Considerações sobre a União Do Vegetal

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Considerações sobre a União Do Vegetal, por Cláudio Naranjo, em seu livro “Ayahuasca – La enredadera del río celestial”. Cláudio Naranjo O doutor Cláudio Naranjo (Valparaíso, Chile, 1932) leva quarente anos desenvolvendo a sabedoria do eneagrama e criou a psicologia dos eneatipos. Como discípulo e sucessor de Fritz Perls, se converteu numa referência mundial da terapia gestalt. Professor em Berkley, é considerado um pioneiro da psicologia transpessoal e um integrador da psicologia com a espiritualidade. Ao longo da vida recebeu ensinamentos de mestres como Swami Muktananda, Idries Shah, Oscar Ichazo, Suleyman Dede, S.S. o XVI Karmapa e Tarthang Tulku. Como fruto deste amplo aprendizado desenvolveu o Programa SAT, um processo de autoconhecimento pelo qual já passaram milhares de pessoas. Cláudio Naranjo é membro do Clube de Roma e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Udine (Itália). Recentemente, foi criada em Barcelona, a Fundação Cláudio Naranjo. Tradução do capítulo 10 UM APÊNDICE SOBRE AS RELIGIÕES HOASQUEIRAS URBANAS DO BRASIL Parte II HISTÓRIA DA UNIÃO DO VEGETAL POR UM MEMBRO ANÔNIMO DA UDV Conheço muitos membros da União do Vegetal que, apesar de seu prestígio dentro da instituição, fazem sérias críticas à mesma. Abaixo reproduzo o testemunho de um dos integrantes mais respeitados da UDV, a quem pedi que escrevera suas reflexões sobre o que parece ser uma contra corrente dentro da instituição. Por esta razão, me pediu que respeitasse seu anonimato. HISTÓRIA: CUALIDADES, INCONVENIENTES E LIMITAÇÕES A história da União do Vegetal começou em 1959, quando um homem de origem humilde chamado José Gabriel da Costa, conhecido mais tarde pelo nome espiritual mestre Grabriel, entrou em contato com a ayahuasca num seringal. Ao beber o chá começou gradualmente a recordar sua missão de unir as pessoas em torno do “vegetal” (nome dado à ayahuasca pela UDV), ensinando através de histórias e de sua doutrina as chaves para o desenvolvimento espiritual. No começo da UDV a presença do mestre Gabriel, um homem muito carismático, brindava seus discípulos com um grande impacto transformador. Desta época se contam histórias incríveis. Ele ajudou a transformar a muitos dos seus primeiros discípulos, alguns rudes e desquilibrados, em pessoas de bem, mais equilibradas e conscientes. Alguns deles receberam os ensinos diretamente do mestre Gabriel, como o mestre do vegetal. Um exemplo é um homem cuja valentia foi colocada em dúvida e quis cortar o dedo e mastigar-lo para provar que era macho. Eram essas as pessoas que enfrentava mestre Gabriel. Quando Gabriel morreu, foram esses homens que levaram seus ensinos a diante. As palavras de M. Gabriel sempre foram muito claras. De uma sabedoria for a do comum, ele alcançava altos níveis de compreensão através de uma linguagem simples, direta e minimalista. Desta forma conseguiu uma comunicação com todos os níveis de compreensão (assim é a sabedoria cabocla: a palavra e a mensagem devem vir de tal maneira que as possam compreender tanto uma pessoa inculta quanto um homem letrado.) O mestre tinha o dom de conduzir as pessoas aos mundos trancendentais para experimentar a realidade espiritual. Em seus ensinos podemos encontrar as mesmas verdades que no budismo e o cristianismo esotérico. Depois de distribuir e ensinar a ayahuasca durante quatro anos dentro da selva amazônica, M. Gabriel se instala em Porto Velho e concretiza a religião que criou. A UDV cresce rapidamente e o mestre e seus seguidores criam uma associação, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Elaboram um estatuto e leis para regular as relações entre os irmãos (já que agora tinham uma irmandade), bem como a distribuição do vegetal. Já no meio urbano, estabeleceu gradualmente uma estrutura hierárquica, que se matém até hoje, onde a pessoa pode ascender a certos “lugares” de acordo com certos critérios. A princípio se entra como sócio e depois passa-se ao Corpo Instrutivo, onde se recebe acesso a ensinos próprios deste “grau”. No segundo escalão da hierarquia se converte em conselheiro, ou seja, adquire um grau que representa sua capacidade de abrir-se para perceber as necessidades dos outros e auxilia-los. O terceiro grau, o de Mestre, só pode ser ocupado por homens. Depois existem outros “lugares” de maior responsabilidade, que também só podem ocupados pelos Mestres. A direção de uma comunidade da UDV cabe aos conselheiros e conselheiras e aos Mestres. Cada grau alcançado possue ensinos particulares e outorga o direito de escutar certas “histórias”. De acordo com seu grau, os iniciados irão elucidando esta histórias, que são transmitidas oralmente de memória, da mesma maneira que no chamanismo se recebe a iniciação através de mitos e símbolos. Esse conjunto de contos secretos revela sabedoria. Atende a muitos níveis de compreensão, desde o literal até uma rica simbologia cuja total compreensão nem sequer os Mestres conseguem discernir. Além disso,

