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  • CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    Braslia DF2007

  • A sade dos mdicos no Brasil. / coordenao de Genrio Alves Barbosa et alli. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 2007.220p. ;

    ISBN 978-85-87077-13-4

    I- Conselho Federal de Medicina. II- Barbosa, Genrio Alves, coord. III- Andrade, Edson de Oliveira, coord. IV- Carneiro, Mauro Brando, coord. V- Gouveia, Valdiney Veloso, coord. 1- Mdicos Brasil. 2- Doenas profi ssionais.

  • SUMRIO

    Lista de Figuras e Tabelas.................................................................. 06Nota Sobre os Autores....................................................................... 08Apresentao....................................................................................... 11

    1. A Profi sso Mdica e o Ser Mdico........................................... 152. Bem-estar e Sade Mental........................................................ 29 2.1. O Estresse Como Processo de Adoecimento................. 32 2.2. O Burnout Como Sndrome que Acomete os Mdicos.. 37 2.3. Fadiga, Distrbios Psiquitricos e Ideao Suicida....... 433. Doenas Orgnicas e Uso de Medicamentos............................. 494. As Drogas Psicotrpicas............................................................ 575. Consideraes Metodolgicas da Pesquisa Sade do Mdico... 896. Informaes Scio-Demogrfi cas dos Mdicos........................... 103 6.1. Sexo, Faixa Etria e Cor................................................. 104 6.2. Situao Familiar........................................................... 107 6.3. Sexualidade................................................................... 112 6.4. Religiosidade................................................................. 1147. Formao Profi ssional e Mercado de Trabalho........................... 119 7.1. Formao Profi ssional.................................................... 120 7.2. Desemprego e Situao Laboral Atual........................... 125 7.3. Efetivo Exerccio da Profi sso........................................ 130 7.4. Nmero de Atividades, Jornada de Trabalho e Renda... 134 7.5. Planto, Urgncia / Emergncia e EPIs.......................... 1398. Indicadores de Sade Mental..................................................... 143 8.1. A Sndrome de Burnout Entre os Mdicos..................... 141 8.2. Sintomas Psiquitricos.................................................. 147 8.2.1. Evidncias de Ansiedade e de Depresso......... 147 8.2.2. A Sensao de Fadiga...................................... 150 8.2.3. Indcios de Ideao Suicida............................. 1539. Doenas Diagnosticadas e Medicamentos Prescritos................. 15810. Uso de Drogas Psicotrpicas................................................... 17311. O Contexto Atual da Sade dos Mdicos................................ 18312. Aes e Perspectivas de Promoo da Sade dos Mdicos...... 191

    Referncias........................................................................................ 201

  • 6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    LISTA DE FIGURAS E TABELAS

    FIGURA 1. DESCRIO DA VIA METABLICA PRINCIPAL DO ETANOL

    FIGURA 2. DESCRIO DAS VIAS QUE TRANSFORMAM O ETANOL EM

    ACETALDEDO

    FIGURA 3. DISTRIBUIO DA FADIGA ENTRE OS MDICOS PESQUI-

    SADOS

    TABELA 1. HERDABILIDADE DA DEPENDNCIA A ALGUMAS DROGAS

    TABELA 2. TEOR ALCOLICO EM FUNO DO TIPO DE BEBIDA

    TABELA 3. USO DE DROGAS PSICOTRPICAS NO BRASIL

    TABELA 4. UNIVERSO E AMOSTRA ESTIMADA PARA CADA UNIDADE

    DA FEDERAO (UF)

    TABELA 5. PARTICIPAO DOS MDICOS DE CADA UNIDADE DA FE-

    DERAO (UF)

    TABELA 6. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO SEXO, FAIXA ETRIA

    E COR

    TABELA 7. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO ESTADO CIVIL, SEPA-

    RAES, N DE FILHOS E PENSO

    TABELA 8. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO DIMINUIO DA LIBI-

    DO E SATISFAO COM A VIDA SEXUAL

    TABELA 9. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO A RELIGIO QUE

    ADOTAM E O GRAU DE RELIGIOSIDADE

    TABELA 10. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO A IES ONDE SE GRA-

    DUARAM, TEMPO DE FORMADO E ESPECIALIDADE EXERCIDA

    TABELA 11. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO DESEMPREGO, SITU-

    AO LABORAL E REGIO

    TABELA 12. MDICOS PARTICIPANTES SEGUNDO LOCAL ONDE ATU-

    AM, ATIVIDADES, CARGA HORRIA E RENDA

  • 7A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    TABELA 13. CLASSIFICAO DO BURNOUT ENTRE OS MDICOS QUE

    ATUAM NO BRASIL

    TABELA 14. DISTRBIOS PSIQUITRICOS ENTRE OS MDICOS

    TABELA 15. DISTRIBUIO DAS PONTUAES NO FATOR IDEAO

    SUICIDA NEGATIVA

    TABELA 16. DISTRIBUIO DAS PONTUAES NO FATOR IDEAO

    SUICIDA POSITIVA

    TABELA 17. MDICOS PORTADORES DE PATOLOGIAS POR GRUPOS DE

    CAUSAS CONSTANTES DA CID-10

    TABELA 18. USO DE MEDICAMENTOS SOB PRESCRIO MDICA POR

    GRUPOS DE CAUSAS DA CID-10

    TABELA 19. DEPENDNCIA ENTRE USURIOS NA POPULAO ESTA-

    DUNIDENSE

    TABELA 20. DEPENDNCIA ENTRE MDICOS BRASILEIROS USU-

    RIOS

  • 8 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

  • 9A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

  • 10 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

  • Edson de Oliveira Andrade, Presidente Conselho Federal de Medicina

    AP R E S E N T A O

  • 12 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Os mdicos clamam por ateno e respeito. H mais de uma

    dcada, o Conselho Federal de Medicina vem alertando para este

    aspecto, que pode, em si, comprometer a sade da populao. Ini-

    cialmente, apontaram-se as precrias condies de trabalho, com

    jornadas extenuantes, multiplicidade de atividades, desgaste profi s-

    sional e reduo dos salrios (MACHADO, 1996). Em pesquisa mais

    recente publicada com o ttulo O Mdico e seu Trabalho (CARNEIRO

    e GOUVEIA, 2004) , este Conselho foi ainda mais enftico, respal-

    dado por evidncias empricas sobre a realidade laboral dos mdi-

    cos que exercem o seu ofcio no Brasil. Foram realados os aspectos

    negativos anteriormente listados, agravando-se sua situao com o

    estreitamento desenfreado do mercado de trabalho que, brevemen-

    te, poder colapsar com a criao, sem precedentes, de escolas m-

    dicas por todo o pas. A qualidade do ensino discutvel, com mui-

    tas Faculdades funcionando sem oferecer condies adequadas de

    aprendizado e treinamento profi ssional, como as viabilizadas pelas

    Residncias Mdicas.

    Os mdicos padecem de estigmas e expectativas sociais. Se por

    um lado podem ser objeto de adorao e reconhecimento por aqueles

    que gozam imediatamente de seus benefcios, so cobrados a nunca

    errar e sempre fazer viver mais ou no deixar morrer ningum, como

    se estivesse ao alcance deles o prprio dom da vida. Tratado outrora

    quase como um membro da famlia, ascendentes e descendentes sa-

    biam a quem recorrer em momentos difceis, quando se mesclavam

    funes diversas, hoje realizadas por especialistas. Em caso de dor

    de barriga do neonato, acudia-se ao doutor da famlia; mas tambm

    quando no se conseguia dormir, quando o rapazinho quebrava o

    brao, se o pai cortasse o dedo ou a me deixasse de menstruar. O

    mesmo mdico concentrava mltiplas habilidades. Todos da cidade

    o conheciam e rendiam suas homenagens, fosse convidando-o para

    padrinho dos fi lhos ou agraciando-o com uma galinha de capoeira ou

  • 13A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    um cabrito bem cevado. Este doutor cada dia mais uma caricatura,

    lembrada apenas pelos mais velhos.

    Os mdicos de hoje em dia precisam viver em uma sociedade

    de pleno consumo, sendo geralmente obrigados a vender sua fora

    de trabalho a valores no condizentes com sua formao e seu pre-

    paro, que demandam cerca de 10 anos (PIMENTEL, ANDRADE e

    BARBOSA, 2004). A imensa maioria dos gestores pblicos massacra

    continuamente a categoria mdica com salrios infames, provocando

    uma evaso sem precedentes de profi ssionais do Sistema nico de

    Sade, principalmente nos grandes centros urbanos. So propositais

    as tentativas esprias de substituir o mdico por outros profi ssionais

    na assistncia aos mais carentes, enganando a populao. Os con-

    cursos pblicos no so mais atraentes, e o outrora respeitado status

    de funcionrio pblico hoje desprezado pelos mdicos recm-for-

    mados. Espremidos por Planos de Sade com afs estritamente fi -

    nanceiros, sem qualquer preocupao com a sade dos brasileiros,

    uma populao j ofegante, em que a classe mdia tem sucumbido

    s demandas de arcar com sua sade, educao e lazer, as exigncias

    de aperfeioamento contnuo e o estrangulamento do mercado de

    trabalho, estes profi ssionais j no encontram solues individuais

    ao seu alcance.

    Embora geralmente por vocao e/ou escolha pessoal, aque-

    les que se fazem mdicos almejam, alm da realizao profi ssional

    e pessoal, melhores ganhos econmicos, mas paradoxalmente so

    acreditados pela populao como ricos. Esta expectativa social cer-

    tamente infl uencia no momento de os mdicos se desdobrarem em

    mltiplas atividades e plantes, sem com isso ter a segurana de um

    descanso anual remunerado ou mesmo contar com uma aposentado-

    ria digna, como ocorre com algumas pessoas, a exemplo dos juzes

    e polticos (BENEVIDES-PEREIRA, 2002; CARNEIRO e GOUVEIA,

    2004).

  • 14 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    No preciso ir muito longe para constatar que os mdicos

    esto em situao precria. Basta observar como difcil ter que dei-

    xar sua residncia em fi nais de semana e dias festivos, no ter hora

    nem ocasies para parar de trabalhar, ver morrer pessoas que precisa

    cuidar, mas por precariedade das condies, nada poder fazer. Mas,

    qual a conseqncia deste contexto laboral adverso? Justamente por

    j ter reunido conhecimentos slidos acerca desta realidade (CAR-

    NEIRO e GOUVEIA, 2004; MACHADO, 1996), o Conselho Federal de

    Medicina, por intermdio de sua Diretoria, recomendou ao seu Cen-

    tro de Pesquisa e Documentao (CPDOC) que planejasse e levasse

    a cabo um estudo sobre como os mdicos esto sentindo e viven-

    do seu trabalho e que implicaes isso poderia ter sobre sua sade.

    Neste caso, considerou-se um conceito amplo, incluindo indicadores

    psiquitricos, diagnstico de doenas orgnicas, uso de substncias

    psicotrpicas, entre outros. Esta pesquisa detalhada aqui, permi-

    tindo que a Categoria, as Entidades de Classe e os gestores de Sade

    possam refl etir a respeito e encontrar alternativas coletivas para os

    problemas vivenciados pelos mdicos.

