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Considerações sobre a construção da Monarquia
Constitucional brasileira nas páginas do jornal “Astro de Minas”
(1827-1831)
Leonardo Bassoli Angelo, mestre e doutorando em História, Universidade
Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais
RESUMO
No início do século XIX, a imprensa periódica se constituiu como um importante espaço de discussão pública no Brasil. Nesse contexto, as publicações divulgavam ideias e projetavam aspectos que deveriam ser construídos e desenvolvidos para que o Brasil se tornasse uma nação “civilizada”. Em Minas Gerais, a vila de São João Del Rei passou pela inauguração de sua primeira publicação periódica em 1827, pela iniciativa de Baptista Caetano de Almeida. Indivíduo de atividades variadas, Baptista Caetano se dedicou intensamente à política, e fundou o jornal “Astro de Minas”, de tendência política liberal-moderada, em que foram divulgadas ideias concernentes ao Estado-nação ainda recente no Brasil. Neste artigo, pretendo analisar considerações presentes sobre a Monarquia Constitucional do Brasil que foram divulgadas nessa publicação, no objetivo de conhecer melhor a pluralidade de projetos para o Brasil independente nesse contexto de intensidade de perspectivas para a política brasileira. As fontes primárias utilizadas foram narrativas publicadas desde a fundação do jornal, em 1827, até o ano da Abdicação de dom Pedro I, em 1831. Palavras-chave: Brasil Império; Imprensa em Minas Gerais; Constitucionalismo no Brasil.
ABSTRACT
In the early nineteenth century, the periodical press was constituted as a important space of public discussion in Brazil. In that context, the publications disseminate ideas and projected aspects that should be built and developed for Brazil to become a nation “civilized”. In Minas Gerais, the village of São João Del Rei it passed through the opening of first periodical publication in 1827, through the initiative of Baptista Caetano de Almeida. Individual with varied activities, Baptista Caetano intensely devoted to political practice, and founded the newspaper “Astro de Minas”, of moderate liberal political trend, in which were disclosed ideas concerning the still recent nation-state in Brazil. In this paper, I intend to analyze considerations about the Constitutional Monarchy of Brazil that were disclosed in this publication, in order to know better the plurality of projects for the independent Brazil in this intensity context of prospects for the Brazilian political. The primary sources used were published narratives since the paper's founding, in 1827, to the year of Abdication of dom Pedro I, in 1831. Keywords: Empire of Brazil; Press in Minas Gerais; Constitutionalism in Brazil.
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É consenso que um acontecimento fundamental na história dos valores
constitucionais do Brasil foi a Revolução do Porto (1820). Nessa ocasião, os
deputados brasileiros convocados para atuarem nas Cortes trouxeram contribuições
fundamentais para a construção do liberalismo na antiga América portuguesa –
então Reino Unido a Portugal e Algarves. Se a Revolução do Porto significou um
importante evento para as concepções constitucionais liberais no Brasil, o processo
que teve como desdobramento a outorga da Constituição de 1824, após a
Independência, representou para os brasileiros o início de uma experiência que
definia aspirações para estruturar um novo ordenamento político, fundamentado em
um modelo representativo de governo (PANDOLFI, 2015, p. 1).
Durante o I Reinado, emergiu uma opinião pública com decisivo peso para
influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado. Marco
Morel apontou o período compreendido entre as décadas de 1820 e 1830 como o
momento crucial para o amadurecimento da opinião pública no Brasil (apud
PEREIRA, 2012, p. 134-135), impulsionada durante as Regências e cuja turbulência
política corporificada na profusão de tendências se refletia na intensidade dos
debates travados através dos materiais impressos, notadamente a imprensa
periódica. Esse foi um espaço fértil para a difusão da ideia de um Brasil
“constitucional” e da importância em se aplicar esse ordenamento no propósito de
fundar um novo sistema político baseado no indivíduo.
Durante a década de 1820, o constitucionalismo ganhou cada vez mais
espaço em Portugal e no Brasil recém-independente, e a província de Minas Gerais
impulsionou um espaço público de poder, tendo na imprensa periódica um agente de
total relevância; ao final do I Reinado, a expansão desse espaço periódico –
predominantemente liberal – contribuiu para o ethos constitucionalista provincial
(PANDOLFI, 2015, p. 2).
