Construção de livro de artista: o caminho “semfé”

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< 1 > Construção de livro de artista: o caminho “semfé” Rômulo do Nascimento Pereira Senac-Am / Editora Valer RESUMO Este trabalho parte do caminho entre design e arte na criação de uma obra híbrida por natureza, o livro de artista. Busca-se compreender esse produto sobre vários aspectos, a saber, sua história e apropriação pela arte como suporte ao fazer artístico às experiências próprias a um espaço conceitual importante. Utilizando nesta realização ideias apreendidas ao longo do caminho em um ofício novo, o de elaborar-se num livro. Palavras-chave : Livro de artista, design gráfico, traição e artes visuais ABSTRACT This work part of the path between design and art work in creating a hybrid in nature, the artist's book. We seek to understand this product on several aspects, namely, its history and ownership of art and artistic support, experiences a very important conceptual space. Using this realization ideas learned along the way in a new craft, to develop into a book. Keywords : Book artist, graphic design, betrayal and visual arts. > Artigo publicado a partir do trabalho de conclusão de curso de Especialização em Artes Visuais, Senac-Am [2010] e aceito como trabalho completo [apresentado na forma de comunicação oral], no 1.° Congresso internacional de Criatividade e inovação: visão e prática em diferentes contextos, em Manaus, Amazonas [2011].

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Este trabalho parte do caminho entre design e arte na criação de uma obra híbrida por natureza, o livro de artista. Neste artigo acompanhamos a realização de ideias apreendidas ao longo de um ofício novo, o de elaborar-se num livro.

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Construção de livro de artista: o caminho “semfé”

¶ Rômulo do Nascimento Pereira

Senac-Am / Editora Valer

RESUMO

Este trabalho parte do caminho entre design e arte na criação de uma obra híbrida por

natureza, o livro de artista. Busca-se compreender esse produto sobre vários aspectos, a

saber, sua história e apropriação pela arte como suporte ao fazer artístico às experiências

próprias a um espaço conceitual importante. Utilizando nesta realização ideias apreendidas

ao longo do caminho em um ofício novo, o de elaborar-se num livro.

Palavras-chave: Livro de artista, design gráfico, traição e artes visuais

ABSTRACT

This work part of the path between design and art work in creating a hybrid in nature, the

artist's book. We seek to understand this product on several aspects, namely, its history and

ownership of art and artistic support, experiences a very important conceptual space. Using

this realization ideas learned along the way in a new craft, to develop into a book.

Keywords : Book artist, graphic design, betrayal and visual arts.

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Artigo publicado a partir do trabalho de conclusão de curso de Especialização em Artes Visuais, Senac-Am [2010] e aceito como trabalho completo [apresentado na forma de comunicação oral], no 1.° Congresso internacional de Criatividade e inovação: visão e prática em diferentes contextos, em Manaus, Amazonas [2011].

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O livro é um mundo que fala, um surdo que responde,

um cego que guia, um morto que vive.

– Padre Antônio Vieira

¶ Primeiro caderno

O livro, que na forma mais comumente associada a ele, a do códice, é composto por

unidades chamadas páginas, normalmente de cor clara, com um texto a lhe dar cor e

significado, possui tamanho e características variadas, sempre com o número de páginas

sendo múltiplo de quatro. Sua forma já foi a de um papiro enrolado, forma mais usada

antes do uso de peles [pergaminho] para a sua feitura, também já assumiu a forma de

pequenos tabletes de argila, ou ainda utilizou-se de tecido, do casco de tartarugas e

outros muitos suportes. A intenção era a permanência, o registro, a fuga do esque-

cimento ou das traições do tempo, utilizando-se do código arbitrário da escrita para

fazer chegar ao outro. A mensagem que foi grafada, marcada com os mais diversos

materiais em outra superfície: um pincel, uma faca, um talo de bambu, o dedo, a pena...

A mão a serviço do homem, nem que fosse para anotar as condições do clima, para

registrar serviços e fazer cálculos, contar as histórias formadoras de um povo, entre

outros. Nas palavras de R. Bringhurst (2004, p. 9):

A escrita é a forma sólida da palavra, o sedimento da linguagem. A fala sai de

nossas bocas, mãos e olhos de forma quase líquida, e depois, evapora-se. (...) E o

que é a linguagem? Linguagem é o que nos expressa, assim como aquilo que

falamos. Nossos neurônios, genes e gestos, premissas compartilhadas e hábitos

pessoais exprimem diariamente, enquanto falamos, muitas linguagens. Usamo-

las para nos expressar e interagir uns com os outros, com as outras espécies e

com os objetos – os naturais e os elaborados pelo homem – que habitam nosso

mundo. Mesmo em silêncio, não há como se esquivar totalmente do mundo dos

símbolos, signos e gramática.