  • Munir MassudGenrio Alves Barbosa

    A PR O F I S S O M D I C A E O SE R M D I C O

    CA

    PT

    UL

    O 1

  • 16 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Tem-se como certo, de h muito, que a vocao para a Medici-

    na um chamado, do qual os membros no conseguem separar sua

    vida. Depreende-se desde os textos gregos oriundos de Cs e Cnide,

    reunidos na Coleo hipocrtica que, apesar de serem escolas dis-

    tintas, o comum a todos os autores e a todos os textos

    [...] seguramente esse humanismo mdico que sempre con-sidera o paciente como um indivduo com direito ao respeito e sempre ressalta as exigncias imensas que a arte de curar, tal como um sacerdcio, impe aos seus melhores curas. (SALEM, 2002, p. 20).

    No dizer de Bennett e Plum (1996, pp. 1-2), no h profi ssio-

    nais de meio expediente; tendo atendido ao chamado, fi ca-se obri-

    gado a viv-lo ou deix-lo. possvel que tal chamado venha a

    ocorrer aps a escolha inicial, com o passar do tempo, j no exerccio

    da profi sso, no encontro com o sofrimento humano e com a gran-

    deza e o privilgio de acudi-lo. Nos espritos sensveis esse chamado

    ocorrer inevitavelmente. Apercebe-se, ento, que para o profi ssional

    que se tornar mdico, signifi ca comprometer-se a passar toda a vida

    aprendendo, principalmente porque a Medicina avana de modo no-

    tvel e, para alm desse domnio intelectivo, o exerccio da profi sso

    reclama com veemncia o concurso de atributos excepcionais do ca-

    rter. No sendo assim, no existe autntica Medicina, seno o mero

    exerccio de uma tcnica que nunca guardada na memria nem

    no corao de qualquer paciente ou de seu praticante que, quando

    muito, no passa de um curandeiro tecnolgico.

    Desta forma, sendo a Medicina moderna uma profi sso fun-

    dada nas cincias genunas, devem ser os mdicos treinados como

    cientistas, no apenas para poderem exercer corretamente seu ofcio,

    mas para diferenci-lo de outras prticas oriundas de mera imagina-

    o e que esto a afrontar o saber validado pelo mtodo cientfi co,

  • 17A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    carrasco e implacvel, porm sistemtico, objetivo e pautado em evi-

    dncias empricas refutveis (POPPER, 1974). Quando se diz que a

    Medicina uma arte, equivale a dizer:

    [...] a existncia de uma tcnica adquirida, organizada, efi ciente, da qual somente os prticos qualifi cados so os verdadeiros de-positrios. Eles tiveram que fazer compreender que a medicina uma arte, uma techn, e no uma prtica sem regras, fundada apenas sobre o reclamo, a gritaria, as receitas de charlates (SA-LEM, 2002, p. 19).

    Um enorme esforo exige a atitude cientfi ca, a mente inquisi-

    tiva, a anlise de dados, a defi nio de limites, a postura epistemol-

    gica adequada. Assim, a cada instante da sua ao a mente do mdi-

    co defronta-se com a inquirio que pe em dvida sua conduta, sua

    concluso, mesmo que o assista o rigor do mtodo, dada a enorme

    complexidade envolvida no exerccio do seu mister.

    Mas, a atitude cientfi ca constitui apenas uma faceta importan-

    te da profi sso de mdico. O objeto de sua ao o ser humano, a

    exigir um atributo mpar de quem o assiste a sensibilidade, qualida-

    de que torna a interao um ato satisfatrio. inegvel o fato de que

    imensamente importante para o paciente que o mdico se interesse

    por ele. Assim, para surpresa e decepo de alguns, no basta ape-

    nas acudir com rigor tcnico. A competncia tcnica isoladamente

    no basta, embora seja, evidentemente, parte essencial do processo.

    Nas doenas crnicas notadamente, nas doenas de prognstico

    ominoso, nas situaes de sofrimento intenso , no basta a esper-

    teza, a boa tcnica, que sempre se mostram insufi cientes. Solidarie-

    dade e sensibilidade so atributos que ornam o esprito do mdico

    e tornam suas relaes com os pacientes um fenmeno supremo.

    E no poderia ser diferente, quando o enfermo compartilha com o

    seu mdico os seus pensamentos mais profundos, seus temores e os

  • 18 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    seus segredos mais prezados. Assim, exige-se, do mdico completo,

    o despertar interior dos qualifi cativos que mais adornam o esprito

    humano, como a sensibilidade e a compaixo. Evidentemente, tais

    atributos devem ser expressos de acordo com preceitos da psicolo-

    gia mdica, a nortear as atitudes dos mdicos frente aos enfermos e

    suas necessidades peculiares.

    De tudo isso se depreende que o profi ssionalismo mdico as-

    pira competncia profi ssional, mas tambm sinceridade, altrusmo,

    honra, responsabilidade, integridade e respeito pelos outros (RE-

    ZENDE, 2003). indubitvel que tais atributos no so alcanados

    unicamente pelo aprendizado, mas aprimorado por ele; o conjun-

    to de traos psicolgicos e morais que caracteriza a individualidade

    apresenta um cerne inato que pode ser aprimorado, mas que no

    , na sua totalidade, produto da cultura. Parece evidente que existe

    uma capacidade inata de sentir compaixo. Esse entendimento ne-

    cessrio para a compreenso de que a educao mdica no forma o

    carter do estudante de Medicina. Compaixo, entrega, sensibilidade

    e compromisso no so qualidades eminentemente adquiridas. Po-

    dem ser despertados e aprimorados, mas no criados pela cultura.O

    comportamento das pessoas depende de suas experincias dentro da

    prpria cultura, mas o conjunto de suas possibilidades herdado.

    Conscienciosidade substancialmente, embora no totalmen-

    te, um atributo herdado, visto que a sua carncia que defi ne o

    transtorno de personalidade anti-social, para o qual h mesmo evi-

    dncia da participao de fatores genticos em sua etiologia. Como

    qualifi car a indiferena do mdico no exerccio do seu ofcio seno

    por ausncia, defi cincia ou morbidez dos sentimentos, apesar da

    educao que recebeu, dos exemplos que teve, dos sofrimentos dos

    quais foi testemunha? Disso decorre o fato inevitvel de que no se

    pode esperar que todos os mdicos mantenham uma conduta condi-

  • 19A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    zente com a majestade do seu mister, componham eles uma amostra-

    gem de qualquer grupo ou classe social.

    Assinalara Alxis Carrel (1950, p. 115) que

    [...] a escola no pode contribuir para a salvao da nossa civili-zao, seno alargando o seu quadro. Importa que ela abandone o seu ponto de vista puramente intelectual, e que os exames de-ixem de classifi car as crianas e os jovens apenas pela memria. [...] Os diplomas de instruo no tm em qualquer considerao o valor real dos candidatos, porque esse valor conta tanto pelo psicolgico e moral, quanto pelo intelectual. necessrio que os diplomas atestem no apenas os conhecimentos de ordem intelec-tual, mas tambm os resultados morais e psicolgicos.

    O que desejava dizer Carrel com atestar resultados morais, caso

    fossem eles meramente produtos do aprendizado? Que as escolas

    negligenciavam a educao moral e os exemplos de moralidade, per-

    mitindo que se deixassem abertas as comportas dos instintos? Parece

    evidente que at os micrbios necessitam de um meio apropriado

    para proliferar; mas igualmente verdade que no surgem micrbios

    por gerao espontnea. Susceptibilidade gentica e meio conjugam-

    se para determinar o fentipo. Talvez o estmulo quase exclusivo

    capacidade de recordar, deduzir, imaginar, descobrir, de arquitetar

    construes lgicas, tenha ajudado sobremaneira a separar a inteli-

    gncia do sentimento e a carncia de estimulao das atividades no

    intelectuais do esprito, como a coragem, a audcia, a veracidade, a

    fi delidade, a abnegao, o herosmo e o amor. Em tais circunstncias,

    as pessoas de boa ndole no aprimoram suas potencialidades mais

    virtuosas, enquanto os psicopatas constantes e circunstanciais en-

    contram terreno propcio para o sucesso (MEALEY, 1995).

    No Brasil, semelhana do que constatara Carrel em tempos

    idos, para ser mdico exige-se um enorme esforo cognitivo, de me-

    morizao e de raciocnio, mas nenhuma exigncia feita no plano

  • 20 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    moral e os diplomas de graduao, conseqentemente, no atestam

    resultados morais. Mas, seria justo que se fi zesse tal exigncia? Quais

    escolas poderiam fornecer diplomas que atestassem o carter ilibado

    dos seus diplomados? A resposta afi rmativa s seria possvel supon-

    do que a educao operasse o milagre de determinar o carter. Quais

    testes vlidos e precisos deveriam ser aplicados aos estudantes, quem

    teria o direito de possuir um dossi dessa natureza e quem garan-

    tiria a sua inviolabilidade? Ademais, numa sociedade democrtica,

    como se deveria proceder, caso se pudesse identifi car pessoas com

    transtornos de personalidade, sem que ainda no tivessem cometido

    delitos?

    Enfi m, parece ingnuo crer que o fato de se formarem em Me-

    dicina, pela natureza sublime dos desgnios dessa profi sso, todos

    os mdicos devam apresentar dotes de carter condizentes com tais

    anseios. Embora muito possa ser aprendido, essa crena romntica

    e decorre de concepes metafsicas e da idia absolutamente falaz

    da mente humana como uma tbula rasa e da exclusividade da

    cultura na formao do carter. Os concursos vestibulares s exigem

    memorizao e raciocnio. No existe, pois, qualquer garantia de que

    todos os aprovados nesses concursos venham a ser susceptveis

    doutrinao moral e tica proporcionada por um curso de Medici-

    na.

    Em linha com o comentado previamente, Siqueira (1973) des-

    taca que

    evidente que a ignorncia e a mngua de inteligncia arras-tam a erros monstruosos, a crimes de toda a espcie, injustias, perseguies. Mas no se deve esperar muito do valor moral do ensino, pois no possui valor absoluto. [...] Erro supor-se a ex-istncia de conexo entre a cultura intelectual e a melhoria moral. A sociedade antes se prejudica, ao desenvolver artifi cialmente a inteligncia, sem levar em conta o carter. A cultura intelectual aumenta o poder que tm as emoes de manifestar-se e de alca-

  • 21A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    nar satisfao. [...] Tambm a educao, intensifi cando a fora de todas as emoes, ajuda a predominncia das piores, e as dis-ciplinas impostas pelos melhores podem ser mais facilmente in-fringidas (p. 103).

    Essas observaes so fundamentais para que se possam com-

    preender, sem surpreender-se, os desvios comportamentais de alguns

    mdicos e os delitos graves que ocasionalmente cometem.

    Alada condio da mais sublime das profi sses, com exi-

    gncias tcnicas e humanitrias proporcionais a essa soberania, a

    Medicina vista como uma profi sso sacerdotal. Afi nal, a atividade

    mdica diz respeito aos mais apreciados valores humanos. No h,

    pois, como subtrair do vulgo o sentimento de que a atividade mdica

    exercida na sua plenitude se compare a um magistrio sacerdotal,

    no sentido de misso elevada, quase divina. Tal carter realado

    por Bonifcio Costa, citado pelo historiador Pereira Neto (2001), ao

    ressaltar que a prtica mdica comporta um carter de moralidade,

    de desinteresse, de abnegao e de sacrifcio que merece ser identi-

    fi cada a um sacerdcio religioso e este carter consagra sua origi-

    nalidade profi ssional.

