.
No pode, pois, ser confundido com o estresse crnico, o estresse
ocupacional ou a depresso. Tem sido particularmente apropriado
para refl etir o contexto estafante do trabalho daqueles que atuam no
campo dos servios humanos, cuja ocupao requer um relaciona-
mento freqente, intenso e direto com chefes, subordinados e com
aquelas pessoas que so alvo principal do seu mister. Estas, comu-
mente, passam por algum tipo de problema que demanda a assis-
tncia e o cuidado intenso destes profi ssionais. Os mdicos parecem
incluir-se perfeitamente neste quadro de referncia, originalmente
descrito por Maslach nos anos 1970 (ver tambm MENEGAZ, 2004;
TAMAYO, 2002).
Quanto natureza multidimensional deste construto,
evidenciada previamente, h consenso de que se compe de trs
dimenses ou fatores principais, a saber (BENEVIDES-PEREIRA,
2002; MENEGAZ, 2004; SCHAUFELI e ENZMANN, 1998; TAMAYO,
2002):
Exausto emocional. Esta , provavelmente, uma primei-
ra reao ao estresse causado pelas exigncias do trabalho ou por
alteraes acentuadas que venham a comprometer a dinmica de
trabalho do profi ssional. Tambm constitui sua dimenso mais ntida
(TAMAYO, 2002), aproximando-se dos conceitos de falta de vitalida-
de (RYAN e FREDERICK, 1997). Uma vez exaustos, os trabalhado-
res tendem a sentirem-se sobrecarregados fsica e emocionalmente,
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40 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
mesmo quando acordam pela manh. A idia de esgotamento ou
exausto da energia e dos recursos emocionais dos trabalhadores.
Despersonalizao. Como meio de enfrentar a exausto
emocional e os problemas que podem ser correlatos, os trabalha-
dores passam a apresentar comportamentos negativos, a exemplo
de tratar os demais depreciativamente, ter reaes distantes e frias
em relao ao trabalho, ao seu contexto e aos colegas com quem
deveriam conviver harmoniosamente, chegando inclusive a desistir
de suas idias e seus ideais, passando as vezes a ocupar diretamente
cargos burocrticos, evitando o contato com os demais que deman-
dam seu servio e sua ateno. O ceticismo parece tomar conta do
esprito destes profi ssionais e passa a ser caracterstico o contato ir-
nico com aqueles que precisam atender.
Realizao pessoal. Diz respeito ao aspecto de auto-ava-
liao do burnout, estando associada ao sentimento de incompetn-
cia e percepo de um desempenho insatisfatrio no trabalho. O
profi ssional perde a confi ana na prpria capacidade de desenvolver
o seu trabalho e, medida que isso ocorre, produz desconfi ana nos
seus colegas e nas pessoas que de seus servios dependem.
No geral, o burnout tem mais em comum com carac-
tersticas do ambiente de trabalho do que com fatores individuais,
sendo mais freqente relacion-lo com percepes ou atitudes frente
a aspectos das organizaes (TAMAYO, 2002). A este respeito tem
sido observado, por exemplo, que a menor percepo de valores de
autonomia na empresa produz maior exausto emocional, enquanto
a percepo de valores de conservao promove a realizao pessoal
(TAMAYO, 1997). Tambm existem evidncias de que o comprome-
timento organizacional se correlaciona inversamente com os fatores
de burnout (BARBOSA, 2001). Tamayo (2002) tomou cada um dos
seus fatores como varivel critrio, demonstrando que aquelas vari-
veis antecedentes de cunho demogrfi co (por exemplo, sexo, idade,
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41A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
escolaridade) nada tm a ver com esta sndrome. Por outro lado,
encontrou que a sobrecarga de trabalho potencializa a exausto emo-
cional e a desumanizao (despersonalizao), enquanto os suportes
social e material no trabalho tendem a inibi-las.
Em Benevides-Pereira (2002) possvel encontrar uma
lista ampla de sintomas prprios daqueles que apresentam burnout,
podendo ser enquadrados nas trs seguintes categoriais (ver tambm
MENEGAZ, 2004):
Fsicos. Incluem-se nesta categoria sintomas de natureza
orgnica e/ou fi siolgica, como distrbios do sono, dores musculares
ou osteomusculares, cefalias, enxaquecas, perturbaes gastrointes-
tinais, imunodefi cincia, transtornos cardiovasculares, distrbios do
sistema respiratrio ou disfunes sexuais.
