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95 LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI COnSideraçõeS CrítiCaS SOBre a Lei nº 13.546/2017 (CriMeS COMetidOS na direçÃO de VeíCULOS aUtOMOtOreS) CrItICAL COnSIDErAtIOnS On LAw 13.546/2017 (CrIMES COMMIttED In tHE DIrECtIOn OF AUtOMOtIVE VEHICLES) COnSIDErACIOnES CrítICAS SOBrE LA LEy nº 13.546/2017 (CríMEnES COMEtIDOS En LA DIrECCIÓn DE VEHICULOS AUtOMOtOrES) Leonardo Schmitt de Bem Doutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália) Doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha) Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal) Professor Adjunto de Direito e Processo Penal na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) João Paulo Orsini Martinelli Pós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo Professor de Direito Penal do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP) Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP) Advogado criminalista Resumo: Este texto tem a finalidade de apresentar algumas implicações da nova Lei nº 13.546/2017 em relação aos aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. Novamente, como é praxe neste setor social, as mudanças acarretarão muitas dúvidas e poucas certezas. Embora a péssima técnica adotada na proposição dos dispositivos legais, as considerações a seguir apresentadas poderão auxiliar os intérpretes judiciais em suas decisões. Inicia-se com a apresentação do itinerário do projeto de lei no Congresso Nacional para, em seguida, destacar que muito pouco da propo- sição originária foi, de fato, convertido em lei. Na sequência, comenta-se a qualificadora do crime de homicídio culposo de trânsito e, em especial, voltam-se os olhares à eterna discussão entre culpa consciente e dolo eventual. Finaliza-se o ensaio com pontuais considerações sobre as outras mudanças típicas. Palavras-chaves: Trânsito, homicídio, lesões, racha.

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LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

COnSideraçõeS CrítiCaS SOBre a Lei nº 13.546/2017(CriMeS COMetidOS na direçÃO

de VeíCULOS aUtOMOtOreS)

CrItICAL COnSIDErAtIOnS On LAw 13.546/2017(CrIMES COMMIttED In tHE DIrECtIOn

OF AUtOMOtIVE VEHICLES)

COnSIDErACIOnES CrítICAS SOBrE LA LEy nº 13.546/2017(CríMEnES COMEtIDOS En LA DIrECCIÓn

DE VEHICULOS AUtOMOtOrES)

Leonardo Schmitt de BemDoutor em Direito Penal pela Università degli Studi di Milano (Itália)

Doutor em Direitos Fundamentais e Liberdades Públicas

pela Universidad de Castilla-La Mancha (Espanha)

Mestre em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Professor Adjunto de Direito e Processo Penal na Universidade

Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS)

João Paulo Orsini MartinelliPós-Doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal)

Doutor e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo

Professor de Direito Penal do Instituto de Direito Público de São Paulo (IDP/SP)

Membro da Comissão de Direito Penal Econômico da OAB/SP

e do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP)

Advogado criminalista

Resumo:

Este texto tem a finalidade de apresentar algumas implicações da nova Lei nº 13.546/2017 emrelação aos aspectos criminais do Código de Trânsito Brasileiro. Novamente, como é praxe nestesetor social, as mudanças acarretarão muitas dúvidas e poucas certezas. Embora a péssima técnicaadotada na proposição dos dispositivos legais, as considerações a seguir apresentadas poderãoauxiliar os intérpretes judiciais em suas decisões. Inicia-se com a apresentação do itinerário doprojeto de lei no Congresso Nacional para, em seguida, destacar que muito pouco da propo-sição originária foi, de fato, convertido em lei. Na sequência, comenta-se a qualificadora docrime de homicídio culposo de trânsito e, em especial, voltam-se os olhares à eterna discussãoentre culpa consciente e dolo eventual. Finaliza-se o ensaio com pontuais considerações sobre asoutras mudanças típicas.

Palavras-chaves:

Trânsito, homicídio, lesões, racha.

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Abstract:

This text aims to present some implications of the new Law 13,546/2017 in relation to the criminalaspects of the Brazilian Traffic Code. Once again, as it is customary in this social sector, the changeswill imply many doubts and few certaincies. Although the bad technique adopted in the propositionof the legal provisions, the following considerations can help judicial interpreters in their decisions.It begins with the presentation of the itinerary of the bill in the National Congress to, then, highlightthat very litthe of the original proposition was in fact converted into law. Next, we comment thequalifier of the involuntary manslaughter in traffic and, in particular, we take a glance at the eternaldiscussion about "culpa consciente" e "dolo eventual". This essay is finalized the punctual conside-rations on other changes in legal devices.

Keywords:

Traffic, homicide, injuries, street racing.

Resumen: Este texto tiene por finalidad presentar algunas de las implicaciones de la reciente Leynº 13.546/2017 con relación a los aspectos criminales del Código de Tránsito y Seguridad Vial Bra-sileño. Nuevamente, como suele ocurrir en ese sector social, los cambios acarrearán muchasdudas y pocas certezas. A pesar de la pésima técnica adoptada en la proposición de los dispo-sitivos legales, las consideraciones presentadas a continuación podrán servirles de auxílio a losintérpretes judiciales en sus decisiones. Empieza con la presentación del itinerario del proyectode ley en el Congreso Nacional para, posteriormente, evidenciar que muy poco de la proposiciónoriginal fue, de hecho, convertido en ley. Después, se comenta la calificación del crimen de ho-micidio involuntario de tránsito y, en lo particular, el enfoque gira hacia la eterna discusión entreculpa consciente y dolo eventual. El ensayo concluye con consideraciones puntuales sobre losotros cambios típicos.

Palabras clave:

Tránsito, homicidio, lesiones, carreras callejeras (“picadas”).

rEVIStA DO MInIStérIO PúBLICO DO EStADO DE GOIáS

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LEOnArDO SCHMItt DE BEM / JOÃO PAULO OrSInI MArtInELLI

PaSSO a PaSSO: dO PrOLiXO trÂMite LeGiSLatiVO À SançÃO PreSidenCiaL¹

A deputada Keiko Ota (PSB/SP) apresentou no dia 15 de maio de 2013 proposta dealteração de artigos da Lei nº 9.503/1997, que instituiu o Código de trânsito Brasileiro (CtB).Em sua justificativa, aduziu que a proposição visava estabelecer tolerância zero e puniçãodefinitiva para quem bebe e dirige. nos dizeres da parlamentar, com o fim de conscientizarquem desconsidera a educação de trânsito, as sanções ideais consistiriam na prestação deserviços à comunidade e no pagamento de multa. na sequência, a título de informação,enumeramos os preceitos do PL nº 5.568/2013 que correlacionam direção e álcool:

1. Pena de cinco a oito anos de reclusão ao homicídio culposo cometido na direção deveículo automotor se o agente dirigir em via pública e estiver sob a influência de qualquerconcentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos (art. 2º, § 2º).

2. Aumento de um terço à metade da sanção do crime de lesão corporal culposa detrânsito, se o agente dirigir em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentraçãode álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos (art. 4º, § 1º).

3. nova redação ao crime de embriaguez ao volante, proibindo a condução de veículoautomotor, em via pública, sob a influência de álcool ou de qualquer substância psicoativaque determine dependência. A pena mínima cominada foi elevada para um ano (art. 5º).

4. revogação da infração do art. 165 do CtB (art. 6º).

5. Possibilidade de utilização de qualquer prova em direito admitida com o fim de com-provar os notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor.(BrASIL, 2013)

A Mesa Diretora da Câmara dos Deputados determinou a apensação da proposta aoPL nº 5.512/2013, que dispunha sobre a fixação de um índice tolerável de alcoolemia nadireção de veículos automotores. Em seguida, a deputada Ota requereu o desapensamentosob a alegação de que os projetos eram contrapostos. O pleito foi indeferido nos termosdo art. 142 do regimento Interno, pois o objeto das iniciativas seria correlato.

