Considerações Sobre a Perspectiva Do Sistema-mundo

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERSPECTIVA DO SISTEMA-MUNDO Eduardo Barros Mariutti RESUMO O artigo sistematiza as reflexões da perspectiva de análise do "sistema-mundo", estreitamente ligada ao pensamento do cientista social norte-americano Immanuel Wallerstein acerca do caráter transnacional do capitalismo desde a publicação do primeiro volume de The modern world-system, em 1974. Examinam-se os argumentos e as categorias mobilizados por esse autor para explicar a singularidade da ascensão do capitalismo no Ocidente e apreender a dinâmica do sistema-mundo moderno, bem como as principais características epistemológicas dessa linha de pensamento. Palavras-chave: sistema-mundo; Immanuel Wallerstein; capitalismo; relações internacionais. SUMMARY This article systematizes the analyses of world-sistem's perspective, which is closely related to the North-American social scientist Immanuel Wallerstein's thought about capitalism's transnational character, since the publication of the first volume of The Modern World-System, in 1974. It examines the arguments and categories mobilized by the author to explain the uniqueness of capitalism ascension in the West and to understand the dynamics of modern world-system, as well as the main epistemological features of this trend of thought. Keywords: world-system; Immanuel Wallerstein; capitalism; international relations. A chamada "perspectiva do sistema-mundo" começa a se consolidar como corrente de pensamento autônoma na segunda metade dos anos 1970, desde então tornando-se indissoluvelmente ligada ao nome do cien- tista social Immanuel Wallerstein, vinculação que é reconhecida tanto pelos seus adeptos quanto por seus adversários. Embora a preocupação com o caráter transnacional do capitalismo remonte pelo menos à segunda metade do século XIX, há quase um consenso de que a publicação do primeiro volume de The modern world-system (1974) demarca o surgimento de uma nova modalidade de reflexão, com uma problemática razoavelmente defini- da e um campo conceitual próprio. Discutiremos aqui as principais caracte- rísticas dessa perspectiva de análise, e para tal nos apoiaremos fundamental- mente na obra de Wallerstein, já que todas as variantes da perspectiva do sistema-mundo estão relacionadas a essa obra, por aproximação ou por distanciamento relativo. Antes, porém, retrataremos o contexto em que ela ganhou corpo. JULHO DE 2004 89

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CONSIDERAÇÕES SOBRE APERSPECTIVA DO SISTEMA-MUNDO

Eduardo Barros Mariutti

RESUMOO artigo sistematiza as reflexões da perspectiva de análise do "sistema-mundo", estreitamenteligada ao pensamento do cientista social norte-americano Immanuel Wallerstein acerca docaráter transnacional do capitalismo desde a publicação do primeiro volume de The modernworld-system, em 1974. Examinam-se os argumentos e as categorias mobilizados por esse autorpara explicar a singularidade da ascensão do capitalismo no Ocidente e apreender a dinâmicado sistema-mundo moderno, bem como as principais características epistemológicas dessa linhade pensamento.Palavras-chave: sistema-mundo; Immanuel Wallerstein; capitalismo; relações internacionais.

SUMMARYThis article systematizes the analyses of world-sistem's perspective, which is closely related to theNorth-American social scientist Immanuel Wallerstein's thought about capitalism's transnationalcharacter, since the publication of the first volume of The Modern World-System, in 1974. Itexamines the arguments and categories mobilized by the author to explain the uniqueness ofcapitalism ascension in the West and to understand the dynamics of modern world-system, aswell as the main epistemological features of this trend of thought.Keywords: world-system; Immanuel Wallerstein; capitalism; international relations.

A chamada "perspectiva do sistema-mundo" começa a se consolidarcomo corrente de pensamento autônoma na segunda metade dos anos1970, desde então tornando-se indissoluvelmente ligada ao nome do cien-tista social Immanuel Wallerstein, vinculação que é reconhecida tanto pelosseus adeptos quanto por seus adversários. Embora a preocupação com ocaráter transnacional do capitalismo remonte pelo menos à segunda metadedo século XIX, há quase um consenso de que a publicação do primeirovolume de The modern world-system (1974) demarca o surgimento de umanova modalidade de reflexão, com uma problemática razoavelmente defini-da e um campo conceitual próprio. Discutiremos aqui as principais caracte-rísticas dessa perspectiva de análise, e para tal nos apoiaremos fundamental-mente na obra de Wallerstein, já que todas as variantes da perspectiva dosistema-mundo estão relacionadas a essa obra, por aproximação ou pordistanciamento relativo. Antes, porém, retrataremos o contexto em que elaganhou corpo.

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Ecoando um célebre princípio materialista, Wallerstein reconhece quea análise do sistema-mundo1 somente tomou forma nos anos 1970 porqueas condições para a sua emergência já estavam amadurecidas. Os primeirosimpulsos nesse sentido ocorrem nos 25 anos posteriores a 1945, quando oscientistas sociais da Europa e dos Estados Unidos "descobrem" o TerceiroMundo como uma realidade que não se encaixa perfeitamente na estruturadas ciências sociais herdada do século XIX. Como uma primeira resposta aessa inadequação emergem com força os "estudos de área", trazendo in-quietantes preocupações epistemológicas: seus adeptos afirmavam que as"teorias" das ciências sociais não dizem respeito apenas à Europa e àAmérica do Norte, podendo ser utilizadas também para o estudo das demaisregiões do globo, embora não de forma imediata, pois essas áreas apresen-tam peculiaridades que não podem ser desprezadas. Não é difícil notar atensão que se situa na raiz desse tipo de análise, como aponta Wallerstein:

Argumentar simultaneamente que as condições são as mesmas e quesão diferentes não é a coisa mais fácil de se fazer. Mas os adeptos dosestudos de área encontraram uma solução engenhosa, e mais plausí-vel, para o aparente dilema. Eles basearam seu trabalho numa pers-pectiva que já se encontrava difundida entre as ciências sociais: [a deque] existem estágios que [toda] sociedade atravessa e que representamum progresso evolucionário2.

Dessa forma, a resposta mais imediata ao impasse criado pela consta-tação das peculiaridades do Terceiro Mundo foi a formulação do que seconvencionou denominar "teoria da modernização". De acordo com essaperspectiva, todos os Estados apresentam simultaneamente um conteúdogeral e singular: o caráter geral reside na seqüência de estágios a serematravessados, enquanto o particular é definido pelo estágio em que cadaEstado se encontra no momento, por suas diferenças em relação aos Estadosdesenvolvidos (que representam a unidade de referência) e pelo tempo quese leva para passar de um estágio a outro. Segundo Wallerstein, um dosgrandes impulsos à análise do sistema-mundo proveio exatamente da críticados pressupostos subjacentes a essa interpretação: em primeiro lugar, acrítica da idéia de que os Estados representam a unidade operacional dasociedade, atuam de forma autônoma e não são afetados por fatoresexternos às suas fronteiras; em segundo lugar, a crítica da noção de uma leigeral de desenvolvimento social (isto é, os estágios e sua seqüência) queinevitavelmente conduziria as sociedades atrasadas ao estágio em que seencontram as nações desenvolvidas.