Psiquitricos. Denominados de psicolgicos, incluem os
sintomas que dizem respeito aos sentimentos, s emoes e aos atri-
butos cognitivos, a exemplo da falta de ateno e concentrao, alte-
raes da memria, sentimento de alienao, sentimento de solido,
impacincia, baixa auto-estima, desnimo, depresso, desconfi ana
e parania.
Comportamentais. Compreendem aqueles sintomas que
expressam condutas e/ou demandam aes especfi cas. No caso, po-
dem ser verifi cados os sintomas de aumento da agressividade, a in-
capacidade de relaxar, a perda de iniciativa, o aumento do consumo
de substncias psicotrpicas, o suicdio, os comportamentos de risco
e a irritabilidade.
Como se percebe, apesar de no estar inserido em ma-
nuais ou classifi caes de doenas, o burnout tem implicaes org-
nicas e psiquitricas evidentes. No se constitui, portanto, em uma
inveno acadmica, mas um problema grave que acomete diversos
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42 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
profi ssionais cujas prticas se pautam no contato com pessoas (por
exemplo, enfermeiros, fi sioterapeutas, mdicos, policiais, professo-
res, psiclogos) (AMORIM, 2002; BENEVIDES-PEREIRA e MORE-
NO-JOMNEZ, 2002; CARLOTTO, 2002; TAMAYO, 2002; VALDIVIA
e MNDEZ, 2004). A propsito, os nomes recebidos por esta sndro-
me so bastante reveladores no mbito da Medicina: Sndrome do
Assistente Desassistido e Sndrome do Cuidador Descuidado (BENEVI-
DES-PEREIRA, 2002). Neste sentido, o trabalho mdico parece ser a
prpria essncia do burnout, com fatos especfi cos que o tornam uma
realidade evidente: sobrecarga de trabalho, falta de reconhecimento
da atividade profi ssional, escasso controle do ambiente de trabalho,
ambigidade e incerteza do papel profi ssional, falta de preparo para
lidar com as demandas emocionais de pacientes, falta de autonomia,
contato com os pacientes e a gravidade de seus quadros (SCHAU-
FELI, 1999; TAMAYO, ARGOLO e BORGES, 2005). Seguramente o
leitor reconhece estes elementos como presentes na prtica mdica.
Benevides-Pereira (2002) descreve pesquisa em que os
estudantes de Medicina apresentam limitaes em manter uma vida
social adequada j no primeiro ano de curso (por exemplo, escassos
amigos, falta de oportunidade de lazer) e apresentam sintomas psi-
cossomticos (por exemplo, depresso, ansiedade), problemas que
so duplicados no terceiro ano. Em sua reviso, ela constata que es-
tes estudantes, no transcurso de sua carreira acadmica, aumentam
o uso de substncias psicotrpicas, especialmente de tranqilizantes,
bem como ressalta a elevada incidncia de suicdio, com ndice su-
perior ao da populao geral. Quanto aos mdicos, Tamayo, Argolo
e Borges (2005) observaram que, no Rio Grande do Norte, estes fo-
ram, entre os profi ssionais da Sade (incluram-se tambm enfer-
meiros, assistentes sociais, nutricionistas, auxiliares de enfermagem,
odontlogos e psiclogos), os que apresentaram maior pontuao
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43A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
em despersonalizao, defi nido como uma atitude fria e distante em
relao ao trabalho e s pessoas nele presentes.
Em resumo, embora o burnout no possa ser confundi-
do com estresse, fadiga ou depresso, guarda estreita relao com
estes construtos e, seguramente, poder desencadear seus sintomas
ou mesmo a ideao suicida naqueles que o vivenciam. Estes ltimos
construtos so a seguir considerados, de modo que se confi gure o
marco de referncia a partir do qual se procura compreender a reali-
dade da sade dos mdicos no Brasil.
