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1 Considerações sobre a construção da Monarquia Constitucional brasileira nas páginas do jornal “Astro de Minas” (1827-1831) Leonardo Bassoli Angelo, mestre e doutorando em História, Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais RESUMO No início do século XIX, a imprensa periódica se constituiu como um importante espaço de discussão pública no Brasil. Nesse contexto, as publicações divulgavam ideias e projetavam aspectos que deveriam ser construídos e desenvolvidos para que o Brasil se tornasse uma nação “civilizada”. Em Minas Gerais, a vila de São João Del Rei passou pela inauguração de sua primeira publicação periódica em 1827, pela iniciativa de Baptista Caetano de Almeida. Indivíduo de atividades variadas, Baptista Caetano se dedicou intensamente à política, e fundou o jornal “Astro de Minas”, de tendência política liberal -moderada, em que foram divulgadas ideias concernentes ao Estado-nação ainda recente no Brasil. Neste artigo, pretendo analisar considerações presentes sobre a Monarquia Constitucional do Brasil que foram divulgadas nessa publicação, no objetivo de conhecer melhor a pluralidade de projetos para o Brasil independente nesse contexto de intensidade de perspectivas para a política brasileira. As fontes primárias utilizadas foram narrativas publicadas desde a fundação do jornal, em 1827, até o ano da Abdicação de dom Pedro I, em 1831. Palavras-chave: Brasil Império; Imprensa em Minas Gerais; Constitucionalismo no Brasil. ABSTRACT In the early nineteenth century, the periodical press was constituted as a important space of public discussion in Brazil. In that context, the publications disseminate ideas and projected aspects that should be built and developed for Brazil to become a nation “civilized”. In Minas Gerais, the village of São João Del Rei it passed through the opening of first periodical publication in 1827, through the initiative of Baptista Caetano de Almeida. Individual with varied activities, Baptista Caetano intensely devoted to political practice, and founded the newspaper “Astro de Minas”, of moderate liberal political trend, in which were disclosed ideas concerning the still recent nation-state in Brazil. In this paper, I intend to analyze considerations about the Constitutional Monarchy of Brazil that were disclosed in this publication, in order to know better the plurality of projects for the independent Brazil in this intensity context of prospects for the Brazilian political. The primary sources used were published narratives since the paper's founding, in 1827, to the year of Abdication of dom Pedro I, in 1831. Keywords: Empire of Brazil; Press in Minas Gerais; Constitutionalism in Brazil.

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Considerações sobre a construção da Monarquia

Constitucional brasileira nas páginas do jornal “Astro de Minas”

(1827-1831)

Leonardo Bassoli Angelo, mestre e doutorando em História, Universidade

Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais

RESUMO

No início do século XIX, a imprensa periódica se constituiu como um importante espaço de discussão pública no Brasil. Nesse contexto, as publicações divulgavam ideias e projetavam aspectos que deveriam ser construídos e desenvolvidos para que o Brasil se tornasse uma nação “civilizada”. Em Minas Gerais, a vila de São João Del Rei passou pela inauguração de sua primeira publicação periódica em 1827, pela iniciativa de Baptista Caetano de Almeida. Indivíduo de atividades variadas, Baptista Caetano se dedicou intensamente à política, e fundou o jornal “Astro de Minas”, de tendência política liberal-moderada, em que foram divulgadas ideias concernentes ao Estado-nação ainda recente no Brasil. Neste artigo, pretendo analisar considerações presentes sobre a Monarquia Constitucional do Brasil que foram divulgadas nessa publicação, no objetivo de conhecer melhor a pluralidade de projetos para o Brasil independente nesse contexto de intensidade de perspectivas para a política brasileira. As fontes primárias utilizadas foram narrativas publicadas desde a fundação do jornal, em 1827, até o ano da Abdicação de dom Pedro I, em 1831. Palavras-chave: Brasil Império; Imprensa em Minas Gerais; Constitucionalismo no Brasil.

