Construções do fracasso haitiano

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Universidade Federal do Rio de Janeiro MUSEU NACIONAL Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Felipe Evangelista Andrade Silva Construções do “fracasso” haitiano Rio de Janeiro 2010 Felipe Evangelista Andrade Silva

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

MUSEU NACIONAL

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

Felipe Evangelista Andrade Silva

Construções do “fracasso” haitiano

Rio de Janeiro

2010

Felipe Evangelista Andrade Silva

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Construções do “fracasso” haitiano

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Federico Neiburg

PPGAS-MN/UFRJ

Rio de Janeiro

2010

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Evangelista, Felipe Andrade Silva

Construções do “fracasso” haitiano. Rio de Janeiro, 2010

173 f.

Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-

Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional – Universidade Federal

do Rio de Janeiro, 2010.

Orientador: Prof. Dr. Federico Neiburg

1. Antropologia dos Estados Nacionais 2. Haiti

I. Neiburg, Federico (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro

III. Construções do “fracasso” haitiano

Felipe Evangelista Andrade Silva

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Construções do “fracasso” haitiano

Banca Examinadora:

______________________________

Prof. Dr. Federico Neiburg – orientador

PPGAS-MN/UFRJ

______________________________

Prof. Dra. Olívia Cunha

PPGAS-MN/UFRJ

______________________________

Prof. Dr. Omar Ribeiro Thomaz

UNICAMP

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Ao novo, a quem ainda não nasceu

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Agradecimentos

À CAPES por dois anos de bolsa, ao CNPQ e à FAPERJ por financiar o projeto “Mercados e

moedas em Porto Príncipe. Uma etnografia do/no espaço internacional”.

Ao meu orientador, Federico Neiburg, por me integrar no projeto coletivo de pesquisa, por me

dar a oportunidade de conhecer o Haiti, e por sugestões decisivas ao longo de todo o processo.

A todo o corpo docente do PPGAS-MN, em especial Luiz Fernando Dias Duarte, Olívia

Cunha, Fernando Rabossi, Márcio Goldman, Bruna Franchetto e Moacir Palmeira, que me

influenciaram de formas que não imaginam.

À professora Lígia Sygaud (in memoriam), por uma conversa privada aonde destruiu

completamente uma das primeiras versões deste trabalho. Por meio dela, encontrei um grau

de exigência novo. Após “apanhar” intelectualmente como nunca havia apanhado antes, creio

que saí mais maduro, e aprendi, em uma hora e meia, mais do que em anos inteiros. Serei

eternamente grato a ela por aquela tarde.

Às funcionárias da biblioteca do PPGAS, Alessandra e Carla, da Xerox, Carmen e Fabiano, e

ao Prefeito, da limpeza.

A Omar Ribeiro Thomaz, por aceitar o convite para a banca.

Ao professor Sidney Mintz, por demonstrar uma generosidade incrível com os novatos e um

amor à profissão contagiante.

A todas as pessoas que conheci no Haiti, em especial Fritz, William, Veline, Dodô, Wicken,

Lucson, Samuel, Paul Josue, Jean-Claude Divers, Fortunat, Wildrid, Wouwous, Remon,

Rodrig, Flober. Sem notícias após o terremoto, não sei o que aconteceu. Espero ainda voltar

um dia e encontrá-los todos vivos e com saúde.

À organização e aos participantes do seminário dos alunos do PPGAS, onde tive a

oportunidade de discutir algumas das idéias contidas aqui.

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Ao professor Louis Marcelin e ao Institute Interuniversitaire de Recherche et de

Dévelopment, que nos receberam em Port-au-Prince.

A quem compartilhou um teto e muitas histórias no Haiti, Flávia Dalmaso, Pedro Braum, José

Renato Baptista, Natacha Nicaise e William Jean.

Aos colegas: Luana, Rogério, Guilherme, César, André Dumans, Orlando, Silvia, Ruth,

Kleyton, Leonor, Wecisley, Virna, Nicolás, Raphael, Marcos, Beatriz, Leonardo, Thiago,

Tonico, Mutuá, Bruno, Maria Júlia. Perdão se esqueci alguém, mas de uma forma geral, além

das afinidades pessoais, acho que tive muita sorte de cair em uma das mais turmas mais

legais, solidárias e interessantes que já vi.

Aos colegas da Universidade de Brasília, que mesmo quando não estão aqui, estão sempre

comigo; Taís, DiDeus, Bernardo, Lourenço, Júlia, Roger, Marina Gordinha, Chipe, Ianni,

Hilan, Fernando.

A Marcus Vinicius e Liana, duas das pessoas que mais acompanharam o processo da escrita,

entre outros. A Marília, por uma convivência breve mas rica.

A Nataniel Rosa, que me mostrou um novo universo, e a Júlio Camacho e todo o pessoal do

núcleo Barra, por me receberem de braços abertos.

À minha mãe e ao meu pai, Aracy e Heitor, pelo apoio incondicional.

A Gilberto, pela ajuda com o abstract.

Ao amor, sem o qual tudo seria mais fácil mas não teria a mínima graça.

A Márcia, por ler e comentar algumas versões prévias da dissertação, por suas piadas, manias,

trejeitos, silêncios, carinhos, variações de humor, mimos, amor, pelos planos e sonhos

compartilhados, por dormir como dorme, viver como vive, ser quem é. Ao nosso primeiro

filho, que mesmo sem ter nascido, já me transformou e me deu um ânimo extra para concluir

minhas tarefas. A ela e a ele, todo o meu amor.

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Si les hommes politiques et les diplomates pouvent se permettre de jouer avec les mots, les scientifiques sont bel et bien obligés de tenir compte de l’evidence

des faits: Haïti est un pays naufragé, un État effondré. Sauveur Pierre Étienne

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Resumo

EVANGELISTA, Felipe Andrade Silva. Construções do “fracasso” haitiano. Dissertação de

Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.

O objetivo dessa dissertação é examinar o campo discursivo que gira em torno do “Haiti” –

uma unidade de análise que pressupõe uma construção conceitual geralmente implícita. No

Corpus analisado no trabalho, há um consenso de que desde que o Haiti existe, o país tem

vivido uma tragédia. No diagnóstico dos problemas, há uma tendência a descrever o que o

Haiti “não é”, i.e. a indagar a realidade a partir do que ela supostamente deveria ser.

Escolhemos três eixos, tratados um para cada capítulo. O primeiro diz respeito ao papel da

história, como nas sequências montadas coexistem duas modalidades, um desenrolar

contingente dos eventos, diacrônico, e um tempo inerte, preso numa circularidade que o

obrigaria a repetir-se incessantemente, sincrônico. O segundo trata de esquemas de oposições

duais, que disparam uma série de associações entre diferentes pares de idéias. De um lado,

encontramos democracia, modernidade, desenvolvimento, eficiência econômica, dinamismo,

Estado de direito (e, num registro mais antigo, civilização). Do outro, suas antíteses:

autoritarismo, precariedade, sub-desenvolvimento, improdutividade, desordem, terra sem lei,

inerte, parada no tempo, retrógrada (pólo onde a referência à “África” é constante). O último

capítulo mira a construção de três tipos de agências coletivas, três propostas de encaixes entre

os fenômenos que explicariam “a tragédia haitiana”, três unidades de análise: “o povo”, “a

elite” e “as grandes potências”. Veremos então, sucessivamente, como cada uma é

responsabilizada pelo “desastre” em cada caso.

Palavras-chave: Antropologia dos Estados Nacionais; Campo Discursivo; Haiti.

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Abstract

EVANGELISTA, Felipe Andrade Silva. Construções do “fracasso” haitiano. Dissertação de

Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.

This dissertation aims to examine the field of discursive formations structured around “Haiti”

– a unit of analysis usually implicit. In the corpus dealt with in this work, a unanimous opinion

prevails assuming that since the very beginning Haiti has been experiencing a tragic destiny.

In the diagnosis of the national problems, there is a tendency to describe what Haiti is not, i.e.

to question reality from the viewpoint of what is was supposed to be. The first chapter

discusses the role of history, how the sequences are marked by two different kinds of

temporality, on one hand a diachronic contingent succession of events, and on the other, a

synchronic time-still, floating in a vicious circle, that would leave it no option but to repeat

itself over and over again. The second chapter focuses on dual oppositions, which associate

different dichotomies. Ideas like democracy, modernity, development, economic efficiency,

dynamism, State of Right (and, in a more ancient register, civilization) are contrasted with their

conceptual antitheses, such as authoritarianism, precariousness, underdevelopment, lack of

productivity, lawlessness, disorder, inertia, retrograde cultural traits (on this side, reference

to “Africa” is usually made). Third chapter treats the conceptual construction of three kinds of

collective agency, which would explain “the Haitian tragedy”, three units of analysis: “the

people”, “the elite” and “the great powers”. It will then be put forward how each faction can

be blamed for the “disaster” in each case.

Key-words: Anthropology of Nation-States; Discursive Formations; Haiti.

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Índice

Convenções i

Introdução 1

Capítulo um: O peso da história 28

Duas glórias e um enigma 30

Lacunas antigas 33

Pobreza dos diálogos, eficiência das armas 36

Crises cíclicas, estruturas profundas 43

Considerações finais 50

Capítulo dois: A teoria dos dois Haitis 53

Antes de 1804: a gênese dos dois Haitis 54

Depois de 1804: consolidação contínua do dualismo 56

Créoles e Bossales 59

Cor como um dos idiomas da divisão 62

Kreyol vs. francês 73

Questões geográficas 81

Duplo isolamento 86

Elitismo anti-racista 88

Considerações finais 91

Capítulo três: Alocações de responsabilidade 98

O dilema original: como produzir sem escravidão? 100

Obstáculos culturais, ou a culpa do povo 105

A esquiva, ou mawonaj reativa 106

Magia e política, mistura anti-moderna 120

Metáforas 130

As grandes potências e outros Estados blans 139

Ajuda 147

Considerações finais 153

Conclusão 155

Referências bibliográficas 170

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Convenções

Ao longo da dissertação, as citações aparecerão sempre escritas em itálico, assim

como os termos escritos em outra língua que não o português. Caso um termo apareça “entre

aspas” em itálico, isso significa que as aspas foram usadas pelo texto citado. Inserções

minhas nos textos originais estão [entre colchetes].

Ainda que, dentro da lógica do corpus, gênero não seja uma questão de grande

relevância, evitei o uso do masculino genérico, a não ser quando fazendo referência a grupos

de fato majoritariamente masculinos. A expressão “os autores”, por exemplo, geralmente

designa um conjunto de sete homens específicos, que logo serão apresentados.

Para tornar o texto mais acessível, todas as citações no corpo do texto foram

traduzidas por mim. Para minimizar o impacto de possíveis erros de tradução, e também para

não matar o estilo de cada autor, as abundantes notas de rodapé foram mantidas na língua

original em que foram escritas.

O uso constante da primeira pessoa do plural pretende fazer justiça ao fato de que essa

dissertação é produto de um projeto coletivo de pesquisa. Embora até hoje nenhum membro

da equipe tenha lido o texto (com exceção do orientador Federico Neiburg) e ninguém além

de mim possa ser responsabilizada pelas eventuais falhas desse trabalho, é preciso reconhecer

sempre que as idéias também são formuladas a partir de conversas cotidianas, da convivência

com pessoas que compartilham interesses comuns.

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1

Introdução.

Essa dissertação se iniciou a partir de um projeto coletivo originalmente

chamado Mercados e moedas em Porto Príncipe. Uma etnografia do/no espaço

internacional, e desde 2008 registrado no CNPQ sob o nome A configuração dos

espaços nacionais contemporâneos. Uma etnografia coletiva do/no Haiti em

perspectiva comparada, ambos coordenados pelo professor Federico Neiburg. Uma

equipe do Núcleo de Pesquisa em Cultura e Economia (NuCEC – PPGAS, URFJ),

composta então por seis pessoas,1 partiu para um curto trabalho de campo nos arredores

de Jacmel, sudeste do Haiti. Pouco antes do início da pesquisa de campo, tivemos aulas

de kreyol2 com Daniela Bercovich, brasileira que viveu alguns anos no Haiti,

ministradas na ONG Viva Rio, onde ela atualmente trabalha. Chegamos ao Haiti em

março de 2008. Durante três meses, morei em Jacmel, aprendi um kreyol ainda um

tanto precário mas comunicável, participei de reuniões de um sindicato camponês e de

duas Organizasyon-s Tét-Ansanm-s (ao pé da letra, Organização de Cabeças Unidas,

um tipo de organização bastante difundida no Haiti), e mais importante, mantive uma

1 Eu, Flávia Dalmaso, Pedro Braum (na época, estudantes de mestrado), José Renato Baptista

(doutorado), Natacha Nicaise (pós-doutorado) e Federico Neiburg (professor da UFRJ). William Jean,

haitiano e estudante de antropologia, juntou-se ao grupo em Porto Príncipe, e além de participar da

pesquisa coletiva nos mercados de Jacmel, trabalhou como intérprete e nos deu aulas de kreyol por um

mês. 2 Em linguística, o termo crioulo se refere a um processo de hibridização do qual emerge uma nova língua

(ver, por exemplo, Hymes 1971). Há línguas crioulas derivadas do português, do holandês, do francês,

entre muitas outras. Portanto, crioulo não é o nome de uma língua, mas de um processo linguístico.

Na literatura sobre o Haiti, a maior parte originalmente escrita em francês, o mais comum é que o

termo venha nessa língua: créole. Às vezes, textos escritos em outras línguas adotam esse uso (por

exemplo, Thomaz 2005). Encontramos usos alternativos no linguista Michel DeGraff (2005), que usa a

sigla HC (para Haitian Creole), e em Trouillot (1990), que chama a linguagem de Haitian [haitiano]. Em

ambos os casos, o esforço de nomear a língua de forma menos genérica possui a intenção política de

reconhecer o idioma haitiano como uma língua nos seus próprios termos, dissociando-a da idéia de que

seria um tipo de dialeto, sub-linguagem, derivação degenerada do francês (voltaremos ao tema em mais

detalhes no segundo capítulo).

De nossa parte, consideramos que, entre outras confusões possíveis, o português crioulo remete a todas

as línguas nascidas desses processos de hibridização, assim como o uso em francês (créole), num texto

escrito em português, pode igualmente remeter a todas as línguas crioulas derivadas do francês (no Caribe

há outros créoles, como em Martinica e Guadalupe). Ademais, já que emprestaremos de outra língua,

consideramos – é uma tomada de posição – o idioma francês tão estrangeiro quanto o haitiano. Por isso,

quando nos refirmos especificamente à língua falada no Haiti, usaremos sua grafia em haitiano, kreyol.

Page 14: Construções do fracasso haitiano

2

pequena infinidade de conversas cotidianas.

Minha intenção original era escrever sobre a presença de tropas brasileiras no

país,3 uma suposta ingovernabilidade (mais ou menos assentada sobre a idéia da

precariedade material) que a legitimaria, suposta ausência do Estado e de outras

instituições simultânea à forte presença de ONGs e da ajuda estrangeira, temas de

pesquisa vagamente derivados de minhas poucas leituras prévias. Eu escreveria a partir

de dois conjuntos de fontes heterogêneos, o trabalho de campo e os livros. Flávia

Dalmaso, colega da equipe que esteve comigo no Haiti, escreveu uma bela dissertação

sobre Vodu e magia, que me serviria de modelo.4 No meu caso, este projeto se revelou

inviável, pois cada conjunto de fontes formulava suas questões de formas diferentes, e

para fazer uma dissertação coerente ao invés de duas mini-dissertações quase sem

relações entre si seria preciso mutilar algum conjunto de fontes para que este se

encaixasse no outro. Enquanto os livros se focam em temas como Estado, nação,

modernidade, as pessoas que conheci no Haiti me falavam mais sobre a importância do

trabalho em conjunto, em associações, e em especial de Jesus Cristo e da Bíblia. Não

encontrando um fio comum que as atravessasse, me pareceu mais honesto escolher entre

uma das duas mini-dissertações que estavam em andamento, e deixar a outra para

desenvolvimento posterior, para que tanto os dados de campo quanto a literatura possam

ser tratados em seus respectivos termos.

O objetivo dessa dissertação é examinar, a partir de um conjunto de livros, um

campo discursivo que gira em torno de um objeto: “o Haiti”.5 Falar sobre um país

3 A Minustah é uma força de “estabilização” da ONU que está no Haiti desde 2004, desde o início e até

hoje comandada pelo Brasil (mas isso pode mudar – o país que mantém o maior efetivo milita no país tem

a chefia da missão, se outro contingente de outro país ultrapassar em número o brasileiro, a regra é que a

chefia passará de mãos). 4 Ver Dalmaso 2008.

5 Devemos a Michel Foucault a idéia de campo discursivo. A etiqueta acadêmica exige que as idéias

sejam lastreadas, de modo que reconhecemos a imensa dívida com esse autor para a formulação de nosso

objeto de estudo. Contudo, é preciso deixar claro que o assunto não são as idéias de Foucault – portanto,

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3

pressupõe uma construção conceitual que articula certos elementos, e deixa outros de

fora. Nesse sentido, “o Haiti” é uma unidade de análise (é isso que o uso das aspas

pretende indicar), assim como “o povo”, “a África”, “a Europa”, “o Estado”, “a nação”.

Cada qual pressupõe certa articulação entre os fatos narrados (que, reciprocamente, são

produzidos por essa própria articulação), propondo uma grade de leitura que ao mesmo

tempo expressa e cria uma realidade.

O campo discursivo é também um campo de batalha, no interior do qual se dão

tomadas de posição.6 Temos a intenção explícita de não aderir a nenhuma posição

dentro do debate (pelo menos não aqui, nesse contexto), mas ao contrário, de tentar

mostrar como ele se organiza, quais são seus principais temas e pontos de referência

comuns, em suma, qual é e como funciona o idioma no qual se fala sobre “o Haiti”. Daí

o uso frequente do pretérito imperfeito como tempo verbal – seria, estivesse, fosse,

sempre na fórmula do “tudo se passa como se...” Não significa que desacreditemos o

que os autores estão dizendo – pelo contrário, evitaremos tomar como referência

qualquer suposta “realidade exterior aos textos”, e portanto, nada pode ser mentira ou

verdade – “a verdade”, ou “os fatos empíricos” com os quais trabalharemos, são os

próprios livros publicados. Tentaremos nos ater apenas ao que foi dito nesses livros, à

estrutura dos argumentos, e o não-dito que lhe acompanha, como que em negativo.

Trabalharemos quase exclusivamente com os livros. Contudo, a experiência no

Haiti, mesmo curta, afeta a leitura dos textos, e dá pistas importantes sobre como as

questões discutidas pela elite intelectual haitiana circulam, sob outros formatos, em

outros meios, fora dela.7 Há temas e questões em comum, comentários que se apóiam

sobre os mesmos episódios históricos, às vezes com interpretações muito variantes.

não nos interessa discutir sua obra, seus métodos ou seus instrumentos conceituais. Ao invés de um uso

rigoroso e fiel às intenções do autor, tentaremos aqui um uso livre e instrumental de suas idéias. 6 Essa noção está orientada pela noção de lutas de classificação desenvolvida por Bourdieu (1992).

7 Elite é um “termo nativo” muito usado na literatura, funciona como uma forte categoria de auto-

percepção de classe. Cf. Thomaz 2005.

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4

Menções pontuais a situações de campo servirão mais como possíveis temas e hipóteses

para trabalhos posteriores, de maior densidade etnográfica, que sonho fazer num futuro

não muito distante. Igualmente, seria uma honra para mim se qualquer sugestão

apresentada aqui se tornasse útil a um/a outra/o pesquisador/a.

Muita gente, ao saber que eu trabalhava sobre o Haiti, veio me perguntar o que

eu ia fazer para ajudar “aquele povo tão sofrido”. A pergunta, às vezes dispensada com

excessiva tranquilidade nos meios acadêmicos, merece ser levada a sério. No meu caso,

a resposta não é tranquila, é constrangedora, mas é honesta: nada. Qual é o sentido de

escrever, então? Conhecimento pelo conhecimento, como se pudéssemos conhecer por

conhecer impunemente realidades como a fome e a miséria, seria uma resposta cretina.

Não é por acaso que, na ciência social haitiana, raramente encontremos quem escreva

sobre o país sem pensar soluções. Há como um imperativo moral, implícito ou explícito,

de que situações calamitosas exigem engajamento. Em textos de autores/as blans8 sobre

o Haiti também é muito comum a presença de prescrições e soluções hipotéticas.

Tentei resistir a essa tentação, por dois motivos. Primeiro, para tomar distância

das discussões travadas, pois falando nos mesmos termos, minha chance de dizer algo

novo seria nula. A escolha foi dar um passo atrás para tentar mostrar algumas das linhas

que estruturam as discussões e assim mapear um campo discursivo. Não discutiremos

quais os autores tem razão nos desacordos, nesse sentido não tomaremos nenhuma

posição (embora também não nos esforcemos para ocultar nossas preferências). Antes,

buscaremos mostrar como são feitas as perguntas.9 Segundo, apesar da grande

8 Em kreyol, a palavra blan designa o que não é haitiano (aplica-se, especialmente, mas não só, a

pessoas), e também a cor branca. Seu oposto (haitiano/haitiana) é aysien. 9 Algo similar já foi feito, e com mais competência. Leon-François Hoffman, em seu livro Haïti :

couleurs, croyances, créole (1990), traz um belo mapa dos debates raciais, religiosos e lingüísticos

travados entre a elite haitiana, citando uma quantidade imensa de textos escritos entre o fim do século

XVIII aos anos 1980s. Infelizmente só o li quando a dissertação já estava quase toda escrita, e eu já sem

fôlego para reescrevê-la integrando suas contribuições, motivo pelo qual lhe dedico apenas poucas notas.

De minha parte, passada a decepção inicial que tive ao ler seu livro (pois parecia que tudo que eu

planejava fazer já tinha sido feito), fiquei feliz ao notar a quantidade de convergências entre os dois

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5

quantidade de pessoas querendo ajudar, boa parte delas muito mais envolvida e bem

informada do que eu, a situação parece piorar continuamente. Não foi difícil encontrar,

nem nos textos nem no trabalho campo, quem desacreditasse a ajuda, considerando-a

inclusive, por vezes, como um artifício maquiavélico destinado a enriquecer blans às

custas do povo. A experiência de campo não deixa dúvida de que o paradigma da ajuda

predomina nas relações entre blans e aysiens (especialmente na forma de missões

religiosas ou no trabalho de ONGs). Incontáveis vezes, eu tive que explicar que não

estava lá para ajudar, mas para pesquisar. Mas para que?, me perguntavam com justa

desconfiança.

Minha tentativa de resposta começa deslocando a pergunta – ao invés de para

que, para quem. Apesar de nutrir esperanças de fazer trabalhos que possam ser

interessantes para as pessoas com quem convivi no Haiti, não acho que, nesse formato

acadêmico, isso seja possível. Além de escrever, é claro, como qualquer dissertação de

mestrado, para a banca examinadora, o público que julgo possível alcançar começa com

a equipe do NuCEC que segue trabalhando no Haiti. Há outra equipe se formando, com

base na Unicamp e sob orientação do professor Omar Ribeiro Thomaz, que também

trabalhará no/sobre o Haiti. Talvez as duas equipes somadas – ignoro se há mais, mas

enquanto os financiamentos do governo brasileiro forem favoráveis, é possível que

surjam outras – já componham um número considerável de potenciais leitoras/es.

O texto foi concebido na intenção de atender a esse nicho, antropólogas/os

trabalhando no/sobre o Haiti, sem tornar-se ilegível para eventuais curiosos/as. Assim,

há como duas formas de ler essa dissertação – a primeira, mais fluida, seguindo apenas

o corpo do texto, todo em português (com traduções feitas por mim, no caso das

mapeamentos. O livro de Hoffman é organizado em três partes (couleurs, croyances, créole), cada qual

movida por uma oposição: negros vs. mulatos, cristianismo vetor da civilização vs. vodu de origem

africana, francês vs. kreyol (e, em menor medida, francês vs. inglês). Os assuntos tratados por Hoffman

aparecem aqui, basicamente, no segundo capítulo.

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6

citações – embora provavelmente haja vários erros, a tradução livre era o único método

disponível), a segunda confrontando minha proposta de leitura dos autores com

abundantes trechos originais em notas de rodapé, voltados para o público mais

especializado. No caso das citações, preferimos abertamente pecar pelo excesso que

pela falta, não só para dar espaço aos originais (o que pode minimizar o impacto de

eventuais erros de tradução) como para possibilitar que quem estiver lendo encontre,

nos textos, possibilidades de leituras que nós não vimos.

O esforço de tratar autores como “nativos”, e seus livros como objetos de estudo,

coloca algumas dificuldades. No caso de uma etnografia, ainda que as interpretações

oferecidas possam ser equivocadas, o trabalho de registro, produção e publicação de

“dados etnográficos” pode ser considerado como um valor em si, e será um mérito a

mais caso a sua apresentação esteja tão bem feita a ponto de permitir que uma leitura

distante no tempo e no espaço identifique algo que a/o autor/a não viu que estava lá. Em

nosso caso, o mero “registro” do que foi dito não tem absolutamente nenhum valor em

si, uma vez que trabalhamos com “falas” já publicadas. Reproduzi-las pura e

simplesmente seria desperdício de tempo e de papel. É preciso dizer algo diferente, mas,

ao mesmo tempo, é preciso ser sempre fiel aos autores, ao que eles originalmente

queriam dizer. Queremos costurar textos díspares e organizá-los segundo princípios que

lhes são alheios, sem deformar-lhes a figura.

As saídas que buscamos poderão ser julgadas ao longo da dissertação. Por agora,

notemos que o esforço em dizer algo novo a partir do mesmo é parte da resposta à

incômoda questão, “para que escrever isso?” Fugindo dos termos dos debates sobre o

Haiti para tomá-los como objeto, e identificando aí padrões persistentes, nossa

ignorância do assunto (pois certamente os autores aqui tratados conhecem os temas com

que trabalham muito melhor do que eu) pode se converter em uma vantagem. Por não

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7

sermos haitianos, por desconhecimento prévio da história desse país e de seus dilemas,

pela ausência quase total de uma tradição de estudos produzidos no Brasil sobre o Haiti

(ao contrário da volumosa produção proveniente de países como Estados Unidos,

França, Canadá, além, é claro, do próprio Haiti, há muito tempo envolvidos no debate),

tudo nos parece novo e estranho. Nossa aposta é que a leitura crítica dessa literatura, ao

evidenciar um formato subjacente a diferentes formulações, nos permitirá formular

questões diferentes, pensar descrições mais positivas, evitando alguns buracos negros

que parecem capturar muitas atenções.

Talvez não seja supérfluo lembrar que tomar o distanciamento necessário para

tratar livros como atos discursivos não significa de forma alguma que o que os livros

dizem não seja real. Há poucas coisas tão reais quanto a fome ou a sede. Tais narrações

sobre a nação10

são perfeitamente reais, práticas, possuem efeitos, organizam a

realidade, atribuem responsabilidades, são campos de batalha. Contudo, não nos

preocuparemos em fazer referência a uma suposta realidade exterior aos textos (como se

houvesse uma realidade, objetiva, material, unívoca, a partir da qual surgissem uma

infinidade de interpretações subjetivas, mentais, dadas a erros e acertos, dos quais o

maior ou menor adequamento à realidade unívoca seria o critério de julgamento), mas

sim em tratar os textos como uma realidade em si. Livros, narrativas, idéias, possuem

uma organização interna própria, mas isso não significa, de forma alguma, que estejam

desconectadas do “mundo lá fora”.11

Como acontece, de forma mais geral, com as

práticas, os livros são simultaneamente parte dos mundos objetivo/material e

10

Ecoamos os termos usado por Homi K. Bhabha em Narrating the nation (1990), onde o autor propõe a

leitura da nação como uma linguagem, no sentindo de que importa mais captar a articulação entre os

elementos que os elementos em si. Embora não desejemos parar para discutir as idéias deste autor, é justo

mencionar que sua formulação de uma ambivalência fundamental e intrínseca à idéia de nação (da qual

uma das formas é a contradição entre Unidade vs. Divisão) nos serviu de inspiração. 11

Mas se isolamos, em relação à língua e ao pensamento, a instância do acontecimento enunciativo, não

é para tratá-la como se ela fosse independente, solitária e soberana. É, ao contrário, para apreender

como esses enunciados, enquanto acontecimentos e em sua especificidade tão estranha, podem se

articular com acontecimentos que não são de natureza discursiva, mas que podem ser de ordem técnica,

prática, econômica, social, política etc. Foucault 2006:94.

Page 20: Construções do fracasso haitiano

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subjetivo/mental – a distinção parece mesmo deslocada, quando pensamos em termos

de práticas. Ao longo da dissertação, o conteúdo dos livros aparecerá muito mais que

suas diferentes leituras dentro do campo intelectual haitiano e estrangeiro, seus

possíveis usos em debates de outra natureza, como a formulação de políticas, projetos,

definição do destino de verbas etc. Seria uma parte importante, mas, devida minha falta

de fôlego para seguir adiante no tempo hábil, só aparecerá em menções pontuais. Se não

está sempre presente no texto, pelo menos sua possibilidade (sua presença virtual) deve

ser explicitada, e ser sempre mantida em mente durante a leitura, para que tentemos

desarmar, na medida do possível, a dicotomia entre representação e realidade.

As perguntas “para que” e “para quem se escreve?” também podem e devem ser

colocadas igualmente para os autores aqui tratados, ainda que não necessariamente

tenhamos as respostas. No caso de textos mais antigos e já amplamente comentados, seu

eventual efeito polêmico pode ficar muito claro.12

Mas nós trabalharemos com textos

muito recentes, cujos efeitos talvez ainda estejam por vir, e num contexto político no

qual somos estrangeiros. Nem sempre entendemos o que motiva as tomadas de posição,

entre quem exatamente as alianças e inimizades são travadas, a quem tal ou qual tipo de

argumento serve de munição.13

Certamente há mais do que aquilo que, no momento,

somos capazes de ver. Mas desde já podemos apontar algumas linhas gerais.

É digno de nota que todos os autores haitianos com os quais trabalharemos

tenham morado boa parte de suas vidas fora do país, como exilados políticos ou não.14

12

Ver, por exemplo, Hoffman (1990:183-197) sobre o impacto altamente polêmico que tiveram as idéias

de Jean-Price Mars (talvez o grande pai fundador da etnologia haitiana) entre a elite haitiana, e a

polarização gerada pela polêmica. 13

Se este texto, mesmo escrito em português, chegar a ser discutido por colegas haitianos/as, será para

mim ao mesmo tempo uma honra e um desdobramento imprevisível, já que não tenho nem clareza nem

controle sobre a quais usos este texto pode se prestar. 14

O que em si já é uma questão sobre a qual há discórdia. Quando o passado recente duvalierista

simbolizava todos os males do país, uma possível categoria de acusação é dizer que outra pessoa não foi

viver no exterior por discordância com o regime. Enquanto a mera migração de cérebros podia ser vista

como traição à nação, a oposição ao regime seria muito mais nobre. Trouillot discute a questão no

contexto da “politização obrigatória” gerada pelo regime. Ver The polarization of Nation (Haiti: state

Page 21: Construções do fracasso haitiano

9

Todos possuem alguma circulação internacional e dominam outras línguas. Assim, a

resposta ao “para quem?” começa pela língua. O kreyol é a língua nativa de 100% da

população haitiana, em todas as classes sociais. Fora do país, é uma língua pouco

conhecida e de baixo prestígio. Associada à oralidade, apenas recentemente tem havido

esforços sistemáticos de construir uma gramática e uma grafia padrão. O francês, desde

os tempos coloniais e ao longo de toda a história do país, foi e continua sendo a língua

oficial (a constituição de 1987 foi a primeira a conferir ao kreyol, ao lado do francês, o

mesmo estatuto). Falar “bom francês” é pré-requisito para pertença à elite. Falado

fluentemente pelas classes altas, o grau de domínio decresce quando passamos às outras

classes, até o grosso da população que entende pouco ou nada nessa língua.

Além de bem simbólico dotado de grande prestígio, o domínio da língua

francesa significa acesso ao mundo das letras e possibilidade de comunicação com o

mundo exterior. Mais da metade da população haitiana é analfabeta (Thomaz 200515

,

estima o índice geral de analfabetismo em 55%, e cita que, segundo Laënnec Hurbon,

em 1987, [mesmo] entre os “alfabetizados”, aqueles que tem acesso à escrita não

alcançariam mais que 10% da população total). Como até pouco tempo, desde a

against nation, pp. 177-181, em especial p. 180) Intelectuais da diáspora (“outside” intellectuals)

acusavam de conivência com o governo a intelectuais “de dentro” (“inside” intellectuals) que

agüentavam sobreviver em território haitiano. De qualquer forma, quando se fala de intelectuais, trata-se

de pessoas que gozavam de certo prestígio no Haiti que, em muitos casos, passaram a ocupar posições

subalternas nos países para onde migraram. Ver também Jadotte (2005:37-42) e Hurbon (1986:25-38).

A questão (“migram por melhores oportunidades econômicas ou para fugir de perseguições

políticas?”) ganha contornos diferentes quando se trata das classes populares. Encontraremos, à frente,

autores que escreveram para defender uma ou outra posição (“fogem da ditadura”: Hurbon, Trouillot,

Fatton, Jadotte / “fogem da miséria, procuram melhores oportunidades econômicas”: Étienne, Mats

Lundhal). Por agora, deve nos chamar atenção os termos em que se coloca tal debate, como se as duas

opções (miséria econômica/opressão política) fossem implicitamente auto-excludentes.

Um desdobramento dramático da questão foi o tratamento dado pelo governo dos Estados Unidos à

massa de emigrantes haitianas/os nos anos 1970s e 80s. Considerando que se tratava de uma migração

econômica, essas pessoas foram sistematicamente expulsas do país, em contraste o status de refugiadas/os

políticas/os facilmente concedido a quem chegasse de Cuba, o que tornava o trabalho de regularizar sua

situação em território estadunidense muito mais fácil. Nos Estados Unidos, tal posição do governo gerou

reações indignadas da comunidade negra, que acusava a política de racista. O caso é comentado em

detalhes em Nations unbound, de Bash, Schiller & Blanc (2000). 15

O texto foi publicado em inglês na coletânea Elite Perceptions of Poverty & Inequality, organizada por

Elisa Reis e Mick Moore. Contudo, não tive acesso a essa versão, e usei um manuscrito em português,

gentilmente cedido pelo autor. A citação das páginas acompanha esse manuscrito.

Page 22: Construções do fracasso haitiano

10

alfabetização, o francês era a única língua utilizada no sistema educacional haitiano, é

justo supor que os estimados 10% da população com acesso de fato ao mundo dos livros

sejam basicamente os mesmos 10% que dominam outras línguas, enquanto os outros

cerca de 90% são, na maior parte, monolíngües kreyol. A dicotomia lingüística separa

um grupo seleto, capaz de falar para fora e se comunicar com o mundo, e a maioria

cujos limites da possibilidade de comunicação são os limites do país.16

O campo discursivo de que trataremos aqui é dominado por essa elite letrada,

que escreve para seus pares e para blans. “O povo” aparece como um tema constante de

reflexão, mas sempre alheio ao debate (inclusive, como veremos, um dos temas centrais

é como sanar tal alheamento, como integrar “o povo” na “esfera pública”). Portanto, não

surpreende que o que foi publicado no Haiti, no Québec ou na França esteja em francês,

que o que vem dos Estados Unidos esteja em inglês, e nada em kreyol.17

Os autores em

questão escrevem “para fora” (ou “para fora” do país, ou para a elite, o que significa

“para fora” do “povo do Haiti” – essa idéia será melhor desenvolvida no segundo

capítulo). Contudo, eles são “de dentro”; são haitianos, falam o kreyol como primeira

língua, participam da vida nacional, reivindicam uma profunda intimidade cultural com

seu objeto de estudo, um acesso privilegiado a um mundo inacessível a blans.18

Vemos aí um duplo mecanismo de distinção.19

Primeiro, para falar

legitimamente sobre a nação, da qual “o povo” é uma parte fundamental, é preciso, em

16

A diáspora haitiana (bastante numerosa em países como República Dominicana, Estados Unidos,

Canadá, Bahamas, Cuba, Martinica, Guadalupe, França), da qual participam pessoas de todas as origens e

classes sociais, complica esse cenário, apresentado aqui de forma simplista. Mas na literatura, sempre que

a questão surge, o grosso da população é apresentado como falante apenas de kreyol. 17

Há uma exceção, Michel-Rolph Trouillot, que chegou a publicar um pequeno livro chamado Ti difé

boulé sou istoua Ayti. Mas o grosso de sua obra está em inglês. 18

A idéia de intimidade cultural é emprestada de Michael Herzfeld (1997). 19

Esse parágrafo parte de uma leitura interessada de um curto artigo de Pierre Bourdieu chamado Os usos

do “povo” (publicado em Coisas ditas). O autor escreve sobre o caso francês, analisando como que esse

termo vago (o “povo”, ou o “popular”) – e através de sua própria vagueza – constitui uma força nas lutas

internas próprias a diferentes campos (político, científico, religioso, artístico).

Para nossos fins, é particularmente interessante sua discussão sobre a interação entre língua padrão (no

caso, o francês com sotaque de Paris) e língua dominada (gírias, sotaques de regiões subordinadas a

Paris). O argumento do autor, basicamente, funciona assim: a língua padrão, legítima, se define pela

Page 23: Construções do fracasso haitiano

11

alguma medida, possuir atributos que “o povo” não possui, como alto grau de

escolaridade, domínio de outras línguas e de uma terminologia quase técnica. Por outro

lado, essa elite letrada é tão haitiana (e muitas vezes tão negra) quanto a avó negra

camponesa analfabeta que vive isolada nas montanhas (como veremos adiante,

nenhuma destas qualificações foi inventada por nós, nenhuma é gratuita). É preciso

compartilhar atributos com “o povo”, atributos que intérpretes estrangeiros não

possuem. A distância cultural/nacional postulada (“há algo sobre o Haiti que blans não

conseguem entender”20

) pode se replicar em outras distâncias, como classe ou raça. No

debate, o postulado da exterioridade blan pode se converter numa série de acusações –

tal idéia sobre o Haiti é colonialista, tal outra é racista.21

Essa intimidade cultural dos

autores funciona como um mecanismo de autoridade, um tipo de acesso privilegiado à

haitianidade, ao “povo” ou à elite nacional.22

exclusão dos traços dominados (em uma relação paralela à relação entre cultura e natureza). Assim, a

tentativa de inverter a relação de força, legitimando as formas dominadas, é em si um efeito paradoxal da

dominação. O esforço de converter a “língua dominada” em “cultura” gera um tipo de looping ou curto-

circuito no sistema, no qual grupos estigmatizados passam a reivindicar o estigma como identidade. Há

uma contradição insolúvel, na qual a submissão à norma pode ser libertadora (dominar o francês culto

seria portanto uma forma de apropriar-se das armas da opressão) e a resistência pode ser alienante

(recusar a norma de Paris, apegando-se a características, por exemplo, regionais, particularizaria as falas,

limitando sua circulação/validade apenas à região ou aos grupos de onde vieram). Portanto, seria inviável

escolher entre “submissão” e “resistência” – os termos estariam mal colocados, ainda presos no mesmo

curto-circuito paradoxal. O argumento é iluminador para pensarmos as relações entre francês e kreyol. 20

Confrontar, em outro registro, com a crítica de Dale Tomich ao livro Silencing the past de Michel

Rolph Trouillot, no qual o autor construiria grandes unidades homogêneas e internamente coerentes como

“o pensamento ocidental” ou “as rebeliões escravas”. Para Tomich, os usos contextuais dos significados e

palavras, as construções práticas do sentido, se perderiam em meio a uma suposta ontologia que, ao

aparecer como estrutura distinta, independente, durável, internamente unificada e externamente fechada,

regularia o que é pensável ou não. Assim, o campo ficaria divido entre insiders, que entendem o que está

acontecendo, e outsiders, que não só não entendem como não podem entender. Ver Tomich 2009. 21

Não queremos, de forma alguma, dizer com isso que não haja idéias colonialistas e racistas. Sem

dúvida há, como veremos em breve. Mas o que está em questão aqui não é o mérito das idéias, não é seu

conteúdo – é uma acusação que, pela exterioridade da fala (e não se trata de uma exterioridade qualquer,

mas de uma relação hierárquica, na qual o lado de fora é mais poderoso que o lado de dentro), já está

configurada de antemão, potencialmente, como que esperando uma ocasião propícia para se manifestar. 22

Por exemplo, contando um incidente banal de trânsito que acabou desencadeando a fúria popular anti-

makout característica do pós-1986 e uma violenta reação policial, Hérard Jadotte descreve, en passant, o

ambiente em volta: Tout ceci se passe dans une atmosphère de désordre organisé et pacifique dont les

haïtiens seuls connaissent le secret (Jadotte 2005:18 – meu grifo). Ou ainda, o significativo comentário

confessional contido no prefácio de Robert Fatton Jr.:

This book relies heavily upon, and could not have been writen without, secondary sources; but it‟s

also a journey into my own roots. Born into the Haitian elite and having deep personal ties of affection to

it, I am well acquainted with its behavior, mentality and prejudices. I have been privy to its “hidden

Page 24: Construções do fracasso haitiano

12

O escopo da literatura tratada em detalhes aqui é curto, mas se levarmos em

conta que nenhum livro é uma unidade fechada em si, mas um ponto em uma rede

através de suas conexões com outros textos, a forma como seus dados e conclusões se

sustentam reciprocamente, e como apontam para outros livros, nos veremos diante de

todo um campo discursivo, cujo mapeamento pretendemos apenas começar.23

Existem

desacordos entre os livros em questão, as interpretações e conexões causais

estabelecidas em cada caso não são as mesmas, mas há também uma série de acordos

tácitos, pontos de partida e questões comuns. Se nosso mapeamento não tiver sido um

fracasso total, podemos ter certeza de que os eixos temáticos identificados aqui a partir

dum pequeno conjunto são válidos para um número muito maior de textos. A inclusão

de outros trabalhos traria novos detalhes, modificaria um ponto ou outro, mas, se essa

pesquisa tiver alcançado seu objetivo, o esquema apresentado funcionará sem

necessidade de grandes ajustes.24

discourse” and know what it really thinks; I have heard its “unspoken thoughts”. I thus know the chasm

separating the words whispered in the intimate salons of Pétion Ville from those publicly voiced. I am

disturbingly familiar with its contempt for le peuple. (Fatton 2002:xii) 23

É Michel Foucault quem propõe a implosão da suposta unidade do livro na análise dos campos

discursivos: ... os limites de um livro nunca são nítidos, nem rigorosamente distintos: nenhum livro pode

existir por si mesmo; ele está sempre em uma relação de apoio e de dependência em relação a outros; é

um ponto em uma rede; comporta um sistema de indicações que remetem – explicitamente ou não – a

outros livros, textos e frases; e, conforme se relacione com um livro de física, uma coletânea de discursos

políticos ou um romance de ficção científica, a estrutura de atribuição, e, consequentemente, o sistema

complexo de autonomia e heteronomia não será o mesmo. O livro se compraz em se oferecer como objeto

que se tem na mão; satisfaz-se em compactar-se nesse pequeno paralelepípedo que o fecha; sua unidade

é variável e relativa; ela não se constrói, não se indica e, consequentemente, apenas pode ser descrita a

partir de um campo de discurso. Foucault [1968] 2006:89. 24

Em sua proposta de análise estrutural dos mitos, Lévi-Strauss discute a questão das múltiplas versões,

descartando a possibilidade de que uma versão seja privilegiada frente às outras. Embora não façamos

aqui uma análise lévi-straussiana – e, como já indicamos, não se trata de discutir as idéias desse autor – há

um paralelo na intenção de identificar os motivos principais que integram um certo conjunto de

narrativas. No caso dos estudos de Lévi-Strauss, o autor considera que uma nova versão de um mito de

fato poderá colocar em xeque os resultados atingidos quando houver um número muito pequeno de

versões, mas que a questão perde relevância à medida que o número de versões cresce. Apenas a

experiência poderia determinar, em cada caso, quantas versões seriam necessárias, mas seu número não

precisa ser muito alto. Com a metáfora de um jogo de espelhos, o autor estima que quatro ou cinco

imagens bastariam, senão para nos fornecer uma informação completa, pelo menos para dar a certeza

de que nenhum móvel importante teria sido deixado de fora. Lévi-Strauss [1958] 2008:235.

Para um uso dessas idéias no contexto dos Estados Nacionais, ver Neiburg 1997 e Herzfeld 1995.

Page 25: Construções do fracasso haitiano

13

Não resta dúvida de que os temas que aparecem aqui não são exclusividade de

livros, são também comuns a fontes de outra natureza, como textos jornalísticos,

diagnósticos de organismos internacionais, relatórios escritos para agências de

cooperação e doadores, entre outros. Muitas vezes as mesmas pessoas escrevem e

publicam em registros diferentes. Se trouxermos para o foco estes outros registros

teremos a configuração de campo muito mais amplo, que necessitaria de outro trabalho

para ser propriamente mapeado. Aqui ofereceremos apenas indicações esparsas de como

os mesmos temas são mobilizados em outros registros.

O que unifica produções tão díspares é o assunto em torno do qual todas giram:

“o Haiti”. A definição é menos trivial do que parece. Independente da área de origem

dos autores (há circulação entre diferentes formações, mas, grosso modo, no caso temos

dois cientistas políticos, dois jornalistas, dois antropólogos e um sociólogo), vemos em

todos os livros alguma transdisciplinaridade, passando também pela história, geografia,

economia, folclorismo/etnologia, relações internacionais, demografia, contabilidade,

ecologia. É nesse esforço em cobrir diferentes aspectos da realidade que se constitui “o

Haiti”, o país como um todo, como unidade de análise. Tal construção conceitual às

vezes é explícita (especialmente, Trouillot 1990), às vezes simplesmente toma o Haiti

como entidade auto-evidente, dispensando explicações quanto à construção do objeto. É

como se, dentro daquela unidade espacialmente delimitada, tudo – de sotaques a

montanhas – contribuísse para formar uma imagem englobante, conferindo uma

haitianidade que não só impregnaria os detalhes mais prosaicos da vida cotidiana, como

também se manteria mais ou menos estável por pelo menos dois séculos. Obviamente,

este é um processo comum a vários nacionalismos, mas não nos cabe discutir o processo

Page 26: Construções do fracasso haitiano

14

nesse nível de abstração, senão buscar como, no caso haitiano, funcionam as formas

para falar sobre a nação.25

Debates sobre questões nacionais são antigos entre a intelectualidade haitiana.

Algumas das questões levantadas aqui poderiam ser facilmente remetidas a textos

escritos mais de um século atrás. Contudo, para não nos perdermos em mais de

duzentos anos de produção literária, adotamos um marco temporal.

Em 7 de fevereiro de 1986, uma série de revoltas e protestos culminou na fuga

do até então presidente do Haiti, Jean-Claude Duvalier. Foi o fim de uma ditadura que

estava no poder desde 1957, quase trinta anos somando as presidências de Jean-Claude

e de seu pai e antecessor, François Duvalier. Após décadas de censura e perseguição a

opositores, a queda do regime abriu um novo espaço público no qual diversas/os

agentes discutiam os rumos do país, os erros do passado e como evitá-los no futuro. Há

tempos que esse tipo de crítica era impossível de ser publicada, pelo menos em território

haitiano. Os livros com que trabalharemos são desse contexto pós-Duvalier, alguns

imediatamente depois da queda da ditadura, outros escritos vários anos mais tarde.

Democratização é uma questão central em todos esses livros (embora, e a

ressalva faz toda diferença, a palavra democracia seja usada em sentidos muito

diferentes), como projeto para o futuro, contra um passado autoritário. Este passado é

tema constante de reflexão, em geral como um tipo de anti-modelo, do que deveria ser

25

Pensamos em construções conceituais de “nações”, ou “sociedades nacionais”, num sentido muito

próximo do que Richard Handler (1988:23) chama de epistemologia da entitividade, que significa tratar

sociedades, ou o que quer que seja, como coisas. O autor argumenta que no momento fundador das

ciências sociais, contemporâneo de uma onda nacionalista, o esforço de construir sociedades como objeto

de estudo implicou aceitar que estas possuíam características especificamente suas, com fronteiras

discerníveis. Com essa finalidade, somaram-se os esforços de especialistas em assuntos aparentemente

tão díspares quanto folclore, história, musicologia, geografia e lingüística. Do conjunto desses campos,

surgiria o espírito da nação, conceito que integra costumes, fatos típicos, idioma, danças, canções, obras

literárias, religião, e as características geográficas de um dado território tais como montanhas, lagos,

florestas, pântanos. Handler diz que tudo isso está no campo semântico da idéia de propriedade, quer

dizer, daquilo que é próprio a uma dada nação (logo, sobre o que ela possui direitos exclusivos). Essa

idéia se insinuaria sub-repticiamente sempre que imaginamos um grupo ou uma cultura como um todo

coerente, coeso e bem delimitado. Essa idéia de fundo seria compartilhada entre as ciências sociais e os

nacionalismos, dois discursos lógica e historicamente cheios de sobreposições e interpenetrações.

Page 27: Construções do fracasso haitiano

15

evitado dali em diante. Mas tal como descrito nesta literatura, o passado do Haiti nunca

chega a se tornar apenas passado. Evocando o termo consagrado por Lévi-Strauss

([1958] 2008:225) em sua análise estrutural dos mitos, nos vemos diante de um

esquema dotado de eficácia permanente, uma história, ao mesmo tempo, diacrônica e

irreversível (a sequência de fatos que vem da colônia de Saint-Domingue para

desembocar no presente), e sincrônica e reversível (posições e conflitos atemporais, que

são identificados em 1804 como em 2008). É nesse sentido que pensamos a história

haitiana, tal como narrada nas obras das quais trataremos, como uma mitologia

nacional.26

Nas narrativas, a história se repete, e muito mais frequentemente que não, o que

se repetem são erros e/ou crimes. O caminho de erros e crimes que o Haiti (e outros

países em seu relacionamento com o Haiti, em especial no caso dos crimes) teria

percorrido nos últimos dois séculos o teria conduzido a sua situação atual, que os

autores qualificam como desesperadora, de extrema desigualdade e miséria generalizada

para a grande maioria da população, sob dominação estrangeira, desastre ambiental e

econômico, isolamento, esquecimento,27

falência econômica, sistema político violento e

autoritário, instabilidade crônica, entre outros. Em suma, os livros em questão tratam o

Haiti como um Estado fracassado econômica e politicamente. Há também tendência

geral a pensar o Haiti através de lacunas, de descrições negativas: não há representação

26

A noção de mitologia nacional foi mais bem desenvolvida, no contexto da Argentina, por Federico

Neiburg. Os mitos de origem funcionam como máquinas de suprimir o tempo (a metáfora é de Lévi-

Strauss), narrativas que contém uma série de acontecimentos ao mesmo tempo em que permitem

interpretar estruturas sociais contemporâneas e delinear sua evolução futura. Ver Neiburg 1995:228-237. 27

Parece significativo que a idéia de que “o Haiti” foi esquecido pelo “mundo” apareça com grande

frequência em Wargny, único autor não haitiano do Corpus, enquanto nos outros, se a idéia não está de

todo ausente, recebe uma ênfase muito mais rala. A construção do que seria “o mundo” também merece

ser levada em conta. Em Wargny, as fontes evocadas para ilustrar o suposto esquecimento do “mundo”

são os jornais (franceses?), que só publicariam algo sobre o Haiti quando acontecesse alguma desgraçada

natural ou política, a galaxie Gutenberg (?) e a internet, que conteriam informações escassas (e todas

conotadas negativamente) dessa nação que não existe (assim como a Somália ou a Libéria). Seu livro

começa com a imagem de um/a leitor/a virtual pesquisando sobre o Haiti, na internet, nos jornais,

descobrindo, por exemplo, que Haïti n‟est pas en Afrique (Wargny 2008:14).