Embora compreendam construtos com legitimidade, ca-
bendo trat-los separadamente, reconhece-se aqui que podem per-
tencer a um mesmo quadro de sintomatologia psiquitrica. Como
fi cou evidenciado, os trs podem ter potencialmente a mesma ori-
gem, correspondendo ao estresse vivenciado no trabalho mdico,
estando claramente relacionados entre si. Por exemplo, o estresse
agudo pode-se manifestar por meio da fadiga, e esta pode resultar
em uma sintomatologia depressiva (ANDREA, KANT, BEURSKENS,
MESEMAKERS e VAN SCHAYCK, 2003; BLTMANN, KANT, KASL,
BEURSKENS e VAN DEN BRANDT, 2002). Esta, por sua vez, pode
levar a ideaes suicidas e mesmo prtica do suicdio (LEVINE e
BRYANT, 2000). Cabe, entretanto, com o fi m de tornar mais direta
a compreenso do leitor, defi ni-los, segundo a perspectiva adotada
neste livro.
Apesar de ser uma palavra amplamente difundida e re-
conhecida, a fadiga considerada de difcil defi nio. Por exemplo,
enquanto alguns procuram identifi car a fonte da fatiga, outros pre-
ferem pens-la desde uma viso comportamental, tratando-a em ter-
mos de diminuio de performance (ver CHALDER, BERELOWITZ,
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44 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
PAELIKOWSKA, WATTS, WESSELY, WRIGHT e WALLACE, 1993). As
discusses sobre este aspecto da defi nio consideram se a fadiga
uma entidade discreta (Sndrome de Fadiga Crnica), um conjunto
de sintomas de origem desconhecida ou uma forma especfi ca de de-
sordem psiquitrica (KANT, BLTMANN, SCHRRER, BEURSKENS,
VAN AMELSVOORT e SWAEN, 2003). No presente livro, assume-se a
perspectiva de que a fadiga um desconforto generalizado, melhor
entendido como uma sensao subjetiva negativa com componentes
comportamental, cognitivo e emocional. Ela implica um sentimento
de cansao, desprazer pelas atividades que esto sendo realizadas e
relutncia em seguir fazendo a tarefa; um fenmeno psicofi siol-
gico geral que diminui a habilidade do indivduo para realizar uma
tarefa particular por alternar seu estado de alerta e viglia, bem como
sua motivao (DE VRIES, MICHIELSEN e VAN KECK, 2003).
De acordo com Andrea, Kant, Beurskens, Mesemakers
e van Schayck (2003), a fadiga pode ter vrias conseqncias de-
sastrosas, tanto para o empregador (por exemplo, custos devidos
perda de produtividade) como para o empregado (por exemplo,
reduo dos rendimentos, isolamento social). Na populao geral,
comentam estes autores, a fadiga est relacionada no apenas com
uma rea ampla de condies somticas, mas tambm com proble-
mas de sade mental, especialmente na forma de depresso e/ou
ansiedade. Isso se aplica tambm populao de trabalhadores. Por
sinal, comentam Jansen, van Amelsvoort, Kristensen, van den Brandt
e Kant (2003) que a fadiga infl uenciada por diversas caractersti-
cas do trabalho, como demandas psicolgicas, emocionais e fsicas
dele resultantes. Acrescentam-se ainda a ambigidade de papis, o
apoio social dos colegas de trabalho e os confl itos com os superiores,
as horas de trabalho, as oportunidades de ascenso, a insegurana
no trabalho, a satisfao que este proporciona e a prpria cultura
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45A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
organizacional (KANT, BLTMANN, SCHRER, BEURSKENS, VAN
AMELSVOORT e SWAEN, 2003).
Estima-se que 20% dos trabalhadores relatam sinto-
mas que poderiam ser includos sob o conceito de fadiga. No entan-
to, dependendo dos instrumentos usados e do ponto de corte (cut
off) assumido, as taxas de prevalncia podem estar no intervalo de
7% a 45% dos trabalhadores acometidos por esta sintomatologia
(DE VRIES, MICHIELSEN e VAN KECH, 2003; KANT, BLTMANN,
SCHRRER, BEURSKENS, VAN AMELSVOORT e SWAEN, 2003; Van
DIJK e SWAEN, 2003). Portanto, parece bastante pertinente consi-
der-la no momento de tentar compreender a sade dos mdicos,
sobretudo quando pensada a partir do seu contexto laboral.