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As técnicas utilizadas na produção de um livro mudaram: do manuscrito foi brutal o

alcance e avanços conseguidos pela utilização dos tipos móveis de Gutenberg, passando

pelas grandes rotativas e tiragens propiciadas pela Revolução Industrial até a

desmaterialização do objeto nos e-books atuais. Para além de sua fisicalidade, esse

objeto é capaz de abarcar muito do que significa “ser humano”: sua loucura, ideias,

devaneios, imaginação, conhecimento, emoções, fabulação, vileza, mentiras, uma lista

longa de palavras e significados, tal como a variedade de pessoas: “Eu não escrevo aquilo

que quero, escrevo aquilo que sou” (LISPECTOR, Clarice; apud CARRENHO, 2005), ou

ainda “Sempre imaginei que o paraíso será uma espécie de biblioteca” (BORGES, Jorge

Luis; apud CARRENHO, 2005). Livros foram e são produzidos para serem lidos, Chartier

(1999, p. 77) nos diz:

A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a

bela imagem de Michel Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras

alheias. Apreendido pela leitura o texto não tem de modo algum – ou ao menos

totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comen-

tadores. [...] Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada de

limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam,

em suas diferenças, as práticas da leitura. Os gestos mudam segundo os tempos

e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas,

outras se extinguem. Do rolo antigo ao códex medieval, do livro impresso ao

texto eletrônico, várias rupturas maiores dividem a longa história das maneiras

de ler. Elas colocam em jogo a relação entre corpo e o livro, os possíveis usos da

escrita e as categorias intelectuais que asseguram a sua compreensão.

O trabalho a ser desenvolvido vai ao encontro de um novo tipo de caçador/leitor, sua

isca para “prender” sua audiência não será mais a das ideias materializadas por meio da

escrita tipográfica do livro tradicional, mesmo que associada à ilustração. A forma talvez

pareça enganadoramente igual, uma brochura de papel branco, algo estranho, mas que

não pretende aprisionar o que quer que seja. Trata-se apenas de um “livro de artista”

que busca se constituir num espaço conceitual, um espelho para mostrar e refletir, não

uma imagem nítida e íntegra, esta talvez não seja mais possível, nem “verdades”, não há

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certezas nas páginas deste semfé (título da obra); sem dúvida há exposição, “auto”,

inclusive, há muito de sinceridade, ou assim foi pensado pelo autor. Sua pretensão maior

é... Para começar, ser uma Obra aberta (título da obra não lida pelo autor desse

trabalho, de Umberto Eco); ter algo de A insustentável leveza do ser (obra de M.

Kundera), e sabedora de que Tudo o que é sólido se desmancha no ar (obra de M.

Berman), mesmo que escrita como sendo Memórias do subterrâneo (obra de F.

Dostoievsky). Ser um livro de muitos livros, até dos não lidos, dos projetados ou so-

nhados, dos desconhecidos e não-escritos, uma leitura de mundo, particular, imprecisa,

fragmentária, escrita de imagens, aberturas, enigmas, que se acredita poder ser com-

partilhada para ser melhor vivida [comfé?].

¶ Segundo caderno

Um livro pode conter a chuva? Ou ser de carne? Quem sabe composto por mais de 800

páginas que receberam um tiro de revólver? Para quem conhece esse campo movediço

chamado “livros de artista” responderia calmamente: “ué, claro que sim”. Nesses cinco

cadernos que compõem este artigo estão misturados conceitos motivadores, referên-

cias, resultados pretendidos, tempos verbais, e o que mais conseguir perceber o leitor.

Todos os trabalhos que tratam sobre “livro de artista”, as imprecisões e falta de com-

senso são comuns, o que se explica por ser esse campo híbrido por natureza e fértil para

experimentações, tais como: expor uma página de um livro à chuva para fazê-la reci-

piente do assunto que trata; ou então fatiar um pedaço de carne e deixá-lo com a forma

de um livro; mandar produzir um livro de 800 páginas com todas as folhas em branco, à

espera da escrita proposta pelo artista: um tiro de revólver atravessa suas páginas

concluindo o livro, com o sugestivo título de Balada. O que eles têm em comum?

Vejamos algumas (in)definições propostas, primeiro de Castleman (2008, apud SILVEIRA,

p. 36), “Livros de artista são isso – a obra do artista cujo imaginário, mais do que estar

submetido ao texto, supera-o por traduzi-lo dentro de uma linguagem que tem mais

significados do que as palavras sozinhas podem transmitir”. Já Johana Drucker (2008,

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apud SILVEIRA), faz uma distinção entre livres d’artiste (entendidos como “livros de arte”

ou de bibliófilo) e os livros de artistas propriamente dito, diz que “Enquanto muitos livres

d’artistes são interessantes ao seu próprio modo, eles são produções mais que criações,

produtos mais que visões, exemplos de uma forma, não interrogações sobre seu

potencial conceitual, ou formal ou metafísico”. Féria diz “que o que distingue os livros de

artista dos restantes é a utilização do livro como suporte de um projecto artístico es-

pecífico, não restringido ao papel e à tinta, mas incorporando todos os tipos de materiais

usados pelo artista”. Também faz questão de destacar que esses se distinguem de livros

de reproduções de trabalhos de um artista, ou sobre um artista.