Pode-se afirmar portanto que a análise do sistema-mundo tomouforma inicialmente por oposição à teoria da modernização, a qual, segundoWallerstein, ficou muito desgastada após a "revolução mundial de 1968"3,cujo efeito principal foi uma desilusão generalizada ante os resultados dos

(1) Wallerstein resiste ao ter-mo "teoria" do sistema-mundoporque sua abordagem se fun-damenta principalmente na crí-tica dos pressupostos das ciên-cias sociais existentes (cf. Wal-lerstein, Immanuel. The mo-dern world-system I: capitalistagriculture and the origins ofthe European world-economyin the sixteenth century. NovaYork: Academic Press, 1974,pp. 9-11; Unthinking social sci-ence: the limits of nineteenthcentury paradigms. Cambrid-ge, MA: Polity Press, 1991, pp.1-4, 237-56) e também porqueconsidera que ainda seria cedodemais para uma teorização:"Tenho considerado o traba-lho dos últimos vinte anos e demais alguns que virão como ode limpar a vegetação rasteirapara que possamos construirum aparato mais adequadopara as ciências sociais" (Idem."The rise and future demise ofworld-systems analysis". Revi-ew, vol. XXI, nº 1, 1998, p.103). Em seu entender, portan-to, não há ainda uma teoria dosistema-mundo em geral nemdo sistema-mundo capitalista.

(2) Idem, "The rise and futuredemise...", loc. cit., p. 104.

(3) No mundo marcado pelaGuerra Fria eram claras as im-plicações político-estratégicasda teoria da modernização,pois havia apenas dois mode-los a serem seguidos pelos "pa-íses atrasados": o dos EstadosUnidos e o da União Soviética.No entanto, "essas implicaçõespolíticas foram objeto de umarejeição furiosa por parte dosrevolucionários de 1968. Foium salto relativamente curtopara eles [...] negar as premis-sas epistemológicas [da teoriada modernização]. Isso criouuma atmosfera mais receptivaao tipo de protesto que a análi-se do sistema-mundo repre-sentava. É importante relem-brar essa intenção original daanálise do sistema-mundo, oprotesto contra a teoria da mo-dernização, se quisermos en-tender as direções que ela temtomado desde então" (ibidem,p. 106). Ver também: Idem,Unthinking social science....loc. cit., pp. 266-72; Arrighi,Giovanni. "Capitalism and themodern world-system: re-thinking the non-debates of the1970's". Review, vol. XXI, nº 1,1998, pp. 114-16.

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movimentos anti-sistêmicos (movimentos de libertação nacional, o movi-mento comunista e a social-democracia4) e sua perspectiva de criação deuma sociedade mais igualitária e mais democrática. Tal desilusão acaboupor abalar fortemente a crença na inevitabilidade do progresso, pilar funda-mental da ideologia liberal5. Esse quadro de descontentamento, em conjun-to com a criação de uma base institucional6, favoreceu a consolidação e odesenvolvimento da perspectiva do sistema-mundo.

O sistema-mundo moderno

Há uma forte correlação entre a formação do sistema mundial capitalis-ta e o estabelecimento da ciência "moderna". A fim de nos aproximarmosmais rapidamente do nosso problema, restringiremos um pouco mais essaafirmação: há uma conexão entre a consolidação de uma economia-mundobaseada no modo de produção capitalista no "Ocidente" em expansão(c.1640-1815) e a constituição das ciências sociais (c.1850-1914 ou 1945),isto é, a formação de um domínio específico do conhecimento, dividido emdisciplinas supostamente autônomas (antropologia, ciência política, econo-mia, geografia, história e sociologia), e de um aparato institucional capaz depreservar e fomentar a especialização do conhecimento. Isso ocorre a par daconversão da economia-mundo européia em um empreendimento real-mente global (1815-1917), que reforça a divisão do conhecimento estabele-cida no núcleo do sistema e a impõe praticamente em todo o planeta.

Essa correlação fica ainda mais nítida se levarmos em conta a grandequestão que subjaz a todas as disciplinas das ciências sociais: explicar aascensão do "Ocidente", isto é, o processo geral do qual elas próprias sãouma expressão7. Esse fenômeno recebeu diversas denominações, tais como"expansão da Europa", "origem da modernidade", "transição do feudalismoao capitalismo" e, mais recentemente, "milagre europeu". Cada uma dessasdenominações reflete, em graus variados, a divisão do conhecimento emdisciplinas e o conflito entre modalidades de reflexão distintas, que ilumi-nam certos aspectos da realidade e ao mesmo tempo obscurecem os demais.Deixaremos momentaneamente de lado as questões referentes à legitimida-de da clivagem da realidade em segmentos autônomos, aos quais corres-ponderiam disciplinas específicas, para nos concentrar na própria discussãoem torno da origem do capitalismo/modernidade.

É difícil encontrar quem discorde de que o Ocidente foi palco de umatransformação singular na história da humanidade. Mas só há consenso senos situamos nesse alto grau de generalidade: qualquer refinamento daanálise traz à tona controvérsias acaloradas. O que é o Ocidente? Quais sãoas suas fronteiras espaciais e temporais? A ascensão do Ocidente se deu emrazão do declínio de outros sistemas sociais ou, antes, ele floresceu endoge-namente e induziu o resto da humanidade a seguir seus passos? O quedeterminou essa transformação, isto é, que forças dinamizaram o processo?

(4) Wallerstein, Immanuel."Typology of crises in theworld-system". Review, vol. XI,nº 4, 1988, pp. 587-92.

(5) Cf. Idem. Social science andcontemporary society: the va-nishing guarantees of rationa-lity. Nova York: Fernand Brau-del Center, 1995 (série Papers);Globalization or the age oftransition? A long-term view ofthe trajectory of the world-sys-tem. Nova York: Fernand Brau-del Center, 1999 (série Papers).

(6) O núcleo institucional daperspectiva do sistema-mundoé composto principalmentepelo Fernand Braudel Center(fundado em 1976, ligado à Sta-te University of New York emBinghamton e dirigido porWallerstein), pelo periódicoReview (criado em 1977) e pelaseção Political Economy of theWorld-Systems da AmericanSociological Association.

(7) Cf. Idem, Unthinking socialscience..., loc. cit., pp. 7-22;"The challenge of maturity:whither social science". Revi-ew, vol. XV, nº 1, 1992; "TheWest, capitalism, and the mo-dern world-system". Review,vol. XV, nº 4, 1992, pp. 561-63;The time of space and the spaceof time: the future of social sci-ence. Nova York: FernandBraudel Center, 1996 (série Pa-pers), pp. 3-9.

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A luta de classes? O progresso técnico? A radicalização e a difusão de umatendência à racionalização da ação social, materializada inicialmente naampliação da rede comercial e depois na secularização de todas as esferasda ação social? Essa é uma pequena amostra das intricadas questões que têmsido incessantemente debatidas desde, pelo menos, a formação das ciênciassociais.

Há ainda explosivas questões derivadas. i) Sobre o sistema social queprecedeu o capitalismo, designado predominantemente como "feudalis-mo". Quais foram as suas características fundamentais? O feudalismo apre-sentava alguma dinâmica própria? Caso positivo, como ela operava ou comque aparato conceitual podemos apreendê-la? O feudalismo é uma especifi-cidade da Europa? O capitalismo resulta de sua crise? O que determinou essacrise? ii) Sobre os padrões de desenvolvimento distintos no interior daEuropa. Por que a Inglaterra, e não a França ou a Holanda, acabou tomandoa dianteira do processo? A sua trajetória se deu a expensas dos demaisEstados ou decorreu fundamentalmente das peculiaridades da sociedadeinglesa? Há um movimento comum da Europa ocidental que se expressa deforma ligeiramente diferenciada em algumas regiões ou, antes, o Ocidente écomposto por um conjunto de Estados diferentes que trilham caminhosparalelos que podem convergir ou divergir ao longo do tempo, cada umdeles possuindo uma lógica própria (múltiplas "transições")? iii) Sobre asdemais regiões "civilizadas" do mundo. Por que a China, a Índia e o mundoislâmico não conseguiram transitar ao capitalismo antes que a Europa, jáque em alguns aspectos essas civilizações eram mais desenvolvidas?