Distrbios psiquitricos uma expresso muito geral
para se referir a uma sintomatologia que engloba ansiedade e de-
presso. Na literatura, por vezes, tem sido referido como distress ou
desconforto psicolgico o conjunto destes sintomas (CANO, SPRA-
FKIN, SCATURO, LANTINGA, FIESE e BRAND, 2001; MONTAZERI,
BARADARAN, OMIDVARI, AZIN, EBADI, GARMAROUDI, HARIRCHI
e SHARIATI, 2005). Na Austrlia as taxas de pacientes que procuram
ateno bsica em Sade com sintomas de ansiedade e depresso
variam de 6,6% a 36%, dependendo dos critrios adotados para de-
fi nio de um caso (COMINO, SILOVE, MANICAVASAGAR e HARRIS,
2001). A depresso, especifi camente, com ou sem ansiedade, a for-
ma mais prevalente de distrbios psiquitricos em ateno bsica
Sade (THOMPSON, OSTLER, PEVELER, BAKER e KINMONTH,
2001), sendo a segunda maior causa de incapacitao no mundo
(GILBODY, WHITTY, GRIMSHAW e THOMAS, 2003).
No fcil diferenciar a ansiedade da depresso, haja
vista que os sintomas de ambos costumam aparecer concomitan-
temente em muitos quadros clnicos (AGUDELO, BUELA-CASAL e
SPIELBERGER, 2007). Contudo, pode-se empreender um esforo
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46 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
por tentar diferenci-los. De acordo com Del Porto (1999), a carac-
terstica mais tpica da depresso a proeminncia dos sentimentos
de tristeza e vazio. Muitos indivduos com depresso relatam igual-
mente a perda da capacidade de experimentar prazer nas atividades
em geral, mas tambm descrevem um retardo psicomotor. Este autor
sugere que se tenha em conta diferentes aspectos para sua conceitu-
ao e seu diagnstico, como o humor (sensao de tristeza, auto-
desvalorizao e sentimentos de culpa), o fi siolgico (perda de sono,
perda do apetite) e o comportamental (retraimento social, crises de
choro, comportamento suicida, agitao). Por outro lado, segundo
Sierra (2003), a ansiedade relaciona-se com a antecipao de peri-
gos futuros, indefensveis e imprevisveis; esto presentes sensaes
de apreenso, irritabilidade e tenso.
Apesar das diferenciaes entre os construtos ansiedade e de-
presso, opta-se no presente livro por consider-los indistintamente,
adotando a prtica comum de conceb-los como distrbios psiqui-
tricos generalizados. Segundo Tillett (2003), estes tm acometido,
principalmente, profi ssionais da rea de Sade, comprometendo
28% deles, comparando-se com os 18% de outros profi ssionais ou os
30% de pessoas desempregadas. Acrescenta este mesmo autor que
um dos grupos profi ssionais mais estudados tm sido os mdicos, os
quais apresentam um aumento na taxa de divrcio, suicdio e, inclu-
sive, uso de drogas psicoativas (ver tambm AMERICAN MEDICAL
ASSOCIATION, 1995). Por certo, este um tema que tem preocupa-
do os pesquisadores interessados em conhecer a sade dos mdicos,
sobretudo em razo do crescente aumento da taxa de suicdio entre
estes profi ssionais quando comparados com as pessoas da populao
em geral (HAWTON, CLEMENTS, SAKAROVITCH, SIMKIN e DEEKS,
2001). Frank e Dingle (1999) relatam que o suicdio explica cerca de
35% das mortes prematuras dos mdicos nos Estados Unidos; na Fin-
lndia de 22,1% (homens) a 25,9% (mulheres) dos mdicos contam
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47A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
com um histrico de tentativa ou ideao suicida (OLKINUORA, ASP,
JUNTUNEN, KAUTTU, STRID e AARIMAA, 1990).
Os dados previamente informados so preocupantes. Contu-
do, reconhecem-se tambm as limitaes dos dados disponveis (por
exemplo, impreciso dos atestados de bito, a difi culdade em dife-
renciar o suicdio de um mero acidente ou o desejo da famlia de
mascarar o ato suicida; LEVINE e BRYANT, 2000). Neste contexto,
em se tratando de traar um perfi l da sade dos mdicos que exer-
cem atualmente a Medicina no Brasil, parece mais favorvel falar em
ideao ou pensamento suicida. Isso permitir estimar o potencial
risco de os mdicos virem a apresentar comportamentos suicidas.