Poderia seguir com outros conceitos e polêmicas, como a que existe sobre a reproduti-

bilidade do suporte livro, onde alguns autores fazem forte distinção entre livros de

artista de fato e os chamados livros objeto, ainda há controvérsia quanto a edições

limitadas, numeradas, catálogos de exposição, obras coletivas e outros. Por fim, cabe a

definição de Silveira (2005):

o livro de artista é um produto da arte contemporânea, construído deliberada-

mente a partir de um suporte preexistente, o livro, que é o seu protótipo, e ao

qual louva ou faz contraposição crítica. A página e a estrutura podem ser

enaltecidas ou sofrer todas as possibilidades de injúria e objeção, até alcançarem

o estatuto da escultura e abandonarem a condição objetiva de livro.

O livro de E. Ruscha Twentysix Gasoline Stations é considerado uma das primeiras mani-

festações autônomas desse tipo de livro, junto com Dieter Roth e seu Daly Mirror, ambos

da década de 60, tendo como precursores os livros manuscritos e ilustrados por Blake,

livros realizados com a colaboração de artistas, os livros editados pelas vanguardas e

suas experiências, passando pela Caixa Verde de Duchamp entre muitos outros. No

Brasil, como antecedente, na década de 50, há o livro Ave de Wlademir Dias-Pino e os

trabalhos de poesia concreta.

O livro de Ruscha é constituído por uma série de 26 fotografias de estações de gasolina,

com legendas identificando a marca e a localização delas. Esta obra teve várias tiragens,

embora hoje seu custo seja elevado pelo status que adquiriu com o tempo, o seu lugar,

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em muitas bibliotecas, foi a estante de “transporte” ou similares, e não a de “artes” –

seu lugar não deveria ser uma galeria ou museu? Mais uma indefinição.

A apropriação desse espaço “não artístico”, o livro, acentua o caráter ambíguo e com-

ceitual desse “lugar”, propícia a um florescimento de ideias tão significativas à variedade

das experiências da vida e da arte “moderna”. Pelo estudo da arte contemporânea nos

chega um conceito que será central, tanto na motivação quanto na realização da pré-

sente obra, por isso incorporo parte de um trabalho escrito anteriormente, usando um

recurso comum na contemporaneidade, a autorreferência, aqui, acredita-se justificada:

Enigma, entretenimento, inventividade, apropriação, jogo, estranhamento, fuga,

virtualidade, desumanização, contradição, esvaziamento, desmaterialização, re-

dundância, processo, codificação, massificação, degradação, traição, acomoda-

ção, descentramento, mistificação, irrelevância, desçonexão, convergência, anti-

arte... São alguns conceitos que agora fazem parte do repertório apreendido e

que afiaram nossa percepção, compreensão e mêsmo nossa incompreensão da

arte moderna e sua ampla gama de tons. Claro ficou que se pode usar tudo para

fazer arte e que são muitas as conexões possíveis, das mais pobres às mais

absurdas, visionárias ou degradantes, comerciais ou indecifráveis. (...) sinto falta

de uma ideia que consiga simbolizar o choque e a gritaria que parece ser sempre

necessária nas obras “atuais e transgressoras”. Talvez o senso comum só obser-

ve, mesmo que com certo desprezo, o que lhe assusta e se impõe. Arte como

exercício de falar mais alto, de dizer ou fazer o maior absurdo, de entreter com

seu show de esquisitices ou falsamente validar obras, etiquetá-las como “o novo

sucessor de Duchamp”, “não se via tal extraordinário artista de rua desde

Basquiat” – arte como jogo de impor verdades, ou melhor dizendo, engodos/pro-

dutos vendidos com status de obra-prima.

Arte? Dubiedade? Indefinição? Dúvida? Interrogação? Traição! Uma pessoa traí-

da dificilmente se esquece a infidelidade sofrida, mesmo que há tanto tempo.

Não dá para esquecer quando ele trouxe àquela roda de bicicleta “tosca e sem

graça” presa num banquinho e depois a colocou em nosso sagrado museu. Como

teve coragem? E fez pior, um mictório!? Maldito! Não tinha esse direito, não com

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toda a nossa história, não se faz isso, o que dirão? Não consigo entender até hoje

o que isso significa, e aquela gargalhada hostil ainda ecoa até hoje. TRAIR,

segundo o Houaiss: “1. iludir, enganar por traição; atraiçoar. 2. denunciar (al-

guém) em ato de traição; 3. demonstrar infidelidade a. 4. abandonar (crença,

convicção etc.) de maneira traiçoeira. 5 deixar de cumprir (uma promessa, um

compromisso etc.). 6. revelar (algo) de maneira involuntária. 7. deixar de corres-

ponder a (expectativas etc.)”. Uma sugestão para a oitava acepção: função da

arte moderna. Tal como fazem as bruxas, nos oferecem suaves e despretensiosos

papeizinhos de arroz como uma maçã suculenta, mas ao morder a isca sentimos

o veneno, o mistério que se ocultava. Percebemos a fragilidade e o precário de

nós mesmos nessa absurda sucessão de folhas, tão calmas, sós e suavemente

duras, sua vida como uma folha em branco. Não escrevendo nada nela ela conti-

nuará pura? Ou já nasce estéril e cabe a nós semear algo que tenha valor, es-

crever alguma história que valha a pena ser lida/vivida?