Um estudo sobre a formação do capitalismo, a origem da moderni-dade e a ascensão do Ocidente deveria contemplar simultaneamente essamultiplicidade de questões. Isso é possível? Os adeptos da perspectiva dosistema-mundo — Wallerstein em particular — suspeitam que não. Pelomenos enquanto as tensões não resolvidas que se encontram no âmago dasciências sociais não forem realmente enfrentadas. Desse modo, a melhormaneira de apresentarmos a posição de Wallerstein em face desse problemaé partir de sua reflexão sobre dois tipos de interpretação da ascensão doOcidente: as explicações civilizacionais e as conjunturais.

Explicações civilizacionais

Nessa categoria podemos incluir todas as interpretações que emalguma medida se baseiam no princípio de que a singularidade do desen-volvimento ocidental iniciado a partir do século XVI decorre de algumelemento estrutural ou alguma característica civilizatória que remonta a umfenômeno muito mais antigo. Esse legado representaria o fator que possibi-litou ao Ocidente trilhar um caminho vedado às demais civilizações desdeaquele século. Entre as interpretações civilizacionais, uma das mais conhe-cidas é aquela elaborada por Max Weber. Logo no primeiro parágrafo de

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A ética protestante e o espírito do capitalismo ele lança a grande indagaçãoque, em maior ou menor medida, perpassa toda a sua obra: a qual conjuntode fatores pode ser atribuído o fato de que somente na civilização ocidentaltenham florescido fenômenos culturais dotados de significado e valoruniversais8? Retomemos brevemente o raciocínio desenvolvido pelo autorpara responder a essa questão.

Sabendo de antemão que o capitalismo surgiu no Ocidente, Weberisolou algumas das suas características mais importantes. Em seguida,estudou civilizações que não vivenciaram o florescimento cio capitalismo enelas identificou alguns elementos comuns ao capitalismo moderno. Logo,conclui Weber, tais características compartilhadas não constituem a variáveldecisiva para explicar a originalidade do desenvolvimento ocidental. Nosmoldes em que é feita essa constatação, o desdobramento do raciocínio équase automático: a especificidade do Ocidente repousa em grande medidana sua herança judaico-cristã, a qual assumiu uma forma peculiar a partir daReforma e da emergência da ética protestante no século XVI. Esse ethospeculiar9 forneceu um apoio normativo aos empreendedores capitalistasque foi decisivo na formação do capitalismo moderno: por fundamentar-seem uma conduta racional ascética derivada da idéia de vocação, o capitalis-mo configura uma individualidade histórica10, que não se confunde com aeterna e onipresente auri sacra fames. Não cabendo aos nossos propósitosaprofundar essa síntese da interpretação de Weber, retenhamos então o seuconteúdo civilizacional: o suposto valor universal dos fenômenos culturaisda civilização ocidental está profundamente ligado à sua remota origemcristã.

Mas as explicações civilizacionais, lembra-nos Wallerstein, tambémsão exploradas por autores marxistas. O exemplo mais saliente é a interpre-tação de Perry Anderson sobre o declínio do absolutismo e a transição aomodo de produção capitalista. Para evidenciar o caráter civilizacional doargumento de Anderson deve-se levar em conta a sua insistência em afirmarque o capitalismo só pode ter emergido do modo de produção feudal (ou,pelo menos, que o feudalismo favorece esse tipo de desenvolvimento), oqual preponderou somente na Europa e no Japão11. Essa constatação é feitacom um propósito muito preciso: investir contra a tendência de parte dahistoriografia marxista a universalizar o feudalismo, isto é, a transpor umconceito derivado do passado da Europa para explicar a história das demaisformações sociais. Curiosamente, essa investida representa uma das caracte-rísticas mais positivas da interpretação de Anderson e ao mesmo tempo umdos seus pontos mais vulneráveis. Vamos nos deter um pouco mais nesseaspecto.

Antes de mais nada, retomemos a definição de feudalismo apresen-tada por Anderson em Linhagens do Estado absolutista. Esse modo deprodução é definido "originalmente" pela unidade orgânica entre a eco-nomia e a dominação política na esfera da aldeia, uma unidade que sedistribuía em uma cadeia de soberanias parcelares12. Esse amálgama entre aesfera econômica e a política é que garantiu o dinamismo ímpar da Europa

(8) Weber, Max A ética protes-tante e o espírito do capitalis-mo. 9a ed. São Paulo: Pioneira,1991, p. 1.

(9) Sobre o significado particu-lar de ethos na explicação deWeber, cf. ibidem, pp. 31ss.

(10) "Se puder ser encontradoalgum objeto ao qual esse ter-mo ["espírito do capitalismo"]possa ser aplicado com algumsignificado compreensível, eleapenas poderá ser uma indivi-dualidade histórica, isto é, umcomplexo de elementos asso-ciados na realidade históricaque unimos em um todo con-ceitual do ponto de vista de umsignificado cultural "(ibidem, p.28).

(11) Anderson, Perry. Lineagesof the Absolutist State. Londres:Verso, 1979, pp. 401-03.

(12) Ibidem, p. 19.

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e que, ao mesmo tempo, invalida teoricamente a tendência a fazer dofeudalismo um "oceano onde virtualmente todas as sociedades podemreceber o seu batismo"13. Mas, e o Japão: não compartilhava essa caracterís-tica decisiva? O próprio Anderson se faz essa pergunta, e em sua resposta oelemento civilizacional finalmente entra em cena: apesar do "ciclo comumdo feudalismo", a Europa tinha algo que faltava ao Japão — o legado daAntiguidade clássica.

A despeito do alto grau de urbanização, da circulação monetária e dodesenvolvimento do direito, o Império Romano não foi capaz de transitarpor si só ao capitalismo e entrou em colapso. O seu declínio engendrou omodo de produção feudal, que, embora caracterizado pelo predomínio domundo rural e pela parcelarização da "propriedade" e da soberania, preser-vou alguns elementos do período romano. Mas preservou como? Andersonapresenta uma formulação um tanto retórica e enigmática acerca dessaquestão:

O próprio avanço do universo clássico condenou [o Império Romano] auma regressão catastrófica [...]. O mundo social muito mais primitivodos primórdios do feudalismo foi o resultado desse colapso [...]. Então,após uma longa gestação, a Europa medieval liberou os elementos deuma lenta transição ulterior ao modo de produção capitalista, noinício da era moderna. Mas o que tornou possível a singular passagemda Europa para o capitalismo foi a concatenação da Antiguidade como feudalismo. [...] A "vantagem" da Europa sobre o Japão assenta emseu antecedente clássico, que mesmo após a Idade das Trevas nãodesapareceu "atrás" de si, mas sobreviveu, em certos aspectos básicos, àsua frente14.

Em Passagens da Antiguidade ao feudalismo Perry Anderson tende aidentificar o legado romano basicamente à preservação da Igreja Católica,uma instituição que, conseguindo sobreviver ao colapso do Império, ajus-tou-se às grandes transformações que a ruralização da sociedade e a disper-são do poder político implicavam. Ele sugere que o sucesso da Igreja estevediretamente ligado à sua capacidade de administrar, por um período relati-vamente longo, uma contradição fundamental: o conteúdo igualitário docristianismo e a estrutura extremamente hierarquizada da sociedade feu-dal15. Em Linhagens do Estado absolutista, porém, Anderson não deucontinuidade a essa frutífera linha de argumentação, pois passou a privilegi-ar o papel desempenhado pelo princípio romano de propriedade quiritária,que ressurge na Europa ocidental durante a crise do feudalismo.