Page 28: Construções do fracasso haitiano

16

política, não há monopólio fiscal nem do uso da força legítima, não há legitimidade, não

há um Estado moderno, não há infra-estrutura, não há uma burguesia consolidada, não

há proletariado. No limite, não há Haiti, como mostra o significativo título do livro de

Cristophe Wargny: Haïti n‟existe pas.28

Se o fenômeno é mais ou menos generalizado, a

intensidade com que essa tendência é seguida por cada autor varia bastante.

Passamos, então, a apresentar os livros em ordem cronológica. Ainda em 1986,

poucos meses após a queda de Baby Doc, a editora Henri Deschamps publicou, em

Porto Príncipe, um livro de Michel-Rolph Trouillot chamado Les racines historiques de

l'état Duvaliérien. Trouillot formou-se doutor em antropologia na universidade John

Hopkins, sob orientação de Sidney Mintz, e mais tarde tornou-se professor de

antropologia e ciências sociais da Universidade de Chicago. Com o conceituado

Silencing the past (1995), Trouillot se tornou provavelmente o autor haitiano mais lido e

reconhecido internacionalmente. Todos os outros livros tratados aqui fazem referência a

um ou outro de seus textos. Em Les racines historiques de l'état Duvaliérien, ele

analisou as continuidades e descontinuidades na história haitiana, argumentando que

apesar da longa história de governos autoritários, o regime dos Duvalier seria diferente

de todos seus predecessores, um caso-limite, sistematização de um totalitarismo inédito.

Alguns anos mais tarde, Trouillot organiza a tradução de seu livro para inglês. Em 1990,

foi publicado com o título Haiti: State against Nation. No prefácio, Trouillot explica

que o livro original em francês era um panfleto escrito especificamente para a elite

haitiana, com a intenção política de se opor ao regime recém-derrubado e pensar e

propor meios viáveis de evitar sua perpetuação. Estava movido pelo receio de que o

Duvalierismo sobrevivesse à queda de Jean-Claude, o que, no texto em inglês, ele

28

Neste ponto muito semelhante ao que James Ferguson mostra a respeito de um campo de debates sobre

a África, em que o continente negro aparece como metáfora da ausência, em contraponto à existência

plena do Ocidente. Today, for all that has changed, “Africa” continues to be described as through a

series of lacks and absences, failings and problems, plagues and catastrophes (Ferguson 2007:2).

Page 29: Construções do fracasso haitiano

17

afirma que de fato aconteceu. Traduzir ao inglês implicava dirigir-se a um público não-

haitiano, o que tornou necessário rechear o livro com contextualizações históricas

supérfluas (na opinião de Trouillot) para o público haitiano (de elite), reformulação que

cresceu até gerar uma obra nova. Aqui trabalharemos com a versão em inglês, Haiti:

Nation against State.

O segundo livro, publicado simultaneamente em Porto Príncipe e em Paris, em

1987, também no calor da queda de Duvalier, é Comprendre Haïti – Essai sur l‟État, la

Nation, la Culture, do sociólogo e ensaísta Laënnec Hurbon. O autor possui uma vasta

produção, que passa por vários assuntos. Formado na Sorbonne em sociologia e no

Instituto Católico de Paris em teologia, ele se tornou uma das referências mais

importantes em estudos sobre vodu e religião no Haiti. Assim como Trouillot, todos os

outros autores trabalhados aqui fazem referência a algum de seus trabalhos. É

pesquisador do CNRS [Centre Nationale de la Recherche Scientifique] da França, país

onde viveu muitos anos, e membro fundador e professor da Universidade de Quisqueya,

em Porto Príncipe. Suas obras foram traduzidas para várias línguas, inclusive o

português.29

O livro com o qual trabalharemos principalmente é uma coletânea de nove

ensaios que buscam articular religião, cultura e política, em torno da questão mais difícil

tanto no plano prático quanto teórico, a saber, a questão da natureza do Estado, de sua

gênese, sua racionalidade, ou mais simplesmente seu modo de inscrição na sociedade

haitiana (Hurbon 1987:9). A religião ocupa aqui um lugar mais importante que no

estudo de Trouillot, embora as questões urgentes do período pós-Duvalier sejam

basicamente as mesmas – onde estamos? Que fazer? Em que direção conduzir o país?

Como banir o legado autoritário? Como construir a democracia? A relevância atribuída

à religião leva a novas questões, como por exemplo: é possível sair do duvalierismo sem

29

Há uma edição da Editora Paulina, de 1988, chamada O Deus da Resistência Negra – o Vodu Haitiano.

Page 30: Construções do fracasso haitiano

18

sair também da confusão entre política e religião, que tão frequentemente pesa sobre as

estruturas sociais no Haiti? (Hurbon:1987:9) O autor se propõe a um estudo

genealógico sobre o Estado, e faz menções constantes à história haitiana. Contudo, ao

contrário de Trouillot (entre outros), Hurbon usa episódios específicos, sem o esforço

sistemático de recontar a história como um todo.30

O próximo livro é Le pays en dehors – essai sur l‟univers rural haïtien, de

Gérard Barthélemy, cuja primeira publicação, em Porto Príncipe e em Montréal, é de

1989. Versado em várias áreas do conhecimento (antropologia, economia, etnologia,

ciência política, artes plásticas), o francês Barthélemy viveu no Haiti por cerca de vinte

anos, trabalhando como consultor em projetos de desenvolvimento voltados ao meio

rural haitiano. Essa experiência teria fornecido os dados empíricos a partir dos quais ele

escreveu parte significativa de sua obra.31

Após ter ensinado antropologia na Université

de Paris VII, tornou-se, em 1991, professor de antropologia do desenvolvimento na

Universidade do Estado do Haiti. Morreu em 2007, aos 73 anos. Le pays en dehors é

sem dúvida sua obra mais influente, o livro transformou-se em um clássico na ciência

social haitiana. Todas as publicações posteriores com que trabalhamos o citam. Aqui

encontraremos uma das formulações mais sistemáticas de um tema que está sempre

presente, a saber, a tese dos dois Haitis, à qual voltaremos em maiores detalhes à frente.

Barthélemy se apóia na obra de Pierre Clastres Sociedade contra Estado para mostrar

que no Haiti há duas culturas que se definem por oposição mútua. De um lado, o

Estado, a cultura urbana, institucionalizada, que detém todo o poder legal. Do outro, o

campesinato, que possui uma cultura totalmente distinta, não exatamente contra o

30

Se é que essa distinção faz sentido. Toda “história como um todo” é contada a partir de episódios. A

questão é que Hurbon não tenta ser exaustivo, não segue uma cronologia com começo, meio e fim. 31

Laënnec Hurbon, que assina o prefácio do livro, apresenta o autor assim: Gérard Barthélemy est assez

connu pour as longue expérience d‟Haïti, sa pratique d‟homme de terrain, soucieux de la transformation

de la realité sociale et politique haïtienne, pour qu‟on soit dispensé d‟avoir à le presenter au lecteur. Em

Barthélemy 1989 :9.

Page 31: Construções do fracasso haitiano

19

Estado, como na teoria de Clastres, mas sim fora do Estado, uma cultura autonomista,

igualitária, que se construiu a partir da esquiva ao sistema capitalista e estatal, como

descendentes diretos dos marrons [quilombolas32

], escravos/as que fugiam do sistema

de produção colonial e escravista para sobreviver nas montanhas, de difícil acesso, à

margem das plantations. O livro inteiro se baseia em uma dicotomia do século XVIII

entre Créoles (viviam sob um regime escravo, mas tinham nascido em Saint-Domingue)

e Bossales (nascidas na África, capturadas e trazidas para trabalhar nas plantations do

novo mundo). Basicamente, a cultura oficial, legal, estatal, seria a cultura Créole,

enquanto que a marron, da esquiva, igualitária, da negação do sistema, seria a cultura

Bossale. Uma característica que distingue este livro do resto do Corpus é ser claramente

escrito para um público haitiano – enquanto livros como o de Hurbon e Trouillot

sempre gastam alguns parágrafos para explicar quem são os personagens citados,

mesmo os mais famosos heróis da revolução haitiana como Toussaint Louverture ou

Jean-Jacques Desssalines, Barthélemy por vezes refere-se a personagens muito mais

obscuros sem se importar em explicar quem foram, além de pressupor que suas leitoras

e leitores já conheçam histórias de Ti Malis e Bouki,33

além de trazer longos trechos em

kreyol sem tradução para o francês.

Estes três primeiros livros são do período imediatamente pós-duvalier, no qual

tentava-se lançar as bases de um novo regime político no Haiti. Em 1990, aconteceram

as eleições em que Jean-Bertrand Aristide chegou à presidência, com grande apoio

popular e um forte discurso contra o recém-derrubado duvalierismo. Após sete meses de

32

A palavra francesa marronage, que às vezes aparece escrita em kreyol (mawonaj), refere-se à fuga do

trabalho escravo nas plantations. Em português, quilombo ou quilombola aparecem como traduções

possíveis, mas que podem gerar confusão devido ao novo sentido que os termos adquiriram após a

constituição brasileira de 1988, que estabelece políticas agrárias voltadas aos remanescentes dos

quilombos. Eventualmente traduziremos a palavra, mas para não confudir os contextos é essencial manter

em mente que, no Haiti, não se trata de uma categoria com efeitos jurídicos. 33

Ti Malis e Bouki são dois personagens que povoam vários contos da tradição oral haitiana e também

figuram nos livros escolares. Até onde sabemos, são muito pouco conhecidos fora do Haiti. Eles

aparecem nas mesmas histórias, Bouki no papel do tolo, e Ti Malis no papel do sagaz.

Page 32: Construções do fracasso haitiano

20

governo, a junta militar que organizara a transição política, comandada pelo general

Raoul Cédras, protagonizou um violento golpe de Estado, perseguindo e eliminando

adversários políticos. Aristide foi para o exílio nos Estados Unidos. O novo regime

militar não foi reconhecido internacionalmente, e houve extensas negociações para a

volta de Aristide, que culminaram com um embargo contra o Haiti que gerou uma crise

alimentar e econômica. Em 1994, uma intervenção militar dos Estados Unidos invadiu o

país para restabelecer Aristide em suas funções, faltando cerca de um ano para o fim de

seu mandato. Em 2001, Aristide foi eleito pela segunda vez, agora em eleições

fortemente contestadas. No início de 2004, a tensão estorou em conflitos armados entre

grupos pró e contra Aristide. Ele partiu novamente para o exílio, e as Nações Unidas

formaram uma missão (MINUSTAH) para estabilizar o país. Essa missão continua

ocupando o país, e não há prazo para seu fim.

Portanto, passamos agora a outro momento. Publicado mais de dez anos depois,

em 2002, o próximo livro é Haiti‟s predatory republic – the unending transition to

democracy, de Robert Fatton Jr. O autor cobre um período de quinze anos, desde a

queda de Jean-Claude Duvalier em 1986 até a crise institucional de 2001, quando a

oposição se recusava a reconhecer a legitimidade das eleições em que saiu derrotada.

Embora acreditasse que as coisas tomariam outro rumo, Fatton traz vários indícios de

que Aristide seria derrubado. Isso aconteceu cerca de um ano após a publicação do

livro. Segundo o autor, o que ele escreve é a história da morte gradual de um momento

de utopia, no qual parecia possível libertar o povo [the people] de décadas de opressão e

pobreza. Os acontecimentos posteriores o levaram ao pessimismo em 2001. Professor

do departamento de governo e relações internacionais da Universidade de Virginia, nos

Estados Unidos, Fatton pretende contribuir criticamente para a dita teoria da

democratização. Assim o caso haitiano aparece referido a reflexões mais abstratas sobre

Page 33: Construções do fracasso haitiano

21

o sentido da democracia e suas condições de possibilidade, com algumas menções

comparativas sobre como o processo aconteceu (ou deveria ter acontecido mas falhou)

em outros países que, antes dominados por governos ditatoriais, passam a organizar

eleições. Embora a palavra democratização esteja presente em todos os livros, Fatton é

o autor que mais investe na questão. Ele escreve contra teorias liberais e definições

minimalistas de democracia que seriam sustentadas por instituições como o Banco

Mundial e o Fundo Monetário Internacional, acusando-as de conceber a democracia

através da equação eleições livres regulares + liberdade de mercado + imprensa livre.

Ele argumenta que mesmo que eventualmente se cumpram tais requisitos minimalistas,

o que se constrói no Haiti é uma democracia predatória, um sistema de ganância e

injustiça capaz de comer a dignidade de pessoas boas, que quando chegam ao topo,

agarram-se às poucas posições de privilégio disponíveis e tornam-se tão malévolas

quanto qualquer elite que se mantém enquanto tal em meio a um mar de miséria. Sua

descrição aponta não só, mas em especial, para as lideranças do Lavalas, pessoas

honestas vindas de baixo que ao alcançar posições políticas importantes acabariam mais

e mais parecidas com seus ex-inimigos. Assim, o sistema se reproduziria apesar das

intenções sinceras daqueles que queriam derrubar o sistema.

O próximo livro é Le Carnaval de la Révolution – de Duvalier à Aristide, de

Hérard Jadotte, uma coletânea de artigos curtos, escritos entre 1986 e 2004, publicado

em 2005.34

Os textos passam por dois momentos, primeiro a euforia cheia de

esperanças, depois a desilusão com o fracasso da transição democrática. A questão

principal que atravessa os textos é a democracia e seus determinantes políticos e

culturais. Atualmente consultor em planificação da educação e secretário geral da

Université Notre-Dame d‟Haïti (informação na contracapa de seu livro), Jadotte é um

34

Há apenas uma exceção, um texto sobre a esquerda revolucionária haitiana, escrito em 1972.

Page 34: Construções do fracasso haitiano

22

jornalista político que partiu como exilado em 1965, vivendo no Québec, Canadá, até

1991, quando volta ao Haiti. Em seus textos mais antigos ele enfatiza seu ódio à

ditadura dos Duvalier e sua simpatia por uma possível revolução marxista-leninista-

maoísta no Haiti, enquanto os mais recentes adotam um tom mais conciliador e atacam

a falsa dicotomia entre duvalieristas e anti-duvalieristas A ambigüidade de sua posição

como autor simultaneamente “de dentro” e “de fora” é compartilhada, em algum grau,

com todos os autores citados,35

contudo Jadotte é quem a discute de forma mais

explícita. Ele chega a descrever alguns dos artigos como notas de um viajante curioso,

de volta após uma ausência de mais de vinte anos (por ocasião de uma visita ao país em

1986, logo após a queda da ditadura). O autor se debruça sobre três fenômenos que em

sua opinião marcaram sensivelmente a transição política do Haiti; a militarização doce

do laço social; uma forte demanda de legalidade e racionalidade que se encontraria nas

reivindicações populares mais correntes; e por fim a unificação do espaço público pós-

duvalierista através do kreyol (Jadotte, 2005:9). A segunda parte, intitulada Généalogie

des impossibles politiques, se propõe à análise do binômio democracia difícil e ditadura

impossível. Na terceira parte, há um estudo sobre a obra de Leslie Manigat.36

Nos

últimos textos, Jadotte aborda a passagem tortuosa da problemática da revolução para a

problemática da democracia. O livro termina no impasse político pelo qual passava o

segundo governo de Aristide, dias antes de sua queda, em fevereiro de 2004.

Os dois últimos livros do Corpus são L‟énigme haïtienne – échec de l‟État

moderne en Haïti (2007) de Sauveur Pierre Étienne, e Haïti n‟existe pas – deux cent ans

35

Trouillot começa sua resenha ao livro de Michel Laguerre Voodoo and Politics in Haiti, publicada na

American Ethnologist, comentando o fenômeno: Are anthropologists studying their culture of origins

subject to the same formulas of research and exposition as outsiders? What are the privileges and limits

of being native by birth and foreigner by training? (meu grifo) 36

Esse autor só não faz parte do Corpus por contigências da pesquisa. Um dos intelectuais mais

respeitados do Haiti, Leslie Manigat é também um homem político. Em 1988, ele chegou a ocupar a

presidência da república por alguns meses, indicado pela junta militar que se livrou dele pouco mais

tarde. Também foi candidato em outras eleições. Seus livros estão completamente inseridos no debate

haitianólogo. Suas idéias foram integradas no texto através das leituras de Jadotte.

Page 35: Construções do fracasso haitiano

23

de solitude (2008) de Cristophe Wargny. Sauveur Pierre Étienne é cientista político,

doutor pela Université de Montréal, professor-pesquisador pela Université de l‟État

d‟Haïti. Publicou outros livros sobre o fracasso político haitiano, como Haïti: l‟invasion

des ONG (1997) e Haïti: Misère de la démocracie (1999), todos pela editora da

Universidade de Montréal. Ignoro se chegou a ocupar cargos na política, mas seu livro

assume de forma muito aberta o partido da Convergência Democrática, que na época em

que ele escreveu era a grande força de oposição institucional ao então presidente

Aristide e a seu partido, o Lavalas.37

Seu livro conta com um prefácio de Laënnec

Hurbon, no qual ele louva o esforço de Étienne de abordar a fundo o problema do

Estado como uma das principais janelas pelas quais podemos nos aproximar do enigma

haitiano (Étienne 2007:11). Étienne encontra grande inspiração nas reflexões de Max

Weber sobre a racionalização da dominação política, que ao mostrar como as coisas

aconteceram na Europa, teria mostrado também como elas não aconteceram no Haiti.

Hurbon descreve assim o projeto geral do livro:

A evolução política recente, de 1986 até hoje, é analisada rigorosamente em função

das mesmas hipóteses teóricas aplicadas para o século XIX, como se desde as origens,

as dificuldades de emergência de um verdadeiro Estado moderno no Haiti são patentes

e parecessem inscritas no modo de formação da nação haitiana. (Hurbon no prefácio a

Étienne 2007:13)

[ L‟évolution politique récente, de 1986 à nos jours, est analysée rigoureusement en

fonction des mêmes hypothèses théoriques appliqués pour le XIXe siècle, comme si

depuis les origines, les difficultés d‟emergence d‟un véritable État moderne en Haïti sont

patentes et paraissent inscrites dans le mode de formation de la nation haïtienne.]

Já Christophe Wargny é um jornalista francês (Wargny e Barthélemy são os

únicos autores não-haitianos no Corpus), correspondente de Le Monde Diplomatique no

Haiti, além de ex-colaborador e ex-amigo pessoal de Jean-Bertrand Aristide. Assinou

em conjunto com este sua auto-biografia, Tout homme est un homme (1992). Mesmo

sendo francês, Wargny também reivindica seu pertencimento ambíguo. Ele fala “de

dentro” por amar o Haiti e por anos de militância junto a Aristide e ao Lavalas, com os

37

Fora a Convergência Democrática, havia grupos armados de oposição, como o chamado Exército

Canibal de Gonaïves e a FRAPH, grupo paramilitar comandado por Guy Phillipe.

Page 36: Construções do fracasso haitiano

24

quais ele mais tarde rompeu, e fala “de fora” (e, em especial, para fora) por ser

correspondente internacional e escrever para um público francês (até porque, talvez

pensando que mais de oito milhões de pessoas não valham a pena ser contadas como

alguém, ele afirma que o kreyol é une langue que personne ne comprend [uma língua

que ninguém fala (!)], inclusive o próprio autor. Wargny 2008:17). O livro de Cristophe

Wargny é o caso limite da descrição negativa, é quem mais gasta tinta provando o que o

Haiti não é, a começar pelo título; o Haiti não existe.

Estes dois últimos livros possuem em comum o notável esforço de recontar a

história haitiana como um todo, desde os tempos de Saint-Domingue, de dar um retrato

geral do país, de mostrar características que perduraram desde sua fundação em 1804

até hoje. Trouillot também nutre o projeto de recontar toda a história nacional para

explicar o presente, mas sua ênfase está na descontinuidade representada pelo

totalitarismo duvalierista. O futuro parecia aberto. Wargny e Étienne, escrevendo mais

de vinte anos após a queda da ditadura, contam uma história mais contínua, e de uma

continuidade circular, presa em si mesma, o futuro parecendo fechado. Para Étienne, a

questão básica é a não-emergência do Estado moderno no Haiti, cujos motivos ele

pretende investigar em sua dinâmica interna e externa, em três níveis ou escalas, macro,

âmbito das relações internacionais, meso, a máquina estatal em sua gestão dos conflitos

internos e suas respostas às pressões externas, e micro, a ação das elites políticas em

suas lutas pela conquista, exercício e conservação do poder. Ao colocar as três escalas

funcionando de forma articulada, o autor chega a um resultado idêntico no século XIX

como no XXI. Assim Étienne esculpe a imagem desse país que simboliza o fracasso

(2007:19). Toda a história não passa de uma sucessão de fracassos, e o fracasso de 1804

é o mesmo fracasso de 2004. Como veremos no próximo capítulo, não só mas

Page 37: Construções do fracasso haitiano

25

especialmente em Wargny e em Étienne, há uma essência haitiana que não cessa de

manifestar-se ao longo dos séculos.

Esses sete livros compõem o Corpus principal dessa dissertação. A convenção

da letra maiúscula, quando usada no resto do texto, indica esses e apenas esses sete

livros: Comprendre Haïti de Laënnec Hurbon, Haiti: State Against Nation de Michel-

Rolph Trouillot, Le pays en dehors de Gérard Barthélemy, Haiti‟s predatory republic de

Robert Fatton Jr., Le carnaval de la révolution de Hérard Jadotte, L‟enigme haïtienne de

Sauveur Pierre Étienne, e Haïti n‟existe pas de Cristophe Wargny. Três são de um

período imediatamente após a queda de Duvalier, três outros constatam anos mais tarde

o fracasso da transição democrática, e o último leva algumas tendências dispersas em

outros autores às últimas conseqüências, aparecendo mais como um caso-limite. Em

alguns livros certos temas se sobressaem, de forma que o aparecimento de cada obra ao

longo da dissertação não é uniforme.

Como já vimos, mais do que objeto da dissertação, o Corpus funciona como

entrada para um campo discursivo que é o verdadeiro objeto. A escolha dos textos é

relativamente contingencial e arbitrária. Outros textos que são referidos ao longo do

trabalho participam desse mesmo campo discursivo, constituído em torno de um objeto,

“o Haiti”. Apelamos a obras que não possuem todas o mesmo estatuto. Há textos que

compartilham plenamente o mesmo horizonte discursivo, como os artigos do

economista sueco Mats Lundhal (1989, 1991). Outros não. Por exemplo, o livro

Avengers of the new world de Laurent Dubois (2004) não é sobre “o Haiti”, mas sobre a

“história da revolução haitiana”, o que faz toda a diferença. Os conflitos são

contextualizados no tempo, não aparecem esquemas de eficácia permanente. Ou o

clássico Os jacobinos negros de C.L.R. James [1938], que é sobre “a história da

revolução haitiana” ao mesmo tempo que sobre “a resistência africana/afro-descendente

Page 38: Construções do fracasso haitiano

26

contra a opressão branca”, mas não está interessado n“o Haiti” no sentido que os livros

do Corpus estão.38

Enquanto o Corpus será esmiuçado em detalhes, os outros textos

aparecerão de forma bem mais pontual, ou para mostrar a generalidade da lógica contida

no Corpus, ou para mostrar outros olhares possíveis, ou ainda simplesmente para

complementar informações com mais fontes. Já os textos que servem como guias

teóricos quase não serão discutidos fora dessa introdução. Como já dissemos, não temos

nenhum interesse, nesse contexto, em discutir tais textos em si, não queremos escrever

uma sessão com o subtítulo de “marco teórico”, não queremos dessas idéias nada além

do que nos for imediatamente útil. Discuti-las num contexto mais afastado do tema da

dissertação serviria apenas para entediar quem lê.

A dissertação está divida em três capítulos. No primeiro, analisamos como a

história haitiana, em especial seu mito fundador, a revolução de 1804, é acionada em

cada um dos livros, como se constrói o encadeamento que desemboca no presente. Os

temas dos outros capítulos já aparecerão aqui, mas o foco estará na forma, ao mesmo

tempo histórica e atemporal, na qual estes temas são formulados.

O segundo capítulo traz a teoria dos “dois Haitis”, uma série de dicotomias

sobrepostas e replicadas, que disparam uma série de associações entre pares de idéias

opostas, e parecem estruturantes de vários argumentos. Nos textos com os quais

trabalharemos, as divisões interiores ao “Haiti” e ao “povo haitiano” são descritas de

38

Há em diversos autores uma mistura de temporalidades que funciona para marcar posições políticas

atemporais. No próximos capítulos veremos tais posições especificamente em solo haitiano. O horizonte

de James é outro, como ele mesmo diz no preâmbulo, o livro foi escrito tendo em mente a África e não o

Caribe (2000:12). Dois exemplos para mostrar como a fusão de tempo e espaço operada pode funcionar,

explicitamente, como arma política: Se não fosse a Revolução, esse homem extraordinário [Toussaint] e

seu bando de dotados sócios teriam passado a vida como escravos, servindo criaturas medíocres que

eram seus donos, permanecendo descalços e esfarrapados assistindo a pequenos governantes inchados e

medíocres funcionários da Europa passarem uns após os outros, assim como, hoje em dia [1938], muitos

africanos de talento o fazem na África. James, 2000:243. Ou, no posfácio de 1966: Toussaint

L‟Ouverture não está ligado a Fidel Castro apenas pelo fato de ambos terem liderado revoluções nas

Índias Ocidentais. [...] O que havia acontecido na São Domingos franceses entre 1792 e 1804 repetiu-se

em Cuba em 1958. Idem:344. (Mais: p. 46, 61, 88, 207)

Page 39: Construções do fracasso haitiano

27

forma crítica. Implícita ou abertamente formulada, parece ser generalizada a idéia de

que deveria haver uma unidade lá onde dualismos são constatados com tristeza.

No terceiro capítulo, passaremos às conexões causais, atribuições de

responsabilidade e culpas, de onde os autores crêem que vêm os erros que deixaram o

Haiti em sua atual situação, desde a exploração de grandes potências estrangeiras até

supostos “defeitos culturais”, como a mistura entre religião e política, a acusação de

esperanças messiânicas como um fator que minaria a política institucional moderna,

além de superstições, crenças sobrenaturais e profetismo de certos homens públicos, que

parecem atualizar no idioma da política moderna acusações mais antigas.

Na conclusão, faremos um balanço geral das questões levantadas por esse campo

discursivo que toma como assunto o Haiti enquanto entidade e unidade de análise, e

tentaremos indicar os contornos de uma agenda de pesquisa futura formulada sobre

outras bases.

Page 40: Construções do fracasso haitiano

28

#1 O peso da história.

O assunto principal deste capítulo são as continuidades, a forma como os autores

em questão montam circuitos causais que pretendem mostrar como a história (anti-)

colonial e (anti-)escravista deixou marcas profundas no Haiti, como o que acontece hoje

estaria intimamente relacionado com este passado. É claro que os autores do Corpus

reconhecem novidades, mudanças, descontinuidades. Contudo, as narrações da história

nacional descrevem também o nascimento de invariantes, de características culturais

que, uma vez estabelecidas, teriam se mantido de forma mais ou menos estável ao longo

do tempo. Veremos que, por vezes, eventos com mais de um século de distância entre si

chegam a aparecer no mesmo parágrafo, ou até na mesma frase, como exemplos de algo

que, por manifestar-se o tempo todo, está também fora do tempo. Dedicaremo-nos a

apresentar alguns esquemas de eficácia permanente encontrados no Corpus, aquilo que

há de mitológico na forma como se costuma narrar a história haitiana. Ao tomar este

tema como assunto, tratamos aproximamos conceitos mais sofisticados (como habitus,

longa duração ou aspectos estruturais) e idéias francamente essencializadoras e

transcendentais (como o Haiti mental, segundo a prodigiosa expressão de Cristophe

Wargny). Seria injusto jogar todos os autores no mesmo saco, e esperamos deixar claras

algumas diferenças entre eles ao longo do texto. Mas, de fato, há algo em comum.

Dentro do corpo deste trabalho, todos os autores que se dedicam a explicar os

problemas do Haiti contemporâneo o fazem apoiados em descrições do passado. Por um

lado, seria impossível tratar tais questões sem estudar sua gênese e desenvolvimento.

Mas, ao mesmo tempo, parece haver momentos privilegiados, pontos na história em que

teriam nascido problemas estruturais e perenes do Haiti, eventos que condensariam e

cristalizariam tudo que estava por vir.

Page 41: Construções do fracasso haitiano

29

Três dos autores (em especial Michel-Rolph Trouillot e Sauveur Pierre Étienne,

e com mais lacunas e de forma menos sistemática, Cristophe Wargny) dedicam partes

consideráveis de seus livros ao projeto de um apanhado geral da história haitiana,

começando com a colônia francesa de Saint-Domingue (reconhecida pela Espanha, até

então juridicamente dona de toda a ilha, em 1697) e seguindo cronologicamente até os

dias atuais (1990 num caso, 2007 no outro). Gérard Barthélemy não repassa toda a

história, mas concentra-se num período específico, com referências constantes à

configuração do fim do século XVIII e começo do século XIX, na qual se encontrariam

as chaves para compreender as questões de hoje (1989). Laënnec Hurbon também faz

menções constantes à história, ainda que pontuais, como às relações senhor-escravo, ao

Code Noir,39

à invasão dos Estados Unidos em 1915,40

à Campanha Anti-

Supersticiosa.41

É uma coletânea de artigos que abordam assuntos diferentes, não há um

esforço sistemático visando a história como um todo, mas para cada questão específica

(a inserção do Estado na sociedade haitiana, a confusão entre religião e política, a

obsessão de haitianas/os em deixar o Haiti, negritude e nacionalismo...) há gêneses

específicas nas quais eventos-chave são sempre acionados. Mesmo nos dois livros que

menos se dedicam a incursões históricas – Jadotte e Fatton – são comuns menções a

determinados eventos do passado para demonstrar a persistência de tendências antigas.

De fato, há alguns eventos-chave que os textos sobre o Haiti nunca falham em

mencionar.

39

Decreto aprovado pelo rei Luís XIV em 1685, que regulamentava as condições da escravidão nas

colônias francesas. 40

Os Estados Unidos ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Foi um evento marcante na memória nacional (tal

como contada pelos autores com que iremos trabalhar), que voltará ao texto algumas vezes. 41

Campanha promovida pela Igreja Católica no início dos anos 1940s, que atacou, basicamente, pessoas,

lugares e objetos associados ao Vodu.

Page 42: Construções do fracasso haitiano

30

Duas glórias e um enigma.

O principal evento-chave, que mesmo em textos jornalísticos de poucos

parágrafos dificilmente deixa de ser mencionado, é a revolução que transformou a

colônia francesa de Saint-Domingue no Haiti independente. No primeiro dia do ano de

1804, foi declarada a independência. A data condensa o processo (o conflito se estendeu

de 1791 a 1803) num instante fundador, quando nasce uma nova nação. Esse marco

funciona como um grande ponto de referência para tudo que diz respeito ao Haiti, e não

é raro encontrar uma frase que comece com “Desde 1804, ...” É algo paradoxal pensar

no nascimento de uma essência, mas, como veremos, é exatamente disso que se trata.

No mundo moderno, a revolução haitiana de 1804 foi a única revolução de ex-

escravos/as bem sucedida em abolir a escravidão e criar um novo país soberano, regido

por leis próprias.42

Alguns autores falam em uma tripla vitória em um conflito racial,

anti-colonial e de classe. Nascimento único que deu origem a um país único – apesar de

comparações eventuais com países da América Latina e África, diversas vezes os textos

falam (ou concordando ou para relativizar ou desmentir a idéia) em um excepcionalismo

haitiano43

, tanto em referência ao passado quanto ao presente. Grosso modo, os autores

reconhecem em 1804 uma glória cujo desenvolvimento posterior foi trágico (embora

por motivos e com sentidos variados, segundo cada autor).

Há ainda outra „glória‟ do passado que se transformou em tragédia: a própria

colônia de Saint-Domingue, diversas vezes referida como a colônia mais rica do

42

Embora seja muito discutida a extensão dessa soberania. Sem dúvida, o conceito é discutível em bases

mais amplas. Mencionamos a questão apenas porque se trata de uma acusação clássica na literatura, o

tema faz parte da “teoria nativa” (mesmo que se pareça com “teorias nativas” de outros lados).

Voltaremos ao tema em detalhes no último capítulo. 43

É certo que, do ponto de vista nacionalista, toda nação é única. Contudo, aqui estamos falando de uma

originalidade histórica tão frequentemente ressaltada que se tornou uma expressão nativa (daí seu uso em

itálico), uma fórmula. A alcunha já é bastante antiga. Barthélemy cita um texto de M. B. Bird, chamado

L‟homme noir ou notes historiques sur l‟indépendance haïtienne, datado de 1876. Neste texto lemos que

Haïti est considérée depuis longtemps comme un pays exceptionnel...

Page 43: Construções do fracasso haitiano

31

mundo, Pérola das Antilhas, entre outros.44

Em seu auge, por volta de 1780, Saint-

Domingue foi a maior produtora mundial de açúcar, e sozinha mais lucrativa que todas

as outras colônias francesas somadas. Grandeza altamente ambígua, já que toda essa

riqueza foi construída à base de trabalho escravo. Dependendo da perspectiva de qual

grupo está em jogo, Saint-Domingue pode ser narrada como um pesadelo ou como terra

de prosperidade – geralmente vem como ambas, embora as ênfases variem.45

A revolução haitiana, ao destruir a colônia e seu regime de trabalho escravo,

destruiu também a riqueza da ilha. As duas versões do „passado glorioso‟ se anulam,

uma é a negação da outra.46

Cada glória passada (riqueza vs. liberdade) conheceu na

outra não só sua antítese, mas o motivo de sua destruição, o que deu à revolução de

1804 um caráter exemplar. Assim, o empobrecimento da ex-colônia de Saint-Domingue

após 1804, o „fracasso do Haiti‟, desde muito cedo, teria sido usado de forma

intencional, política, maliciosa, como alerta e como exemplo, como prova da

incompetência de negras/os governarem a si mesmas/os.47

44

Barthélemy (1989:24), Wargny (2008:31 – Pérola das Antilhas, a ilha que vale um império. 38 –

colônia mais rica do mundo), Trouilot (1990: 37 – By 1789, Saint-Domingue was producing about 60%

of the coffee sold in the Western world and by the end of the century, it held world production records for

both sugar and coffee, becoming – at least from the point of view of the French mercantilists – the most

profitable colony in the world), Étienne (2007:55 – “eldorado agrocomercial”, desenvolvimento

prodigioso, 54 – a colônia mais próspera do mundo...), Hoffman (1990:9), entre tantos outros. 45

Étienne comenta o alto nível de desenvolvimento agroindustrial colocando a riqueza em números para

mostrar a importância do capital francês investido ali – algo entre dois e três bilhões de francos,

investidos principalmente em terras e maquinário para cultivo de cana, refinamento de açúcar, e cultivo

de café. Embora ele queira pensar a plantation em termos de investimentos, um pudor o impede de

assumir plenamente essa lógica. Fora do corpo do texto, em nota de rodapé, ele acrescenta a outra parte

da soma total: Dado que os Negros... eram contados como propriedades [biens meubles], podemos

estimar entre quatro e seis bilhões de francos o capital investido em Saint-Domingue. (Étienne 2007:

55,72). Com isso, a conta dobra de tamanho. Suas afirmações estão embasadas no trabalho do historiador

Pierre Pluchon. Após se colocar a pergunta de outro historiador haitiano, Benoît Joachim, eldorado ou

vulcão?, Étienne responde que era ambos, um eldorado construído sobre um vulcão.

Brenda-Gayle Plummer polemiza contra o que ela chama de the myth of great hidden wealth, que ela

julga ser derivado do mito espanhol de El Dorado; The prosperity thus generated benefited only a small

fraction of the population. The notion that Haiti could become fabulously wealthy did not recognize that

its people had never been rich. (Plummer 1988:6) 46

Étienne (2007:96) afirma que o nascimento do Estado pós-colonial haitiano foi o resultado do fracasso

de dois estadistas: o de Napoleão (em seu esforço de recolonizar a ilha) e o de Louverture (em seu esforço

de organizar Saint-Domingue sobre novas bases como liberdade geral e desenvolvimento econômico,

tornando-se o homem forte da colônia, e governador legítimo e reconhecido pela França). 47

Brenda-Gayle Plummer, por exemplo, comentando textos datados do século XIX e começo do XX,

conta que apologistas coloniais e reacionários/as usaram o mito da riqueza de Saint-Domingue,

Page 44: Construções do fracasso haitiano

32

De forma muito parecida, embora inversa, o “sucesso do Haiti” em seu processo

revolucionário é acionável como prova do protagonismo heróico e rebelde de

trabalhadoras/es africanas/os contra seus/suas algozes nas plantations, prova de que

mesmo as pessoas vivendo nas condições materiais mais desvantajosas, sob a vigilância,

opressão e terror brutais, são capazes de enfrentar e derrotar um dos exércitos mais

poderosos do mundo (como era o exército napoleônico no começo do século XIX). O

nascimento do Haiti foi um desafio e uma ameaça à ordem colonial.48

Sua história foi

recontada inúmeras vezes, usada para afirmar simultaneamente teses, propostas e

reivindicações não só opostas, mas inimigas.49

Daí a pergunta de Wargny: como se passou de uma independência gloriosa,

precursora e pioneira ao atual estado de desespero? (2008:11) De forma similar, no

prefácio ao livro de Étienne, Laënnec Hurbon enumera seqüências de fracassos,

mostrando com isso que há, portanto, um enigma haitiano, título do livro de Étienne,

que ele pretende solucionar em trezentas e poucas páginas. Ou ainda Jadotte: Para

sairmos de nossas “abjeções” atuais... precisamos compreender como chegamos tão

comparada à pobreza do Haiti, para provar que libertação de escravas/os significava apenas anarquia e

dissolução, minando portanto reivindicações de autonomia política de comunidades negras. Sobre os usos

difamatórios das idéias de vodu e magia (zumbis, feiticeiros, canibalismo etc.), Laënnec Hurbon escreve

que L‟effort poursuivi pour isoler Haïti, mauvais exemple pour les autres colonies, est prédominant. …

Les revues de sociétés d‟historie et de géographie, comme la littérature pour enfants, font état des

sacrifices humaines en Afrique avec un luxe de détails. La terreur exercée par Soulouque, devenu

emperor d‟Haïti, va présenter Haïti comme la preuve de l‟incapacité congénitale des Noirs à se diriger

eux-mêmes, sans le concours des Blancs (Hurbon, 1988:93, 94). Em um registro totalmente diferente, e

que justamente por isso chama atenção nas semelhanças, Barthélemy cita Paul Lamanche, um jornalista

francês que em 1848 descreveu o Haiti como um exemplo pernicioso para as outras colônias, porque

parmi les causes qui ont engendré et perpetue le malaise d‟Haïti, une seule semble, au premier aspect,

menacer sérieusement nos colonies: c‟est la substituition de la culture alimentaire à la grande culture, et

le fractionnement indéfini des propriétés, mortel à la production de la denrée coloniale par excellence.

(Barthélemy, 1989 :112-13). 48

The birth of an independent state on the ashes of a Caribbean colony was seen as a major threat by

racist rulers in Western Europe and in the United States (Trouillot 1990:50). Pour l‟Europe, alors centru

du monde, comme pour les États-Unis voisins, Haïti est une aberration juridique et politique. Une

menace. … Entité diabolique. (Wargny 2008:54). 49

Discutindo o contexto em que os jacobinos franceses no comando da colônia, Sonthonax e Polverel,

acabaram declarando liberdade geral e sem o período de aprendizagem e adaptação proposto pelos

abolicionistas daquele tempo, Laurent Dubois comenta que In decreeing a universal and immediate

emancipation, they created an example that would be both celebrated and vilified, held up by some as a

model of uncompromising and principled action, and denounced by others as an example of the dangers

of giving liberty to slaves who were not ready to be free. (Dubois 2004:165).

Page 45: Construções do fracasso haitiano

33

baixo. O recurso à nossa história se impõe (Jadotte, 2004:145). A história que

encontraremos não mostra apenas como as coisas aconteceram no Haiti, mas também

como elas deveriam ter acontecido se não tivessem falhado.

Lacunas antigas.

Entre os adjetivos que qualificam aquilo que o Haiti não é nem nunca foi, mas

deveria se tornar urgentemente, há dois principais: moderno e democrático (ambos

perpassados pela idéia de desenvolvimento). Apesar da recorrência com que as mesmas

palavras aparecem através dos livros, seus sentidos são polêmicos. A disputa sobre os

sentidos é precedida por um consenso implícito – nenhum autor, em momento algum,

questiona ou nega que a modernidade e a democracia sejam desejáveis e/ou

necessárias.50

No pólo oposto, encontramos categorias de acusação: primitivo,

selvagem, retrógrado, precário num caso, autoritário, tirânico, ditatorial, violento no

outro. Os dois tipos de acusação se misturam, assim como as idéias de democracia e de

modernidade possuem vários pontos de contato.

Como Laënnec Hurbon argumenta em seu livro Le Barbare Imaginaire (1988) a

acusação que pesava sobre o Haiti, e de forma mais geral sobre todos os povos acusados

de barbárie, fazia com que, do ponto de vista civilizado (ou moderno), o país fosse

sempre definido através do que falta (Hurbon 1988:8,9), uma compilação de lacunas e

vazios que pode chegar ao ponto de afirmar que em tal estado de natureza as pessoas

não saberiam sequer falar direito.51

Neste livro, Hurbon mostra como gerações de

50

A única exceção, parcial e ambígua, é Gérard Barthélemy. Abordaremos sua tese no capítulo dois. 51

O artigo do lingüista haitiano Michel de Graff Linguistics most dangerous myth: the fallacy of creoule

exceptionalism (2005), de inspiração foucaultina, faz uma arqueologia de todo um campo do discursivo,

no início abertamente colonialista e racista, que progressivamente vai ganhando pretensões de

objetividade científica sem alterar contudo o substrato dos argumentos originais. Ele cita inúmeros

estudiosos que consideraram (e, de algum forma, ainda consideram) o crioulo haitiano como um francês

mal falado e mal compreendido. Falar kreyol se tornou prova da falta de competência linguística.

Discutindo uma literatura haitiana que negava as acusações de barbarismo e defendia a raça negra,

Hurbon cita L. J. Janvier, que chegou a negar que se falasse kreyol no Haiti; La langue française est la

Page 46: Construções do fracasso haitiano

34

intelectuais haitianos dedicaram suas obras e vidas para provar que o povo haitiano não

era bárbaro nem selvagem (ou pelo menos alguns indivíduos especiais não o eram), para

provar a perfectibilidade da raça, portanto, em resposta ao olhar racista estrangeiro que

ali só via ausências.52

Quando passamos do registro da civilização e da cultura ao registro da política,

essa crítica passa por uma misteriosa mutação, e de alguma forma, a descrição por

ausências parece se tornar legítima e proveitosa. Assim, no prefácio a L‟énigme

haïtienne, o mesmo Laënnec Hurbon afirma o mérito do conceito de Estado

neopatrimonial defendido por Étienne como instrumento de análise para o caso

haitiano,

não só por causa da ausência total de racionalização objetiva em seu sistema

administrativo, mas também porque em nenhum caso vemos esse Estado dispor dos

monopólios fiscal e da violência legítima. O arbitrário puro, o poder pessoal

absoluto e a ausência de referência à tradição são suas marcas principais (Hurbon

em prefácio a Étienne, 2008:13).

Essas duas ausências (monopólio da violência legítima e monopólio fiscal) são

centrais no argumento de Étienne sobre a não-emergência do Estado moderno no Haiti.

Essa ausência (ou não-emergência) seria a chave do enigma constituído por uma

sucessão de fracassos repetidos ao longo dos últimos dois séculos. Todo o livro é

dedicado a destrinchar numerosos aspectos de não-modernidade haitiana. São as várias

faces de um defeito que o Haiti carrega desde o nascimento em 1804. Enquanto o estado

moderno foi inventado e aperfeiçoado na Europa, o Haiti teria ficado para trás.53

A

plus courante, la seule en usage, et tous les paysans la comprennent... Les moeurs et coutumes, les fêtes,

le droit, les instituitions, le costume, tout est français: on se modèle en tout sur la France (Janvier apud

Hurbon, 1988:59). 52

Tout l‟élite d‟Haïti, dès les premiers moments de l‟indépendance, s‟acharne à fournir la preuve de la

non-barbarie du peuple haïtien, et en quelque sorte à poursuivre épergument une quête de guérison de la

barbarie que le maître-colon lui imputait. (Hurbon, 1988:14,15) 53

Evidentemente, Étienne não está sozinho em seu raciocínio. Mats Lundahl, por exemplo, afirma que o

Haiti has never had any experience of democratic rule. The history of the rise of democracy is essentially

that of Europe and the United States during 19th

-century. Haiti remained completely outside this

intellectual and political current, developing instead, during the very same period, the predatory state.

(Lundahl, 1989: 11). Wargny (2008:70) fala de uma nação esclerosada, parada no tempo, desde sempre

divida entre elite e povo; Quand le monde change, Haïti, elle, est toujours coupée em deux nations qui

Page 47: Construções do fracasso haitiano

35

ruptura insólita com a metrópole não legou nenhuma estrutura estatal sobre a qual

pudesse se apoiar o aparelho de estado pós-colonial (Étienne 2007:112). Falta

educação formal. Não havia uma elite ou um povo letrado apto a construir os aparelhos

estatais modernos. A implantação e adaptação do modelo de Estado ocidental se

revelou impossível em uma sociedade de analfabetos (Étienne 2007:112). Notemos que

nesse caso ocidental e moderno são usados como sinônimos.

Some-se a tudo isso a total falta de legitimidade do novo estado haitiano no

plano internacional. O Haiti nasceu como uma aberração jurídica.54

Como pessoas que

eram legalmente propriedade podiam expulsar e matar seus ex-proprietários e depois

negociar com outros proprietários estrangeiros? A originalidade absoluta da revolução

deixou o país isolado no contexto internacional. Potências escravistas não podiam sentir

nenhuma simpatia por essa novidade. Haiti, aos olhos do mundo, é mais uma aberração

que uma revolução. Produto de um crime contra a humanidade [a escravidão] do qual,

em 1804, não se tinha nem consciência nem remorso (Wargny 2008:45).

A ausência de legitimidade no plano internacional se replica no plano nacional.

Assim como o país estava isolado no plano das relações internacionais, a imensa

maioria do povo haitiano, rural e pobre, estaria também isolada das tomadas de decisões

vivent dos à dos. Atteinte de sclérose. Elle paraît figée, paralysée dans un Moyen Âge aux contacts ténus

avec le XXe siècle. Paraît... Em um registro bem diferente, mas ainda no tema do isolamento do

progresso, Jadotte fala que enquanto o mundo experimentou revoluções tecnológicas e dos meios de

produção, o Haiti pagou caro com seu isolamento, sua posição anacrônica, fora do tempo do mundo. Il

s'ensuit que la question essentielle de l'Haïti d'aujourd'hui doit se poser ainsi: pouvons-nous nous

permettre de rater notre entrée dans le monde par le biais de cette dernière révolution scientifico-

technique [no caso, ele refere-se à 'revolução' das tele-comunicações] sans risquer la mort de notre

nationalité ou encore sa marginalisation-mendicité? (Jadotte, 2005:142-43) 54

No artigo Hegel and Haiti, Susan Buck-Morss (2000:esp. 827-31) discute como, na teoria política

clássica (em autores como Rousseau, Hobbes, Locke, Montesquieu etc.), reflexões onde a liberdade era

um valor supremo, e a escravidão o símbolo de tudo que era abominável (quase sempre a escravidão

aparecia como metáfora), conviviam com a aprovação da escravidão literal nas colônias. A propriedade

privada era definida como a base da liberdade, ao mesmo tempo em que escravas/os africanas/os eram

legalmente vendidas como propriedade. Sua discussão sobre os mecanismos usados para isolar discurso

político e organização da produção (como, por exemplo, afirmar que o contrato social não podia incluir

crianças e nem idiotas – menção explícita, ampliável, implicitamente, a povos indígenas e negros) é das

mais interessantes, mas para evitar fuga maior ao tema, não faremos mais que indicá-la. A expressão

aberração jurídica é de Buck-Morss.

Page 48: Construções do fracasso haitiano

36

políticas. Inspirado pelos estudos de Max Weber sobre racionalização, Étienne mostra

que, no caso do Haiti, o Estado moderno, legítimo, ocidental, era apenas uma ficção.

Neste regime autocrático, as instituições do Estado tinham uma existência

puramente fictícia e não eram nada além da expressão da vontade do general-

presidente, cujo poder repousava sobre o exército. ... A idéia de legitimidade,

fundada sobre a racionalização da dominação política, graças à institucionalização

da participação dos cidadãos na gestão da coisa pública, era estranha ao regime

político haitiano. Étienne, 2008:136.

Assim, na leitura de Étienne, Weber mostraria que os conceitos cunhados para

outros contextos não se aplicam ao Haiti. Isso seria uma prova do fracasso haitiano, não

no sentido de não se conformar a uma teoria sociológica, mas de não ser a sociedade

que deveria ser. Norbert Elias também é usado para mostrar que o que ele diz (no caso,

sobre dois monopólios, da violência legítima e do controle fiscal, que estariam na

origem do Estado moderno) não aconteceu no Haiti. Esse tipo de leitura normativa não

é exclusividade de Étienne. Jadotte (2005:231-2) usa a idéia de tipo-ideal de forma

muito parecida – após afirmar que o tipo-ideal do mercado político em qualquer

comunidade democrática parte de votos solitários, de indivíduos “racionais e

razoáveis”, capazes de escolhas conscientes, ele nota que é desnecessário dizer que o

mercado político haitiano ainda se encontra muito longe deste tipo-ideal. Hobbes

também é evocado em descrições que colocam o Estado haitiano como um Leviatã

coxo, defeituoso. É comum que a descrição da política haitiana através de lacunas venha

acompanhada desse tipo de uso de autores, uma não-adequação que apontaria para o

fracasso não das teorias, mas do próprio país.