(...) Impressionistas traíram o coletivo em nome de uma subjetividade particular,

de um momento fugidio, molhado de luz e tênue movimento, fixaram o que antes

era sem importância, romperam com o casamento feliz da arte, foram colocados

nas salas [salões] secundárias da grande, segura e bela casa: a Arte. Esta estava

de mudança, foi traída e colocada para fora, saíram também muitas vertentes

desta infidelidade, por muitos motivos como a expressão pessoal, a simplificação

formal, a abstração geométrica, a mistura de suportes, o amor às máquinas e

suas variações, o processo/ montagem... foram muitas as causas e as vanguar-

das. Depois da separação nada foi o mesmo, seus casos são retratados em livros

diferentes, a reconciliação parece impossível. Sabemos que não, já conseguimos

saber os critérios para o que foi arte antes não se aplicam às obras de hoje, os

tempos e relacionamentos mudaram drasticamente, mas sem dramas, acompa-

nharam a marcha, se agarraram à modernidade e estão no turbilhão, como

todos, girando como o inventado “parangolé”. Ao olhar para um, mesmo que

imaginado, repetimos o movimento que pode significar alegria, um rodopio vi-

brante de cores e vida, também uma dança da morte, perdida, sem sair do lugar

e ciente de que acabará a qualquer momento.

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Acabaram muitos parangolés em um incêndio, mas não a arte que havia neles.

Nessa traição, que já podemos chamar de bela e justificada, o filho infeliz desta

separação, o público, ganhou uma mãe mais generosa, embora muito difícil e até

perigosa. Ela nos dá alimentos/obras que precisam de nós para ganhar sabor,

para alimentarem elas dependem da nossa capacidade de buscar, de digerir, de

questionar e saber-se faminto, não saciado pelas fast-foods, pelos produtos mas-

sificados da comunicação de massa. O sabor é esse: bom, mau, sem gosto, gos-

toso de uma maneira estranha, ou indefinível. É esse mesmo: o que nós, indivi-

dualmente, e mesmo que só degustando o que nos foi servido de forma mediada,

somos capazes de sentir, de descrever ou de tentar entender, como o que foi feito

neste texto, por favor, leitor, que sabor ele teve para o senhor?

Na graduação em Desenho Industrial (Design), na década de 90, a distinção entre design

e arte era enfatizada, sobretudo, pelo caráter de obra única e sua consequente “aura”,

referendada ainda pelo domínio técnico dos meios e convenções próprios da Arte. Além

desta se bastar, não atendendo a nenhuma função utilitária concreta, muito menos para

aqueles que seguiam a máxima: “a forma segue a função”. Essas condições faziam o

estudante de então afirmar, sem dúvida, que sua atividade era útil, tratava e utilizada

das novas tecnologias e estava conectado aos desejos e aspirações materiais das pessoas

e de seu tempo, ao contrário da arte, subjugada pelo seu peso e história, olhando para o

próprio umbigo, e fazendo questão de afastar-se do público.

A reconciliação, ou melhor, a percepção de fronteiras entre as duas áreas é bastante di-

fusa agora, ambas estão manchadas pelos matizes produzidos pela multiplicidade de

condições e caminhos. Interessante citar o método de trabalho de Sol Lewitt, importante

artista que realizou diversos livros de artista, embora esse campo seja secundado por sua

produção pictórica/muralista. No texto do catálogo que apresenta sua obra, Miller-Keller

(1996) nos conta que o artista enviou um colaborador até o prédio da Bienal em São

Paulo, e, uma vez definido o espaço para a realização de sua pintura mural, realizou

fotografias, dimensionamentos e juntou informações que foram repassadas ao artista

em atelier nos Estado Unidos para que ele criasse sua obra. Ele de fato a criou, mas

deixou a cargo do mesmo colaborador concretizar o trabalho, para isso enviou instruções

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claras de como este deveria proceder, não era a primeira vez que trabalhavam assim.

Esse colaborador selecionou artistas-colaboradores brasileiros para que eles “colo-

rissem” os desenhos que Lewitt, seguindo instruções para isso nas diversas paredes do

prédio selecionadas para esse fim. Esses colaboradores tiveram o crédito dado durante a

exposição e a obra foi apagada depois de terminada a Bienal.

Para deixar mais claro, no caso do design, essa ruptura, citemos Rafael Cardoso (2000, p.

208):

O processo de quebra do paradigma modernista-fordista e de ingresso no perío-

do pós-moderno, ainda bastante nebuloso enquanto se configurava ao longo das

décadas de 1970 e 1980, já estava claramente definido em 1989, quando a queda

do muro de Berlin veio apenas confirmar que a modernidade havia desmoronado

de vez (...). Sem as certezas do paradigma naterior, o design atravessa um perío-

do de enorme insegurança mas, livre da rigidez do mesmo, ingressa também em

um período de grandes esperanças e fervilhamento (...). O design vem se líber-

tando da rigidez normativa que dominou o campo durante mais de meio século.