Wallerstein menciona ainda outras explicações civilizacionais16, masseria excessivo reconstituir aqui todas elas, pois para os nossos propósitosimporta apenas esboçar as suas características gerais. Assim, se levarmos àsúltimas conseqüências esse tipo de interpretação, poderemos constatar um

(13) Ibidem, p. 3.

(14) Ibidem, pp. 420-21.

(15) Idem. Passages from Anti-quity to Feudalism. Londres:New Left Books, 1974. Assimcomo muitos outros críticos -tais como Teshale Tibebu ("Onthe question of Feudalism, Ab-solutism, and the BourgeoisRevolution". Review, vol. XIII,nº 1, 1990) –, Wallerstein nãofaz justiça a essa dimensão doargumento de Anderson.

(16) Wallerstein, "The West...",loc. cit., pp. 592-99.

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pressuposto que geralmente não é apresentado com a devida clareza, comosalienta Wallerstein:

Obviamente, qualquer ocorrência histórica possui raízes imediatascuja derivação pode ser traçada retrospectivamente ad infinitum. As-sim, se acreditarmos que a transformação crucial ocorreu há 500-2.500 anos, estaremos apresentando uma explicação genético-cultu-ral que diz, efetivamente, que o desenvolvimento do capitalismo/mo-dernidade" no Ocidente, e no Ocidente em primeiro lugar, foi algo"inevitável" em razão do seu sistema civilizacional anterior. Se acredi-tarmos porém que não há nenhuma razão para supor que o que iriaocorrer duzentos anos depois de cerca de 1300 estava inscrito emtrajetórias históricas de longo prazo, mas, ao contrário, era "conjuntu-ral", estaremos livres para avaliar a sensatez das escolhas históricasque foram realizadas e liberados do caráter auto-realizável e autocon-gratulatório das explicações civilizacionais17.

Nota-se que na primeira parte dessa citação a especificidade é no limiteidentificada a inexorabilidade: o florescimento do capitalismo modernonão foi somente uma via de desenvolvimento exclusiva do Ocidente, mastambém, em certa medida, algo inevitável. Dessa forma, temos a impressãode que as transformações em pauta constituem um lento processo dematuração que, com raízes profundas em um sistema social anterior, culmi-na invariavelmente no estabelecimento do capitalismo. Em suma: as tendên-cias capitalistas já estavam desenhadas na Baixa Idade Média (ou até muitoantes), de modo que a explicação sobre a formação do capitalismo é naverdade uma explicação sobre como essas tendências conseguiram flores-cer no século XVI (ou nos três séculos seguintes), rompendo as barreirasque constrangiam o seu desenvolvimento. Já a segunda parte da citação nosoferece um outro modo de encarar o problema, o que nos leva a examinarum outro tipo de explicação.

Explicações conjunturais

Uma divisão radical entre as interpretações civilizacionais e conjuntu-rais seria totalmente despropositada, pois desviaria nossa atenção do ricoespectro que permeia os dois extremos. Além disso, o modo como Wallers-tein caracteriza as interpretações conjunturais só faz sentido em sua relaçãocom as civilizacionais. Tomemos a idéia do embrião capitalista que suposta-mente estava contido na porção ocidental da Europa medieval.

Muitos autores insistem em que os traços capitalistas presentes nessaregião, embora também pudessem ser encontrados em praticamente todos

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(17) Ibidem, p. 590.

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os sistemas sociais conhecidos, só germinaram no Ocidente, que representaportanto o ponto de referência para a explicação. Em virtude de circunstân-cias especiais, somente a Europa ocidental teria sido capaz de superar osinúmeros constrangimentos à maturação do capitalismo. Cada explicaçãoenfatiza um ou alguns constrangimentos principais, selecionando um oualguns fatores contingentes para a liberação dos impulsos capitalistas, mas oprincípio básico é sempre o mesmo: um excepcional conjunto de circuns-tâncias atuou sobre as tendências de longo prazo que modelavam o sistemasocial anterior ao capitalista, destruindo-as ou transformando-as em umnovo conjunto de tendências, as quais foram mais favoráveis à plenamanifestação do capitalismo18.

A questão muda de figura, mas não completamente. Os fatores apon-tados pelas explicações civilizacionais como responsáveis pela ascensão doOcidente por volta de 1500, que remontam a um período anterior, são real-mente importantes e necessários, mas não suficientes. As condições sufi-cientes surgem de forma involuntária e contingente entre 1250 e 1450,período que muitos autores qualificam como de "crise do feudalismo",embora tal caracterização não seja consensual. Assim, o resultado dodeclínio do feudalismo terá sido uma dentre inúmeras possibilidades, e nocalor dos acontecimentos era intrinsecamente impossível antecipar tal des-dobramento peculiar.

Essa é exatamente a posição de Wallerstein a respeito da transição dofeudalismo ao capitalismo, isto é, da formação do sistema-mundo moder-no19. Não é à toa que o primeiro capítulo de The modern world-system Ié intitulado "Prelúdio feudal". Podemos então compreender o ambiciosomote de Wallerstein: articular a perspectiva sincrônica (dominante entre osmarxistas) com a diacrônica, tentando elucidar a complexa interação entreacaso e determinação.

A dinâmica do sistema-mundo moderno

Não há espaço aqui para reproduzirmos a dimensão historiográfica dainterpretação de Wallerstein sobre a formação do sistema-mundo moderno.Contudo, as linhas básicas que a delimitam foram esboçadas nas seçõesanteriores, e o mesmo faremos neste passo quanto à dinâmica do sistema-mundo já constituído, apontando suas contradições e as categorias queforam forjadas para apreendê-la. Preliminarmente, porém, teremos de con-siderar a categoria sistema-mundo em seu máximo grau de generalidade.

Wallerstein define sistema-mundo como um sistema social que pos-sui limites (potencialmente variáveis), estruturas, regras de legitimação eum certo grau de coerência. É dinâmico, pois os grupos que existem emseu interior estão constantemente envolvidos em uma luta para modelaro sistema em seu proveito. Em termos sintéticos, o que caracteriza umsistema-mundo é o fato de a sua dinâmica ser, em grande medida, interna

(18) Ibidem, pp. 599-600.

(19) "É interessante notar quaisquestões não foram formula-das, ou o foram raramente, noséculo XIX ou desde então.Não foi perguntado por queesse fenômeno (como querque o chamemos) não ocorreumuito antes na história huma-na, digamos, há mil anos. Nãofoi perguntado se houve algu-ma alternativa histórica plausí-vel a essa "transição" ou de-senvolvimento particular. [...]Toda a discussão está de fatocentrada na premissa de que oque quer que tenha ocorridohavia de ter ocorrido [...]. Seutilizarmos a analogia de umaexplosão causada por umamassa crítica ou uma conjun-ção particular de variáveis, sa-ber se essa 'explosão' foi in-trinsecamente necessária ouhistoricamente 'acidental' tor-na-se uma questão intelectualreal, que deve ser resolvidaantes de se construir todo umedifício teórico para as ciên-cias sociais históricas baseadoem uma 'transição inevitável1"(ibidem, pp. 561-62).

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(autocontida)20. Desse modo, o próprio sistema representa a unidade emtorno da qual qualquer análise deve se estruturar. Isto posto, podemosprosseguir.