    A propsito, acrescenta Eduardo Meireles, citado pelo mesmo

    historiador antes referido, que quem exercer esta profi sso sem pol-

    vilh-la com a eucaristia do altrusmo poder ser um distribuidor de

    drogas, mas nunca um verdadeiro mdico. Portanto, na construo

    retrica desses oradores parece evidente que a ao do mdico seria

    comparvel de um sacerdote. Mas, este tambm um sentimento

    popular, das pessoas que compreendem que essa atividade no pode

    ser exercida sem nobreza de carter e sem sacrifcios. por isso que

    mesmo tendo decorridos tantos sculos de exerccio da Medicina, o

    enfermo sempre se indigna diante do mdico que d escassa ateno

    ou lhe trata sem a gentileza ou o interesse esperados.

  • 22 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Entretanto, no mundo absolutamente injusto do trabalho, essa

    concepo sacerdotal utilizada demagogicamente para a prtica

    escabrosa da explorao do trabalho mdico. Se a consagrao da

    profi sso, quando exercida na sua completude, acalenta, conforta e

    enobrece, ela tem constitudo igualmente uma condenao, em face

    da atitude demaggica de algumas autoridades que dela se utilizam.

    Assim, quando os mdicos exercem o direito soberano de reclamar

    por melhores condies salariais o Poder Pblico utiliza o sentimento

    do povo acerca da Medicina como sacerdcio para obrigar os m-

    dicos a abdicar das suas atitudes contestatrias. comum que, nas

    raras ocasies em que os mdicos entram em greve, fazem-se exal-

    tados apelos santidade da profi sso mdica, para alegar que sua

    destinao suprema deve superar qualquer anseio de ordem material

    a sonegar-lhe o direito reivindicatrio, num reclamo descabido po-

    pulao para que censure os mdicos grevistas. Mera parvoce, pois

    se profi sso se atribui carter to elevado, fato que os mdicos se

    alimentam, pagam tributos, criam fi lhos e que tm de enfrentar Pol-

    ticas de Sade terrveis. Desta forma, o decantado sacerdcio mdico

    constitui tanto uma coroa de glria quanto um fardo.

    Falemos claro desde o incio: por mais que o trabalho eno-

    brea o homem, tornando-o livre, belo e seguro, ainda assim no se

    pode dizer que a maioria das pessoas [...] tenha (enquanto trabalha)

    uma cara alegre (DE MASI, 1999, p. 31). Quis este autor se referir

    insatisfao diante do que chamou infame organizao atual do

    trabalho. De acordo com Carrel (1950, p. 35),

    fato que o capitalismo conseguiu a expanso econmica do s-culo XIX, um enorme acrscimo da riqueza e uma melhoria geral da sade e das condies materiais da vida. Mas ao mesmo tempo criou o proletariado. E assim, desapossou os homens da terra, fa-voreceu o seu amontoamento nas fbricas e em mseras moradias, comprometeu sua sade fsica e mental, e dividiu as naes em classes sociais inimigas.

  • 23A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    Em que parcela deste contexto est envolvida a maioria dos

    mdicos? A qual classe pertence a maioria e quais as inimigas?

    Que caras apresentam? Em que isso interfere com suas atitudes, seu

    comportamento cotidiano ou sua prpria sade fsica e mental?

    Em recente publicao do Conselho Federal de Medicina CFM

    (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), de grande valor informativo acer-

    ca do trabalho mdico no Brasil, encontra-se relatado que a expres-

    siva maioria dos mdicos tem seu sustento obtido exclusivamente do

    exerccio da Medicina. Esclarecedor o fato de que o setor pblico

    constitui a fonte principal de exerccio da profi sso mdica, quando

    antes, em pesquisa realizada nos anos 1990 (MACHADO, 1996), este

    lugar era ocupado pelas atividades em consultrio. Ressalta ainda a

    recente publicao do CFM que 85% dos mdicos neste pas exer-

    cem duas ou mais atividades em Medicina; os que exercem trs ou

    mais contabilizam 55,4%; e, penosamente, 28,2% exercem quatro

    ou mais atividades mdicas (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004). evi-

    dente que tais nmeros causam profunda consternao, pois revelam

    a sobrecarga do trabalho mdico, demandando esforos sem limites

    e dedicao mais do que incondicional; expressam uma dependncia

    profunda destes profi ssionais a um mercado de trabalho aviltante,

    do qual o SUS paradigmtico pela baixa remunerao, tornando

    o exerccio da profi sso no Brasil uma coisa penosa e diminutiva,

    numa evidente e acachapante contradio com a considerao que

    se apregoa existir em relao a esse trabalho e sua importncia,

    da qual ningum, em s conscincia, pensa em prescindir por um

    minuto sequer.

    No resta dvida de que o trabalho mdico enobrecedor por

    si mesmo e que a maioria dos mdicos se sente honrada e satisfeita

    com a escolha profi ssional que fez. De acordo com Carneiro e Gou-

    veia (2004), poucos so os mdicos que abandonaram a profi sso

    para se dedicar a outras atividades, e escassos so aqueles que tm

  • 24 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    fontes de renda alm da Medicina. Mas, coaduna-se bem com os

    dados anteriores o fato preocupante e revelador de 58,4% relatarem

    que a profi sso desgastante. Esta pesquisa mostrou que a remu-

    nerao dos mdicos aumentou na ltima dcada, mas foi acom-

    panhada pelo aumento da jornada de trabalho, logo... A propsito,

    cabe ressaltar que a precariedade salarial se refl ete igualmente nas

    expectativas destes profi ssionais, que tm diminudo nos ltimos

    anos. Na pesquisa de 2004 quase metade dos mdicos entrevistados

    afi rmou que se contentaria com salrios equivalentes a U$ 4.000,00

    (quatro mil dlares). Esta pretenso, longe de se tornar realidade

    para a maioria dos mdicos, muito declinou em relao pesquisa

    de 1996. Atualmente 72% dos mdicos possuem renda mensal indi-

    vidual igual ou inferior a U$ 3.000,00 (trs mil dlares); pior ainda

    que, de tal contingente, 37% ganham U$ 2.000,00 (dois mil dlares)

    ou menos.

    Quando se comparam tais valores com a importncia do tra-

    balho mdico, percebe-se a condio deplorvel em que pode estar

    a auto-estima desses profi ssionais. Finalmente, deve ser salientado

    que cerca de 52% dos mdicos entrevistados na pesquisa recente

    (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004) exercem atividades de plantonista.

    Conclui-se, necessariamente, que esta modalidade estafante de tra-

    balho constitui parcela signifi cativa do mercado de trabalho mdico

    no Brasil, com certa variao regional. Na maioria dos Estados brasi-

    leiros as condies de assistncia sade da populao dependente

    do setor pblico so amplamente defi citrias e, associadas baixa re-

    munerao, a plantes seguidos em ambientes carentes de recursos

    tecnolgicos imprescindveis, constituem um ambiente nefasto aos

    anseios de mdicos e pacientes, pondo em risco a sade de ambos.

    O que se depreende desses dados que para signifi cativa par-

    cela de mdicos o trabalho em Medicina constitui a nica fonte de

    poder aquisitivo. Para muitos, o trabalho excessivo certamente no

  • 25A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    produz socializao nem identidade, seno isolamento, angstia e

    aborrecimento. Muitos mdicos passam parcela signifi cativa de suas

    vidas em locais diversos de trabalho, no raro em plantes estafan-

    tes, longe da famlia, privados de divertimentos. Se tal empenho la-

    boral propicia benefcios pecunirios algo compensadores, o que est

    longe de ocorrer para a maioria dos mdicos, constitui apenas uma

    fonte de satisfao de ordem prtica, mas que no se traduz em bem-

    estar pleno (CSIKSZENTMIHALYI, 1999).

    Deve fi car claro que parte substancial da satisfao do mdico

    obtida quando existem condies adequadas de trabalho; disponi-

    bilidade de recursos tecnolgicos mnimos para que uma Medicina

    moderna vivel possa ser exercida. fato consumado que uma satis-

    fao enorme para o mdico o acerto diagnstico, a instituio da

    teraputica adequada e bem-sucedida. Constitui um prazer curar, ali-

    viar, acalmar. Somente no mbito da psicopatologia se pode conceber

    que o ato mdico, exercido na sua plenitude, no satisfaa, enobrea,

    exalte, acalente e encha de satisfao o esprito de qualquer mdico.

    Assim, constitui uma imensa fonte de desprazer e de sentimentos

    de inutilidade e impotncia o trabalho incompleto, fragmentado em

    face da carncia de recursos. Essa carncia, quase sempre tida como

    um ato de negligncia criminosa dos governos, coisa devastadora

    para quem necessita desses recursos para exercer o seu trabalho e,

    evidentemente, para os enfermos. Trabalhar em tais ambientes, s

    vezes verdadeiras cafuas, desalentador e imensamente estressante.

    No raro, os Conselhos Regionais de Medicina, em todo o Brasil,

    denunciam a falta de condies de instituies de sade vinculadas,

    freqentemente, ao Poder Pblico.

    fato que nem todos os mdicos esto includos neste contex-

    to, mas igualmente verdade que no so muitos e, portanto, repre-

    sentam pouco a compreenso geral do trabalho mdico no Brasil.

    Para estes mdicos, que tm asseguradas condies materiais muito

  • 26 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    satisfatrias, podem restar descontentamentos de ndoles diversas,

    relacionados, ou no, ao trabalho. Mas no possvel uma discusso

    crtica sobre valores abstratos que propiciam elevao do esprito,

    transcendncia ou mesmo felicidade. O que parece desejvel, em um

    trabalho conjunto dos mdicos e de suas instituies representativas,

    tentar afastar ou minimizar o estresse que desencadeia ansieda-

    de, inadaptao, descontentamento. O resto constitui uma busca de

    cada indivduo.

    No mundo capitalista do trabalho o sacerdcio mdico s va-

    rivel relevante quando pode ser explorado em benefcio do lucro ou

    de intentos polticos demaggicos. nscio quem imagina que pode

    corrigir as mazelas da assistncia mdica com apelos de ordem hu-

    manitria ou sobrenatural em um Pas capitalista, com uma das mais

    perversas e mal empregadas cargas tributrias e com uma distribui-

    o de renda que divide e desumaniza o territrio nacional. Nenhum

    conceito moderno de gentica comportamental ou evolucionista am-

    para esse intento, que se confi gura sempre como demaggico. Os

    recursos materiais so fundamentais, e quando eles faltam alm de

    certo limite, qualquer satisfao importante torna-se invivel.

    lcito supor que a situao atual impe parcela signifi cativa

    da populao mdica brasileira um modo de vida gerador de descon-

    forto psicolgico, com conseqncias adversas, no raro graves, para

    a sade desses profi ssionais. Deve ser salientado que o ambiente de

    competitividade dos concursos vestibulares das Instituies Federais

    de Ensino Superior (IFES), visto que a maioria dos mdicos delas

    egressa, uma poderosa fonte de estresse sobre candidatos ao Curso

    de Medicina e este, por si s, j constitui um incio devastador. Aps

    a concluso do Curso, tambm a exigir esforo redobrado, acrescen-

    ta-se outro concurso de ndole semelhante ao primeiro, para a ob-

    teno de uma Residncia Mdica ou de Curso de ps-graduao de

    qualquer natureza. Dessa trajetria difcil sair indene, em maior ou

  • 27A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    menor grau. Aps obterem seus intentos de ordem intelectual, caem

    os esculpios no mercado de trabalho, cujas caractersticas foram

    to bem demonstradas na pesquisa recente sobre os mdicos que

    exercem seu ofcio no Brasil (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), aqui

    sumariamente relembrada.