Andréa Slemian afirmou que o constitucionalismo português da década de
1820 teve no ambiente parlamentar um dos espaços mais importantes de ação
política, rivalizando apenas com a emergente e politizada imprensa. Nos tempos da
América portuguesa, esse constitucionalismo levou à instabilidade política ao criar
possibilidades e expectativas de transformação política e social, em um contexto de
violenta disputa local (SLEMIAN, 2006, p. 15; p. 66); no Brasil, esse espaço
denominado “Arca Santa de Nossa Liberdade” trouxe a garantia de justiça e a
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promessa de direitos individuais (SAMOGIN, p. 2). Tendo em vista que a
Constituição era um elemento central para representar esse novo momento político,
a imprensa desempenharia o papel de fundamental divulgadora da importância
desse ordenamento jurídico para garantir a ordem social.
As ideias eram constituídas e se manifestavam com intensidade em um
ambiente denso e ao mesmo tempo plural, sendo um exemplo o jornal “Correio
Braziliense”, que encontrou ávidos leitores e ajudou a preparar uma nova geração
de políticos e intelectuais que brilharia nos debates do Primeiro Reinado, entre eles
Silvestre Pinheiro Ferreira e os adeptos do chamado “liberalismo doutrinário,” que
teria em Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai, mais tarde conselheiro de
Estado, um de seus principais expoentes (MARTINS, 2007, p. 63).
Quando esse constitucionalismo do Brasil já estava representado pela Carta
de 1824, o jornal “Astro de Minas”, de São João Del Rei (sede da Comarca do Rio
das Mortes) foi um importante veículo de difusão de ideias. Fundado por Baptista
Caetano de Almeida,1 – um importante incentivador das atividades intelectuais na
referida vila/cidade –, esse jornal possuía inclinação política liberal-moderada, e
sediou a discussão de diversos temas que permeavam o espaço político do Brasil,
como ideias envolvendo a moeda brasileira, o Brasil no cenário internacional – e a
política internacional de maneira geral –, debates entre estadistas, entre outros.
Enquanto partícipe na construção, defesa e divulgação do liberalismo
constitucional brasileiro, o “Astro de Minas” se dedicou à transcrição de instrumentos
jurídicos como leis e decretos que sedimentaram o ideário do Brasil independente,
no propósito de aproximar os brasileiros das garantias legais que legitimavam e
fortaleciam a nova política brasileira; exemplos são encontrados na lei que tratava
da responsabilidade dos ministros e secretários de Estado e dos conselheiros de
Estado,2 e na lei sobre a dívida interna.3 Porém, a divulgação da lei em seu sentido
1 Nascido a 03/05/1797 em Camanducaia (extremo Sul de Minas), Baptista Caetano de Almeida se mudou com a família para São João Del Rei por volta dos treze aos quatorze anos de idade, com o propósito de completar seus estudos. Nesse ínterim, foi morar com o tio, Pedro de Alcântara de Almeida, com quem aprendeu a trabalhar no comércio. Posteriormente, se dedicou a essa atividade com um negócio de secos e molhados em uma época de grande importância dessa atividade para a vila de São João Del Rei, estabelecendo uma sociedade com Francisco de Paula de Almeida Magalhães, que foi presidente e vereador da Câmara Municipal dessa vila. Em 1827, casou-se com Mariana Alexandrina Teixeira Leite, filha do barão de Itambé e pertencente a uma das mais ricas famílias da região. Cf: MOTTA, 2000, p. 87-90. 2 “Astro de Minas”, n. 6, 01/12/1827, p. 1. 3 “Astro de Minas”, n. 16, 25/12/1827, p. 1-3.
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estrito não foi o único elemento jurídico a receber a atenção dos redatores, mas
também reflexões de pensadores sobre o significado da legislação em um contexto
liberal, como um extrato traduzido de Ramon Salas no qual se afirmava que nada
interessa ao homem quanto seu próprio indivíduo, pois nisso residiria sua felicidade.