ABSTRACT

In the early nineteenth century, the periodical press was constituted as a important space of public discussion in Brazil. In that context, the publications disseminate ideas and projected aspects that should be built and developed for Brazil to become a nation “civilized”. In Minas Gerais, the village of São João Del Rei it passed through the opening of first periodical publication in 1827, through the initiative of Baptista Caetano de Almeida. Individual with varied activities, Baptista Caetano intensely devoted to political practice, and founded the newspaper “Astro de Minas”, of moderate liberal political trend, in which were disclosed ideas concerning the still recent nation-state in Brazil. In this paper, I intend to analyze considerations about the Constitutional Monarchy of Brazil that were disclosed in this publication, in order to know better the plurality of projects for the independent Brazil in this intensity context of prospects for the Brazilian political. The primary sources used were published narratives since the paper's founding, in 1827, to the year of Abdication of dom Pedro I, in 1831. Keywords: Empire of Brazil; Press in Minas Gerais; Constitutionalism in Brazil.

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É consenso que um acontecimento fundamental na história dos valores

constitucionais do Brasil foi a Revolução do Porto (1820). Nessa ocasião, os

deputados brasileiros convocados para atuarem nas Cortes trouxeram contribuições

fundamentais para a construção do liberalismo na antiga América portuguesa –

então Reino Unido a Portugal e Algarves. Se a Revolução do Porto significou um

importante evento para as concepções constitucionais liberais no Brasil, o processo

que teve como desdobramento a outorga da Constituição de 1824, após a

Independência, representou para os brasileiros o início de uma experiência que

definia aspirações para estruturar um novo ordenamento político, fundamentado em

um modelo representativo de governo (PANDOLFI, 2015, p. 1).

Durante o I Reinado, emergiu uma opinião pública com decisivo peso para

influir nos negócios públicos, ultrapassando os limites do julgamento privado. Marco

Morel apontou o período compreendido entre as décadas de 1820 e 1830 como o

momento crucial para o amadurecimento da opinião pública no Brasil (apud

PEREIRA, 2012, p. 134-135), impulsionada durante as Regências e cuja turbulência

política corporificada na profusão de tendências se refletia na intensidade dos

debates travados através dos materiais impressos, notadamente a imprensa

periódica. Esse foi um espaço fértil para a difusão da ideia de um Brasil

“constitucional” e da importância em se aplicar esse ordenamento no propósito de

fundar um novo sistema político baseado no indivíduo.

Durante a década de 1820, o constitucionalismo ganhou cada vez mais

espaço em Portugal e no Brasil recém-independente, e a província de Minas Gerais

impulsionou um espaço público de poder, tendo na imprensa periódica um agente de

total relevância; ao final do I Reinado, a expansão desse espaço periódico –

predominantemente liberal – contribuiu para o ethos constitucionalista provincial

(PANDOLFI, 2015, p. 2).

Andréa Slemian afirmou que o constitucionalismo português da década de

1820 teve no ambiente parlamentar um dos espaços mais importantes de ação

política, rivalizando apenas com a emergente e politizada imprensa. Nos tempos da

América portuguesa, esse constitucionalismo levou à instabilidade política ao criar

possibilidades e expectativas de transformação política e social, em um contexto de

violenta disputa local (SLEMIAN, 2006, p. 15; p. 66); no Brasil, esse espaço

denominado “Arca Santa de Nossa Liberdade” trouxe a garantia de justiça e a

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promessa de direitos individuais (SAMOGIN, p. 2). Tendo em vista que a

Constituição era um elemento central para representar esse novo momento político,

a imprensa desempenharia o papel de fundamental divulgadora da importância

desse ordenamento jurídico para garantir a ordem social.

As ideias eram constituídas e se manifestavam com intensidade em um

ambiente denso e ao mesmo tempo plural, sendo um exemplo o jornal “Correio

Braziliense”, que encontrou ávidos leitores e ajudou a preparar uma nova geração

de políticos e intelectuais que brilharia nos debates do Primeiro Reinado, entre eles

Silvestre Pinheiro Ferreira e os adeptos do chamado “liberalismo doutrinário,” que

teria em Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai, mais tarde conselheiro de

Estado, um de seus principais expoentes (MARTINS, 2007, p. 63).