A proposta originária foi arquivada em 31 de janeiro de 2015, pois se encontrava emtramitação quando finda a legislatura. Em seguida, no início de fevereiro, houve pedido dedesarquivamento aceito pela Mesa Diretora.

O deputado Hugo Leal (PSB/rJ) foi designado pelo plenário para proferir parecer pelaComissão de Viação e transportes (CVt). Em seu voto, rejeitou o PL nº 5.512/2013 sob oargumento de evidente retrocesso no que tange à segurança do trânsito. Por sua vez,apresentou Substitutivo ao PL nº 5.568/2013. Propôs (BrASIL, 2015):

1 http://www.camara.gov.br/proposicoesweb/fichadetramitacao?idProposicao=576699

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1. Inclusão de § 3º ao art. 291 do CtB, limitando em cinco anos a pena concretamenteaplicada a alguns crimes para fins de substituição por sanções alternativas. Depois, apresentouSubemenda para alterar a expressão “cinco anos” para “quatro anos”.

2. Inclusão de § 4º ao art. 291 do CtB, invocando especial atenção do julgador na valoraçãoda culpabilidade e das circunstâncias e consequências do crime quando da fixação da pena-base.

3. Pena de quatro a oito anos de reclusão ao crime de homicídio culposo de trânsito,se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão dainfluência de álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência.

4. Pena de três a seis anos de reclusão ao crime de lesão corporal culposa de trânsito,se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influênciade álcool ou outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultarlesão corporal grave.

5. Inclusão da elementar “ou praticar exibição e demonstração de perícia em manobrade veículo” ao tipo legal do art. 308 da Lei nº 9.503/1997.

Pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) fora designado o depu-tado Efraim Filho (DEM/PB). Em parecer, igualmente rejeitou o PL nº 5.512/2013 e ofereceunovo Substitutivo ao PL nº 5.568/2013 por não entender razoável e proporcional os aumentosde pena apresentados na proposta originária e no Substitutivo da CVt. nesse sentido,destacam-se as principais mudanças (BrASIL, 2015):

1. Fixação da pena de reclusão de três a oito anos para a figura qualificada de homicídioculposo, quando o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada emrazão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.

2. Fixação da pena de reclusão de dois a cinco anos para o crime de lesão corporalculposa, se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada emrazão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência,e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave.

Após idas e vindas pelas Comissões, em Plenário foram apresentadas emendas. naprimeira, o deputado Laércio Oliveira (SD/SE) pretendia a cominação de pena mais gravosa(cinco anos) ao indivíduo que provoca homicídio culposo de trânsito sob o efeito de álcool.na segunda, o deputado André Figueiredo (PDt/CE) pretendia extirpar do texto a limitaçãode substituição penal. Ambas foram rejeitadas. na sequência, em votação em turno único,o Plenário aprovava um Substitutivo único ao PL nº 5.568/2013.

O PL nº 5.568-A/2013 apresentava a seguinte redação final (BrASIL, 2015):

1. Inclusão dos §§ 3º e 4º ao art. 291 do CtB, o primeiro limitando em quatro anos o quantumde privação de liberdade passível de ser substituída, desde que atendidos os demais pressupostosdo art. 44 do Código Penal, para determinados delitos, e o segundo invocando especial atençãopor parte do magistrado, na fixação da pena-base, de três circunstâncias judiciais.

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2. Previsão de pena privativa de liberdade de reclusão de quatro a oito anos e de penasacessórias à modalidade qualificada de homicídio culposo, quando o agente conduz veículoautomotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou dequalquer outra substância psicoativa que determine dependência.

3. Previsão de pena privativa de liberdade de reclusão de dois a cinco, sem prejuízodas sanções acessórias, ao crime de lesão corporal culposa de trânsito, se o agente conduzveículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcoolou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesãocorporal de natureza grave ou gravíssima.

4. Inclusão da elementar “ou praticar exibição e demonstração de perícia em manobrade veículo” ao tipo legal do art. 308 da Lei nº 9.503/1997.

Encaminhou-se, em seguida, ao Senado Federal, sendo designado Aloysio nunes(PSDB/SP) como relator. Posicionou-se favorável à aprovação do Projeto da Câmara em julhode 2016. O senador Antonio Anastasia (PSDB/MG) apresentou duas propostas com a finali-dade de emendar o PL. na primeira, pretendia modificações de cunho qualitativo e quantita-tivo quanto à qualificadora do homicídio culposo de trânsito. In verbis (BrASIL, 2017):

Art. 302. § 2º. Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualqueroutra substância psicoativa que determine dependência: Penas – reclusão, de cinco a oitoanos, e suspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigirveículo automotor. (nr)

A alteração qualitativa cinge-se à expressão “capacidade psicomotora alterada” – queseria suprimida – de sorte que apenas a “influência” do álcool ou de outra substânciapsicoativa diversa já seria suficiente à configuração do crime. Sob o aspecto quantitativo, oaumento do limite mínimo de pena (cinco anos) foi proposto para evitar o cumprimentoinicial da privação de liberdade em regime aberto.

na segunda proposta de emenda, entendendo que a chamada “tolerância zero” é aque melhor atende aos interesses da sociedade, ofertou o acréscimo ao PL nº 5.568/2013 denova redação ao crime de embriaguez ao volante:

Art. 306. Conduzir veículo automotor sob a influência de álcool ou de qualquer outra subs-tância psicoativa que determine dependência. Penas – detenção, de um a três anos, multa esuspensão ou proibição do direito de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículoautomotor.

À configuração do crime não seria necessário comprovar que o condutor estava comsua capacidade psicomotora alterada, é dizer, a condução sob influência de qualquerconcentração de álcool ou de outra substância psicoativa seria suficiente para a incidênciade responsabilidade penal. Haveria equiparação com o art. 165 do CtB.

Houve aprovação pelo plenário do Senado Federal em 24 de novembro de 2016, mas aComissão Diretora apresentou Parecer nº 910/2016 propondo três emendas (BrASIL, 2016b):

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1. A supressão da expressão “no § 2º do art. 302” constante do § 3º do art. 291, funda-mentando-se no fato de que o parágrafo foi revogado pela Lei nº 13.281/2016, de 4 de maio.

2. A renumeração do § 2º do art. 302 para § 3º, pois a LC nº 95/1998 veda o reaproveitamentode número de preceito revogado; o aumento de quatro para cinco anos da pena mínima do crimede homicídio culposo qualificado e a abolição da expressão “capacidade psicomotora alterada”.

3. A alteração da redação do art. 306 suprimindo a expressão “capacidade psicomo-tora alterada” e destacando que “qualquer concentração de álcool por litro de sangue oude ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no caput”.

Antes de apreciação das três emendas pelo plenário da Câmara dos Deputados, emregime de urgência, determinou-se vista à CVt e, em seguida, à CCJC.

Pela primeira, sob a relatoria do deputado Hugo Leal, apresentou-se parecer ao PLnº 5.568-B/2013 acatando as duas primeiras emendas. Com efeito, ajustou-se o texto do PLà atual redação da Lei nº 9.503/1997 e reputou-se “razoável” o aumento para cinco anos dapena mínima do homicídio culposo qualificado diante da similitude de risco para uma dasformas qualificadas do crime de racha (art. 308, § 2º). A Emenda nº 3 do Senado foi rejeitada,pois a nova redação do art. 306 igualaria o delito à infração administrativa do art. 165 doCtB, contrariando, assim, o princípio da intervenção penal mínima.