    Em resumo, ser mdico dignifi cante e exige sacrifcios. Rece-

    ber da populao o reconhecimento por seu labor, mas tambm a co-

    brana para nunca errar, so apenas dois lados do mesmo desgnio.

    Anos a fi o de estudos e o ideal de cumprir a vocao de amenizar a

    dor e promover o bem-estar reforam o desejo de ser mdico. No

    obstante, os mdicos so pessoas, como quaisquer outros profi ssio-

    nais, e exigidos sem condies de trabalho dignas ou em troca de

    mseros salrios obtidos em mltiplas atividades, incluindo os plan-

    tes. Estes profi ssionais reclamam tambm a sua precria condio

    de sade e, nas conversas informais, denunciam o pleno esgotamen-

    to e o limite das suas capacidades de suportar a dor, no somente

    fsica, mas emocional, e a perda, em sentido amplo (prestgio, status,

    confi ana, etc.). Isso certamente deve ser espelhado no esgotamento

    laboral que potencializa o surgimento ou a acentuao de quadros

    nosolgicos orgnicos e psiquitricos. Portanto, demanda-se conhe-

    cer mais a fundo estes aspectos, cuja abordagem se intenta no cap-

    tulo a seguir.

  • 28 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

  • Valdiney V. GouveiaGenrio Alves BarbosaMunir Massud

    BE M-E S T A R E SA D E ME N T A L

    CA

    PT

    UL

    O 2

  • 30 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    As culturas nacionais parecem caminhar em direo ao indivi-

    dualismo (HOFSTEDE, 1984) e ao ps-materialismo (INGLEHART,

    1991). Quando saciadas as necessidades mais bsicas, como as fi sio-

    lgicas e de segurana, tm lugar outras menos materialistas e/ou

    mais voltadas a garantir ideais humanitrios, justia social, privaci-

    dade e qualidade de vida. Embora outrora o salrio bastasse para as-

    segurar a satisfao do trabalhador, este j no sufi ciente; as horas

    de descanso, o convvio com a famlia, o reconhecimento do trabalho

    e as oportunidades de aprimorar os conhecimentos so igualmente

    metas valorizadas (RONEN, 1994), que se espera sejam implementa-

    das com o fi m de promover o bem-estar dos trabalhadores (MOURA,

    BORGES e ARGOLO, 2005). Portanto, os bens materiais refl etem um

    tipo parcial de bem-estar, no levando obrigatoriamente satisfao

    com a vida, felicidade, otimismo e vitalidade, componentes essen-

    ciais do que se denomina de bem-estar subjetivo (CHAVES, 2003;

    COMPTON e cols., 1996; DIENER, 2000; RYAN e FREDERICK, 1997).

    O dinheiro ou o sentimento de realizao material como metas em

    si trazem apenas satisfao temporria (CSIKSZENTMIHALYI, 1999;

    INGLEHART, 1991). Porm, esta uma concepo mais recente, ten-

    do evoludo a partir dos estudos sobre o bem-estar no fi m dos anos

    1960 (DIENER, SUH, LUCAS e SMITH, 1999).

    Esta preocupao com o bem-estar generalizou-se e passou

    a despertar o interesse de diversas categorias ocupacionais, entre

    elas, a dos mdicos vem recebendo ateno em diversos pases (por

    exemplo, Canad, Espanha, Estados Unidos, Nova Zelndia). H

    aproximadamente duas dcadas tiveram lugar os primeiros deba-

    tes e as pesquisas sobre o desconforto psicolgico (distress) destes

    profi ssionais, incluindo depresso e ansiedade, mas tambm o uso e

    abuso de substncias psicotrpicas (SHANAFELT, SLOAN e HABER-

    MANN, 2003). Provavelmente, a Canadian Medical Association rea-

    lizou at ento a maior pesquisa nacional cujo foco principal era a

  • 31A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    situao precria dos mdicos; foram consideradas as respostas de

    3.520 profi ssionais que atuam no Canad, tendo sido desenhado um

    perfi l nada satisfatrio: 62% opinam que tm uma carga de trabalho

    muito pesada; 55% relatam que sua famlia e vida pessoal sofrem

    porque escolheram a Medicina como profi sso; e 65%, apesar de

    insatisfeitos, vem oportunidades limitadas de mudar de profi sso

    (SULLIVAN e BUSKE, 1998).

    O desgaste profi ssional do mdico tambm se refl ete na

    sua vida pessoal, provavelmente em maior medida do que ocorre

    em outros ofcios, como o de advogado (LEVINE e BRYANT, 2000).

    Maxwell (2001) indica que o trabalho do mdico afeta suas relaes

    interpessoais devido falta de tempo, aos estressores acadmicos,

    sobrecarga de trabalho, fadiga e privao de sono. A vulnerabilidade

    a crises pessoais o leva a sentimentos de solido, depresso, ansie-

    dade, insnia, problemas com lcool ou drogas psicotrpicas, assim

    como outras manifestaes fsicas. Por certo, os fatores psicossociais

    e a sade fsica mantm forte relao entre si; as doenas, a incapaci-

    dade e mesmo a morte podem ser desencadeadas em detrimento do

    tabagismo, dieta, uso de bebidas alcolicas e drogas psicotrpicas.

    A profi sso mdica parece mesmo implicar um conjunto natu-

    ral de estressores, com os quais se comea a conviver j como aca-

    dmico (CARLOTTO, NAKAMURA e CMARA, 2006; DUTRA, 2005;

    MIRANDA e QUEIROZ, 1991; PIMENTEL, ANDRADE e BARBOSA,

    2004). Ros (2001), contando com uma amostra de 82 mdicos do

    Hospital Geral Universitrio de Alicante, Espanha, levantou at 50

    possveis fontes de estresse no contexto hospitalar, tendo sido os oito

    seguintes os mais estressantes (as pontuaes poderiam variar de

    = Nada estressante a = Extremamente estressante): as complica-

    es graves do estado do doente [M (Mdia) = 7,9], as complicaes

    durante a prescrio do medicamento [M = 7,4], o excesso de tra-

    balho existente nas urgncias [M = 7,2], ter que tomar decises sem

  • 32 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    critrios claros de atuao [M = 7,1], os plantes de fi m de semana

    [M = 7,0], ter que atender a um familiar ou um amigo [M = 6,9],

    que a falta de coordenao na assistncia intra e extra-hospitalar re-

    percuta no paciente [M = 6,5] e os dias de planto [M = 6,5]. Nesta

    mesma direo, Smrdel (2003) observou que entre os mdicos da

    Eslovnia existe um sentimento de culpa, atribuda a sua responsabi-

    lidade pelo tratamento e a cura do paciente; quando esta no bem

    sucedida, a experincia resultante de estresse laboral.

    Na presente pesquisa, o Conselho Federal de Medicina procu-

    rou conhecer inicialmente o quanto este desgaste profi ssional afeta

    os mdicos brasileiros. Os tpicos a seguir tecem algumas conside-

    raes acerca das perguntas abordadas no questionrio, envolvendo

    o estresse, a ansiedade e a depresso e a ideao suicida. Antes, en-

    tretanto, parece imprescindvel conhecer algo acerca do estresse e

    da fadiga e mesmo do esgotamento ocupacional, tambm conhecido

    como burnout. Embora este ainda no faa parte da nosografi a m-

    dica, parece bastante pertinente t-lo em conta como a manifestao

    mais direta das condies de trabalho, cuja implicao deveria ser

    sentida nos sintomas psiquitricos anteriormente citados.

    inegvel que o contexto do trabalho mdico estressante

    e, portanto, que concorre efetivamente para gnese de distrbios

    fi siolgicos ou psicolgicos. De fato o vocbulo estresse, derivado

    do ingls stress, tenso, utilizado para signifi car distrbio causado

    por circunstncia adversa, tendo sido incorporado medicina aps

    os trabalhos de Walter Bradford Cannon (1871-1945) e Hans Se-

    lye (1907-1982). O termo parece ter sido criado por este ltimo,

    e dicionarizado em lngua portuguesa em 1945 (FERREIRA, 1999;

  • 33A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    HOUAISS e VILLAR, 2001). Os conceitos de meio interno e home-

    ostasia, j sobejamente conhecidos, so necessrios compreenso

    do signifi cado de estresse. A capacidade adaptativa do organismo

    para a manuteno do seu meio interno o que Walter B. Cannon

    popularizou em seu livro The wisdom of the body (1932). O termo, no

    meio mdico, utilizado em acepo mais ampla, como o conjunto

    de reaes do organismo frente a agresses de ordem fsica, psqui-

    ca, infecciosa e outras, capazes de perturbar-lhe a homeostasia. Mas

    a nfase dada neste captulo se refere, principalmente, ao estresse

    laboral. importante notar o fato, j salientado por Selye (1959),

    do paradoxo de que os sistemas fi siolgicos ativados pelo estresse

    podiam no somente proteger e restaurar, mas tambm causar danos

    ao organismo (ver tambm MCEWEN, 1998).

    Muito se discute acerca dos estressores mais comuns, porm

    parece evidente que eles variam com a idade e, entre aqueles mais

    poderosos, citam-se os relacionados ao emprego, no adulto jovem, e

    luta para alcanar a estabilidade fi nanceira, na faixa etria media-

    na. Mais tardiamente, ainda no mbito laborativo, a aposentadoria

    pode constituir uma fonte de tenso (MCEWEN, 1998). Outros es-

    tressores, evidentemente, podem ser muito relevantes e somam-se a

    esses em circunstncias diversas, como confl itos de famlia, distr-

    bios conjugais, perdas afetivas etc. Parece muito evidente que as con-

    dies inadequadas de trabalho, que incluem ambientes de trabalho

    imprprios at por questes de higiene, conforto mnimo e mesmo

    salubridade , salrios tidos como insufi cientes em relao ao valor

    do trabalho, plantes excessivos, falta de lazer constituem igualmen-

    te estressores poderosos que afetam o mdico.

    As reaes em resposta a esses estressores podem ser ansieda-

    de ou depresso, desenvolvimento de sintomas orgnicos, aumento

    da ingesto de bebidas alcolicas. As respostas subjetivas incluem

    medo (repetio do evento ou de sua inevitabilidade), raiva (ante

  • 34 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    a frustrao), culpa (em razo de atitudes agressivas) e vergonha

    (incapacidade) (MCEWEN, 1998). O estresse agudo e reativado

    pode-se manifestar por fadiga, inquietao ou excitao (tenso).