A marca da pós-modernidade é o pluralismo, ou seja, a abertura para posturas

novas e a tolerância para posições divergentes. Na época pós-moderna, já não

existe mais a pretensão de encontrar uma única forma correta de fazer as coisas,

uma única solução que resolva todos os problemas, uma única narrativa que

amarre todas as pontas.

Fervendo, essa condição transitória, essa indefinição, multiplicidade, mistura nos faz

questionar sempre “o que é arte?”, que valores, ferramentas e definições usar para

realizar um trabalho, uma obra? Sempre encontramos caminhos provisórios, difíceis até

de serem chamados caminhos, neste, o da produção de um livro, classificado como “livro

de artista”, o que o faz conter arte? É possível haver arte nas páginas de um livro? Basta

dizer-se artista e fazer um livro com a intenção de ser uma obra para esta de fato

configurar-se como tal? Por que expor [-se]?

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¶ Terceiro caderno

O livro a ser criado não espera ter “arte” em suas páginas, não mesmo. Nele haverá,

como dito anteriormente, aberturas, janelas, fragmentos, tentativas, um “não-sei-o-quê”

de coisas que se espera que consiga ter alguma significação para quem se proponha a

folheá-lo. Nesse toque do leitor/jogador que conceda a graça de dar vida a um morto,

que o “jogo”, metáfora usada para apreender o sentido de vivenciar a arte, se realize.

Que o papel desse jogo e obra possa criar/expor um espaço que se espera rico de riscos,

utilizando as potencialidades que o livro possibilita, promovendo a convergência de

divergências [ideias e formas], de intenções, tempos, projeções, ruídos e outros, por

meio de imagens obtidas/realizadas utilizando-se de várias técnicas, principalmente o

desenho, a fotografia digital e tipografia, incluindo a manipulação delas por softwares

específicos.

Cabe nestes cadernos iniciais, expressar algumas idéias e obras que influenciaram

diretamente a realização deste trabalho:

Hibridismo/ambiguidade. Paul Valéry (apud BALTANÁS): “Es, pues, necessario que tu ser

se divida, y se haga, en el mismo instante, calor y frío, fluido y sólido, libre y sujeto,

rosas, cera y fuego; matriz y metal de Corinto”. Segundo Uddin (apud CAUDURO, 2007):

Híbridos são o resultado da fertilização cruzada entre pais relacionados mais ou

menos distantemente entre si. Como regra geral, híbridos são intermediários

entre os tipos de seus pais com respeito a suas características morfológicas e

fisiológicas. Híbridos, em alguns casos, podem se tornar maiores ou mais vigoro-

sos que qualquer um de seus pais. Isto é verdade para todas as mídias, incluindo

as visuais. Em termos de desenho e manipulação de imagens, as combinações de

elementos que são heterogêneos por origem ou composição produzem híbridos.

Fazer livros. Do belo e desafiador texto Ulises Carrion há varias indicações e idéias

sedutoras que nos dirigem à revolução: “Un libro es una secuencia de espacios.Cada uno

de estos espacios es percibido en un momento diferente – un libro es también una

secuencia de momentos. Un escritor, contrariamente a la opinión popular, no escribe

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libros. Un escritor escribe textos”. Nos diz mais, propondo novas maneiras de “escritura”

e “leitura” para este novo livro em oposição ao livro tradicional/comum:

(...) El viejo arte asume que las palabras impresas están situadas en un espacio

ideal. El nuevo arte sabe que los libros existen como objetos en una realidad ex-

terior, sujeta a condiciones concretas depercepción, existencias, intercambio,

consumo, uso, etc.

(...) En un libro del viejo arte las palabras trasmiten la intención del autor. Por

este motivo él las busca acuradamente. En un libro del nuevo arte las palabras no

trasmiten ninguna intención; son empleadas para formar un texto el cual es un

elemento del libro, y es este libro, como totalidad, que trasmite la intención del

autor. El plagio es el punto inicial de la actividad creadora el nuevo arte.

(...) Los autores del viejo arte tienen el don por el lenguaje, el talento por el

lenguaje, la facilidad por el lenguaje. Para los autores del nuevo arte el lenguaje

es un enigma, un problema; el libro alude a las maneras de solventarlo.

(...) Para leer el viejo arte, es suficiente conocer el alfabeto.Para leer el nuevo arte

se ha de entender el libro como una estructura, identificando sus elementos y

entendiendo su función. Se puede leer el viejo arte creyendo que se entiende y

estar equivocado.Tal error es imposible en el nuevo arte. Puedes leer solo si lo

comprendes. En el viejo arte todos los libros son leídos de la misma manera. En el

nuevo arte cada libro requiere una lectura diferente.