A ideao suicida diz respeito a pensamentos, idias, plane-
jamento ou desejo de se matar (OSMAN, BARRIOS, GUTIERREZ,
WRANGHAM, KOPPER, TRUELOVE e LINDEN, 2002; WERLANG,
BORGES e FENSTERSEIFER, 2005). Embora no seja o mesmo que
o ato suicida, considerado o extremo desta sintomatologia psiqui-
trica, considera-se fundamental o estudo da ideao suicida, pois
esta um dos preditores para o risco de suicdio, podendo, inclusive,
ser o primeiro passo para a sua consumao (WERLANG, BORGES
e FENSTERSEIFER, 2005). Tradicionalmente, tm sido considerados
unicamente os fatores de risco da ideao suicida, isto , a ideao
negativa, o pensamento de cometer o ato em si; porm, comea a
ser evidente a necessidade de se ter em conta igualmente os fatores
de proteo ou propriamente a ideao positiva (OSMAN, BARRIOS,
GUTIERREZ, WRANGHAM, KOPPER, TRUELOVE e LINDEN, 2002;
OSMAN, GUTIERREZ, JIANDANI, KOPPER, BARRIOS, LINDEN e
TRUELOVE, 2003). Esta ltima dimenso diz respeito a elementos
que tornam menos provvel que a pessoa venha a cometer suicdio,
acentuando sua esperana, seu entusiasmo e seu controle em relao
aos eventos de sua vida. Esta a perspectiva adotada neste livro.
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48 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Em resumo, o conjunto destes trs construtos oferece uma vi-
so sobre a sade (enfermidade) mental dos mdicos. Claramente,
no podem ser tidos como elementos estanques, sem qualquer cone-
xo uns com os outros; so antes complementares, servindo como
potenciais indicadores de como pode estar a sade destes profi ssio-
nais.
Este captulo oferece, pois, uma viso geral que permite as-
sociar o bem-estar subjetivo ou propriamente a sade mental dos
mdicos com o seu contexto laboral. Embora seja difcil apreender
as conseqncias nefastas do mercado de trabalho e da profi sso
mdica, o construto burnout, mesmo no sendo ainda uma nosologia
mdica, oferece elementos substanciais a partir dos quais se pode es-
timar o desgaste profi ssional. Este, por seu lado, pode-se refl etir nos
distrbios psiquitricos antes descritos, possibilitando mapear a situ-
ao verdadeira da sade dos que promovem a sade da populao.
Oportunamente, este tema ser retomado neste livro, oferecendo re-
sultados concretos da situao destes profi ssionais no Brasil.
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Genrio Alves BarbosaMunir MassudMauro Brando Carneiro
DO E N A S OR G N I C A S E US O D E ME D I C A M E N T O S
CA
PT
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50 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Contrariando o imaginrio popular, os mdicos no so insus-
ceptveis s doenas prevalentes na populao em geral. Necessitam,
como todos, de cuidados de sade, prtica de exerccios fsicos, ali-
mentao adequada, sono sufi ciente, enfi m, realizar em si tudo o
que preconizam para seus pacientes. No entanto, nem sempre con-
seguem tais intentos em virtude das condies muitas vezes adver-
sas no exerccio da profi sso. O desgaste resultante de jornadas de
trabalho exaustivas no raro leva-os a negligenciar a preservao de
sua sade e pode levar ao adoecimento em propores at mesmo
superiores s das pessoas a quem prestam assistncia. Suas atitudes
diante de sinais ou sintomas de enfermidades costumam ser, em ge-
ral, como as das pessoas em geral, recorrendo ao descanso, auto-
medicao, consulta informal com algum amigo mdico ou mesmo
buscando ajuda especializada em consultrio (FORSYTHE, CALNAN
e WALL, 1999).
importante ressaltar como tais fatores esto relacionados. A
negligncia com a sade, levando-se em conta todo o conhecimen-
to que o mdico tem a respeito das conseqncias dela resultantes,
pode estar subordinada s condies precrias existentes para exer-
cer o seu ofcio, sejam tais condies de natureza salarial, por traba-
lho excessivo (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), ou mesmo devido
defi cincia material (por exemplo, escassez de exames, leitos, medi-
camentos) para atender adequadamente seus pacientes.