    As reaes podem afetar o sono e causar difi culdade de concentra-

    o. Este distrbio adaptativo em resposta ao estresse denominado

    distrbio de ajustamento, especifi cado juntamente com o sintoma

    principal, por exemplo, distrbio de ajustamento com humor depri-

    mido (MCEWEN, 1998). Tais condies podem ser confundidas com

    distrbios ansiosos, afetivos ou de personalidade exacerbados pelo

    estresse, exigindo diagnstico diferencial que o conhecimento mdi-

    co proporciona. Mais difcil convencer-se de que as manifestaes

    somticas so de natureza psicognica, tendo em vista a experincia

    mdica com doenas graves que se manifestam de forma semelhante,

    passando ao temor de uma enfermidade orgnica grave e, no raro,

    levando a pessoa a submeter-se a exames diversos. Por outro lado, s

    vezes cientes ou desconfi ados da natureza de sua situao, passam

    automedicao ou, mais rara e negligentemente, ao alcoolismo como

    forma de atenuar o mal-estar psicolgico.

    O estresse constante, crnico, leva ao que McEwen (1998) de-

    nomina de carga alosttica. As alteraes fi siolgicas que se operam

    diante do estresse, no sentido de manter a homeostase, compreen-

    dem respostas dos sistemas endcrino, nervoso autnomo, cardio-

    vascular, metablico e imunolgico, que tendem a proteger o corpo.

    No entanto, o preo dessa acomodao durante meses ou anos pode

    resultar em permanncia do estado de tenso com a possibilidade

    de elevao da presso sangnea e, conseqentemente, de infarto

    do miocrdio em pessoas susceptveis; e permanncia das alteraes

    adaptativas depois da cessao do estresse, como ocorre em algu-

    mas pessoas cuja presso sangnea no retorna aos nveis anteriores

    aps o estresse agudo.

  • 35A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    O exemplo mais eloqente dos efeitos deletrios do estresse

    crnico o que se verifi ca no sistema cardiovascular. Foi demons-

    trado que fatores estressores oriundos do ambiente de trabalho au-

    mentam o risco de doena coronariana, elevam a presso sangnea,

    aumentam a massa ventricular esquerda e aceleram a aterosclero-

    se (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SALONEN, 1996).

    Alm disso, o estresse agudo afeta a funo do hipocampo e pre-

    judica, embora de maneira reversvel, a memria em curto prazo e

    causa atrofi a de dendritos de neurnios piramidais na regio CA3

    do hipocampo por ao do cortisol, mas que pode ser fatal para es-

    ses neurnios no estresse prolongado. Do ponto de vista imunol-

    gico, o estresse agudo pode ampliar a hipersensibilidade retardada

    a antgenos para os quais existe uma memria imunolgica. Se a

    memria imunolgica no for um patgeno ou uma clula tumoral,

    mas sim auto-imune, ento o estresse provavelmente exacerbar o

    estado patolgico (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SA-

    LONEN, 1996). Quando a carga alosttica aumentada pelo estresse

    repetido, a resposta completamente diferente: a hipersensibilidade

    retardada substancialmente inibida ao invs de ampliada (LYNCH,

    KAPLAN, COHEN, TOUMILEHTO e SALONEN, 1996).

    Est sobejamente provada a relao entre nveis socioecon-

    micos e fatores de risco para diversas doenas, notadamente car-

    diovasculares, em face de estressores (LYNCH, KAPLAN, COHEN,

    TUOMILEHTO e SALONEN, 1996). Estudos clssicos de Whitehall,

    citados por Marmot, Smith, Stansfeld, Patel, North, Head, White,

    Brunner e Feeney (1991), com funcionrios pblicos na Inglaterra

    haviam demonstrado aumento da morbidade e mortalidade do mais

    baixo ao mais alto posto de uma escala de seis graus da administra-

    o pblica. Uma nova coorte, compreendendo 10.314 funcionrios

    pblicos (6900 homens, 3414 mulheres) foi estudada por Marmot

    e seus colaboradores, confi rmando que nos 20 anos que separam os

  • 36 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    dois estudos no foi observada nenhuma diminuio na diferena de

    morbidade entre as classes sociais em relao ao estudo anterior. A

    hipertenso arterial foi um indicador sensvel de estresse no traba-

    lho, bem como as concentraes de fi brinognio plasmtico. Salien-

    tam ainda estes autores que durante o colapso social na Rssia, que

    se seguiu derrocada do regime socialista, as doenas cardiovascu-

    lares contriburam para 40% da taxa de mortalidade entre as pessoas

    da populao geral deste pas.

    O que mais parece contar quantitativamente para o estresse

    a insatisfao com o exerccio profi ssional. A propsito deste aspec-

    to, Zuger (2004) assinala que resultados de pesquisas sugerem que

    o nvel de satisfao profi ssional diminuiu substancialmente entre os

    mdicos estadunidenses durante as ltimas dcadas. Revela ainda

    que, em 1973, menos que 15% de milhares de mdicos em atividade

    mencionaram alguma dvida de que tivessem escolhido a profi sso

    correta. Em contraste, pesquisas nos ltimos 10 anos mostraram que

    30 a 40 por cento dos mdicos praticantes no escolheriam a pro-

    fi sso mdica se tivessem que decidir novamente, sendo que uma

    porcentagem inclusive mais alta no encorajaria seus fi lhos a seguir

    a carreira mdica. Em outra pesquisa, 40% dos mdicos afi rmaram

    que no recomendariam a profi sso a estudantes qualifi cados para

    curso superior. Relata a mesma fonte que mdicos de Massachusetts

    revelaram descontentamento com virtualmente todos os aspectos da

    prtica mdica, incluindo renda, carga de trabalho e tempo consumi-

    do na realizao das atividades.

    Fatores acessrios que contribuem para produzir situaes

    geradoras de insatisfao so as denncias de erro mdico, sempre

    excessivas e, muitas vezes, exploradas pela imprensa de forma sen-

    sacionalista. So potencialmente tambm preponderantes o nmero

    excessivo de Faculdades de Medicina e, conseqentemente, de m-

    dicos; as questes trabalhistas relacionadas ao Programa Sade da

  • 37A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    Famlia, fonte de emprego com melhor remunerao no setor pblico

    atualmente, mas absolutamente insatisfatrio em relao aos direi-

    tos dos profi ssionais; a explorao indevida do trabalho mdico por

    Planos de Sade; e as cooperativas mdicas que distribuem mal sua

    arrecadao, com ntido privilgio de empresas mdicas. Parece evi-

    dente que as diferenas individuais (vinculadas a fatores genticos,

    desenvolvimento e experincia) (LYNCH, KAPLAN, COHEN, TOUMI-

    LEHTO e SALONEN, 1996) explicam a maior ou menor expressi-

    vidade da ao mrbida desses estressores. No entanto, isso nada

    justifi ca, at porque essas diferenas individuais so irrelevantes no

    contexto geral e no h como determinar antecipadamente quem

    mais ou menos resistente ao estresse.

    Em resumo, o estresse representa o resultado de um

    processo de adoecimento, resultado de mltiplos fatores adversos

    com os quais as pessoas, repetidamente, precisam de se deparar.

    No se restringe a uma rea especfi ca da vida nem se limita a uma

    atividade profi ssional especfi ca. Portanto, trata-se de uma entidade

    mrbida que emana um conjunto de respostas fi siolgicas, afetivas

    e comportamentais que visam restabelecer a homeostase do corpo

    enfermo. Um construto correlato a este, mas que tem relao direta

    com o trabalho o burnout, abordado a seguir.

    O burnout compreendido consensualmente mais como

    uma resposta ao estresse laboral crnico, quando as estratgias de

    enfrentamento falham em manej-lo satisfatoriamente. Neste senti-

    do, fundamental ter clara a sua singularidade e diferena em rela-

    o a outros construtos. De acordo com Menegaz (2004), o burnout

    tem sempre um carter negativo, enquanto o estresse, por exemplo,

  • 38 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    pode ser negativo (implica perdas ou acarreta ameaas ao organis-

    mo, denominado distress) e mesmo positivo (possibilita o crescimen-

    to, prazer e desenvolvimento emocional e intelectual, chamado eus-

    tress). Schaufeli e Enzmann (1998) procuram diferenciar o burnout

    do estresse ocupacional, indicando que enquanto este resulta de um

    confronto entre as demandas do trabalho e os recursos adaptativos

    da pessoa e tende a ser unidimensional, reunindo um padro con-

    sistente de respostas especfi cas, aquele, necessariamente, sugere a

    existncia de um colapso neste processo de adaptao e compreende

    um construto multidimensional. Sobre este aspecto, por exemplo,

    a concepo de burnout introduz uma dimenso claramente nova,

    nunca antes vista nos estudos sobre estresse: a despersonalizao

    (TAMAYO, 2002).

    O burnout, segundo Schaufeli e Enzmann (1998), tam-

    bm se diferencia da Sndrome de Fadiga Crnica. Esta mais difu-

    sa, no estando relacionada com qualquer esfera especfi ca da vida

    do indivduo e apresenta sintomas fsicos, imunolgicos, hormonais,

    gastrointestinais e neurolgicos. Por outro lado, o burnout, sua ex-

    presso, tipicamente manifesta por meio de sintomas psicolgicos,

    estando estreitamente relacionado com o trabalho. Destaca-se, ain-

    da, a dimenso social do burnout, correspondendo ao tipo de ativi-

    dade laboral do indivduo, sua relao com aqueles com os quais tm

    que trabalhar no seu dia-a-dia (BENEVIDES-PEREIRA, 2002). No

    se pode igualmente confundir o burnout com a depresso. Enquan-

    to algum que experimenta o burnout percebe o seu trabalho como

    promotor desta sensao, apresentando sentimentos de desaponta-

    mento e tristeza dirigidos ao contexto laboral, aquele com depresso

    pode no responsabilizar o trabalho especifi camente, e o sentimento

    geralmente vivenciado de derrota, com uma submisso letargia

    (MENEGAZ, 2004).

  • 39A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    O burnout, embora no faa parte da nosografi a mdica,

    um construto legtimo e promissor, permitindo apreender as con-

    seqncias do trabalho no mbito da sade mental dos profi ssionais.

    Este permite atestar as conseqncias de um trabalho desgastante

    no sentido amplo, no se atendo s precrias condies de trabalho

    por si, mas considera igualmente as relaes entre as pessoas e a

    possibilidade de desenvolver o potencial profi ssional de cada um.

    No pode, pois, ser confundido com o estresse crnico, o estresse

    ocupacional ou a depresso. Tem sido particularmente apropriado

    para refl etir o contexto estafante do trabalho daqueles que atuam no

    campo dos servios humanos, cuja ocupao requer um relaciona-

    mento freqente, intenso e direto com chefes, subordinados e com

    aquelas pessoas que so alvo principal do seu mister. Estas, comu-

    mente, passam por algum tipo de problema que demanda a assis-

    tncia e o cuidado intenso destes profi ssionais. Os mdicos parecem

    incluir-se perfeitamente neste quadro de referncia, originalmente

    descrito por Maslach nos anos 1970 (ver tambm MENEGAZ, 2004;

    TAMAYO, 2002).

    Quanto natureza multidimensional deste construto,

    evidenciada previamente, h consenso de que se compe de trs

    dimenses ou fatores principais, a saber (BENEVIDES-PEREIRA,

    2002; MENEGAZ, 2004; SCHAUFELI e ENZMANN, 1998; TAMAYO,

    2002):

    Exausto emocional. Esta , provavelmente, uma primei-

    ra reao ao estresse causado pelas exigncias do trabalho ou por

    alteraes acentuadas que venham a comprometer a dinmica de

    trabalho do profi ssional. Tambm constitui sua dimenso mais ntida

    (TAMAYO, 2002), aproximando-se dos conceitos de falta de vitalida-

    de (RYAN e FREDERICK, 1997). Uma vez exaustos, os trabalhado-

    res tendem a sentirem-se sobrecarregados fsica e emocionalmente,

  • 40 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    mesmo quando acordam pela manh. A idia de esgotamento ou

    exausto da energia e dos recursos emocionais dos trabalhadores.