En el viejo arte, leer la última página toma mucho tiempo, tanto como leer la

primera. En el nuevo arte el ritmo de lectura cambia, se acelera, de coge. Para

comprender y apreciar un libro del viejo arte, es necesario leerlo a fondo. En el

nuevo arte a menudo No necesitas leer el libro completo. La lectura puede

pararse en el momento en que hayas comprendido la estructura total del libro.

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(...)El nuevo arte apela a la habilidad que cada hombre posee par comprender y

crear signos y sistemas de signos

Alguns livros encontrados na pesquisa, basicamente obras que mantém a forma tra-

dicional do livro composto por cadernos feitos de papel e os chamados “livros objetos”

ou livros esculturais, onde plasticidade da forma é explorada em detrimento de sua

estrutura interna. Vejamos alguns deles:

> Acima livros de E. Ruscha e Sol Lewitt.

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< 13 >

> Obras do artista brasileiro Paulo Bruscky.

> “Livro de carne” de A. Barrio e “Rain Work”, de Ted Purvis,1994.

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< 14 >

> Dois grandes artistas brasileiros e seus trabalhos: Julio Plaza e Wlademir Dias-Pino.

¶ Quarto caderno

O projeto tradicional de um livro inicia com o recebimento dos originais, um texto, que

depois de passar pelo editor, pelo projetista gráfico, diagramador, revisor, impressor,

livreiro, até chegar às mãos preciosas do leitor. A definição do formato, de quantas cores

será a impressão do miolo e para qual público o livro deve se dirigir são orientações

iniciais que permitem ao projetista planejar o trabalho de maneira clara. Estou no

escuro, por livre e espontânea vontade, sim, vontade de ser responsável por todas as

etapas do livro, menos a impressão, de ter as decisões e escolhas orientadas por um

desejo maior que o sucesso comercial de uma obra. Preciso trair esse ofício, o projeto do

livro. O preto no branco não deve ser mensageiro de clareza, da linear leitura de

sentenças ou do folhear seguro de quietas páginas.

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O primeiro passo no escuro é a escolha por dissonâncias, ambiguidades, e a quebra da

regularidade, a primeira traição a ser cometida é com o princípio da página dupla. O

projeto gráfico de um livro é realizado levando-se em conta o livro aberto: uma página

par e outra ímpar, essa dualidade repetida transmite o conforto do já familiar, da

simetria e espelhamento regular, sem distorções. Escolho ter dois tempos distintos no

livro, o “passado”, nas páginas pares, e o “projetado” nas ímpares. Escolho fazer uma

previsão de futuro nas páginas 1, 3, 5, 7, 9... E uma revisão do passado, partindo da

última página do livro para o início, por exemplo: 60, 58, 56, 54, 52, 50...

Nas páginas pares, desenhos já realizados, desde os esboços juvenis até trabalhos

recentes, todos usando o papel como suporte, mesmo que na forma de papelão, de

colagem e outros. A mão marcando o suporte, o gesto que fica impresso. Tempo pas-

sado? Resgatado e quase sempre modificado pela memória. Foram reunidos diversos

trabalhos, desse primeiro contato foram selecionados vários “momentos” e o formato

do livro ganhou a linha do horizonte, ou melhor, a orientação da página ficou definida

como a horizontal. O passado, o já reconhecido, a similaridade de uma linha do tempo

conferiu a forma ao objeto.

O futuro, o ainda ser projetado, caberia às páginas ímpares, as mais nobres de um livro,

nunca estão em branco. Desse momento outra definição, nesse espaço só trabalhos

originais, realizados a partir de inquietações e conceitos expostos anteriormente,

buscando-se permanecer no escuro. A fronteira com o passado é definida pela utilização

apenas dos meios digitais para a sua feitura, sobretudo a fotografia digital, a digitalização

feita por scanner, tipografia e muitas interferências, utilizando ferramentas, efeitos e

manipulações em programas específicos, sobretudo o Photoshop. A escolha pela pro-

dução e impressão também passa pelo digital, se do passado veio o formato e suporte

do livro, do tempo “projetado” veio o processo e o tipo de impressão a ser usado.

Utilizando-se um programa de editoração para o livro e o sistema de impressão a ser

usado na impressão, realizado em gráfica digital.

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Se nas páginas pares o livro começa da última página e nas ímpares a sequência é linear,

o que haverá nesse movimento? Passado e futuro (projetado) lado a lado? A obra

quando aberta será presente, nem passado, nem futuro: encontro, de um espaço com o

seu habitante. O “projeto de interiores” não deverá ser feito para agradar, nem para ser

meramente desconfortável. Como será então? Plural, cheio de aberturas, tanto para o

exterior como para o interior, portas fechadas, claro/escuro, meios tons, com muitas

misturas, ecos, deslocamentos, chaves, exposição, dor, crítica, indefinições, espelho,

sentimentos, inversões, exageros, humor, olhares, muitos olhares – mas o que verá o

olhar do jogador/leitor quando o tiver nas mãos? O que será lido no “olhar” de outrem?