Embora no menos importantes do que as doenas de nature-
za orgnica, os problemas da sade dos mdicos tm sido discutidos,
principalmente, em relao ao abuso de substncias psicoativas e
aos distrbios psiquitricos, embora se reconhea que contar com
um histrico de uma doena particular pode afetar a prtica clnica
destes profi ssionais (TYRY, RSNEN, KUJALA, RIMAA, JUN-
TUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI, SEURI e HUS-
MAN, 2000). Contudo, as implicaes principais podem ser aprecia-
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51A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
das, sobretudo, em relao ao seu bem-estar geral e o nus de no
poder acudir ao trabalho com regularidade. Lembrando, ao menos
no Brasil, grande o quantitativo dos que so autnomos, atuando
em consultrios prprios (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004; MACHA-
DO, 1996).
Em um estudo realizado na Finlndia com uma amostra alea-
tria de 3.313 mdicos com at 66 anos (TYRY, RSNEN, KUJALA,
RIMAA, JUNTUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI,
SEURI e HUSMAN, 2000), procurou-se conhecer a prevalncia de
doenas relatadas por estes profi ssionais. Observaram-se como mais
comuns as sete seguintes doenas / sintomatologias (a primeira por-
centagem refere-se aos homens e a segunda, s mulheres): dores
lombares (21,6%; 18,2%), doenas do aparelho digestivo (18,9%;
15,8%), eczema crnico (14,3%; 14%), hipertenso (14%; 7,8%),
distrbios mentais (6,2%; 7,8%), artrose (6,9%; 5%) e asma (5%;
6,3%). Em cinco destes quadros (hipertenso, distrbios mentais,
eczema crnico, doenas do aparelho digestivo e dores lombares), os
mdicos apresentam prevalncia superior aos trabalhadores empre-
gados da populao geral, tanto quando so comparados os homens
como as mulheres.
Apesar de ser bastante informativa, no h certeza de que a
pesquisa previamente citada tenha tomado como referncia o diag-
nstico por outro especialista da doena mencionada. Portanto,
pode-se tratar de um autodiagnstico. Alm disso, nenhuma refe-
rncia foi feita CID-10 (Classifi cao Estatstica Internacional de
Doenas e Problemas Relacionados Sade, verso 10). Isso poderia
tornar os resultados mais consistentes, permitindo compar-los com
os de outros pases. Tendo em conta estas consideraes, decidiu-se,
neste livro, adotar a CID-10 como referncia, considerando unica-
mente aquelas doenas que tenham sido diagnosticadas por outro
especialista, como fi car evidente mais adiante. Em geral, poder-
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52 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
se-ia afi rmar que as enfermidades que mais acometem os mdicos
so as mesmas que vitimam a populao, ainda que com algumas
diferenas na prevalncia em funo das especifi cidades que carac-
terizam o trabalho mdico (TYRY, RSNEN, KUJALA, RIMAA,
JUNTUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI, SEURI e
HUSMAN, 2000). importante registrar algumas delas, notadamen-
te, as de maior incidncia e as eventuais repercusses que possam ter
sobre a sade do mdico.
so muito comuns
no Brasil e corresponderam a 8,5% da morbidade hospitalar do SUS,
com predominncia entre os nordestinos (MINISTRIO DA SADE,
2006). H grande variedade destas enfermidades, algumas delas fa-
cilitadas por hbitos inadequados, comportamentos de risco, estresse
permanente, trabalho em ambientes insalubres, acidentes ocupacio-
nais; outras podem resultar de acontecimentos circunstancialmente
inevitveis e, em tal contexto, os mdicos esto envolvidos, pagando
elevado tributo. O contato direto com doentes portadores de doenas
infecciosas transmissveis, associado necessidade de trabalhos ml-
tiplos e estafantes, aumenta o risco destes agravos entre os mdicos,
fato que constitui um trusmo, notadamente para as infeces virais
do trato respiratrio.
na populao geral (MINIS-
TRIO DA SADE, 2006) corresponderam a 5,6% entre os diversos
grupos de doenas consideradas e constituem a segunda causa de
morte no Brasil (MINISTRIO DA SADE, 2004a), correspondendo
a 15,2%. A mortalidade por cncer maior nas Regies mais desen-
volvidas, tendo a regio Sul como lder (18,8%), de acordo com a
mesma fonte.