    Despersonalizao. Como meio de enfrentar a exausto

    emocional e os problemas que podem ser correlatos, os trabalha-

    dores passam a apresentar comportamentos negativos, a exemplo

    de tratar os demais depreciativamente, ter reaes distantes e frias

    em relao ao trabalho, ao seu contexto e aos colegas com quem

    deveriam conviver harmoniosamente, chegando inclusive a desistir

    de suas idias e seus ideais, passando as vezes a ocupar diretamente

    cargos burocrticos, evitando o contato com os demais que deman-

    dam seu servio e sua ateno. O ceticismo parece tomar conta do

    esprito destes profi ssionais e passa a ser caracterstico o contato ir-

    nico com aqueles que precisam atender.

    Realizao pessoal. Diz respeito ao aspecto de auto-ava-

    liao do burnout, estando associada ao sentimento de incompetn-

    cia e percepo de um desempenho insatisfatrio no trabalho. O

    profi ssional perde a confi ana na prpria capacidade de desenvolver

    o seu trabalho e, medida que isso ocorre, produz desconfi ana nos

    seus colegas e nas pessoas que de seus servios dependem.

    No geral, o burnout tem mais em comum com carac-

    tersticas do ambiente de trabalho do que com fatores individuais,

    sendo mais freqente relacion-lo com percepes ou atitudes frente

    a aspectos das organizaes (TAMAYO, 2002). A este respeito tem

    sido observado, por exemplo, que a menor percepo de valores de

    autonomia na empresa produz maior exausto emocional, enquanto

    a percepo de valores de conservao promove a realizao pessoal

    (TAMAYO, 1997). Tambm existem evidncias de que o comprome-

    timento organizacional se correlaciona inversamente com os fatores

    de burnout (BARBOSA, 2001). Tamayo (2002) tomou cada um dos

    seus fatores como varivel critrio, demonstrando que aquelas vari-

    veis antecedentes de cunho demogrfi co (por exemplo, sexo, idade,

  • 41A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    escolaridade) nada tm a ver com esta sndrome. Por outro lado,

    encontrou que a sobrecarga de trabalho potencializa a exausto emo-

    cional e a desumanizao (despersonalizao), enquanto os suportes

    social e material no trabalho tendem a inibi-las.

    Em Benevides-Pereira (2002) possvel encontrar uma

    lista ampla de sintomas prprios daqueles que apresentam burnout,

    podendo ser enquadrados nas trs seguintes categoriais (ver tambm

    MENEGAZ, 2004):

    Fsicos. Incluem-se nesta categoria sintomas de natureza

    orgnica e/ou fi siolgica, como distrbios do sono, dores musculares

    ou osteomusculares, cefalias, enxaquecas, perturbaes gastrointes-

    tinais, imunodefi cincia, transtornos cardiovasculares, distrbios do

    sistema respiratrio ou disfunes sexuais.

    Psiquitricos. Denominados de psicolgicos, incluem os

    sintomas que dizem respeito aos sentimentos, s emoes e aos atri-

    butos cognitivos, a exemplo da falta de ateno e concentrao, alte-

    raes da memria, sentimento de alienao, sentimento de solido,

    impacincia, baixa auto-estima, desnimo, depresso, desconfi ana

    e parania.

    Comportamentais. Compreendem aqueles sintomas que

    expressam condutas e/ou demandam aes especfi cas. No caso, po-

    dem ser verifi cados os sintomas de aumento da agressividade, a in-

    capacidade de relaxar, a perda de iniciativa, o aumento do consumo

    de substncias psicotrpicas, o suicdio, os comportamentos de risco

    e a irritabilidade.

    Como se percebe, apesar de no estar inserido em ma-

    nuais ou classifi caes de doenas, o burnout tem implicaes org-

    nicas e psiquitricas evidentes. No se constitui, portanto, em uma

    inveno acadmica, mas um problema grave que acomete diversos

  • 42 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    profi ssionais cujas prticas se pautam no contato com pessoas (por

    exemplo, enfermeiros, fi sioterapeutas, mdicos, policiais, professo-

    res, psiclogos) (AMORIM, 2002; BENEVIDES-PEREIRA e MORE-

    NO-JOMNEZ, 2002; CARLOTTO, 2002; TAMAYO, 2002; VALDIVIA

    e MNDEZ, 2004). A propsito, os nomes recebidos por esta sndro-

    me so bastante reveladores no mbito da Medicina: Sndrome do

    Assistente Desassistido e Sndrome do Cuidador Descuidado (BENEVI-

    DES-PEREIRA, 2002). Neste sentido, o trabalho mdico parece ser a

    prpria essncia do burnout, com fatos especfi cos que o tornam uma

    realidade evidente: sobrecarga de trabalho, falta de reconhecimento

    da atividade profi ssional, escasso controle do ambiente de trabalho,

    ambigidade e incerteza do papel profi ssional, falta de preparo para

    lidar com as demandas emocionais de pacientes, falta de autonomia,

    contato com os pacientes e a gravidade de seus quadros (SCHAU-

    FELI, 1999; TAMAYO, ARGOLO e BORGES, 2005). Seguramente o

    leitor reconhece estes elementos como presentes na prtica mdica.

    Benevides-Pereira (2002) descreve pesquisa em que os

    estudantes de Medicina apresentam limitaes em manter uma vida

    social adequada j no primeiro ano de curso (por exemplo, escassos

    amigos, falta de oportunidade de lazer) e apresentam sintomas psi-

    cossomticos (por exemplo, depresso, ansiedade), problemas que

    so duplicados no terceiro ano. Em sua reviso, ela constata que es-

    tes estudantes, no transcurso de sua carreira acadmica, aumentam

    o uso de substncias psicotrpicas, especialmente de tranqilizantes,

    bem como ressalta a elevada incidncia de suicdio, com ndice su-

    perior ao da populao geral. Quanto aos mdicos, Tamayo, Argolo

    e Borges (2005) observaram que, no Rio Grande do Norte, estes fo-

    ram, entre os profi ssionais da Sade (incluram-se tambm enfer-

    meiros, assistentes sociais, nutricionistas, auxiliares de enfermagem,

    odontlogos e psiclogos), os que apresentaram maior pontuao

  • 43A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    em despersonalizao, defi nido como uma atitude fria e distante em

    relao ao trabalho e s pessoas nele presentes.

    Em resumo, embora o burnout no possa ser confundi-

    do com estresse, fadiga ou depresso, guarda estreita relao com

    estes construtos e, seguramente, poder desencadear seus sintomas

    ou mesmo a ideao suicida naqueles que o vivenciam. Estes ltimos

    construtos so a seguir considerados, de modo que se confi gure o

    marco de referncia a partir do qual se procura compreender a reali-

    dade da sade dos mdicos no Brasil.

    Embora compreendam construtos com legitimidade, ca-

    bendo trat-los separadamente, reconhece-se aqui que podem per-

    tencer a um mesmo quadro de sintomatologia psiquitrica. Como

    fi cou evidenciado, os trs podem ter potencialmente a mesma ori-

    gem, correspondendo ao estresse vivenciado no trabalho mdico,

    estando claramente relacionados entre si. Por exemplo, o estresse

    agudo pode-se manifestar por meio da fadiga, e esta pode resultar

    em uma sintomatologia depressiva (ANDREA, KANT, BEURSKENS,

    MESEMAKERS e VAN SCHAYCK, 2003; BLTMANN, KANT, KASL,

    BEURSKENS e VAN DEN BRANDT, 2002). Esta, por sua vez, pode

    levar a ideaes suicidas e mesmo prtica do suicdio (LEVINE e

    BRYANT, 2000). Cabe, entretanto, com o fi m de tornar mais direta

    a compreenso do leitor, defi ni-los, segundo a perspectiva adotada

    neste livro.

    Apesar de ser uma palavra amplamente difundida e re-

    conhecida, a fadiga considerada de difcil defi nio. Por exemplo,

    enquanto alguns procuram identifi car a fonte da fatiga, outros pre-

    ferem pens-la desde uma viso comportamental, tratando-a em ter-

    mos de diminuio de performance (ver CHALDER, BERELOWITZ,

  • 44 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    PAELIKOWSKA, WATTS, WESSELY, WRIGHT e WALLACE, 1993). As

    discusses sobre este aspecto da defi nio consideram se a fadiga

    uma entidade discreta (Sndrome de Fadiga Crnica), um conjunto

    de sintomas de origem desconhecida ou uma forma especfi ca de de-

    sordem psiquitrica (KANT, BLTMANN, SCHRRER, BEURSKENS,

    VAN AMELSVOORT e SWAEN, 2003). No presente livro, assume-se a

    perspectiva de que a fadiga um desconforto generalizado, melhor

    entendido como uma sensao subjetiva negativa com componentes

    comportamental, cognitivo e emocional. Ela implica um sentimento

    de cansao, desprazer pelas atividades que esto sendo realizadas e

    relutncia em seguir fazendo a tarefa; um fenmeno psicofi siol-

    gico geral que diminui a habilidade do indivduo para realizar uma

    tarefa particular por alternar seu estado de alerta e viglia, bem como

    sua motivao (DE VRIES, MICHIELSEN e VAN KECK, 2003).

    De acordo com Andrea, Kant, Beurskens, Mesemakers

    e van Schayck (2003), a fadiga pode ter vrias conseqncias de-

    sastrosas, tanto para o empregador (por exemplo, custos devidos

    perda de produtividade) como para o empregado (por exemplo,

    reduo dos rendimentos, isolamento social). Na populao geral,

    comentam estes autores, a fadiga est relacionada no apenas com

    uma rea ampla de condies somticas, mas tambm com proble-

    mas de sade mental, especialmente na forma de depresso e/ou

    ansiedade. Isso se aplica tambm populao de trabalhadores. Por

    sinal, comentam Jansen, van Amelsvoort, Kristensen, van den Brandt

    e Kant (2003) que a fadiga infl uenciada por diversas caractersti-

    cas do trabalho, como demandas psicolgicas, emocionais e fsicas

    dele resultantes. Acrescentam-se ainda a ambigidade de papis, o

    apoio social dos colegas de trabalho e os confl itos com os superiores,

    as horas de trabalho, as oportunidades de ascenso, a insegurana

    no trabalho, a satisfao que este proporciona e a prpria cultura

  • 45A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    organizacional (KANT, BLTMANN, SCHRER, BEURSKENS, VAN

    AMELSVOORT e SWAEN, 2003).

    Estima-se que 20% dos trabalhadores relatam sinto-

    mas que poderiam ser includos sob o conceito de fadiga. No entan-

    to, dependendo dos instrumentos usados e do ponto de corte (cut

    off) assumido, as taxas de prevalncia podem estar no intervalo de

    7% a 45% dos trabalhadores acometidos por esta sintomatologia

    (DE VRIES, MICHIELSEN e VAN KECH, 2003; KANT, BLTMANN,

    SCHRRER, BEURSKENS, VAN AMELSVOORT e SWAEN, 2003; Van

    DIJK e SWAEN, 2003). Portanto, parece bastante pertinente consi-

    der-la no momento de tentar compreender a sade dos mdicos,

    sobretudo quando pensada a partir do seu contexto laboral.