Dirá algo além de “desconheço-te”? Por que por esse objeto e se por nas mãos de outro?

Como saber se está pronto? Pronto para quê? Sequer saber se há algo do que foi

desejado nas imagens impressas, o que fazer? Acreditar? Em quê? Em quem?...

> Caminho das páginas pares: trabalhos produzidos, sobretudo em desenho, antigos e recentes.

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De um conjunto de desenhos bastante heterogêneo, abrangendo arco de tempo que

cobre 15 anos, fez-se a seleção de imagens a partir do conjunto mais significativo,

desenhos de rosto, olhos e similares. Alguns conceitos, ideias, inquietações, sugestões de

títulos para o trabalho surgiam, eram rabiscados para saírem do caminho, para deixar

outros movimentos e ideias fluírem, somarem-se ou reduzirem-se até deixarem de ter

importância, o processo “par” estava encaminhado.

O outro caminho, ímpar, solitário e no escuro precisa ser iniciado, para isso algumas

fronteiras teriam de existir para se poder avançar. Escolhe-se andar por lugares con-

siderados “comuns”, lugares de passagem, mistura, do desimportante cotidiano, usando

como estratégia o deslocamento. São quatro os lugares, dois de acordo com a fronteira

acima: o banheiro do trabalho e o mercadinho da família, lugares de convivência com os

outros. Mais dois lugares de confronto, do existir: o quarto e o “espelho”, este entendido

não como o objeto físico, mas sim aquele que “reflete”, que se observa.

Realizaram-se fotos digitais, tiradas, ora pelo celular, ora por uma filmadora. Sem muita

preocupação e cuidado com a resolução ou qualidade técnica, e sim com a apreensão de

imagens interessantes de um jeito meio indefinido, uma atração pelo acaso e pelo

simbólico dos pequenos gestos e objetos usados/vistos, mas não percebidos, pelo menos

não artisticamente. Nas preciosas páginas ímpares imagens “sem importância”, vazias

talvez ao olhar desatento, colocadas no centro, sem o tratamento “adequado”, sem

lugar: deslocadas. Também foram produzidas digitalizações: do rosto do autor colocado

no scanner, assim como o papel perfurado pela caneta, amassado, negado, sua cor

naturalmente branca foi invertida, negritada para ser traída, para ser o escuro do

projetado, do que está por vir. Autor digital?

Nesse grupo de imagens todas as fotos foram trabalhadas com maior ou menor grau de

interferências, sendo as mais comuns o uso do corte, da montagem, sobreposição,

mistura, distorção, exagero, repetição e muitas outras. Dentre essas cabe destacar o

desenho, não o mesmo encontrado nas páginas pares, mas feito pelo computador,

escolhe-se a ferramenta pincel, sua espessura e característica são definidas e “pinta-se”

quadradinhos mínimos, os pixels, usando o mouse para simular o gesto primordial de

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marcar uma superfície, esta não existe, não fisicamente. Desenho, faço rabiscos digitais,

linhas mal traçadas, nervosas, inseguras, simulo, represento, traço enigmas sobre

imagens, imagens sobre imagens, rumino, escrevo, corro e sigo. Pra onde? Por quê?

> Acima: imagens capturadas e sendo trabalhadas sem muito compromisso.

A tipografia, suas letras, alfabetos, estilos e convenções, tão caras ao livro convencional,

também foram alçadas às páginas, não para tornar visível o discurso de outro, repousada

na quietude da página aguardando que sua legibilidade seja automaticamente traduzida.

A escrita e sua visualidade são próprias, para isso foram trabalhados textos produzidos

pelo autor, e, a partir desses, ocorre à produção de imagens, tendo a tipografia como

matéria-prima, com interferências, ruídos e distorções incorporadas.

O caminho ímpar segue, nele há espaço para o silêncio ruidoso da página em branco,

para a narrativa e a história do fogo, do olhar que se apaga, se imiscui do digital branco

leitoso da tela, da simulação, do sorriso planejado e traído, do infantil, da dimensão

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ausente, de pequenos e “imperdoáveis” erros, do perder-se de si mesmo, do encontro

com o presente sem fé.

> Imagens brutas, acima [em cores] e primeiras páginas ímpares ganhando vida.

No trabalho das páginas ímpares buscou-se a realização de imagens criadas em um

tempo o mais breve possível, experimentando, brincando e brigando com os padrões

que exigiam ordem, uma maior elaboração, foi difícil de aceitar essa traição: permitir

trabalhos sem o acabamento, o cuidado que normalmente se exige em um livro. Como

permitir imagens borradas, sujas e descuidadas? Só mesmo traindo, a dor dessa

infidelidade é causada pela consciência de se “poder fazer melhor”, de estranhar-se por

não reagir...

Esse desconforto só encontrou sossego no casamento das páginas, dos tempos, imagens

e nos olhares plurais encontrados lado a lado, caminho par e ímpar próximos.