A deputada Christiane de Souza yared (Pr/Pr) apresentou voto em separado, pro-pugnando pela aprovação integral das emendas. Devolvido para reexame pelo relator, oparecer inicial não foi alterado, razão pela qual a parlamentar solicitou a retirada de seu voto.no dia 17 de maio de 2017, em reunião Deliberativa Ordinária, por unanimidade, foi aprovadoo parecer do deputado Hugo Leal, sendo publicado dois dias depois.

Pela CCJC, a relatoria ficou a cargo do deputado Capitão Augusto (Pr/SP), votando-sepela constitucionalidade, juridicidade e adequação de técnica legislativa e, no mérito, pelaaprovação do PL e das três emendas do Senado Federal. Especificamente, enfatizou que aelevação da pena mínima cominada à qualificadora do crime de homicídio culposo de trânsitoera adequada, porquanto o grau de reprovabilidade da conduta era semelhante à previsãodo crime de racha qualificado pelo resultado morte (art. 308, § 2º). no que se refere aoart. 306, apoiando-se nos anseios sociais de intolerabilidade do “casamento” direção e álcool,matizou que o endurecimento penal era medida de aprimoramento do Código de trânsito.

Discordando parcialmente do voto do relator, o deputado Hugo Leal apresentou votoem separado perante à CCJC, matizando o seu receio de que a “Lei Seca”, que hoje é admi-nistrativa, se tornasse também criminal. Dias depois, em outro arrazoado, o deputadoCapitão Augusto declarou que a Emenda nº 1 se apresentava com má técnica legislativa eque a Emenda nº 3 acabaria por criar situações de enfraquecimento da Lei Seca. no votocomplementar, ainda propôs nova redação ao § 3º do art. 291 do CtB.

A deputada Keiko Ota, no final de novembro de 2017, apresentou requerimento deurgência para apreciação da proposição. na mesma data, na CCJC, o deputado Capitão Augustoofereceu Subemenda de redação à Emenda nº 2 do Senado ao PL nº 5.568-B/2013.

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Em sessão deliberativa extraordinária, ocorrida em 5 de dezembro, o deputado JúlioDelgado (PSB/MG) foi designado relator para proferir parecer final pela CCJC. na ocasião, houvediscussão da matéria, porém o parecer do deputado Capitão Augusto foi totalmente ratificado,sendo o texto aprovado pelo plenário da Câmara e encaminhando à sanção presidencial.

Pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei foi transformado naLei Ordinária nº 13.546/2017, com veto parcial a seguir analisado. Em 20 de dezembro de 2017foi publicada no Diário Oficial da União, página 10, coluna 2.

da PrOPOSta OriGinÁria À Lei OrdinÁria: O QUe PerManeCeU inaLteradO?

Da cronologia apresentada no tópico anterior, infere-se que apenas um aspecto daproposição da deputada Keiko Ota foi, de fato, inalterado e, como tal, pode-se dizer que avontade perseguida pela parlamentar corresponde infimamente ao fim objetivo da nova leiordinária. A intenção legislativa originária de estabelecer a “tolerância zero” na esferacriminal esvaiu-se entre as propostas de substitutivos e suas respectivas emendas.

O ponto similar diz respeito à pena cominada ao crime de homicídio culposo de trânsitoem sua forma qualificada, é dizer, reclusão de cinco a oito anos. Permitindo-nos postergara apresentação de críticas à desproporcionalidade sancionatória em outro tópico, registra-mos que a respectiva qualificação, desde que respeitadas certas regras tradicionais de fixa-ção da pena, afastará a determinação do regime aberto e possibilitará a incidência do regimefechado para início do cumprimento da pena privativa de liberdade.

Em nenhum momento, porém, para esse ou outro delito, a deputada impôs óbice paraa incidência de pena alternativa à privação de liberdade. Pelo contrário, registrou na justifi-cativa do PL nº 5.568/2013 que a prestação de serviços à comunidade se revelava uma sançãoideal a quem desconsiderava a educação de trânsito. O alcance deste escopo, no entanto,decorreu apenas com o veto presidencial ao § 3º do art. 291 do CtB acrescido pelo Substitu-tivo aprovado no plenário da Câmara dos Deputados².

Este parágrafo propunha um limite quantitativo de pena privativa de liberdadeconcretamente aplicada para alguns crimes, para fins de substituição por penas restritivasde direitos. Isto é, a pena privativa de liberdade imposta ao condenado pelo novo crime dehomicídio culposo qualificado de trânsito, pelo novo crime de lesão corporal culposa quali-ficada de trânsito e pelas formas qualificadas do crime de racha, para ser substituída porpenas restritivas de direitos, não poderia superar quatro anos, atendidas as demais condi-ções legais dos incisos II e III do art. 44 do Código Penal.

Uma interpretação judicial deveria levar em atenção a regra do art. 12 do Código Penal,isto é, a regra especial (§ 3º) prevaleceria sobre as regras gerais (art. 44, I) quanto aos fatostipificados na Lei de trânsito. Ocorre que este parágrafo foi vetado, porquanto

2 O acréscimo do § 3º decorreu do Substitutivo ao PL apresentado pelo Deputado Hugo Leal (PSB-rJ).

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apresenta incongruência jurídica, sendo parcialmente inaplicável, uma vez que, dos três casos elenca-dos, dois deles preveem penas mínimas de reclusão de cinco anos, não se enquadrando assim nomecanismo de substituição regulado pelo Código Penal. Assim, visando-se evitar insegurança jurídica,

impõe-se o veto ao dispositivo.³

O mecanismo de substituição referido no texto do veto se relaciona com o inciso I doart. 44 do Código Penal que, numa síntese, considera a natureza do crime praticado, aquantidade de pena aplicada e a modalidade de execução da infração (BrASIL, 1940). Oveto destaca, implicitamente, o delito de homicídio culposo de trânsito qualificado (art. 302,§ 3º) e o delito de racha qualificado pelo resultado morte (art. 308, § 2º), porque em ambosa pena (privativa de liberdade) mínima cominada é de cinco anos.

A partir desses esclarecimentos é possível verificar a imprecisão do conteúdo do veto.Em primeiro lugar, pois qualquer que seja a pena privativa aplicada ao condenado, sendo ocrime culposo, admite-se a substituição (art. 44, I, parte final). Essa regra não encontra óbiceno CtB e, como tal, deverá ser respeitada para os crimes previstos nesse diploma legal. épara os crimes dolosos que há limitação do quantum de pena.

Em segundo lugar, mesmo antes da promulgação da novel lei, o delito de rachaqualificado não admitia a substituição. Sendo uma figura preterdolosa, há dolo do agentedirigido, por exemplo, à participação, em via pública, de competição automobilística nãoautorizada. O resultado morte sobrevém por culpa. Ou seja, o dolo do agente se restringeapenas à participação no racha. E a presença desse elemento (o dolo), ainda que não setrate exclusivamente de crime doloso, a nosso ver, por si só impede a incidência penalalternativa, até porque, provavelmente, a pena final ficará além de quatro anos.

Se não for o bastante, deve-se considerar o fato de que, regra geral, o resultado mortederiva de uma conduta violenta. nesse caso, embora a vis corporalis não constitua elementardo tipo legal do § 2º do art. 308 do CtB, a substituição igualmente é obstada tendo em vistaa ocorrência da violência por meio instrumental. O objeto contundente é o veículo automo-tor. A violência, assim, não é elementar explícita do delito, como ocorre, por exemplo, noroubo, porém, é meio para a prática do crime. E a regra do inciso I do art. 44 do DiplomaPenal afasta a conversão da pena quando o crime é “cometido com violência”, independen-temente de ser ou não elementar do tipo.