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Considerações sobre a União Do Vegetal, por Cláudio Naranjo, em seu livro “Ayahuasca – Laenredadera del río celestial”. Cláudio Naranjo O doutor Cláudio Naranjo (Valparaíso, Chile,

1932) leva quarente anos desenvolvendo a sabedoria do eneagrama e criou a psicologia doseneatipos. Como discípulo e sucessor de Fritz Perls, se converteu numa referência mundial daterapia gestalt. Professor em Berkley, é considerado um pioneiro da psicologia transpessoal eum integrador da psicologia com a espiritualidade. Ao longo da vida recebeu ensinamentos de

mestres como Swami Muktananda, Idries Shah, Oscar Ichazo, Suleyman Dede, S.S. o XVIKarmapa e Tarthang Tulku. Como fruto deste amplo aprendizado desenvolveu o ProgramaSAT, um processo de autoconhecimento pelo qual já passaram milhares de pessoas. CláudioNaranjo é membro do Clube de Roma e Doutor Honoris Causa pela Universidade de Udine(Itália). Recentemente, foi criada em Barcelona, a Fundação Cláudio Naranjo. Tradução docapítulo 10 UM APÊNDICE SOBRE AS RELIGIÕES HOASQUEIRAS URBANAS DO BRASILParte II HISTÓRIA DA UNIÃO DO VEGETAL POR UM MEMBRO ANÔNIMO DA UDV Conheçomuitos membros da União do Vegetal que, apesar de seu prestígio dentro da instituição, fazemsérias críticas à mesma. Abaixo reproduzo o testemunho de um dos integrantes maisrespeitados da UDV, a quem pedi que escrevera suas reflexões sobre o que parece ser umacontra corrente dentro da instituição. Por esta razão, me pediu que respeitasse seu anonimato.HISTÓRIA: CUALIDADES, INCONVENIENTES E LIMITAÇÕES A história da União do Vegetal

começou em 1959, quando um homem de origem humilde chamado José Gabriel da Costa,conhecido mais tarde pelo nome espiritual mestre Grabriel, entrou em contato com aayahuasca num seringal. Ao beber o chá começou gradualmente a recordar sua missão de unir as pessoas em torno do “vegetal” (nome dado à ayahuasca pela UDV), ensinando através de

histórias e de sua doutrina as chaves para o desenvolvimento espiritual. No começo da UDV apresença do mestre Gabriel, um homem muito carismático, brindava seus discípulos com umgrande impacto transformador. Desta época se contam histórias incríveis. Ele ajudou atransformar a muitos dos seus primeiros discípulos, alguns rudes e desquilibrados, em pessoasde bem, mais equilibradas e conscientes. Alguns deles receberam os ensinos diretamente domestre Gabriel, como o mestre do vegetal. Um exemplo é um homem cuja valentia foi colocadaem dúvida e quis cortar o dedo e mastigar-lo para provar que era macho. Eram essas aspessoas que enfrentava mestre Gabriel. Quando Gabriel morreu, foram esses homens que