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> Duplas de páginas, o olhar de quem se vê refletido nas páginas, acima desconstruído em camadas,

tons, movimentos e formas, e abaixo capturado pelo programa que faz a editoração, incluindo a

simulação de página no momento em que o livro era produzido, o olhar já passado? Ou projetado?

O olhar do autor ainda será encontrado em outros lugares, olhando para si, livro lendo livro, olhar

que procura, que interroga, que mistura e perde-se, simula, anula-se, apaga-se, expõe-se, chora, diz.

A opção pelo deslocamento de um cesto de lixo, um vaso sanitário, um interruptor, uma

parede, garrafas, luminárias de teto, lixo, papel usado e descartado visualizado em um

suporte onde o papel adquire nobreza, o livro, tem óbvias referências a Duchamp. Em

alguns houve a interferência acentuada de uma mudança de ponto de vista, ou a

inserção de um deslocamento dentro do deslocamento e a ocorrência de diversas

manipulações.

Foram construídas mais de 88 páginas, entre pares e ímpares. A partir desse conjunto foi

definido o número de páginas que o livro teria: oitenta, organizadas em 5 cadernos, cada

um com 16 páginas. O miolo, com o tamanho de 115 x 180 mm [fechado], deverá ser

impresso em apenas uma cor, preto, em papel offset na gramatura 90, deverá ainda ser

costurado e permanecer sem capa. As páginas não serão numeradas, nem deverão ter

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margem de segurança para o corte. Normalmente se usa 5 mm de cada lado para evitar

falhas devidas ao corte da gráfica, essa escolha reflete a opção pelo risco, por não

esconder as imperfeições, assumi-las, acaso, caso apareçam.

A capa de um livro confere-lhe o aspecto de produto acabado, nomeia-o e distingue-o

dos outros, é a porta de entrada a envolver e proteger o miolo, este semfé não quer essa

mediação, rejeita essa segurança. A capa que se pretende é a do tempo presente que o

envolve ao ser manuseado, é a poeira dos dias que seguem. A capa dever ser a mão, o

olhar-se, o leitor que o envolve, para fazer dele o que quiser. Percebê-lo tal qual ele se

apresenta, precário, transitório e fugaz como um olhar atirado ao próximo, ainda que

apenas imaginado. Apenas um papel vegetal envolve-o, não o contem, nem limita. Talvez

amplifique a traição ao livro comum, sem autoria identificada, buscando o precário na

impressão em jato de tinta, no papel amassado e fixado com uma fita adesiva onde se lê

o título do livro e o ano de sua impressão.

> semfé: detalhe da obra aberta e ao fundo vários exemplares.

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> Páginas duplas antes da impressão e montagem de semfé.

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¶ Quinto e último caderno

O que dizer disso tudo? Acabou? O que aprendi? Era para apreender algo? Ou soltar-se

ao sabor do vento e tempo? Fiz arte? Fiz algo significativo? Bom, para esta última

pergunta a resposta é afirmativa, sim, o trabalho de elaborar esta obra, refletir, gerou

um livro no qual as aberturas permitiram um caminho enriquecedor, incluindo os muitos

questionamentos e incongruências encontrados. Aprende-se a aceitar, mesmo que com

certo desconforto, as indefinições próprias do fazer artístico, o risco de expor-se,

incluindo suas limitações, sua produção imprecisa, sua falta de si mesmo, sua fragilidade

e olhar.

O livro de artista produzido foi nomeado após a reunião de suas páginas e a associação

desta ao presente do autor, a “capa” que envolve sua produção não é a de simplesmente

alguém que perdeu sua fé. Nesse momento não há nada de extraordinário, de “Sem Fé”,

há um estranhamento comum de refletir sua condição, de fazê-la presente até em seu

título não escrito e estranho: semfé.

Meus olhares não têm mais importância, estão marcados lado a lado, tempos que se

encontram nesse lugar semfé, talvez aguardando o depósito da crença alheia para

adquirir “graça”, entendida como vida, como via de acesso a algo maior, que espero ser

esse o destino que os olhares dos leitores atinjam. Não quero esperar, o que o olhar de

vocês, que passearam por estas páginas, vê, viu ou verá?

Eu os interrogo para dividir, para lhes causar incômodo, não quero esperar nada, nem

que seus olhares encontrem o meu, que entendam ou retirem algo, maior ou menor, no

que produzi. Mais uma traição, gostaria de poder mais esta e trair-me, não ligar, não

acreditar, não esperar e seguir sem angústia, sem comover-me, sem ser o que sou, ser

outro, traidor e traído, artista (?)

. . .

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Rômulo Nascimento

Especialista em Artes visuais, Senac-AM, 2010; Bacharel em Design pela Universidade Federal do

Amazonas, 2001. Atua como diretor de arte há 10 anos e realiza pesquisa sobre história e artes do

livro, tipografia e design gráfico. Artista visual premiado em duas oportunidades pelo Amazonas Film

Festival pelos curtas Eu trocado e Passarão, autor da obra semfé exposta na 29ª Bienal de São Paulo,

junto com outras publicações de artista, no espaço “Longe daqui, aqui mesmo”.

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