Muitas neoplasias so prevenveis em alguma medida, e o co-
nhecimento sobre a etiopatogenia desse grupo de enfermidades pode
explicar a eventual discrepncia de acometimento de mdicos em re-
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53A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
lao populao geral. Presumivelmente, as mortes decorrentes de
neoplasias do colo do tero, por exemplo, perfeitamente prevenveis,
devem ser muito raras ou inexistentes entre a populao mdica fe-
minina, mas ainda signifi cativa na populao geral (18,2% no grupo
etrio feminino de 30 a 49 anos; MINISTRIO DA SADE, 2004a).
upavam o 8
lugar entre as dez principais causas de morte no Brasil em 1980,
passando para o 6 lugar em 2000 (Ministrio da Sade, 2004a). A
mortalidade por estas doenas foi aproximadamente equivalente nas
diversas Regies do Pas em 2001, variando de 5,1 a 5,8%, exceto
para a regio Nordeste, com 7,3%. Este ltimo dado pode estar mui-
to mais relacionado carncia de assistncia mdica e ao tratamento
adequados do que a uma prevalncia mais elevada.
O diabetes pertence a este grupo de doenas. Os mdicos, ape-
sar do conhecimento que ostentam da doena, so vulnerveis ao
seu descontrole. O controle glicmico, tpico central no manejo do
diabetes, efetivado pelo cumprimento de metas glicmicas que esto
associadas reduo do risco de complicaes, muito prejudica-
do pelo estresse, pelos mltiplos plantes em localidades diversas,
por refeies inadequadas. A resposta adaptativa ao estresse afeta
de maneira direta e contundente a glicemia e tanto mais em diab-
ticos. Empregos mltiplos interferem com a terapia no-farmacol-
gica dessa enfermidade, difi cultando o controle de peso, os exerc-
cios regulares e um controle mais adequado da presso arterial. Os
ambientes de trabalho nos mais diversos rinces deste pas nem de
longe oferecem alimentao adequada e muito menos condizente
com as necessidades individuais dos plantonistas, que so correntes
no Brasil (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004).
da a sua prevalncia signifi cativa entre os
mdicos. Os dados do SUS tratam da morbidade hospitalar e, por-
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54 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
tanto, no se prestam comparao nessas circunstncias, pois que
se referem a condies excepcionalmente graves para carecerem de
internao (2,5%). No entanto, de acordo com Ballone (2000), um
consrcio internacional da OMS para a epidemiologia psiquitrica
estudou dados relativos a 30.000 pessoas de sete pases: Alemanha,
Brasil, Canad, Estados Unidos, Holanda, Mxico e Turquia. Os pes-
quisadores constataram que 48% das pessoas estudadas nos Estados
Unidos sofreram pelo menos uma doena mental durante sua vida.
A taxa passa a ser de 40% na Holanda, 38% na Alemanha, 37% no
Canad, 36% no Brasil, 20% no Mxico e 12% na Turquia. A depres-
so constitui um problema comum sempre que se realizam estudos
de prevalncia em todos os pases e, no Brasil, estima-se que sua
prevalncia varie de 3 a 12% na populao geral, sendo mais comum
em mulheres (FLECK, 2005).
incluem a asma como doena
crnica comum na populao geral. A asma enfermidade infl ama-
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55A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
tria com presumvel participao gentica em sua gnese e uma
das doenas crnicas mais freqentes em qualquer faixa etria. De
acordo com o Ministrio da Sade (2006), ocorrem anualmente 350
mil internaes por asma, com gastos que excedem aqueles do dia-
betes e da hipertenso arterial. Seu controle exige o uso regular de
medicamentos preventivos e de certo controle ambiental de aeroa-
lrgenos, nem sempre possvel em ambientes de trabalho do mdico
plantonista brasileiro. A asma pode ser agravada por infeces res-
piratrias agudas, s quais os mdicos esto comumente expostos, e
por fatores estressantes, igualmente comuns na atividade mdica. A
rinite alrgica, associada ou no asma (atopia), enfermidade de
prevalncia elevada na populao geral.
Adoecer deveria obrigar o indivduo a recorrer a auxlio m-
dico para o diagnstico correto de sua enfermidade e tratamento
adequado. O mdico o nico profi ssional qualifi cado para diagnos-
ticar e tratar uma doena. Mas, e quando o prprio mdico adoece?