levaram seus ensinos a diante. As palavras de M. Gabriel sempre foram muito claras. De umasabedoria for a do comum, ele alcançava altos níveis de compreensão através de umalinguagem simples, direta e minimalista. Desta forma conseguiu uma comunicação com todosos níveis de compreensão (assim é a sabedoria cabocla: a palavra e a mensagem devem vir de tal maneira que as possam compreender tanto uma pessoa inculta quanto um homemletrado.) O mestre tinha o dom de conduzir as pessoas aos mundos trancendentais paraexperimentar a realidade espiritual. Em seus ensinos podemos encontrar as mesmas verdadesque no budismo e o cristianismo esotérico. Depois de distribuir e ensinar a ayahuasca durantequatro anos dentro da selva amazônica, M. Gabriel se instala em Porto Velho e concretiza areligião que criou. A UDV cresce rapidamente e o mestre e seus seguidores criam umaassociação, o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal. Elaboram um estatuto e leis pararegular as relações entre os irmãos (já que agora tinham uma irmandade), bem como a

distribuição do vegetal. Já no meio urbano, estabeleceu gradualmente uma estruturahierárquica, que se matém até hoje, onde a pessoa pode ascender a certos “lugares” de acordocom certos critérios. A princípio se entra como sócio e depois passa-se ao Corpo Instrutivo,onde se recebe acesso a ensinos próprios deste “grau”. No segundo escalão da hierarquia se

converte em conselheiro, ou seja, adquire um grau que representa sua capacidade de abrir-separa perceber as necessidades dos outros e auxilia-los. O terceiro grau, o de Mestre, só podeser ocupado por homens. Depois existem outros “lugares” de maior responsabilidade, que

também só podem ocupados pelos Mestres. A direção de uma comunidade da UDV cabe aosconselheiros e conselheiras e aos Mestres. Cada grau alcançado possue ensinos particulares eoutorga o direito de escutar certas “histórias”. De acordo com seu grau, os iniciados irão

elucidando esta histórias, que são transmitidas oralmente de memória, da mesma maneira queno chamanismo se recebe a iniciação através de mitos e símbolos. Esse conjunto de contos

secretos revela sabedoria. Atende a muitos níveis de compreensão, desde o literal até uma ricasimbologia cuja total compreensão nem sequer os Mestres conseguem discernir. Além disso,

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falamos de uma cultura que tende a reproduzir certas interpretações sem se aprofundar en seuverdadeiro significado oculto, que somente pode ser compreendido por uma maturidadeespiritual. Existe, hoje em dia, um ensino que somente é dado aos Mestres. As mulheresseguem sem poder escuta-lo. Imagino que isto seja uma forma de afirmar o poder masculino.Podemos dizer, portanto, que se trata de um sistema hierárquico e patriarcal. O aumentogradual no número de sócios despertou a atenção das autoridades, que tentaram impedir a

distribuição do vegetal. Desde então começou uma luta constante pela liberação do chá, queculminou em sua liberação atual. É importante destacar o papel fundamental da UDV naliberação dos direitos legais de uso da ayahuasca em contextos ritualísticos-religiosos no Brasile nos EUA. Hoje em dia, a UDV tem suas atividades legalizadas e presta importantes serviçosnas comunidades onde tem suas unidades admnistrativas, desde serviços para seus sócios atéações beneficentes nas comunidades carentes, recebendo assim o título de Utilidade PúblicaFederal. A expansão da UDV vem se dando de maneira vertiginosa nos últimos anos,chegando hoje a mais de quinze mil sócios, distribuidos em núcleos por todo país. Ainda que aestrutura criada pelo seu fundador tenha sido preservada nos mais mínimos detalhesoperacionais, muitas coisas mudaram depois de sua morte. Imagino que todo o processo emprol da legalização do chá, que demorou muitos anos para se efetivar, possa haver contribuido,a meu modo de ver, para uma perda recente da abertura para viver experiências mais

trancedentais e misteriosas, tão presentes na UDV dos tempos antigos. Podemos citar MaxWeber: “A instituição é a morte do carisma.” Pois com o passar do tempo, a UDV se