    Distrbios psiquitricos uma expresso muito geral

    para se referir a uma sintomatologia que engloba ansiedade e de-

    presso. Na literatura, por vezes, tem sido referido como distress ou

    desconforto psicolgico o conjunto destes sintomas (CANO, SPRA-

    FKIN, SCATURO, LANTINGA, FIESE e BRAND, 2001; MONTAZERI,

    BARADARAN, OMIDVARI, AZIN, EBADI, GARMAROUDI, HARIRCHI

    e SHARIATI, 2005). Na Austrlia as taxas de pacientes que procuram

    ateno bsica em Sade com sintomas de ansiedade e depresso

    variam de 6,6% a 36%, dependendo dos critrios adotados para de-

    fi nio de um caso (COMINO, SILOVE, MANICAVASAGAR e HARRIS,

    2001). A depresso, especifi camente, com ou sem ansiedade, a for-

    ma mais prevalente de distrbios psiquitricos em ateno bsica

    Sade (THOMPSON, OSTLER, PEVELER, BAKER e KINMONTH,

    2001), sendo a segunda maior causa de incapacitao no mundo

    (GILBODY, WHITTY, GRIMSHAW e THOMAS, 2003).

    No fcil diferenciar a ansiedade da depresso, haja

    vista que os sintomas de ambos costumam aparecer concomitan-

    temente em muitos quadros clnicos (AGUDELO, BUELA-CASAL e

    SPIELBERGER, 2007). Contudo, pode-se empreender um esforo

  • 46 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    por tentar diferenci-los. De acordo com Del Porto (1999), a carac-

    terstica mais tpica da depresso a proeminncia dos sentimentos

    de tristeza e vazio. Muitos indivduos com depresso relatam igual-

    mente a perda da capacidade de experimentar prazer nas atividades

    em geral, mas tambm descrevem um retardo psicomotor. Este autor

    sugere que se tenha em conta diferentes aspectos para sua conceitu-

    ao e seu diagnstico, como o humor (sensao de tristeza, auto-

    desvalorizao e sentimentos de culpa), o fi siolgico (perda de sono,

    perda do apetite) e o comportamental (retraimento social, crises de

    choro, comportamento suicida, agitao). Por outro lado, segundo

    Sierra (2003), a ansiedade relaciona-se com a antecipao de peri-

    gos futuros, indefensveis e imprevisveis; esto presentes sensaes

    de apreenso, irritabilidade e tenso.

    Apesar das diferenciaes entre os construtos ansiedade e de-

    presso, opta-se no presente livro por consider-los indistintamente,

    adotando a prtica comum de conceb-los como distrbios psiqui-

    tricos generalizados. Segundo Tillett (2003), estes tm acometido,

    principalmente, profi ssionais da rea de Sade, comprometendo

    28% deles, comparando-se com os 18% de outros profi ssionais ou os

    30% de pessoas desempregadas. Acrescenta este mesmo autor que

    um dos grupos profi ssionais mais estudados tm sido os mdicos, os

    quais apresentam um aumento na taxa de divrcio, suicdio e, inclu-

    sive, uso de drogas psicoativas (ver tambm AMERICAN MEDICAL

    ASSOCIATION, 1995). Por certo, este um tema que tem preocupa-

    do os pesquisadores interessados em conhecer a sade dos mdicos,

    sobretudo em razo do crescente aumento da taxa de suicdio entre

    estes profi ssionais quando comparados com as pessoas da populao

    em geral (HAWTON, CLEMENTS, SAKAROVITCH, SIMKIN e DEEKS,

    2001). Frank e Dingle (1999) relatam que o suicdio explica cerca de

    35% das mortes prematuras dos mdicos nos Estados Unidos; na Fin-

    lndia de 22,1% (homens) a 25,9% (mulheres) dos mdicos contam

  • 47A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    com um histrico de tentativa ou ideao suicida (OLKINUORA, ASP,

    JUNTUNEN, KAUTTU, STRID e AARIMAA, 1990).

    Os dados previamente informados so preocupantes. Contu-

    do, reconhecem-se tambm as limitaes dos dados disponveis (por

    exemplo, impreciso dos atestados de bito, a difi culdade em dife-

    renciar o suicdio de um mero acidente ou o desejo da famlia de

    mascarar o ato suicida; LEVINE e BRYANT, 2000). Neste contexto,

    em se tratando de traar um perfi l da sade dos mdicos que exer-

    cem atualmente a Medicina no Brasil, parece mais favorvel falar em

    ideao ou pensamento suicida. Isso permitir estimar o potencial

    risco de os mdicos virem a apresentar comportamentos suicidas.

    A ideao suicida diz respeito a pensamentos, idias, plane-

    jamento ou desejo de se matar (OSMAN, BARRIOS, GUTIERREZ,

    WRANGHAM, KOPPER, TRUELOVE e LINDEN, 2002; WERLANG,

    BORGES e FENSTERSEIFER, 2005). Embora no seja o mesmo que

    o ato suicida, considerado o extremo desta sintomatologia psiqui-

    trica, considera-se fundamental o estudo da ideao suicida, pois

    esta um dos preditores para o risco de suicdio, podendo, inclusive,

    ser o primeiro passo para a sua consumao (WERLANG, BORGES

    e FENSTERSEIFER, 2005). Tradicionalmente, tm sido considerados

    unicamente os fatores de risco da ideao suicida, isto , a ideao

    negativa, o pensamento de cometer o ato em si; porm, comea a

    ser evidente a necessidade de se ter em conta igualmente os fatores

    de proteo ou propriamente a ideao positiva (OSMAN, BARRIOS,

    GUTIERREZ, WRANGHAM, KOPPER, TRUELOVE e LINDEN, 2002;

    OSMAN, GUTIERREZ, JIANDANI, KOPPER, BARRIOS, LINDEN e

    TRUELOVE, 2003). Esta ltima dimenso diz respeito a elementos

    que tornam menos provvel que a pessoa venha a cometer suicdio,

    acentuando sua esperana, seu entusiasmo e seu controle em relao

    aos eventos de sua vida. Esta a perspectiva adotada neste livro.

  • 48 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Em resumo, o conjunto destes trs construtos oferece uma vi-

    so sobre a sade (enfermidade) mental dos mdicos. Claramente,

    no podem ser tidos como elementos estanques, sem qualquer cone-

    xo uns com os outros; so antes complementares, servindo como

    potenciais indicadores de como pode estar a sade destes profi ssio-

    nais.

    Este captulo oferece, pois, uma viso geral que permite as-

    sociar o bem-estar subjetivo ou propriamente a sade mental dos

    mdicos com o seu contexto laboral. Embora seja difcil apreender

    as conseqncias nefastas do mercado de trabalho e da profi sso

    mdica, o construto burnout, mesmo no sendo ainda uma nosologia

    mdica, oferece elementos substanciais a partir dos quais se pode es-

    timar o desgaste profi ssional. Este, por seu lado, pode-se refl etir nos

    distrbios psiquitricos antes descritos, possibilitando mapear a situ-

    ao verdadeira da sade dos que promovem a sade da populao.

    Oportunamente, este tema ser retomado neste livro, oferecendo re-

    sultados concretos da situao destes profi ssionais no Brasil.

  • Genrio Alves BarbosaMunir MassudMauro Brando Carneiro

    DO E N A S OR G N I C A S E US O D E ME D I C A M E N T O S

    CA

    PT

    UL

    O 3

  • 50 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Contrariando o imaginrio popular, os mdicos no so insus-

    ceptveis s doenas prevalentes na populao em geral. Necessitam,

    como todos, de cuidados de sade, prtica de exerccios fsicos, ali-

    mentao adequada, sono sufi ciente, enfi m, realizar em si tudo o

    que preconizam para seus pacientes. No entanto, nem sempre con-

    seguem tais intentos em virtude das condies muitas vezes adver-

    sas no exerccio da profi sso. O desgaste resultante de jornadas de

    trabalho exaustivas no raro leva-os a negligenciar a preservao de

    sua sade e pode levar ao adoecimento em propores at mesmo

    superiores s das pessoas a quem prestam assistncia. Suas atitudes

    diante de sinais ou sintomas de enfermidades costumam ser, em ge-

    ral, como as das pessoas em geral, recorrendo ao descanso, auto-

    medicao, consulta informal com algum amigo mdico ou mesmo

    buscando ajuda especializada em consultrio (FORSYTHE, CALNAN

    e WALL, 1999).

    importante ressaltar como tais fatores esto relacionados. A

    negligncia com a sade, levando-se em conta todo o conhecimen-

    to que o mdico tem a respeito das conseqncias dela resultantes,

    pode estar subordinada s condies precrias existentes para exer-

    cer o seu ofcio, sejam tais condies de natureza salarial, por traba-

    lho excessivo (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004), ou mesmo devido

    defi cincia material (por exemplo, escassez de exames, leitos, medi-

    camentos) para atender adequadamente seus pacientes.

    Embora no menos importantes do que as doenas de nature-

    za orgnica, os problemas da sade dos mdicos tm sido discutidos,

    principalmente, em relao ao abuso de substncias psicoativas e

    aos distrbios psiquitricos, embora se reconhea que contar com

    um histrico de uma doena particular pode afetar a prtica clnica

    destes profi ssionais (TYRY, RSNEN, KUJALA, RIMAA, JUN-

    TUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI, SEURI e HUS-

    MAN, 2000). Contudo, as implicaes principais podem ser aprecia-

  • 51A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    das, sobretudo, em relao ao seu bem-estar geral e o nus de no

    poder acudir ao trabalho com regularidade. Lembrando, ao menos

    no Brasil, grande o quantitativo dos que so autnomos, atuando

    em consultrios prprios (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004; MACHA-

    DO, 1996).

    Em um estudo realizado na Finlndia com uma amostra alea-

    tria de 3.313 mdicos com at 66 anos (TYRY, RSNEN, KUJALA,

    RIMAA, JUNTUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI,

    SEURI e HUSMAN, 2000), procurou-se conhecer a prevalncia de

    doenas relatadas por estes profi ssionais. Observaram-se como mais

    comuns as sete seguintes doenas / sintomatologias (a primeira por-

    centagem refere-se aos homens e a segunda, s mulheres): dores

    lombares (21,6%; 18,2%), doenas do aparelho digestivo (18,9%;

    15,8%), eczema crnico (14,3%; 14%), hipertenso (14%; 7,8%),

    distrbios mentais (6,2%; 7,8%), artrose (6,9%; 5%) e asma (5%;

    6,3%). Em cinco destes quadros (hipertenso, distrbios mentais,

    eczema crnico, doenas do aparelho digestivo e dores lombares), os

    mdicos apresentam prevalncia superior aos trabalhadores empre-

    gados da populao geral, tanto quando so comparados os homens

    como as mulheres.