Quando esse constitucionalismo do Brasil já estava representado pela Carta

de 1824, o jornal “Astro de Minas”, de São João Del Rei (sede da Comarca do Rio

das Mortes) foi um importante veículo de difusão de ideias. Fundado por Baptista

Caetano de Almeida,1 – um importante incentivador das atividades intelectuais na

referida vila/cidade –, esse jornal possuía inclinação política liberal-moderada, e

sediou a discussão de diversos temas que permeavam o espaço político do Brasil,

como ideias envolvendo a moeda brasileira, o Brasil no cenário internacional – e a

política internacional de maneira geral –, debates entre estadistas, entre outros.

Enquanto partícipe na construção, defesa e divulgação do liberalismo

constitucional brasileiro, o “Astro de Minas” se dedicou à transcrição de instrumentos

jurídicos como leis e decretos que sedimentaram o ideário do Brasil independente,

no propósito de aproximar os brasileiros das garantias legais que legitimavam e

fortaleciam a nova política brasileira; exemplos são encontrados na lei que tratava

da responsabilidade dos ministros e secretários de Estado e dos conselheiros de

Estado,2 e na lei sobre a dívida interna.3 Porém, a divulgação da lei em seu sentido

1 Nascido a 03/05/1797 em Camanducaia (extremo Sul de Minas), Baptista Caetano de Almeida se mudou com a família para São João Del Rei por volta dos treze aos quatorze anos de idade, com o propósito de completar seus estudos. Nesse ínterim, foi morar com o tio, Pedro de Alcântara de Almeida, com quem aprendeu a trabalhar no comércio. Posteriormente, se dedicou a essa atividade com um negócio de secos e molhados em uma época de grande importância dessa atividade para a vila de São João Del Rei, estabelecendo uma sociedade com Francisco de Paula de Almeida Magalhães, que foi presidente e vereador da Câmara Municipal dessa vila. Em 1827, casou-se com Mariana Alexandrina Teixeira Leite, filha do barão de Itambé e pertencente a uma das mais ricas famílias da região. Cf: MOTTA, 2000, p. 87-90. 2 “Astro de Minas”, n. 6, 01/12/1827, p. 1. 3 “Astro de Minas”, n. 16, 25/12/1827, p. 1-3.

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estrito não foi o único elemento jurídico a receber a atenção dos redatores, mas

também reflexões de pensadores sobre o significado da legislação em um contexto

liberal, como um extrato traduzido de Ramon Salas no qual se afirmava que nada

interessa ao homem quanto seu próprio indivíduo, pois nisso residiria sua felicidade.

Continuando, Salas afirmou que uma boa Constituição política deve garantir esta

liberdade, assegurando ao cidadão que, enquanto ele observasse e respeitasse as

leis, nenhum governante poderia oprimi-lo.4

Outras traduções também ocuparam vastas páginas desse jornal

sanjoanense (alguns excertos eram publicados em mais de uma edição), mas nem

sempre os trabalhos traduzidos tinham como prioridade o liberalismo: enquanto o

“Grito da Liberdade dos Estados Unidos da América” manifestava a liberdade da

América em contraposição à “tirania” de sua antiga metrópole,5 a versão de uma

obra de Mr. Bignon elogiava a Santa Aliança,6 que teria progredido para a razão e a

política, justiça, humanidade, bondade, paz e amor. Mr. Bignon afirmou ser esse

tratado a dedicação ao triunfo da moral cristã, que produzia melhoramentos nos

governos temporais, tornando os príncipes submissos aos mandamentos de Deus.

Isso se conciliaria com o poder absoluto dos reis, um fato que não desagradaria aos

Gabinetes.7

Porém, a defesa ainda que discreta do Antigo Regime não ocupou tantas

páginas do jornal no período do I Reinado contemplado nesse artigo. A tradução de

uma obra a respeito do poder absoluto apresentou a ideia de que esse poder

fomenta o orgulho e a irritação pela menor resistência, produzindo desprezo para o

que se vê de longe e “baixeza sórdida” na presença do ídolo. Nesse excerto, havia a