Continuando, Salas afirmou que uma boa Constituição política deve garantir esta
liberdade, assegurando ao cidadão que, enquanto ele observasse e respeitasse as
leis, nenhum governante poderia oprimi-lo.4
Outras traduções também ocuparam vastas páginas desse jornal
sanjoanense (alguns excertos eram publicados em mais de uma edição), mas nem
sempre os trabalhos traduzidos tinham como prioridade o liberalismo: enquanto o
“Grito da Liberdade dos Estados Unidos da América” manifestava a liberdade da
América em contraposição à “tirania” de sua antiga metrópole,5 a versão de uma
obra de Mr. Bignon elogiava a Santa Aliança,6 que teria progredido para a razão e a
política, justiça, humanidade, bondade, paz e amor. Mr. Bignon afirmou ser esse
tratado a dedicação ao triunfo da moral cristã, que produzia melhoramentos nos
governos temporais, tornando os príncipes submissos aos mandamentos de Deus.
Isso se conciliaria com o poder absoluto dos reis, um fato que não desagradaria aos
Gabinetes.7
Porém, a defesa ainda que discreta do Antigo Regime não ocupou tantas
páginas do jornal no período do I Reinado contemplado nesse artigo. A tradução de
uma obra a respeito do poder absoluto apresentou a ideia de que esse poder
fomenta o orgulho e a irritação pela menor resistência, produzindo desprezo para o
que se vê de longe e “baixeza sórdida” na presença do ídolo. Nesse excerto, havia a
ideia de que o poder absoluto o é em princípio e em execução, e, em países com
governos que possuíam esse regime, as classes subalternas se comportariam de
forma “rude”. Por fim, a tradução postulava que o fim das sociedades humanas é a
4 “Astro de Minas”, n. 296, 10/10/1829, p. 2. 5 “Astro de Minas”, n. 5, 29/11/1827, p. 1-4. 6 A Santa Aliança foi um tratado firmado no princípio do século XIX. Assinado pelo imperador da Áustria, Francisco, pelo rei da Prússia, Frederico Guilherme, e pelo imperador da Rússia, o czar Alexandre, indicou o retorno da Europa a uma política conservadora após o contexto político da França revolucionária e imperial. Esse tratado recebeu o apoio de diversas monarquias europeias, mas foi rejeitado por nacionalistas e por liberais, que o consideravam um símbolo da Restauração reacionária, ou seja, a manifestação de uma tendência ao Antigo Regime. Mais informações são encontradas em um texto da UFMG que contém a transcrição do tratado. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/staalnc.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2015. 7 “Astro de Minas”, n. 31, 29/01/1828, p. 2-3.
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felicidade por meio de garantias que são excluídas pelo poder absoluto, a exemplo
do que ocorreria em Constantinopla.8
Nessa época em que (como afirmado anteriormente) um espaço de discussão
pública se desenvolvia no ambiente liberal da província de Minas Gerais, uma
narrativa apontou o “espírito público” como característica natural dos seres
humanos, sendo necessário que os bons governos o consultassem e o seguissem
em vez de se dedicarem a combatê-lo. Continuando, o redator afirmou que, em todo
Estado constitucional, em que as eleições dos deputados das assembleias
deliberativas são populares e livres de “estorvos” (como no Brasil), os deputados
eram instrumentos da opinião pública, e os juízes evitavam que a justiça servisse de
instrumento à tirania.9
Expressa na Constituição de 1824, a liberdade de imprensa significava – com
as ressalvas de legisladores de que fosse utilizada com responsabilidade – uma das
maiores características de um governo liberal, pois representava a livre expressão
do pensamento. De acordo com essa ideia, esse artigo referido na nota 9 defendeu
que a liberdade de imprensa se configurava, para os maiores políticos e
jurisconsultos, no mais completo intérprete da opinião pública, que daria cabo de
tiranos e serviria ao interesse das nações.10 Em uma correspondência para o
“Astro”, o redator criticou um jornal de propalada tendência absolutista denominado
“Gazeta do Brasil”, que elogiou Joaquim Gonçalves Ledo em uma correspondência,
e em outra o criticou ferozmente. Em seu texto, o redator do “Astro” afirmou que a
liberdade de imprensa, conservada em seus justos limites, garantiria a liberdade dos
Estados constitucionais, defendendo a honra e o crédito de cidadãos beneméritos.11
Maria Fernanda Vieira Martins afirmou que tanto a transferência da Corte
portuguesa quanto o processo de independência de 1822 representaram marcos
irrefutáveis para a história política do Brasil, construindo as instituições que
integrariam a monarquia brasileira, inspirada no modelo europeu do Estado-nação
(MARTINS, 2007, p. 40). Para que as instituições desse Estado se consolidassem,
era necessário relacioná-las aos benefícios que trariam para os cidadãos, em
contraposição a um período em que, supostamente, as pessoas não teriam
8 “Astro de Minas”, n. 51, 15/03/1828, p. 4. 9 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 2-3. 10 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 2-3. 11 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 3-4.