Interpretando-se o conteúdo do veto presidencial a partir desses esclarecimentos,admite-se que o agente condenado por crime culposo de trânsito seja beneficiado com asubstituição da privação de liberdade por outra espécie de pena. Portanto, no homicídioculposo qualificado e na lesão corporal culposa qualificada, após o término da dosimetria,provavelmente a substituição seguirá a regra do § 2º do art. 44 do Código Penal.

Advindo uma única pena restritiva de direito, diante da especialidade do CtB, deveráincidir a pena de prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas em qualquerdas atividades elencadas nos incisos do art. 312-A com redação dada pela Lei nº 13.281/2016.Em caso de cumulação, deverá ser imposta conjuntamente com a interdição de direito pre-vista no inciso III do art. 47 do Código Penal (art. 57).

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3 Mensagem nº 538, de 19 de dezembro de 2017.

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Assim, embora sejamos contrários à reconsideração de algumas diretrizes após o tér-mino da dosimetria por manifesta violação ao princípio do ne bis in idem (MArtInELLI; DE BEM,2018, p. 905), eventual não substituição penal somente sucederá se houver valoração negativadas circunstâncias judiciais do inciso III do art. 44 do Código Penal4, pois, havendo condenaçãopor crime culposo, o agente até poderá ser reincidente, mas não em crime doloso (art. 44, II).

a FiXaçÃO da Pena-BaSe nOS CriMeS de trÂnSitO

Por meio do Substitutivo ao PL nº 5.568/2013 ofertado pelo deputado Hugo Leal,também foi incluído o § 4º no art. 291 do Código de trânsito. O dispositivo estipula regrarelacionada à fixação da pena-base, invocando uma especial atenção do julgador quanto àculpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime5.

O proponente não apresentou qualquer justificativa para sua inclusão, e tampoucohouve discussão a respeito no plenário da Câmara dos Deputados. A lacuna relacionada ànovel previsão, com efeito, ensejará uma série de interpretações, pois, apenas para ilustrar,o que se deve entender pela expressão “dando especial atenção”? no palco da especulaçãoserá possível sugerir que as circunstâncias referidas no § 4º do art. 291 sejam valoradas deforma preponderante sobre as demais diretrizes consignadas no art. 59 do Código Penal.no campo das ideias, por sua vez, é dever indicar que o procedimento de determinação dapena-base deve pautar-se na missão constitucional de redução de danos ao apenado.

Adotando-se a última orientação, o contorno da culpabilidade na fixação da pena-basedeverá ser realizado pelo conteúdo do injusto e pautado no maior ou menor esforço doagente para alcançar uma situação de vulnerabilidade. Assim, a contrariedade ao dever decuidado será aferida na análise da tipicidade e, no momento da fixação da pena-base, ojulgador deverá, proporcionalmente, avaliar a culpa inconsciente de forma mais branda àculpa consciente, pois, naquele contexto, há um menor esforço despendido pelo condutorpara se autoinserir em situação de vulnerabilidade (rOIG, 2013).

no tocante às circunstâncias do crime, trata-se de critério residual, pois apenas pode-rão ser consideradas pelo julgador aquelas que não constituem elementares do crime (restavedada, portanto, qualquer consideração à embriaguez do condutor), ou categorias dascircunstâncias legais – art. 298, CtB – ou causas de aumento de pena – art. 302, § 1º eart. 303, § 1º, CtB). Deve-se evitar uma dúplice valoração negativa. relevante afirmar, ainda,que o julgador deverá excluir quaisquer circunstâncias que não possuem conexão diretacom o delito, como, por exemplo, a conduta processual do acusado. também será deverdo sentenciante preservar a fundamentação do ato decisório. Logo, deve apresentar umelemento concreto que, efetivamente, evidencie a real necessidade de exasperação da pena, enão optar somente por dados vagos para justificar a exasperação .

4 O legislador não mencionou as consequências do crime na redação do inciso III do art. 44, de sorte que,mesmo valorada negativamente, essa circunstância não impedirá a substituição.5 § 4º. O juiz fixará a pena-base segundo as diretrizes previstas no art. 59 do Código Penal, dando especialatenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime.

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naquilo que é pertinente às consequências do crime, reforça-se que o julgador não podesopesar a pena-base considerando a morte do agente ou a gravidade das lesões corporaissofridas pela vítima, pois essas consequências, por serem inerentes aos tipos (são elementaresque diferem esses tipos penais de outros), foram previamente aferidas pelo legislador quandoda cominação dos limites de pena. Deve-se ter enorme cuidado nessa avaliação, porque épossível dar início a uma cadeia sem fim e chegar a resultados distantes da conduta ofensivapraticada. nesse aspecto, as consequências não abrangidas pelo âmbito de proteção da normapenal deverão ser desconsideradas (FrISCH apud tEIXEIrA, 2017, p. 31).

numa síntese, sem desconsiderar alternativas de interpretação quanto à dosimetriada pena-base, mas valendo-se da ausência de justificativa prévia no tocante à inserção dorespectivo parágrafo e, assim, da impossibilidade de se alcançar a vontade perseguida peloslegisladores, deve-se reforçar que o julgador realize a individualização de cada circunstância(constitucional) de maneira particularizada.

a FiGUra QUaLiFiCada dO CriMe de HOMiCídiO CULPOSO de trÂnSitO

A redação da modalidade qualificada de homicídio culposo de trânsito adquiriu con-tornos bastante diversos desde a proposição originária6 até sua promulgação em lei7. Adiferença relevante não está, no entanto, na eleição do núcleo da infração, até porqueconduzir, para fins legais, significa dirigir, mas sim na supressão do substantivo deverbal“estiver” e do elemento normativo “qualquer concentração”.

Vimos que a intenção da deputada Keiko Ota foi estabelecer tolerância zero por meioda incriminação. no caso, bastaria a mera ingestão de bebida alcoólica ou o simples uso dedrogas, independentemente de qualquer alteração psíquica ou motora do condutor. Anosso ver, porém, a escolha do termo “estiver” transmitia um sentido contraditório ao seupropósito, pois passaria a ser imperativo aferir certo estado temporário do agente, é dizer,sua permanência sob a influência de álcool ou de outra substância de efeitos análogos.

Parece-nos, inclusive, que na redação final da Lei nº 13.546/2017 se transferiu a impor-tância de qualquer circunstância pessoal para uma circunstância fática, de sorte que nemmesmo a proposição do Substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados vingou,8 poisfoi suprimida a expressão “capacidade psicomotora alterada”. Assim, a circunstância fáticarelevante reside justamente na influência que o álcool ou qualquer outra substância provocana forma como o agente conduz o veículo automotor.

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6 no homicídio culposo cometido na direção de veículo automotor, a pena será de reclusão de 5 a 8 anos,se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência de qualquer concentraçãode álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.7 Se o agente conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativaque determine dependência: Penas - reclusão, de 5 a 8 anos, e suspensão ou proibição do direito de seobter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.8 A pena é de reclusão, de quatro a oito anos, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotoraalterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência.

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Essa interpretação poderá causar dissabores, todavia. Quando a redação originária foialterada, em contextos com resultado morte, a ingestão prévia de qualquer quantidade deálcool ou substância de efeitos análogos não deixou de ser relevante, porém, sob pena deum alargamento incontrolável da forma qualificada, será imprescindível comprovar se aquantidade ingerida contribuiu para o evento fatal em razão de uma condução anormal porparte do motorista. Cumprirá a acusação comprovar se o risco criado pelo agente – eposteriormente realizado – decorreu do efeito do álcool na própria condução. Vale semprelembrar que o dogma da ofensividade impõe a necessidade de prova do risco criado tantopara figura simples quanto para a qualificadora.