    Apesar de ser bastante informativa, no h certeza de que a

    pesquisa previamente citada tenha tomado como referncia o diag-

    nstico por outro especialista da doena mencionada. Portanto,

    pode-se tratar de um autodiagnstico. Alm disso, nenhuma refe-

    rncia foi feita CID-10 (Classifi cao Estatstica Internacional de

    Doenas e Problemas Relacionados Sade, verso 10). Isso poderia

    tornar os resultados mais consistentes, permitindo compar-los com

    os de outros pases. Tendo em conta estas consideraes, decidiu-se,

    neste livro, adotar a CID-10 como referncia, considerando unica-

    mente aquelas doenas que tenham sido diagnosticadas por outro

    especialista, como fi car evidente mais adiante. Em geral, poder-

  • 52 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    se-ia afi rmar que as enfermidades que mais acometem os mdicos

    so as mesmas que vitimam a populao, ainda que com algumas

    diferenas na prevalncia em funo das especifi cidades que carac-

    terizam o trabalho mdico (TYRY, RSNEN, KUJALA, RIMAA,

    JUNTUNEN, KALIMO, LUHTALA, MKEL, MYLLYMKI, SEURI e

    HUSMAN, 2000). importante registrar algumas delas, notadamen-

    te, as de maior incidncia e as eventuais repercusses que possam ter

    sobre a sade do mdico.

    so muito comuns

    no Brasil e corresponderam a 8,5% da morbidade hospitalar do SUS,

    com predominncia entre os nordestinos (MINISTRIO DA SADE,

    2006). H grande variedade destas enfermidades, algumas delas fa-

    cilitadas por hbitos inadequados, comportamentos de risco, estresse

    permanente, trabalho em ambientes insalubres, acidentes ocupacio-

    nais; outras podem resultar de acontecimentos circunstancialmente

    inevitveis e, em tal contexto, os mdicos esto envolvidos, pagando

    elevado tributo. O contato direto com doentes portadores de doenas

    infecciosas transmissveis, associado necessidade de trabalhos ml-

    tiplos e estafantes, aumenta o risco destes agravos entre os mdicos,

    fato que constitui um trusmo, notadamente para as infeces virais

    do trato respiratrio.

    na populao geral (MINIS-

    TRIO DA SADE, 2006) corresponderam a 5,6% entre os diversos

    grupos de doenas consideradas e constituem a segunda causa de

    morte no Brasil (MINISTRIO DA SADE, 2004a), correspondendo

    a 15,2%. A mortalidade por cncer maior nas Regies mais desen-

    volvidas, tendo a regio Sul como lder (18,8%), de acordo com a

    mesma fonte.

    Muitas neoplasias so prevenveis em alguma medida, e o co-

    nhecimento sobre a etiopatogenia desse grupo de enfermidades pode

    explicar a eventual discrepncia de acometimento de mdicos em re-

  • 53A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    lao populao geral. Presumivelmente, as mortes decorrentes de

    neoplasias do colo do tero, por exemplo, perfeitamente prevenveis,

    devem ser muito raras ou inexistentes entre a populao mdica fe-

    minina, mas ainda signifi cativa na populao geral (18,2% no grupo

    etrio feminino de 30 a 49 anos; MINISTRIO DA SADE, 2004a).

    upavam o 8

    lugar entre as dez principais causas de morte no Brasil em 1980,

    passando para o 6 lugar em 2000 (Ministrio da Sade, 2004a). A

    mortalidade por estas doenas foi aproximadamente equivalente nas

    diversas Regies do Pas em 2001, variando de 5,1 a 5,8%, exceto

    para a regio Nordeste, com 7,3%. Este ltimo dado pode estar mui-

    to mais relacionado carncia de assistncia mdica e ao tratamento

    adequados do que a uma prevalncia mais elevada.

    O diabetes pertence a este grupo de doenas. Os mdicos, ape-

    sar do conhecimento que ostentam da doena, so vulnerveis ao

    seu descontrole. O controle glicmico, tpico central no manejo do

    diabetes, efetivado pelo cumprimento de metas glicmicas que esto

    associadas reduo do risco de complicaes, muito prejudica-

    do pelo estresse, pelos mltiplos plantes em localidades diversas,

    por refeies inadequadas. A resposta adaptativa ao estresse afeta

    de maneira direta e contundente a glicemia e tanto mais em diab-

    ticos. Empregos mltiplos interferem com a terapia no-farmacol-

    gica dessa enfermidade, difi cultando o controle de peso, os exerc-

    cios regulares e um controle mais adequado da presso arterial. Os

    ambientes de trabalho nos mais diversos rinces deste pas nem de

    longe oferecem alimentao adequada e muito menos condizente

    com as necessidades individuais dos plantonistas, que so correntes

    no Brasil (CARNEIRO e GOUVEIA, 2004).

    da a sua prevalncia signifi cativa entre os

    mdicos. Os dados do SUS tratam da morbidade hospitalar e, por-

  • 54 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    tanto, no se prestam comparao nessas circunstncias, pois que

    se referem a condies excepcionalmente graves para carecerem de

    internao (2,5%). No entanto, de acordo com Ballone (2000), um

    consrcio internacional da OMS para a epidemiologia psiquitrica

    estudou dados relativos a 30.000 pessoas de sete pases: Alemanha,

    Brasil, Canad, Estados Unidos, Holanda, Mxico e Turquia. Os pes-

    quisadores constataram que 48% das pessoas estudadas nos Estados

    Unidos sofreram pelo menos uma doena mental durante sua vida.

    A taxa passa a ser de 40% na Holanda, 38% na Alemanha, 37% no

    Canad, 36% no Brasil, 20% no Mxico e 12% na Turquia. A depres-

    so constitui um problema comum sempre que se realizam estudos

    de prevalncia em todos os pases e, no Brasil, estima-se que sua

    prevalncia varie de 3 a 12% na populao geral, sendo mais comum

    em mulheres (FLECK, 2005).

    incluem a asma como doena

    crnica comum na populao geral. A asma enfermidade infl ama-

  • 55A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    tria com presumvel participao gentica em sua gnese e uma

    das doenas crnicas mais freqentes em qualquer faixa etria. De

    acordo com o Ministrio da Sade (2006), ocorrem anualmente 350

    mil internaes por asma, com gastos que excedem aqueles do dia-

    betes e da hipertenso arterial. Seu controle exige o uso regular de

    medicamentos preventivos e de certo controle ambiental de aeroa-

    lrgenos, nem sempre possvel em ambientes de trabalho do mdico

    plantonista brasileiro. A asma pode ser agravada por infeces res-

    piratrias agudas, s quais os mdicos esto comumente expostos, e

    por fatores estressantes, igualmente comuns na atividade mdica. A

    rinite alrgica, associada ou no asma (atopia), enfermidade de

    prevalncia elevada na populao geral.

    Adoecer deveria obrigar o indivduo a recorrer a auxlio m-

    dico para o diagnstico correto de sua enfermidade e tratamento

    adequado. O mdico o nico profi ssional qualifi cado para diagnos-

    ticar e tratar uma doena. Mas, e quando o prprio mdico adoece?

    Estando o Brasil entre os primeiros pases do mundo em automedi-

    cao, imagina-se que o mdico faa seu prprio diagnstico e ins-

    titua seu tratamento, por sua conta e risco. No bem assim. Neste

    livro, procurar-se- no captulo correspondente saber acerca do uso

    de medicamentos pelos mdicos entrevistados, mas que tenham sido

    prescritos por outro mdico. Se verdade que muitos praticam in-

    devidamente o autocuidado, tambm o a prevalncia do bom-

    senso. Ter humildade para procurar ajuda no sinal de fraqueza ou

    incompetncia, mas simplesmente buscar o melhor para si, reconhe-

    cendo ademais o carter cientfi co do seu mister e a pertinncia das

    diversas especialidades.

    A automedicao condenvel, pois alm dos riscos inerentes

    ao uso incorreto de um medicamento, muitas vezes txico e com

    efeitos colaterais que necessitam superviso mdica, pode mascarar

    ou retardar um diagnstico agravando a situao do paciente. Do

  • 56 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    mdico-paciente tambm se espera este compromisso. Por mais que

    conhea da doena que o acomete, no prudente assumir seu caso

    sem o concurso de um colega. Nem o seu, nem de pessoas de sua fa-

    mlia, o que recomenda a boa prtica da Medicina. Isso porque o

    mdico-doente jamais ter a iseno necessria para diagnosticar e

    tratar de si mesmo ou de seus familiares mais prximos. grande o

    risco do embotamento da razo pela emoo, fatalmente induzindo-

    o a minimizar ou superestimar seu diagnstico.

  • Munir MassudGenrio Alves BarbosaValdiney V. Gouveia

    AS DR O G A S PS I C O T R P I C A S

    CA

    PT

    UL

    O 4

  • 58 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA

    Inicialmente deve ser salientado que os termos droga, medi-

    camento, frmaco no devem ser usados com o mesmo signifi cado,

    pois no so sinnimos. De acordo com a ANVISA, em seu Gloss-

    rio de Vigilncia Sanitria (MINISTRIO DA SADE, 2003), o termo

    droga deve designar substncia ou matria-prima que tenha fi nali-

    dade medicamentosa ou sanitria. Depois de certa manipulao, ou

    de manipulaes, as drogas transmudam-se em medicamentos. En-

    tende-se por frmaco a substncia qumica que o princpio ativo do

    medicamento. Medicamento o produto farmacutico com fi nalida-

    de profi ltica, curativa, paliativa ou para fi ns diagnsticos. No sculo

    XX a palavra droga ganhou um novo signifi cado, passando a ser em-

    pregada como sinnimo de txico. O verbo drogar e o seu particpio

    passado, drogado, expressam, respectivamente, o uso de txicos e o

    estado decorrente da ao destes (REZENDE, 2000). Psicotrpico

    substncia que pode determinar dependncia fsica ou psquica e re-

    lacionada, como tal, nas listas aprovadas pela Conveno sobre Subs-

    tncias Psicotrpicas. Na listagem apresentada no presente estudo,

    incluem-se hormnios esterides (anabolizantes) que no produzem

    dependncia, alm de orexgenos que produzem, em doses elevadas,

    excitao associada a distrbios sensoriais.

    Neste livro o termo droga utilizado como sinnimo de subs-

    tncia psicoativa, pois esses termos so intercambiveis na CID-10,

    correspondentes aos cdigos F10 a F19. Os termos dependncia e

    abuso de frmaco tambm sero aqui utilizados. A palavra drogao,

    citada por OBrien (2006), refere-se ao uso compulsivo de drogas

    que corresponde ao conjunto da Sndrome de dependncia, confor-

    me a defi ne o DSM-IV. Dependncia de drogas , pois, sinnimo de

    drogao, o que referendado pelo celebrado dicionarista Antnio

    Houaiss ao defi nir drogao como ato ou efeito de drogar (HOU-

    AISS e VILLAR, 2001), que pode signifi car fazer uso de narctico,

    entorpecente ou alucingeno.

  • 59A SADE DOS MDICOS DO BRASIL

    De acordo com Rang, Dale, Ritter e Moore (2004), a dependn-

    cia de drogas ou adio descreve a situao em que seu uso comum

    assume uma qualidade compulsiva, com prioridade sobre as outras

    necessidades. OBrien (2006) remata indicando que o conjunto de

    sintomas que indica que o indivduo continua a usar a substncia,

    apesar dos problemas signifi cativos que o seu consumo acarreta. Os

    sintomas de tolerncia e abstinncia esto includos na lista de sinto-

    mas, mas a tolerncia ou os sinais de abstinncia no so necessrios

    nem sufi cientes para fi rmar o diagnstico de drogao. O termo vcio

    inadequado e tende a se referir