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desfrutado de direitos, sob o jugo de um governante arbitrário, ou seja, o período do
Antigo Regime.
Nesse sentido, um artigo intitulado “Bom pensamento” postulou que o código
do governo despótico é o coração do tirano, tão volúvel quanto as situações nas
quais exerce a tirania. Para se opor a esse período, o redator afirmou que o código
do governo liberal é a vontade livre da nação, arcabouço jurídico que não está
sujeito a arbitrárias mudanças; por ser obra de sábias e prudentes reflexões de
legisladores escolhidos, é acessível ao conhecimento de todos os cidadãos. Por
isso, manifestou, a respeito de um governo constitucional, “[...] que he Lei escrita
não so por caracteres de convicçao, senao também por huma educaçao bem
dirigida dos membros da Sociedade.”12
O constitucionalismo desses primeiros anos vinha acompanhado da
necessidade de afirmação da “brasilidade”, ou seja, defendia-se a ideia de que os
brasileiros seriam adeptos da causa constitucional, enquanto outros, supostamente
representantes de uma “velha Europa”, eram desprezíveis e perigosos para a nova
situação política do Brasil. Nesse sentido, um artigo foi redigido nos seguintes
termos:
“Hum punhado de Brasileiros adoptivos, ou antes
Portuguezes de coração, capitaneados pelo infame Luiz José Dias
Custodio, que por nossa desgraça ainda He Vigario desta infeliz
Parochia, hum punhado de indignos Europeus tem se reunido em
varias noites nas casas do Coronel Antonio Constantino de Oliveira
para tomarem medidas hostis contra a tranquilidade dos habitantes
desta Villa. Estes malvados fingindo medo de serem atacados pelos
Brasileiros, affectando amor pela Constituição, por essa Constituição,
que elles tanto odeião, tiveram a ousadia de publicar huma
Proclamação, dizendo que se reúnem em maça para fazer frente ao
partido federalista. Que indignos! Que ingratos!!! Quem aqui já falou
em Federação? [...]”.13
12 “Astro de Minas”, n. 419, 27/07/1830, p. 4. 13 “Astro de Minas”, n. 523, 02/04/1831, p. 3-4.
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Além de apontar determinados europeus – com destaque para portugueses –
como causadores de instabilidade social ao conspirarem contra os brasileiros da vila
de São João Del Rei e proporem a adoção do federalismo (interpretado como
ameaça à ordem política do Brasil por sua contrariedade à centralização monárquica
brasileira), o redator manifestava o perigo desses mesmos europeus às ideias
constitucionais.
No “Astro”, houve diversas e intensas manifestações contrárias ao
absolutismo e a todos os elementos que remetessem a essa tendência política, que,
ao ser ressignificada nesse momento histórico do Oitocentos, foi profundamente
relacionada à tirania no propósito de desqualificar o contexto político da América
portuguesa. Essa condenação ao Antigo Regime ocorreu a partir de 1820, quando
os intelectuais/políticos brasileiros reconheceram o constitucionalismo como
inevitável para o futuro político do Brasil. Após o fracasso das versões nacionais das
insurreições com inspiração francesa, compreendia-se a necessidade de se adotar o
modelo constitucional, embora fossem raras as propostas para colocar em prática
esse projeto, dada a multiplicidade de propostas e a ausência de um consenso
(MARTINS, 2007, p. 40).
Essa multiplicidade é exemplificada na dificuldade em se firmar um modo de
governar o Brasil nas primeiras duas décadas de Brasil Império, pois, ainda que a
existência da Monarquia Constitucional não tenha sido contestada nesses anos, os
governantes que se sucederam – dom Pedro I e os regentes – demonstraram
dificuldade em resolver as questões surgidas, como revoltas e insistentes crises
econômicas e políticas. A fluidez de perspectivas, com a consequente instabilidade,
tornava fundamental a tarefa de afirmar os valores da Monarquia Constitucional, que
seria, para esses agentes liberais, “melhor” do que o período em que a dinastia de
Bragança governou o Brasil sob as premissas absolutistas, e o “Astro de Minas” se
mostrou um veículo por meio do qual redatores usavam seu intelecto para promover,
diante dos mineiros, o recente governo constitucional brasileiro.