Pobreza dos diálogos, eficiência das armas.

Na falta de racionalidade em moldes ocidentais, apenas a força do exército seria

real. Não que o exército fosse moderno. Como notou Spencer Saint-John, “não é nada

Page 49: Construções do fracasso haitiano

37

mais que um populacho, o mais indisciplinado jamais reunido sob as armas”.55

Mas

apesar da ausência de profissionalismo, a violência dos governos militares era uma das

poucas realidades em meio a tantas ficções. Sem legitimidade, não haveria hegemonia,

de forma que a violência aparece como um recurso usado por várias facções que

competem entre si na busca de um poder político sempre instável.

Até 1915, praticamente não havia estradas no país, tampouco meios de

comunicação de massa, de forma que cada capital regional possuía grande autonomia.

Assim, o comando do exército não estava centralizado nem organizado em nível

nacional. Segundo Georges Anglade, geógrafo haitiano citado por Barthélemy

(1989:116), haveria nesse período (fase de regionalização da história haitiana) uma

federação de onze oligarquias regionais, com onze campesinatos distintos, em onze

regiões bem isoladas (bien découpées), com onze exércitos. Reforçando-se mutuamente,

o militarismo e o regionalismo criaram

... uma situação de instabilidade permanente, muito nefasta ao desenvolvimento

social e econômico. ... eles fizeram da violência o único e exclusivo meio de conquista, de

exercício e de conservação do poder, tornando insignificantes as noções de legalidade, de

constitucionalidade e de legitimidade. O triunfo da força, a ausência de consenso...

[criaram um ambiente] muito pouco favorável à emergência de um Estado moderno no

Haiti. Étienne, 2007:135 – meu grifo.

A instabilidade do Haiti é um tema ubíquo e muito recorrente neste campo

discursivo, que se relaciona a mais uma ausência importante, citada por vários autores.

É a idéia de consenso, compromisso, pacto social, ou ainda coesão social (em especial

as duas últimas costumam implicar todas as camadas da sociedade, enquanto as duas

primeiras podem aparecer referidas apenas às elites políticas e comerciais – mas é

preciso lembrar que, em todo caso, com o material que utilizamos aqui, trata-se sempre

55

Étienne se refere ao exército haitiano antes da ocupação norte-americana (1915), que teria marcado

uma modernização da instituição. Spencer Saint-John foi um diplomata inglês que em 1884 publicou

Hayti or the Black republic. Este livro, bastante ofensivo, teria suscitado várias reações, como a obra de

Hanibal Price, de 1893, De la rehabilitation de la race noir par le Republic d‟Haïti. Étienne cita Saint-

John sobre essa questão pontual, apenas como uma testemunha, sem fazer quaisquer ressalvas quanto a

seu racismo evidente (Saint-John apud Étienne, 2007:151). Barthélemy (1989:113-16) também traz vários

testemunhos, de haitianos e estrangeiros, que também vão no sentido de afirmar que, apesar de numeroso,

o exército haitiano pré-1915 era muito pouco disciplinado.

Page 50: Construções do fracasso haitiano

38

de discussões entre “porta-vozes”), ou respeito às regras do jogo no caso das discussões

de Jadotte e Fatton sobre a democratização e processos eleitorais pós-1986. O vazio do

consenso, de um solo comum que garanta um entendimento mútuo mínimo – no limite,

é um vazio da própria comunicação56

– aparece em vários níveis. Para Cristophe

Wargny, essa ausência é de tal ordem que compromete a existência do país, pois não

haveria relação entre as palavras Haiti – Estado – Nação.57

Existe no Haiti um povo, uma terra, uma nação, valores comuns?

Uma cidadania? Não. (Wargny, 2008:15) A necessidade individual de se

virar, aqui como alhures, aniquilou todo senso do coletivo. Struggle for life,

cada um por si! (idem:23) Tão patética quanto a extrema precariedade dos

abandonados-à-própria-sorte, a indiferença dos bem providos ilustra a

ausência da mínima referência comum. ... Nenhum sentimento de pertença,

mesmo vago, a uma mesma comunidade! Não há nação nem castas!

(idem:25)

No final do livro de Fatton há um glossário onde o autor traz expressões em

francês e em kreyol usadas ao longo do livro. Uma que se repete muitas vezes expressa

essa mesma idéia – sauve-qui-peut (every man for himself, ou salve-se quem puder). Por

exemplo, na introdução lemos que

ao invés de incentivar a redenção moral, a imensa pobreza assolando o país

gerou um padrão generalizado de indiferença brutal e uma atitude absolutamente

individualista de salve-se quem puder. ... Historicamente, a emancipação assumiu a forma

de ganho pessoal em detrimento de qualquer ação coletiva propositada (Fatton, 2002:xi).

A referência à história da emancipação mostra que o problema (ausência de

referência comum, ou de ações coletivas com propósito, ou a lógica do salve-se quem

puder) nasceu junto com o próprio país. Barthélemy, ao discutir a tensão entre

hierarquias e sistemas igualitários nas lutas pela independência (1793-1804), mostra

56

O bilinguismo kreyol-francês – esquizofrenia linguística, nas palavras de Tontongi em Critique de la

francophonie haïtienne, acompanhada de dilemas que ocupam um terço do livro de Hoffman (1990) – é

sem dúvida uma questão diferente da suposta ausência de diálogo que encontramos aqui, mas os temas

ecoam e reverberam uns nos outros. Em ambos os casos, sugere-se que no Haiti, as pessoas não

conseguem se entender. Confrontar com o livro de Tontongi e o artigo de Michel de Graff, Linguistics

most dangerous myth: the fallacy of creoule exceptionalism. Jennie M. Smith também comenta,

criticamente, idéias similares atribuídas ao pessoal da cooperação internacional trabalhando no Haiti:

They don‟t have a social contract with each other... They don‟t know how to deal with one another

(Jennie M. Smith, 2001:6). 57

Haïti, État, nation; j‟ai eu beau triple-cliquer sur ces mots-clés, ja n‟ai pas trouvé de réponse. J‟en suis

venu à me demander si le pays existait (2008:11).

Page 51: Construções do fracasso haitiano

39

como nascimento do Haiti foi marcado por um dissenso profundo que deixou o país em

permanente instabilidade.

...a burguesia créole, muito próxima das outras elites crioulas sul-americanas,

não saberá escolher entre um autoritarismo que lhe daria um conforto cívico e um

liberalismo democrático que limitaria sua influência.

Enquanto no resto do continente essa classe triunfará, ela será forçada pouco a

pouco, sob o regime de Boyer, rumo a um regime afro-ocidental, no qual cada uma das

duas partes, elite e povo, tentará preservar sua vantagem, em grande detrimento do

consenso que, só ele, poderia permitir edificar uma via haitiana de governo e um sistema

político estável. (Barthélemy, 1989:102).

Cada um por si, sem senso de coletividade, sem valores comuns, sem diálogos,

mas com armas nas mãos.58

É muito comum que essa lacuna específica – a idéia de uma

falta de consenso, de diálogo, de entendimento mútuo – acompanhe a acusação de

tendências autoritárias, como se coubesse à violência preencher esse vácuo. Assim, a

história das lutas políticas contadas por Étienne mostraria que não há verdadeiras lutas

ideológicas, mas poder pelo poder, em um Estado sem projeto nacional.59

Assim, o

noirisme, ideologia que gozava de considerável prestígio em 1957 – quando François

Duvalier, um dos grandes nomes do noirisme, foi eleito presidente – era, do seu ponto

de vista, um discurso vazio e não uma ideologia de verdade. Neste ponto, Trouillot está

totalmente de acordo.

Discursos, reportagens de jornais, editoriais (Bonhomme 1957; Célestin 1958ª,

1958b, 1959, 1960) todos mostram a ausência de qualquer programa como a

característica marcante da campanha. [...] não havia qualquer questão real na

campanha [the campaign lacked any real issues]. Déjoie não tinha sequer um

programa burguês, apenas alianças burguesas. Jumelle não tinha um plano

tecnocrático, apenas uma educação tecnocrática. Fignolé não tinha um projeto

populista, apenas intenções populistas. E François Duvalier não tinha uma agenda

noiriste, apenas a retórica. Política partidária, tal como compreendida pelas classes

urbanas, era um fim em si mesmo. ... A ausência de discurso político com referências

concretas é parcialmente atribuível ao isolamento imemorial do campesinato da arena

58

Haïti... pays de la loi de la jungle, même s‟il n‟y a pas de jungle que de loi. Bref, terre de violence.

Rituelle, endémique, politique, crapuleuse. Vagues imprévisibles et sucessives de règlements de comptes,

de pneus brûlés, de tortures, de meurtres, d‟émotions et d‟émeutes. Connaît-on de l‟Haïti politique un

seule mot ? Tonton-macoute, assurément. Perfection ou symbole de l‟arbitrire, de duplicité, de brutalité

ou de sadisme. Wargny, 2008 :17. 59

Il est à souligner qu‟en Haïti, comme dans certains pays africains, l‟enjeu politique semble davantage

se situer sur le plan du contrôle des ressources et des hommes que sur le plan de véritables luttes

idéologiques. (Étienne 2007:212) Em seguida ele cita livros que discutem o Estado contemporâneo na

África. A expressão seguinte vem do título da dissertação de mestrado de Sabine Manigat, citada por

Étienne, La coyuntura de 1946 en Haití: alternativas a un Estado sin proyecto nacional.

Page 52: Construções do fracasso haitiano

40

do poder. Mas o vácuo político também era devido às deficiências da própria

burguesia. (Trouillot 1990:145).

Apenas os camponeses poderiam desfazer o curto-circuito, mas continuavam

como uma referência longínqua, “o povo”, “as massas”, “o interior”, “o campo” etc.

Não havia canais de comunicação entre “o povo” e o governo. Era uma política de

sarjeta, do mais baixo nível: sem critérios, sem ideais, sem restrições. Controle do

Executivo não era apenas a questão mais importante; era a única questão. Que uso

triste da liberdade de expressão em um país com uma tradição autoritária! 60

Embora fale da tradição de uma ausência (de liberdade de expressão, de diálogo

político), em Trouillot, as descrições negativas apontam especialmente para um período

específico,61

o contexto da ascensão de François Duvalier, vencedor da primeira eleição

de voto universal da história haitiana. Lembramos que o livro de Trouillot é

assumidamente um panfleto anti-duvalierista. Em diversos momentos ele assume um

tom de denúncia, não tanto no sentido de mostrar como o sistema não funciona, mas no

sentido contrário, de descrever como para o sistema funcionava com uma eficiência

terrível em benefício de alguns grupos e contra a maior parte da população, como a

aparente arbitrariedade era fruto de cálculos bem feitos. Resulta que François Duvalier

aparece não como um déspota insano, mas como um estrategista dos mais inteligentes e

habilidosos, que justamente por isso conseguiu consolidar-se firmemente no poder, e

por isso teve um impacto tão danoso sobre a nação (ao contrário de Jean-Claude, que a

literatura é unânime em considerar como muito menos capaz que o pai). Porém, ao

explicar como ele conseguiu tanto apoio popular no início, o que aparece é pura

manipulação retórica e ausência de qualquer debate sério, uma política de sarjeta.

60

This was gutter politics, of the lowest caliber: no standards, no ideals, no restraint. Control of the

Executive was not merely the main issue; it was the only issue. What a sad use of freedom of speech in a

country with a repressive tradition! (Trouillot 1990:147) 61

Mas sem dúvida não só. Eis algumas ausências perenes: The problem was aggravated by the total lack

of political institutions that could have allowed the peasantry to express its views to the state or the Bord

de Mer. (Trouillot, 1990:86). … the chronic lack of bona fide [boa fé] parties in Haiti. (idem: 237, nota

5).

Page 53: Construções do fracasso haitiano

41

Aqui há um campo de debates. Jadotte critica, de forma genérica, sem citar

nomes, tais leituras negativas da história haitiana.

Um certo espírito do tempo afirma que “o Haiti apenas conheceu ditaduras

retrógradas ininterruptas de 1804 até 1990”. Este refrão parecia ser cantado por todos,

sobretudo depois de 1986. Ele baliza uma percepção totalmente negativa da experiência

histórica haitiana posterior ao gesto da independência (Jadotte 2005:138).

Jadotte faz sua crítica enquanto comenta a obra La crise haïtienne

contemporaine de Leslie Manigat, que, em sua opinião, fornece importantes elementos

para uma leitura mais positiva da história haitiana, reconhecendo debates políticos

sérios no passado, experiências parlamentares, intermezzos democráticos em meio às

ditaduras que, ele concorda, dão o tom geral da história do país.62

Há muito tempo o

país está em crise, mas há muito tempo buscam-se saídas para essa crise. Não podemos

silenciar o esforço prodigioso de pensamento de que o país foi capaz em busca de um

outro destino... e do qual uma imponente bibliografia é testemunha (L. Manigat apud

Jadotte 2005:139). Para Jadotte (idem:141), tais silenciamentos e leituras negativas da

experiência histórica pós-independência revelam menos ignorância que uma tendência

à auto-flagelação, uma perda de fé na nação, um halo de descrédito em torno do

patriotismo. E, para piorar, as leituras negativas, ao apontar culpas históricas pelo

fracasso haitiano, potencializariam uma polarização (entre ex-aliados e ex-adversários

da ditadura derrubada) capaz de minar qualquer possibilidade de consenso.63

O próprio Trouillot (1990:18), em outro contexto, critica descrições negativas,

citando a afirmação de Mats Lundahl de que no Haiti não existe ideologia política no

sentido ocidental. O autor afirma é fácil (e mesmo correto) acusar os governos haitianos

62

O próprio Trouillot comenta que logo após o governo de Salvane (1867-69), Haiti came as close as it

ever has to an effective parliamentary experience. … By 1883, what remained of the Parti Libéral had

finally realized that power rested on military strength. But this realization came at their own expense:

most were killed during an unsuccessful invasion to which President Solomon (1879-88) reacted with the

utmost brutality. Electoral democracy had been but a passing dream. (Trouillot, 1990:98-99). 63

Il en découlée une diabolisation sans rémission des uns par les autres et la mise au rancart de tout

possibilité d'appréhension de la crise comme défi pour la société haïtienne dans son emsemble. Jadotte

2005:142. Meu grifo.

Page 54: Construções do fracasso haitiano

42

de ser o grande problema do Haiti, como fariam grande quantidade de analistas

haitianas/os e blans. Mas a obviedade da afirmação não levaria a lugar nenhum. Sua

questão seria mostrar, historicamente, como e porque, de uma tradição de governos

ditatoriais, surgiu um regime que, segundo ele, é qualitativamente diferente de todos

seus antecessores. 64

Além de ser inerentemente vaga, a noção de “ditadura” não possui qualquer

valor comparativo. No Haiti, como em muitas sociedades periféricas, ditadura... é a

forma tradicional de governo. O estado haitiano sempre foi autoritário: de

Dessalines aos dois Duvaliers, o Haiti não conheceu nada além de ditaduras. É

preciso, então, distinguir o que caracteriza a ditadura Duvalier. Pois não podemos

tratá-la como um mero extremo em uma escala. ... Em algum ponto entre 1961-65...

diferenças de grau foram transformadas em inovações estruturais. Trouillot,

1990:164-65. Grifo meu.

Mats Lundahl tomou parte no debate entre continuidade e descontinuidade na

história política haitiana, citando ainda outros autores, como A. Dupuy65

que escrevem

explicitamente contra a tese de Trouillot, afirmando que a diferença entre os Duvaliers e

seus antecessores é muito mais de grau do que de natureza.66

O debate entre a ênfase na continuidade e/ou/contra ênfase na mudança é longo.

Aqui nos importa mais notar como, em algum grau até mesmo nos autores que discutem

para afirmar mudanças, e entre pontos de mutação consensualmente reconhecidos, como

a revolução de 1804 e a ocupação de 1915, há também uma natureza que perdura, e a

história se repete.67

64

Studies that cannot see the Duvalierist state as an outcome – albeit not an inevitable one – of that

nation‟s historical evolution fall short of the mark. … The main argument of this book is that the

Duvalierist state emerged as the result of a long-term process that was marked by an increasing

disrupture between political and civil society. (Trouillot, 1990:15). 65

A. Dupuy, Haiti in the World Economy. Class, race and underdevelopment since 1700, citado em

Lundahl 1991. Atentemos para a escala temporal que o título do livro promete abranger. 66

Trouillot takes issue with the view that holds that the 1957-86 years constitute an anomaly in the

history of Haiti. They do not. No Haitian government has ever served the interests of the nation fully and

the Duvalier dynasty shares this characteristic. … The Duvaliers are two links in a virtually

ininterrupted chain of rulers that goes all the way back to the creation of the Haitian nation. (Lundahl,

1991:412, 415 – grifo meu em negrito, grifo original desmarcado em itálico). 67

Mats Lundahl publicou outro artigo com um título dos mais interessantes: History as an obstacle to

change: the case of Haiti.

Page 55: Construções do fracasso haitiano

43

Crises cíclicas, estruturas profundas.

Apesar da noção de crise implicar uma situação de alguma forma incomum,

excepcional, em vários textos se insinua a idéia de que o Haiti sempre esteve em crise.68

É um tipo de crise intrínseca, sempre latente, presente até mesmo nos períodos em que a

situação política do país parece estar tranqüila.69

Tudo teria começado com a crise total que destruiu Saint-Domingue. Quando a

então classe dirigente ou foi assassinada ou fugiu da colônia mais rica do mundo, a

divisão do espólio gerou conflitos. Nos primeiros anos, praticamente todas as

propriedades eram contestáveis, instabilidade difícil de conter, já que não havia um

quadro jurídico amplamente reconhecido e aceito (idéias que guardam semelhança com

a ausência de diálogo, de entendimento, de um pacto político, ou para períodos mais

recentes, de um Estado de direito). Como um defeito de origem, ausência de

legitimidade, longe de estar apenas no plano das relações internacionais, se espalharia

por todos os interstícios da nova sociedade onde a velha ordem foi destruída. Seria

preciso inventar um novo quadro, uma nova organização das relações de propriedade.

Crise de sucessão, portanto, e não apenas de transmissão de propriedades materiais

(foram motivos especiais de conflito algumas fazendas grandes e muito lucrativas, pelo

menos enquanto funcionaram como plantations), mas também das hierarquias de

comando.

68

Lundahl (1991:414) critica o uso dessa noção em Trouillot, para desvalidar sua análise de François

Duvalier como uma resposta à crise. The term „crisis‟ point to an exceptional situation. ... Rather, the

problems were a product of a gradual evolution. 69

Comme le marasme économique et la crise financière engendraient une situation de tensions

sociopolitiques explosive, les généraux et leurs alliés en profitaient pour donner libre cours à leur

ambition de pouvoir. En ce sens, le phénomène appelé « crise » faisait partie des mécanismes

d‟alternance politique, car, en général, la crise précédait ou suivait le coup d‟État ou l‟assassinat. Elle

constituait donc un élément récurrent, dominant, central de la phase de désintegration de l‟État haïtien.

Ainsi, dictatures, jacqueries, insurrections, ingouvernabilité, instabilité, anarchie et guerres civiles, sont

autant de catégories qui exprimaient des conjoctures antérieures ou postérieures à une crise. Même les

périodes de relative stabilité peuvent être qualifiées de périodes d‟ « équilibre instable », puisque la

période qui s‟écoulait entre deux crises était seulement le laps de temps nécessaire à l‟éclatement de

l‟autre. Étienne, 2008 :136. A expressão equilíbrio instável é de Leslie Manigat.

Page 56: Construções do fracasso haitiano

44

O primeiro líder do Haiti independente, auto-coroado imperador Jean-Jacques

Dessalines, ex-escravo, nascido na África, ascendeu por méritos militares durante as

guerras de independência.70

A maioria da elite mulata e de anciens libres em geral (ou

seja, quem já era livre antes da abolição geral da escravidão) estava contra o

imperador.71

Sua posição, portanto, também era instável. Dessalines ficou no poder por

pouco mais de dois anos, quando foi assassinado em uma conspiração. Então, menos de

três anos após seu nascimento oficial, o estado haitiano já estava em crise (Trouillot

1990:47). Poderíamos pensar que se tratava de uma luta verdadeiramente política.

O manifesto da insurreição dava a entender que os conspiradores queriam lutar

contra a “opressão” e a “tirania” do imperador. Mas a luta pela sucessão entre anciens

e noveaux libres mostrava claramente que os verdadeiros motivos dos insurgentes eram a

conquista do poder garantindo a tomada dos bens públicos. A impossibilidade de

conciliar os interesses e os projetos das elites políticas lutando pela hegemonia provocará

a guerra civil e a cisão. (Étienne, 2007:119)

Na versão da história contada por Trouillot, a crise de sucessão no comando

dividiu o país em dois, a República do Sul (comandada pelo mulato Alexandre Pétion) e

o Reino do Norte (rei negro Henry Christophe). A versão de Étienne é um pouco

diferente; ele acrescenta o Estado efêmero do Sul (tendo como presidente André

Rigaud) e o do Grande-Anse, sob controle de Jean-Baptiste Goman (1807-1820).

Durante esse longo período (1807-1820), o país se transformará em um verdadeiro

vulcão em erupção com intermináveis guerras entre os Estados rivais (Étienne

2007:119).

70

É interessante que boa parte da literatura acrescente “auto-coroado” ao título de imperador quando

falando de Dessalines ou de Soulouque, o que é uma clara acusação de ilegitimidade do cargo. Podemos

questionar por quem eram coroados os imperadores “de verdade”, supostamente merecedores legítimos

do título. Pelo “povo”? 71

Most anciens libres were against Dessalines… It seems likely that the mulâtres‟ greater familiarity with

Western customs and values led them to judge the manners of the former slave who were leading them as

unbecoming to a chief of state. … Words like “barbaric” and “barbary” come out repeatedly in the many

official and unofficial judgments that the light-skinned generals passed on Dessalines‟ rule. (Trouillot,

1990:46).

Page 57: Construções do fracasso haitiano

45

A imagem trazida por Étienne de, ao invés de uma nação unitária (como, por

suposto, toda nação deveria ser72

), várias quase-nações brigando entre si, poderia ser

apenas um relato histórico, referido a um período específico, e relativamente curto, da

história haitiana. Mas não é só isso – ela manifesta características mais profundas e

perenes, como a falta de consenso, de reconhecimento mútuo, de acordo mínimo, a

incapacidade do Estado de se institucionalizar sob uma forma estável,73

o que levaria a

lutas sanguinolentas pelo poder, e ao fracasso da construção do Estado moderno.74

A idéia da crise contínua não é de forma alguma uma invenção de Étienne. Pelo

contrário, ela é o grande tema da literatura que toma como assunto “o Haiti”. A crise

estrutural bicentenária [ou seja, desde 1804], com seus sobressaltos conjunturais,

sempre constituiu o objeto preferido de pesquisadores haitianos e estrangeiros das

diferentes áreas das ciências sociais que trabalham sobre o Haiti (Étienne 2007:21). A

partir da constatação dos duzentos anos de crise, se formulam perguntas do tipo; porque

o Haiti é tão miserável? Porque a democracia nunca funciona no Haiti? Porque os

governos haitianos são sempre brutais? Porque nada dá certo no Haiti? O terceiro

capítulo será dedicado a algumas das respostas propostas por cada autor, às culpas que

cada qual atribui a determinados segmentos. Por enquanto, nossa intenção é mais

72

No caso de Étienne, a própria ilha devia ser uma unidade. A existência da República Dominicana é

tratada como mais uma prova da fraqueza e incapacidade do Estado haitiano, incapaz de tomar controle

integral de sua ilha. La conclusion d‟une trêve de cinq ans avec les autorités dominicaines était le signe

évident de l‟impuissance de l‟État haïtien à pouvoir reconquérir cette partie de l‟île : sa souveraineté

interne était gravament affectée. (Étienne, 2007 :131) 73

A ausência de autonomia e de institucionalização explica em grande parte a incapacidade deste

Estado, ao longo da toda a sua trajetória histórica, de fazer face às tensões e conflitos internos entre as

classes sociais e aos problemas criados pelo ambiente internacional e regional. Trata-se de um Leviatã

coxo, incapaz de encontrar ou extrair os recursos indispensáveis à sua autonomização e

institucionalização. (Étienne, 2007:21 – grifo meu). A metáfora do Leviatã também é usada por outros

autores, sempre no sentido de que a prática haitiana seria uma versão defeituosa da teoria de Hobbes. 74

Toda a história do Haiti é uma sucessão de ditaduras estáveis, de períodos de grande instabilidade,

de momentos de equilíbrio precário, de conjunturas de crise e de situações de crise incipiente como a

que a população haitiana veio viver de 1996 a 2004. No quadro de um sistema político não democrático,

como é o caso do Haiti, a crise, o golpe de Estado e o assassinato são mecanismos de alternância

política. Assim, dois séculos após a independência, as tropas estrangeiras invadem o Haiti pela terceira

vez, a segunda em dez anos. Não há porque duvidar portanto que se trata de um país naufragado, de um

Estado desmoronado. Em uma palavra, esse país simboliza o fracasso. Étienne, 2007:19. grifos meus.

Page 58: Construções do fracasso haitiano

46

apontar para o formato, ao mesmo tempo histórico e atemporal, em que tais perguntas

são colocadas. Como narrações de eventos específicos são mobilizadas para manifestar

a natureza íntima do Haiti e de seus problemas fundamentais.

Por exemplo, Étienne conta que o comissário geral de Saint-Domingue (então

cargo mais alto da hierarquia administrativa colonial), Felicité Sonthonax, republicano e

jacobino, tinha sua autoridade questionada por grandes proprietários ainda leais ao rei

francês. Sob pressão, ele decide, em 1797, concentrar todos os poderes militares em

uma figura forte que estava do lado republicano, Toussaint Louverture. Toussaint logo

se tornou o governador de fato da colônia, relegando Sonthonax, oficialmente seu

superior hierárquico, a uma posição subalterna. Isso aconteceu porque nessa colônia

devastada de forma permanente pela guerra civil e pela guerra internacional, a

potência e a violência constituem a essência mesma do poder. Foi impossível à

autoridade civil se impor sobre a autoridade militar. (Étienne, 2007:102, nota 48.

Grifos meus.) Ou ainda, mais uma vez sobre o militarismo dos tempos de Toussaint

Louverture;

O despotismo militar impregnará todo o regime, do topo do Estado até seus

escalões inferiores. O caráter ditatorial e militar do Estado louverturiano imprimirá

uma trajetória ao Estado pós-colonial haitiano, e influirá sobre toda a evolução do

sistema político do país durante os dois séculos seguintes à sua independência.

Étienne, 2007:94.

Tudo se passa como se o Haiti estivesse preso em um túnel do tempo circular.

Assim, lemos em Wargny que a declaração da independência, em 1804, basicamente só

valia para o Haiti. A liberdade não estava definitivamente consolidada, a qualquer

momento tropas francesas poderiam voltar para tentar re-escravizar o povo haitiano. O

recém criado país se armou à espera da guerra. Esperaram por mais de vinte anos,

Page 59: Construções do fracasso haitiano

47

sentindo a liberdade conquistada sob constante ameaça. Como essa guerra nunca veio,

as armas teriam se voltado contra o povo, no século XIX como no século XXI.75

A história contada por Trouillot também enfatiza a constância do uso da

violência nas disputas políticas, embora atribuindo menos importância que Étienne à

ausência de institucionalização, e considerando como mais decisiva uma suposta

exterioridade do Estado em relação ao povo, em especial o campesinato. A primeira

parte do livro, que cobre a evolução história de Saint-Domingue até a campanha

presidencial de 1956-57, eleição vencida por François Duvalier, traz o retrato dos

problemas de longo prazo do país como manifestações múltiplas de uma crise crônica,

causada pelo abuso econômico do campesinato e pelo buraco [gap] decorrente entre

Estado e nação.76

Fatton, que se atém a um período histórico muito mais preciso (1986-2001),

também faz várias menções à longa duração de certas tendências na política haitiana,

cujo nascimento mais uma vez coincide com o nascimento do Haiti. Ele toma de

Bourdieu o conceito de habitus para referir-se a antigos padrões de abuso. De fato,

esses padrões de abuso estão enraizados nos primeiros dias da independência e

alcançam seu paroxismo com Duvalier; eles formam o habitus político haitiano.77

Ou

ainda:

A história política do Haiti, do período revolucionário passando pela

independência em 1804 até a era contemporânea pós-Duvalier, reflete a natureza

predatória da classe dominante, que persiste se recusando a ancorar seu poder em

um sistema significativo de prestação de contas [accountability]. A classe

dominante controlou o Estado para seu benefício exclusivo, usando-o para extrair

recursos da maioria pobre. Fatton, 2002:51.Grifo meu.

75

Armements. Armée sur le pied de guerre. Pour longtemps. À défaut d‟ennemi extérieur, qui tarde à

venir, elle sera une pièce maîtrisse dans la mise au pas des anciens esclaves. Une armée experte en coups

d‟État et dressée à faire la guerre à son propre peuple : une tradition qui aura la vie dure. Wargny,

2008 :55. 76

They portrayed the country‟s long-term problems as manifold manifestations of a chronic crisis that

eventuated from economic abuse of peasantry and the ensuing gap between state and nation. (Trouillot

1990:139). 77

In fact, these patterns are rooted in the early days of independence and reach their paroxysm with

Duvalier; they form a Haitian political habitus. (Fatton, 2002:11)

Page 60: Construções do fracasso haitiano

48

A semelhança com Trouillot não é apenas coincidência. Haiti: State against

nation é bastante citado ao longo do livro, assim como (embora com menos

importância) Le pays en dehors de Barthélemy e Comprendre Haïti de Hurbon. Sobre

este ponto, para reforçar seu argumento sobre a persistência do habitus, Fatton cita um

artigo mais recente de Gérard Barthélemy, no qual ele afirma que

Há certo número de fenômenos, hábitos e crenças que pertencem ao domínio do

comportamento político geral desde 1804. Essas fortes tendências da vida política

nacional não são prerrogativas de nenhuma educação em particular. São

comportamentos profundos, que possuem uma origem particular e uma história de

longo prazo que ainda está em curso, embora se modifique muito lentamente: é por

isso que nos referimos a eles usando o termo “reflexos”.

[ There are a certain number of phenomena, habits, and beliefs that belong to the

domain of general political behavior since 1804. These strong tendencies of national

political life are not the prerogatives of any education in particular. They are deep

behaviors belonging to a particular origin and history of which a long-term evolution

is in progress, although at a very slow rate: that is why we refer to them using the

term “reflexes”.] Barthélemy apud Fatton, 2002:23. Grifo meu.

Enquanto Trouillot fala de problemas estruturais de longa duração, Barthélemy

de reflexos e comportamentos profundos, Fatton de habitus, Laënnec Hurbon (1987:16)

empresta de Jean-Paul Sartre o termo “prático-inerte”, ou seja, as práticas e ideologias

sedimentadas nas estruturas e nas coisas que compõe o ambiente que nos cerca, e das

quais não podemos portanto nos desfazer do dia para a noite recorrendo apenas ao

voluntarismo ou à liberdade individual. O sistema prático-inerte de que nos fala Hurbon

lhe permite fazer uma mistura explícita de temporalidades, na qual práticas dos séculos

XVIII e XIX de alguma forma teriam sobrevivido (por inércia?) até os dias atuais. O

artigo que abre seu livro, Le fantasme du maître, traça numerosas equivalências entre as

práticas do regime dos Duvaliers e a escravidão na colônia francesa de Saint-Domingue,

e não como uma metáfora, mas como uma equivalência literal. A citação é longa,

porque muito significativa.

O Estado e o governo que oferecem a força das armas aos cidadãos que

reivindicam segurança, liberdade e serviços se comportam como os senhores que

tem direito de vida e morte sobre os escravos. Os cientistas políticos sempre

tomaram a relação senhor/escravo como paradigma da dominação do homem pelo

homem. De La Boétie a Hobbes e de Rousseau a Hegel, não se cessa de pensar o

paradigma que, na maior parte dos casos, é empregado como pura metáfora. Dessa

Page 61: Construções do fracasso haitiano

49

vez, no caso do Haiti e de sua história, nada é mais concreto. A escravidão, que

durou três séculos, deixou intactas, após o desaparecimento do senhor, suas redes

simbólicas e imaginárias no âmago da sociedade haitiana e do Estado.

O despotismo como método de governo que não se submete às leis volta com

muita freqüência de 1804 aos nossos dias porque nosso rumo, pelo menos em

grande parte, foi uma herança da escravidão. Seria o fantasma do senhor que ainda

assombra o grande chefe, o comandante, o soldado, o pequeno chefe, o makout. Hurbon, 1987:18.

O Estado trata seus cidadãos como não-sujeitos de direito, portanto, como

escravos no sentido estrito (idem:18). Olhando para a história haitiana, seria muito claro

como alguns artigos do famigerado Code Noir se repetem em sucessivas versões dos

Codes Ruraux (idem:19). Igualmente, a queda de Jean-Claude Duvalier não significaria

de forma alguma o fim do duvalierismo. O período pós-Duvalier estaria preso na

mesma inércia.78

As práticas de contrabando generalizado, continuação do

duvalierismo, são agora o principal obstáculo ao desenvolvimento econômico do Haiti,

que perpetuam a corrupção e a violência sem poder dispor dos meios de legitimação

dessa violência. O fantasma do senhor continua todavia a assombrar, mais somente

como fantasma, porque, lá onde o senhor dispunha de seus escravos para fins de

produção econômica, pode-se dizer que aqui a anti-produção tornou-se a regra

(Hurbon 1987:22).

A mistura de temporalidades também aparece com freqüência no livro de

Wargny. Por exemplo, a déchoukaj – palavra em kreyol que ao pé da letra significa

“arrancar pela raiz”, nome dado ao movimento anti-makout e anti-duvalierista depois da

queda da ditadura – fenômeno do fim dos anos 1980s e começo dos 1990s, aparece

como uma manifestação do mesmo impulso que levou ao incêndio e destruição das

78

Au lendemain du 7 février [de 1986, data da queda de Jean-Claude], les revendications sociales

devaient fatalement se gonfler, mais pour se heurter à la plus grande inertie de la parte de l‟État...

Hurbon, 1987 :20.

Page 62: Construções do fracasso haitiano

50

plantations em Saint-Domingue, no fim do século XVIII.79

Code Noir e Code Rural

aparecem novamente como equivalentes.80

Tudo se passa como se nem o fim da escravidão nem o fim do colonialismo

tivessem sido conquistados de verdade – como se, ao contrário, a conquista violenta

tivesse feito com que ambas as instituições se transformassem em fantasmas destinados

a assombrar definitivamente o país. Quem, um ou dois séculos depois, se inquieta com

essa independência que traz uma dupla dependência? Sujeição das massas rurais aos

proprietários e, simultaneamente, sujeição do novo Estado às potências estrangeiras

(Wargny 2008:59-60). De acordo com as indicações de Wargny, a forma como a

alforria foi conquistada no Haiti acabou sendo um péssimo negócio.81

Até porque, após

a revolução, a escravidão desapareceu nos textos, mas prosperou nas mentes e nos

fatos (idem:49). Supostamente alienado da marcha da história, o país que tentou romper

com o colonialismo e a economia da plantation teria ganhado com isso apenas a

condenação a viver na eterna repetição inerte desse tempo que, no resto do planeta, há

muito tempo já teria ficado no passado.

Considerações finais.

Vimos como a inércia pode funcionar como um conceito analítico, ao mesmo

tempo histórico e anti-histórico. Encontramos origens para os problemas atuais

79

Na parte histórica do livro, em que ele conta as guerras pela independência, precisamente no ano de

1792, aparece o seguinte parágrafo: La démolition, au sens propre, de tout ce qui symbolise le mal va

perdurer jusqu‟au XXIe siècle. Dans un pays où l‟on construit peu, chaque émotion, chaque conflit

politique ou social se traduira par la mise à sac, l‟incendie de la source présumée du mal. Dechoukaj!

Dessoucher. Destruction des racines, des souches. Matérielles ou humaines. Wargny, 2008 :39. 80

L'appareil d'État, même quand sa faiblesse le réduit à sa seule fonction répressive, est mobilisé, depuis

ses origines, pour entraver cette exigence d'égalité dans l'accés à la terre, formulée par les ruraux. Il n'y

a plus de Code Noir, mais un Code Rural. Wargny, 2008 :50. Grifo meu. 81

Haïti, exemple pourtant paroxystique où l'esclave, même victorieux de son bourreau, rachète sa liberté,

parce que, émancipé, il appauvrit le colon et se rend ainsi coupable de vol! Vol avec effraction, crime de

lèse-profit donc de lèse-économie! Longtemps, Haïti, politiquement chétive et isolée, économiquement

moribonde, à la merci des bailleurs de fonds, n‟a pas osé revendiquer. Haïti, mauvais exemple et

mauvaise réputation, existe si peu. Wargny, 2008:60.

Page 63: Construções do fracasso haitiano

51

localizadas em eventos específicos do passado, mas como um tipo de evento cuja

importância estaria para além da mera sucessão. Mais que um encadeamento de

acontecimentos, haveria momentos capazes de condensar tudo que ainda estava por vir,

que teriam traçado, como uma maldição, o curso do futuro.

O Haiti dos antigos escravos é condenado a existir. O dos antigos senhores,

apesar da insistência dos novos, não existe mais. Não resta senão uma realidade

caótica, cada vez mais deslocada e trágica, resultado de uma doença contraída

desde o nascimento. Duas virtualidades se aniquilam. E absorvem a maior parte das

energias humanas disponíveis. A ordem se apóia na inércia. Wargny, 2008:53.

Embora a formulação seja um pouco extravagante, Wargny nos traz uma idéia

que está presente em muitos outros livros. Uma historicização dos problemas haitianos

que, mais do que apenas traçar gêneses, mescla eventos com séculos de distância entre

si, formando não só um encadeamento temporal linear (embora também haja, é claro,

sequências lineares), mas um tempo circular, que se repete, dando voltas sobre si

mesmo, imutável em suas mudanças.

Assim, o Haiti, dono de uma vitória histórica contra a escravidão e o

colonialismo, seria paradoxalmente uma terra de exploração quase escrava e com um

colonialismo duplicado, tanto das potências estrangeiras sobre o país como da classe

dirigente (auto-identificada com a civilização francesa82

) contra as classes trabalhadoras

(identificadas, pela classe dirigente, com a barbárie africana).83

Carregando sempre os

males de Saint-Domingue, o Haiti teria deixado para trás a “parte boa”, a riqueza gerada

pelo sistema. Embora a escravidão seja, hoje em dia, pública e moralmente

indefensável, no final do século XVIII a colônia gozava de uma organização econômica

que jamais teria sido igualada na história pós-independência, o que mistura o desprezo

82

Ainda que essa identificação fosse frequentemente sabotada e ridicularizada do outro lado. Há

inúmeros exemplos em DeGraff 2005, mas fiquemos com um tirado do Corpus: Unwittingly, William

Jennings Bryan, then Secretary of State, summed up American attitudes [durante a Ocupação de 1915-34]

about the Haitian elite: ... “Dear me! Think of it!” he said. “Niggers speaking French!” Fatton 2002:53. 83

O movimento pendular da identificação do Haiti com a Europa (muito especialmente a França) e a

África (há menção especial à Guiné, mas a escala usada é essa, sem muita diferenciação interna, fala-se

em “a África”) aparece, com grande riqueza de fontes, em todo o livro de Hoffman (1990).

Page 64: Construções do fracasso haitiano

52

moral pelo regime de trabalho que sustentava a colônia com uma sensação nostágica de

que naqueles tempos pelo menos algo funcionava. De um regime ilegítimo (a

escravidão), teria nascido um regime duplamente ilegítimo (uma opressão que não é

economicamente produtiva).84

Vimos que o momento-chave do nascimento do Haiti condensa uma ruptura ao

mesmo tempo heróica e trágica. A história haitiana (dentro da qual 1804 ocupa um lugar

de imenso destaque), acionada em meio a uma mistura de temporalidades, funciona nas

narrativas como um esquema de eficácia permanente, ao mesmo tempo histórico e

transcendental, dentro do qual diferentes entendimentos sobre os mesmos eventos

podem marcar tomadas de posição antagônicas. É nesse sentido que falamos de uma

mitologia nacional. Dentro dela, encontramos uma grande tensão entre unidade e

dualismo, tema do próximo capítulo.

84

Espiral na qual parece ser sempre possível descer mais baixo. Assim, o mesmo movimento de perda de

legitimidade, e perda de sentido, é descrito na transição do governo Duvalier, sem dúvida o mais mal

falado da história do Haiti (a julgar pelo Corpus), para o que veio depois. La politique néo-liberale [...]

est la continuation du duvaliérisme, car elle ne fait que pousser à son extrême limite ce qui avait été initié

par l‟État duvaliériste. Or, celui-ci apparaît bien comme l‟obstacle principale au développement en

Haïti. Il renforce le système de la corruption et les traditions du macoutisme sans pouvoir disposer de

moyens de légitimation de sa violence [ou seja, a junta militar que organizou a transição democrática

haitiana conseguiria ser ainda menos legítima que o governo quase-escravista – na opinião de Hurbon –

dos Duvalier]. Le fantasme du maître continue cependant à la hanter, mais seulement comme fantasme,

car, là où le maître disposait de ses esclaves aux fins de production économique, on dirait que l‟anti-

production devient ici la règle. Hurbon 1988 :22.

Page 65: Construções do fracasso haitiano

53

#2 A teoria dos dois Haitis.

No capítulo anterior, indicamos algumas formas como o tempo aparece nas

narrações sobre o Haiti. Foi necessário começar a dissertação por aí, já que os temas dos

capítulos seguintes são supostos problemas nacionais que remontam à fundação do país,

e desde então nunca resolvidos, como marcas de nascença cujos efeitos se fazem sentir

até hoje. Com essa estrutura em mente, passaremos a um conjunto de temas agrupáveis

como “problemas de integração”.

Alguns já foram mencionados em outro registro, basicamente a acusação de

ausência de consenso, projeto político comum, coesão social, senso de comunidade,

regras do jogo reconhecidas e respeitadas. Sem dúvida, estes termos não são sinônimos,

mas há uma mancha semântica comum, um fundo de ausência de compreensão mútua e

diálogos construtivos que só se resolveria pela violência, de forma que as duas

acusações se acoplam e formam um sistema, justificando-se mutuamente (estão sempre

brigando porque ninguém se entende, ninguém se entende porque estão sempre

brigando).

Se a não-integração é considerada problemática, há um imperativo implícito de

unidade. O Haiti deveria ser um, mas, tragicamente, são dois. A divisão que separa os

dois lados pode ser identificada segundo vários critérios (cultural, racial, econômico,

geográfico, lingüístico, religioso, de projeto político) e cada critério gera divisões mais

ou menos diferentes. O notável é que, apesar dos deslizamentos em meio à grande

variedade de princípios divisores, o resultado da divisão seja sempre dois, e não três ou

cinco ou dez Haitis. Mesmo quando Barthélemy cita Georges Anglade sobre um

período em que haveria “onze Haitis” (ver capítulo 1), a conta é novamente reduzida a

Page 66: Construções do fracasso haitiano

54

dois quando aparece como critério o país oficial, no controle do Estado, e todo o resto

se torna agrupável indistintamente como não-oficial, em esquiva do Estado.

Alguma variação deste tema aparece em todos os autores, sem exceção. Quem

lhe dedica um esforço mais sistemático é Gérard Barthélemy. A começar pelo título, um

país fora, ou à margem [en dehórs], todo o seu livro pretende mostrar como, para além

do Haiti oficial e reconhecido, há um mundo camponês, de origens distintas, práticas

distintas, outra cultura. O choque das diferenças culturais entre esses dois países é que

viria frustrar todas as tentativas que vem de fora para desenvolver este Haiti rural,

pobre, à margem das instituições e códigos do outro Haiti.

Chamaremos aqui de Haiti de cima (#1) e Haiti de baixo (ou segundo Haiti, #2)

às entidades que são colocadas em relação. Como os nomes pretendem indicar, trata-se

de uma relação muito claramente hierárquica.85

Embora todos os autores reconheçam

dualismos hierárquicos, é preciso deixar claro que o uso de Haiti de cima (#1) e de

baixo (#2) é uma proposta de leitura nossa, que visa ressaltar o que há de comum em

construções narrativas diferentes. Nenhum dos autores usa nossos termos.

Antes de 1804 – a gênese dos dois Haitis.

O mito de fundação do Haiti começa com a divisão profunda e total na

sociedade de Saint-Domingue, um critério de diferenciação fundamental entre os

homens e os não-homens, entre o homem e o escravo (Barthélemy 1989:87).

85

Do ponto de vista político, não há dúvidas: o #1 Haiti domina, o #2 é dominado. Mas se pensarmos a

idéia de hierarquia no sentido que lhe conferiu Louis Dumont [1967], como englobamento do contrário, a

relação pode funcionar nos dois sentidos. Institucionalmente, o #1 Haiti engloba o país como um todo,

inclusive a população ou “o povo”. Mas a rehabilitação cultural do campesinato, principalmente a partir

da obra clássica de Jean-Price Mars Ainsi parla l‟oncle [1927] e da agitação causada pelo movimento dos

autentiques (bem descrita em Hoffman 1990:183-197), coloca o #2 Haiti como “o verdadeiro Haiti”,

fonte original de uma haitianidade da qual o #1 Haiti também participaria, mas como parte englobada.

Page 67: Construções do fracasso haitiano

55

Livres e escravas/os seriam, portanto, os dois grupos primários. Após a grande

divisão, haveria várias diferenciações de categoria no interior de cada grupo. 86

Entre a

população branca e livre, encontramos pequenos e grandes proprietários, ricos e pobres,

monarquistas e republicanos, a grande maioria homens.87

Do outro lado havia escravas/os de fazendas de cana e de café (os regimes de

trabalho eram diferentes88

), Bossales (nascidas/os na África89

) e Créoles (nascidas/os

em Saint-Domingue), escravas/os domésticas/os e à talent, diferentes ocupações

hierarquizadas entre si. A posição mais baixa era ocupada por recém-chegadas/os da

África. Pouco antes do início dos conflitos que levaram à independência, esse estrato

tornou-se o mais numeroso.90

86

O grau de investimento de cada autor na descrição da heterogeneidade varia bastante. É fora do Corpus,

em Laurent Dubois (2004), que encontramos as descrições mais cuidadosas dessas divisões. Entre as

pessoas juridicamente plenas, haveria grandes proprietários, residentes na França e/ou em Saint-

Domingue, donos de plantações de cana (maquinário mais caro, propriedades mais extensas) e de café

(geralmente fazendas menores, tipo de negócio que não exigia um investimento inicial tão alto, mas cujos

lucros também eram menores), monarquistas e republicanos, de diferentes levas migratórias, militares,

marinheiros, prostitutas, funcionários coloniais, petit-blancs. Enquanto a existência de brancos pobres e

desempregados é em geral apenas mencionada pelos autores do Corpus, encontramos em Dubois

(2004:35) um cuidado maior com a terminologia usada (e seus efeitos) para classificar as divisões

internas da população branca e livre: The enslaved were “omnipresent and attentive observers” who had

an astute sense of the divisions amog their oppresors and developed a rich vocabulary to describe it. ...

They coined the term petit blanc to refer to those who did not own land, contrasting them with grand

blancs, also called Blancs blancs, whose ownership of property made them true whites. The vocabulary of

the slaves was eventually adopted by everyone on the island, and in turn helped to “aggravate the tension

between whites.” 87

Em um artigo de Trouillot (1992), lemos que a população branca de Saint-Domingue era basicamente

masculina (the near total absence of white women…), motivo pelo qual adotamos o masculino genérico

para refirmonos à população branca. Pouco à frente, o autor afirma que Mulattoes, like courtesans and

prostitutes – with whom, indeed, the females of the genre soon became associated – were an inevitable

sore, the living proof of the licentiousness of life in tropical climates if not universal testimony to the

sinful nature of man (Trouillot 1992:150). 88

...on coffee plantations the labor was more varied and in some ways less difficult and dangerous than

on sugar plantations. ... A prisioner of the insurgents in late 1791 claimed to have noticed a contrast

between those who had been slaves on sugar plantations of the plain, who were “enraged,” and those

who had been slaves in the mountains, who were less ferocious. (Dubois, 2004:47). 89

Essa é a definição de Barthélemy, e a mais comum na literatura. Laurent Dubois (2004:12), contudo,

define Bossale não pelo local de nascimento, mas pela não-conversão ao cristianismo. Parece haver

alguma sobreposição entre a adaptação ao sistema da plantation, processo de créolisation descrito por

Barthélemy, e conversão ao cristianismo. A definição a partir de um processo torna menos rígida a

referência pura ao local de nascimento – por exemplo, uma criança africana crescida em Saint-Domingue

e acostumada aos costumes da ilha teria passado ao lado créole. Os dois critérios talvez não sejam tão

diferentes. 90

De acordo com Moreau de Saint-Méry, às vésperas da revolução, cerca de dois terços dos/as

escravas/os de Saint-Domingue eram bossale (portanto, se confiarmos nos números oficiais, cerca de 59%

da população total seria africana). Moreau de Saint-Méry foi um ex-colono que fugiu durante o processo

Page 68: Construções do fracasso haitiano

56

Na fronteira entre os dois grupos fundamentais, estavam os affranchis (palavra

mais ou menos traduzível como “libertos”, ou afrancesados, na tradução de Thomaz) ou

gens de couleur. 91

Essa classe (raça) do meio, juridicamente livre embora submetida a

restrições próprias, era demográfica e economicamente importante em Saint-

Domingue.92

Grande número dos proprietários de plantações, especialmente de café

(que também dependiam do uso de mão de obra escrava), eram affranchis. A

ambigüidade de seu estatuto jurídico foi motivo de muitas controvérsias. Essa classe

buscava igualdade de direitos entre affranchis e blans, projeto de uma sociedade cujo

princípio de divisão não fosse mais racializado, onde se distinguisse apenas entre quem

era proprietário/a e quem era propriedade. Contudo, e as pessoas que viviam nestes

tempos sabiam bem disso, a deslegitimação da separação racial continha em si o perigo

de tornar ilegítima a escravidão em geral. A discórdia no interior da classe proprietária,

entre blans e affranchis, é considerada um dos motivos do colapso de Saint-Domingue.

Depois de 1804 – consolidação contínua do dualismo.

Com a revolução, os proprietários brancos ou foram assassinados ou fugiram da

colônia. A escravidão, grande divisor jurídico entre pessoas e não-pessoas, foi abolida.

revolucionário, testemunha ocular de eventos sobre os quais escreveu profusamente. É uma fonte das

mais citadas tanto no Corpus quanto nos outros textos a que fazemos referência. Ver Dubois 2004:42. 91

Segundo Dubois, o conceito nativo preferido na época era gens de couleur. The communities of African

descent who were not enslaved, for instance, were enormously diverse, both socially and politically.