O que é necessário entender é que nem todo acidente com morte e que envolve umcondutor que fez a ingestão prévia de álcool será provocado pela influência da bebida. nãoobstante possíveis outros contextos, imagine um motorista que, após deixar um bar, aodesviar de um buraco na via de trânsito, envolve-se em colisão adentrando na contramão.Pelo exemplo, imputar ao agente a figura qualificada do crime de homicídio culposo seriaburlar o princípio da legalidade. Diferente seria se esse condutor, após invadir a faixa detrânsito contrária para esquivar o buraco, não retornasse a sua pista de rodagem emrazão da influência do álcool, vindo a colidir frontalmente com outro veículo.

Seria vergonhoso negar a sanha punitivista do legislador, mas mais vergonhoso seriaessa imagem refletir automaticamente nas decisões judiciais. Por isso, há necessidade deos magistrados restringirem a incidência da qualificadora apenas se comprovado queo acidente decorreu da influência do álcool na condução. Se optarem por caminho diverso,a tolerância zero na esfera criminal será inaugurada pelo próprio Judiciário, e iniciar-se-áuma trajetória sem volta para a responsabilidade penal objetiva.

Sobre a cólera punitivista, aliás, muito se discutiu no itinerário legislativo do PLnº 5.568/2013, mormente sobre a margem mínima de pena que deveria compor o preceitosecundário da norma penal. A sugestão inicial, aliás, foi resgatada pelo Senado Federal,9 poisas proposições alternativas dos deputados Hugo Leal e Efraim Filho (Substitutivos) a fixavamem patamar menor, respectivamente, quatro e três anos.

Sobre essas oscilações, se nos permitem um breve regresso, é dever recordar que aLei nº 12.971/2014 havia proposto três qualificadoras ao delito de homicídio culposo detrânsito, sendo uma delas muito semelhante à previsão atual.10 À época, porém, o legisladorse limitou a alterar a espécie de privação de liberdade, é dizer, passou a sancionar a formaqualificada com pena de reclusão, de dois a quatro anos. Por questão diversa, o dispositivofoi revogado dois anos depois pela Lei nº 13.281/2016, de 4 de maio11.

9 Pela proposta de emenda apresentada pelo Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG).10 Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência deálcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida,disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra deveículo automotor, não autorizada pela autoridade competente.11 Art. 6º. revogam-se o inciso IV do art. 256, o § 1º do art. 258, o art. 262 e o § 2º do art. 302, todos da Leinº 9.503, de 23 de setembro de 1997.

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Essa lembrança é a prova viva do desrespeito ao princípio da proporcionalidade.ressuscitou-se uma das qualificadoras, se o crime de homicídio culposo for praticado poragente influenciado pelo álcool, porém, inacreditavelmente com a pena mínima de cincoanos. é patente a violação à proibição de excesso, pois a pena mínima foi elevada em trêsanos depois da revogação do referido dispositivo. E a violação será ainda mais manifestase, em interpretação sistemática, compararmos o mínimo cominado à presente infraçãocom o mínimo previsto aos demais casos de homicídio culposo não causados na direção deveículo automotor, isto é, um ano de detenção (art. 121, § 3º do Código Penal).

Mesmo assim, não podemos olvidar que houve vozes na Câmara dos Deputados e noSenado Federal que exigiram que a pena mínima da infração correspondesse àquela previstapara o crime de racha com resultado de morte. A equiparação, com efeito, afastaria a fixaçãodo regime aberto para início de cumprimento da pena. A paridade sancionatória ocorreu,sendo que o parâmetro adotado se restringiu ao resultado das condutas (morte). Essafórmula seguiu a mesma orientação dada Lei nº 12.971/2014.

Mesmo diante dessa interpretação, é impossível não observar a proximidade entre apena mínima da figura qualificada do homicídio culposo de trânsito com a pena mínimacominada ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal. A moderação foi totalmenteabandonada, pois a diferença perfaz apenas um ano. O mais grave, porém, estará por vir,porque o excesso de proibição do novo § 3º do art. 302 do CtB será encoberto a partir dediscursos de descumprimento do dever legal de proteção penal no que respeita à infraçãodo art. 121 do CP. Em outros termos, sob a alegação de proteção insuficiente, não tardará aocorrência de reivindicações pela elevação das margens penais do último delito. nossolegislador se apoiou no desvalor da ação exclusivamente pela embriaguez, deixando de ladoo elemento subjetivo dolo, que assume contornos mais graves que a culpa.

Mais além da mudança quantitativa de pena, a novel previsão também modificou aespécie de privação de liberdade quando da incidência da figura qualificada. Ao prever apena de reclusão, como na Lei nº 12.971/2014, a pretensão do legislador foi permitir ao juizdeterminar, se condenado o condutor, o regime fechado para o início do cumprimento dapena privativa de liberdade. E para fortalecer esse anseio, como novidade, acrescentou o §4º ao art. 291 do Código de trânsito, que dispõe sobre uma valoração especial de trêscircunstâncias judiciais que, posteriormente, ignorando-se a violação ao bis in idem, serãoreconsideradas para determinação do regime inicial de cumprimento de pena.

As sanções acessórias de proibição de realização do processo de habilitação ou suasuspensão não constavam da proposição originária, sendo previstas pelo Substitutivo.Cumpre advertir que o magistrado apenas poderá aplicar a pena de proibição para obstarque o agente, ainda não habilitado, obtenha o acesso ao processo de habilitação, e podeaplicar a pena de suspensão ao agente que praticou o delito durante o estágio probatório,impedindo-o de obter a Carteira nacional de Habilitação. é inconteste que, ao motorista quejá possui habilitação definitiva nada poderá ser obstado pelo magistrado, sendo que aimposição desta pena configuraria violação ao princípio da legalidade (DE BEM, 2015, p. 208).

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nOVO CaPítULO SOBre a diSCUSSÃO entre CULPa COnSCiente e dOLO eVentUaL

Aos membros do Ministério Público sempre causou perplexidade abrir o Código detrânsito e constatar que a sanção mínima cominada ao crime de homicídio culposo erareduzida se comparada àquela prevista ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal.Essa realidade colaborou – e ainda colabora – à conversão (quase) automática da naturezado perigo conscientemente criado no trânsito que, regra geral, é culposa.

O efeito dessa insatisfação ministerial é claramente percebido na elasticidade que oinstituto do dolo eventual perfaz, é dizer, mesmo as hipóteses de consumo moderado deálcool pelos motoristas – o que ensejaria uma responsabilidade pelo crime de trânsito –engrossam as estatísticas da moldura dolosa. Logo, o critério matemático da quantidadede pena (mínima) substitui mecanicamente as orientações teóricas que procuram traçar oslimites entre culpa consciente e dolo eventual (DE BEM, 2015, p. 143-153). Em outros termos,os esforços teóricos são ignorados e/ou substituídos por métodos simplórios, à modabrasileira, praticamente reconhecendo a desnecessidade de teoria do delito.

Vinte anos depois da promulgação da Lei nº 9.503/1997, ao menos no contexto dehomicídios culposos provocados por condutores sob a influência de álcool ou de outra subs-tância psicoativa que cause dependência, a pena mínima da infração foi elevada para cincoanos, aproximando-se muito da margem mínima do homicídio doloso. O curioso é que ainsatisfação permanece, mas agora sob outro foco, é dizer, já se ventilou que a pena mínimacominada à infração do art. 121 do Código Penal é demasiado baixa (CUnHA, 2017).