De maneira geral, o Brasil constitucional foi retratado, pelos defensores do
sistema político pós-Independência, como um contexto diametralmente oposto ao
período do Antigo Regime, este último visto como um projeto político ultrapassado e
que deveria ser rejeitado para que se construísse um novo ordenamento político
baseado nas “Luzes”; as monarquias absolutas não teriam se constituído, para os
8
atores políticos desse contexto liberal, como sistemas políticos pautados em um
ordenamento que impedisse abusos como o exercício do poder tirânico. De acordo
com Alexander Martins Vianna:
No campo disciplinar da História do Pensamento Político e do
Direito, o termo absolutismo foi habitualmente utilizado em oposição
ao termo constitucionalismo, conformando campos classificativos
para autores que legitimariam, respectivamente, uma autoridade
política incondicional (em nome de Deus, a dignidade régia é a
origem, proprietária e usufruturária dos direitos de soberania) e uma
autoridade política condicional (inspirado por Deus, o conjunto dos
corpora do reino é a origem, proprietário e usufruturário dos direitos
de soberania, cabendo ao rei um papel de supervisor ou
administrador) [...]. (VIANNA, 2008, p. 9-10)
Originalmente, o termo “constitucionalismo” designava formas de composição
jurídica da sociedade e seus poderes, que existiram desde a Antiguidade
(FIORAVANTI, 2001). O Brasil independente, para legitimar sua nova ordem política
e sustentar a autonomia, se apropriou dessa ideia ao incorporar noções
relacionadas a esse conceito, como “liberdade” e “soberania” (PEREIRA, 2012, p.
112). A Constituição foi vista pelos exaltados como um instrumento que constrangia
a ação dos absolutistas em virtude de seu papel como pacto social, enquanto os
caramurus invocavam esse ordenamento mencionando as instituições fundadas na
tradição e no costume, e seu peso para a nação brasileira é atestado pela
esperança de Evaristo da Veiga e de Bernardo Pereira de Vasconcellos de que um
Brasil constitucional deteria a “revolução” (SLEMIAN, 2006, p. 7).
Maurizio Fioravanti defendeu que nunca houve um constitucionalismo
(mesmo no século XVII), mas várias doutrinas da constituição, com a intenção de
representar, no plano teórico, a existência ou a necessidade de um ordenamento
geral da sociedade e de seus poderes. Esse autor destacou que, ainda na transição
do século XVI para o século XVII, já era discutida a possibilidade de limitar o poder
da monarquia pelas instituições (apud PEREIRA, 2012, p. 113). Para António
Manuel Hespanha, desde os tempos do marquês de Pombal foram estabelecidas as
bases para o constitucionalismo moderno, tendo em vista que, a partir do século
9
XVII, a teoria contratualista do poder ganhou força em meio aos moldes do
jusnaturalismo; essa doutrina, de acordo com Hespanha, trouxe uma nova ética de
serviço público, um espírito de racionalização e um conceito de governo como
ciência (apud PEREIRA, 2012, p. 122).
No recorte temporal aqui proposto, os conceitos de “constitucionalismo” e
“constituição” foram utilizados como elementos de expectativa.14 Se os construtores
do Estado-nação desejavam que a Independência política se firmasse no Brasil, os
materiais impressos divulgados nesse território foram instrumentos que refletiram
aspirações e desejos de mudança política em um momento no qual, em Portugal, já
sopravam os ventos constitucionais.
Lúcia Neves afirmou que, ao contrário do que ocorrera em Portugal, no Novo
Mundo não houve a divulgação de panfletos favoráveis ao Antigo Regime, o que
justifica a preocupação de muitos redatores em esclarecer o que seria uma
“constituição”, reforçando a difusão de novas noções como “liberdade”, “igualdade”,
“nação”, “pátria”, entre outras (apud PEREIRA, 2012, p. 130), em um momento em
que, de acordo com Marcello Basile, houve articulação entre associações, imprensa,
Parlamento, manifestações cívicas e movimentos de protesto ou revolta, que devem
ser compreendidos como os principais instrumentos de ação política desse período.