While many within them were of mixed European and African ancestry, not all were, and the common use

of the term “mulatto” to describe them is misleading... I have avoided the term, which racializes and

simplifies a complex reality, in favor of the term gens de couleur... This term was favored by many

politically active members of this group in the late eighteenth century. (Dubois, 2004:5-6). Na

dissertação, temos a intenção de sermos fiéis ao pensamento dos autores do Corpus em seus próprios

termos, portanto, quando estivermos tratando de autores que usam o termo mulâtre, os seguiremos. 92

Embora nenhum autor considere os números muito confiáveis, repetem cifras similares. Em Wargny

(2008:31), os números que aparecem para o ano de 1780 são de um total de 508.000, sendo 450.000

(88,6%) negris escravis, 28.000 (5,5%) afranchis, 30.000 blans (5,9%). Étienne (2007:64-5) traz, também

para o ano de 1789, mais de 500.000 negros, 30.000 blans e entre 30.000 e 60.000 gens de couleur (sua

fonte é o historiador Pierre Pluchon). Em State against nation (1990:118), Trouillot traz, para o ano de

1789, respectivamente 558.500, cerca de 500.000 (89,5%), 27.500 (4,9%) e 31.000 (5,5%). Já em The

incovenience of freedom, há uma tabela que mostra a evolução demográfica de 1681 a 1789 em Saint-

Domingue (usada para mostrar o crescimento vertiginoso da proporção de gens de couleur) que repete

cifras muito similares exceto pelo número de escravis, estimado em 465.429 (Trouillot, 1992:152).

Dubois (2004:30) repete números idênticos, como official figures.

Page 69: Construções do fracasso haitiano

57

Na nova sociedade, ficaram dois dos três grupos. De um lado uma elite de gens de

couleur, proprietários, livres desde antes da abolição, do outro ex-escravas e escravos.

Gente nascida e criada na ilha, e a maioria da população, nascida na África.

A população “da África” vinha às vezes de lugares distantes entre si, falando

línguas mutuamente incompreensíveis. É importante notar que a construção da “África”

enquanto unidade de análise, que possibilita a atribuição de predicados (quando tais

traços culturais, ou sua ausência, passam a ser considerados africanos), é um

procedimento típico no campo discursivo que analisamos. Nesse sentido, por se tratar

de uma população heterogênea e que não se organizava politicamente de formas que,

segundo padrões contemporâneos, poderiam ser consideradas estatais, o que chamamos

aqui de problemas de integração do Haiti seriam mais antigos que o país, seriam

heranças africanas. Voltaremos ao tema em mais detalhes no próximo capítulo. Por

agora, nosso objetivo é apenas evidenciar a operação teórica subjacente.

Para efeito de constraste, tomemos o critério adotado por Laurent Dubois em

The avengers of the new world, um livro sobre a revolução haitiana, o principal evento

da literatura tomada como objeto aqui, mas sem a preocupação de apontar

sobrevivências hoje. Sua proposta é explicitamente anti-essencializante:

A abordagem mais útil é focar nos projetos políticos que emergiram em

diferentes fases da revolução, e nas formas como eles foram moldados pelos

indivíduos e grupos que os articularam. Embora eu necessariamente use uma

terminologia racial ao longo deste trabalho, minha intenção é evitar essencializar

diferenças, apontando sua mutabilidade e os deslizamentos de seus significados

sociais e políticos. Dubois, 2004:6.

Diferentes projetos políticos estavam em jogo, cada qual suscitava determinadas

adesões e tinha determinados inimigos. Suas referências são precisas, uns projetos

morrem, outros nascem, não surgem grandes linhas atemporais atravessando-os. É o

movimento contrário da construção de grandes entidades para agrupar extensões

Page 70: Construções do fracasso haitiano

58

temporais e territoriais maiores, usando eventos mais específicos como manifestações

ou exemplos de outra coisa.

O livro de Gérard Barthélemy Le pays en dehors também aponta para projetos

políticos divergentes – portanto, ao contrário do que acontece com critérios raciais, por

exemplo, falamos de tomadas de posição, uma lógica potencialmente sujeita a adesões e

refutações mutáveis. Contudo, a variedade se resume a duas grandes tendências,

construídas em uma oposição recíproca intencionalmente realçada.93

Parece que assistimos, desde os primeiros anos da independência, a uma cisão

da nação haitiana em duas partes, tendo como ponto de clivagem a posição em relação

ao tipo de desenvolvimento a adotar, ao tipo de evolução que se deseja seguir

(Barthélemy 1989:23). Cada um dos dois lados aparece como dotado de grande

coerência interna, dois sistemas (idem:56, 57) no sentido forte da palavra, duas

entidades, que não chegam a ser atemporais, mas são de uma duração no mínimo tão

longa quanto o próprio Haiti (1804-1989 em diante). 94

Enquanto internamente cada sistema possuiria seus mecanismos de auto-

regulação, sua autonomia, sua coerência, a comunicação entre os dois sistemas seria

problemática e sujeita a muitos mal entendidos. As tentativas do Haiti de cima de

desenvolver o Haiti de baixo fracassariam repetidamente pelo desconhecimento de sua

dinâmica igualitária e anti-institucional. Como dito acima, os termos “Haiti de cima” e

“de baixo” são usados aqui para discutir simultaneamente autores que constroem suas

formulações a partir de conceitos diferentes.

93

... les deux cultures que nous avons, surtout pour les besoins de l'étude, présentées de façon

schématique dans leurs oppositions et leurs contrastes en mettant un peu de côté, sans l'ignorer, le

continuum qui charactérise le pasage de l'une vers l'autre. Barthélemy, 1989:160. 94

A ocupação dos Estados (1915-34) é reconhecida como um ponto de mutação, quando frente à

oposição externa, supostamente a oposição interna entre os dois Haitis começou a ser diluída. Contudo,

até 1989, data do livro, essa diluição de um país no outro ainda estaria muito longe de estar completa,

sendo os dois ainda plenamente identificáveis enquanto países separados e regidos por lógicas distintas.

Page 71: Construções do fracasso haitiano

59

Créoles e Bossales.

A versão de Barthélemy dos dois Haitis parte da distinção entre Créoles e

Bossales, cuja gênese remonta aos tempos da escravidão em Saint-Domingue. Autores

como Trouillot e Étienne identificam as três grandes categorias sociais de Saint-

Domingue como blancs, affranchis e esclaves. O estatuto ambíguo da categoria do meio

vem do fato de ela ser livre sem ser branca. Já na classificação de Barthélemy, temos:

- O branco, pequeno ou grande, proprietário ou funcionário;

- O affranchi e o escravo créole nascido no sistema escravista, negros e mulatos;

- O escravo nascido em África, dito Bossale, que representava, em razão da medonha

intensificação do tratado desde 1770, mais da metade da população da colônia.

[ – Le blanc, petit ou grand, proprieté ou fonctionnaire;

– L'affranchi et l'esclave créole nés dans le système esclavigiste, noirs et mulâtres;

– L'esclave né en Afrique, dit Bossale, qui représentait en raison de l'effrayante

intensification de la traite après 1770, plus de moité de la population de la colonie.]

Barthélemy 1989:23 – grifo meu.

Embora o próprio Barthélemy cite a escravidão como grande divisor (ver a

primeira nota deste capítulo), ele coloca no mesmo grupo do meio escravas/os

nascidas/os na colônia e affranchis livres. Formulada assim, a questão principal se

desloca para o grau de adaptação ao modo de produção da plantation. O grupo do meio

seria o mais adaptado, que já aprendeu a sobreviver e manipular suas regras, enquanto o

grupo mais baixo seria o mais estrangeiro ao sistema.95

O grupo dominante foi abolido –

isso teria colocado uma questão difícil para os outros dois grupos: que fazer com o

espólio? A quem transmitir o patrimônio da colônia mais rica do mundo?

A história que nos conta Barthélemy diz que os meios de produção foram

monopolizados pelo grupo que melhor os conhecia, e que em parte já era dono antes

mesmo dos conflitos, os Créoles. Já os Bossales, que só conheciam o lado mais violento

95

O termo estrangeiro aparece algumas vezes em Barthélemy, e com mais freqüência em Hurbon (1986).

Em ambos os casos, refere-se a como um Haiti (#1 ou #2) é estrangeiro em relação ao outro. Isso vale

tanto para o Haiti contemporâneo como para Saint-Domingue. Um dos textos de Hurbon (État et religion

au XVIIe siècle face à la esclavage) faz comentários mais gerais, sobre como um povo escravizado é

sempre um povo estrangeiro, e como considerar Saint-Domingue/Haiti como seu próprio país foi um dos

atos fundadores da revolução. A elite (#1) também usaria várias estratégias de distanciamento para tornar-

se estrangeira ao povo (#2). A mesma metáfora aparece em Wargny (2008:65): L‟ethnologue [Duvalier]

connaît surtout les masses rurales, tenues à l‟écart, ces victimes permanentes, oubliées, moquées,

méprisées, martyrisées, écrasante majorité d‟étrangers dans leur propre pays.

Page 72: Construções do fracasso haitiano

60

e terrível deste sistema, teriam adotado a estratégia oposta da esquiva. O que para uns

se limitava a uma guerra de independência se transformava, para os outros, em uma

guerra de libertação contra todo um sistema (Barthélemy 1989:25). Assim, enquanto o

lado créole sonhava em restabelecer a plantation sem a escravidão, apropriando-se da

riqueza gerada no processo, o lado bossale usava de todos os meios possíveis para

boicotar este sistema e se recusava a enriquecer terceiros com o seu trabalho.

Enquanto o grupo créole apropriou-se não só das plantations dos franceses, mas

da herança de sua língua, de sua cultura, de sua religião e de sua organização estatal,

os outros [bossales] reencontrariam no terreno abandonado um meio (suas roças), uma

religião (vodu), uma língua (kreyol) e uma estrutura familiar (lakou e plaçage)

(Barthélemy 1989: 24).

A partir de dois projetos políticos e de duas origens geográficas distintas, em

breve teremos (em ordem e respectivamente para o primeiro #1 e o segundo Haiti #2),

duas religiões (#1 cristianismo #2 vodu), dois modos de produção (#1 agricultura de

exportação #2 roças de subsistência), duas línguas (#1 francês #2 kreyol), dois relevos

(#1 planícies #2 montanhas), dois regimes de posse da terra (#1 grandes propriedades,

freqüentemente nas mãos de militares e políticos de alto escalão #2 uma posse precária,

mais de fato que de direito, muitas vezes sem quaisquer documentos, da massa de

famílias camponesas), dois estilos militares que vem desde as guerras de independência

e se prolongam por mais de um século (#1 organização de um exército regular com uma

hierarquia bem definida e #2 lógica das guerrilhas, de uma multiplicidade de bandos

independentes, em trânsito ou escondidos em locais de difícil acesso, sem comando

centralizado e unificado), dois sistemas morais (#1 progressista, desenvolvimentista,

centralizador e hierárquico #2 igualitário, muito pouco interessado no progresso e

avesso a qualquer possibilidade de concentração de renda e de poder), duas culturas (#1

Page 73: Construções do fracasso haitiano

61

herdeira da civilização francesa, letrada, de onde viriam intelectuais ansiosos/as em

provar a perfectibilidade da raça #2 uma cultura de matriz africana, refratária aos

valores que se pretendem civilizados, desviando-se tanto quanto possível do contato

para manter sua própria especificidade, sua identidade). Logo, a distinção entre créoles

e bossales transcende seu referencial histórico concreto para representar dois países

distintos, que nasceram juntos e nunca deixaram de se definir um em oposição ao outro.

Trata-se de um sistema de diferenciação que se replica até englobar todos os campos da

vida.

O meio rural haitiano possui uma coerência e uma lógica interna que nos é a

priori estrangeira... uma realidade que se inscreve até nos gestos e detalhes mais

ordinários da vida cotidiana... nos fenômenos da agricultura, da saúde, da religião,

da linguagem... um comportamento global que só nos parece desconcertante, ou às

vezes inexistente, porque não o compreendemos. Barthélemy 1989:17. [O “nós” da

frase se refere, grosso modo, ao #1 Haiti, ou seja, “nós, haitianos urbanos letrados”.]

As duas respostas opostas ao dilema de 1804 transcendem seu tempo. O que se

passa hoje no Haiti, para boa parte da população, revela ainda fenômenos idênticos

àqueles manifestados no início do século XIX (idem:20). Ou ainda: vemos bem que a

condição atual do campesinato... é a prolongação, em um novo registro, do velho

conflito inicial (idem:25). O país créole tentou enriquecer às custas do país bossale, que

resistiu. O Haiti de cima (#1) seria portanto um país explorador e colonialista, enquanto

o Haiti de baixo (#2) seria um país explorado, miserável, precário, mas persistente e

rebelde. Aí residiria a profunda originalidade haitiana – enquanto no resto da América

Latina, a elite agrícola dona de monoculturas de exportação em latifúndios alcançou

grande sucesso, no Haiti isso nunca foi possível, devido à resistência camponesa.

Seu sucesso [da elite agrícola] foi muito parcial [no Haiti], na medida em que o

sistema explodiu [a été éclaté] em duas partes antagonistas, em torno de duas

culturas, a oposição de classes se transformou em um sistema de colônia interna, no

qual a nação créole, incapaz de assimilar a nação bossale, só soube sujeitá-la.

Toda a história do país, desde a independência, vai ser marcada por este

dualismo fundamental, por esse choque que, em si mesmo, e pela natureza da

relação colonial, não vai cessar de se consolidar entre os dois protagonistas, [#1

créole versus #2 bossale] por Estado interposto. Barthélemy, 1989:26. Grifo

original.

Page 74: Construções do fracasso haitiano

62

Na versão de Barthélemy, o dualismo possui uma gênese, a origem da

diferenciação está na vontade de manutenção (#1) ou recusa (#2) das plantations. Daí, a

diferenciação se espalharia por todos os campos da vida – religião, cultura, língua,

modos de organização política, parentesco, hábitos de consumo etc. Isso acontece sem

que um nível tenha necessariamente predominância sobre os outros. As dicotomias

coexistem e são simultâneas.

Para Barthélemy há apenas um único par ao qual é negada uma relevância

imediata: cor, ou raça. Esta dicotomia em especial é objeto de debates e polêmicas, e há

em vários autores um esforço de descolá-la das anteriores, o que é também um ataque à

obra de François Duvalier. De fato, a raça ou a cor não é considerada como um valor,

mas apenas um suporte de outra coisa.96

Cor como um dos idiomas da divisão.

Na opinião de Barthélemy, não é a cor que divide o Haiti em dois, mas, como

vimos, diferenças culturais e de projetos políticos e econômicos. Fora das abundantes

citações usadas no livro, o tema aparece pouquíssimo, e quando aparece é para ser

rapidamente neutralizado:

Desde os tempos da colônia, essa discriminação estava de alguma forma oculta

por um outro preconceito fundamental: o da inexistência da personalidade jurídica

do escravo. Após a independência e na ausência de uma resolução do conflito,

dentro da classe dos Affranchis, entre mulatos e negros livres, a questão da cor virá

ocultar a competição fundamental pela supremacia e esse combate é, antes de mais

nada, cultural e econômico. Não podendo se apoiar em nenhuma desigualdade de

ordem jurídica para justificar uma reivindicação de preeminência, restou evocar o

velho preconceito de cor. Barthélemy 1989:120.

96

Barthélemy 1989:120. No contexto, ele cita como a melhor prova o fato de que, no começo do século

XIX, os soldados poleneses, sob as ordens de Leclerc, se rebelaram e passaram para o lado dos escravos

em luta contra o exército francês. Uma vez tomada a posição contra a escravidão e as plantations, os

poleneses se sont trouvés absorbés par la couleur et par la culture noire. Ils se sont pour ainsi dire

“congolisés” en s'intégrant définitivement au système de la contre-plantation. Idem:121. O termo contra-

plantation foi cunhado por Jean Casimir, para se referir ao controle camponês das terras, aos lakous e a

agricultura de subsistência. O termo é usado várias vezes por Barthélemy para falar do Haiti bossale.

Page 75: Construções do fracasso haitiano

63

A idéia de que o preconceito de cor seja evocado aplica-se mais aos salões

íntimos do que aos discursos públicos.97

Na maior parte das versões, a aristocracia da

pele, como por vezes é chamada a elite mulâtre no Haiti, tentaria, pelo menos

publicamente, desviar-se do idioma racial, que seria prejudicial às suas pretensões

políticas em um país onde a imensa maioria da população é negra.

Para medir o peso atribuído ou negado às questões de cor, é interessante ver a

leitura que Barthélemy propõe da obra de François Duvalier, criador de uma doutrina

que é importante não subestimar, porque suas premissas são justas e pertinentes mesmo

se as conclusões são aberrantes (Barthélemy 1989:136).98

Duvalier parte da seguinte pergunta: Como explicar que, desde 1804, a classe

negra, majoritária, tenha sido dominada pela minoria [mulata]? (apud Barthélemy

1989:137). Sua resposta supõe defeitos culturais que seria preciso consertar – tarefa da

qual o próprio, em breve, se encarregaria. Barthélemy julga a análise feita por Duvalier

da cultura camponesa bastante perspicaz e fiel à realidade. Mas aquilo que Duvalier

identifica como defeitos próprios à classe negra (#2) são para Barthélemy as

características típicas da cultura bossale (#2). Além de inverter os sinais, atribuindo um

valor positivo ao que Duvalier considera graves defeitos ou falhas [graves défauts ou

tares], Barthélemy passa por cima daquilo que para Duvalier era o essencial – a divisão

97

Em Hoffman (1990:73-98) o caso é mostrado com grande riqueza de fontes, nas quais o racismo seria

um tema quente nas discussões internas, mas um tabu absoluto em diálogos com blans. Um dos exemplos

mais impressionantes é Hannibal Price, autor de De la réhabilitation de la race noire par la République

D‟Haïti, livro que buscava provar, em diálogo com o público branco, a perfectibilidade da raça negra.

Hoffman cita (1990:87) uma carta privada, supostamente escrita por Price a Frédéric Marcelin, na qual

ele acusa: Vous êtes une franche canaille parce que, mulâtre, vous servez un gouvernement de nègres [...]

Mulâtre, je suis sûr que vous avez les nègres en horreur autant que moi. 98

Talvez valha a pena notar que a maior parte dos textos de Duvalier citados por Barthélemy são da

época em que ele era um médico que costumava viajar ao interior e um etnólogo, estudioso dos costumes

camponeses, cerca de 15 anos antes de chegar à presidência do país.

Page 76: Construções do fracasso haitiano

64

entre noirs (#2) e mulâtres (#1). A divisão entre elite créole e povo bossale passa ao

primeiro plano, tornando quase irrelevante a questão da cor.99

Na versão de Trouillot da história haitiana, em Haiti: State against nation, os

conflitos entre noirs e mulâtres aparecem como importantes, mas mais para apontar um

idioma da discórdia, manipulado por determinados/as atores/as, do que para endossar a

divisão em si. O Haiti seria inegavelmente divido em dois, mas segundo outro critério.

A divisão que possuiria um verdadeiro valor explicativo seria aquela, ao mesmo tempo

conseqüência e pressuposto da organização econômica nacional, entre campesinato

como classe produtiva e uma elite urbana, dominante e parasita.

Essa organização socioeconômica dividiu a nação em dois grupos

marcadamente diferentes: [#2] agricultores e [#1] citadinos reunidos em torno da

aliança entre governantes e mercadores. Os citadinos geralmente concordavam que

existia algo que era chamado de l‟arrière pays (o interior), um termo guarda-chuva

que incluía o grosso da população. ... A separação física influenciou a gestação de

padrões culturais distintos... A expressão haitiana moun andeyò (literalmente,“as

pessoas de fora”), usada por citadinos para referir-se ao mundo rural, é tão

significativa quanto a expressão em francês l‟arrière pays. Ela indica ao mesmo

tempo um reconhecimento e uma aprovação implícita da separação. Os

camponeses, por sua vez, referem-se a indivíduos poderosos, especialmente quando

vêm da cidade, como Letá (“o Estado”), independente de terem ou não laços

efetivos com o Estado. Ambos os lados reconhecem a cisma.100

99

Dans le sous-ensemble que est appelé l'Élite, on peut ranger les descendants des anciens libres,

mulâtres et noirs, et éventuellement les fils des esclaves à talent et autres créoles de l'inteligence [#1]; la

mission de cette élite sera double: d'abord se réformer elle-même par l'éducation [#1] et ensuite réformer

le peuple [#2]. La condition et le fruit de cette réforme par l'éducation seront de réconcilier, avant toutes

choses, les élites noires et mulâtres entre elles [homogeneização de #1]. Barthélemy 1989:139. Pouco

depois, ao comentar os poderes hierárquicos (todos créoles – por definição, bossales são contra

hierarquias) que Duvalier combateu para concentrar em si todos os poderes: Un combat contre les

mulâtres pour simplifier encore la question de la fusion des élites [homogeneização de #1] en n'en

laissant qu'une seule en place. Idem:140. Aqui já tocamos também outro tema ao qual voltaremos mais

tarde, a saber, o peso da educação como vetor civilizador, ocidentalizante, mais ou menos como uma

saída da natureza, entrada na cultura. Tais como expostas no Corpus, há uma grande afinidade entre as

idéias de desenvolvimento e modernidade com a educação formal. 100

This socioeconomic organization divided the nation sharply into two markedly distinct groups: the

agricultural producers and the urbanites clustered around the alliance of rulers and merchants. The

urbanites generally agreed that there was something they called l‟arrière pays (“the hinterland”), a

catchall term that included the bulk of population. But the economic structure – in particular the

prevalent system of surplus extraction – meant that wealth could be pumped out of the peasantry without

the urbanites ever coming into contact with, or even seeing, them. The nation [#2] met its masters [#1]

only through intermediaries, and only at points of exchange. This physical separation influenced the

gestation of distinctive cultural patterns in the first half of the nineteenth century as much as the

international blockade imposed on the republic. For the most practical purposes, the Haitian peasant was

as isolated from the country‟s other classes as Haiti was from the rest of the world. The Haitian

expression moun andeyò (literally, “people outside”) that urbanites use to describe the peasantry is as

telling as the French arrière-pays. It signifies both an acknowledgment and an implicit approval of the

split. Few urbanites ever wondered how a majority of the nation could be seen as being “outside”.

Peasants in turn often refer to powerful individuals, especially urbanites, as leta (“the state”), regardless

Page 77: Construções do fracasso haitiano

65

Portanto, a diferença que faz a diferença seria aquela entre (#2) uma sociedade

civil sem nenhum tipo de organização institucional, camponesa, cuja produção sustenta

o orçamento nacional e (#1) as classes governantes, do meio urbano, responsáveis pela

administração do Estado e beneficiárias de seus frutos, assim como a elite que, mesmo

quando eventualmente fora da estruturas formais, possui influência direta sobre o

Estado. O princípio básico da divisão – a exclusão do campesinato – potencializaria

uma série de outras divisões, estigmatizando tudo que pertence a este mundo.101

A elite (#1) aparece sub-dividida em elite comercial e elite política. Mesmo esse

quadro de três atores (elite 1, elite 2 e as massas) é binário – as duas elites formam

grupos suficientemente distintos para brigar entre si, a relação entre ambas é tensa, mas

elas formariam um grupo coeso e compacto (#1), cúmplices na manutenção de seus

privilégios, sempre que a ameaça vem de baixo (#2). Estado (#1) e nação (#2) seguiriam

caminhos antagônicos desde as lutas de independência, situação que teria sido

brutalmente agravada nos tempos dos Duvalier. 102

Em sua versão da história nacional, há uma certa identificação da elite

comerciante como tipicamente mulâtre e da elite política como tipicamente noir.103

Desde 1804 vai tomando forma um “partido mulato” (embora nem todos seus membros

of their actual ties to the state apparatus. In short, both sides acknowledge that a split exists. Trouillot

1990:80-1. 101

As the alliance increased the peasant‟s isolation, national institutions – particularly Christian

churches, but also the press, the judiciary and the schools – showed themselves less and less capable of

bridging the gap between political and civil society, or papering over the dichotomies through which this

gap became tangible: governors vs. governed, urban vs. rural, Creole vs. French, Christianity vs. Vodoun

etc. Idem:85. 102

Even though state and nation were taking shape at the same time and as part of the same

revolutionary process, they were launched in opposite directions. State and nation were tied by the ideal

of liberty, but the nation [#2] measured its liberty in Sunday markets and in the right to work its own

garden plots. The Louverture party [#1], on the other hand, embryo of the state to come and ferocious

defender of this same liberty, was firmly attached to the plantation system. Leaders wanted export crops;

the cultivators wanted land and food. Idem: 44. 103

Por volta de 1804, dentro do primeiro Haiti [#1] a cisão mais fundamental era entre anciens libres e

nouveaux libres – entre quem já era livre antes do início da revolução e quem ganhou a própria

liberdade durante a guerra. Por razões históricas, a maioria entre os primeiros eram gens de couleurs –

ou seja, mulatos ou outros fenótipos considerados de pele clara – e sua prole; os últimos eram

majoritariamente negros. ... e cor logo se tornou o idioma favorito da rivalidade entre anciens e

nouveaux libres. Idem: 45.

Page 78: Construções do fracasso haitiano

66

tivessem peles claras, e nem todos os mulatos estivessem alinhados desse lado –

idem:46), que se acredita herdeiro natural dos costumes civilizados. Logo após a

revolução, o principal motivo da disputa teria sido a posse da terra. Dessalines (negro,

ex-escravo) queria confiscar terras em nome do Estado, enquanto uma elite,

majoritariamente mulata, defendia um regime de propriedade privada. Alguns títulos de

propriedade eram mais antigos que a revolução. Quando Dessalines é assassinado, o

país é dividido em dois, o reino do Norte comandado pelo rei negro Henry Christophe,

república do sul com o presidente mulato Alexandre Pétion. O reino do norte

experimentou um florescimento econômico, principalmente porque Christophe impôs

com mão de ferro sua versão feudal da “agricultura militarizada”(idem:47).104

Do

outro lado, o fato de que os líderes eram mulatos impossibilitaria políticas

autoritárias.105

Tudo teria se passado como se uma exterioridade racial os tivesse

forçado a uma prestação de contas ideológica. Assim, para manter-se no poder, teria

sido necessário adotar políticas favoráveis às massas, como programas de distribuição

de terra.106

104

Militarized agriculture ou carporalisme agraire são termos muito comuns na literatura para referir-se

às tentativas de manter o regime das plantations após o fim da escravidão. 105

The mulâtres who ran the republic in the West and South could not afford to take so authoritarian a

stance toward black masses without having their legitimacy questioned on the basis of color and origin.

Idem: 47. 106

Buck-Morss (2000:862-63) comenta a cobertura dos jornais europeus contemporâneos da revolução

haitiana, que seria considerada então como um grande experimento acompanhado de perto por

abolicionistas e anti-abolicionistas na Europa. As críticas principais ao Haiti, que inclusive fez com que

ex-partidários da independência haitiana mudassem de opinião, eram a suposta brutalidade do rei Henri

Cristophe e o declínio da produtividade [de gêneros de exportação] sob o sistema de trabalho livre. Por

volta de 1820, os abolicionistas ingleses estariam associados ao reino do norte, enquanto os abolicionistas

franceses estariam do lado da república do sul.

Contrastar também a forma como aparecem em Étienne (norte era desenvolvido) e Trouillot (norte era

rico e autoritário). Il [Cristophe] conservait le régime des grandes plantations qui garantit l‟ordre

politique, économique et social qu‟il instaura. Nonobstant sa crualté, son projet représentait la seule

alternative viable au système colonial esclavagiste. L‟aristocracie christophienne composé des généraux

et officiers les plus important du royaume, qui gérait les grandes domaines publics, s‟engageait de à faire

frutifier les plantations et à maintenir un niveau de productivité elevé qui enrichera le royaume et

consolidera l‟État dans le Nord. Tandis que dans l´Oeust et le Sud, le populisme démagogique

d‟Alexandre Pétion conduisait, dans la même période, au morcellement de terres, ce qui constituera un

obstacle majeur au développement de l‟agriculture intensive et entraînera l‟institutionnalisation et la

généralisation de la corruption ainsi que, en fin de compte, l‟affaiblissement de l‟État (Étienne

2008 :324, meus grifos).

Page 79: Construções do fracasso haitiano

67

A divisão desses dois Haitis, reino e república, embora tenha um sentido bem

diferente do assunto principal deste capítulo, interessa por tornar claro que um governo

identificado como racialmente (outros podem ser acionados com os mesmos efeitos)

diferente do povo fica numa posição ameaçadoramente visível.

Tomar controle direto do Estado logo teria se tornado problemático para essa

classe, que contudo consegue alcançar sucesso no comércio.107

Aí começaria a gênese

de uma elite mercantil haitiana (ou semi-haitiana, em virtude de seus laços com e

trânsitos constantes por outros países, capacidade de mobilidade e transferência de

recursos essencial para seus métodos de acumulação). Essa elite ainda se transformaria

nas décadas por vir, em especial com a chegada de levas migratórias libanesas com base

nos Estados Unidos. Na história contada por Trouillot, é essa elite comerciante, haitiana

e/ou estrangeira (ou semi-haitiana), quem realmente domina o país, responsável pelo

endividamento do Estado e pelo planejamento de uma política fiscal que jogou sobre as

costas do campesinato (#2) todo o peso do Estado.108

E sem precisar sujar as próprias

mãos. Para não levantar o ódio, os conteúdos reais das políticas seriam dublados por

personagens supostamente mais palatáveis, em virtude de sua cor ou qualquer outra

fonte de identificação com o povo. É a chamada tradição da Politique de doublure,

termo muito comum em textos sobre o Haiti.109

107

The paths of commerce were both more attractive and more accessible to the elite group of light-

skinned officers associated with the ruling mulâtres than to their darker counterparts: they spoke fluent

French and they have been educated in Europe or had better knowledge of Western customs and

practices. And we should not dismiss the possibility that the white merchants had established a hierarchy

in their racism, favoring lighter Haitians. We know diplomats did so (e.g. Saint-John). Trouillot 1990:75. 108

Essa é uma das posições criticadas por Mats Lundahl (1991:412). Trouillot tends to go too far in his

eagerness to prove that the state was manipulated by the merchant bourgeoisie and that this bourgeoisie

was in the position where it could unilaterally decide the terms of exchange with the state. It certainly

takes two to tango. 109

Mats Lundahl dá a seguinte definição; Traditionally, this term is used for mulatto domination via a

black puppet president. (Idem: 412, nota 4). Eis como Étienne (2007 :192) explica sua gênese: À la chute

de Boyer em 1843, l‟élite noir remit en question l‟hégémonie de la minorité mulâtre, en revendiquant

l‟exclusivité de la représentation des classes majoritaires. Pour contorner cet obstacle, les idéologues

mulâtres mirent en application leur fameuse « politique de doublure », consistant à placer au timon des

affaires de l‟État un général noir ignorant, ne pouvant se passer du savoir et du savoir-faire des

intellectuels, bureaucrates et diplomates mulâtres pour l‟organisation et le fonctionnement des

Page 80: Construções do fracasso haitiano

68

Na versão de Trouillot, as duas elites são grupos racializados, mas não de forma

rígida. Percepções cruzadas de cor e classe se influenciam mutuamente, daí seu uso da

categoria cor-social, que pretende também levar em conta várias outras formas de

distinção. Daí o famoso ditado, bastante citado na literatura, Neg rich sé mulat; mulat

pov sé nwa [Negro rico é mulato; mulato pobre é negro].110

Do lado mulâtre as

referência à cor seriam evitadas, enfatizando ao invés sua educação, capacidade,

eficiência e competência (características claramente relacionadas à sua maior

proximidade com a “cultura ocidental”).111

Já do lado noir, a ênfase na cor era uma

poderosa arma contra os privilégios visíveis da elite mulâtre. A visibilidade, a

percepção generalizada de que realmente existe uma “aristocracia da pele” no Haiti, é

instituitions publiques et la politique étrangère du pays. A versão de Trouillot é parecida: With their ties

to commerce and what remained of their properties, these mulâtre easily manipulated their dark-skinned

puppets. Haitian historians have labeled this strategy politique de doublure (“government by

understudies”) and have noted that it turned against its architects when Soulouque, handpicked by

Beaudrun Ardouin in 1847 because he looked like an idiot, arrested, killed or exhiled the very individuals

that had put him in power. Trouillot 1990:76. Notemos que a tradução government by understudies, ao

focar a educação, flexibiliza um pouco as referências raciais – por mais que historicamente a elite mulâtre

contasse com um maior grau de escolaridade, qualquer pessoa com acesso às instituições de ensino,

independente de sua cor, pode intelectualizar-se. A educação sempre foi o caminho por excelência para a

perfectibilidade da raça, essa fé na ultimate primacy of culture over nature (Idem:116). O mesmo vale

para a ênfase do Partido Liberal (mulâtre) na competência. As a group, the clairs had clear economic and

educational advantage since before independence: they could indeed define what it meant to be

“capable”. But the reference to competence allowed them to claim power for themselves while deflecting

accusations of discrimination. Competence was a commodity supposedly avaible to everyone, an

objective toward which the noirs themselves aimed. Idem:126-7.

Barthélemy (1989:126) nega idéia de doublure: Or il ne s‟agit nullement d‟erreur ni de doublure, car le

choix explicité a toujours bien joué, sans équivoque et sans hésitation, en faveur du plus apte à reprimer,

comme le veut la logique de cet État commandeur. 110

Ver por exemplo Trouillot 1990:120, 125 e Fatton 2002:55. Color-cum-social categories operate in

various spheres of urban life as part of different strategies of competition and struggle. They materialize

most vividly in the familial alliances typical of certain urban classes and they are often a favored idiom of

politics. But they also function as referents for sociocultural oppositions outside of this immediate

political arena. Trouillot 1990:110. Color categories embrace characteristics that go far beyond the

perceived phenotype into the field of social relations. These can include income, social origin, level of

formal education, customary behavior, ties of kinship or marriage, and other characteristics. Idem:113.

Trouilot (1990:234-5, nota 7) discute as primeiras versões do ditado, da qual a mais antiga seria Nèque

rich qui connait lit et écri, cila mulâtre, mulâtre pauve qui pas connait li ni écri, cila nèque [o negro rico

que sabe ler e escrever é um mulato, e o mulato pobre que não sabe ler nem escrever é negro]. Ao lado da

renda, aparece a alfabetização como fator “embranquecedor”. 111

Understandably mulâtrisme as an ideology of power has always been defensive in Haiti, in part

because it could always be accused of being a version of Western racism. Its most diehard proponents –

who often looked, sounded or acted more “Western” than other Haitians – rarely dared to claim

exclusive social and political rights on the basis of “color”, however defined. … from the war of

independence to the present the nation has always conceived itself as a “black” community. This racial

sense imposed severe limits on the expression of mulâtre ideology. Idem:117.

Page 81: Construções do fracasso haitiano

69

importante.112

O noirisme bateu constantemente nessa tecla. Essa divisão mais ou

menos corresponde no campo político à oposição mais antiga entre o Partido Liberal

(identificado com mulâtres), cujo lema era poder aos mais competentes, e o Partido

Nacional (noir), cujo lema seria poder ao maior número.113

Como o livro de Trouillot busca explicar como foi possível a ascensão e

consolidação de um François Duvalier no poder, o assunto é de suma importância para

ele, mas com a intenção de mostrar que a oposição entre mulâtres (#1) e noirs (#2) – a

partir da qual François Duvalier relê toda a história haitiana – desvia a atenção do

verdadeiro conflito. Como vimos, a oposição decisiva ao longo da toda a história

haitiana seria aquela entre (#1) uma elite urbana, numericamente ínfima se comparada

ao resto da população, que concentra todas as tomadas de decisão (subdividida

internamente em facções que, mesmo sendo concorrentes, desempenham papéis

112

This perception of an epidermal elite, whose income, education and social status remained

inaccessible to the majority… created extraordinary resentment among urban noirs. … As such, noirisme

has always been an extremely potent discourse in Haiti, and it is likely to remain so as long as the

perception of an “aristocracy of the skin” remains. Idem: 125-6. 113

C‟est pourquoi, vers la fin du XIXe siècle, les deux principaux partis politiques (crées sur une base

clientéliste) dominant le pays correspondant respectivement aux deux tendances basées sur une idéologie

coloriste: ce sont le Parti nacional (où les Noirs se reconnaissent) et le Parti liberal (parti des mulâtres),

même si en chancun d‟eux Noirs et mulâtres se trouvent représentés. Hurbon 1986:92.

En se qui concerne le pays créole, le débat formel sur ces thèmes [tensão entre liberdade e

igualitarismo] s‟est en quelque sorte cristalisé autour de deux grandes tendances politiques de la fin du

XIXe siècle: Parti National et Parti Libéral. Le Parti National, plus populaire, plus égalitaire, ne fait pas

la liberté sa revendication fondamentale: “Le pouvoir au plus grand nombre”. … Le Parti Libéral de son

côté, en déclarant: “Le pouvoir aux plus capables”, réintroduit le vieux concept hiérarchique de la

distinction des niveaux: une hiérarchie qui n‟implique pas non plus forcément la liberté individuelle que

semble pourtant indiquer le nom même du parti. Barthélemy 1989:123-4.

An embryonic noirisme was already visible in Louverture‟s polemical use of the “color question”

against Rigaud in the late 1790s. Noiriste arguments appeared in 1843 in the fight against Boyer, then

less subtly in the 1860s with the Parti National, whose slogan was, significantly, “the greatest good to the

greatest number”. There was no doubt to whom the “greatest number” refered. [Do outro lado,]

mulâtrisme capitalized on the illusion of competence. The theory was encapsulated by the middle of the

nineteenth century in the slogan of Edmond Paul, a dark-skinned theoritician of the Parti Libéral: “Le

pouvoir aux plus capables”. One can trace the roots of that slogan in the writings of many mulâtres in the

immediate aftermath of independence. … Just as everyone knew to whom the “greatest number” refered,

so they knew who claimed to be “most capable”. Trouillot, 1990:126.

Le Parti national regroupait les grands propriétaires et généraux noirs qui si disaient les

répresentants authentiques des masses noires constituant la majorité du pays. Le slogan de ce parti était:

“Le pouvoir au plus grand nombre!” Le parti libéral, de son cotê, regroupait les généraux, propriétaires

et commerçants mulâtres. Se prenant pour les fils ou les cousins des Blancs, les Mulâtres se croyaient

génétiquement supérieurs aux Noirs, et ayant reçu la science infuse de leurs ancêtres de cette manière, ils

reclamaient le contrôle de la direction de l‟appareil étatique à travers leur slogan: “Le pouvoir aux plus

capables!” Étienne 2008:213, nota 12. Em seguida, Étienne refere-se ao mesmo texto de Hurbon citado

acima.

Page 82: Construções do fracasso haitiano

70

complementares) e (#2) moun andeyò,114

a nação, o povo, as massas do campo e dos

bindonvilles das cidades, a grande maioria excluída desde sempre das esferas de poder,

a classe trabalhadora sugada por (#1) uma elite parasita. Primeiro e segundo Haiti

também viveriam relações conflituosas e complementares.

Um dos artigos de Laënnec Hurbon (La négritude dans la vie nationale) se

dedica exclusivamente à análise da importância das diferenças de cor na história

haitiana. 115

Parece-nos significativo que o texto comece quase que se desculpando por

abordar tal tema, como se este fosse um assunto maldito que implicasse cumplicidade

da parte de quem o evoca, como se atribuir alguma importância ao noirisme forçasse a

uma posição pró ou anti-noiriste. Hurbon não pretende discutir o movimento em todas

as suas vertentes caribenhas e africanas, mas apenas os usos do discurso noiriste no

Haiti desde 1957, ou seja, desde a eleição de François Duvalier. Sua intenção é mostrar

que, no caso preciso do Haiti, a negritude remete a toda uma escritura da história do

país baseada sobre o paradigma da oposição Noir/mulâtre que o discurso duvalierista

soube manipular com sucesso (Hurbon 1986:90).116

Para sair do duvalierismo – sem

dúvida a grande questão da segunda metade dos anos 1980s no Haiti – seria necessário

portanto formular uma ruptura epistemológica contra este paradigma.

Hurbon nos lembra então, como de costume, as heranças e desafios de 1804 –

desfazer as divisões raciais criadas pela escravidão, erigir um Estado independente,

proteger a liberdade conquistada. Enquanto uma elite se esforçava para articular a

governabilidade e garantir a independência nacional, outra realidade pouco a pouco

toma consistência: a marginalização das massas de nouveaux libres pelo novo poder do

114

A palavra andeyò em kreyol soa parecida com a expressão en dehors em francês. O sentido também é

parecido – andeyò se refere ao meio rural, ao que fica longe, ao “mato”, ao que está do lado de fora. A

expressão já citada moun andeyò significa as pessoas que vem dos ou vivem nos espaços andeyò.

Trouillot e Fatton traduzem a expressão como “as pessoas de fora”. 115

Por vezes aparece a palavra raça, aparentemente como sinônimo, mas cor e derivadas como colorista

são muito mais usadas ao longo do texto. 116

Não sei porque, mas Hurbon sempre usa Noir com N maiúsculo, e mulâtre com m minúsculo.

Page 83: Construções do fracasso haitiano

71

Estado (idem:91). Eis, mais uma vez, a verdadeira divisão – a exterioridade do Estado e

da elite (neste caso, sem muita diferenciação entre elite e governo) em relação à nação

como um todo.117

Para Hurbon, a deriva racial dos problemas sociais e políticos é uma questão

que, pelo menos originalmente, interessa muito mais à elite haitiana (#1) que ao povo

(#2).118

Sua compreensão só seria possível levando em conta o contexto internacional,

no qual o discurso que vinha das grandes potências ainda era abertamente racista, em

um tempo em que a escravidão ainda existia legalmente em boa parte do mundo, e onde

o Haiti era deliberadamente usado como mau exemplo, como modelo de um refluxo da

“civilização” rumo ao barbarismo, feitiçaria, despotismo, canibalismo (idem, 92).119

A

elite haitiana teria se lançado então em busca de reconhecimento do mundo civilizado,

em um anti-racismo defensivo que continuava preso na lógica do pensamento racista

dominante na época. Viria daí um pensamento abertamente elitista – seria preciso criar

grandes intelectuais negros para provar que não se trata de inferioridade biológica, mas

apenas cultural, portanto uma condição temporária e mutável (naquele tempo, ninguém

ousaria negar “o Ocidente” como modelo120

) – para provar a perfectibilidade da raça.121

117

Autour de l‟État, en effect, une classe de privilégiés (classe politique en même temps) [#1] se charge

d‟être l‟unique porte-parole de la nation [#2]. Désormais, dans les professions de foi les plus nationales,

la nation haïtienne [#2] dérivera comme un objet irrémédiablement perdu. ... sur [#1] la scène politique

et littéraire, tout au long du XIXe siècle, tous ces [#2] problèmes sociaux [refus de la corvée, refus des

denrées d‟exportation, réclamation du droit à la propriété, du droit à la libre circulation à travers le

pays] sont ensevelis sous un language racial répandu et développé par la classe de privilégiés [#1] tout

autant noirs que mulâtres. L‟écriture de l‟histoire haïtienne ne sera autre que la répétition indéfinie des

divisions raciales : «Est-ce le mulâtre ou le Noir qui devra gouverner le pays ?» Idem:91-92. 118

Idem:92. Pouco à frente: Le débat de la négritude en Haïti se déploie pour l‟essentiel, nous l‟avons vu,

dans le cadre de la petite bourgeoisie et de la bourgeoisie. Ibidem :105. O uso do termo “burguesia”

indica que a verdadeira oposição, por trás da falsa querela sobre a cor da pele, seria de classe. 119

Os dois exemplos citados por Hurbon são, aparentemente, clássicos do pensamento racista, colonialista

e anti-haitianista: Haïti ou la Republique noire, do diplomata inglês Spencer Saint-John (1886), e

L‟Empereur Soulouque et son empire, de Gustave d‟Alaux (1856). 120

La civilization européenne est tenue pour modèle et l‟idéal de tout civilisation possible, ou encore

seule l‟adoption de la pensée libérale européenne permettra le dévelopment économique d‟Haïti.

Idem:47. 121

Parler de littérature nationale et patriotique ou de littérature tout court en Haïti, c‟est indiquer une

seule et même chose : l‟intellectuel haïtien, par sa seule existence d‟intellectuel, est censé détruire les

thèses de l‟inégalité raciale. Idem :46.

Page 84: Construções do fracasso haitiano

72

Esse tipo de preocupação teria absorvido a maior parte das energias da intelectualidade

haitiana ao longo de todo o século XIX.

François Duvalier, conhecedor da história haitiana e dos poderes de sua

evocação, já bem antes de se tornar uma figura politicamente importante (Le problème

des classes à travers l‟histoire d‟Haïti, considerado um de seus livros essenciais, teve

sua primeira publicação em 1938) teria concebido uma rigorosa equação entre cor e

classe, explicando todos os problemas nacionais de uma forma mágica – o problema,

desde 1804, seria a concentração de poder em mãos mulâtres.122

A solução, portanto,

seria transferir o poder a um líder noir – obviamente, o próprio Duvalier.

Nessa chave de leitura da história haitiana, a tese dos dois Haitis aparece como

um dado. A popularidade que essas idéias alcançaram na segunda metade dos anos

1950s, e suas conseqüências posteriores, testemunham seu imenso potencial para

suscitar adesões. A dupla polarização, de classe e de cor, se unifica para gerar resultados

idênticos. O esforço teórico anti-duvalierista proposto por Hurbon consiste em descolar

as polarizações, em mostrar que classe e cor não são redutíveis entre si, em evidenciar

outros critérios de polarização.123

Mas, em si, a idéia da polarização nunca é alvo, nem

para Hurbon nem para nenhum dos autores do Corpus.

122

La relecture des énoncés de l‟ideologie duvaliériste nous met justement en présence de la

manipulation d‟un héritage idéologique déjà là, sédimenté pendant tout un siècle, et dont les thèmes

circulent, éparpillés dans la vie quotidienne, dans la littérature et dans les discours politiques. ... tout ce

qui paraissait encore au début du siècle comme attention aux masses de paysans pauvres, aux chômeurs

des bindonvilles, va peu à peu être noyé dans un language racial porté à son paroxysme. ... Là où la

narration de l‟histoire en termes de lutte raciale demeurait encore hésitante au XIXe siècle, le discours

de Duvalier achèvera de la figer en établissant une équation rigoureuse entre classe et race en Haïti. Les

esclaves sont nommés comme classe et comme race à la fois, en sorte que toutes les pratiques, tous les

intérêts en jeu ne renvoient plus qu‟à un seul determinisme: le facteur racial. Idem:94-95. 123

Apesar de ser o principal alvo, a crítica não se dirige exclusivamente a François Duvalier e ao círculo

de noiristes do qual ele participava. Assim, Hurbon (1986: 100) critica a obra Ethnicité, nationalisme et

polique: Le cas d‟Haïti (de 1975, ou seja, publicada quando Jean-Claude Duvalier ainda estava no poder)

de Leslie Manigat (personagem pouco suspeito de duvalierismo), porque este livro demeure dans la même

narration de l'histoire d'Haïti en fonction de l'opposition Noir/mulâtre. Étienne (2007:22) também usa a

atribuição de peso ao fator racial como categoria de acusação, e critica o mesmo livro de Leslie Manigat,

pelo mesmo motivo: Certaines études inscrites dans cette perspective présentent une vision de l‟histoire

d‟Haïti comme une simple opposition entre Noirs et Mulâtres, réduissant la lutte pour le pouvoir entre

l‟élite mulâtre et l‟élite noire à une simple question de couleur. Ou ainda: L‟amalgame classes-races est

Page 85: Construções do fracasso haitiano

73

Kreyol VS. Fransé.

Vários dilemas do conflito entre os dois Haitis ganham corpo nessa diferença,

nos circuitos específicos mobilizados por cada língua. A dicotomia linguística é uma

questão central, poderoso signo de distinção e de abertura/contato com o mundo exterior

e, logicamente, fechamento/isolamento do lado oposto. 124

Cada língua dispara uma

série de associações, das quais a mais marcante é do kreyol com a oralidade, e do

francês com a escrita e a “alta cultura”. Como já vimos na introdução, o kreyol é falado

por virtualmente 100% da população haitiana, enquanto o francês é falado fluentemente

pelas classes educadas, com um grau de domínio decrescente quando passamos às

outras classes, até o grosso da população que entende pouco ou nada nessa língua.

É unanimidade no Corpus que a excelência no domínio da língua francesa (oral

e escrita) é um poderoso sinal diacrítico de classe. O desconhecimento do francês se

mescla ao desconhecimento da escrita, o que sustenta a acusação de ignorância

un phénomène typiquement haïtien qui remonte à la période colonial et qui est véhiculé dans la société à

travers les manuels d‟histoire et les discours de certains tenants de l‟École ethnologique haïtienne,

adeptes de la « négritude » ou du « noirisme ». Cette conception des classes sociales frise l‟absurde, car

elle définit l‟appatenance à une classe non pas en fonction de communauté d‟intérêts... mais surtout au

regard de sa couleur ou de sa race (idem: 61). Trouillot (1990:119) também os descola, mas na intenção

de mostrar, contra as análises tradicionais marxistas, que o preconceito de cor no Haiti é irredutível a

questões de classe: Either the color question is an immediate reflection of class relations–and then it

would have no autonomy, for the entire dominant class would be clair and all the clairs would be of the

dominant class (which is obviously false, and very close to the Denis-Duvalier 1938 thesis)–or color

prejudice is relatively autonomous with regard to economic structures, and this autonomy must be taken

into account. Ênfase no original. 124

Na verdade há bem mais de duas línguas. Como mostra Hoffman (1990:285-289), desde 1915, o inglês

já vem aparecendo como uma língua franca alternativa ao (e eventualmente adversária do) francês, falado

por boa parte da elite e pela numerosa diáspora haitiana estabelecida nos Estados Unidos. Há um forte

fluxo rumo a República Dominicana que, como a maioria dos países da região, fala espanhol. Desde a

intervenção da ONU em 2004, comandada pelo Brasil, é possível que até o português ganhe seu lugar no

panorama linguístico haitiano. A multiplicidade linguística foi uma questão absolutamente central no

trabalho de campo, e o fato de que eu falasse kreyol melhor do que francês causou situações engraçadas e

constrangedoras. É uma dinâmica das mais interessantes, que mereceria uma dissertação inteira, e levanta

questões que não poderemos desenvolver aqui. Cada língua mobiliza circuitos específicos, cada uma

oferece oportunidades específicas, e várias pessoas dominam várias línguas. Contudo, é preciso notar que

a expansão da língua inglesa, com seu prestígio internacional, só ameaça o francês, jamais o kreyol,

veículo de comunicação por excelência entre aysiens. A diferença primordial se mantém, portanto, entre a

língua aysien, oral, interna, e as línguas blans, escritas, faladas por diferentes segmentos da chamada

comunidade internacional. A terceira parte do livro de Hoffman (1990:200-289) possui muitas indicações

valiosas para pensar essas questões. Nos ateremos à discussão tal qual ela aparece no Corpus, onde a

oposição discutida é basicamente entre kreyol e francês, e onde o grosso da população é sempre tida como

falante exclusivamente de kreyol.