ideia de que o poder absoluto o é em princípio e em execução, e, em países com

governos que possuíam esse regime, as classes subalternas se comportariam de

forma “rude”. Por fim, a tradução postulava que o fim das sociedades humanas é a

4 “Astro de Minas”, n. 296, 10/10/1829, p. 2. 5 “Astro de Minas”, n. 5, 29/11/1827, p. 1-4. 6 A Santa Aliança foi um tratado firmado no princípio do século XIX. Assinado pelo imperador da Áustria, Francisco, pelo rei da Prússia, Frederico Guilherme, e pelo imperador da Rússia, o czar Alexandre, indicou o retorno da Europa a uma política conservadora após o contexto político da França revolucionária e imperial. Esse tratado recebeu o apoio de diversas monarquias europeias, mas foi rejeitado por nacionalistas e por liberais, que o consideravam um símbolo da Restauração reacionária, ou seja, a manifestação de uma tendência ao Antigo Regime. Mais informações são encontradas em um texto da UFMG que contém a transcrição do tratado. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/staalnc.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2015. 7 “Astro de Minas”, n. 31, 29/01/1828, p. 2-3.

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felicidade por meio de garantias que são excluídas pelo poder absoluto, a exemplo

do que ocorreria em Constantinopla.8

Nessa época em que (como afirmado anteriormente) um espaço de discussão

pública se desenvolvia no ambiente liberal da província de Minas Gerais, uma

narrativa apontou o “espírito público” como característica natural dos seres

humanos, sendo necessário que os bons governos o consultassem e o seguissem

em vez de se dedicarem a combatê-lo. Continuando, o redator afirmou que, em todo

Estado constitucional, em que as eleições dos deputados das assembleias

deliberativas são populares e livres de “estorvos” (como no Brasil), os deputados

eram instrumentos da opinião pública, e os juízes evitavam que a justiça servisse de

instrumento à tirania.9

Expressa na Constituição de 1824, a liberdade de imprensa significava – com

as ressalvas de legisladores de que fosse utilizada com responsabilidade – uma das

maiores características de um governo liberal, pois representava a livre expressão

do pensamento. De acordo com essa ideia, esse artigo referido na nota 9 defendeu

que a liberdade de imprensa se configurava, para os maiores políticos e

jurisconsultos, no mais completo intérprete da opinião pública, que daria cabo de

tiranos e serviria ao interesse das nações.10 Em uma correspondência para o

“Astro”, o redator criticou um jornal de propalada tendência absolutista denominado

“Gazeta do Brasil”, que elogiou Joaquim Gonçalves Ledo em uma correspondência,

e em outra o criticou ferozmente. Em seu texto, o redator do “Astro” afirmou que a

liberdade de imprensa, conservada em seus justos limites, garantiria a liberdade dos

Estados constitucionais, defendendo a honra e o crédito de cidadãos beneméritos.11

Maria Fernanda Vieira Martins afirmou que tanto a transferência da Corte

portuguesa quanto o processo de independência de 1822 representaram marcos

irrefutáveis para a história política do Brasil, construindo as instituições que

integrariam a monarquia brasileira, inspirada no modelo europeu do Estado-nação

(MARTINS, 2007, p. 40). Para que as instituições desse Estado se consolidassem,

era necessário relacioná-las aos benefícios que trariam para os cidadãos, em

contraposição a um período em que, supostamente, as pessoas não teriam

8 “Astro de Minas”, n. 51, 15/03/1828, p. 4. 9 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 2-3. 10 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 2-3. 11 “Astro de Minas”, n. 24, 12/01/1828, p. 3-4.

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desfrutado de direitos, sob o jugo de um governante arbitrário, ou seja, o período do

Antigo Regime.

Nesse sentido, um artigo intitulado “Bom pensamento” postulou que o código

do governo despótico é o coração do tirano, tão volúvel quanto as situações nas

quais exerce a tirania. Para se opor a esse período, o redator afirmou que o código

do governo liberal é a vontade livre da nação, arcabouço jurídico que não está

sujeito a arbitrárias mudanças; por ser obra de sábias e prudentes reflexões de

legisladores escolhidos, é acessível ao conhecimento de todos os cidadãos. Por

isso, manifestou, a respeito de um governo constitucional, “[...] que he Lei escrita

não so por caracteres de convicçao, senao também por huma educaçao bem

dirigida dos membros da Sociedade.”12

O constitucionalismo desses primeiros anos vinha acompanhado da

necessidade de afirmação da “brasilidade”, ou seja, defendia-se a ideia de que os

brasileiros seriam adeptos da causa constitucional, enquanto outros, supostamente

representantes de uma “velha Europa”, eram desprezíveis e perigosos para a nova

situação política do Brasil. Nesse sentido, um artigo foi redigido nos seguintes

termos:

“Hum punhado de Brasileiros adoptivos, ou antes

Portuguezes de coração, capitaneados pelo infame Luiz José Dias

Custodio, que por nossa desgraça ainda He Vigario desta infeliz

Parochia, hum punhado de indignos Europeus tem se reunido em

varias noites nas casas do Coronel Antonio Constantino de Oliveira

para tomarem medidas hostis contra a tranquilidade dos habitantes

desta Villa. Estes malvados fingindo medo de serem atacados pelos

Brasileiros, affectando amor pela Constituição, por essa Constituição,

que elles tanto odeião, tiveram a ousadia de publicar huma

Proclamação, dizendo que se reúnem em maça para fazer frente ao

partido federalista. Que indignos! Que ingratos!!! Quem aqui já falou

em Federação? [...]”.13

12 “Astro de Minas”, n. 419, 27/07/1830, p. 4. 13 “Astro de Minas”, n. 523, 02/04/1831, p. 3-4.

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Além de apontar determinados europeus – com destaque para portugueses –

como causadores de instabilidade social ao conspirarem contra os brasileiros da vila

de São João Del Rei e proporem a adoção do federalismo (interpretado como

ameaça à ordem política do Brasil por sua contrariedade à centralização monárquica

brasileira), o redator manifestava o perigo desses mesmos europeus às ideias

constitucionais.

No “Astro”, houve diversas e intensas manifestações contrárias ao

absolutismo e a todos os elementos que remetessem a essa tendência política, que,

ao ser ressignificada nesse momento histórico do Oitocentos, foi profundamente

relacionada à tirania no propósito de desqualificar o contexto político da América

portuguesa. Essa condenação ao Antigo Regime ocorreu a partir de 1820, quando

os intelectuais/políticos brasileiros reconheceram o constitucionalismo como

inevitável para o futuro político do Brasil. Após o fracasso das versões nacionais das

insurreições com inspiração francesa, compreendia-se a necessidade de se adotar o

modelo constitucional, embora fossem raras as propostas para colocar em prática

esse projeto, dada a multiplicidade de propostas e a ausência de um consenso

(MARTINS, 2007, p. 40).

Essa multiplicidade é exemplificada na dificuldade em se firmar um modo de

governar o Brasil nas primeiras duas décadas de Brasil Império, pois, ainda que a

existência da Monarquia Constitucional não tenha sido contestada nesses anos, os

governantes que se sucederam – dom Pedro I e os regentes – demonstraram

dificuldade em resolver as questões surgidas, como revoltas e insistentes crises

econômicas e políticas. A fluidez de perspectivas, com a consequente instabilidade,

tornava fundamental a tarefa de afirmar os valores da Monarquia Constitucional, que

seria, para esses agentes liberais, “melhor” do que o período em que a dinastia de

Bragança governou o Brasil sob as premissas absolutistas, e o “Astro de Minas” se

mostrou um veículo por meio do qual redatores usavam seu intelecto para promover,

diante dos mineiros, o recente governo constitucional brasileiro.

De maneira geral, o Brasil constitucional foi retratado, pelos defensores do

sistema político pós-Independência, como um contexto diametralmente oposto ao

período do Antigo Regime, este último visto como um projeto político ultrapassado e

que deveria ser rejeitado para que se construísse um novo ordenamento político

baseado nas “Luzes”; as monarquias absolutas não teriam se constituído, para os

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atores políticos desse contexto liberal, como sistemas políticos pautados em um

ordenamento que impedisse abusos como o exercício do poder tirânico. De acordo

com Alexander Martins Vianna:

No campo disciplinar da História do Pensamento Político e do

Direito, o termo absolutismo foi habitualmente utilizado em oposição

ao termo constitucionalismo, conformando campos classificativos

para autores que legitimariam, respectivamente, uma autoridade

política incondicional (em nome de Deus, a dignidade régia é a

origem, proprietária e usufruturária dos direitos de soberania) e uma

autoridade política condicional (inspirado por Deus, o conjunto dos

corpora do reino é a origem, proprietário e usufruturário dos direitos

de soberania, cabendo ao rei um papel de supervisor ou

administrador) [...]. (VIANNA, 2008, p. 9-10)

Originalmente, o termo “constitucionalismo” designava formas de composição

jurídica da sociedade e seus poderes, que existiram desde a Antiguidade

(FIORAVANTI, 2001). O Brasil independente, para legitimar sua nova ordem política

e sustentar a autonomia, se apropriou dessa ideia ao incorporar noções

relacionadas a esse conceito, como “liberdade” e “soberania” (PEREIRA, 2012, p.

112). A Constituição foi vista pelos exaltados como um instrumento que constrangia

a ação dos absolutistas em virtude de seu papel como pacto social, enquanto os

caramurus invocavam esse ordenamento mencionando as instituições fundadas na

tradição e no costume, e seu peso para a nação brasileira é atestado pela

esperança de Evaristo da Veiga e de Bernardo Pereira de Vasconcellos de que um

Brasil constitucional deteria a “revolução” (SLEMIAN, 2006, p. 7).

Maurizio Fioravanti defendeu que nunca houve um constitucionalismo

(mesmo no século XVII), mas várias doutrinas da constituição, com a intenção de

representar, no plano teórico, a existência ou a necessidade de um ordenamento

geral da sociedade e de seus poderes. Esse autor destacou que, ainda na transição

do século XVI para o século XVII, já era discutida a possibilidade de limitar o poder

da monarquia pelas instituições (apud PEREIRA, 2012, p. 113). Para António

Manuel Hespanha, desde os tempos do marquês de Pombal foram estabelecidas as

bases para o constitucionalismo moderno, tendo em vista que, a partir do século

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XVII, a teoria contratualista do poder ganhou força em meio aos moldes do

jusnaturalismo; essa doutrina, de acordo com Hespanha, trouxe uma nova ética de

serviço público, um espírito de racionalização e um conceito de governo como

ciência (apud PEREIRA, 2012, p. 122).

No recorte temporal aqui proposto, os conceitos de “constitucionalismo” e

“constituição” foram utilizados como elementos de expectativa.14 Se os construtores

do Estado-nação desejavam que a Independência política se firmasse no Brasil, os

materiais impressos divulgados nesse território foram instrumentos que refletiram

aspirações e desejos de mudança política em um momento no qual, em Portugal, já

sopravam os ventos constitucionais.

Lúcia Neves afirmou que, ao contrário do que ocorrera em Portugal, no Novo

Mundo não houve a divulgação de panfletos favoráveis ao Antigo Regime, o que

justifica a preocupação de muitos redatores em esclarecer o que seria uma

“constituição”, reforçando a difusão de novas noções como “liberdade”, “igualdade”,

“nação”, “pátria”, entre outras (apud PEREIRA, 2012, p. 130), em um momento em

que, de acordo com Marcello Basile, houve articulação entre associações, imprensa,

Parlamento, manifestações cívicas e movimentos de protesto ou revolta, que devem

ser compreendidos como os principais instrumentos de ação política desse período.

É importante destacar que, se os agentes políticos desse contexto do

Oitocentos manifestavam suas expectativas diante de um projeto político

contraposto a uma “tirania” anterior, desconsideravam que o Estado absolutista

também dispunha de uma legislação que deveria ser respeitada pelo monarca e

pelos seus súditos, pois todos os ordenamentos dispõem de normas constitucionais

que tratam de diversas atribuições no interior de um Estado. A ideia do

Constitucionalismo como técnica da liberdade e garantia contra um poder arbitrário15

potencializou a noção de direitos de cidadania como a inauguração dos direitos

individuais, na concepção de que, pela primeira vez, um governante consultaria as

14 Apresento essa expressão remetendo ao “horizonte de expectativas” apontado por Reinhart Koselleck quando se referiu à utilização de um conceito, baseado no qual as pessoas projetam anseios em relação ao futuro. Conferir KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma Patrícia Maas, Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006. 15 Para uma definição mais apurada do conceito de “Constitucionalismo”, consultar MATTEUCCI, Nicola. Constitucionalismo. In: BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de Política. 9 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997. v. 1, p. 246-258.