Se o coro do discurso da impunidade voltar à tona, não tardará para o legisladorpropor o aumento da pena mínima do homicídio doloso. Quando o efeito cascata ocorrer,a “discussão” sobre a distinção entre culpa consciente e dolo eventual será reavivada, mas,infelizmente, resgatando-se o simplório critério matemático, como se o Direito fosse umaciência exata. Ou seja, novamente se reputará diminuta a pena mínima do delito culposo(agora do § 3º do art. 302) e, por isso, as denúncias contemplarão a prática do homicídiodoloso considerando sua nova (e expressiva) pena mínima.

Essa “técnica” acusatória sempre gerou insatisfação nos advogados militantes naseara criminal, pois o combate teórico poderia ser perdido com números. A nova previsãolegal, porém, parece ter afastado esse descontentamento. Isso porque há tese defensivade que a regra geral passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível configuraro dolo eventual nos casos de mortes provocadas por condutores embriagados.

Em termos distintos, já que a influência do álcool ou de qualquer outra substânciapsicoativa que determine dependência passou a constituir elementar do tipo legal, sendoum tipo culposo, a responsabilização penal em caso de morte seria única e, nesse sentido,pelo crime qualificado de homicídio culposo de trânsito. A vingar a tese, estar-se-ia diantede uma novatio legis in mellius, que comportaria a revisão das condenações pretéritas pordolo eventual e emendas de inúmeras denúncias já ofertadas.

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Essa interpretação poderá ser aceita por qualquer julgador. Esclarecemos, aliás, quenão é a primeira vez que ela é realizada. Quando uma comissão de juristas instituída peloSenado Federal apresentou o relatório final do Anteprojeto do novo Código Penal,ventilou-se que a causação de morte na condução de veículo automotor sob a influênciade álcool caracterizava hipótese de culpa temerária, consagrando-se, assim, um tipo deculpa substancialmente elevado (gravíssima), de sorte que se pretendia sancionar os con-dutores com pena de prisão de quatro a oito anos.12

À época, os proponentes mantiveram a regra geral de que os crimes de trânsito sãoculposos e o contexto de homicídio no trânsito em razão da influência de álcool não maiscomportaria exceção. Havia gritante impropriedade, porque não era crível sustentar oabandono do instituto do dolo eventual, mormente em situações de manifesto desprezopela vida das demais pessoas da parte dos condutores de veículos automotores. Vingandoa proposta da Comissão, crimes claramente dolosos em determinados contextos seriamconvertidos em crimes culposos (DE BEM, 2015, p. 504). Atenta a essa consequência, umaComissão temporária de Estudo da reforma do Código Penal suprimiu o elenco casuísticoque constava do § 6º do art. 121 do PLS nº 236/2012 e que incluía a hipótese anotada.13

Por evidente essa exclusão não induziu nenhum raciocínio de que o homicídio setransmudou automaticamente em doloso, porém afastou a presunção absoluta de que oscondutores revelavam uma atitude censurável somente do ponto de vista da leviandade,isto é, como “se não tivessem refletido suficientemente” (LOGOZ apud BItEnCOUrt, 2014,p. 386) e, assim, incidiam em descuido perante a norma de proteção. Em síntese, a Comissãotemporária evitou que a figura do dolo eventual fosse afastada precipitadamente da searado trânsito, como se houvesse uma categoria de crimes imunes à modalidade dolosa.

O mesmo deverá ocorrer para combater a tese que assimila a hipótese de mortecausada por agente que conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de outrasubstância psicoativa que determine dependência como caso automático a ser sancionadopelo § 3º do art. 302 da Lei de trânsito. Já é impertinente reavivar a culpa temerária parafulminar anos de estudos que, inclusive nas hipóteses de embriaguez ao volante, buscaramtraçar a distinção entre culpa consciente e dolo eventual,14 porém é ainda mais descabidosustentar a exclusão legal do dolo eventual no contexto retratado.

não é incorreto sustentar que a nova regra fortalece a frente jurisprudencial que reputaculposo o perigo conscientemente criado pelo agente que conduz sob a influência de álcool,mas é inexato defender que a culpa será a única forma de responsabilização do agente emcasos de acidentes fatais. Por isso, recebe-se com cautela decisão proferida pelo Superiortribunal de Justiça (StJ) de que a embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual.15 Paranós, a depender da quantidade de bebida alcóolica que é ingerida pelo agente, independen-temente de outra particularidade, não existiria óbice para caracterização do dolo eventual.

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12 Art. 121, §§ 5º e 6º do PLS nº 236/2012.13 A outra situação legal de culpa gravíssima se referia à participação, em via pública, de corrida, disputaou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente.14 Como exemplo, dentre inúmeros outros, de esforço para distinguir dolo e culpa: Ingeborg Puppe (2004).15 6ª turma, recurso especial nº 1.689.173/SC, rel. Min. rogério Schietti Cruz, j. 06/12/2017.

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Embora a intenção não seja matematizar o direito penal de trânsito, por evidente, as osci-lações etílicas em cada condutor podem traduzir situações concretas indicadoras de condutasdistintas e, portanto, passíveis de reprovações plurais (DE BEM, 2015, p. 154). Claro que a exigênciade qualquer elemento adicional poderá reforçar a existência de dolo de homicídio, contudo aausência desse elemento não pode levar automaticamente à exclusão do dolo. reprovar deforma idêntica quem consome uma quantidade moderada de álcool (uma dose) e em seguidaconduz um veículo e outro condutor que fez preteritamente consumo abusivo de bebida alcoó-lica (embriaga-se por completo) é ignorar totalmente a razoabilidade (JAKOBS, 1997, p. 334).

Em síntese, os homicídios verificados no trânsito não podem ser classificados de formaautomática como dolosos ou culposos, qualificados ou não. Apenas a partir de uma análiseobjetiva é possível obter a melhor categorização. O ideal, inclusive, seria seguir os postuladosde alguma teoria cognitiva.16 no entanto, nada obsta que a decisão judicial desagrade umadas partes. é justamente por isso que a aplicação da culpa consciente ou, então, do doloeventual revela-se um dos problemas penais mais tormentosos.

Para não agravar a busca por uma solução, é indispensável afastar-se do universopsíquico do motorista, ou seja, deve-se retirar do condutor a competência de definição deque modo atuou no caso concreto. Como ele raramente confirmará a aceitação prévia doresultado fatal, não há sentido livrá-lo de possível responsabilização dolosa concedendoexclusiva atenção à ausência de seu consentimento. Uma conclusão nesse sentido estariarespaldada em simples presunção. Esse é o efeito de se adotar uma teoria volitiva visandoa diferenciação das duas figuras. Esse foi o caminho seguido no julgado do StJ.

Para fugir do natural subjetivismo, deve-se rever o reinado da teoria volitiva paradestacar o primado de teoria cognitiva. Com efeito, o principal elemento do dolo passará aser o conhecimento do agente, e não mais sua vontade psicológica. A partir dessa guinadahermenêutica, é dever identificar os elementos sobre os quais a consciência do motoristaprecisa incidir para que sua conduta seja reprovada como dolosa.