especializou em garantir às autoridades que estaria dentro da ordem institucional do país, ecriou normas em seu seio que reprimiam de forma autoritária a liberdade da expressãoespontânea do Ser. Penso que, ainda que tenham havido muitos esforços por parte de seusdiscípulos para manter a cultura cabocla que nos legou mestre Gabriel, muito mudou desdeentão. Parece que se perdeu parte da liberdade. Já não se pode, por exemplo, beber o vegetalna natureza (lugar de onde vem as plantas sagradas), nem tampouco participar de rituais deoutras religiões que fazem uso do vegetal. Algumas decisões que vem do “Grande Conselho”,

constituido pelos mestres formados pelo próprio M. Gabriel, parecem querer tirar dos dirigentesa capacidade de utilizar seu critério pessoal na resolução de alguns conflitos locais. Os mestresda atual União do Vegetal tem que constantemente lidar com o poder. As vezes, alguém que

ocupa este lugar pode confundir o lugar de Mestre com seus próprios pensamentos e passar autilizar seu posto como forma de impor suas verdades. Desta forma, o caminho e a vivênciaespiritual ficaram em segundo plano. Tal situação é motivo de questionamentos no próprioâmbito da UDV, pois todos, inclusive os mais antigos, percebem que atualmente o efeito dochá perdeu parte de sua intensidade. De fato, o ritual as vezes mais parece uma doutrinação,pois se tornou demasiado intelectualizado. Em geral, há um controle excessive e uma falta deconfiança básica no processo de cada um, no poder autoregulador que o chá estimula. Estáclaro que alguns ensinos do Mestre que permitiam a manifestação do carisma foraminterpretados de maneira que manteve seus membros sob a tutela dos dirigentes, demasiadopreocupados em manter a ordem estabelecida. Como em toda sociedade patriarchal, a UDVpretende instaurar a retidão na vida das pessoas para colocar cada um em seu devido lugar.De fato, muitas pessoas que chegam desestruturadas, com dependência química de álcool,

cocaine ou crack, deixam de se drogarem graças ao uso do vegetal. Desta maneira, a UDVoferece um grande serviço à sociedade e seus cidadãos, ois goza do dom de recuperar membros desestruturados. Porém, é evidente que existe pouco trabalho sobre “si mesmo”. A

maioria dos membros da UDV se desenvolvem até certo ponto e depois não sabem discernir entre o que é o ego e o que é a retidão. Misturam o ego e a espiritualidade. Não hádiscernimento para separar o ego do Ser. Se preocupam, isso sim, em discernir do bem domal, de acordo com suas rígidas normas, mas desconhecem os motivos pelos quais se vemsempre obrigados a lidar com conflitos, desavenças e toda sorte de temas egóicos quepermeiam os membros e as relações entre eles e que impedem o desenvolvimento pleno daspotencialidades das pessoas. Desta maneira, as ricas experiências produzidas pela ayahuascanão são elaboradas ou compreendidas na totalidade de seu precioso simbolismo e tenho aimpressão de que vai passando o tempo e tudo segue igual. Na UDV não dá atenção aos

fenomenos corporais que surgem sob o efeito do chá. A expressão corporal não é vista combons olhos e não é permitido dançar nos rituais. Os rituais, atualmente, tendem a privilegiar o

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campo intelectual, sem favorecer uma abertura para outras dimensões que alcançam além dointelecto. A UDV é uma religião muito jovem, com pouco mais de cinquenta anos, que enfrentauma série de dificuldades inerentes a seu crescimento acelerado e também no que diz respeitoà sua mais alta finalidade, que é proporcionar crescimento espiritual unindo a seus discípulos.Seu principal desafio consiste em superar os limites impostos pela institucionalização e por suaherança patriarcal, que ainda impedem o aprofundamento do autoconhecimento e o trabalho

sobre o ego. Ainda há a necessidade de promover a integração dos aspectos masculinos efemininos, tão necessários para o equilíbrio e desenvolvimento de uma espiritualidade maisplena, que inclua mais devoção, mas também compaixão e prazer.