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leis para governar. A “constituição” exerceu a função de propaganda e de educação

política, e um exemplo é a França pós-Revolução.

Apesar da composição jurídica do Antigo Regime, nota-se uma clara tentativa,

por parte dos agentes políticos nesse contexto inicial – incluindo-se os redatores do

“Astro de Minas” –, de desqualificar o contexto político dos tempos coloniais do

Brasil, manifestando todas as concepções que caracterizavam a América

portuguesa como um período no qual esse território foi governado com “mãos de

ferro” por “déspotas” europeus, que dispunham do poder de acordo com desejos

pessoais.

Não é tarefa fácil, tampouco segura, tentar estabelecer uma materialidade

para as noções expostas nesse texto, tendo em vista que nenhum desses

documentos do “Astro” apresenta a referência do redator, e, caso apresentasse, por

exemplo, esses redatores como residentes e atuantes política e economicamente

em São João Del Rei, não seria possível confirmar se as ideias que saíram de suas

penas foram construídas nessa vila e transmitidas dessa localidade. Porém,

considerando a possibilidade de redatores sanjoanenses, um elemento a ser

destacado se refere à Biblioteca Pública inaugurada pelo próprio fundador e dono do

jornal, o já referido Baptista Caetano de Almeida, com um acervo considerável

construído a partir de compras e doações substanciais. Dentre os autores presentes

na coleção, podem ter interessado a esses redatores os iluministas Diderot,

D’Alembert, Rousseau, Raynal, Voltaire, dentre outros.

De acordo com Rosemary Tofani Motta (2000), nesse acervo “[...] podem ser

encontrados autores das diversas fases do iluminismo, tratando dos mais variados

assuntos, como teoria política, história (principalmente história francesa, inglesa e

também americana), ciência (mãe do iluminismo), agricultura e comércio [...]”, em

diversas línguas, inclusive dicionários e periódicos brasileiros e estrangeiros. Nesses

últimos, destacam-se o jornal francês Le Moniteur (1789-1806), de teor científico; o

português “Jornal de Coimbra” (1812-1816), o “Investigador português em Inglaterra”

(1811-1819), o “Correio Brasiliense” (1801-1821) e as “Memórias da Academia Real

das Sciencias de Lisboa” (iniciado em 1797), que apresentava o Iluminismo em

Portugal (MOTTA, 2000, p. 113-114).

Além do movimento de compreender possíveis vestígios intelectuais acerca

dos redatores sobre os quais nos debruçamos, seria interessante conhecer as

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trajetórias dessas pessoas, a exemplo de arranjos familiares e atividades

econômicas, que clarificariam as posições defendidas nas narrativas publicadas no

“Astro de Minas”. É importante, também, compreender que, apesar da divulgação de

valores liberais nesse contexto do Constitucionalismo, o Antigo Regime foi

vivenciado por muitos desses agentes de São João Del Rei e por seus

antepassados, de forma que as influências das práticas do período político anterior –

tão combatida pelos redatores aqui apresentados – não podem ser

desconsideradas, ponto de vista defendido por determinados autores (MARTINS,

2007). Diante disso, penso que, ao mesmo tempo em que esses agentes

rechaçavam quaisquer práticas de Antigo Regime, desenvolviam, em seu cotidiano,

atividades que remetiam a essa política “indesejada”. No entanto, é necessário

investigar mais detidamente esses agentes no propósito de confirmar esse duplo

movimento.

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FONTES PRIMÁRIAS

Jornal “Astro de Minas”, edições 5, 6, 16, 24, 31, 51, 296, 419, 523. Arquivos

digitalizados pertencentes à Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em:

<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/astro-minas/709638>. Acesso em: 12

out. 2015.

Transcrição do Tratado da Santa Aliança. Disponível em:

<http://www.fafich.ufmg.br/hist_discip_grad/staalnc.pdf>. Acesso em: 9 nov. 2015.

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