É importante destacar que, se os agentes políticos desse contexto do
Oitocentos manifestavam suas expectativas diante de um projeto político
contraposto a uma “tirania” anterior, desconsideravam que o Estado absolutista
também dispunha de uma legislação que deveria ser respeitada pelo monarca e
pelos seus súditos, pois todos os ordenamentos dispõem de normas constitucionais
que tratam de diversas atribuições no interior de um Estado. A ideia do
Constitucionalismo como técnica da liberdade e garantia contra um poder arbitrário15
potencializou a noção de direitos de cidadania como a inauguração dos direitos
individuais, na concepção de que, pela primeira vez, um governante consultaria as
14 Apresento essa expressão remetendo ao “horizonte de expectativas” apontado por Reinhart Koselleck quando se referiu à utilização de um conceito, baseado no qual as pessoas projetam anseios em relação ao futuro. Conferir KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006. 15 Para uma definição mais apurada do conceito de “Constitucionalismo”, consultar MATTEUCCI, Nicola. Constitucionalismo. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. 9 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. v. 1, p. 246-258.
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leis para governar. A “constituição” exerceu a função de propaganda e de educação
política, e um exemplo é a França pós-Revolução.
Apesar da composição jurídica do Antigo Regime, nota-se uma clara tentativa,
por parte dos agentes políticos nesse contexto inicial – incluindo-se os redatores do
“Astro de Minas” –, de desqualificar o contexto político dos tempos coloniais do
Brasil, manifestando todas as concepções que caracterizavam a América
portuguesa como um período no qual esse território foi governado com “mãos de
ferro” por “déspotas” europeus, que dispunham do poder de acordo com desejos
pessoais.
Não é tarefa fácil, tampouco segura, tentar estabelecer uma materialidade
para as noções expostas nesse texto, tendo em vista que nenhum desses
documentos do “Astro” apresenta a referência do redator, e, caso apresentasse, por
exemplo, esses redatores como residentes e atuantes política e economicamente
em São João Del Rei, não seria possível confirmar se as ideias que saíram de suas
penas foram construídas nessa vila e transmitidas dessa localidade. Porém,
considerando a possibilidade de redatores sanjoanenses, um elemento a ser
destacado se refere à Biblioteca Pública inaugurada pelo próprio fundador e dono do
jornal, o já referido Baptista Caetano de Almeida, com um acervo considerável
construído a partir de compras e doações substanciais. Dentre os autores presentes
na coleção, podem ter interessado a esses redatores os iluministas Diderot,
D’Alembert, Rousseau, Raynal, Voltaire, dentre outros.
De acordo com Rosemary Tofani Motta (2000), nesse acervo “[...] podem ser
encontrados autores das diversas fases do iluminismo, tratando dos mais variados
assuntos, como teoria política, história (principalmente história francesa, inglesa e
também americana), ciência (mãe do iluminismo), agricultura e comércio [...]”, em
diversas línguas, inclusive dicionários e periódicos brasileiros e estrangeiros. Nesses
últimos, destacam-se o jornal francês Le Moniteur (1789-1806), de teor científico; o
português “Jornal de Coimbra” (1812-1816), o “Investigador português em Inglaterra”
(1811-1819), o “Correio Brasiliense” (1801-1821) e as “Memórias da Academia Real
das Sciencias de Lisboa” (iniciado em 1797), que apresentava o Iluminismo em
Portugal (MOTTA, 2000, p. 113-114).
Além do movimento de compreender possíveis vestígios intelectuais acerca
dos redatores sobre os quais nos debruçamos, seria interessante conhecer as
11
trajetórias dessas pessoas, a exemplo de arranjos familiares e atividades
econômicas, que clarificariam as posições defendidas nas narrativas publicadas no
“Astro de Minas”. É importante, também, compreender que, apesar da divulgação de
valores liberais nesse contexto do Constitucionalismo, o Antigo Regime foi
vivenciado por muitos desses agentes de São João Del Rei e por seus
antepassados, de forma que as influências das práticas do período político anterior –
tão combatida pelos redatores aqui apresentados – não podem ser
desconsideradas, ponto de vista defendido por determinados autores (MARTINS,
2007). Diante disso, penso que, ao mesmo tempo em que esses agentes
rechaçavam quaisquer práticas de Antigo Regime, desenvolviam, em seu cotidiano,
atividades que remetiam a essa política “indesejada”. No entanto, é necessário
investigar mais detidamente esses agentes no propósito de confirmar esse duplo
movimento.
12
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