Page 86: Construções do fracasso haitiano

74

frequentemente dirigida ao “povo haitiano”, ao #2 Haiti. As chamadas diferenças

culturais entre o #1 e #2 Haiti encontram aqui uma de suas manifestações mais patentes.

A terceira parte do livro de Hoffman (1990:200-289) mostra, mais uma vez com grande

riqueza de fontes, em quase duzentos anos de debates, como a reivindicação de um

vínculo cultural com a civilização francesa, contra uma atitude oscilante, pró ou contra

o pólo de identificação contrário (“a África”), atravessou a querela linguística. Hoffman

nos lembra sempre que esse é um debate interno da elite – todas as suas fontes, pelo

mero fato de escreverem e publicarem, são falas do #1 Haiti. Não é por acaso que a

pesquisa de Omar Ribeiro Thomaz sobre as elites haitianas (ao contrário do Copus, aqui

se trata de uma pesquisa empírica) volte com frequência ao tema da dicotomia

linguística, já que a auto-definição da elite passa por aí:

Eis o grande diferencial que merece uma atenção especial quando tratamos das

elites no Haiti, aquele que não confunde o indivíduo[da elite] com a massa rural

(que domina exclusivamente o créole) ou com os miseráveis urbanos: o controle do

idioma do antigo colonizador. O não conhecimento do francês transforma-se, assim,

num dos mecanismos de exclusão mais destacados: o pobre, de origem rural ou

suburbana, vê fechada qualquer porta de ascenção social e se encontra imerso no

universo que se expressa em créole. Thomaz 2005:52.

Em um texto de Laënnec Hurbon, o aprendizado da escrita em francês aparece

como um “rito de iniciação” no processo de dissociação das massas [#2] falantes de

kreyol, analfabetas e supersticiosas.125

Insígnia da civilização, o conhecimento redimiria

a cor da pele (para autores mais antigos, segundo a leitura de autores do Corpus). Mas o

kreyol não seria sempre um tipo de mancha africana – há uma grande gama de reações,

revalorizações, na qual o kreyol se mescla com o popular, camponês [#2], dotado de

uma sabedoria própria, repertório da haitianidade. Tanto a fluência no francês como no

125

... dès le lendemain de l‟independance, commence un véritable culte du livre, plus précisément de la

grammaire française. Savoir parler ou savoir parler français, c‟est être « éduque » et par là, se montrer

égal au Blanc. Il faut pouvoir « étonner les Blancs » : c‟est le but de toute production littéraire. Sur cette

base, l‟écriture devient « un rituel d‟initiation », un monde d‟intronisation dans le monde blanc, de

dissociation de soi-même comme écrivain par rapport au reste de la société, c‟est-à-dire aux masses

encore illétrées, parlant créole, et supertitieuses. Hurbon apud Thomaz, 2005:56.

Page 87: Construções do fracasso haitiano

75

kreyol podem ser motivos de orgulho, em sentidos complementares e contrários

(cosmopolitismo vs. intimidade cultural).126

Trouillot, que organiza “o dilema haitiano” a partir do conflito entre Estado [#1]

e nação [#2], considera que o uso do francês como linguagem do poder reforçou o

silêncio institucionalizado do campesinato (1990:87). A barreira linguística isola o #1

Haiti do #2. Enquanto a linguagem do poder é inacessível à maioria da população (e,

portanto, muitos de seus mecanismos são incompreensíveis127

), a língua materna é

acessível a todos/as. O conhecimento do francês em si já garantiria um acesso

diferencial ao poder, e o prestígio associado a essa língua estaria espalhado por todo o

país, inclusive no campo. Mas isso não significa que o francês seja preferido sempre,

que os sinais (positivo ou negativo) sejam atribuídos de forma inequívoca a cada língua.

Sua análise da diglossia linguística haitiana enfatiza os contextos em que se deve usar

um ou outro idioma, embora ele não os especifique.128

126

Um pequeno caso trazidos por Thomaz (2005:9): O bom uso do francês era obrigatório entre estas

famílias: se todos se orgulham (em Cap Haïtien) de se expressar adequadamente em créole, muitos

salientavam que, na infância, eram obrigados a usar o francês em casa, pois o créole era a língua dos

criados. 127

Thomaz (2005:34) nos traz um exemplo dramático dessa situação: Saliente-se que a língua francesa,

malgrado a co-oficialidade do créole desde a última constituição (1987), continua sendo aquela utilizada

preferencialmente em eventos públicos oficiais: assim, mesmo em contextos rurais onde seu

desconhecimento é quase absoluto, um juiz de paz proferirá todas as suas sentenças na língua de

Voltaire, o que significa que o réu não compreende, na maioria das vezes, nem o porquê de seu

julgamento, muito menos a pena a qual foi submetido. Este comentário se deve a uma (triste) visita

realizada num presídio da localidade rural de Saint-Raphäel: ao mesmo tempo que os presos afirmavam

sua ignorância de por que estavam ali (roubo de uma cabra?) o juiz que ditara a sentença fazia [questão]

de se expressar exclusivamente em francês. 128

Most linguists have stopped calling Haiti bilingual. They speak instead of a diglossic situation, in

which a bilingual minority imposes one language as the language of power. This analysis is a positive

intellectual development but may still fall short of the truth. Two languages do indeed coexist in Haiti:

French and Haitian. The Haitian (Creole) language probably arose during slavery [#2] and solidified

during the first half of independence. All Haitians speak Haitian as their native language: only a few of

the most educated urbanites are native bilingual. The majority of French speakers (less than 8% of the

total population) reach varying degrees of competence through the school system. Thus the linguistic

dichotomy does not appear at the level of communication, or even a in an unqualified preference for

French: any Haitian is capable of communicating anything to any other Haitian in Haitian, and the most

francophile urbanites often prefer to use Haitian in situations where everyone else is competent in French

[em nota: The preferred uses of Haitian varies with age, gender, and the context of communication

among the elites, but there are social penalties for using French at the “wrong” time, just as there are

penalties for the improper use of Haitian by French-competent speakes]. Rather, the dichotomy resides in

the power attached to certain forms of communication, most of which include the use of French; in the

fact that mere knowledge of French gives differential access to power;in the prestige attached to the

Page 88: Construções do fracasso haitiano

76

Jadotte comenta um pouco mais a ambiguidade dos valores atribuídos a cada

língua. Segundo ele, o francês é apreciado em todas as classes, inclusive o campesinato,

já que depende-se do conhecimento dessa língua para poder ocupar qualquer carreira

administrativa, profissional ou política.129

Mas ao mesmo tempo, é a língua do embuste,

da má fé, da fala pomposa e vazia designada pela expressão em kreyol “w‟ap pale

franse” [“você está falando francês”].130

Jadotte discute a dicotomia linguística no

contexto pós-Duvalier. Para ele, a difusão do kreyol como língua de comunicação

pública, principalmente através do rádio, foi uma das bases da revolução democrática

de 7 de fevereiro de 1986 [dia da queda de Jean-Claude Duvalier]. Pela primeira vez

desde a independência do Haiti em 1804, os assuntos públicos são enunciados, se

articulam e se discutem em kreyol (2005:23).

Embora os termos possam variar, esse é o tom predominante no Corpus sobre a

questão linguística pós-1986, sempre com menção ao papel desempenhado por rádios e

pelas pequenas igrejas [ti-legliz no original], ala de esquerda da igreja católica,

vinculada a teologia da libertação e às Comunidades Eclesiais de Base, que também

faziam seus sermãos em kreyol,131

e as chamadas organizações populares, tipo de

“conceito guarda-chuva” que incluiria sindicatos camponeses, associações de bairro, de

jovens, ajuda mútua comunitária, pequenas cooperativas etc. (Étienne 2007:274-5).

language; and in fact that this prestige is nationwide – even the peasantry believes in it to some extent.

The political consequence is that the exclusive use of French in the nation‟s official discourse appears

“natural”. Trouillot 1990:115. 129

No mesmo sentido, Thomas (s.d. :56) traz várias indicações de que, no campo, vários pais e mães

teriam protestado indignadas contra a idéia de que suas crianças aprendessem a escrever em kreyol,

argumentando que já sabiam falar essa língua e não precisavam da escola para aprendê-la, além do que

escrever em kreyol não lhes abriria nenhuma porta. 130

Le peuple haïtien a toujours eu des rapports ambigus avec le français . Langue officielle, sa maîtrisse

était (et est encore) la seule façon d‟accéder aux carrières administratives, profissionnelles et politiques.

En ce sens, le voeu de chaque paysan est de voir, ses enfants, par le biais de l‟école, faire leur cette

langue. D‟un autre cotê, le français est aussi la langue du messonge et du faux-semblant. L‟expression

courante pour designer une parole enflée et creuse est : « w-ap pale franse ». Jadotte 2005 :23. 131

Um dos mais destacados oradores das Ti Legliz contra o regime Duvalier foi Jean-Bertrand Aristide,

que mais tarde se tornaria presidente do país.

Page 89: Construções do fracasso haitiano

77

Para Étienne (2007:275), foi o uso do kreyol em debates públicos que

possibilitou a irrupção das massas [#2] na cena política [#1], o que teria afetado

profundamente as vantagens que os líderes tradicionais costumavam tirar de sua

superioridade intelectual [#1].132

Pela primeira vez (desde 1804...), o argumento da

força cedeu espaço à força da argumentação. Mas apenas por um curto período, já que

os militares, que naturalmente tomaram conta da transição democrática (daí o fracasso

da democratização), logo começariam uma repressão sistemática contra as

organizações populares.

Na versão de Fatton (2002:28), uma velha modalidade de comunicação

unidirecional, na qual o #1 Haiti possui monopólio da voz, foi subvertida pela agitação

popular que derrubou Baby Doc. “O povo”,133

antes excluído da comunidade nacional,

finalmente teria quebrado o monopólio do discurso que estava nas mãos da elite.

Ganhar voz equivaleria à entrada na esfera pública. Mais uma vez, o processo é

associado ao uso do kreyol, não só mas especialmente nas rádios.134

A questão seria

então como integrar “o povo”, como fundir os dois Haitis na unidade que o país nunca

foi mas deveria ser – e o uso do kreyol na vida pública faria parte desse processo.

132

Les organisations populaires utilisent la langue du peuple, le « créole » [o autor não explica por que

usa as aspas onde usa], pour prendre part aux débats publics. Elles ont ainsi une grande influence sur les

masses et une capacité de mobilisation et de guerre psychologique. Leur impressionnante prolifération

après la chute de la dictature a permis de rompre le schéma politique traditionnel où les éléments des

deux élites (la mulâtre et la noire), à cotê de la dialetique des armes, maniant l‟arme de la dialectique,

dans le pur style européen, avec un français impeccable, pour essayer de convaincre les membres de la

bourgeoisie, de la petite bourgeoisie intellectuelle et des classes moyennes.

L‟irruption des masses sur la scène politique, ayant entraîne l‟hégémonie du populaire-culturel, affecta

considérablement les leaders traditionnels qui n‟ont pu faire valoir leur superiorité intellectuel. L‟usage

du créole a donné lieu, en termes habbermassiens, à une situation symétyrique de dialogue où s‟effacent

les clivages sociaux, les différences de pouvoir économique, politique et intellectuel... Étienne 2007: 275.

[em nota (idem:308, n. 24) : Analysant ce phénomène, Leslie F. Manigat, le sorbonnard, écrit avec

rage et nostalgie : « La généralisation de l‟emploi du créole facilitait l‟accès aisé à la parole pour des

langues subitement déliées et des imaginations automatiquement débridées. Plus rien n‟était plus [sic]

comme avant. » ] 133

Moun andeyò ou the people ou le peuple – Fatton usa as expressões, nas três línguas, mais ou menos

como sinônimas, e como “conceito nativo” da elite haitiana. 134

The press [especialmente Radio Haïti Inter e Radio Soleil, com destaque para a figura de Jean

Dominique] was liberating la parole–the word–and reaching a receptive mass audience. Creole that had

seldom been used on the airwaves became the hegemonic means of communication and greatly enhanced

popular participation. It integrated le peuple in the national discourse and gave it the right to be heard

in their grievances. Fatton 2002:57. Meu grifo em negrito.

Page 90: Construções do fracasso haitiano

78

A distinção entre público e privado parece análoga – embora se trate de uma

analogia, no mais das vezes, condenada e que supostamente deveria ser abolida, ela é

postulada – à distinção entre francês e kreyol. O uso do francês possibilitaria integrar o

Haiti [#1] no mundo, mas ao mesmo tempo, excluiria o #2 Haiti. Já o uso do kreyol

possibilitaria o acesso do #2 Haiti às tomadas de decisão [nas mãos do #1], mas isolaria

o Haiti-como-um-todo (comunicação privada) do resto do mundo (pública).

Para Jadotte [1988], essa unificação, que passa necessariamente pela língua,

representaria o próprio nascimento da sociedade haitiana.135

Toda a estrutura política

do país – que, em 1988, buscava-se destruir – estaria fundada sobre o face-a-face

(evocando comunicação oral, e com ela o kreyol pré-1987 como uma língua de curto

alcance) de relações clientelistas (privadas, onde deveriam ser públicas). O nascimento

da sociedade haitiana seria a vitória cultural contra a velha opressão, e único ponto de

onde poderia partir um desenvolvimento real.136

Em Wargny (2008:113) encontramos a associaçao entre o kreyol e o Haiti como

um enclave cultural, isolado do resto do mundo, o país menos aberto dos dois lados do

Atlântico (idem:115). Nesse capítulo, que recebe o significativo de A negação do

público [La déni de public], Wargny traz altos números de analfabetismo para mostrar

que, no Haiti, as escolas produzem tantos leitores quanto analfabetos.137

Enquanto as

135

On peut maintenant poser qu‟avec l‟emergence du créole comme langue nationale, avec l‟assumation

culturelle du vodou, et sa lente dissociation d‟avec les pratiques strictement superstititieuses, nous

assistons à la naissance à elle-même de la société haïtienne. Jadotte 2005 :132. 136

Il est le moins surprenant que dans la lutte politique actuelle, la pensée des conditions de

systématisation de cette victoire culturelle ne soit pas à l‟agenda d‟aucun des partis ou groupes

politiques. Il s‟agit pourtant du seul point d‟appui solide pour un réel dévelopmment : celui qui se fonde

sur la dynamique plurielle des luttes transversales et surtout pas frontales pour briser le face-à-face

stérile du « restavek » et du « rokclo » [palavra em kreyol cujo significado o autor não explica, e que

desconheço], qui structure toute la culture politique haïtienne, pour établir une continuité enracinée des

nouveaux groupes, issus de l‟elargissement de la scène publique, par la récupération de la mémoire

historique collective, et de ses formes d‟expression culturelle. Un tel dévelopmment ne peut se concevor

que largement ouvert sur tant au plan économique, politique et culturel. Jadotte 2005 :132-3 137

Le maître a peut-être quitté l‟école vers quatorze-quinze ans, avec son certificat. Il sait lire et recopier

le français qu‟il comprend mal. Lui aussi peine à répondre à mes questions les plus anodines. Il a

rarement l‟occasion de parler français. Une langue pourtant précieuse : une raison de vivre, un gagne-

Page 91: Construções do fracasso haitiano

79

poucas boas escolas seriam caras e elitistas (idem:114), a maioria da população

despediçaria seu tempo e seu escasso dinheiro em um sistema educacional

comprometido por um bilinguismo capenga, no qual, no fim das contas (constatação

que Wargny diz ter tirado do trabalho de ONGs européias), não se aprenderia a ler e

escrever nem em francês nem em kreyol.138

Assim, Wargny lamenta as tentativas de

falar francês o melhor possível como um tipo de fetichismo linguístico, que reforçaria

uma vez mais os vínculos entre linguagem e classe social.139

A associação entre o francês e a escritura, como veículos da civilização e de

valores associados como liberdade, igualdade, é certamente antiga. Ela aparece, por

exemplo, na proposta feita pelo Abade Gregório ao governo de Boyer (1818-1843) de

um programa de alfabetização massiva, nacional, mas visando à extensão da língua

francesa, única garantia da difusão dos ideais da Revolução Francesa, e à eliminação

do kreyol, então chamado de patois (Hurbon 1987:79). Sabemos que, em linguística, a

idéia de que determinados pensamentos, por sua complexidade ou abstração, apenas

poderiam ser expressos em poucas línguas específicas, até não muito tempo atrás era

pain, de quoi mettre de la sauce de cabri dans les bananes frites. [...] L‟école, en effet, produit autant

d‟analphabètes que de lecteurs. Wargny 2005 :113. 138

Les ONG partent d‟um quadruple constat: langue maternelle créole pour 95% des enfants [Wargny é

o único do Corpus que não estima essa cifra em 100%] ; français pas ou mal parlée par les enseignants

(un tiers des professeurs de français des lycées ne comprennent pas les questions simples posées en

français) ; manuels presque tous en français (ne parlons pas des outres ouvrages...) ; apprentissage

distinct des deux langues peu pratiqué. Conséquences : enseignement livresque en français, sabir

français-créole du maître, incapacité pour les élèves de maîtriser la lecture ou l‟écriture dans l‟une des

deux langues. Wargny 2008 :117.

Não é a mesma coisa, mas há alguma semelhança entre esse trecho e a acusação aparentemente clássica

contra línguas crioulas de forma geral, cuidadosamente descontruída em DeGraff (2005), segundo a qual

ao misturar duas línguas (por exemplo, francês com alguma língua africana), o resultado crioulo seria

uma colcha de retalhos destituída das capacidades expressivas de ambas as línguas originais. 139

L‟école, la majorité la souhaite en français. Parce qu‟ils le sentent ou le savent, être « quelqu‟un »,

c‟est parler français. Lire ou écrire, cela peut se faira en créole – la langue est devenue oficielle à cotê

du français depuis quinze ans - , mais lire Diderot, le Code civil, un manuel de mécanique, un CV ou un

simple formulaire se fait en français, une langue parlée par 10 à 15 % de la population. Ceux qui sont

réellement en charge des affaires. Ceux qui sont liés à l‟appareil de l‟État ou aux entreprises privées

entre les mains des grandes famillies de l‟oligarchie. Wargny 2008 : 114.

Reste que la langue charrie bien plus que la lecture et l‟écriture. Le créole est expression de la mère et

de la misère, de l‟humiliation et de l‟émancipation, de l‟identité et de l‟inferiorité. Sans le français, on

n‟est rien. Langue du colon. Langue du statut social. Le enjeu est idéologique. Idem:117.

Page 92: Construções do fracasso haitiano

80

comumente aceita.140

A idéia do Abade Gregório não tinha nada de racista ou

colonialista, pelo contrário – sua intenção era munir os negros com armas que, ele

acreditava, apenas poderiam ser devidamente utilizadas em francês. Talvez seja um

pouco mais surpreendente que, em Critique de la francophonie haïtienne, livro

publicado em 2007, o autor Tontongi sinta ser necessário defender (perante qual

público? A elite haitiana?) o kreyol desse tipo de crítica, traduzindo ao kreyol trechos de

René Depestre, Laënnec Hurbon, Michel Foucault, Roland Barthes e Pierre Bourdieu

(em todos os casos, textos originalmente escritos em francês sobre as relações entre

linguagem e meio social) para provar que é possível escrever estudos sérios e expressar

idéias complexas em kreyol.

Em Hurbon, que explora bastante a história da produção intelectual haitiana, a

questão da dicotomia linguística se conecta muito fortemente com a análise do elitismo,

o peso da educação, e as querelas sobre a perfectibilidade da raça. A discussão sobre o

papel dos intelectuais na política ganha muito destaque, contudo, o peso da dicotomia

linguística é minimizado frente ao que ele considera o verdadeiro problema, que seria a

disjunção entre o discurso [intelectuais com a palavra, #1 Haiti] e o real haitiano [a

“dura realidade” do #2 Haiti], tornar-se intelectual [#1] que seria um processo de

dissociação, através de suas belas frases, das massas nacionais [#2], o que também

poderia ser feito em kreyol.141

Voltaremos ao tema em breve.

140

Hoffman (1990:especialmente 237-271) traz preciosas indicações sobre como a questão foi pensada,

ao longo do tempo, por diferentes segmentos da elite haitiana. 141

L‟intelectuel haïtien [o comentário está no contexto dum comentário sobre uma peça de teatro escrita,

em kreyol, por Frankétienne] ... n‟est d‟abord ni à droite ni à gauche. Il est essentielment um comédien.

Un prestiditateur. L‟homme de la rétorique, de la magie des belles phrases. La responsabilité dans le

désastre et le déchéance d‟Haïti réside non pas dans les mensonges ou les demi-verités qu‟il profère,

mais, dans ses « analyses logiques-grammaticales », c‟est-à-dire dans ses performances dans l‟utilisation

de la langue française. [...] Son langage est d‟autant plus plétorique qu‟il est vide de ce réel. Il ne s‟agit

pas de mauvaise foi, ni même d‟une incapacité accidentelle de s‟ouvrir au réel haïtien. Il y va du réel

même de l‟intellectuel haïtien : il y aurait comme un phénomène de disjonction. [...] Les belles phrases de

rhétorique ne sont proférées par l‟intelectuel haïtien qu‟en vue d‟un exorcisme : palé pwinti, c‟est l‟effort

accompli par l‟intellectuel pour la production de belles phrases françaises, c‟est-à-dire son éloignement

par rapport au réel haïtien. La langue française ne vient pas ici en opposition à la langue créole, car on

le sait, même dans l‟emploi du créole on peut encore retrouver le palé pwinti. A la limite, celui qui

Page 93: Construções do fracasso haitiano

81

Questões geográficas.

Outro dualismo recorrente coloca uma oposição entre planícies e montanhas.

Nos tempos de Saint-Domingue, os dois principais gêneros de exportação em função

dos quais a colônia vivia tiveram impactos próprios na ocupação espacial da ilha. A

produção de açúcar exigia grande investimento inicial, muita mão de obra e grandes

extensões de terra para tornar-se lucrativa. As terras planas foram ocupadas primeiro.

Como a produção era escoada por vias marítimas, todas as principais cidades foram

construídas no litoral, dotadas de portos. Nessas cidades à beira mar se desenvolveu a

classe comerciante haitiana (é significativo que a burguesia também seja conhecida

como Bord de Mer142

). Já o interior, terreno acidentado e cheio de morros que ocupam a

maior parte do território haitiano, oferecia mais dificuldades logísticas.

Cronologicamente, sua ocupação foi mais tardia. Ao contrário da cana, o café era

lucrativo mesmo em propriedades menores, com menos escravos/as no trabalho. Seu

cultivo migrou para o interior montanhoso do país, onde era grande a disponibilidade de

terras vagas, muitas vezes sob comando de affranchis ou gens de couleur. Este ramo

teria dado a oportunidade para a consolidação de novas elites, novos enriquecimentos,

tanto a affranchis quanto às novas levas migratórias desde a França, menos ricas e

poderosas que as primeiras.143

Assim, o argumento de Trouillot (autor do Corpus que

devient intellectuel [#1] cesse en principe d‟être haïtien [#2] : il a comme sauté la rampe ; il a subi une

métamorphose ; il appartient à l‟autre monde, le seul vrai, le monde « blanc ». Hurbon 1990 :42-3. 142

Ainsi se constitua, progressivement, une “bourgeoisie compradore”, instalée dans les principales

villes portuaires du pays, notamment à Port-au-Prince, couramment appelé le “bord de mer” dans le

language haïtien. Étienne 2007:118. 143

[Em 1763], a new wave of migrants–retired soldiers, petty nobles, craftsmen, people whose ties to the

upper echelons of metropolitan French society were palpably weaker than those of the nobles and

bureaucrats who had preceded them a generation earlier–came to the colony. Taking advantage of the

newly created demand for coffee in Western Europe, these newcomers, along with a growing number of

“colored” freedmen rushed to the mountains–hitherto neglected by the ruling sugar plantocracy–and

established small coffee states, each with an average of twenty to thirty slaves. … The coffee revolution

irreversibly tilted the spatial base of production from coastal plains towards the highlands, and to a

lesser extent from North to the South. It showed the possibility of profitable agriculture in the interior–an

area that contained close to two-thirds of the country‟s arable land, and up to then an untapped resource.

That independent Haiti remained primarily a coffee-exporting nation for more than 160 years is a legacy

of these early days. Trouillot, 1990:37.

Page 94: Construções do fracasso haitiano

82

mais se dedica às diferenças geradas pelas culturas da cana e do café – diversas vezes

ele fala da coffee revolution) vai delineando uma clivagem entre os meios do açúcar das

planícies e do café das montanhas. Ele fala em um maior espírito de autonomia dessas

novas elites como vetor do enfraquecimento da lealdade à metrópole, enquanto que as

elites das plantations de cana tendiam a ser mais fiéis ao sistema colonial francês.

Até aí, trata-se de uma diferença interna ao meio da agricultura de exportação.

Fora desse âmbito, tipicamente no interior montanhoso, a população escrava cultivava

hortas próprias, agricultura de subsistência.144

O que autores como Jean Casimir e

Gérard Barthélemy reconhecem como sistema da contra-plantation diz respeito a

modos de produção, sem qualquer relação necessária com a topografia – contudo, uma

relação contingente, histórica, é insinuada diversas vezes. Em Barthélemy, as várias

referências não chegam a ser sistematizadas ou tomadas como foco de pesquisa, mas

mostram alguma identificação das planícies com o Haiti créole e das montanhas como

andeyò, lugar do Haiti bossale.145

Essa referência não deve ser levada às últimas

144

In Saint-Domingue, the uneven topography meant that a substantial proportion of the arable land that

was unusable for large-scale plantation agriculture could be used by slave families for the cultivation of

food. Trouillot 1990:38-9. 145

Alguns exemplos: em sua análise da estrutura fundiária rural e seus conflitos, ele situa a configuração

dans le cadre du paysannat traditionnel des mornes... (Barthélemy 1989:52). Aí vemos também uma

correlação entre isolamento geográfico e isolamento cultural; C‟est surtout dans les zones isolées et

relativement préservées... que ce mode de gestion foncière reste encore dominant. Quando cita uma carta

de Leclerc para Napoleão (idem;101), na qual ele afirma que pour contenir ces mountagnards, lorsque

j‟en serai venu à bout, je serai obligé de détruire tous les vivres et une grande partie des cultivateurs qui,

accoutumés au brigandage depuis dix ans, ne s‟assujettiront jamais à travailler. Barthélemy não explicita

se o grifo é dele ou da carta original de Leclerc. Mais adiante, ele comenta como o sistema da contra-

plantation tornou impossível que proprietários ausentes lucrassem com suas terras – cela s‟accompagne

évidemment de la mise en valeur correlative des mornes au moyen de petites unités paysannes

d‟exploitation suffisantes pour couvrir les besoins du cultivateur et de sa famille. A lógica da dispersão

espacial, de multiplicação de células individuais autônomas e em oposição implícita à divisão do trabalho

seria uma pré-condição para o igualitarismo bossale. Isso valeria pelo menos desde o início do século

XIX até o fim do século XX. Usando um testemunho datado de 1830, Barthélemy mostra un spectacle qui

ne changera guère par la suite, celui de l‟occupation des mornes. Como Trouillot, Barthélemy afirma que

o campesinato haitiano grâce a la chance du café, triomphera jusqu‟a occuper l‟ensemble de l‟espace

disponible du pays, au détriment d‟une urbanisation qui, seule, aurait pu changer son destin. O autor cita

a análise que Paul Moral faz da situação por volta de 1900, quando camponeses praticavam com

freqüência a invasão de terras que oficialmente pertenciam ao Estado, e como o controle efetivo do que

era plantado e colhido en dehors des plaines era a garantia de sua autonomia e liberdade (idem: 106-107).

Haveria também uma relação entre a capacidade de mobilidade da população e a dificuldade de

concentração do poder: La mobilité stupéfiante de la population, ilustrée par l‟omniprésence des tap-tap

et autres camions, montre bien que l‟existence de cette méfiance obsessionnelle vis-à-vis du piège que

Page 95: Construções do fracasso haitiano

83

conseqüências, é claro que há exceções, mas grosso modo tudo se passa como se as

planícies, ambiente das cidades principais e das grandes plantations, constituíssem um

espaço mais regulamentado, onde a possibilidade de controle das autoridades seria pelo

menos um pouco mais efetiva, enquanto o movimento de esquiva ao sistema – tanto dos

regimes de trabalho em Saint-Domingue quanto, mais tarde, do estado haitiano – se

dispersaria através dos morros irregulares.146

A idéia de uma fase regionalista do estado haitiano, já citada no capítulo

anterior,147

relaciona mais uma vez autonomia e descontinuidade territorial.148

É

interessante contrastar como dois autores vêem o mesmo fenômeno – enquanto

Trouillot o vê positivamente, como uma força corretiva contra pretensões autoritárias

constituie l‟immobilité et l‟enfermement face à toute tentative de contrôle ou de prise de pouvoir

économique ou politique (idem; 64). 146

As vantagens estratégicas de locais de difícil acesso são óbvias. Nos textos há inúmeras referências a

bandos maroons que se escondiam em morros, como na descrição que Étienne faz dos conflitos de 1791-

1804, quando a insurgência popular contra tentativas de re-escravização acontecia nas montanhas (Les

esclaves de ces deux provinces ravagèrent à leur tour les plantations de canne à sucre, les caféteries et

les instalations manufacterières, saccagèrent les villes avant de se réfugier dans les hauteurs, d‟où ils

continuaient à lancer des opérations de ravitaillement et de harcèlement contre leurs anciens maîtres.

Étienne 2007:82. Ou ainda, la politique de désarmement général des cultivateurs et la peur et la hainte de

l‟esclavage les portèrent à se refugier dans les hauteurs pour aller grossir les bandes d‟insurgés –

idem:98), estilo de guerrilha onde os bandos rebeldes pareciam estar à la fois partout et nulle part.

Décadas mais tarde, os morros são novamente o refúgio ideal contra o código de Boyer; L‟application du

code rural de 1826, visant a atteindre des niveaux de productivité correspondant à ceux obtenus sous le

régime de Dessalines, exigeait la présence de soldats sur les plantations et la chasse aux paysans qui

tentaient de se réfugier dans les mornes (idem: 126). Houve inclusive gente branca que, nos tempos de

Saint-Domingue, turned to crime: throughout the eighteenth century, the colony‟s mountains were home

to armed bands of whites who preoccupied administrators (Dubois, 2004: 20). Christophe Wargny

também faz diversas referências aos “morros” e seus habitantes, além do uso de metáforas para um

suposto enclausuramento (por exemplo, sobre Port-au-Prince: Obscur, le champ de concentration inquiète

à peine. La nuit cache la nuit. La noirceur devint obscurité, le pesanteur presque débonnaire. 2008:26).

Outro exemplo solto; a última parte de seu livro tem como título Derrière la montagne, il a une

montagne, tradução para o francês de um ditado kreyol, que no caso de seu livro significa algo como

“após estes problemas e dificuldades, teremos mais problemas e dificuldades”. Abstemo-nos de citá-lo tão

longamente quanto outros autores porque, no mais das vezes, suas referências geográficas possuem mais

intenções evocativas e poéticas que tentativas de análise. 147

Ver referência de Barthélemy a Geoges Anglade. Trouillot cita o mesmo geógrafo, falando em uma

Federação de províncias (1990:96). 148

Em outro registro, numa escala mais ampla, também a distância entre Saint-Domingue e a França

possuiria esse tipo de conseqüência. “Geography”, writes one historian, was in Saint-Domingue “the

mother of history.”Each region had its own landscape, customs, and demography, and these would shape

the revolution to come. The geographic location of the colony in the wider world would likewise shape

profoundly its political history. Saint-Domingue was at the heart of the Americas, connected in many

ways to the empires that surrounded it, and quite far from the nation that governed it. It was part of an

evolving Atlantic world, one in which many of the subjects of empires gradually came to dream of one

day being citizens of their own nations. Dubois 2004:28.

Page 96: Construções do fracasso haitiano

84

de governos de Port-au-Prince,149

Étienne vê o déficit de integração, a existência de

forças concorrentes e a falta de controle territorial fora da capital como provas da

incapacidade e debilidade do estado haitiano.150

Paralelamente, a ocupação dos Estados Unidos (que teve como uma das

principais obras a construção de um sistema viário no Haiti) é avaliada por Trouillot

como a semente de um autoritarismo muito pior que ainda estava por vir,151

enquanto

Étienne a considera como um projeto modernizante de relativo sucesso.152

É consenso

que os quase vinte anos (de 1915 a 1934) de ocupação militar estadunidense tiveram

como principal efeito a centralização política e econômica, a maior articulação

(geográfica e institucional – por exemplo, ao criar um exército mais unificado e

hierarquizado que os batalhões semi-autônomos que existiam antes) das diferentes

149

The key difference between the two centuries [XIX e XX] is the nineteenth-century presence of

corrective forces, of social and economic mechanisms that limited the intensity of the structural crisis and

channeled the ways in which it manifested itself. They acted as counterweights by limiting the process of

economic and political centralization implied by the social structure. … These [coastal] towns challenged

the hegemonic tendencies arising in Port-au-Prince… The ten largest provincial ports stood at the top of

small regional pyramids that integrated seacoast and hinterland via the inland towns… Geographical

isolation greatly contributed to the economic and political autonomy of the regional pyramids. Haiti‟s

rugged terrain had place limits on centralization since colonial days by impeding the completion of a

national road system. Even in the early twentieth century [antes de 1915?], communication between

coastal towns was easier by sea than by land…In short, the relative autonomy of each regional pyramid

and its sub-units acted as a brake on the development of political centralization. Trouillot 1990:96-7. 150

L‟absence d‟une réseau routier national rendait difficile le travail de contrôle et de coordination sur

les différentes régions du pays. L‟enclavement de celles-ci facilitait une certain mainmise des généraux

sur l‟administration publique régionale. Ainsi, les commandants d‟arrondissements parvenaient à se

constituer des pouvoirs régionaux quasi autonomes du pouvoir central. Ces potentats militaires

profitaient généralment des situations de tensions sociales, de crises économiques et financières et de

troubles politiques, pour marcher sur la capitale à la tête de leurs troupes et s‟emparer du pouvoir. ... Le

régionalisme et le militarisme ont augmenté l‟intensité et l‟apreté des luttes politiques dans le pays,

créant ainsi une situation d‟instabilité permanente, très nefaste au développement social et economique.

Étienne 2007:135. 151

Yet the disaster went far beyond the two areas acknowledge by the financial adviser, for the

occupation also accelerated Haiti‟s economic, military and political centralization, leaving the rest of the

country unable to restrain the hegemonic tendencies of the “Republic of Port-au-Prince”… This

centralization contributed to the homogenization of merchant and political groups in the capital, and to

reinforcement of their power… Economic centralization also contributed to the growth of urban parasitic

groups, as many provincials rushed to Port-au-Prince, hoping to grab choice places at the state

apparatus. This growth of parasitic groups had –and continues to have– an enormous impact on Haitian

politics. Trouillot 1900:104. 152

Sous le régime de l‟occupation militaire étrangère, paradoxalement, le processus de centralisation et

de modernisation aboutit rapidement à la constituition du monopole de la contrainte physique légitime et

celui de la fiscalité. Ainsi donc, pour la première fois depuis l‟independance du pays en 1804, l‟État

haïtien parvint à occuper, contrôler, à pouvoir défendre et tenter d‟organiser son espace territorial.

Étienne 2007:168. Contudo, o autor questiona o valor de tais conquistas por não serem soberanas, porque

o que parecia uma evolução genuína era no fundo apenas um estado infantil sob tutela.

Page 97: Construções do fracasso haitiano

85

partes do país, constituindo pela primeira vez um espaço realmente nacional, governável

desde Port-au-Prince. Mas esse processo de centralização (o termo aparece tanto em

Trouillot quanto em Étienne) pode ser identificado com modernização e racionalização

(Étienne) ou com concentração de renda e polarização espacial, com o aumento

contínuo da proporção de recursos destinada à capital (Trouillot).153

Já citamos a suposta relação entre separação física e gestação de padrões

culturais distintos. O êxodo rural e o crescimento populacional vertiginoso das

principais cidades haitianas durante o governo de Jean-Claude Duvalier (desde os anos

1970s) teriam criado, portanto, um novo contexto. Ao mesmo tempo em que a distância

econômica entre as classes aumentou, a distância geográfica diminuiu, assim como o

progresso dos meios de comunicação tornou o #1 Haiti mais visível ao #2. Todos os

autores (em especial Trouillot, Jadotte e Fatton) reconhecem essa mudança e discutem

suas conseqüências. Basicamente, eles consideram que, pelo menos em alguns campos

(proximidade espacial entre o lumpen-proletariado e as classes altas, o que tornaria as

desigualdades mais visíveis e seus mecanismos mais evidentes,154

campanhas de

alfabetização, difusão de reivindicações baseadas no código penal, uso do kreyol nos

153

The polarization of the country has also deepened. … The process of economic, political and

demographic centralization reach its peak within its perimeters, exarcebating what a geographer has

called an “urban macrocephaly”achieved at cost of provincial towns. … The most vivid metaphor for this

new spatial organization is the layout of the new national roads system which skips villages and regional

markets towns in the name of speed and “modernization.”In terms of space and time, interior towns have

grown more distant from their administrative dependencies, and local economic exchange has declined,

while the coastal towns of the South and Cap-Haïtien have moved within Port-au-Prince‟s reach.

Trouillot 1990:183. 154

Eis um relato interessante sobre a nova geografia política no período pós-Duvalier: In fact, there was a

new geography of class power that forced members of the dominant class into erecting walls of armed

security to separate themselves from the moun andeyo who were increasingly “invading their territory”.

Wealthy Haitians feared being overwhelmed by a vengeful, violent and criminal mass of poor people who

had trespassed the boundaries of private property to settle on land that had hitherto been the exclusive

space of the rich. As Simon Fass said, the collapse of the Duvalier dictatorship created a relative

“breakdown of control permitting one significant act that for 30 years had proven impossible: land

invasion and squatting.” Panic seized the dominant class: it dreaded living in close proximity to the

populace and barricated itself against Lavalas. As a wealthy Haitian told me in an alarming tone, “The

masses are everywhere, they surround us, they are among us!” Nada disso significa que outras distâncias

tenham diminuído. Pelo contrário, na opinião de Fatton, o que o fenômeno da proximidade gerou foi um

boom na indústria da segurança privada. Instead of bringing the classes together, the sense of social

proximity generated a new impetus and energy to enlarge and consolidate the huge fissure dividing

Haitians. Fatton, 2002:86.

Page 98: Construções do fracasso haitiano

86

meios de comunicação, entre outros), o Haiti de cima e o de baixo estão se

aproximando, que cada vez mais os dois países falam a mesma língua.

Duplo isolamento.

Com freqüência encontramos nos textos um paralelo entre o isolamento do #1

Haiti em relação ao #2, e o isolamento do Haiti-como-um-todo em relação ao resto do

mundo. Como vimos, na cisão interna, a idéia é que não apenas as classes mais baixas

estão excluídas da vida política nacional, mas também que esse Haiti de baixo se

esquiva como pode do controle do Haiti de cima. Algo parecido aconteceria no plano

internacional; o Haiti não só teria sido banido dos diálogos entre estados, mas também,

ainda que de formas altamente ambíguas, teria buscado não misturar-se (o exemplo

mais citado é a lei promulgada por Dessalines que proibia pessoas brancas de possuírem

terras). Assim, Cristophe Wargny refere-se ao Haiti como o país menos aberto dos dois

lados do Atlântico (2008:115), que vive em um enclave cultural do qual começa

lentamente a sair (idem: 113), onde se fala uma língua que ninguém fala. Ao mesmo

tempo, ele critica a extrema abertura econômica como falta de soberania, por exemplo,

nos comentários sobre o Plano de Ajuste Estrutural implantado pelo FMI. O Haiti é

então citado como um exemplo de liberalismo (idem:119). (Pelo menos em Wargny, a

lógica é transparente: quando abertura possui um sinal positivo, o Haiti é considerado

fechado – quando a abertura é negativa, o Haiti é considerado aberto).

Mais uma vez, a gênese e principal explicação evocada está em 1804. Étienne,

por exemplo, afirma que a ruptura violenta com a metrópole tornou impossível a

integração do novo estado no sistema capitalista mundial.155

Jadotte comenta que, na

155

Ainsi, la nature rupture de la rupture avec la métrople et la guerre sociale et raciale ont boulerversé

la structure sociale et économique de Saint-Domingue/Haïti et rendu difficile, voire impossible,

l‟intégration de l‟État postcolonial de facto haïtien dans le système capitaliste en expansion, au

lendemain de 1804. La manque de ressources humaines et économiques, la prédominance des liens

Page 99: Construções do fracasso haitiano

87

época de seu nascimento, essa nação negra representava uma anomalia, um desafio e

uma ameaça para a comunidade internacional – apesar disso, vários governos teriam se

lançado em uma busca incessante pelo reconhecimento estrangeiro. Ao mesmo tempo,

consideravam-se iguais (ou pelo menos igualáveis) e reconheciam a autoridade do olhar

de fora. A solução dessa contradição, para a elite, teria sido projetar a abjeção externa

sobre as massas rurais. O reconhecimento, tanto do Haiti para o resto do mundo quanto

do #2 Haiti pelo #1, demorou muito a vir, o que teria gerado duas inércias paralelas –

uma elite presa a normas e práticas culturais francesas do século XVIII e um povo preso

a práticas culturais africanas do século XVIII.156

Essa dinâmica de afirmação, simultânea e paradoxal, de igualdade e diferença,

ajuda a entender como um país cujo excepcionalismo é tão discutido, dono de uma

história tão profundamente original, seja ao mesmo tempo frequentemente acusado de

mimese, imitação ou paródia dos (ex) carrascos.157

tribaux, l‟hostilité des puissances colonialistes et esclavagistes, joints à sa malformation congénitale, ont

ensuite contribué à l‟isolement du nouvel État et au renforcement des obstacles à l‟émergence de l‟État

moderne en Haïti. Étienne, 2007:38. Neste trecho aparece claramente a estrutura do passado como eterno

presente discutida no primeiro capítulo (os mesmos defeitos congênitos acompanhariam o país até hoje). 156

Il y a quelque chose de patetique dans la quête de la reconaissance de notre indépendance par les

dirigeants haïtiens de la période 1806-1860. Cette perception [do Haiti como país anormal] est ressentie

et assumée comme telle par les élites et le peuple haïtiens mais chacun de manière fort différent. Il se

constitue sur cette base, un double isolement, celui “relatif du système social des elites haïtiens vis-à-vis

du monde extérieur, du fait de l‟ostracisme politique et du racisme”, et celui de “l‟isolement relatif du

système social des masses haïtiennes vis-à-vis du monde des élites, du fait des barrières de

l‟analphabétisme et du clivage de quasi-caste (...).” Cette double isolement crée un double conservatoire:

“(...) conservatoire des normes et des pratiques culturelles du modèle français du 18ème siècle, au niveau

des élites; conservatoire des normes et des pratiques culturelles du modele africain du 18ème siècle au

niveau des masses.” Jadotte 2005:164. O trecho entre aspas é de Leslie Manigat. 157

Le long processus historique et socio-culturel d‟enfantement de la nation haïtienne ne commence

qu‟après l‟indépendance. Il en résulta, avant la lettre, une “déconnexion”, d‟abord imposé par les

nations esclavagistes, ensuite revendiquée par les élites. D‟un côte, une partie importante de la mase des

anciens esclaves réinventaient la petite propriété paysanne. De l‟autre, les nouvelles couches dominantes,

loin des circuits d‟échange mondiaux, se coupaient de la Révolution industrielle en cours à ce moment, et

s‟accomodaient de la gestion du maigre surplus engendré par une économie purement agricole et fermée

à l‟innovation technologique. Sur cette base se prend la pulsion mimétique des classes dirigeants. Jadotte

2005: 129.

L‟État louverturien constitue un facteur indispensable pour expliquer non seulement les relations entre

l‟État colonial français et l‟État postcolonial haïtien de 1804, mais aussi pour situer et comprendre la

transplantation, la perversion et la dégénérescence du modèle d‟État européen dans l‟Haïti

postcoloniale, de même que la non-emergence [nos dois séculos seguintes] de l‟État moderne dans ce

pays. Étienne, 2007:75. Toussaint était le produit de la société colonial esclavagiste de Saint-Domingue.

Ses modèle et cadre de référence furent la bureaucratie militaro-administrative de l‟ancienne colonie et

Page 100: Construções do fracasso haitiano

88

Para Barthélemy, é nessa dinâmica entre o lado de dentro e o lado de fora, nos

dois níveis (Haiti bossale como dentro, Haiti créole como fora / Haiti como dentro,

resto do mundo como fora) que reside o grande problema haitiano – a relação seria

muito desigual, pois o lado de fora definiria unilateralmente os termos da troca.

Doravante, e esse é o todo o drama do Haiti, a moeda que serve de troca vem do

exterior (ajuda e salários) e retorna ao exterior (Barthélemy 1989:57).

Elitismo anti-racista.

Apoiado nas idéias de Micheline Labelle sobre a ideologia de cor no Haiti,

Laënnec Hurbon propõe que a análise do elitismo haitiano (em sua origem, defensivo e

anti-racista) seria a chave para desarmar o vocabulário e as práticas coloristas essenciais

ao duvalierismo.158

O conjunto de oposições estruturais e hierarquizadas, que vai muito

além do par noir/mulâtre, teria sido construído a partir de um mesmo princípio de

distanciamento entre #1 o primeiro e #2 o segundo Haiti.159

As provas de que um lado

l‟absolutisme monarchique français quoiqu‟il en eût des idées vagues. Idem: 94. Saint-Domingue n‟était

pas la France, les Mulâtres et les Noirs n‟avaient rien à voir avec la noblesse et la bourgeoisie françaises

et, naturellement, Toussaint Louverture ne pouvait pas être Louis XIV. Ainsi, à l‟État absolutiste

métropolitain correspondait l‟État bancal et fragile louverturie; à l‟absolutisme monarchique, le

despotisme militaire de Saint-Domingue; à la Révolution française, la Révolution haïtienne. Idem: 100.

Le modèle d‟État qu‟ils avaient en tête, c‟était l‟État louverturien, qui fut lui-même une caricature de

l‟État colonial français... Idem:109. Mais les généraux et leurs serviteurs... n‟avaient en tête que l‟image

de l‟État colonial français et celle de l‟État, à la fois bancale et fragile, mis en place par Toussaint

Louverture. Ainsi, “la tradition de toutes les générations mortes allait peser comme um cauchemar sur le

cerveau des vivants”. ... le modèle pour les élites restait et demeurait la “France éternelle”. Idem :114-

15. Hésitations, tâtonnements, mimétisme et erreurs imprégnaient les premières décisions des autorités

étatiques. Idem: 127. 158

Si les catégories noir/mulâtre renvoient aux oppositions strucuturales et hiérarchisées qui existent

entre des termes comme paysans/citadins, manuels/intellectuels, domestiques/patrons, vodou/

christianisme, science/superstition, créole/français, oralité/écriture, primitivité/cilisation, on ne peut

surmonter le colorisme dans ses connotations véritables que par une critique pratique de l‟élitisme…

Hurbon, 1986:102. 159

Cristophe Wargny (2008 :52) também fornece sua versão do dualismo conectado ao elitismo ; Deux

réflexes, voire deux impératifs, l‟illustrent : on souhait parler le meilleur français possible, pourtant la

langue du colonisateur ; et éclaircir sa descendance, se rapprocher du Blanc immaculé. Pour mieux se

distinguer des masses noir d‟ébène enclavées dans les mornes, qui ne parlent que le créole, la langue

inventée par leurs nouveaux maîtres.

Différentes, les deux élites [noiristes e liberais] communient dans un mépris définitif des culs-terreux

auxquelles elles refusent la terre, sans parler de le citoyenneté. Se cumulent les oppositions ruraux-

urbains, éduqués-analphabètes, catoliques-vaudous, propriétaires-prolétaires... Complexe de supériorité,

Page 101: Construções do fracasso haitiano

89

era civilizado se construiriam em oposição às marcas de inferioridade do outro,

reenviado incessantemente à posição de bárbaro, primitivo, selvagem, africano.

Como efeito, teríamos uma exterioridade da elite em relação ao povo, um grupo

vivendo e se reproduzindo como estrangeiro em seu próprio país, construindo em torno

de si muralhas materiais (o que seria, com o crescimento atual da indústria da segurança

privada, mais literal do que nunca) e simbólicas ou culturais. O elitismo, correlato da

necessidade do reconhecimento “ocidental”, estaria intimamente relacionado ao

ostracismo político vivido pela república nascida de uma rebelião contra a escravidão. A

fabricação de indivíduos excepcionais como antídoto contra as teorias de desigualdade

das raças teria justificado o elitismo, deixando em segundo plano todas as

reivindicações mais amplas de justiça social.160

A impossibilidade de se legitimar no mundo escravocrata geraria um isolamento,

e as tentativas de romper, diplomaticamente, com este isolamento, replicariam o mesmo

isolamento (entre civilização e barbárie, dicotomia que, pelo menos para Hurbon,

funciona como matriz de uma infinidade de outras diferenciações) internamente. No

fim, o Estado terminaria duplamente ilegítimo, frente às grandes potências e frente às

massas nacionais que devia governar. Essa exterioridade, ou a ausência de controle

efetivo exercido pelos cidadãos, desequilibraria o Estado, tornando a tentação autoritária

uma constante muitas vezes repetida ao longo da história. Daí a conclusão de

Barthélemy (1987:129) de que a rejeição do grosso da população como cidadãos de

segunda classe está na base da crise do Estado.

aliénation ou domination de classe : un fossé abyssal sépare les uns des autres. Bref, deux nations

existent, mais ne coexistent pas, l‟une niant l‟autre. Au XIXe siècle comme au XXIe. 160

Em sua leitura de Leslie Manigat, Hérard Jadotte escreve que un autre élément de ce contrat social a

été d‟interdire à la nouvelle société, tout objectif de justice sociale vis-à-vis les couches non-créolisées,

pour de préférence de choisir de faire de cette jeune nation “le porte-drapeau et le porte-voix” de la race

noire pendant tout au long 19ème siècle haïtien. D‟ou la politique adoptée continuement et explicitement

jusqu‟au début de l‟Occupation américaine et qui consiste à vouloir “fabriquer des échantillons

d‟haïtiens de qualité, d‟excellence même, autant dire de classe internationale, en vue de réfuter, par leur

existance même, les théories racistes alors en vogue sur l‟inegalité des nègres par rapport aux blancs.