Uma economia-mundo é um sistema-mundo que não é englobadopor nenhuma entidade política unitária. Ao longo da história, as economias-mundo tenderam a vivenciar dois desfechos distintos: desintegração outransformação em um império-mundo, isto é, em uma economia-mundoenvolvida por uma única estrutura política. Essa transformação geralmenteocorre de duas maneiras: a economia-mundo pode desenvolver uma es-trutura política unitária capaz de envolvê-la completamente ou então seranexada a um império-mundo em expansão. Mas a economia-mundocapitalista — isto é, o sistema-mundo moderno — não trilhou nenhumdesses caminhos: não se desintegrou, não formou uma entidade políticaunitária e não foi conquistada por nenhum império-mundo. Como veremos,Wallerstein sugere que essa é exatamente a sua especificidade e o segredode sua força.

O sistema-mundo moderno configura um todo espaço-temporal cujoescopo espacial coincide com o eixo da divisão social do trabalho queintegra as suas partes constituintes. Esse eixo se materializa numa comple-xa cadeia de mercadorias em que para cada processo de produção existemalguns vínculos adiante e para trás, responsáveis pela interdependência darede planetária de valorização do capital. Por meio dessa rede, diversasformas de controle e de remuneração do trabalho são subsumidas aocapital, tais como o trabalho compulsório (e o infantil), as cooperativas deprodutores independentes e as economias familiares semiproletarizadas(em que o salário é a menor parcela das diversas fontes de renda da família).O fato é que a multiplicidade de regimes de trabalho que convivem com osalariato não deve ser encarada como um mero anacronismo ou um resquí-cio pré-capitalista. O seu papel na valorização do capital é análogo aoexercido pelas disparidades geográficas entre zonas de salários altos ebaixos, criadas artificialmente pelo controle internacional sobre a mobili-dade da mão-de-obra: o recurso ao trabalho compulsório e ao emprego daforça de trabalho parcialmente convertida em mercadoria ajuda a estabele-cer limites às reivindicações dos trabalhadores assalariados com maiorpoder de barganha.

Nota-se portanto que a divisão do trabalho que articula a economia-munclo não é somente ocupacional, mas sobretudo regional: ela refleteuma hierarquia de tarefas que demandam níveis distintos de qualificaçãoe de capitalização, determinando assim a transferência extensiva da mais-valia da periferia para o centro. Mas o quadro é um pouco mais complexo,pois entre o centro e a periferia da economia-mundo há uma zona in-termediária razoavelmente favorecida pela divisão mundial do trabalho:a semiperiferia. Esta geralmente envolve áreas que antes faziam parte docentro do sistema, embora a conversão de regiões periféricas em semi-periféricas não seja incomum. Wallerstein confere muita importância aessa categoria:

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(20) Wallerstein reconhece quea precariedade dessa definiçãoé de certo modo inevitável: "Oleitor pode pensar que a utili-zação da expressão 'em grandemedida' é um tipo de subterfú-gio acadêmico. Admito que nãoposso quantificar. Provavel-mente nunca ninguém poderiafazê-lo, dado que a definiçãoestá baseada em uma hipótesecontrafactual: se o sistema, porqualquer motivo, ficasse isola-do de todas as forças externas(o que nunca acontece na práti-ca), a definição implicaria queo sistema continuaria a funcio-nar substancialmente da mes-ma maneira" (Idem, The mo-dern world-system I, loc. cit., p.347).

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A PERSPECTIVA DO SISTEMA-MUNDO

A semiperiferia [...] não é um artifício de pontos de corte estatísticosnem uma categoria residual. A semiperiferia é um elemento estruturalnecessário numa economia-mundo. Essas áreas têm um papel paraleloao representado, mutatis mutandi, pelos grupos comerciais intermediá-rios em um império. Elas desviam parcialmente as pressões políticasque os grupos localizados [...] nas áreas periféricas poderiam, de outromodo, dirigir contra os Estados do centro, contra os grupos que operamem seu interior e por meio de seu aparelho de Estado21.

Ao combinar características dos dois extremos que polarizam a econo-mia-mundo capitalista, os Estados semiperiféricos atuam como zonas peri-féricas em relação aos Estados do centro e simultaneamente como centroem relação à periferia. Essa posição intermediária reduz a tensão entre osextremos, contribuindo assim para preservar o sistema-mundo moderno.Mas ela também exerce uma função dinamizadora: nos períodos de contra-ção econômica, quando se intensifica a luta para açambarcar um quinhão doexcedente mundial em declínio, alguns Estados semiperiféricos podem tirarproveito de sua constituição híbrida e ameaçar o centro do sistema22.

Examinaremos agora o escopo temporal do sistema-mundo moderno.A duração de qualquer sistema-mundo compreende três "períodos": a suagênese, o período de "funcionamento normal" (relativamente longo) e oseu declínio. A gênese e a derrocada de um sistema-mundo se caracterizampelo fato de seus desdobramentos serem intrinsecamente imprevisíveis, aopasso que o período de desenvolvimento regular é presidido por contradi-ções internas que modelam a sua evolução, de modo que o argumento quese segue diz respeito somente a esse período.

A evolução do sistema-mundo moderno apresenta duas dimensõesinter-relacionadas. A primeira se refere às tendências seculares, que derivamdas contradições fundamentais do sistema e estão diretamente relacionadasà sua duração. Representam uma das chaves para a apreensão da estruturado sistema-mundo moderno, embora sejam tendências à primeira vista maissujeitas a indeterminação do que os ritmos cíclicos, que comentaremos emseguida. Na literatura recente, a tendência secular — ou logística — é for-temente associada ao movimento dos preços em intervalos de 150-300 anos,que compõe o famoso — e ainda inexplicado — padrão secular de inflaçãoe deflação. A despeito do grande esforço dos adeptos da perspectiva dosistema-mundo, os estudos sobre esse tema ainda não renderam resultadossatisfatórios23.

Wallerstein identifica três (sub)tendências que, combinadas, expli-cariam grande parte da dinâmica das tendências seculares: a pressão dosníveis reais de remuneração do trabalho sobre os custos de produção (aresultante do conflito entre capital e trabalho); o custo progressivo dosinsumos materiais (não só o preço de compra das matérias-primas, massobretudo os custos de sua transformação, do tratamento dos resíduos eda proteção ambiental); e a elevação da pressão tributária, que deriva da

(21) Ibidem, pp. 349-50. grifomeu. Fernand Braudel, ao mes-mo tempo que critica Wallers-tein por estar "hipnotizado"pelo século XVI, reconhece aimportância da semiperiferia:"... por meio de todos os avata-res políticos da Europa, porcausa deles ou a despeito de-les, constituiu-se precocemen-te uma ordem econômica eu-ropéia, ou melhor, ocidental,que ultrapassou os limites docontinente, utilizando as suasdiferenças de voltagem e assuas tensões. Bem cedo o 'co-ração' da Europa se viu cerca-do por uma semiperiferia pró-xima e um periferia longínqua.Ora, essa semiperiferia queoprime o coração, que o obrigaa bater ma is depressa – o Norteda Itália em redor de Venezanos séculos XIV e XV, os PaísesBaixos em torno de Antuérpia–, é talvez a característica es-sencial da estrutura européia.Ao que parece, não há semipe-riferia em torno de Pequim,Delhi, Ispahan, Istambul e atéde Moscou" (Braudel, Fernand.Civilização material, economiae capitalismo – séculos XV-XV11I. São Paulo: Martins Fon-tes, 1996, vol. III, p. 45).

(22) Cf. Wallerstein, lmmanu-el. The capilalist world-eco-nomy. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1979, pp. 96-101.

(23) Cf. Research WorkingGroup on Cyclical Rhythms andSecular Trends. "Cyclicalrhythms and secular trends ofthe capitalist world-economy:some premises, hypoteses andquestions". Review, vol. II, nº 4,1979.