O principal elemento, sem dúvida, diz respeito à quantidade de bebida alcóolica ingerida pre-viamente à condução. Embora não haja a definição legal de percentual único que, se ultrapassado,influencie seriamente a condução do veículo automotor, o condutor sabe que quanto maior for oconsumo etílico, independentemente de suas características pessoais, maior será a qualidade dorisco conscientemente criado ao conduzir. é por isso que a qualidade do risco criado pelo condutordeve se sobrepor à sua suposta indiferença ou confiança, pois assim se permite ao intérprete avaliarmelhor o que passa na cabeça do agente para concluir se houve dolo eventual ou culpa consciente.

nessa linha, seja porque há uma representação relativamente grande de o eventofatal ocorrer, seja porque o perigo criado representa, em si, método idôneo para provocaruma morte, torna-se indiferente analisar a confiança do motorista na não ocorrência do re-sultado. Essa análise cognitiva não altera a interpretação pretoriana de que o homicídio notrânsito é, em regra, cometido culposamente, pois apenas a presença de circunstâncias es-pecialmente perigosas como, por exemplo, na linha trilhada, a ingestão de quantidade ele-vada de bebida alcóolica, ocasionará uma alteração para a figura dolosa.

16 Sobre a crise dos conceitos volitivos de dolo, pode-se conferir: MArtInELLI, J. P. O.; DE BEM, L. S. Liçõesfundamentais de direito penal: parte geral. 3. ed. São Paulo:: Saraiva, 2018. p. 466 e ss.

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a FiGUra QUaLiFiCada dO CriMe de LeSÃO COrPOraL CULPOSa de trÂnSitO

Com a promulgação da Lei nº 13.546/2017, infere-se que a redação final do § 2º doart. 303 do CtB17 é bastante diversa à do Projeto de Lei nº 5.568/2013.18

A intenção da deputada Keiko Ota, novamente, cingia-se à intolerância total aoconsumo de álcool ou de qualquer outra substância de efeitos análogos. A redação típicapor ela proposta, porém, ganhou contornos distintos no Substitutivo do PL nº 5.568/2013,posteriormente aprovado no plenário da Câmara dos Deputados. Sem nenhuma emendaproposta no Senado Federal, o § 2º do art. 303 do CtB foi sancionado com redação típicasemelhante à previsão do crime de embriaguez ao volante (art. 306).

não será suficiente a mera ingestão de álcool (ou de outra substância que cause depen-dência) pelo condutor do veículo automotor para fins de punição, pois se exige que o consumopretérito altere a sua capacidade psicomotora e, assim, diminua suas faculdades de percepção,autocontrole e reação durante a condução (VICEntE MArtínEZ, 2006, p. 185). Sendo umrequisito elementar do tipo legal, será dever ministerial indicá-lo na denúncia. Para tanto, seráimprescindível comprovar – e não apenas presumir – a efetiva afetação pela substância.

nesse aspecto, é essencial fazer uso da interpretação sistemática, ou seja, cotejar anorma penal em análise com outra norma do sistema jurídico. A mais indicada é o atual § 1º doart. 306 do CtB, de sorte que a alteração da capacidade psicomotora poderá ser constatadaem razão de o agente exceder um limite quantitativo – inc. I – ou, ainda que não o exceda, porum conjunto de sinais disciplinados pelo Conselho nacional de trânsito (Contran) – inc. II.

Ademais dessa constatação, é necessário que se estabeleça o efeito que o álcool ouqualquer outra substância psicoativa provocou na própria condução realizada pelo agente,visto que a responsabilidade pelo acidente de trânsito deve ser exclusiva do condutor ou,no mínimo, que ele concorra em responsabilidade com a própria vítima. relevante precisaro alcance da expressão “em razão da influência” constante do dispositivo, porque não serásuficiente certo nível de álcool ou de drogas à configuração típica, mas que tal substânciapsicoativa influencie realmente a condução do veículo pelo agente. Provocar acidente emrazão da influência do álcool não é a mesma coisa que conduzir o veículo embriagado.

Além do conjunto de elementos normativos anteriormente destacado, a descriçãotípica exige a ocorrência de um resultado lesivo de natureza grave ou gravíssima. nesseínterim, desponta violação ao princípio da legalidade, pois a exigência de um mandato decerteza, como garantia material, perde-se diante de ofensa à taxatividade. O conteúdo daproibição e seus contornos não se revelam inequívocos e exaustivos quando o legislador se

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17 A pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstasneste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influênciade álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesãocorporal de natureza grave ou gravíssima.18 na lesão corporal culposa de trânsito cometida na direção de veículo automotor, aumenta-se a pena deum terço à metade, se o agente dirigir veículo automotor em via pública e estiver sob a influência dequalquer concentração de álcool ou substância tóxica ou entorpecente de efeitos análogos.

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socorre de uma cláusula geral. Quando a lesão corporal culposa será grave ou gravíssima?não é possível saber com segurança o que a construção legal pretende castigar, ao contráriodo Código Penal, que faz a distinção entre as modalidades taxativamente.

Essa indeterminação legal não implicaria uma automática declaração incidental deinconstitucionalidade do dispositivo, mas ensejaria, em caso de condenação, o dever judicialde adoção de sentença com perfil restritivo, é dizer, desconsiderando o desvalor do resul-tado como elemento do tipo qualificado para sopesá-lo somente na determinação da pena-base. Os dois elementos normativos, isoladamente, afastariam a incidência do tipo culposobásico, sendo que a ponderação sobre a gravidade do resultado lesivo em si seria realizada– com razoabilidade – quando da determinação da pena-base.

Distante desse entendimento, provável que surgirão vozes propondo a definição dashipóteses de gravidade da lesão corporal através dos §§ 1º e 2º do art. 129 do Código Penal.Essa alternativa deverá ser recebida com cautela, a uma, porque os dois parágrafos se refe-rem à conduta dolosa e não culposa; a duas, pois o desvalor de ação de um injusto culposonão se altera em razão do resultado que é produzido, até porque não haveria um excessoculposo de violência culposa; por último, em determinados contextos, a situação de culpainconsciente em relação ao resultado mais grave poderia ficar excluída. Parece-nos que adistinção entre as modalidades de lesão no Código Penal só é aplicável simultaneamentequando o desvalor da ação estiver fundado no dolo, e não na culpa.

À margem dessa importante discussão, esclarece-se que na proposição originária nãohouve previsão de circunstância qualificadora ao crime de lesão corporal culposa de trânsito.A deputada Keiko Ota somente propôs simples causa de aumento com quantum variávelde um terço à metade. A majoração incidiria na última fase da dosimetria, após o juiz alcançara pena provisória com a avaliação das circunstâncias legais, se existentes.

A qualificação, em si, decorreu do Substitutivo apresentado pelo deputado Hugo Leal.As margens penais por ele consignadas (três a seis anos de reclusão), porém, foram repu-tadas desproporcionais pelo deputado Efraim Filho. O plenário da Câmara, quando da vota-ção do Substitutivo, aprovou o dispositivo com novos limites, é dizer, reclusão de dois acinco anos, sem prejuízo das demais penas (acessórias) cominadas à infração.

é necessário reconhecer que o legislador pensa que a norma penal incriminadoraapenas cumpre a sua finalidade se prever penas excessivas à conduta proibida. é por issoque discutir o arbítrio legislativo quanto à cominação de penas desproporcionais é medidaurgente. Que fique bastante claro que não duvidamos da legitimidade do delito, contudo éimpossível calar-se diante de gritantes e múltiplos excessos. toda e qualquer alteração dalei penal deve considerar a legislação como um todo para evitar desproporcionalidades efalta de alinhamento dogmático entre os dispositivos.

Para iniciar, observe que a pena mínima cominada à forma qualificada do delito é maiorque a pena mínima prevista para o crime de homicídio culposo fora dos casos de trânsito –art. 121, § 3º (BrASIL, 1940) –, isto é, um ano de detenção. Se não fosse o bastante, aquelainfração é apenada com reclusão e, como tal, pode-se determinar o regime fechado para oinício do cumprimento da pena privativa de liberdade – art. 33, caput (BrASIL, 1940).