(...) Ainsi, l‟élitisme devenait justifiable au plan collectif national”. Jadotte 2005:205-6. Meu grifo.

Page 102: Construções do fracasso haitiano

90

No limite, a divisão interna do Haiti seria de tal profundidade que ele aparece

como um Estado colonial, colonizando seu próprio povo.161

Tudo isso colocaria em

cheque a homogeneidade nacional, a chamada haitianidade, termo que aparece em

várias ocasiões.

Para Hurbon, a relação entre os dois Haitis, estrangeiros entre si, é uma relação

colonial, onde o #1 Haiti aparece como cultura, o #2 como natureza (pelo menos do

ponto de vista da elite). Assim, o autor nega a haitianidade e denuncia seu caráter

ilusório.162

Barthélemy afirma que, apesar de todas as turbulências e incompreensões

entre os dois Haitis, no fim das contas há algo compartilhado entre todas as

haitianas/os.163

Fatton compartilha a mesma opinião, frisando que a Ocupação dos

Estados Unidos de 1915-34 teria potencializado o movimento negro e o sentimento de

haitianidade como uma forma de resistência contra os invasores. A suposta haitianidade

é também relacionada à língua kreyol, ao vodu e à história da revolução de 1084.164

161

Barthélemy nos oferece uma extensa lista de comparações ponto a ponto com colonialismo francês na

Argélia para nos levar à conclusão de que a se trata de uma situação idêntica no essencial. Idem:129-130. 162

A travers les différentes manifestations de l‟ideologie coloriste en Haïti, il s‟agit bien de l‟absence de

d’homogéneité nationale, d‟un pouvoir magique dont on veut s‟emparer pour sa seule vertu magique.

Comme si le maître-blanc de l‟époque esclavagiste expulsé du pays revenait sans cesse hanter toutes les

pratiques sociales et culturelles. … tout se passé comme si une partie [#1], à la fois noire et mulâtre, de

la population haïtienne se prenait pour un groupe d‟étrangers, égarés dans le pays et qui cherchent

continuellement à dresser des barricades autour de leurs maisons, de leur vie, contre tout connivence

avec [#2] les masses d‟illetrés, de créolophones unilingues, de vodouissants, qui, eux, feraient partie d‟un

paysage, ou d‟une nature à exploiter, ou, au pire des cas, à maintenir dans un semblant d‟humanité, et

avec lesquelles seul un rapport exotique est la règle. […referência a Leyburn e Lundahl, que portente le

même diagnostic sur les divisions tragiques quie traversent la société haïtienne.] Il semble que

précisément nous sommes encore au début d‟une interrogationm radicale sur “l‟haïtianité”, “l‟identité

culturelle haïtienne”, “l‟homogénéité nationale”, notions qui fonctionnent comme des thèmes

imaginaires, et dont la réalité est encore introuvable, encore inassumable, sauf en de rares et rapides

éclaircies. Hurbon 1986:105. 163

Tout au long du cette coabitation, marquée par une domination partielle, les deux cultures, issues

malgré tout d‟une historie et d‟une origine communes, n‟auront de cesse d‟accuser leurs différences

comme pour mieux souligner, par delà celles-ci, les concordances, les affinités, les complicités et les

compréhensions qui les lient, malgré tout, au sein d‟une haïtianité commune. Barthélemy 1989:26. 164

Albeit slowly and piecemeal, the dominant class incorporated into its Europeianized worldview the

peasants‟ indigenized African heritage. Expressed in the universal use of Creole and in music, food,

dance, and artistic taste, it helped bridge the gap separating rulers from subordinates. In fact, all

Haitians have amalgamated European and U.S. contributions to their distinctively African civilization.

Nothing illustrates better this amalgamation than Vodou. […] Interweaving indigenous beliefs with

Christian escathology, Vodou creates a sense of national identity and solidarity by cultivating

communities of shared values and aspirations. Moreover, Vodou‟s role in Haiti‟s successful war of

independence enhanced the sense of haïtièneté – Haitian-ness. Fatton 2002:53-4.

Page 103: Construções do fracasso haitiano

91

Trouillot trata esse suposto mínimo denominador comum cultural como um artifício da

elite, que, ao oscilar entre os dois pólos, poderia considerar-se, ao mesmo tempo,

“autêntica” e “ocidental”.165

Para Wargny, a sociedade haitiana é tão hierarquizada que

não consegue forjar uma identidade (2008:192), não há uma verdadeira haitianidade,

mas ela deveria ser buscada, como uma solução possível para a dita tragédia haitiana.166

Considerações finais.

Basicamente, a tese dos dois Haitis funciona assim: há um racha na sociedade

(“a sociedade haitiana” aparece então como uma unidade falida, dever-ser não

realizado) que deixa duas entidades, estrangeiras entre si, porém interdependentes. O

poder político fica todo concentrado em apenas um dos lados, o que impede a violência

organizada de se tornar realmente legítima. O Estado funciona então como um órgão

parasita, predador, exterior em relação ao povo a quem deveria servir.167

165

Trouillot discute longamente a ambivalência cultural da elite haitiana, que permitiria muitos pontos de

referências compartilhados por todas as classes no Haiti. Por exemplo, while they proudly adopted

European manners, they also engaged proudly in many indigenous practices that they judged worthy of

their time and attention. This in turn meant that the peasantry – and many customs or features that the

elite‟s imagination associated with the peasantry, including “blackness” – were often ennobled in words,

even if kept at safe distance in practice. Trouillot 1990:116. 166

Il ne s‟agit plus de l‟histoire glorieuse, mais ancienne et confite, déconnectée des réalités et contradite

par les convulsions ultérieures. Cette Haïti retrouvée mérite d‟être tentée, dite, vécue. Elle est enfin

positive. Ce n‟est pas la fin de la honte, mais le début du questionnement et d‟une possible adhésion.

Adhérer à quelque chose, faire partie de… Être, quelque part, inclus. L‟haïtianité pourrait d‟autant plus

exister que tant de citoyens, présents ou à venir, la cherchent. Idem:208.

Fatton 2002:54 comenta relações postuladas por Price-Mars entre Vodu e haitianidade. 167

O tema já é antigo. Barthélemy cita um artigo de Sténio Vincent (que chegaria à presidência em 1930,

durante a Ocupação) publicado em 1902 no jornal L‟Effort, no qual o Estado aparece como uma

exterioridade aberrante, tanto em relação ao primeiro quanto ao segundo Haiti, que jogaria povo e elite, já

tão distantes entre si, uns contra os outros, aproveitando-se do abismo entre os dois lados, jogando com as

falhas de comunicação. On se trouve en face de cette chose hybride: un État qui apparaît comme détaché,

comme distinct de la communauté politique qu‟il est censé de représenter, n‟ayant avec elle que des liens

théoriques, un État que s‟isole volontairement… État negatif, sans cohésion et sans government… En tout

cas nous donnons le spectacle d‟un peuple inassocié et amoral dans un Etat anarchique… Alors que

reste-il? Il reste d’un cotê l’Autorité, une Autorité trop souvent incivile et déprimante, de l’autre, des

foules moutonnières, ignorantes et victimes. Vincent apud Barthélemy 1989:127-8. Os grifos são de

Barthélemy. Neste caso, a elite [une petite Elite impuissante] é econômica e intelectual, mas está fora do

Estado propriamente dito. O Estado, exterioridade pura, manipularia a divisão entre os dois Haitis

[L‟autorité emploie “l‟intelligence vulpine” à opposer très adroitement la Foule à l‟Elite, qu‟elle écarté

violenmment. Elle a, en tout temps, vécu de ce malentendu qu‟elle perpétue.] O principal objetivo da

crítica de Vincent parece ser denunciar a ausência de quadros competentes (saídos da elite) que seriam os

únicos capazes de racionalizar a gestão da máquina burocrática. [Dans ces conditions, aucune

Page 104: Construções do fracasso haitiano

92

As caracterizações do dualismo variam de autor a autor, e sempre há uma

multiplicidade de distinções trabalhando em conjunto, reforçando umas às outras. Às

vezes um dos critérios é assumido como predominante sobre os outros. Para Barthélemy

a origem está na diferença de projetos pró ou contra as plantations. Tanto para Trouillot

quanto para Hurbon, a questão principal é classe.168

Fatton vai no mesmo sentido, sendo

muito claro ao apontar a concentração de renda como critério primordial da divisão, a

partir do qual vários outros seriam derivados.169

A cor jamais é assumida como

predominante, e parece não ser por acaso que os dois livros que se dedicam a uma

cuidadosa desconstrução da dicotomia noir/mulâtre sejam do período imediatamente

após a queda de Jean-Claude Duvalier. Nas publicações mais recentes, o caráter dual da

sociedade haitiana aparece tão dado quanto antes, mas a negação da preeminência do

par noir/mulâtre passa a receber menos atenção.

O que parece ser consenso é o caráter dual da construção, entre (#1) a elite – seja

ela definida como aristocracia da pele, burguesia e pequeno-burguesia, classe política

e/ou classe proprietária, citadinos, senhores das plantations de Saint-Domingue, créoles

spécialisation, aucune répartition équitable et rationelle des taches constituant la vie publique. Des

fonctionnaires et pas de fonctions.] Barthélemy oscila entre as duas posições, às vezes tratando o Estado

como igualmente exterior e inimigo dos Haitis créole e bossale, às vezes como uma arma do Haiti créole

usada contra o Haiti bossale. Laënnec Hurbon nos traz um interessante comentário en passant sobre essa

relação de simbiose/oposição entre estado e elite, colocando o que Trouillot chama de elite comercial

como bourgeoisie compradore e a elite política como pequeno-burguesa. La petite bourgeoisie

bureaucratique (appelée dans la littérature traditionelle haïtienne les “élites”)… Hurbon, 1986:130. 168

É claro que falar de classe em um país basicamente rural significa falar das políticas agrárias, e

especialmente quando na lógica do desde 1804... volta a questão das tentativas de manutenção/

reconstrução/destruição das plantations. 169

(O autor fala em primeiro e segundo mundo no mesmo sentido em que falamos aqui em primeiro e

segundo Haiti). First and second worlds are bound together in unequal but interdependent relationships

that have generated an enormous gap between the haves and the have-nots. According to conservative

estimates, the richest 1% of the population monopolizes 46% of national revenue.

The dichotomic structure of Haitian society is also reflected in acute color consciousness. The conflict

of color, or the rift between “brown” and “black” exacerbates further social tensions. The line that

divides Haitians most, however, is not color but class. The line of class expresses the fact that while first

and second worlds are thoroughly intertwined in an exploitative material web, the dominant class has

always sought a total moral and psychological dissociation from le peuple, whom it has dehumanized into

meek and servile creatures. Armed with an acute sense of cultural superiority, the dominant class is

conscious of its privileged status in the social order and is bent on defending it. It has an adversary

position toward the subordinate classes, whom it regard with scorn and fear. By dissociating itself from

le peuple through its language, religion, education and etiquette, the dominant class has tried to validate

its elevate position and its claims to a natural right of governance. Fatton 2002:53.

Page 105: Construções do fracasso haitiano

93

originais e sua descendência, entre outras possíveis – e (#2) o povo – seja definido como

massas negras, campesinato e habitantes de bindonvilles urbanos, classe trabalhadora,

moun andeyò, l‟arrière pays, entre outras possíveis. Tanto nos autores do Corpus

quanto na bibliografia citada pelos autores do Corpus, não vemos dúvidas sobre o

caráter dual da sociedade haitiana.170

Nossa intenção neste capítulo foi mostrar um eixo em torno do qual se organiza

a narração da história haitiana. Haveria um movimento pendular (desde 1804...) entre

tendências centrífugas e centrípetas, onde os dois Haitis se afastam ou se aproximam,

pacífica ou violentamente. A divisão é amplamente reconhecida e levada em conta nas

disputas políticas, nos discursos, no repertório de reivindicações/acusações.

Tomemos um último exemplo; o regime Duvalier teria operado – segundo seus

partidários – uma grande unificação, remédio para uma doença antiga, tornando a nação

um corpo unido, centrado na figura de Papa Doc. Um de seus lemas, bastante

significativo, uma frase que ainda encontramos, por exemplo, em chaveiros que levam a

sua foto (Jacmel e Port-au-Prince, 2008), é: Eu sou o corpo indivisível da nação.171

Estar contra Papa Doc era como estar contra todo o Haiti e tornar-se inimigo da nação.

170

Presque tous les travaux des économistes et des sociologues sur Haïti insistent sur la division du pays

en deux sociétés séparées, l‟une s‟identifiant à la nation tout entière [portanto, a parte englobante],

l‟autre vivant comme des “étrangers” qui servent d‟appui à une économie de traite. Hurbon, 1986:130,

nota 4. Como exemplos, ele cita os seguintes livros: The Haitian People de James Leyburn, Le paysan

haïtien de Paul Moral, L‟économie haïtienne et sa voie de dévelopmment de Gérard Pierre-Charles, Atlas

Critique d‟Haïti de Georges Anglade e Peasants and poverty – a study of Haiti de Mats Lundhal.

Trouillot entra uma polêmica contra estes autores (em especial o sociólogo estadunidense James

Leyburn) que falam em uma sociedade de castas, como se os dois Haitis não mantivessem relações entre

si. Mas essa crítica não questiona de forma alguma o dualismo em si. The danger of taking Haiti for a

caste society is lies not in the observation upon which that analysis is based – Haiti is undeniably a

society split in two – but in focusing on the split between elites and masses, rural and urban, mulâtre and

black, French and Creole, or Christian and Vodoun believer, we run the risk of masking the exchanges

and contacts underlying these oppositions. The dualist approach typified by Leyburn leads to the failure

to identify classes and class fractions within and outside the peasantry, and to neglect the dialectics of

social reproduction. Though Haiti is split in two, it does not consist of two societies. On the contrary: the

very mechanisms that have produced the split keep the two parts in an unequal but complementary

relationship. … What the dualist sociologists – especially from the United States – have missed is the

depth of the peasant penetration of urban civil society… Trouillot, 1990:81-82. 171

The Duvalierist Executive can be viewed as a series of reductions in which the first term swallows the

second: State = Nation; Executive = State; Chief of State = Executive. … If the nation could be reduced

to the state, if the state could be reduced to the Executive, if the Executive was only the chief of state, then

Page 106: Construções do fracasso haitiano

94

Enquanto isso, seus detratores – entre os quais podemos contar todos os

principais autores tratados nesta dissertação – acusavam tal consubstanciação de

fraudulenta, de assassinato do povo, do campesinato, das diferenças culturais internas

que teriam sido transformadas em dissidências puníveis.

De certa forma, ambos os lados estão acusando o lado oposto de exterioridade à

nação, e esse tipo de acusação parece ser, ao mesmo tempo, muito grave e muito

comum.

Tudo nos leva a crer que a criação e o manejo de novas dicotomias continuam

sendo consideradas como armas políticas eficazes no Haiti contemporâneo.

Vimos, assim, como na mitologia nacional haitiana aparecem variadas

modulações duma mesma questão de fundo, um movimento pendular entre Unidade

almejada e Divisão constatada, como sucessivas provas do “fracasso” do país. A chave

dicotômica na qual aparecem os conflitos entre “os dois Haitis” possui grande

profundida histórica, ao mesmo tempo em que, no mais das vezes, os dois lados

the chief of state was the nation. … This formula, in which the chief of state served as the sole point of

reference or center, was the cornerstone of the Duvalierist state. The supreme chief was the only actor.

One spoke either in his name or against him. Trouillot 1990:170-1.

Discord within the nation had been obvious since at least Lescot and Estimé. The Duvalierist solution

exarcebated this discord and brought about the polarization described earlier. But instead of denying the

discord, the individuals in power proclaimed loudly that it was a problem they had inherited, remaining

silent about the fact that they wewe intensifying it, and presented the Duvalierist state, and the leader

who incarnated it, as the sole and necessary solution. Even as it increased the polarization of the nation

by formalizing the crisis, the Duvalierist state claimed to be the guarantor of the (already compromised)

national unity. We find in this formula the typical Duvalierist strategy of inverting questions and answers

– and here as eslewhere the strategy bore fruits. Idem:194.

His inaguration speech insisted on the responsibility of the new head of state “to reconcile the nation

with itself”, a slogan that would continue to resonate nearly twenty years later. Idem:195.

The dupery was in shouting out that there was a Haitian illness, that this illness could be cured by the

state, and that the state could only be Duvalier. The three propositions did not follow. Nor did the same

people would hold them to be true to the same extent. But the Duvalierist address worked as a finite text

because at any single moment different segments of the population paid serious attention to one or

another of the three propositions. The nation was the state. The state was Duvalier. The nation was ill

and thus had to come to terms with itself in the very person of the leader who embodied it. Idem:196.

Haitians, my brothers… if in your heart of hearts you have felt that I was you and you were me… may

I not proclaim in this solemn moment that I have won over my people. Duvalier apud Trouillot 1990:197.

O grifo é de Trouillot.

Ce que, finalement, le language duvaliériste nous donne à voir, c‟est la métamorphose des thèmes de

nation et de classe en objets imaginaires, hallucinés, qui se chargent d‟une force dangereuse, puisqu‟ils

n‟ont plus d‟autre lieu d‟existence que la propre personne du leader noir, représentant de la « race

noir ». Duvalier est ainsi devenu la négation (imaginaire) de toutes les divisions sociales, mais en même

temps il se comprend comme le producteur (réel) de la nation et son propriétaire (réel). Hurbon, 1987:99.

Page 107: Construções do fracasso haitiano

95

identificados (que variam um pouco, mas não muito, segundo o critério da divisão

adotado) possuem um caráter mais ou menos atemporal, podendo ser identificados, sob

formas supostamente estáveis, através de longos períodos de tempo. Agentes coletivos

como “a elite” ou “o povo” são construídos da mesma forma.

Também é importante pensar a partir de que fontes se constroem tais unidades.

Elas não são da mesma grandeza. “A elite” é um grupo restrito, e a identificação mútua

entre os indivíduos que a integram parece ser mais ou menos consensual (cf. Thomaz

2005). O manejo de diferentes idiomas e um alto nível de educação formal fazem parte

da definição. Fatton explicita a condição, falando de sua intimidade, seus laços pessoais

e afetivos com outros membros da elite haitiana (ver nota 22). Mas, ainda que nem

sempre haja menções explícitas, podemos considerar que todos os autores do Corpus

são, em maior ou menor grau, parte da elite. As fontes a partir da qual o pensamento e

as práticas da elite haitiana são construídas incluem publicações acadêmicas,

correspondências, programas políticos, confissões escritas por homens públicos, entre

outros. Em suma, a elite sempre teve os meios para se expressar.

Por outro lado, “o povo”, le peuple, é o genérico por excelência. Sua definição

costuma operar por negação: o que não pertence à elite é do povo. Como as fontes

bibliográficas são, quase por definição, falas da elite, as fontes usadas na construção

narrativa do “povo”, de suas crenças e suas práticas, tem outro estatuto. Ao mesmo

tempo em que “o povo” não sabe ler nem escrever, lemos incessantemente sobre “o

povo”, visto por um olhar que parecer se colocar, ao mesmo tempo, “dentro” e “fora” do

objeto analisado. Em Jadotte e Wargny, ambos jornalistas, as reflexões sobre quem é e

como vive o povo haitiano contam com fatos anedóticos, por vezes notícias de jornal.

Trouillot também conta algumas anedotas que ilustam como seria o cotidiano sob o

regime duvalierista. Esse tipo de dado é o que há de mais empírico. Não há pesquisas de

Page 108: Construções do fracasso haitiano

96

campo, mas mesmo se houvesse, seria difícil localizar “o povo”, já que, por estar em

todos os lados, ele não está em lugar nenhum. Por vezes aparecem pesquisas

estatísticas, cuja confiabilidade costuma ser posta em dúvida. E documentos históricos,

que, mais uma vez, acabam aparecendo como falas da elite sobre “o povo”. As fontes

principais são livros que remetem a outros livros, e assim em diante, os argumentos se

enredam em torno de um “povo” cuja existência é aceita como fato consumado, auto-

evidente, num sistema de referências circulares.

Há um campo de possibilidades estratégicas, é possível dizer coisas muito

diferentes falando sobre ou em nome do povo. Não é por mera especulação que algo que

é atribuído ou não ao “povo haitiano”. Como nos lembram os chamados estudos de

caráter nacional (por exemplo, Neiburg 2001, Herzfeld 1992, Handler 1988), o que está

em jogo são convenções coletivas de auto-representação às quais as pessoas se

reportam, o que as torna eficazes. Propor uma convenção desse tipo, ser capaz de dizer

“nós, os haitianos/as, somos assim”, é uma proposta de auto-percepção, ao mesmo

tempo uma genealogia retrospectiva e teleológica que mostraria “como chegamos onde

estamos” e que, ao mostrar como “sempre fomos”, indica também rumos futuros. É um

ato político e um convite à adesão.172

Como argumenta Michael Herzfeld, os

estereótipos operam em termos genéricos e específicos, tornando uns convertíveis nos

outros.173

Assim, “o povo” está em todo lugar e em nenhum, e apelar ao “povo” numa

172

Federico Neiburg, orientador dessa dissertação, não só ajudou a formular essas idéias através de

diálogos, mas também desenvolveu um argumento parecido em sua análise do mito de origem do

peronismo, no contexto argentino: Para construir una posición en un universo social que es pensado en

términos nacionales, políticos, ensayistas, literatos, historiadores y científicos, deben ofrecer un relato de

la historia y un proyecto que pueda ser reconocido por el resto de la sociedad. Por ello las mitologías

nacionales reservan un lugar especial a las representaciones sobre el pueblo, sobre los ciudadanos de la

nación. Objetos privilegiados del efecto naturalizador ejercido por todo mito, las categorías pueblo y

nación constituyen un verdadero campo de luchas entre los agentes encargados de producir las

representaciones autorizadas sobre las sociedades nacionales. Neiburg 1995:235, grifos originais. 173

Stereotypes are, above all, the idiom in which social and cultural exclusion become mutually

convertible – the means, in short, by which nationalist ideology can present itself as a familiar solidarity

beset by equally familiar enemies, while local actors can justify their petty tyrannies as defenses of

cultural value. Herzeld 1992:73.

Page 109: Construções do fracasso haitiano

97

discussão permite tornar convertíveis uma escala (inter) nacional (“o Haiti”) e

interações cotidianas. Qualquer pequena história cotidiana pode ser invocada para

mostrar como são as haitianas, e igualmente o significado de ser haitiano pode ser

invocado em qualquer briga de vizinhos.174

Mas não queremos nos afastar do Corpus. A breve fuga ao tema pretende apenas

chamar a atenção apenas à natureza das fontes. Não se trata de acusar a falta de

pesquisas empíricas do Corpus, como se se tratasse de uma ciência social mal feita.

Pelo contrário, é um tipo de construção conceitual ao qual pesquisas empíricas (como o

que em antropologia conhecemos como “trabalho de campo”) não se aplicam, é algo

constitutivo do próprio objeto. Veremos, no próximo capítulo, quais culpas ou

responsabilidades são atribuídas a essas entidades coletivas, como as acusações pesam,

grosso modo, sobre três camadas: “a elite”, “o povo” e por fim “as grandes potências”,

ou “a comunidade internacional”.

174

Assim como as diferenças entre blans e aysiens eram interminavelmente invocadas pelas pessoas que

conheci em Jacmel, muitas vezes com a intenção visível de influenciar o comportamento alheio, meu ou

de outra pessoa presente. Cito apenas um exemplo: em uma viagem a Seguin, uma vila montanhosa

distante de Jacmel cerca de três horas de moto, eu e meu amigo Gregor dormimos na casa de Remon, um

amigo dele. No dia seguinte, de manhã cedo, a mãe de Remon nos serviu uma leguminosa (não sei o

nome) como desjejum. Eu não estava acostumado com aquele gosto, e não tinha nenhuma fome, comia

por educação e com certa dificuldade. Gregor e a família de Remon comiam sem problemas, exceto o

filho mais novo, de sete ou oito anos, que também parecia não ter fome e brincava com a comida no

prato. Então a mãe de Remon fez um pequeno discurso sobre porque aquilo não era comida de blan, que,

creio eu, era muito mais direcionado ao seu filho caçula (que estava se portando, condenavelmente, como

um blan) do que a mim.

Page 110: Construções do fracasso haitiano

98

#3 Alocações de responsabilidade.

Vimos que as construções narrativas sobre “os problemas do Haiti” partem de

um encadeamento histórico onde sempre figuram alguns eventos-chave, mas em geral

como uma história presa em si como repetição do mesmo, e também como é freqüente a

sugestão de uma divisão que impediria a coesão, a existência de um pacto social,

gerando dois países que mantém relações hierárquicas e turbulentas. Neste capítulo,

nossa intenção é apontar três linhas argumentativas freqüentes, três agrupamentos de

agentes aos quais a literatura atribui “a culpa” pelos problemas do Haiti. Não são pólos

mutuamente exclusivos, na maior parte das vezes o que aparece é alguma combinação

dos três, embora a dosagem varie bastante.

(1) As grandes potências. Grosso modo, o argumento é que o único país do

mundo nascido de uma revolução anti-escravista e anti-colonial lidando com potências

coloniais e escravocratas no século XIX (particularmente França e Estados Unidos), e

um país pequeno e pobre lidando com um vizinho próximo cada vez mais rico,

poderoso e imperialista no século XX (Estados Unidos) ficou sem margem de manobra.

Assim, o Haiti teria sido sistematicamente isolado, sabotado, boicotado, caluniado,

enviado ao ostracismo, chantageado, explorado, obrigado a negociar nas condições mais

desvantajosas.

(2) As elites haitianas, ou o Haiti de cima. O argumento parte da divisão interna

da sociedade haitiana, já discutida. As estruturais coloniais legadas pelos franceses

seriam o único modelo de Estado conhecido pelos ex-escravos, de forma que a elite que

tomou o poder com a destruição de Saint-Domingue construiu um governo à imagem e

semelhança dos franceses, padrões de exploração derivados diretamente de um sistema

escravista que, de uma forma ou outra, teria sobrevivido até hoje. Todo o sistema de

Page 111: Construções do fracasso haitiano

99

diferenciação descrito no capítulo anterior teria evoluído de forma perversa, e o Estado

teria tomado cada vez mais o papel de um parasita e predador, sugando os recursos

gerados pela nação rural sem oferecer nada em troca além da repressão.

(3) O Haiti de baixo, ou o povo haitiano. Aqui a idéia é que o Haiti chegou a

uma situação tão ruim porque certos “defeitos culturais” seriam grandes obstáculos ao

desenvolvimento. Nessa vertente, a “cultura haitiana” é tomada como anti-progressista,

retrógrada, supersticiosa, com inclinação a resolver as desavenças mais através do uso

da força que da argumentação, segundo a lógica do cada um por si, salve-se quem puder

(sauve-qui-peut), incapaz do trabalho em conjunto, mentalidade submissa e acomodada,

busca por soluções mágicas e religiosas ao invés de trabalho duro e diligente,

preferência por líderes messiânicos carismáticos ao invés de partidos políticos

estruturados. Além do que se pode supor como sendo próprio do campo cultural (que

portanto tem uma história, ou uma inércia própria, dependendo da formulação), as

condições materiais da vida na miséria, a luta diária para satisfazer necessidades tão

básicas quanto comida e água (a fome pode prescindir de qualquer memória) por si só já

seria o suficiente para turvar toda capacidade de planejamento e prender as mentes

numa lógica do curto prazo e curto alcance.

Tentaremos mostrar agora como estes três agrupamentos funcionam na literatura

para explicar os dilemas econômicos e políticos vividos pelo Haiti hoje. Os problemas

políticos básicos – ausência de legitimidade, falta de coesão/consenso/

homogeneidade/pacto social, e um autoritarismo supostamente correlato – já foram

delineados. Os problemas econômicos, cujas linhas gerais nos dedicaremos a expor

agora, estão bastante conectados a essas questões. Na verdade, falamos em “economia”

e “política” apenas para organizar e tornar a exposição mais didática, mas a

interdisciplinaridade característica dessa literatura torna inúteis tais separações – se o

Page 112: Construções do fracasso haitiano

100

assunto é o Haiti como um todo, geografia social e física, política, história, economia,

demografia, ecologia, todas se fundem como ângulos do mesmo objeto.175

A intenção

não é, de forma alguma, endossar divisões que disciplinam o pensamento, mas apenas

chamar atenção para certos aspectos da economia-política no Haiti, tal como discutida

pelos livros em questão, que até agora só apareceram de forma tangencial.

O dilema original: como produzir sem escravidão?

Os primeiros governos do Haiti pretendiam que o país fosse um herdeiro direto

de Saint-Domingue no sistema econômico mundial, basicamente uma rica economia

baseada na agricultura de exportação (especialmente de açúcar e café).

O dilema econômico é inseparável dos problemas de legitimidade, tanto interna

quanto externa. Em um primeiro momento, a independência haitiana não foi

reconhecida fora do Haiti, e havia a expectativa de que a qualquer hora poderiam chegar

tropas francesas na intenção de recolonizar a ilha e re-escravizar o povo. Para garantir a

liberdade conquistada, o novo Estado precisava se armar, e para comprar armas e

equipar um exército precisava de dinheiro, e com urgência.

Mas o principal – ou o único, dependendo de cada versão da história – método

de produção de riquezas que as elites (determinadas a cumprir sua missão de

salvaguardar a liberdade e reabilitar a raça negra) conheciam seria a produção dos

gêneros coloniais de exportação agrícola. Daí o impasse: como produzir sem

escravidão? Como gerar mais uma vez a imensa riqueza antes baseada no trabalho

forçado e cativo, agora que o novo Estado se construía ideologicamente contra o

175

Referimo-nos aqui ao Corpus. Outros textos citados trabalham um pouco mais dentro de fronteiras

disciplinares, mas ainda com certa dose de hibridização. O economista Mats Lundhal, por exemplo, abre

seu texto History as an obstacle to change com a seguinte crítica; Most economic models do not explicitly

incorporate the “state” or the “government” into their analyses...

Page 113: Construções do fracasso haitiano

101

cativeiro? 176

Como se tornar Haiti sem perder a importância econômica que tinha Saint-

Domingue? Seria melhor coagir as classes trabalhadoras a produzir mais ou garantir

direitos às massas correndo o risco de falir financeiramente, lembrando que a falência

financeira era também a ameaça de cair novamente sob dominação estrangeira, e até

mesmo o ainda plausível retorno da escravidão? 177

Esse dilema original é central para a forma como Trouillot pensa a evolução da

organização sócio-econômica haitiana, está profundamente implicado na divisão entre

créoles e bossales tal como proposta por Barthélemy, e também aparece com alguma

freqüência no livro de Étienne, embora sua ênfase recaia mais sobre a precariedade da

infra-estrutura, da base produtiva e das relações de trabalho do que sobre o colapso das

hierarquias de comando, mais discutido por Trouillot e Barthélemy.

176

To be sure, in the absence of any alternative to plantation agriculture and neocolonialism, the choice

facing the new leaders was not an easy one. If the peasant labor process was allowed to predominate, it

could easily lead to a huge drop in already declining exports, and the new state badly needed foreign

currency. At the same time, an export-oriented strategy could easily keep the country in a state of

economic dependence. … success was possible only through the economic exploitation of the black labor

force. Trouillot, 1990:49. 177

En effet, dès 1791, dès la première révolte des esclaves, mais surtout à partir de 1793, vont se poser

dês problèmes concrets de fonctionnement de la société, de l‟économie et de la lutte, qui vont révéler la

force des tensions entre les groupes antagonistes. ... La première question qui va se poser concerne la

conciliation du maintien de la plantation avec la supression de fait, puis de droit, du régime de

l‟esclavage. Barthélemy, 1989:92.

Haiti‟s early leaders thus faced a dilemma whose dimensions are clearly revealed if we put them in the

context of the times. An authoritarian labor system was more likely to lead to increased productivity in

the export sector and generate local accumulation of capital. On the other hand, militarized agriculture,

and even the milder forms of plantation system, conflicted with the masses‟ vision of freedom and thus

with the fundamental principle of liberty around which the nation was build. Trouillot, 1990:50.

Toussaint Louverture avait compris la situation de délabrement de Saint-Domingue et l‟imperieuse

nécessité pour lui d‟augmenter le volume de production et le niveau de productivité du nouvel État qu‟il

dirigeait. Ainsi, il voulait restaurer l‟économie de plantations dans toute sa splendeur d‟avant la période

d‟anarchie, de chaos et guerres civiles et internationale. À cette fin, il n‟hésita pas à militariser

l‟agriculture, à remplacer l‟esclavage par le servage, voire le travail forcé. ... Le corps militaire, présent

partout sur le territoire, pesait sur les cultivateurs comme une horde despotique et parasitaire. Étienne,

2007:94-5.

Les nouveaux dirigeants se devaient de faire face à un problème quasi-insoluble, soit : comment

continuer à faire d‟Haïti la colonie la plus prospère au monde, après une guerre de libération contre le

fondement de cette prospérité, c‟est-à-dire, l‟esclavage ? La réponse de ces dirigeants a été d‟une part,

d‟accepter comme fait la solution adoptée par une majorité des anciens esclaves, c‟est-à-dire,

l‟occupation des terres montagneuses peu utilisées jusqu‟alors dans le cadre du développement sucrier

intensif ; d‟autre part, d‟assujettir le reste de l‟ancienne population esclave à un regime dit de « deux-

moités » par lequel la nouveau paysan occupant une parcelle de terre au nom d‟un grand propriétaire,

lui remettait la moitié de sa récolte annuelle ; et enfin, de confier la propriété des grandes plantations à

une élite formée des anciens officiers de l‟armée de libération. Jadotte 2005 :120-1.

Page 114: Construções do fracasso haitiano

102

Como vimos, durante a guerra de independência, maquinário e plantações foram

devastadas. A fuga da população branca foi ao mesmo tempo fuga do capital

estrangeiro e do conhecimento técnico especializado.178

A primeira constituição do

Haiti independente, ao proibir pessoas brancas de comprarem terras no país, teria

afastado ainda mais a possibilidade de investimentos.179

Como conseqüência, a

população branca desenvolveu relações comerciais nas quais todo lucro era levado para

fora do Haiti. Em nível nacional, todo planejamento da produção visava o mercado

estrangeiro. O controle camponês da terra e da produção agrícola, mais de fato que

reconhecido de direito, o regime de pequenas propriedades plantando gêneros de

subsistências e sem penetração de relações trabalhistas baseadas no salário, em suma,

toda a configuração à qual Jean Casimir chamou de contra-plantation, era vista pelas

elites políticas como um grave empecilho para o desenvolvimento econômico do país.

A política econômica dos primeiros chefes do estado haitiano, em especial

Toussaint Louverture e Henry Christophe, tentou recuperar a base produtiva das

plantations. Porém, a noção de liberdade estava muito associada à terra e ao tempo para

trabalhar nela em benefício próprio. Entre as classes trabalhadoras havia grande rejeição

178

La violence, l‟anarchie, le chaos, la guerre civile et internationale avaient provoqué les vagues

successives de départ massif dês Blancs, de certains mulâtres et d‟esclaves à talent pour Cuba et

Louisiane. Em seguida o autor cita quatro grandes levas migratórias de proprietários e escravos

especializados. A terceira delas (1795-1800) é chamada de émigration utile. Pendant cette période, des

Blancs et des Mulâtres, avec leurs capitaux, leur techniciens et leurs esclaves à talent, allaient contribuer

au développement agrícole et commercial de Cuba. ... Si l‟apport des 20 000 à 30 000 personnes ayant

fui de Saint-Domingue au profit de Cuba, en termes de capitaux et de techniciens qualifiés, allait

contribué à faire de cette île le premier producteur mondial de sucre de 1840 à 1883, ce fut d‟abord aux

dépens d‟Haïti. ... L‟absence d‟investissements massifs de capitaux, de technologie et de techniciens,

jointe au refus des Haïtiens de travailler, comme par la passé, sur les plantations, conduissent

rapidement à l‟abandon de la culture de la canne à sucre au profit de celle du café et a une baisse

considérable de la production globale du pays durant la période nationale par rapport à l‟époque

coloniale... Étienne 2007:111. Na conclusão do livro, o mesmo trecho aparece repetido quase palavra por

palavra, ressaltando a ausência de investimentos estrangeiros e a recusa popular ao regime de trabalho

como um double inconvénient que levou o país à falência. Idem:322. 179

Haitians had little access to cash or credit, and fear of French infiltration led to property laws that

severely limited foreign investment: the imperial constitution of 1805 forbade “any white, of whatever

nationality” of owing land in Haiti. Moreover, it is doubtful that foreigners would have invested in

plantations even without such laws; the international context discouraged them from risking fixed capital

in Haiti, and commerce offered a quicker and surer return. Trouillot, 1990:73. A questão também aparece

em Étienne (2007).

Page 115: Construções do fracasso haitiano

103

ao trabalho nas grandes plantações, especialmente de cana. Recompensas em forma de

salário não encontravam grande apelo.

Os autores enfatizam que o “projeto plantation” foi um fracasso à época de

Louverture. Mesmo com a chamada “agricultura militarizada”, regime de trabalho

assalariado, obrigatório e cativo na produção de cana de açúcar, a riqueza gerada

segundo tais métodos nunca teria sido comparável à dos tempos de Saint Domingue.180

Dada a recusa da mão de obra rural, sua má vontade contra o sistema, a

inconveniente recusa dos haitianos a trabalhar nas plantations de cana de açúcar

(Étienne 2008:322), a terra passou a ser cada vez menos lucrativa e vantajosa para as

elites. Segundo Trouillot, a solução teria sido a criação de um sistema de taxas indiretas,

um sistema para transferir ao campesinato as contas do estado. Na importação, enquanto

artigos de luxo possuíam impostos muito baixos, artigos básicos (como querosene,

fósforos, arroz) de consumo das massas que vinham do exterior foram pesadamente

taxados. Na exportação, os impostos incidiam sobre o café, cuja produção era difusa

entre milhares de pequenos produtores, enquanto o açúcar, ainda ramo de uma elite

agrária (grande parte das fazendas expropriadas foi para as mãos de funcionários do

governo, especialmente militares de alta patente), contou com grandes incentivos

fiscais. O funcionamento do sistema não era facilmente perceptível para trabalhadores

rurais, que não sabiam quantos impostos estavam embutidos no dinheiro que recebiam

ao vender sua produção ou nos produtos que compravam – e isso era importante, dado o

medo recorrente de revoltas populares.

O orçamento dos governos tornou-se mais e mais dependente do campesinato.

Com diferenças regionais, grosso modo criou-se uma estrutura fundiária baseada em

grandes propriedades (embora, em comparação com a América Latina, a concentração

180

Étienne 2007:112 traz uma tabela mostrando um declínio vertiginoso na produção de açúcar e café

entre 1789 e 1820. Seus dados estão baseados nos trabalhos de François Latortue e Gérard Pierre-Charles.

Page 116: Construções do fracasso haitiano

104

de terras não tenha sido tão grande181

), na qual a elite rural legalmente tinha direito a

grande parte da produção, mas não dispunha dos meios práticos de controlar o que era

produzido pelas milhares de famílias que viviam no campo e praticavam uma espécie de

“pirataria de comida”, usando ilegalmente a terra para plantar o que era de seu próprio

interesse. Diversos autores mencionam o anacronismo dessa classe de grandes

fazendeiros [landlords], vivendo à sombra de governantes e mercadores (das cidades,

portuárias como sempre), e da falta de interesse e/ou capacidade – de diversas camadas,

cada qual com seus motivos – em aumentar a produtividade agrícola.

Ao invés de investir na produção – o que é apenas insinuado como desejável em

alguns casos, e mais incisivamente colocado como a alternativa correta por Étienne – a

solução encontrada pela elite teria sido driblar a recusa da mão de obra em financiar o

Estado através do sistema de taxas indiretas. Vale a pena notar o contraste entre a

instabilidade do poder político, cujos detentores pareciam sempre sujeitos a golpes e

assassinatos, e a estabilidade da riqueza e de cargos mais tecnocráticos, responsáveis

por gerir as contas do estado. Os terremotos da cena política poderiam assim mascarar a

continuidade subterrânea das políticas econômicas.182

Grosso modo, assim é formulado o impasse econômico no qual o país estaria

preso – sua receita dependia de taxas sobre uma produção estagnada, intocada pelos

181

Em seu artigo Underdevelopment in Haiti, Mats Lundhal revisa parte da literatura dedicada à questão,

lembrando autores haitianos (Gérard Pierre-Charles, Gérald Brisson, Alex Dupuy) que desenvolveram a

tese de que a concentração fundiária constitui sim um problema sério no Haiti, tanto quanto no resto da

América Latina. Apoiado em dados coletados por Uli Locher, Lundhal chega à conclusão oposta: To

arrive at a more reliable assessment of landownership in Haiti, local and regional survey data have to be

added to the picture provided by censuses. If this is done, a picture emerges that establishes beyond any

reasonable doubt that Haiti does not have a latifundio-minifundio problem. 1991:428. Grifo original. 182

The chronic instability of Haitian political life, as manifested in the rhythm of political succession, and

recurring to armed feuds is so obvious that Haitian and foreigner observes alike have tended to inflate

the role of politics in shaping the course of the country‟s history. They often see the stages of historical

evolution in terms of changes of regime, to a degree that masks underlying continuities. Trouillot

1990:83. Rulers could change, enmities could replace friendships, but the corporate position of the richer

merchants remained untouched. Idem:70.

Si de 1804 à 1915 les militaires dominaient la scène politique en Haïti, avec leur cohorte de coups d‟État

et de tentatives de coup d‟État, les grands commis de l‟État, en revanche, monopolisaient

l‟administration publique, avec des récords de longevité. Étienne 2007:115.

Page 117: Construções do fracasso haitiano

105

avanços tecnológicos, ou mesmo decrescente (devido a fatores ecológicos, como o

desmatamento e a erosão, que nessa literatura constituem uma catástrofe à parte),

enquanto o custo do Estado e a população cresciam continuamente. A flutuação dos

preços do café e do açúcar no mercado internacional piorava a situação, deixando a

economia nacional à mercê de eventos totalmente fora de seu controle. A

improdutividade geral teria empurrado o estado a uma posição cada vez mais

parasitária. A evolução desse quadro teria amplificado a miséria geral, que por sua vez

criaria condições férteis para o autoritarismo, relações clientelistas etc. Os problemas

políticos e econômicos estariam, portanto, profundamente conectados. Veremos agora

como cada setor é responsabilizado pela situação.

Obstáculos culturais, ou a culpa do povo.

Em primeiro lugar, não podemos naturalizar a assunção de que há, em escala

nacional, um “povo” ou uma “cultura haitiana”, estável através de longos períodos de

tempo. Trata-se de uma operação conceitual complexa, que mesmo quando não é

discutida, está lá, implícita, como pré-condição para a afirmação e/ou refutação, parcial

ou total, dos argumentos a seguir. Para seguirmos o raciocínio dos autores, é preciso

trabalhar com esse pressuposto.

Quando o assunto é a parte que cabe ao povo pela tragédia haitiana, há duas

versões simétricas e antagônicas. Por um lado, haveria certo heroísmo na resistência

popular contra governos opressores e condições difíceis de sobrevivência. As

numerosas revoltas aparecem então como justificadas e legítimas. Contra um sistema

moralmente indefensável nos dias de hoje, o próprio Estado nasceu de uma revolta

legítima, que de alguma forma teria sido traída ou desvirtuada. A revolta (via confronto

ou evasão) contra esse Estado seria algo como uma retomada da revolta legítima dentro

Page 118: Construções do fracasso haitiano

106

da revolta traída.183

Pelo outro, o campesinato haitiano seria refém de uma cultura

resistente a mudanças e da própria incapacidade para se adaptar a novas tecnologias e

novos contextos. As revoltas surgiriam então como provas de uma tendência cultural à

violência e ao caos, a criar mais problemas do que encontrar soluções, mais uma

manifestação da inaptidão ao progresso.

Na versão positiva, a responsabilidade do povo pela própria miséria seria apenas

derivada – a recusa em trabalhar a favor do sistema levaria a retaliações, vindas tanto da

elite haitiana quanto do estrangeiro. Na versão negativa, a suposta inabilidade para o

trabalho em conjunto, para a inovação técnica e aumento da produtividade estaria

elencada entre os principais motivos para o fracasso econômico do Haiti.

Embora a improdutividade seja um tema muito recorrente nos livros do Corpus,

os supostos defeitos culturais do povo sem dúvida poderiam ser mais explorados na

literatura anti-haitianista à qual os livros em foco reagem (como na literatura

abertamente racista do século XIX, que já teve alguns exemplos citados no capítulo

anterior). Mas o mero fato de que, vez ou outra, autores haitianos contemporâneos

sintam ser necessário defender “o povo haitiano” de tais acusações por si só já

demonstra sua persistência, ainda que sob formas mais sutis ou indiretas.

A esquiva, ou mawonaj [“quilombolismo”] reativa.

Para Gérard Barthélemy, é a resistência bossale que faz o Haiti tão diferente do

resto da América Latina. Parece haver um anti-capitalismo intrínseco ao Haiti rural,

andeyò. Ao discutir os métodos de trabalho coletivo, Barthélemy cita longamente

183

Cristophe Wargny (2008:65-66) afirma que François Duvalier, em sintonia com as frustrações do povo

(L‟éthnologue connaît surtout les masses rurales, ces victimes permanentes... Il a fait siennes leurs

ancestrales frustations, plus que leurs revendications... Il caresse les fantasmes et les prejugés.),

manipulou o tema a seu favor, usando mulâtres como bodes expiatórios, e provocando com isso uma

nova fuga de profissionais competentes; Convaincus d‟avoir trahi la révolution, voleurs, exploiteurs et

racistes – Papa Doc est lui-même profondément xénophobe – les mulâtres sont persécutés. ... Les progrès

économiques et sociaux d‟après-guerre sont vite gommés par la fuite de professionels.

Page 119: Construções do fracasso haitiano

107

Richard Hill, homme de couleur e visiteur curieux jamaicano que esteve no Haiti em

1830.184

O que Hill descreve é um sistema de ajuda mútua entre vizinhos/as, um espírito

de associação que independeria completamente da circulação de dinheiro, como em um

sonho socialista.185

Um tal Mackenzie, cônsul inglês contemporâneo de Hill, teria

relatado ao parlamento inglês em tom alarmado que o parcelamento das terras tornou a

mão de obra difícil de se arranjar, já que agora as pessoas querem plantar para si

mesmas (Barthélemy 1989:41). Além de estratégia de ajuda mútua, Barthélemy vê aqui

um interdito do salário dotado de uma dimensão cultural e social geograficamente

circunscrita186

(idem:42). O igualitarismo compulsório operaria contra as relações de

trabalho baseadas em salários como parte do esforço em tornar autônoma cada pequena

unidade rural. A cultura bossale seria dotada de mecanismos de auto-regulação para

manter um estado permanente de equilíbrio, tais como os modos de gestão da

precariedade. Uma ojeriza culturalmente enraizada à concentração de renda manteria a

todas/os na pobreza compartilhada – não uma pobreza problemática da qual as pessoas

querem se livrar, mas uma pobreza naturalizada, aceita, talvez até desejada (embora

situações de crise, ao tornar as dificuldades extremas, possam ameaçar tais traços

culturais).

Esse tipo de comportamento, de origens quilombolas187

(imagem que, como

gênese presumida ou como metáfora, aparece com freqüência), seria profundo ao ponto

de gerar uma concepção diferente de pessoa no Haiti rural, algo como uma antítese do

184

No caso, o objetivo de Barthélemy é retraçar a filiação histórica das kombits ou coumbites aos tempos

pré-1804. Em Smith (2001) há uma descrição etnográfica mais cuidadosa sobre as várias modalidades de

trabalho coletivo, com alguma reconstrução histórica, mais ou menos especulativa, mas com especial

ênfase no registro das formas atualmente existentes. 185

... spectacle étonnant que celui de cette ferme, véritable kolkhose qui ressemble à une invention de

quelque socialiste utopique de la même époque (Barthélemy, 1989:40). 186

Isso não se aplicaria a áreas fora, como as colheitas sazonais de cana na República Dominicana,

supostamente aceitas sem problemas por estarem além dos limites da comunidade. 187

Ici encore, il faut remonter loin en arrière pour tenter de cerner les origines de ce comportement.

L‟ancien esclave qui a fui de la plantation sait qui, pour garantir sa liberté, il faut qu‟il apprenne à ne

plus être dépendant pour sa suivre, pour sa consommation. Idem: 45.

Page 120: Construções do fracasso haitiano

108

homo economicus, baseada na negação do conceito de necessidade (besoin). Assim

lemos que o novo colono procura desesperadamente “motivar” o trabalho, através da

estratégia de suscitar necessidades de consumo que o antigo trabalhador deverá então

trabalhar para satisfazer. Esse método teria sido de um fracasso espetacular, o modelo

do capitalismo não se aplicaria aqui, pois em 1804, isso foi recusado sem violência, mas

também sem equívoco (idem:46). Os esforços em aumentar a produção seriam

invariavelmente frustrados pelo desinteresse total dos/as ex-escravas/os em adquirir

novos bens de consumo. É interessante notar que ao mesmo tempo em que sua

descrição dos padrões de consumo no Haiti rural pinta a figura de seus habitantes como

heróis da resistência anti-capitalista, 188

quase todas as citações que Barthélemy usa para

provar seu ponto tinham originalmente o intuito de desclassificar como preguiçoso,

vagabundo, acomodado ou ignorante o povo que não fazia a economia marchar.189

É

que um tal sistema é incompreensível para um ocidental, um “desenvolvedor”

[“développeur”], ou um habitante da cidade (Idem: 47).

Além da caracterização de quem está do lado de lá da compreensibilidade do

sistema bossale, notemos mais uma vez a mistura de temporalidades implícita na

188

Face à cette possibilité [de aumentar a produção através de incentivos salariais, como propôs um colon

libéral da época] que va faire l‟ancien esclave? Il va prendre une position très nette en essayant de ne

donner prise au système du capitalisme libéral qui se développe alors. Sa contre-politique en la matière

va reposer sur son refus d‟entrer dans la spirale des besoins de consommation. Depuis la colonie, depuis

la fin de l‟esclavage, tous les autres l‟ont bien senti ainsi qui n‟ont cessé de s‟étonner de l‟absence des

besoins matériels propres à nos économies, chez les paysans de cette époque. Barthélemy 1989:46. 189

Por exemplo, James Franklin (1828) fala que o plano de Boyer, frente ao declínio do comércio, teria

sido de maintenir son peuple dans l‟ignorance des besoins artificiels. Beaubrun Ardouin, importante

figura política, líder mulato e um dos pais intelectuais do sistema da politique de doublure, escreveu

(1832) que La sobriété des campagnes, particulièrement, est telle qu‟il suffit de peu d‟effortes pour se

procurer les premiers besoins: de là l‟insouciance à un travail régulier et assidu qui augmenterait

considérablement les produits actuels.Sténio Vincent, presidente do Haiti de 1930 a 1941, escreveu em

seu Efforts et Résultats (1938): L‟homme est ignorant, superstitieux, sans besoins, de moeurs plutôt

dissolues, sans goût pour le travail, livré à lui-même et aux instincts mauvais de sa nature, allant presque

sans vêtement, et sans en paraître gêné le moins du monde, sans feu ni lieu... gaspillant la terre, la

stérelisant, l‟épuissant par de stupides plantations... Cet homme-là est tiré à des milliers d‟examplaires.