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intensificação da rivalidade interestatal e do custo da preservação daestabilidade social no interior dos Estados (resposta às demandas sociais,repressão e cooptação de movimentos contestatórios etc.). Essas trêstendências interagem a todo momento, impondo obstáculos à acumula-ção. A superação desses obstáculos intensifica a luta de classes, a tensãoentre as classes e os aparelhos de Estado e a rivalidade interestatal.Produzem assim as complexas linhas de força que moldam a trajetória dosistema24.

A segunda dimensão é a dos ciclos conjunturais ou ritmos cíclicos,que simultaneamente influenciam as tendências seculares e são por elasinfluenciados. Na economia-mundo capitalista os ciclos conjunturais maisimportantes comportam-se de forma análoga aos ciclos de Kondratieff.Duram cerca de cinqüenta anos e são constituídos por duas fases: expansãoe contração. No entanto, Wallerstein concebe esse tipo de ciclo de formabastante particular. A lógica que rege o seu funcionamento não se esgota nadiscrepância entre a oferta e a procura25. Pelo contrário, a sua dinâmica estáintimamente relacionada às tensões que modelam o sistema-mundo e aosconflitos que eclodem na arena sociopolítica. A oferta não cria a sua própriademanda. Se assim fosse, o capitalismo não seria um modo de produção tãoturbulento. A demanda é uma função da distribuição do excedente, a qual,ao contrário da variação da oferta, não deriva fundamentalmente de deci-sões individuais de investimentos visando a acumulação. A distribuição doexcedente resulta do conflito local e global entre os diversos grupos, classese estratos que fazem parte do sistema-mundo moderno. Desse modo, acontradição entre os interesses imediatos e de longo prazo desses gruposexerce uma influência decisiva na dinâmica dos ciclos de Kondratieff: osconflitos de interesse são permanentes, mas as lutas agudas são maisdescontínuas, pois geralmente resultam em compromissos relativamenteduradouros. Assim, é a variação contínua da oferta, combinada à variaçãodescontínua da procura, que rege os ciclos de Kondratieff26.

Como já sugerimos, o sistema-mundo moderno é uma economia-mundo capitalista. Com esse termo estamos descrevendo tanto a suaestrutura formal quando o seu modo de produção, visto que estes sãoinseparáveis. Essa economia-mundo é regida por uma "lei do valor", quedetermina a distribuição da maior parcela do excedente para aqueles quedão prioridade à diretriz fundamental do sistema: a incessante acumulaçãode capitais. Assim, acumular por acumular— isto é, o capital como valorque valoriza a si próprio — representa o princípio nuclear que orientatodo o sistema e lhe confere sentido. Isso não quer dizer que todos os seusmembros operam implacavelmente com base nessa "lei do valor". Emconsonância com os fundamentos do sistema, porém, todas as instituiçõesda economia-mundo capitalista prestam-se a recompensar materialmenteos que aderem ao seu princípio básico e a punir indiretamente os que nãoo fazem27.

A economia-mundo capitalista possui uma superestrutura política bas-tante peculiar, composta por uma rede heterogênea de Estados "sobera-

(24) Cf. Wallerstein, Globaliza-tion..., loc. cit., pp. 6-12.

(25) As interpretações recentessobre os ciclos de Kondratieffpodem ser divididas quanto àênfase na exaustão da tecnolo-gia, na expansão exagerada docapital ou na produção primá-ria excedente, mas praticamen-te todas compartilham uma ca-racterística comum: a base domecanismo é o periódico dese-quilíbrio entre a oferta e a pro-cura (cf. Idem. "Long waves ascapitalist process". Review, vol.VII, nº 4, 1984, pp. 567-69).

(26) Wallerstein sugere queexistem outros ritmos cíclicosem ação; "A economia-mundocapitalista tem-se mantido porum longo tempo, como todosistema, mediante mecanismosque restauram o seu equilíbriotoda vez que seus processos seafastam muito dele. O equilí-brio nunca é restaurado imedi-atamente, mas apenas depoisde desviar-se suficientementeda norma, e, é claro, nunca érestaurado perfeitamente. Umavez que necessita que os desvi-os atinjam um certo grau antesde disparar os contramovimen-tos, a economia-mundo capita-lista, como qualquer outro sis-tema, possui ritmos cíclicos devários tipos. Discutimos um dosprincipais ciclos que ela desen-volve, chamados de Kondrati-eff. Estes não são os únicos"(Idem, Globalization..., loc. cit.,p. 10). Com efeito, ele faz cons-tantes alusões a uma série deciclos breves e médios ("Ki-tchin". "Juglar", "Kuznets" etc.),mas só comenta os ciclos deKondratieff.

(27) Cf. Idem, "Typology of cri-ses...", loc. cit., pp. 584-85; "TheWest...", loc. cit., pp. 566-80;"The modern-world system andevolution". The Journal ofWorld-System Research, vol. 1,nº 19, 1995, pp. 3-5.

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nos", que Wallerstein denomina como "sistema interestatal". Embora envol-va toda a economia-mundo, esse sistema não pode ser considerado umaestrutura política unitária, pois nenhum grupo ou Estado tem podersuficiente para controlar efetivamente todo o sistema. Um Estado pode serhegemônico, isto é, capaz de influenciar o sistema interestatal mais do quequalquer outro Estado, conjunto de Estados ou organizações supranacio-nais e colher os benefícios que derivam dessa influência, mas não podemosdizer que ele controla o sistema interestatal e muito menos a economia-mundo: a Grã-Bretanha não controlava o sistema-mundo moderno tal comoele existia no século XIX, assim como os Estados Unidos não controlam osistema-mundo contemporâneo28. Trata-se, portanto, da recriação da sobe-rania parcelar.

Para Wallerstein, essa estrutura política singular contribui de maneiradecisiva para o fortalecimento da economia-mundo capitalista. Como aarena econômica transcende a esfera de atuação das unidades políticas to-madas individualmente, o grande capital ganha uma margem de manobraextremamente ampla: uma organização capitalista pode, por exemplo,instalar as suas bases produtivas nas zonas de salários mais baixos e aomesmo tempo realizar a sua produção nas regiões de poder aquisitivo maiselevado, aumentando consideravelmente a taxa de retorno. A própriafluidez do sistema interestatal reforça a tendência à incessante acumulaçãode capitais, na medida em que estabelece uma competição ininterruptaentre os Estados nacionais que o integram: os Estados do centro lutam parapreservar a sua posição privilegiada, enquanto os demais se esforçam paraescapar das zonas periféricas. Comportam-se portanto como capitalistas in-dividuais, lutando para expandir a sua base tributária, racionalizar os seusquadros burocráticos e sobretudo incrementar seu poder de atuação nocenário internacional29.

Há ainda uma categoria importante a ser discutida: a arena externa.Com esse termo Wallerstein denomina as variadas formas de impérios-mundo, economias-mundo e minissistemas que não são parte constitutivado sistema-mundo moderno, embora possam com ele estabelecer relações(comerciais, bélicas etc.). Visto que a reprodução da economia-mundomoderna exige a expansão intensiva e extensiva de sua produção e de suasfronteiras espaciais, a arena externa vê-se sistematicamente incorporada aosistema-mundo moderno30. O tipo de inserção, na periferia ou na semiperi-feria do sistema-mundo, depende do poder relativo das estruturas políticaspresentes nas regiões recém-incorporadas.