Estando o Brasil entre os primeiros pases do mundo em automedi-
cao, imagina-se que o mdico faa seu prprio diagnstico e ins-
titua seu tratamento, por sua conta e risco. No bem assim. Neste
livro, procurar-se- no captulo correspondente saber acerca do uso
de medicamentos pelos mdicos entrevistados, mas que tenham sido
prescritos por outro mdico. Se verdade que muitos praticam in-
devidamente o autocuidado, tambm o a prevalncia do bom-
senso. Ter humildade para procurar ajuda no sinal de fraqueza ou
incompetncia, mas simplesmente buscar o melhor para si, reconhe-
cendo ademais o carter cientfi co do seu mister e a pertinncia das
diversas especialidades.
A automedicao condenvel, pois alm dos riscos inerentes
ao uso incorreto de um medicamento, muitas vezes txico e com
efeitos colaterais que necessitam superviso mdica, pode mascarar
ou retardar um diagnstico agravando a situao do paciente. Do
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56 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
mdico-paciente tambm se espera este compromisso. Por mais que
conhea da doena que o acomete, no prudente assumir seu caso
sem o concurso de um colega. Nem o seu, nem de pessoas de sua fa-
mlia, o que recomenda a boa prtica da Medicina. Isso porque o
mdico-doente jamais ter a iseno necessria para diagnosticar e
tratar de si mesmo ou de seus familiares mais prximos. grande o
risco do embotamento da razo pela emoo, fatalmente induzindo-
o a minimizar ou superestimar seu diagnstico.
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Munir MassudGenrio Alves BarbosaValdiney V. Gouveia
AS DR O G A S PS I C O T R P I C A S
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58 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
Inicialmente deve ser salientado que os termos droga, medi-
camento, frmaco no devem ser usados com o mesmo signifi cado,
pois no so sinnimos. De acordo com a ANVISA, em seu Gloss-
rio de Vigilncia Sanitria (MINISTRIO DA SADE, 2003), o termo
droga deve designar substncia ou matria-prima que tenha fi nali-
dade medicamentosa ou sanitria. Depois de certa manipulao, ou
de manipulaes, as drogas transmudam-se em medicamentos. En-
tende-se por frmaco a substncia qumica que o princpio ativo do
medicamento. Medicamento o produto farmacutico com fi nalida-
de profi ltica, curativa, paliativa ou para fi ns diagnsticos. No sculo
XX a palavra droga ganhou um novo signifi cado, passando a ser em-
pregada como sinnimo de txico. O verbo drogar e o seu particpio
passado, drogado, expressam, respectivamente, o uso de txicos e o
estado decorrente da ao destes (REZENDE, 2000). Psicotrpico
substncia que pode determinar dependncia fsica ou psquica e re-
lacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Conveno sobre Subs-
tncias Psicotrpicas. Na listagem apresentada no presente estudo,
incluem-se hormnios esterides (anabolizantes) que no produzem
dependncia, alm de orexgenos que produzem, em doses elevadas,
excitao associada a distrbios sensoriais.
Neste livro o termo droga utilizado como sinnimo de subs-
tncia psicoativa, pois esses termos so intercambiveis na CID-10,
correspondentes aos cdigos F10 a F19. Os termos dependncia e
abuso de frmaco tambm sero aqui utilizados. A palavra drogao,
citada por OBrien (2006), refere-se ao uso compulsivo de drogas
que corresponde ao conjunto da Sndrome de dependncia, confor-
me a defi ne o DSM-IV. Dependncia de drogas , pois, sinnimo de
drogao, o que referendado pelo celebrado dicionarista Antnio
Houaiss ao defi nir drogao como ato ou efeito de drogar (HOU-
AISS e VILLAR, 2001), que pode signifi car fazer uso de narctico,
entorpecente ou alucingeno.
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59A SADE DOS MDICOS DO BRASIL
De acordo com Rang, Dale, Ritter e Moore (2004), a dependn-
cia de drogas ou adio descreve a situao em que seu uso comum
assume uma qualidade compulsiva, com prioridade sobre as outras
necessidades. OBrien (2006) remata indicando que o conjunto de
sintomas que indica que o indivduo continua a usar a substncia,
apesar dos problemas signifi cativos que o seu consumo acarreta. Os
sintomas de tolerncia e abstinncia esto includos na lista de sinto-
mas, mas a tolerncia ou os sinais de abstinncia no so necessrios
nem sufi cientes para fi rmar o diagnstico de drogao. O termo vcio
inadequado e tende a se referir