O próprio Toussaint Louverture já teria esbarrado nesse entrave: Depuis la révolution, des cultivateurs et

cultivatrices qui, parce qu‟ils étaient jeunes alors, ne s‟occupaient pas encore de la culture, ne veulent

pas aujourd‟hui s‟y livrer, parce que, disent-ils, ils sont libres, et ne passent les journées qu‟à courir et

vagabonder. A única exceção ao tom negativo das descrições vem do abolicionista Victor Schoecher, que

escreveu em 1843; N‟ayant pas de besoins acquis, ils n‟éprouvent aucune frustration. Todos citados e

grifados em Barthélemy 1989:46-47.

Page 121: Construções do fracasso haitiano

109

aplicação de um conceito mais recente (desenvolvimento) a citações do começo do

século XIX. Não nos parece que se trate de um deslize conceitual do autor, mas de um

artifício intencional e necessário para construir unidades estáveis através de cerca de

dois séculos. Assim, Barthélemy nos garante que poderemos reencontrar a mesma

estratégia e as mesmas afirmações entre os camponeses de hoje em dia (idem: 48).

Parece que, em algum sentido, o camponês que se esquiva do Estado é o escravo

fugindo da plantation. É esse tipo de operação conceitual que permite fixar e condensar

o nascimento de uma nova cultura.

Depois de 1804, com a eliminação dos brancos, só ficaram os negros; portanto

será sempre o efeito das mesmas pulsões que se perseguirá em um mundo

doravante transformado e coagulado pelo desaparecimento da escravidão. Com

efeito, ao dar um fim ao processo de creolização dos bossales no seio do sistema

escravista, este processo foi bloqueado... para se transformar em um estado

permanente, em uma cultura. Barthélemy 1989:92. Meus grifos.

[Aprés 1804, les blancs étant eliminés, seuls restant les noirs ; pourtant ce sera

toujours l‟effet de ces mêmes pulsions qui se poursuivra dans un monde désormais

transformé et figé par la disparition de l‟esclavage. Celle-ci en effet, ayant mis fin au

processus de créolisation des bossales au sein du système esclavagiste, bloque, dans

une sorte de trempe à chaud, ce processus pour le transformer désormais en un état

permanent, en une culture.]

O que era um processo, uma vez bloqueado, se coagula em estado permanente,

ou seja, cultura. Neste campo, as mesmas práticas que alhures são evocadas como

signos da teimosa infantil do povo haitiano, para Barthélemy mostram a rebeldia

inerente e atemporal contra a opressão que fez uma nova cultura nascer.190

Cristophe Wargny também fala de como a recusa às plantations geraram uma

cisão na qual o lado créole passou a deter todo o poder, enquanto o lado bossale,

obstinado em não cooperar com o sistema, teria caído num tipo de inércia sem voz,

esquiva que, mais uma vez, remete à metáfora quilombola.191

Esse tipo de

190

Cette tentative de retour à un ordre ancien [a repressão promovida por Toussaint, Dessalines e

Cristophe aos camponeses que não queriam se sujeitar ao novo sistema de trabalho] n‟est pas à ranger

rapidement au rayon des accessoires un peu burlesques de l‟histoire, elle se situe au contraire au couer

du débat et le rejet général qui a accompagné ce rêve reactionnaire donne bien la dimension profonde

de la mutation du peuple haïtien et de son éloignement irréversible du type de société qu’il a fui une

fois pour toutes et qu’il a voulu détruire. Barthélemy, 1989:101. Meu grifo. 191

La majorité, les Bossales, reste au dernier. Habitués à l‟égalité de fait dans les plantations, ils n‟ont

gagné « que » la liberté. Pour eux, pas d‟autre programme – mais quel programme ! – qu‟une postulat

Page 122: Construções do fracasso haitiano

110

comportamento, rebelde e violento, seria um obstáculo à resolução pacífica de conflitos,

revoltas populares e inflamações súbitas incapazes de traçar uma estratégia exequível.192

Em Laënnec Hurbon, a responsabilidade pela crise econômica, pela fuga de

capitais e pela estrutura de guerra civil latente se divide, basicamente, entre o Estado e

a comunidade internacional. Cabe ao campesinato o papel de primeira vítima.

Submetido à contínua degradação das condições de vida, que já chegam à beira do

intolerável, o povo [le peuple], em sua obsessão revanchista contra o regime duvalierista

recém-derrubado, não conseguiria enfrentar as estruturas reais do Estado.193

Mas,

apesar do local aparentemente passivo, aqui também há resistência. Este povo foi

tout simple : plantation signifie esclavage. Variante : la liberté exclut la plantation. Les Africains veulent

éradiquer le système qui leur fut imposé. Ils mettront beaucoup de temps pour dire, ils n‟ont pas les

moyens de l‟exprimer, mais ils veulent construire une société. ... Les Bossales sont sans voix. Mais

entêtés. Une force d‟inertie à l‟épreuve de tout, une résistance inoxydable. ... Les cours de la canne

s‟enfuient dans les montagnes. Se perpetué la tradition de marronage. Fuite, esquive, attente. Wargny,

2008:47-49. A última frase se refere aos anos 1811-1820. Neste caso, como a abolição da escravidão era

então muito recente, podemos nos perguntar se o uso do termo marronage aplicado à fuga aos trabalhos

forçados comandados pelo rei Henry Cristophe é metafórico ou literal.

O mesmo termo é aplicado ao período da internvenção dos Estados Unidos (1915-34), quando

companhias como Standard Fruit e Steamship Corporation teriam desapropriado près d‟un demi-million

de ruraux, tentando em seguida contratar o campesinato sem-terra como mão-de-obra. À l‟interieur ou en

marge des révoltes, le marronnage tente de trouver de nouveaux refuges, avec l‟aide de la population. O

pólo quilombola (#2 Haiti) só funciona em oposição ao pólo escravista (ou #1 Haiti contra #2 Haiti, ou as

grandes potências contra Haiti como um todo) – daí a analogia entre o tráfico negreiro e deslocamentos de

massa do século XX; Pour la majorité, l‟émigration s‟impose. Intérieure ou outre-mer, saisonnière ou

définitive. ... Le XVIIIe siècle fut celui de la transportation d‟Afrique, le XXe celui de l‟exode rural, de

l‟emigration intra-haïtienne, caribéenne ou nord-américaine. Idem:62-3. 192

Sectarisme, hégémonisme, manichéisme : la nuance, la diversité des opinions, l‟alterité, la tolérance,

bref la liberté, sont extérieures à la société haïtienne. Ou à ceux qui la dominent. Qui n‟est pas avec moi

est contre moi. Vous êtes ami ou ennemi. Entre les deux n‟existe place ni statut. Communion ou

excommunion, il faut choisir. [...] L‟adversaire d‟aujoud‟hui n‟est pas considéré comme un homme qui

pense autrement, mais comme comploteur. Il ne mérite que l‟exclusion ou l‟elimination. Conflit signifie

toujours conjuration. Le complot, onmiprésent, écarte d‟emblée tout droit à la différence et exclut tout

démarche politique moderne. Va de pair la diábolisation de l‟adversaire. Hors-la-loi, hors-la-nation,

même si les deux nations frisent en Haïti la fiction. [...]

La politique se nourrit de vanité. Comme ailleurs. Mais elle n‟a pas éradiqué l‟esprit colonial ni

réduit les fractures de l‟independance. Elle s‟en sert et en abuse. Outre le marronage, elle privilégie la

violence comme solution des conflits, la méfiance, le mépris, l‟intolerance et le sectarisme dans les

relations de pouvoir. [...] La plupart des révoltes populaires jaillissent en Haïti sans crier gare. À la

difference des complots, réels ou imaginaires, la manifestation du ras-le-bol est inattendue. [...] Le peuple

a gardé dans l‟adversité cette intuition, cette capacité à tirer parti d‟un evenement, à s‟enflammer, ce

sens du moment proprice qui permet parfois de tordre la stratégie. Ou seulement de secouer le carcan

d‟une misère encore alourdie. Wargny 2008 :170-1. 193

L‟obsession antimacoute qui est la marque de toutes les pratiques revendicatives depuis le 7 février ne

ferait que dire l‟impuissance du peuple à affronter l‟État dans ses structures réelles. Hurbon, 1987:22.

Page 123: Construções do fracasso haitiano

111

mantido na semi-escravidão até 1987, mas sempre praticou a marronage.194

Por motivos

diferentes, a crescente distância entre o Estado e o povo teria sido cultivada dos dois

lados, uma recusa mútua que, do lado camponês, se configurou como evasão. A

agricultura de subsistência – nos morros – teria funcionado como eixo da resistência.195

Assim, a realidade com a qual todo observador se defronta é de uma parte a

dominação do capitalismo sobre o Haiti, e do outro a resistência permanente do

campesinato à sua integração no capitalismo. (idem: 33. Meus grifos, visando remeter

a leitora/leitor às discussões dos capítulos anteriores.) Esses dois movimentos opostos

convergem na improdutividade geral; o campesinato pune o Estado com a queda da

produção de gêneros de exportação ao mesmo tempo em que a pressão demográfica e

esgotamento da terra geram a fome no campo.196

A semelhança dos argumentos de Barthélemy (1989) e Hurbon (1987) se torna

mais significativa se levarmos que conta que não houve influência direta. O intervalo

entre as publicações é curto, não há citações de um no outro.197

Hurbon, contudo, traz

194

Le vote massif du 29 mars 1987 en faveur de la Constituition est le signe non équivoque du réel

sursaut d‟un peuple qui veut finir avec le despotisme, et, tout compte fait, avec l‟ere esclavagiste comme

telle. ... On y découvre surtout la première tentative de sortir la paysannerie des conditions quase

esclavagistes dans lesquelles la loi elle-même l‟avait enferme. Hurbon 1987:23. Pouco à frente, o autor

afirma que as condições de vida no campo e nos bairros populares da cidade pioraram muito nos últimos

tempos, au point de ne plus permettre des pratiques du marronage par rapport à l‟État. Ao tomar conta

de cada remota localidade rural, Duvalier suprimiu essa opção: Le duvaliérisme emplissant tout l‟espace,

la mer devient le dernier refuge. Pour la première fois en effet, le marronage permanent à l‟interieur du

pays est sommé de cessser (idem: 35).Ou ainda: les masses de paysans parcellaires pauvres et moyens

parvenaient quelque peu à organizer une résistance, au moins passive, sur la base d‟une repli sur elles-

mêmes. Ce repli, inauguré dès les premières années de l‟independance (1804), popularise le modèle du

marronage pratiqué pendant l‟esclavage. Idem: 32. Vale a pena notar que o trecho em questão começava

falando do período duvalierista, pulando na frase seguinte para o período colonial, numa mistura de

temporalidades similar àquela operada por Barthélemy. 195

Une agriculture vivrière a été l‟axe permanent de résistance, non sans difficultés. Il fallait squattériser

des terres dans les régions montagneuses, dans l‟absence totale de moyens d‟irrigation. Idem: 33. 196

On peut dire que la société haïtienne est traversée par deux mouvements économiques dialectiquement

opposés: à la domination capitaliste correspondait la résistance paysanne ou la conservation d‟un mode

de production domestique. Mais les deux mouvements semblent ajourd‟hui le point plus haut de

contradiction. D‟un cotê, la baisse des denrées principales d‟exportation apparaît comme une sanction

dirigée aujourd‟hui contre l‟État haïtien; de l‟autre, la pression démographique sur des parcelles de

terre devenues trop exiguës, mais aussi le maintien du paysan dans des techniques agricoles arriérées et

l‟erosion des terres suscitent famine chronique dans les campagnes. Hurbon 1987:34. 197

Embora Barthélemy cite um trabalho anterior de Hurbon, Culture et dictature en Haïti, de 1979. Mas,

ao contrário dos textos de Hurbon, o livro de Barthélemy não é bem organizado de um ponto de vista

acadêmico. Suas citações são caóticas, livres, por vezes desprovidas de qualquer referência além do nome

Page 124: Construções do fracasso haitiano

112

outros autores para reforçar sua tese, como Serge Larose, George Anglade, Jean Casimir

e Sidney Mintz.

Também no Haiti: State Against Nation de Trouillot a metáfora quilombola é

acionada para comentar a não-produção de gêneros de exportação como um ato de

resistência camponesa contra o Estado e contra a burguesia exportadora das cidades.198

Essa revolta teria como um de seus efeitos a queda geral da produção, sendo, portanto,

um componente importante do colapso econômico do país. Ainda que o campesinato

não seja responsável pelos mecanismos que mandam para fora todo o excedente gerado

pelo seu trabalho, os costumes, as técnicas tradicionais de cultivo, a cultura do campo,

acabariam sendo uma parte essencial do impasse econômico vivido pelo país.199

Do lado político, há uma nota sobre condições socioculturais ou um

“autoritarismo social” que poderia predispor certos povos a aceitar governos

autoritários. Neste sentido, o “povo haitiano” seria só mais um povo do terceiro mundo

acostumado a aceitar que relações de autoridade devem funcionar sem contestação,

crença que se infiltraria e se disseminaria através dos mais variados campos da vida

cotidiana.200

do autor, suas teses mostram uma originalidade errante em meio a uma bricolage de fontes bem diferentes

entre si. Hurbon não parece ter qualquer influência significativa sobre Le pays en dehors. 198

Some analysts point to the peasants‟ increasing lack of interest in the production of those crops as at

least one explanation behind the export figures (Girault… Kermel-Torres, Legibre…). Crushed by taxes

and by oligopolies in the commercialization of export crops, the Haitian peasant was becoming an

economic maroon, avoiding all production that benefited the urban middlemen. … The growth of local

consumption may account for some of the decrease in exports, but equally likely is the peasants‟

voluntary, if not systematic, withdrawal of labor system as a gesture of resistance. Trouillot 1990:212. 199

For better or worse, the size and social resilience of the peasantry are important aspects of the

uniqueness of Haiti as an American nation. While Haitian peasants cannot be blamed for the institutions

that regulate the state or for the transfer of surplus out of the countryside, their inflexible attachment to a

labor process that is unlikely to generate growth or increase productivity is certainly a part of the

Haitian dilemma. Ultimately, there is only one Haitian question: that of the peasantry. Idem: 229. 200

Family relations, the educational system, the etiquette (or the absence of it) of meetings between

people of different social origins, the attitude of Catholic priests (until then, mostly foreign whites), and a

whole series of social codes engendered and constantly reinforced the belief that the only possible

authority must be vertical and uncontested in its sphere of influence. Trouillot 1990:237, nota 8.

Em outra nota (1990:239, n.1) Trouillot traz uma bibliografia que discute the connection between

Duvalierism and Haitian history and social structure. Os livros citados são: L‟économie haïtienne et sa

voie de dévelopment (1967), Radiographie d‟une dictature : Haïti et Duvalier (1973), e Haití : la crisis

interrumpida, 1930-1975 (1979) de Gérard Pierre-Charles, Peasants and Poverty : a study of Haiti (1979)

Page 125: Construções do fracasso haitiano

113

Mas aceitar não é aprovar. Apesar do sucesso que o governo totalitário de

Duvalier teve em se consolidar e se manter no poder, Trouillot diz que, de um ponto de

vista ideológico, sempre houve um silêncio desaprovador das massas. A dissidência

declarada era inviável, mas haveria uma reprovação moral profundamente enraizada na

cultura haitiana contra as práticas do governo. A política era Duvalier – então,

passando ao registro moral, a política como um todo seria condenada como uma

ocupação para a escória. Indivíduos associados ao regime ganhavam poder, mas eram

pessoas vergonhosas frente às pessoas comuns. Apesar de seu trabalho de legitimação

ideológica, François Duvalier nunca teria conseguido convencer completamente a

nação (que, após as voltas conceituais dadas na introdução, acaba sendo basicamente

um sinônimo para o campesinato, o #2 Haiti) – haveria um consenso, baseado no

profundo humanismo da cultura haitiana, de que aquilo tudo estava errado.201

Passamos agora a um contexto mais recente. Em Haiti‟s predatory republic,

Robert Fatton Jr. explica o fracasso do projeto de Jean-Bertrand Aristide porque o então

presidente teria acreditado ingenuamente que o grande apoio popular de que gozava

bastaria para fazer as reformas que julgava necessárias. Com isso, ele teria desprezado

possíveis coalizões com as elites políticas haitianas, em especial ex-duvalieristas. Mas o

e The Haitian economy: man, land and markets (1983) de Mats Lundhal, From Dessalines to Duvalier :

race, color and independence in Haiti (1979) de David Nicholls, Enquête sur le dévelopment (1974) de

Jean-Jacques Honorat e Caribbean Transformations [1974] de Sidney Mintz. Dentre estes, apenas o livro

de Honorat foi publicado no Haiti, e enquanto Jean-Claude Duvalier estava no poder. 201

... the Duvalierist ideological machine also came up against the disapproving silence of the masses.

This silence was not so much political disapproval per se as a moral reprobation deeply rooted in

Haitian culture and triggered by the inhumane demands of the totalitarian state. … It does honor to the

profound humanism of Haitian culture that, despite the new political codes, the nation never gave the

totalitarian state the ethnical legitimacy that François Duvalier expected. Popular “common sense”

solved the moral dilemma created by Duvalierist politics by distinguishing sharply between those

individuals who were willingly involved in politics (and the practices associated with them) and normal

human beings. Even those who admitted that the Duvalierist way was the only way to remain in power

rebutted that very same assertion by shifting to a more moral ground to suggest that politics was “a

business for scum” (in Haitian vye mounn, vagabon). On the one hand, then, the acceptance of the new

political morality opened the way to consent, but on the other the abandonment of the entire political

arena to “scum” who could live out this new morality on a daily basis prevented a consensus. In short,

the totalitarian discourse never broke through the humanitarian principles by which Haitians judge

human behavior. … everyone agreed that what was being done was not “good”. Idem:198.

Page 126: Construções do fracasso haitiano

114

poder das classes subordinadas no Haiti estava longe de ser o bastante, pois as classes

de baixo estavam severamente debilitadas por três fatores: (1) sua luta diária pela

sobrevivência em condições extremas de privação, (2) recursos organizacionais

limitados, e (3) o hábito arraigado da subalternidade “infrapolítica” (Fatton 2002:42).

Caricaturando um pouco o argumento de Fatton, o fato de que o povo haitiano seja

miserável, desorganizado e submisso restringiria seriamente a governança democrática

(que, para ele, é a questão mais importante). Mas não a impossibilita de todo. Ele

prossegue então para mostrar que, apesar de seu alijamento imemorial da política

institucional, na verdade o povo não é submisso. Muito pelo contrário, a revolução de

1804 e a história da marronage, em continuidade direta com práticas contemporâneas,

mostrariam a constante busca do “povo haitiano” por liberdade e solidariedade.202

Assim, Fatton nega que haja alguma norma cultural haitiana capaz de dar conta

da história de governos brutais e autoritários. O que existiria, no lugar, seria uma elite

predatória sempre disposta a usar a violência para manter seus privilégios em meio à

miséria geral, uma guerra contínua de ricos contra pobres. Fatton responsabiliza a elite

haitiana e as potências estrangeiras pela longa sucessão de ditaduras, colocando-se

explicitamente contra explicações culturais que não passariam de racismo e ignorância

202

The 1804 revolution against slavery and the persistent open and “hidden” forms of popular resistance

against the repressive reach of the state indicate clearly that Haitians do not have a particular affinity

for, and attachment to, dictatorial rule. Indeed, the old practice of marronage, of exiting first the spaces

of slavery and then the regimented arena of a predatory state to create communities of freedom and

cooperation, has demonstrated the remarkable capacity of the poor peasant and urban majorities to

revolt against, and withstand, the most severe forms of exploitation and domination. The history of

marronage is the history of the constant quest for liberty and solidarity by the abused Haitian masses. Is

is this tradition, rather than the imaginary democratic propensity of an elusive political center dominated

by privileged classes, that can generate the basis of an accountable system of governance. Fatton

2002:52. A identificação entre a escravidão e a dominação do estado pós-colonial haitiano mais uma vez

gera uma identificação contínua, de longa duração – em Saint-Domingue, no século XIX, no XXI, quem

oferece a resistência popular é sempre a mesma “massa” ou “povo haitiano”. Em uma nota de rodapé,

Fatton traz três obras que discutem a tradição da marronage e seus desenvolvimentos posteriores. Uma

delas, que a julgar pelo título discute problemas bastante contemporâneos (Bootstrap Politics: elections

and Haiti‟s new public officials, de Robert Maguirre), formula bem explicitamente o ponto: a marronage

seria a strategy from the country‟s past and evocative of runaway slaves... This practice would serve them

well, not just during the early days of organization [+/- 1804], but in the future. Using mawonaj, Haiti‟s

evolving grassroot movement survived Duvalier and the rapacious military regimes led by Henri

Namphy, Prosper Avril, and, finally, Raoul Cédras and his cohorts [anos 1990s]. Apud Fatton 2002:71.

Page 127: Construções do fracasso haitiano

115

mal disfarçados em linguagem acadêmica.203

Neste ponto ele se alinha com Michel-

Rolph Trouillot, invocando State against nation contra autores como Lawrence

Harrison, que Fatton considera como um exemplo extremo dessa vertente. Citamos na

íntegra o trecho de Harrison ao qual Fatton responde:

Eu acredito que cultura é a única explicação possível para a tragédia

ininterrupta do Haiti: os valores e atitudes do haitiano médio são profundamente

influenciadas pela cultura africana tradicional, particularmente pela religião vodu

e pela escravidão sob os franceses. ... As pessoas no Haiti vêem a si mesmas, seus

vizinhos, seu país e o mundo de formas que favorecem políticas autocráticas e

corruptas, extrema injustiça social e estagnação econômica. ... [A sociedade

haitiana] é caracterizada por um raio limitado de confiança e identificação,

geralmente limitado à família.... As marcas deixadas pela cultura africana,

particularmente o vodu, e a escravidão no Haiti, mantidas por longos anos de

isolamento de idéias progressistas, sistema políticos abertos, e dinamismo

econômico, são, eu creio, a única explicação possível para a incessante tragédia

haitiana. Lawrence Harrison apud Fatton 2002:71.

[I believe that culture is the only possible explanation for Haiti‟s unending

tragedy: the values and attitudes of the average Haitian are profoundly influenced by

tradicional African culture, particularly the voodoo religion, and by slavery under

the French. … The Haitian people see themselves, their neighbors, their country, and

the world in ways that foster autocratic and corrupt politics, extreme social injustice

and economic stagnation. … [Haitian society] is characterized by a limited raid of

trust and identification, usually confined to the family… The imprint of African

culture, particularly Vodun, and slavery in Haiti, sustained by long years of isolation

from progressive ideas, open political systems, and economic dynamism, is, I

believe, the only possible explanation for the continuing Haitian tragedy.]

Para Harrison, não só o vodu, mas também a escravidão sob os franceses seria

parte da cultura tradicional africana (!). Mas, Fatton nos conta, isso não é tudo. O

raciocínio de Harrison prossegue para mostrar que, como o povo haitiano não faz parte

da tradição judaico-cristã, as pessoas externalizam ao invés internalizar sua culpa, e não

se sentem responsáveis pelo próprio destino, podendo até roubar sem experimentar

qualquer vergonha. Ao contrário dos indivíduos racionais e modernos, os haitianos

possuiriam valores anti-progresso. A própria forma como cuidam de suas crianças

geram indivíduos irresponsáveis, imorais e desamparados, que viverão uma cultura

203

It is naked class struggle that has little to do with a special Haitian attraction to brutality or

despotism. While it is true that the authoritarian tradition has collored Haitian history, its rise and

persistence can hardly be attributed to some indigenous cultural trait. Cultural explanations of Haiti‟s

dictatorial heritage verge on racism and ignore completely the simple reality that this heritage is rooted

in the predatory interests of the dominant class. Fatton 2002:51.

Podemos, contudo, nos questionarmos se, no argumento de Fatton, também não há um argumento

culturalista de fundo, embora aplicado exclusivamente à elite haitiana. Não seria o suposto cárater

predatório da “elite haitiana” um outro jeito de dizer sua cultura?

Page 128: Construções do fracasso haitiano

116

incivil. Este texto, intitulado Voodoo Politics, foi publicado no jornal estadunidense

Atlantic Montly, em junho de 1993.204

Sua relevância não se dá apenas por expor de

forma crua um racismo de fundo que mentes mais competentes conseguem mascarar

melhor, mas também por quem é seu autor. Não estamos tratando aqui de idéias

inócuas, muito pelo contrário: Lawrence Harrison foi o diretor geral da principal

agência de cooperação internacional agindo no país, a USAID Haiti, de 1991 a 1993.

Há toda uma literatura sobre o peso do fator cultural na tragédia haitiana.

Étienne nos fornece um sumário muito sintético da discussão, concluindo que embora

este fator tenha relativa importância, só possui valor explicativo se visto em conjunto

com uma série de outros fatores.205

Como os níveis nos quais ele opera são outros

(micro: elites políticas, meso: Estado, macro: relações internacionais), o povo (ou a

soma das pessoas que não fazem parte de nenhuma elite) aparece como pano de fundo,

massa de manobra amorfa e sem agência, o que parece coerente com seu marco teórico,

a teoria das elites.206

Mas tal fundo não é neutro, ele faz parte do drama haitiano.

Assim, para avaliar quão difícil era a tarefa de implantar e adaptar o modelo de

Estado europeu , precisamos pensar no contexto da sociedade de analfabetos de 1804,

dominada pela persistência de laços tribais de origem africana (2007:127). Para ser

204

Infelizmente não conseguimos localizar o texto original. Este trecho está inteiramente apoiado na

descrição de Fatton 2002:71. 205

Le facteur culturel n‟a pas été non plus négligé par les analystes. Pour faire ressortir les causes

internes ayant véhicule au cours des siècles un imaginaire difficile à transformer, certains se sont referé

à la matrice africaine [Luc-Joseph Pierre], à la matrice coloniale [Laënnec Hurbon], à l‟oppression

culturelle [Jean Casimir], comme facteurs explicatifs du drame haïtienne. Pour d‟autres c‟ést toute le

histoire économique et politique du pays qui est déterminée par les conditions de développement de la vie

rurale [Rémy Bastien] et le dualisme ville-campagne [Gérard Barthélemy]. Il s‟agit là de perspectives

monocausales, réducionnistes, qui, en plus du déterminisme socioculturel dont elles sont imprégnées,

n‟offrent que peu de valeur explicative. Étienne, 2007:23. 206

Sobre a teoria das elites, ver Étienne 2007:34-37. Mobilizar ou não mobilizar escravos negros teria

sido uma questão decidida entre líderes mulatos como Vicent Ogé e seu amigo Chavennes, assim como

foi uma questão para Sonthonax. Quando os levantes escravos se espalham, isso só pode ser atribuído a

uma outra elite; Ce climat d‟agitation permanente, de chaos, d‟anarchie et de guerre civile ne devait pas

laisser insensible la masse des esclaves noirs. L’élite de la classe des esclaves, c‟est-à-dire la minorité

constituée essentielment d‟esclaves domestiques et d‟esclaves à talent, en contact direct avec leurs

supérieures de la colonie, devait suivre leur example et accorder à la violence et à la guerre tout

importance qu‟elles meritaient. Le travail de conscientisation et de conditionnement psychologie étant

réalisé, la fureur des esclaves se déchaîna sur “la partie du Nord, première productrice de sucre blanc et

de café de Saint-Domingue.” Étienne 2007:81. Meus grifos.

Page 129: Construções do fracasso haitiano

117

ocidental, moderno, ou ainda europeu (em L‟énigme haïtienne os três termos

geralmente são intercambiáveis), o Estado necessitaria integrar toda a sua população em

uma burocracia racional. Não seria nada fácil fazer isso com a massa africana que

povoava o país na virada do século XVIII para o XIX.207

Décadas mais tarde, apesar da

tentativa de institucionalizar partidos, as posições políticas ainda se davam por outros

critérios não-modernos, como inimizades ou lealdades pessoais, entre famílias, por

região ou cor.208

Hoje em dia, as cargas socioculturais continuariam entre os motivos

para o fracasso da modernização e da democracia.209

Além de possuir pouca ou nenhuma educação formal e qualificação profissional,

o povo seria uma massa sempre inquieta frente à qual os atores no palco precisariam se

posicionar. Ainda que o conteúdo das reivindicações específicas raramente seja

mencionado, o receio das elites e a necessidade de conter as massas aparecem com

frequência. Há inúmeras menções a insurreições, levantes camponeses, revoltas

populares, piquets,210

cacos,211

guerra civil, aventuras militares, cólera das massas,

207

L‟aspect culturel constituait aussi um hadicap majeur à l‟implantation du modèle d‟État européen, en

ce sans que les liens tribaux d‟origine africaine ne favorisaient pas l‟intégration des masses noires dans

un État national. Au moment de l‟independance d‟Haïti, les Noirs représentaient la plus grande partie de

la population, étaient, on l‟a vu, divisés em “Bossales” et “Créoles”. Dans les deux cas, ils cherchaient à

reconstituer leurs groupes primaires en s‟associant aux personnes ayant des antécédents linguistiques ou

tribaux similaires. Donc, il était très difficile pour une société anti-esclavagiste, antiraciste et

antiplantationnaire, chapeautée d‟un État anticolonial, d‟être de coupe occidentale. ... L‟implantation et

l‟adaptation du modèle d‟État occidental dans une société d‟analphabètes se révélèrent impossibles.

Étienne 2007:112. 208

Malgré un certain effort de normalisation et d‟institutionnalisation de la vie politique, dans le cadre

d‟un bipartisme classique (Parti libéral et Parti national) [aqui o autor refere-se ao período entre 1870 e

1879] les positionnements politiques étaient conditionnés par des facteurs liés à la couleur, la région et

les loyautés et antipathies personnelles et familiales. Étienne, 2007:134. 209

Mais l‟effondrement de l‟État haïtien, les pesanteurs socioculturelles et l‟impossibilité pour la

communauté internationale d‟imposer la démocratie aux Haïtiens devaient rapidement conduire à la

désillusion, au désenchantment [pós-volta de Aristide, em 1994]. Étienne, 2007:286. 210

Nome dado a um conjunto específico de revoltas camponesas no sul do país, descrito assim por

Étienne (2007:126-7): Ces mesures répressives [a aplicação do Code Rural promulgado por Boyer em

1826] approfondirent le fossé entre l‟État et la société, et provoquèrent la colère des paysans. En quatre

occasions, soit 1843, 1844, 1846 et 1848, les cultivateurs du Sud, appelés « Piquets » à cause des piques

en bois dont ils étaient armés, se soulevèrent et s‟opposèrent farouchement aux troupes

gouvernamentales mobilisées pour les combattre. Poucas páginas à frente (2007 :134), Étienne se refere a

algumas ameaças extremas enfrentadas pelas elites políticas, entre elas a subversão camponesa de 1844. 211

Sa fin [o autor se refere ao suposto fim da soberania interna e externa do Estado haitiano]

tumultueuse ouvrit la voie à la profonde crise de 1867-69 où la lutte pour le pouvoir, sur fond de

régionalisme exacerbé, de conflit de classes et d‟émeutes populaires, se manifesta à travers une violente

Page 130: Construções do fracasso haitiano

118

ingovernabilidade, anarquia, caos, jacqueries,212

food riots, guerra civil. Em meio a

tanta insubordinação, Étienne critica a incapacidade dos governos haitianos de conter –

ainda que autoritariamente – a agitação social e a instabilidade política, o que teria

feito com que os Marines fossem vistos como heróis por parte da elite haitiana quando

vieram ocupar o país em 1915, esmagando um amplo movimento de revoltas

camponesas.213

Étienne não se apóia na tese da contínua guerra de classes entre os dois Haitis

(embora algumas de suas referências o façam, o que por vezes respinga em seu texto,

como no uso da expressão colonialismo interno para a relação entre as elites e os

cidadãos – 2007:136). Ao invés, o autor discorre sobre os usos da violência no Haiti em

et dévastatrice guerre civile. Nesse contexto, teria havido une êxtreme polarisation des forces politiques

aboutissant à une véritable « guerre de situations sociales » ; la résurgence du mouvement paysan du

Sud, avec les Piquets ; et l‟entrée en scène des paysans du Nord : les « Cacos ». Étienne 2007 :143. É

interessante que embora a situação seja sempre descrita como um confronto de classe, as chamadas

revoltas camponesas (tanto os Piquets do sul quanto os Cacos do norte), pelo menos tais como descritas

por Étienne, não possuem nenhum conteúdo, nenhuma reivindicação articulada, apenas um monte de

camponeses armados criando a anarquia de 1915, perturbando um exército desorganizado e

descentralizado, cuja incapacidade de conter as revoltas é lamentada: L‟état de délabrement d‟un pays

ravagé par des guerres civiles interminables et l‟incapacité des élites politiques haïtiennes à imposer

même une solution autoritaire aux problèmes d‟agitation sociale et d‟instabilité politique qui secouaient

Haïti créaient une situation de désarroi favorable à l‟intervention étrangère. L‟impossibilité pour les

détenteurs du pouvoir étatique de contrôler les mouvements populaires urbains et les soulèvements

paysans avaient porté les couches aisées à acueillir les marines en libérateurs. Étienne 2008 :163. A

Ocupação Norte-Americana teria tomado para si a tarefa da pacificação, ou que significava desarmar a

população rural. Assim, para o autor, os Cacos mataram o antigo Estado haitiano (idem:181) – com a

Ocupação, nasceria um novo Estado, mais moderno, pelo menos do ponto de vista militar.

Sobre os mesmos eventos, Barthélemy (1989:146) comenta: Peut-on encore parler d‟un véritable

système hiérarchique militaire en cette fun du XIXe siècle ? Certes, par le moyen notamment du chef de

section, le contrôle sur le paysan est effectif et lourd, mais les explosions des révoltes cacos mostrent bien

aussi quelle sont les limites. E também Cristophe Wargny (2008 :62) Prenant prétexte de l‟anarchie

intérieure – les révoltes paysannes font trembler Port-au-Prince – et soucieux de protéger d‟eventuels

investissements, les États-Unis débarquent. Ils resteront vingt ans (1915-34) pour « moderniser » le

pays... La reálité de la « modernité » frappe de plein fouet les exclus de toujours : la paysannerie, les

« en dehors ». ... [Após expropriações massivas de terras, que supostamente teriam sido promovidas pela

Ocupação, as armas teriam se tornado mais uma entre as soluções traumatizantes] La nouvelle

gendarmerie haïtienne, encadré par l‟oncle Sam, affronte maquis et embuscades des Cacos: des milliers

de victimes et une insécurité difficile à maîtriser... 212

Definição do Dicionário Bertrand (1989): Jacquerie, s. f. inssureição de camponeses contra a nobreza

(em França), em 1358. Por extensão levantamento m. das classes pobres contra os ricos. 213

Dans les trois premiers mois de l‟occupation, on enregistra 200 morts dans les rangs des Cacos. De

1916 à 1918, 250 autres furent victimes des balles américaines. En 1919, à l‟apogée de l‟épopée de

Charlemagne Péralte [líder Caco], 1 181 guérilleros furent massacrés par la gendarmerie appuyée par

les marines. Les succès de celle-ci furent rendus possibles grâce aux renforts dépêchés par la puissance

occupante. L‟assassinat de Péralte le 1er

novembre 1919 et celui de Benoît Batraville, son successeur, le

19 mai 1920, mirent fin à la résistance armée. La pacification du pays devint une réalité. Étienne

2007 :165.

Page 131: Construções do fracasso haitiano

119

termos de uma conjuntura de crises, criadora de uma instabilidade permanente (por

exemplo, 2007:285). Em Étienne, e não só para ele, tudo se passa como se as

incontáveis crises fossem manifestações do mesmo – é como se, em algum sentido,

todas as revoltas reeditassem o conflito original, sempre latente, nunca resolvido.

Na maior parte do livro, o que aparece é pura negatividade, violência como mera

ausência de diálogo ou “reconhecimento do outro”. Mas, ainda que contra as intenções

do autor, sua versão da história nacional rica em casos e anedotas traz elementos para

pensar positivamente como funcionaram e como funcionam as estruturas de poder no

Haiti.214

Nesse caso, as inúmeras crises, tumultos, revoltas etc. deixam de ser meros

fracassos da ordem, do Estado, da legitimidade ou de qualquer outro dever-ser não

realizado. Ao contrário, elas evidenciam mecanismos de tomada e/ou manutenção do

poder, assim como de sua refutação e resistência.215

Por exemplo, a idéia de que o Haiti

não é um ambiente seguro para fazer negócios permitiria a comerciantes estrangeiros,

com o apoio (militar, se necessário) de suas respectivas embaixadas, exigir garantias do

Estado haitiano contra saques, atentados, pilhagens. Ao invés de “ausência de

segurança”, o que aparece são tratados comerciais com cláusulas das quais as partes

sabem que podem tirar vantagens. Daí a confissão de um comerciante blan anônimo de

que o incêndio seria o método ideal para liquidar os próprios estoques, garantindo 400%

de lucro (idem:142).

214

Deixamos claro que, ao falar em descrições positivas e negativas, não nos referimos ao valor moral

que os autores atribuem aos fenômenos que pretendem explicar, mas sim de descrições (positivas) de

como as coisas acontecem ou descrições (negativas) de como certas coisas falham em acontecer. 215

Ainda que, no fim, fique a impressão de um esquema a priori que engloba indiferenciadamente várias

situações, o próprio Étienne (2007:136 – ver citação na nota 68) traz indicações de como pensar

positivamente “as crises” que de tempos em tempos convulsionavam a política nacional haitiana.

Também encontramos interpretações bastante positivas para esse tipo de fenômeno em Trouillot, por

exemplo (1990:72): Merchants fed on political, financial, and military instability of the state, and had an

objective interest in the rate of political succession, since every regime offered them a new and greedier

clique of customs. Keenly aware of the profits to be made from political turnover, the Germans, for

instance, became experts at financing “revolutions”.

Page 132: Construções do fracasso haitiano

120

Numa linha semelhante à de Étienne, Hérard Jadotte (2005:222) lamenta a falta

de modernidade da política haitiana, a inexistência de um mercado político livre,

fundado sobre uma lógica concorrencial. Haveria motivos institucionais para tanto, mas

“o povo” sem dúvida seria parte do problema. Sua maior preocupação é com a confusão

entre política e religião (e/ou magia).

Magia e política, mistura anti-moderna.

Contra Aristide e o Lavalas, que ainda estavam no poder quando o texto foi

escrito, Jadotte vê o #2 Haiti ser tomado por tendências a-modernizadoras.216

Sobrevivendo em condições miseráveis, o povo seria tomado por esperanças

messiânicas, preferindo deixar-se contagiar por um “lirismo revolucionário” e

populista do que escolher entre candidatos, agendas, propagandas, campanhas, partidos

políticos estruturados, sob regras eleitorais bem definidas.

A dominação carismática, baseada na aura do chefe (Aristide), sabotaria todo o

jogo democrático. Mesmo que fosse escolhido pelo voto popular, o que pelo menos no

segundo mandato é bastante contestado, a validade do processo continuaria em questão,

uma vez que o povo escolheria segundos critérios inadequados, não-modernos. Fora os

supostos hábitos perversos e oportunistas de grande parte da classe política haitiana, o

abismo entre as classes desfavorecidas e a política institucional tornaria muito difícil ao

povo comportar-se como deveria, isto é, como um eleitorado moderno.

Como já sabemos, segundo a literatura este abismo é antigo e só pode ser

compreendido em perspectiva história. Para tanto, em complemento às idéias de Leslie

216

Ensuite, l‟approche populiste, messianique et démocratico-révolutionnaire, autant dire « religieuse »,

monopolise d‟emblée et par défaut, une proportion importante du vaste espace a-modernisateur restant,

c‟ést-a-dire les espaces ruraux et principalement suburbains. Compte tenu du poids quantitatif de ces

secteurs dans l‟Haïti pauvre et sous-développée d‟aujourd‟hui et de demain, je m‟autorise à avancer que

le populisme a un avenir radieux devant lui. Jadotte, 2005:222. A metáfora do Messias é aplicada com

frequência a Aristide. Cristophe Wargny o chama diversas vezes de profeta sem projeto.

Page 133: Construções do fracasso haitiano

121

Manigat, Jadotte recupera duas obras curtas e originais, que passaram completamente

desapercebidas, do sociólogo Luc-Joseph Pierre, responsáveis por avanços

significativos na explicação dos males do Haiti (2005:206). Mesmo sem ter tido acesso

direto aos livros em questão (Éduquer contre le barbarie, de 1996, e Haiti: les origines

do chaos, de 1997, ambos publicados em Porto Príncipe), vemos aí como os argumentos

se estruturaram em torno dos mesmos temas clássicos da narrativa sobre o Haiti e seus

males. Segundo Jadotte, Luc-Joseph Pierre parte de uma releitura das duas últimas

décadas de Saint-Domingue para demonstrar o peso da creolização e da não-

creolização dos escravos no modo de construção da sociedade haitiana. A abolição do

processo de integração ao sistema de trabalho da sociedade colonial teria deixado boa

parte da população desintegrada, operando ainda numa lógica africana, altamente

prejudicial ao desenvolvimento do país.

Para Luc-Joseph Pierre, a creolização... correspondia a uma verdadeira saída

do estado de natureza, à emergência de valores essenciais. Mas ao invés da creolização

e de sua integração, o novo campesinato haitiano vai se “re-primitivizar”, ou seja, se

fechar no arcaísmo tecnológico e nas identidades primárias de clã, de “raça” e de

vizinhança.217

217

Dadas as ressonâncias com discussões anteriores e a crueza com a qual o argumento é apresentado,

acreditamos que o caso merece uma citação mais longa, na íntegra;

A partir de une relecture des deux dernières décennies de la colonie de St-Domingue, Luc-Joseph

Pierre entreprend de montrer le poids de la créolisation et de la non-créolisation des esclaves dans le

mode de construction de la nouvelle société haïtienne. Pour lui, « (...) la créolisation n‟équivalait pas su

simple fait d‟être né sur place, amis correspondait à une véritable sortie de l’état de nature, à

l’emergence des valeurs essentielles ; Liberté, Droits et Devoirs, Savoirs, Rassemblement et

Organisation, etc., que affranchis mulâtres et nègres-à-talent avaient déjà fait leurs et auxquelles il

fallait accéder les Bossales au moyen de ce qui pourrait être une politique d‟intégration de toutes les

bandes présentes sur le sol de Saint-Domingue/Haïti » (Pierre, 1996).

L‟appropriation de ces nouvelles valeurs par les affranchis noirs et mulâtres et les « nègres-à-talent »

a été rendu possible, dans de le courant du 18ème

siècle, par le mouvement même de diversification de

l‟infrastructure économique et sociale de la colonie. Tous ces facteurs vont induire « un processus

interne d‟ouverture, de création de capacités nouvelles qui vont de la simple acquisition de moyens

techniques à l‟apparition d‟aspirations et besoins nouveaux ».

Il en résulta également, durant la même période, une demande croissante de main-d‟oeuvre servile. A

un point tel qu‟au debut de la période révolutionnaire, ces nouveaux arrivés (les bossales) représentaient

aux environs de 50% du total des esclaves. En regard de l‟independance à venir, il s‟agissait là d‟un

Page 134: Construções do fracasso haitiano

122

Assim, ao invés de operar na escala correta, o Estado nacional, o Haiti como um

todo, espaço da constituição, da cidadania, dos direitos – o #2 Haiti (ou, nos termos de

Jadotte, o Haiti pobre e subdesenvolvido) operaria na escala errada, não-moderna –

famílias, vizinhanças etc. Este povo de raízes africanas, re-primitivizado e desprovido

dos valores essenciais seria um sério obstáculo à construção da democracia. Por fim,

ecoando as análises de Leslie Manigat e do diagnóstico-catástrofe escrito pelo

secretário geral da ONU em 1991, descobrimos com Jadotte que o Haiti se encontra em

tal estado de decadência ecológica, econômica e humana que se encaminha para a

desintegração estatal, quiçá regredindo às hordas como modo de organização política.218

Ainda que nenhum dos autores em questão jogue integralmente sobre o #2 Haiti

o peso da tragédia vivida pelo país, todos parecem montar um quadro no qual a cultura

popular de alguma forma se encaixa nas estruturas criadas pelo Estado predatório –

uma cumplicidade não planejada entre valores, hábitos e instituições formaria um

sistema, onde cada parte reforça mutuamente as outras, tornando mais difícil uma saída.

O argumenta de Fatton passa pela questão da classe. Para ele, a pobreza traz a

imprevisibilidade, e o lumpen-proletariado seria uma base escorregadia e pouco

confiável para construir a democracia. As pessoas vivendo na miséria seriam facilmente

compráveis para os mais variados fins. Além da miséria, haveria outro fator minando a

problème exceptionnel et particulier à Haïti, c‟est-à-dire d‟une créolisation commencé au sein même de

la société coloniale et qui se trouve bloquée par le type même de contrat social adopté par la nouvelle

société indépendante.

En lieu et place de sa créolisation et de son intégration, la nouvelle paysannerie haïtienne va se « re-

primitiviser », c‟est-à-dire s‟enfermer dans l‟archaïsme technologique et les seules identités primaires de

clan, de « race » et de voisinage. Par ainsi, l‟élitisme comme projet collectif national pouvait s‟épanouir

d‟autant ! Jadotte, 2005:206-7. O grifo é meu. 218

Le diagnostic-catastrophe de l‟Organisation des Nations-Unies vient, comme à point nommé, se

fondre dans ce paysage lunaire. « Même si Haïti, écrit en avril 1991 le Secrétaire Général Boutros-Ghali,

n‟a pas connu de guerre et n‟a pas été dévasté par un cyclone, le pays connaît le même type de désastre

et doit faire face à la reconstruction de la société tout entière. Haïti n‟est pas en mesure de maîtriser et

encore moins de conjurer par ses propres moyens ces dégradations économiques et sociales.[...] »

[...] Nous en sommes maintenant à identifier non des problèmes mais des déchéances. Pour Manigat,

elles sont triples et constituent les symptômes de la présente crise existencielle haïtienne. Il s‟avere inutile

d‟argumenter. Il suffit de nommer. D‟abord, la déchéance physique et écologique. Ensuite, la déchéance

économique. Enfin, la déchéance humaine. On se dirige tout droit vers uns « désintegration étatique, vers

la résurgence des hordes ou même de la horde comme mode d‟organisation socio-politique... » Idem:159.

Page 135: Construções do fracasso haitiano

123

construção das instituições que o Haiti supostamente deveria ter: o habitus político

subalterno que levaria as massas a jogar todas as suas esperanças em um líder salvador

messiânico ao invés de construir formas coletivas de tomada de decisão. O carisma

individual obliteraria as estruturas institucionais.219

Jean-Bertrand Aristide se encaixaria perfeitamente no padrão. Poderes místicos

lhe teriam sido atribuídos pelo povo, especialmente depois que vários atentados contra

sua vida fracassaram.220

O movimento Lavalas teria se identificado tão fortemente ao

líder que teria perdido sua autonomia. Para Fatton, a relação religiosa com o líder exige

confiança plena e ausência de crítica, criando um personalismo com tendência a

transformar-se numa nova deriva totalitária.221

Nesse contexto as eleições teriam se

desviado do idioma político institucional moderno para um idioma cristão,

transformado-se numa luta entre Deus e o diabo.222

Uma vez vencedor nas urnas, o

219

It is also true that their poverty invites unpredictability; the highest bidder can buy them for noble as

well as despicable acts. […] Moreover, subordinate classes carry the burden of their political habitus:

they believe in the emancipatory powers of a providential, messianic leader. It is a belief that has

undermined political organizations and parties. It facilitates the rise of “patrons” and demagogues and

obliterates the need for institutional structures of governability. Fatton 2002:32-3. 220

O próprio Aristide teria comentado o tema, em uma entrevista a Amy Wilentz: One good thing about

all assassinations attempts is that I surviveded them. I know it sounds silly, or obvious, but think about it

this way: Here you have a man, everyone is against him, the Macoutes, the hierarchy of the Church, the

government, the Army. They go after him, with guns, machettes, stones. What happens? He survives. How

do you think the people feel? I‟ll tell you. They feel protected. That I can‟t be hurt. That Jesus or the

spirits are protecting me. That I am indestructible. This is a great protection for me, because it makes a

hired killer a little reluctant to take on me. Who wants to have on his hands the blood of someone the

spirits protect? Worse, if he comes to kill me, the odds are, he thinks, that I will survive, and he will be

punished. He thinks a powerful force is keeping me safe. Aristide apud Fatton, 2002:46, nota 27. 221

It is not surprising that given his humble roots, fiery homilies against Duvalierism, and brave struggle

against injustice, Jean-Bertrand came to symbolise the prophet whom God entrusted with leading his

people to rise against their oppressors. Bypassing forms of collective accountability and decisionmaking,

Aristide condensed unto himself whatever transformative project Lavalasian bloc may have had. […] By

idealizing him as the savior, the movement [Lavalas] nurtured unintentionally the cult of his personality

and ultimately imparted to him supernatural powers. Aristide‟s courageous struggle against Duvalierism

and his ability to survive numerous attempts on his life gave him an aura of mystical invincibility and a

unique popular legitimacy. Fatton 2002:35. 222

In fact, the elections, as Claude Moïse and Émile Ollivier explained, became a confrontation between

the “forces of evil” and the “forces of God”. In this confrontation, Aristide was the ideal candidate, he

was the messiah who could overcome all obstacles and triumph over the satanic forces of Duvalierism,

privilege, and corruption. The vast majority of the Haitians shared Ti Légliz‟s vision of him as the

symbolic figure of the prophet who, inspired by God, would establish justice on earth and save the poor

from the predations of the well-off. Fatton 2002:78.

Para Fatton a derrubada de Jean-Claude Duvalier foi movida pela acusação de um pecado satânico (The

population challenged the legitimacy of the president-for-life, linking it to a satanic sin because “only

Page 136: Construções do fracasso haitiano

124

pouco institucionalizado regime de Aristide teria sido intoxicado pelo seu manifesto

voluntarismo e desdém pela ação programática. Ele governava através de encantações

teológicas radicais (Fatton 2002:85).