Trata-se portanto de uma categoria definida pela negatividade, comuma importante implicação: um elemento da arena externa só entra para ahistória do sistema-mundo moderno no momento em que é por ele incorpo-rado, isto é, exatamente quando deixa de fazer parte da arena externa paraconverter-se em uma zona periférica ou semiperiférica da economia-mundocapitalista. Assim, mutatis mutandis, não é difícil notar que na perspectivado sistema-mundo a arena externa opera de forma análoga à noção marxistade "formações sociais pré-capitalistas"31.

(28) Wallerstein desenvolve atese polêmica de que o sistemainterestatal está sujeito a umciclo de hegemonias que atuaconjuntamente com a tendên-cia secular, embora de formacomplexa, pois a dinâmica dosciclos hegemônicos não podeser reduzida à da tendência se-cular (e vice-versa). As hege-monias são autodestrutivas,pois implicam um aumentoprogressivo dos custos, que porsua vez deriva da rivalidade in-terestatal (ao mesmo tempoque a alimenta). Quando umapotência hegemônica entra emdeclínio as demais potênciaslutam para ocupar o seu lugar,o que geralmente resulta emlongos conflitos geopolíticos epor fim num recentramento dosistema. Assim, o estabeleci-mento de uma nova hegemo-nia redefine o eixo mundial dedivisão do trabalho e, conco-mitantemente, toda a configu-ração da economia-mundo.Historicamente, o sistema-mundo moderno vivenciou atéo momento três ciclos hege-mônicos, de duração e intensi-dade variadas: o holandês, obritânico e o norte-americano(cf. Idem. "The three instancesof hegemony in the history ofthe capitalist world-economy".International Journal of Com-parative Sociology, vol. XXIV,nº 1/2,1983). Essa sucessão e omodelo básico que a sustentasão quase unânimes entre osadeptos da perspectiva do sis-tema-mundo, embora Giovan-ni Arrighi acredite que tem algomuito diferente a dizer sobreisso (cf. "The three hegemoni-es of historical capitalism". Re-view, vol. XIII, nº 3, 1990).

(29) Nesse sentido, o Estado éao mesmo tempo baluarte euma ameaça constante para osgrandes acumuladores de capi-tal: "O Estado pode ser o pre-dador primário; nenhum pre-dador foi tão eficaz historica-mente quanto um imperadorsituado no topo de uma estru-tura redistributiva. Algo quefosse capaz de reproduzir umaestrutura política como esta, ba-seando-se na eficiência técnicado mundo moderno, seria anêmesis da acumulação inces-sante de capitais" (Wallerstein,"The modern-world system andevolution", loc. cit., p. 10). Por-tanto, o aniquilamento do sis-tema interestatal e a conversãoda economia-mundo capitalis-ta em um poderosíssimo impé-rio-mundo são um desdobra-mento possível, embora poucoprovável.

(30) Cf. Idem, The modernworld-system I, loc. cit. cap. 6.

(31) Essa dimensão do proble-ma foi percebida por TeshaleTibebu (op. cit., pp. 132-33): "Ogrande 'perigo' para a teoria pa-rece derivar da não-problemati-zação da 'arena externa'. Aque-

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Características epistemológicas da perspectiva do sistema-mundo

i) Globalidade. Como já observamos, a teoria da modernização éinternacional por definição, já que fundamentada basicamente na compara-ção sistemática entre Estados "soberanos", mas nunca foi global — pelomenos não no sentido proposto por Wallerstein. Para ele, por sistema-mundo devemos entender uma unidade cujas partes integrantes não po-dem ser analisadas separadamente. Sendo assim, os processos do sistema-mundo são sempre totais32.

ii) Historicidade. Esse aspecto decorre do anterior. Se há realmenteum sistema-mundo, isto é, uma totalidade espaço-temporal efetiva, apenasa sua história — como um todo, e não a história de suas subunidades to-madas separadamente — pode as explicar as suas sucessivas conformações,assim como a sua feição contemporânea. Mas para tanto é necessáriodelimitar as fronteiras (espaço)temporais do sistema-mundo moderno, pro-cedimento que tem suscitado acirradas polêmicas33. Wallerstein é enfático:a historicidade não pode ser confundida com a "história da ciência social"praticada nos últimos 25 anos, em que os dados disponíveis sobre o passadosão utilizados fundamentalmente para testar as generalizações teóricas de-rivadas das análises do cenário contemporâneo34.

iii) Unidisciplinaridade. Se as duas constatações anteriores foremverdadeiras, a usual divisão entre as arenas política, econômica e sociocul-tural como esferas regidas por lógicas particulares não pode ser sustentada.Assim, unidisciplinaridade não significa multidisciplinaridade, já que aabordagem multidisciplinar, mesmo combinando elementos e descobertasde diversas áreas, respeita as fronteiras entre as ciências sociais. Em outrostermos, a análise do sistema-mundo demanda a constituição de uma ciênciaunitária.

iv) "Holismo" ou totalismo. Essa noção fundamenta as anteriores e aomesmo tempo é fundamentada por elas. Quando se estuda um sistema-mundo, as fronteiras entre as ciências sociais deixam de fazer sentido. Essasfronteiras, socialmente construídas entre 1850 e 1945, refletem a ideologialiberal, que de tão arraigada se tornou quase invisível. O conceito desistema-mundo é sobretudo uma negação da perspectiva liberal: a tota-lidade do sistema é a unidade que confere sentido às partes. Desse modo,como já assinalamos, toda análise, mesmo que setorial, define-se e deve serpresidida pela totalidade. Mas é necessário dar mais um passo. Mesmo entreos defensores da unicidade da ciência social há uma forte tendência adissociá-la da história, nos seguintes termos: a ciência social é abstrata egeneralizante (nomotética), enquanto a história é concreta e particularizan-te (ideográfica). Dessa distinção derivam pelo menos duas posições diferen-tes: o diálogo entre a ciência social e a história é teoricamente impossível;esse diálogo é possível e desejável, mas isso não implica a possibilidade defusão entre as duas "disciplinas", ou seja, a ciência social não pode serreduzida à história e vice-versa. Wallerstein e boa parte dos adeptos da

les que são 'incorporados' sãopovos, embora sejam enterradossob uma longa cadeia de merca-dorias. A sua história precisa sercompletamente estudada. Esseestudo deve começar pela rejei-ção da 'arena externa' tomadacomo a versão das 'formaçõespré-capitalistas' da teoria do sis-tema-mundo, O residualismo éuma pesada manta que sufoca olivre fluxo do ar da história".Note-se aliás que Tibebu fala deuma teoria do sistema-mundoem constituição.

(32) "Globalidade não é globa-lização. Como tem sido usadopor muitas pessoas nos últimosdez anos, o termo 'globaliza-ção' refere-se a um processotido como novo, cronologica-mente recente, em que os Esta-dos supostamente não maisconsistem nas unidades decisó-rias, mas estão agora, e apenasagora, inseridos numa estrutu-ra denominada por algunscomo 'mercado mundial', umaentidade um tanto mítica e se-guramente reificada que dita asregras" (Wallerstein, Globali-zation..., loc. cit., p. 107).