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A desproporcionalidade continua presente se compararmos o mínimo cominado àmodalidade qualificada da lesão corporal culposa de trânsito com a sanção consignada àqualificadora do § 1º do art. 129 do Código Penal. Ainda que a forma de execução possa serdiferente (porém nada obsta que um motorista se embriague preordenadamente com ofim de atropelar específica pessoa), a pena da primeira infração corresponde ao dobro dalesão corporal dolosa. A ofensa à proporcionalidade reside na desconsideração da naturezada infração, porquanto um delito doloso não pode ser sancionado menos gravemente queum crime culposo sendo idêntico o objeto de proteção.

não obstante seja acertado afirmar que no comportamento culposo também existe umarelação gradual de violação do bem jurídico e, assim, como matiza Cássio Honorato (2007, p.464), “quanto maior a lesão produzida na vítima, maior deveria ser a pena imposta ao agente”,isso não basta para que se desconsidere a natureza delitiva. Aliás, como dito anteriormente, ojuiz deverá valorar esses níveis de ofensa quando da fixação da pena-base, nas consideraçõessobre a consequência do delito (circunstância judicial do art. 59 do Código Penal).19

A título de conclusão, duas notas finais. Primeiramente, a influência do álcool ou dedrogas na pessoa do condutor e na sua forma de dirigir já seria passível de punição pelaincidência do tipo legal fundamental (art. 303, caput). Porém, o legislador especificou essecontexto na redação do novo parágrafo, devendo a norma especial afastar a geral.20 Emsegundo lugar, não será mais possível falar de um concurso de crimes entre a lesão corporalculposa (art. 303, caput) e a embriaguez ao volante (art. 306). Isso porque, além de continuarconstituindo uma infração autônoma, o crime de perigo passou a qualificar o delito de dano,razão pela qual, verificando-se o resultado lesivo, aplicar-se-á somente a norma principal do§ 2º do art. 303, com redação dada pela Lei nº 13.546/2017.21

a nOVa redaçÃO dO CriMe dO art. 308 dO CÓdiGO de trÂnSitO

O caput do art. 308 do Código de trânsito passou a vigorar com redação distinta apartir da promulgação da Lei nº 13.546/2017. O legislador incluiu no preceito primário novaconduta: “participar na direção de veículo automotor, em via pública, de exibição oudemonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridadecompetente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada” (BrASIL, 2017).22

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19 Por certo, mantida a gravidade do resultado lesivo em si como elemento do tipo qualificado, sob penade incidência do odioso bis in idem, essa consequência não poderá influir na dosagem da pena-base.20 Seguindo nossa proposição, a partir da adoção de sentença com perfil restritivo, a gravidade do resultadolesivo em si não seria um elemento especializante da norma penal.21 A nosso ver, o aparente conflito entre os tipos legais seria resolvido pelo princípio da subsidiariedade,pois as infrações (art. 303, § 2º e art. 306, ambos do CtB) descrevem violações relativas ao mesmo bemjurídico, mas em níveis distintos. no entanto, caso seja aplicado o princípio da consunção ou absorção,como é a tônica nos tribunais estaduais (e superiores), o resultado final não será modificado.22 O acréscimo é semelhante ao proposto ao crime de homicídio culposo de trânsito pela Lei nº 12.971/2014,atualmente revogada, se a morte decorria de participação do agente em manobras arriscadas (art. 302, §2º). O legislador previa à forma qualificada pena de reclusão de dois a quatro anos.

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Sabe-se que alguns condutores circulam nas vias públicas de trânsito realizandomanobras bruscas ou arriscadas. Indiferente à motivação, valem-se do veículo automotorpara exibição ou demonstração de habilidades incompatíveis com a segurança no trânsito,como, por exemplo, conduzindo em zigue-zague, isto é, alterando a direção do automotorde forma sinuosa, como se o veículo estivesse dançando no asfalto. Há perigo de colisão,mormente se a manobra é realizada por caminhoneiros, pois a carroceria pode invadir apista contrária, gerando risco aos condutores que trafegam em sentido oposto.

O perigo, aliás, não se presume. tratando-se de crime de perigo concreto, faz-senecessário comprovar que a conduta do condutor gerou, efetivamente, um dano potencialà incolumidade pública ou privada (isto é, risco aos bens jurídicos protegidos). Atente-seque é a potencialidade de dano que distingue o delito da correlata infração administrativado art. 175 da Lei nº 9.503/97, pois, nesse contexto, o legislador não exige o resultado deperigo concreto decorrente, por exemplo, de uma derrapagem ou arrancada brusca.

Excepcionando os casos de competições esportivas,23 a participação dos agentes emdemonstração de perícia ou exibição em manobras com veículo automotor ocorre naclandestinidade, sem a autorização da autoridade competente. Em alguns casos, ademais,os agentes se valem de rodovias para realização das condutas arriscadas. Exemplifique-secom as pranchas dos motociclistas e as quebras da asa dos caminhoneiros.

Os malabarismos efetuados com motos e sobre elas podem gerar situação de risco aterceiros. Muitos transitam apenas em uma das rodas, empinando-as. Outros, em motos deporte reduzido, mas alteradas para ganhar velocidade não compatível com a máximaatestada pelo fabricante, enquanto pilotam com uma das mãos, flutuam nos assentos comcorpos e pernas soltas no ar, naquilo denominado como “prancha”.

A quebra da asa, prática extremamente arriscada, trata-se de manobra realizada emalta velocidade na qual o motorista tira as rodas do caminhão da pista contorcendo a carro-ceria, ou seja, ele força um possível tombamento virando completamente a direção paraum lado, mas, quando o caminhão está prestes a tombar, gira abruptamente o volante parao sentido contrário para a carreta voltar ao chão.

nos centros urbanos, por sua vez, é comum o cavalo de pau, que consiste numa freadabrusca com giro simultâneo de direção do veículo automotor, fazendo-o derrapar e dar meiavolta até parar em posição invertida. Há ainda quem realize a manobra girando em tornodo eixo dianteiro (sob uma das rodas) em voltas de 360 graus, formando riscos circularesna pista. As consequências podem ser, inclusive, fatais.24

23 Art. 67 da Lei nº 9.503/1997.24 Aliás, se da prática do crime previsto no caput do art. 308 resultar morte, e as circunstâncias da condutademonstrarem que o agente não quis o resultado nem assumiu o risco de produzi-lo, a pena privativa deliberdade será de reclusão de cinco a dez anos (art. 308, § 2º).

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COnSideraçõeS FinaiS

Virou tradição, nova lei de trânsito! não se trata de enredo carnavalesco, senão é oresultado da inflação legislativa nesse setor social. Em pouco mais de dez anos forampromulgadas seis leis com reflexos penais no trânsito. Quiçá nenhuma outra legislaçãorecebeu tantos (maus) reparos como a Lei nº 9.503/1997 (CtB).

Em cada mudança há uma nova leva de textos e vídeos explicativos provenientes dosmais diversos nichos jurídicos. A última alteração já chamou a atenção de vários operadoresde direito. A verdade, no entanto, é que pouco se aproveita das explicações ofertadas, sejapela sucessão de erros na análise dogmática da Lei nº 13.546/2017, seja pela sua diminutainterpretação constitucional.

A pretensão neste texto, assim, não foi somente censurar o legislador com sua novaproposta legal simbólica, mas também alertar os leitores de algumas interpretaçõesrealizadas à margem das melhores técnicas. Essas considerações, apenas iniciais, servemcomo orientação aos acadêmicos e operadores do direito e visam, efetivamente, substituiras dúvidas por certezas. Esperamos ter logrado êxito!

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