(33) O debate sobre a longevi-dade do sistema-mundo mo-derno é crucial para a perspec-tiva do sistema-mundo. No en-tanto, algumas das posições emconflito são, no mínimo, exóti-cas. A mais extravagante é cer-tamente a derivada de AndreGunder Frank e de Barry Gills:o presente sistema mundial te-ria quase cinco mil anos, poisteria surgido por volta de 2500a.C. (talvez mais cedo!), com asconexões "sistêmicas" estabe-lecidas entre a Ásia Oriental, aEuropa Ocidental e o Sul daÁfrica, que formaram uma uni-dade que já recebeu várias de-signações, tais como "ecúme-no", "ilha da terra" e "civiliza-ção central" (cf. Frank, AndreG. "A theoretical introductionto 5.000 years of world systemhistory". Review, vol. XIII, nº 2,1990; Frank, Andre G. e Gills,Harry K. "The five thousandyear world system: an interdis-ciplinary introduction". Hum-boldt Journal of Social Relati-ons, vol. 18, nº 2, 1992). Para acrítica dessa posição, cf. Amin,Samir. "The ancient world-sys-tems versus the modern capita-list world-system". Review, vol.XIV, nº 3, 1991; Arrighi, Gio-vanni. "The world according toAndre Gunder Frank" e Wal-lerstein, Immanuel. "Frank pro-ves the European miracle". Re-view, vol. XXII, nº 3, 1999-

(34) Wallerstein, "The rise andfuture demise...", loc. cit., p. 107.

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perspectiva do sistema-mundo têm se esforçado para superar essa clássica enão resolvida antinomia ideográfico-nomotética. O resultado dessa supera-ção seria a constituição efetiva do que Wallerstein denomina "ciência socialhistórica". O pressuposto básico dessa nova ciência é relativamente simples:conceitos e teoremas (abstrações generalizadoras) possuem raízes históri-cas e, assim, somente são válidos dentro de certos parâmetros do espaço-tempo35. Assim, nenhuma generalização é a-histórica (universal). Por outrolado, é impossível tratar qualquer conjunto particular de circunstâncias nopassado sem usar (de forma consciente ou não) conceitos, que implicamteoremas e generalizações36.

Considerações finais

A tentativa de superação da antítese nomotético-ideográfica, a ênfasena totalidade, na unicidade de ciência e a introdução da história como umavariável decisiva na compreensão dos sistemas sociais37 são (ou foram?) osparâmetros fundamentais da perspectiva do sistema-mundo. No entanto, apreocupação quase obsessiva com os ritmos cíclicos e a "lógica sistêmica"38

dos sistemas-mundo — tendencialmente funcionalista — pode se tornaruma camisa-de-força, esterilizando as potencialidades dessa modalidadede reflexão. A atual convergência entre alguns dos praticantes da perspec-tiva do sistema-mundo e a "teoria da complexidade", derivada do que seconvencionou denominar "New Science"39, é indício de um provável desca-minho.

Simplificando um pouco as coisas, podemos dizer que a teoria dacomplexidade tende a oscilar entre dois pólos. i) Os fenômenos do mundoreal são freqüentemente caóticos, instáveis, de modo que a sua análisedeve se fundamentar predominantemente em estimativas probabilísticas.ii) No seio da aparente onipresença do caos há sistemas complexos,dotados de ordem interna, baseados em leis determinísticas e que gerampadrões discerníveis. Sob o impulso de suas próprias leis, no entanto, todoe qualquer sistema tende a se desagregar, isto é, a entrar na "fase debifurcação": as oscilações tornam-se cada vez mais abruptas e aleatórias.Quando se atinge esse ponto, as leis que ordenavam o sistema não são maiscapazes de fazê-lo. A partir daí, um ou vários novos sistemas podem surgir.Mas enquanto um novo conjunto de leis internas não for consolidado atrajetória do sistema é intrinsecamente imprevisível40.

Pode parecer surpreendente, mas essa discussão, que se situa noâmbito da física, despertou o interesse de alguns adeptos da perspectiva dosistema-mundo. Essa estranha influência tem sido reforçada por proposi-ções catastrofistas sobre o inevitável declínio do sistema-mundo capitalista,previsto para ocorrer por volta de 2025-50, com a inversão do Kondratieffatual. A peculiaridade é que isso deverá ocorrer durante uma tendênciasecular declinante, isto é, uma deflação secular, contrariamente à inflação

(35) Sobre a indissociabilidadeentre tempo e espaço e a tipo-logia dos diversos espaços-tem-pos, cf. Idem, Unthinking soci-al science, loc. cit., pp. 135-48;The time of space..., loc. cit.;"Time and duration: the unex-cluded middle". Nova York:Fernand Braudel Center, 1996(série Papers).

(36) Essa dimensão do pensa-mento de Wallerstein é decisi-va para o desenvolvimento daperspectiva do sistema-mundo,ou melhor, para a sua conver-são numa "teoria'", mas não épossível desenvolver aqui umtema tão vasto. Cf. Wallerstein,Unthinking social science, loc.cit.; "History in search of scien-ce". Review, vol. XIX, nº 1, 1996;The time of space..., loc. cit.;"The challenge of maturity...",loc. cit.; "The tasks of historicalsocial science: an editorial" Re-view, vol, I, nº 1, 1977; Socialscience and Contemporary so-ciety. .., loc cit.

(37) De acordo com os precei-tos da perspectiva do sistema-mundo, toda estrutura é históri-ca: para conhecer uma estrutu-ra é necessário não só conhe-cer a sua gênese, mas tambémassumir que sua forma e suasubstância estão em contínuatransformação.

(38) Chase-Dunn, Christopher."The comparative study ofworld-systems". Review, vol.XV, nº 3, 1992, pp. 319-27.

(39) Cf. Lee, Richard. "Reading'sin the 'New Science': a selecti-ve annotated bibliography".Review, vol. XV, nº l, 1992;Cultural Studies as Geisteswis-senschaften? Time, objectivity,and the future of social science.Nova York: Fernand BraudelCenter, 1997 (série Papers);Wallerstein, "History in searchof science", loc. cit.

(40) Cf. Birken, Lawrence."Chaos theory and 'Western ci-vilization"'. Review, vol. XXII,n° 1,1999; Ekeland, Ivar. "Whatis chaos theory?". Review, vol.XXI, Nº 2, 1998; Prigogine, Ilya."The laws of chaos". Review,vol. XIX, nº l, 1996.

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secular que caracterizou o século XX, combinada com a radicalização dascontradições fundamentais da economia-mundo moderna. Quem tomou adianteira nesse tipo de previsões foi o próprio Wallerstein:

... podemos dizer que a economia-mundo capitalista entrou agora emsua crise terminal, uma crise que deverá durar cerca de cinqüentaanos. A questão real que se coloca à nossa frente é o que irá ocorrerdurante essa crise, durante essa transição do presente sistema-mundoa outro tipo de sistema ou sistemas históricos. Analiticamente, a ques-tão-chave é a relação entre os ciclos de Kondratieff [...] e a crisesistêmica [...]. Politicamente, há a questão sobre que tipo de ação socialé possível e desejável durante uma transição sistêmica41.

A incorporação de elementos da teoria da complexidade, em conjuntocom a ênfase no caráter determinante dos ciclos médios (uma capitulaçãofrente à "teoria da regulação"?), está levando a perspectiva do sistema-mundo a um ponto de inflexão, em que as suas características mais frutíferasestão sendo eliminadas. Em uma análise inspirada na desintegração sistêmi-ca inevitável, tal como esboçamos acima, qual é o lugar efetivo da história?Onde está a superação da antinomia nomotético-ideográfica?

(41) Wallerstein, Globalizati-on..., loc. cit., p. 9.

Recebido para publicação em20 de maio de 2004.

Eduardo Barros Mariutti é so-ciólogo, mestre em HistóriaEconômica e doutorem Econo-mia pelo IE-Unicamp.

Novos EstudosCEBRAP

N.° 69, julho 2004pp. 89-103

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Sem título "Objetos gráficos" 1968Bienal de VenezaÓleo, escrita datilográfica e letraset sobre papel-arrozmontado em placas de acrílico transparenteFoto Giacomelli