Cristophe Wargny compara a má fé da elite moralmente repugnante à má fama

do povo, para lançar em tom provocativo a idéia de que o povo tem o governo que

merece.223

A longa história de governos autoritários, culminando nos Duvalier, teria

saturado a sociedade a ponto de conquistar as mentes, gerando uma mentalidade

submissa, contaminando o porvir democrático.224

Wargny argumenta que a suposta ausência de movimentos políticos genuínos,

capazes de desafiar os males atemporais que assolam o país,225

seria preenchida pela

única esperança que restaria a esse povo mendigo,226

analfabeto e psicologicamente

Jesus Christ deserved the title of chief for life”. Idem:61-2), artifício também usado por Aristide, segundo

Étienne, para identificar George Bush a Lúcifer (Les hostilités entre les États-Unis et Aristide existaient

de manière plus latente depuis que le prête, dans ses discours explosifs sur l‟autel de l‟église de Saint-

Jean Bosco, avait ajouté le capitalisme sur la liste des péchés mortels et diabolisé George Bush qu‟il

décrivait comme l‟équivalent de Lucifer. Étienne 2008 :308). 223

Haïti... gouvernée de surcroît par des satrapes cyniques et vénaux, livrée à leurs sicaires, violà pour le

complément d‟image. Quant aux oligarques et aux plutocrates locaux, les Américains les ont même

baptisés d‟initiales qui leur sont restées : « MRE » pour morally repugnant elite. Gangsters ayant

châteaux sur parc. Capables de tout acheter. Assurés qu‟ils sont que tout pouvoir qui veut durer finira

par les servir ou les rejoindre.

Mais on a, dit-on, le régime qu‟on mérite. Et le peuple d‟en bas a lui-même bien mauvais réputation :

analphabète, revanchard, immature, mal portant, brutal, incendiaire, maléfique. Corrompu lui aussi.

Wargny 2008:17-8. 224

Ces comportements, conformes à l’histoire d’Haïti, se heurtaient à la faiblesse du pouvoir central et à

la résistance passive des prolétaires ruraux... Duvalier prouve que le chef peut tout. Une croyance qui

n‟est pas près de sortir les têtes, et qui altérera ultérieurement tout avancée démocratique. Idem :68, meu

grifo. 225

Para Wargny, há no Haiti um mouvement social dramatiquement désarmé. Isso porque la contestation

n‟a guère de sens si elle ne prend pas appui sur une organisation puissante. D‟autant plus structuré que

l‟environnement est hostile. D‟autant plus democratique que les habitudes locales sont brutales et

autoritaries. Wargny cita Piérre Mouterde para mostrar que se trata de um povo manipulado, que não

sabe o que faz : le populisme manipule les couches populaires de manière à leur faire servir les appétits

de pouvoir de quelque caudillo de passage... oubliant qui c‟est à travers des rapports non verticaux et

non clientélistes, mais politiques et organisés horizontalment avec ses leaders que le peuple peut prende

force, s‟affirmer puis s‟émanciper. Idem:10. Meu grifo. 226

Pis : à quelques exceptions près, il n‟y a dans ce pays que des pauvres. Et parmi les pauvres, surtout

les misérables, des gagne-petit, des sans-terre, des sans-abri, des crève-la-faim, des clouchards et des

vagabonds. Une écrasante majorité de gens à la marge ! Majoritaires, est-ce suffisant pour qu‟ils

consituent une société ? Ou pour qu‟ils se placent délibérément hors de la société ? Hors la loi,

finalement. Nation sans loi ? Sans existence ? Idem :18.

Page 137: Construções do fracasso haitiano

125

ressentido: 227

Deus.228

Wargny retoma a acusação de que religião e política se

confundem perigosamente no Haiti.229

Assim, ele contextualiza a figura de Aristide

como catalisador de esperanças imaginárias, irreais. A amálgama religioso-política viria

dos tempos da revolução (como mostraria o suposto papel do Vodu e da famosa

cerimônia de Bois-Caïman na eclosão das rebeliões de 1791 – idem:38), persistindo

sempre neste país profundamente religioso (idem:66), onde o ditado diz que Apre

Bondye, se letá (abaixo de Deus, o Estado – idem:67, 178). Todos os conflitos políticos

seriam traduzidos em uma linguagem religiosa. Enquanto os hougans, os padres vodus,

pactuam frequentemente com o duvalierismo, as ti-legliz,os pequenos da Igreja,

anunciam um Evangelho libertador (idem:70). Essas ti legliz funcionariam como ponto

de partida de uma multidão de organizações populares, de onde viriam jovens

dirigentes animados por uma mística de justiça, encorajados por padres que são

militantes e profetas (idem:71).230

Em meio a tais clamores de uma justiça mítica e profética teria surgido um

homem para exorcizar os demônios que assombram o país há duzentos anos. Ele

manteria uma relação não apenas paternalista, mas também mágica com seu eleitorado.

Assim, velhas acusações quanto à ineficiência política da América Latina (paternalismo,

227

Jamais l‟état ecónomique, social ou culturel de l‟île, jamais le ressenti psychologique de ces

habitants, pris collectivement, n‟autant ressemblé à un ressentiment définitif qui tourné au sauve-qui-peut

général. Un état permanent de catastrophe. Une inexorable descente aux enfers, pour rester dans

l‟omniprésent registre religieux haïtien. Idem :19-20. Haïti a connu bien des dictatures. Celle-là

[Duvalier], méticuleuse et organisée, se fait tour idéologique et apprenti sorcier. S‟appuyant sur le

ressentiment populaire, la terreur et l‟obscurantisme deviennent systèmes. Idem :68. 228

La misère encourage les Églises et les sectes protestantes à évangéliser une terre promeutteuse.[...]

L‟irrationnel imbibe, de tout éternité, la vie quotidienne. Le naufrage incite la victime à s‟agripper à la

première perche. Le macoutisme ou ses variantes, qui perdurent, l‟état de misère absolue, qui englobe

autant sensation de faim que le sentiment d‟impasse, engendrent un comportement suicidaire. Mais on ne

se suicide pas, en Haïti. On cherche refuge dans le compartiment qu‟on connaît bien : le religieux. Et le

religieux occupe tout la sphère mentale. Induit toutes les démarches politiques ou sociales. Idem :176,

meu grifo. 229

La sphère politique, en Haïti, ne se sépare jamais de la religieuse. La seconde englobe la première.

Elle est omniprésente, voire omnisciente. Elle n‟est pas vecteur de citoyennéte, mais d‟obscurantisme.

Idem :177. 230

A responsabilização pelos males dessa associação entre política e vodu está amplamente estendida.

Hoffman (1990:99-197) traz um rico material sobre o tema. Há muito o que pensar sobre esse ponto a

partir do material de campo, em parte já explorado por Flávia Dalmaso (2008). Cf. também a discussão da

autora sobre a relação metonímica estabelecida entre o Vodu e o Haiti.

Page 138: Construções do fracasso haitiano

126

clientelismo etc.) se somariam à inconveniência supostamente africana de misturar

magia e política.231

Essa configuração poderia talvez combater as estruturas simbólicas

da dominação, romper com o passado, com o estado encantatório no qual viveria o

povo haitiano.232

Parecia possível, finalmente, promover um pacto social para tornar o

país moderno e tirá-lo das estruturas e mentalidades arcaicas.233

Parecia – mas, para

além do verbo, da encantação ou da improvisação, era preciso governar (idem:91).

O resultado, para Wargny, é decepcionante.234

Após um exílio do qual teria

voltado totalmente mudado, Aristide e os sonhos que ele alimentava teriam sido

destruídos. O autor lamenta que a ruptura com o Haiti mental não tenha se concretizado.

A possibilidade de romper com a marronage, à qual a nação estaria condenada, passou

em vão. A pesada verticalidade da sociedade haitiana, seus defeitos culturais (males

endêmicos como o autoritarismo, o makoutismo e o analfabetismo) prenderiam o país

numa continuidade que reproduziria um comportamento conformista e vassalo, cheio de

arcaísmos. Assim, o passado retorna para tomar conta do presente, velhos hábitos

sabotando mudanças, incessante retorno do Haiti eterno.235

Para Wargny, a

231

Un homme plus qu‟un homme, dans la catholique Haïti : un prête ... que les électeurs, souvent

néophytes, considèrent comme un prophète. « Nous avons gagné. [...] :l‟élection triomphale du prête est

avant tout un acte d‟exorcisme par les Haïtiens de leurs propre démons ». Cette relation fraternelle

autant que paternelle, extra-ordinaire, magique, dans un pays qui paraît cumuler les inconvénients de

l’Afrique et de l’Amérique, le cercle vicieux de sous-développement et du chacun pour soi, peut être

source d‟expériences nouvelles ou de dérapages incontrôlés. Wargny 2008 :77. Meu grifo. 232

Appelé partout, le gouvernment [de Aristide] éteint les feux, mais ne définit ni les priorités ni son

articulation avec le mouvement social. Un mélange de bonne volonté, de précipitation et d‟improvisation.

Rompre avec le passé : on peine à depasser le stade incantatiore. Symbolique. Le symbole est essentiel en

Haïti. Il nourrit plus que „ailleurs. Mais ne suffit pas. Wargny 2008 :82. 233

Aristide paraît prêt à défendre le fameux pacte social, ce compromis historique qui pourrait faire

entrer dans la modernité un pays aux structures et aux mentalités archaïques. Idem:92. 234

Pas de vraie priorité, pas de résistance aux pressions extérieures de toute nature, une lutte trop timide

contre la corruption, une incapacité à arbitrer entre les différents ministères, bref la politique du chien

crevé au fil de l‟eau. Idem :92. 235

Le mouvement populaire haïtienne a surgi au début des années 1980 et il est devenu acteur

incontournable de la vie sociale. [...] Une rupture qui a paru s‟affranchir du poids de l‟histoire [...]

Titid [diminutivo de Aristide, apelido carinhoso que Wargny parece usar ironicamente] symbolisait la

rupture. Pour la première fois depuis 1804, les couches populaires déchiraient les rideaux de la sène

politique qui les excluaient. [...] Issu de la paysannerie, au contact du peuple désemparé des villes, le

prête avait rompu avec certains repères, avec le déterminisme et la résignation du peuple exclu, de

nation condamné au marronage, en prônant les principes de la théologie de la libération. [...]

Page 139: Construções do fracasso haitiano

127

impressionante capacidade da sociedade haitiana de repetir os erros do passado e de se

manter numa mentalidade colonial configuram um verdadeiro mistério.236

É apenas em Barthélemy (1989:32-33) que encontramos uma proposta de

interpretação positiva a fenômenos frequentemente notados, descritos, e até criticados

por nossos civilizadores moralizantes. Velhos ditados reproduzem a idéia de que no

Haiti, ao invés da confiança e do trabalho em conjunto, as pessoas estariam sempre

puxando o tapete umas das outras.237

Sem discordar do conteúdo, Barthélemy inverte

seu sentido para mostrar uma função niveladora em tais comportamentos dentro do

sistema camponês. Haveria todo um sistema moral cujo objetivo final seria impedir o

desenvolvimento de relações desiguais. Assim, a suspeita, o medo, a inveja que as

On ne dira jamais assez combien l‟exil fut destructeur. [...] Comme si la facilité inclinait à revenir à

des schémas classiques d‟exercise ou de partage du pouvoir. Le mouvement populaire souffre lui-même

de ses propres carences et de la pesante verticalité de la société haïtienne. Au faîte de sa puissance en

1991, il ne parvient pas à transformer l‟adhésion généralisée, cette immense demande de participation,

en conscience politique [...]

Lavalas ne se mue pas en coordination, centralisée ou pas. Jamais s‟est organisé un parti ou un

mouvement politique. [...] Lavalas fonctionne comme une relation d‟amour, ou de confiance, entre Titid

et son peuple. Une union. Sans écheance ni contrat. [...] Ce mouvement n‟a jamais pu ou voulu se

construire. [...] Titid n‟a pas engagé de bataille de fond, des campagnes de masse. Pas ou peu de

« conscientisation culturelle ». Pas de tentatives sérieusement orchestrées pour éroder cette vieille Haïti

mentale, que le président dénonce à grand renfort de métaphores créoles. [...]

Les maux endémiques de la société haïtienne perdurant : l‟opacité, le mépris, l‟autoritarisme, le

macoutisme, l‟illetrisme. [...] Des militants indiscutibles se transforment en parlamentaires à la bedaine

prospère ou en bureaucrates hautains [...]. Par intérêt, par mimétisme ou par paresse, ils s‟installent

sans peine dans les habitudes de ministères auxquels ils rêvaient. [...] La fidélité devient vertu première,

la compétence accessoire. On récompense le conformisme et la vassalité. On craint les géniteurs et les

pionniers. Comme si le naturel revenait au galop, encouragé par les fonctionaires qui poussent à la

normalisation. Et le ministre qui se pare des plumes d‟un autre, à quel modèle va-t-il se identifier ? Au

seul qui existe depuis deux siècles : celui des dignataires des régimes antérieurs.

Partout surgissent les mêmes difficultés. Obstacles ou impasses : improvisation, gaspillage des

ressorces, difficulté à travailler en équipe, à débattre, à clarifier, à deleguer des pouvoirs,

courtisanerie, cliéntelisme et clanisme, naissance d‟une nomenklatura... [...] Mais, en 1996, la

démocratie en transition ressemble parfois à un retour progressif à l’Haïti eternelle. Celle de la misère,

comprise comme désolation, mais aussi silence, mépris et impunité.

Les archaïsmes reviennet au galop. L‟histoire, de nouveau, colle aux souliers d‟Haïti. Une glue qui

scelle lentement le présent à un passé de boue et de sang : le retour à cette singularité de l’enfermement

et de l’immobilisme. [...] Les démons – arbitraires, chantages, inégalités, vassalités – n‟ont jamais quitté

la place, ils reprennent vigueur. Wargny 2008:98-101. Meus grifos. 236

Au-delà des émotions, des dechoukaj et des révolutions, des coups de colère et des coups de force, des

sursauts et des élections, des tutelles successives, oligarque ou étrangère, comment une société engendre-

t-elle pareille faculté à redevenir elle-même: enfermé, allergique aux influences ou aux repères

extérieurs, repliée sue le modèle mental colonial et le caciquat politique? Idem:127. 237

“Depi nan Ginen, nèg trayi nèg” [Desde a Guiné [África], negro trai negro] / “Chen manje chen” [os

cães devoram uns aos outros]. No corpus Barthélemy é o único autor a trazer ditados e outras falas em

kreyol sem tradução ao francês. Ele também comenta histórias de Ti Malis e Bouqui, dois personagens

clássicos da tradição oral rural haitiana, mas desconhecidos alhures, sem qualquer explicação extra.

Page 140: Construções do fracasso haitiano

128

pessoas nutririam umas pelas outras serviriam à regra não escrita, mas imanente nesse

tipo de sociedade; “tu não te diferenciarás”, sobretudo em detrimento do grupo.238

onde alguns comentadores lamentam o conformismo da rígida moral camponesa, para

Barthélemy o importante é o cuidado que cada pessoa tem de não ser vista agindo

contra os costumes do grupo, o peso permanente e onipresente da regra de ouro (...)

que é a “respeitabilidade” (idem:34).

Além de converter o que alhures é desqualificado (medo, desconfiança, inveja)

em mecanismos igualitários, que garantem que as regras do jogo sejam mantidas

idênticas para todo mundo, Barthélemy também atribui à feitiçaria um papel regulador.

Haveria uma relação entre a magia e a condenação moral da ambição, do

enriquecimento individual, dos privilégios. O espaço deixado pela ausência do Estado

seria ocupado pela feitiçaria,239

regida pelos códigos igualitários do #2 Haiti. As

sociedades secretas haitianas são comparadas às africanas, já que ambas teriam a função

de deixar difusas, no ar, ameaças sobrenaturais contra comportamentos desviantes.240

Mais importante que notar quando quais autores atribuem um sinal positivo ou

negativo a determinado “traço cultural” é perceber o consenso de fundo que coloca os

termos do debate. Primeiro, que existe algo como “traços culturais”, os quais

frequentemente são construídos a partir de fontes bibliográficas, quase nunca de

238

Les descriptions critiques de ce système de comportement d‟origine africaine, à base de suspicion, de

crainte permanente, de jalousie, d‟envie, n‟ont pas suffisamment mis en valeur son utilité à l‟intérieur du

système en question. C‟est en effet, par ce contrôle réciproque, quotidien, que chaque individu est

contraint par ses semblables, ses voisins, à respecter la grande règle non écrite, mais immanente de ce

type de société : « Tu ne te différencieras pas », surtout au détriment du groupe. Barthélemy 1989:33. 239

La sorcellerie devient ainsi régulateur des rapports de crise entre les individus. Elle ne s‟exprime pas

que dans cet espace juridique et pénal laissé libre par l‟absence d‟État, de justice officielle reconnue, de

codes et de lois acceptés par tous. Barthélemy 1989 :35. 240

...celles-ci [as sociedades secretas] auraient un rôle de recours ultime dans la conservation des

mécanismes importants du milieu rural. Le code écrit de l‟une d‟elles ne frappe-t-il pas d‟une

condamnation majeure l‟ambition individuelle (Bision) et l‟enrichssement trop rapide ? [... ] on peut...

comparer leur rôle à celui de nombreuses sociétés secrètes africaines, dahoméennes ou congolaises.

L‟importance de leur fonction réside dans la terreur bien réelle qu‟elles entretiennent dans l‟imaginaire

des populations et dans le rôle que peuvent ainsi jouer ces sociétés dans la régulation sociale.

Cependant le système ne joue pas seulement dans un contexte agression-défense ; il permet d‟assurer,

en plus, la cohésion de l‟ensemble des composants à partir du moment où il ne sent pas menacé dans son

ensemble par un comportement portant en soi un risque de déviation. Barthélemy 1989 :36.

Page 141: Construções do fracasso haitiano

129

pesquisas empíricas (dentro do Corpus, a maior exceção é o próprio Barthélemy).

Segundo que de fato mistura-se magia e política no Haiti, constatação quase sempre

mesclada ao julgamento implícito de que elas não deviam misturar-se, e que a política

deveria ser constituída como um campo autônomo.

Notemos também que, explícita ou implicitamente, o tema da África

transplantada parece sempre estar no horizonte quando os autores abordam os supostos

defeitos culturais haitianos.241

Somos sempre lembradas de que em 1804, marco da

ruptura com o domínio francês, a maioria da população era nascida na África.

Das duas uma – ou supostos traços culturais como o autoritarismo, uma

concepção que confundiria política com crenças mágico-religiosas e o arcaísmo

tecnológico refratário a mudanças, seriam heranças africanas, ou então seriam o fruto

caribenho da mistura de povos privados de suas raízes e degradados pela condição da

escravidão. A noção de degradação moral como consequência da condição escrava é

bastante antiga e emerge com alguma frequência (cf. Lawrence Harrison, que considera

a escravidão no Caribe como parte da “cultura africana tradicional”).

Ambas as idéias – degradação via escravidão e África transplantada – podem ser

exploradas com proveito, mas aqui se abre um terreno amplo demais para que possamos

percorrê-lo com o devido cuidado. Para nossos objetivos atuais, basta apontar que essas

duas “sub-gêneses” coexistem nos argumentos sobre os defeitos culturais haitianos,

ambas se encaixam em interpretações sobre o evento-chave de 1804, e que, embora

sejam sem dúvida diferentes, uma não necessariamente contradiz a outra.

Voltando à distinção analítica comentada no início deste capítulo entre

problemas políticos e econômicos, vemos que parte dos supostos defeitos culturais do

#2 Haiti – analfabetismo, falta de qualificação, ignorância supersticiosa, arcaísmo,

241

A identificação pendular entre França e África é bastante explorada em Hoffman (1990).

Page 142: Construções do fracasso haitiano

130

resistência a inovações técnicas, conformismo – estão situados num horizonte que

aponta para o imobilismo e a incompetência econômica, antíteses do desenvolvimento.

Para que a crítica faça sentido, é preciso assumir um ponto de vista desenvolvimentista,

assumir que não fazer a economia crescer é um erro. E isso, fora Barthélemy, todos os

autores fazem. Portanto, de um ponto de vista econômico, é quase consenso que as

práticas do Haiti camponês estariam equivocadas.

Mas a recusa à agricultura de exportação – nas plantations do século XVIII ou

no capitalismo contemporâneo – mostraria também resistência contra a dominação.242

Pelo menos nos livros aqui tratados, o suposto anti-capitalismo do #2 Haiti é mais

elogiado que criticado. Quando aplicada ao “povo”, a acusação de um autoritarismo

violento, antítese da democracia, é mais rechaçada que endossada (embora Wargny e

especialmente Étienne fujam à regra). De um ponto de visto político, ou moral, o #2

Haiti estaria com a razão, o que nos leva ao outro equívoco.

Metáforas.

Se nos livros em questão a responsabilidade pelo fracasso da democracia no

Haiti não costuma ser atribuída ao “povo”, a quem seria? Já conhecemos as duas

respostas prováveis. De um lado, a elite haitiana (que pode ser sub-dividida em elite

política, o Estado, e elite econômica, a burguesia). Do outro, as grandes potências

estrangeiras. Em geral ambas são responsabilizadas, com variações de ênfase.

Trataremos, agora, de acusações que pesam sobre o Estado e as elites haitianas.

Não é necessário repetir o que já foi descrito: processos de diferenciação entre “elite” e

“povo”, a violência dessa distinção, a forma como, na literatura, os dois lados aparecem

242

Como vários autores comentam, e nenhum o nega, o trabalho em lavouras de cana, em especial na

República Dominicana, ocupa boa parte da força de trabalho rural haitiana contemporânea. O que está em

jogo aqui não é isso, mas a idéia de controle familiar da terra e do que ela produz, um regime de dispersão

de propriedades que, supostamente, agiria contra a agricultura capitalista de larga escala, e com isso

empobreceria o país.

Page 143: Construções do fracasso haitiano

131

sempre em oposição recíproca. Parte substantiva das críticas está contida aí –

exterioridade, exclusão do grosso da população das tomadas de decisão, uma postura

antagonista do Estado em relação ao povo a quem deveria servir. Ao invés disso, nos

concentraremos agora em algumas metáforas significativas.

Já vimos como funciona o esquema de Trouillot: a derrota histórica do projeto

plantation teria feito com que a elite agrária, desiludida e derrotada em suas pretensões,

se voltasse para a captura dos aparelhos de Estado. Incapaz de enriquecer através de

atividades produtivas, essa nova elite teria preferido gerenciar um sistema de taxas

indiretas que permitiria sugar o excedente da produção camponesa de forma

dissimulada o bastante para conter revoltas. A metáfora mais acionada para descrever

essa relação é o parasitismo. De fato, Trouillot nos oferece toda uma tipologia dos

numerosos grupos de parasitas (1990:78-80 – a seção tem como título The urban

parasites). O crescimento contínuo do número de parasitas sugando uma produção

estagnada sobrecarregaria o sistema, gerando miséria no campo e violência entre a elite

política.243

É que, com a importância crescente da esfera política, chegaria um momento

em que estes parasitas, os pretendentes aos espólios do trono, se tornariam muito

numerosos para que qualquer facção se mantivesse no poder sem a incessante

validação de seu poder por meio da violência (idem:87).

Barthélemy faz uma descrição parecida de como a elite abandonou atividades

produtivas para se apoiar apenas sobre poder político e militar.244

Com a mistura de

243

... as the number of parasites grew, their total cost to the state increased enormously, even though

their individual incomes declined. […] The peasantry‟s bled the more because even at best productivity

was stagnating. The cultivators‟ isolation contributed to the lagging development of production

techniques. The landlords for their part did not worry about agricultural efficiency, having abandoned

the politics of production for the politics of state power. […] While productivity was stagnating, the

proportion of citizens engaged in nonproductive activities was rising. The parasitic groups grew more

rapidly than did production, and even more rapidly than the peasantry itself. Trouillot 1990:80. 244

C‟est une sorte de hiérarchie terrienne tronquée qui, peu à peu, va se mettre en place, sans cesse

menacée par la masse des petit exploitants ; incapables de parvenir à une mise en valeur systématique

des meilleures terres, qu‟elle confisque pour mieux les stéreliser, cette aristocratie [...] devra s‟appuyer,

Page 144: Construções do fracasso haitiano

132

temporalidades que lhe é característica, o autor afirma que o trabalho do Estado haitiano

sempre foi e continua sendo conter as massas negras.245

Embora a relação que Trouillot

caracteriza como parasita seja idêntica, a metáfora acionada por Barthélemy (1989:59) é

outra: por essência, esse poder estatal [do Haiti créole contra o Haiti bossale] é nefasto,

mau, injusto, excessivo, predador.

No escopo da literatura aqui tratada, a metáfora da predação é a preferida para

descrever a relação do Estado com o povo. Ela é absolutamente central no trabalho de

Fatton, desde o seu título. Seu grande assunto é a democracia predatória – um sistema

que parece ter vida própria, impondo-se a pessoas que, originalmente, podiam até ser

bem intencionadas, mas tiveram sua dignidade comida pelo sistema predatório. Fatton

usa bastante uma expressão originalmente cunhada por Jean François Bayart para

descrever o papel do Estado na África: politique du ventre (politics of belly), ou política

do estômago.246

As imagens movem umas às outras, e o autor acredita tanto nelas que

afirma estar usando a metáfora num sentido literal:

A tragédia da fundação sistêmica do Haiti é que ela literalmente come a

decência de homens e mulheres perfeitamente honestas, transformando-lhes em

grand mangeurs (big eaters) [grandes comedores] – uma espécie voraz de

funcionários que devoram recursos para seus ganhos privados exclusivos. Fatton

2002:xi. Meus grifos.

Referindo à Saint-Domingue comandada por Toussaint Louverture, em torno do

ano 1800, Étienne (2007:95) afirma que o corpo militar, presente por todo o território,

pesava sobre os cultivadores como uma horda despótica e parasitária. Pouco à frente,

pour mantenir son pouvoir, non pas sur la richesse d‟une économie prospère à base de latifundia mais

sur le pouvoir politique et militaire qu‟elle s‟appropriera à tour de rôle. Barthélemy 1989 :113. 245

Ce pouvoir face à la population paysanne reste celui qui a été autrefois celui des milices d‟affranchis

et de la gendermerie coloniale composée des mulâtres et des noirs libres: il est chargé de contenir la

masse des travailleurs noires, qu‟ils soient esclaves ou cultivateurs, comme à presente. Para provar a

imutabilidade dessa tendência, Barthélemy cita um texto no qual Jean-Price Mars diz que « En realité, le

principe imutable, absolu, ce fut la primauté du militaire dans les compétitions présidentielles. Idem :

115. Grifo original. Ainda : Cet état-croupion se réduit pesqu‟à l‟exercise d‟une seule de ses

prérogatives, celle qui, depuis la colonie a été de « contenir les noirs ». Idem :126. 246

Fatton descreve a politique du ventre como a form of governability based on the acquisition of

personal wealth through the conquest of state offices. In a country where destitution is the norm and

private avenues to wealth are rare, politics becomes an entrepreneurial vocation, virtually the sole means

of material and social advancement for those not born into wealth and privilege. Fatton 2002:xi. O livro

original de Bayart, de 1989, chama-se L‟État en Afrique: la politique du ventre.

Page 145: Construções do fracasso haitiano

133

já referindo-se ao Haiti independente, Étienne defende que a ambição dos governantes e

certas decisões infelizes das elites políticas locais imprimiram ao Estado haitiano uma

trajetória marcada por seu caráter de Estado predador, muito fraco e essencialmente

repressivo (idem:108). Tomando o mesmo Bayart como referência, Étienne propõe a

comparação entre o modelo de Estado no Haiti e na África.247

O Estado predador

aparece como uma particularidade haitiano-africana, na qual o Estado se torna o “lugar

primordial de engendramento da desigualdade” (Bayart apud Étienne 2007:117).248

nos anos 1810-1840s, a agricultura militarizada e o sistema de semi-servidão –

comandado por um Estado que, para financiar a si mesmo, taxaria o café produzido pela

massa de pequenos camponeses – mostrariam que se tratava de um Estado predador

explorando excessivamente um campesinato pobre praticando agriculta de subsistência

(idem:125).

Reencontramos as mesmas metáforas em Cristophe Wargny. Por exemplo,

referindo-se ao contingente militar dos Estados Unidos que, em 1995, tirou do poder a

junta militar comandada por Raoul Cédras para restituir o cargo a Jean-Bertrand

Aristide, que havia sofrido o golpe e estava no exílio, Wargny escreve (2007:93) que o

mais importante teria sido suprimir as raízes de uma máquina predadora, parasita e

brutal – o que, na opinião do autor, obviamente nunca teria sido feito com sucesso.249

Essa constelação de imagens também aparece fora do Corpus. Em History as an

obstacle to change, Mats Lundhal fornece uma gênese para o Estado predador (uma

seção do artigo leva como título The historical problem: a century and a half of

247

Ou, eventualmente, a ausência de modelo: Il est à souligner qu‟en Haïti, comme dans certains pays

africains, l‟enjeu politique semble de se situer sur le plan du contrôle des ressources et des hommens que

sur le plan de véritables luttes idéologiques. A referência é feita à coletânea L‟État contemporaine en

Afrique (org. Emmanuel Terray). Ver Étienne 2008:212, nota 4. 248

Nos chama a atenção que, para Étienne, historicamente, o estado pós-colonial haitiano (portanto, pós-

1804) seja visto como a fonte da divisão de classes, em oposição à colônia escravista de Saint-Domingue.

Ver 2008:117. 249

Eis a abrangência do problema: também seria vital punir os crimes da junta militar, contra cette culture

de l‟ impunité et de l‟oubli pratiquée de la Terre du Feu à l‟Amérique centrale. Wargny, 2008:93.

Page 146: Construções do fracasso haitiano

134

predatory rule – ver Lundhal 1989:7-9). A gênese remonta à colônia de Saint-

Domingue, que já estaria tomada pela corrupção, deixando uma herança infeliz ao Haiti

independente, situação que dali em diante só teria piorado com a contínua degeneração

política.250

As massas camponesas estariam completamente ausentes do processo

político, a não ser quando contratadas como mercenárias para defender ou atacar

determinada facção. Em Lundhal como em Étienne, as revoltas não teriam qualquer

conteúdo, nem para as facções lutando pelo poder, nem para as massas supostamente

mobilizadas pelas facções que tentavam controlar o Estado – não encontramos em tais

relatos qualquer outro motivo para a ação além da ganância pura e simples.

A ausência de distinção entre dinheiro público e privado transformaria a busca

pelo poder numa espécie de caça ao tesouro, com um revezamento contínuo entre

gangues, uma sucessão escandalosa e caótica de golpes, insurreições e guerras civis.

Como não haveria qualquer sentido nessas lutas além do enriquecimento pessoal, os

governos haitianos seriam verdadeiras máfias.251

A idéia de uma confusão entre contas públicas e privadas como técnica de

governo também aparece em Étienne, em particular no conceito de patrimonialismo,

que o autor considera como um dos principais pilares do regime político haitiano.252

Ele trata o contrabando institucionalizado (idem :140) como um mal congênito

250

[...] this heritage of corruption was never eliminated. Instead, during the course of the 19th-century, a

“soft”, or predatory, state developed. Particularly after the fall of President Jean-Pierre Boyer, in 1843,

it can argued that Haitian politics and government displayed every possible sign of degeneration. An

essentially “private” concept of the state took root, and the distinction between public and private funds

became blurred. Lundhal, 1989:8. Meu grifo. Chamamos a atenção para a equivalência entre predatory e

“soft”, que retornará em breve, embora em termos diferentes. 251

From 1843-1915, Haitian administrations were of the mafia variety, with their main – or only – goal

being to enrich the officeholders. Idem:8. Grifo original. 252

Em alguns momentos, a descrição de Étienne passa de acusação de ausências à descrição de técnicas:

Toussaint Louverture ne respectait pas le principe de séparation entre le Trésor public et sa fortune

personnelle. Cette façon de concevoir et de gérer la chose public était d‟autant plus pernicieuse pour le

monopole fiscal de l‟État qu‟elle était moins une anomalie qu‟une réelle technique de gouvernment.

Étienne 2008 :139. A idéia é tirada do historiador haitiano Pierre Pluchon : « Le désordre financier n‟est

pas qu‟une maladie de l‟administration du général, il est aussi une technique de gouvernment : il l‟aide à

économiser et à entasser des fonds dans une caisse masquée par un impénétrable rideau de fumée. Cette

méthode, irrationnelle pour un bon gestionnaire, ne manque pas de pertinence pour un politique ».

Pluchon apud Étienne 2008 :152, nota 21. Contudo, Étienne não investe na idéia, não a desenvolve.

Page 147: Construções do fracasso haitiano

135

(idem:152, nota 29), usando a metáfora orgânica do sangue para fluxos financeiros: o

contrabando seria uma hemorragia sangrando os cofres de um Estado cada vez

anêmico.253

E o sangue, no grosso, sem dúvida viria do suor do campesinato haitiano.

Um dos textos de Jadotte (2005:31-36), escrito três meses após a queda de Baby

Doc, junta dois adjetivos acusatórios no título: Estado mínimo e Estado máfia. O

Estado, este monstro famélico e vampiresco, teria como único instrumento de gestão, no

nível nacional, o segredo, tornando privados serviços que deveriam ser públicos.

Internacionalmente, adotaria o comportamento patológico de um Estado mendigo,

sempre pronto a pedir dinheiro sob os belos pretextos do sub-desenvolvimento e da fome

(idem:34-5). A corrupção sistemática, como um dos motores do sistema, mostraria o

caráter criminoso da instituição, seu funcionamento enquanto máfia. Assim, Jadotte

conclui, o Haiti não sofre de fome, mas de um excesso de dinamismo e vitalidade

vampirizados por um Drácula que se dá o nome de Estado (idem:36).

O termo Estado-máfia também aparece no livro de Laënnec Hurbon. Para o

autor, ao invés de investir na produção (o dilema parece antigo, mas estamos em 1986),

a saída do Estado seria sugar dinheiro da cooperação internacional e investir no

contrabando, uma solução mágica para todos os problemas econômicos.254

Com a

improdutividade geral, a dependência da ajuda externa deixaria a economia quase

moribunda, situação que o Estado encararia com uma grande inércia, frente à qual as

reivindicações populares vão se chocar sem eco (Hurbon, 1987:20).

Vindo de Hurbon, o adjetivo mágico não é gratuito. É visível seu esforço para

purificar a política de intromissões da religião e da magia. As acusações aqui pesam

253

La croissance continue des pratiques liées à la contrabande avait provoqué une hémorragie chronique

qui devait tout simplement déboucher, à la longue, sur l‟anémie irrémédiable de l‟État haïtien auquel la

corruption devait donner le coup de grâce. Idem :141. 254

Mais on a assisté, de surcroît, au spetacle d‟un État qui faisait de la contrabande da solution magique

à tous les problèmes économiques. La contrabande se pratiquait déjà en Haïti à une échelle restreinte à

ce qu‟on peut appeler une mafia nationale et internationale, comme dans d‟autres pays en voie de

développement. Hurbon 1987:21, meu grifo. A referência aos outros países é sustentada por um artigo de

Richard Sanbrook publicado na revista Politique Africaine.

Page 148: Construções do fracasso haitiano

136

sobre as crenças populares, que tomariam proporções fora de controle, e também sobre

a igreja e o Estado. A déchoukaj anti-duvalierista teria adquirido contornos mágicos,

transformando-se em déchoukaj contra lobisomens.255

Ex-macoutes, que por vezes eram

também ougans, sofreriam perseguições que os demonizariam misturando acusações de

natureza política e sobrenatural.256

À medida que a déchoukaj se transforma em terror,

teria havido uma explosão das acusações de feitiçaria e de canibalismo, gerando uma

série de linchamentos curiosamente festivos.257

Aproveitando-se da situação, a igreja

teria movido uma campanha não-oficial, incentivando sub-repticiamente a perseguição a

oufòs (“templos” Vodus), em uma nova “campanha anti-supersticiosa” (idem:117).

Enquanto isso, o governo militar provisório, que se seguiu à queda de Baby Doc, teria

lançado uma campanha anti-comunista, deixando lideranças de movimentos populares

sob ameaça latente de linchamento ou de serem queimadas vivas caso tomadas por

lobisomens comunistas.258

Vemos, assim, como a suposta “confusão” entre os domínios

pode ser mobilizada para fins específicos – como, mais que ausência de racionalidade

(embora, para os autores, sem dúvida se trate também, muitas vezes, desse tipo de

ausência), há estratégias em jogo.

Para Hurbon, o campo religioso/sobrenatural invade a política porque o Estado é

fraco. Um dos grandes perigos de tal invasão seria a possibilidade de que os novos

255

Hurbon é o único autor do Corpus a afrancesar a grafia da palavra: déchouquage. Preferimos mantê-la

em kreyol. 256

Plusieurs dizaines d‟ougan ont eu le temps d‟être lynchés, lapidés et brûlés vifs, sous le prétexte que

tous étaient indistinctement à la fois des pratiquants de sorcellerie et des macoutes. Hurbon 1987:117. 257

Dans ce contexte de transformation du déchouquage en terreur, de nombreuses personnes, en

particulier des femmes de certains quartiers populaires urbains, sont victimes de l‟accusation de

sorcellerie et de cannibalisme. L‟explosion de l‟imaginaire populaire livré à lui-même entraîne donc la

poursuite de tout individu suspect de pratiques et d‟attitudes non conformes aux normes de la vie sociale.

Curieusement, chaque opération de lynchage d‟un présumé loup-garou donne lieu à une petite manifesta-

tion festive. La foule chante et danse en traînant un cadavre de loup-garou dans les rues. Idem : 118. 258

Après avoir laissé le déchouquage de macoutes se transformer en déchouquage de loups-garous

(presumés), le gouvernment militaire provisoire, à court de légitimation, ouvre par une série de

communiqués une propagande anticommuniste. Au coeur des campagnes, ce sont donc des communistes

qui opéreraient dans les gwoupman, tét ansanm, ces associations de paysans décidés à organiser la

défense de leurs intérêts. Tout leader militant pour la démocratie et contre le retour des macoutes dans

les appareils de l‟État est tenu pour communiste, et comme tel peut être lapidé ou brûle vif. Idem: 21-22.

Page 149: Construções do fracasso haitiano

137

movimentos populares concebam suas próprias ações em termos religiosos, o que

colocaria em risco a democracia. Este seria um dos grandes dilemas haitianos: como sair

da lógica religiosa, rumo à concepção da política que seja racional (e moderna, como

diriam outros autores – Hurbon não usa o termo aqui, mas poderíamos acrescentar o

adjetivo sem mudar uma vírgula do conteúdo)? 259

Há aí um jogo simultâneo de qualificação e desqualificação. Diversas vezes

aparecem juntas as acusações dirigidas ao Estado (parasita, predador, mafioso, Drácula,

mágico-religioso) e comentários sobre sua suposta fraqueza ou mesmo ausência. O

vácuo, vazio de um dever-ser não realizado, abriria espaço a novas formações

fantásticas e perversas. É interessante notar como mesmo um Cristophe Wargny, mestre

em descrever o que o Haiti não é, aponta, em lampejos, para a positividade potencial das

ausências – como quando a “falta de provas”, ou “falta de meios” para gerar provas, são

invocadas como álibi para justificar a impunidade a criminosos notórios, a ex-

torturadores etc. Mais do que mera precariedade material e incompetência humana,

haveria aí, portanto, um esforço coordenado para cultivar a “falta de meios”.260

Vislumbramos então como o fracasso desse agente coletivo – “o Haiti” – pode ser o

sucesso de outros agentes.261

259

Cette emprise du religieux sur le politique en Haïti s‟enracine sans aucune doute dans les failles de

l‟État. Dans le processus démocratique en cours, elle ne risque pas seulement conduire à une dépendance

des mouvements sociaux et politiques vis-à-vis des instituitions religieuses, mais surtout de porter ces

mouvements à conceivoir leur action sur le modèle même du religieux. Or celui-ci renvoie avant tout au

témoignage, à la défense d‟une foi ou des principes surnaturels au coeur de la société, et non pas à la

mise en rapport d‟objectifs précis (toujours-déjà partiels) avec des tatiques et des stratégies adaptées et

élaborées rationnellement, en quoi consiste la politique. La sortie de l‟emprise du religieux représente à

cet égard une épreuve par laquelle passe aujourd‟hui – de manière plus ou moins perceptible – toute la

société haïtienne. Idem :118. 260

Ces faits ont un sens: s‟interdire de faire la preuve, ou au moins d‟apporter des éléments qui

contribuent à sa recherche. Un laboratoire, une police scientifique, une médicine légale, des juges

professionnels : tous existent, grâce à des concours extérieurs, mais sont invités à ne pas fonctionner. Les

médicins légistes ou les jugés qualifiés et corageux sont sans travail, dans un pays où les criminels

courent. Comme si le pouvoir voulait les y aider. Comme s‟il préférait invoquer le manque de moyens.

Une excuse souvent réelle dans tant de secteurs, mais alibi dans ce cas. Wargny 2008 :154-5. 261

Les maîtres d‟Haïti, ceux de l‟intérieur et les autres, ont un point commun : ils ne veulent pas d‟État,

fût-il modestement stratège ou arbitre. Développer et cimenter une nation, jamais ! La loi de la jungle a

ici tellement fait ses preuves. Wargny 2008 :146.

Page 150: Construções do fracasso haitiano

138

Uma última metáfora nos mostrará um pouco mais dessa dinâmica de postular

um vazio e ao mesmo tempo qualificar o vazio. Vimos como é comum a metáfora

quilombola para comportamentos de esquiva ao Estado ou à economia de larga escala.

Um economista haitiano chamado Leslie J.-R. Péan262

levou essa metáfora a um novo

patamar. Sua obra Haïti; économie politique de la corruption já teve quatro volumes

publicados, cada um dedicado a um período histórico específico. O segundo tomo,

publicado em 2005, leva como subtítulo L‟État Marron (1870-1915). Não cheguei a ver

o livro original, descobri sua existência em pesquisas pela internet – portanto, seu

conteúdo não pode ser discutido aqui. 263

Apenas trazemos sua novidade: o conceito de

marronage, geralmente aplicado como metáfora para a fuga rumo aos espaços onde o

Estado está ausente, aqui é aplicado ao comportamento do próprio Estado, que viveria

uma ausência voluntária, ou mesmo uma fuga, do âmbito da política internacional.

O Haiti-como-um-todo está para o resto do mundo assim como o #2 Haiti está

para o #1 Haiti. Montamos um quadro para tornar mais didática a visualização de uma

série de imagens e diferenças relacionadas, que movem umas às outras. Não esgotamos

todas as combinações presentes no Corpus. O objetivo é apenas condensar a

apresentação visual de elementos que estão dispersos ao longo do texto.

262

Péan foi economista do Banco Mundial, responsável por gerir projetos de desenvolvimento em África.

Sua produção acadêmica foi dedicada às raízes históricas da corrupção no Haiti. Ironicamente, ele foi

demitido sob acusação de ter aceitado suborno. Atualmente está sob investigação do FBI e da Receita

Federal nos Estados Unidos, tentando explicar a origem de cerca de dois bilhões e meio de dólares que ele

admitiu ter em uma conta na Suíça. A história completa pode ser lida em

http://74.125.113.132/search?q=cache:8R4A8xpmjVYJ:www.boominfo.com/people/Pean_Leslie_958156

111.aspx+%22+leslie+pean%22+ha%C3%AFti&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br Último acesso em 1

de outubro de 2009. 263

De acordo com a resenha do livro disponível no site Amazon (http://www.amazon.fr/Ha%C3%AFti-

%C3%A9conomie-politique-corruption-1870-1915/dp/2706817844 - Último acesso em 1 de outubro de

2009.), o mérito de Péan seria desconstruir a matriz patológica da sociedade haitiana, remontando

historicamente o regime de corrupção financeira e decadência social na sociedade pós-colonial para

mostrar, nas disputas de interesses entre potências estrangeiras, a rede complexa de corrupção que

fagocitou o poder público e criou um Estado quilombola. Como de costume, a história contada por Péan

pretende fazer com que a crise haitiana atual ganhe em inteligibilidade.

Page 151: Construções do fracasso haitiano

139

#2 Haiti #1 Haiti

Presa Predador

Hospedeiro Parasita

Vítima Algoz

Escravo / Quilombola Senhor

Sangue Vampiro / Sanguessugas

Haiti-como-um-todo Grandes potências (especialmente Estados Unidos e França)

Devedor (dívida de dinheiro, conhecimento técnico,

reconhecimento, legitimidade, cultura...)

Credor (crédito nos mesmos sentidos)

Atrasado, estático, parado no tempo,

preguiçoso

Desenvolvido, dinâmico, “desenvolvedor”

As grandes potências e outros Estados blans.

Potências estrangeiras são sempre citadas como atrizes centrais na criação da

“tragédia haitiana”. Se o nosso quadro fizer sentido, será fácil prever boa parte das

críticas dirigidas às políticas das grandes potências; exterioridade, cisão criando

isolamento, ausência de diálogo, força das armas...264

O destino do Haiti seria decidido

alhures, à sua revelia. O país como um todo – povo e elite – seria acusado de barbárie e

incapacidade de resolver os próprios problemas. Uma presumida ingerência

governamental (administrativa, financeira, policial/militar) legitimaria formas variadas

de tutela, abertas ou mascaradas. Tanto quanto na relação do #1 Haiti com o #2, haveria

um abismo entre intenções publicamente declaradas e negócios escusos, interesses

ocultos. Aqui também, o segredo pode aparecer como método de governo.265

264

Nesse caso há uma diferença importante. Enquanto as armas seriam efetivamente disparadas nos

conflitos internos, no plano das relações internacionais elas funcionariam mais como ameaças,

demonstração de uma força não necessariamente usada. 265

Fatton traz uma citação de William Robinson, que é central em sua argumentação contra o governo das

agências internacionais: [International] agencies are secretive, anti-democratic, and dictatorial in the

imposition of their policies... New institutions required for the management of globalized production have

come into being, conceived here as components of an internationalized state, but they are even less

democratic and less accountable than nation-states.These institutions have usurped the functions of

Page 152: Construções do fracasso haitiano

140

Não temos tempo nem espaço para discutir as relações específicas estabelecidas

entre o Haiti e cada um dos outros países que surgem no Corpus. Apenas apontaremos,

muito brevemente, o papel que cabe a cada um nas narrativas da mitologia nacional

haitiana.266

Nos tempos coloniais, a França, obviamente, ocupa o lugar de maior destaque.

Como vimos nas dicotomias discutidas no capítulo anterior, “a França” é usada como

referência em vários sentidos: modelo linguístico, de governo, de costumes, festas,

religião, civilização... A defesa básica contra a acusação de barbárie é que o Haiti seria

mais francês que africano, apesar de nascido de uma guerra de cisão contra a França,

que tentava não só retomar o controle da colônia mas também restabelecer a escravidão.

No pensamento social haitiano, encontramos uma longa oscilação entre esses dois pólos

– França e África – na qual ambos os lados foram, em momentos diferentes, afirmados e

negados.267

Como ex-proprietária, a França teria poder simbólico para sancionar ou não

a existência do país. A origem da dívida externa haitiana seria uma indenização

milionária paga em troca do reconhecimento francês oficial da independência (ver, por

exemplo, Trouilot 1990:44, 50-1, 60-1, Étienne 2007:114, 123, Wargny 2008:55-6).

Trata-se de uma relação profundamente ambígua. A França era ao mesmo tempo a

entidade mais idolatrada e destestada, buscada e rechaçada, fonte de luzes e de opressão.

economic management from the public sphere (governments) and transferred them to their own private,

almost secretive spheres. Apud Fatton 2002:126. 266

Talvez isso seja decepcionante para alguns leitores/as, mas o Brasil mal é citado nesses livros. Como a

presença militar brasileira no Haiti é muito recente, nos parece altamente provável que o tipo de produção

aqui tratada (a literatura crítica que toma como objeto o Haiti), que está sendo e ainda será produzida no

Haiti, passe a discutir cada vez mais a missão de estabilização da ONU e o papel do Brasil nesta, para não

falar das reflexões sobre a questão que certamente serão produzidas na ciência social brasileira. No

escopo investigado aqui, nada disso chega a aparecer. 267

Trata-se de uma vasta literatura que exigiria uma grande fuga ao tema. Grosso modo, no início a

África era negada e a França afirmada, situação que começa a se reverter com a obra de Jean Price-Mars e

dos autentiques, que tentavam criar uma síntese haitiana revalorizando as heranças africanas. Para

ficarmos com um autor do corpus, Le barbare imaginaire de Laënnec Hurbon (1988) traz uma discussão

interessante sobre a França como modelo e anti-modelo, e a negação da África sucedida por uma busca

das raízes. Em Trouillot (1990:114-16) há uma discussão sobre a ambiguidade cultural da elite haitiana,

variando entre admiração e ódio/desprezo tanto à França quanto ao Haiti rural. Fora do corpus, cf. a

discussão sobre o papel da África e da França como pólos de atração e repelência em Mintz (1974:288-9)

e em Hoffman (1990).

Page 153: Construções do fracasso haitiano

141

Mas a grande influência cultural e comercial exercida pela ex-metrópole teria entrado

num declínio lento e contínuo ao longo do século XIX.

Enquanto isso, o protagonismo estadunidense teria crescido continuamente. Pelo

menos desde a ocupação que governou o Haiti de 1915 a 1934 os Estados Unidos

parecem incontestáveis como maior influência, e como maior “vilão” na tragédia.

Muitos outros países são citados além desses dois principais. A ilha de

Hispaniola originalmente foi conquistada pela Espanha, que nunca deixou de ocupar seu

lado oriental. Durante as guerras de independência, a colônia teria sido palco de

conflitos ente Inglaterra, França e Espanha – entre 1791 e 1803, todas chegaram a ter

controle temporário sobre a ilha ou boa parte dela. A hostilidade mútua entre as

potências européias costuma aparecer como uma das causas, ou uma condição de

possibilidade, para o sucesso da revolução haitiana (Trouilot 1990:43, Wargny 2008:40-

1, Étienne 2007:85-92. Cf. também C.L.R. James 1938 e Laurent Dubois 2004).

Na guerra de independência, o exército da Polônia teria sido o único a desertar e

lutar do lado dos rebeldes contra a escravidão. Dessalines teria dito que os poloneses

“são os negros da Europa”, e por isso os teria aceitado como aliados, poupando-os do

massacre aos brancos. Sem chegar a constituir um enclave cultural ou linguístico, a

prole da comunidade polonesa que ficou no país teria se africanizado, dissolvendo-se na

população negra local (Barthélemy 1989:120-1).

Logo após 1804, a comunidade mercantil blan com bases mais sólidas no Haiti

teria sido formada por emigrantes alemães. Sua influência teria sido conquistada através

de uma maior intimidade com as elites locais (inclusive com casamentos inter-raciais,

algo que seria mais raro, por exemplo, para emigrantes estadunidenses), do controle de

boa parte do comércio e do financiamento de golpes de Estado. Um dos objetivos da

Page 154: Construções do fracasso haitiano

142

ocupação de 1915 teria sido conter a influência germânica na região, no contexto da

primeira guerra mundial (Trouillot 1990:55, 100-2, Étienne 2008:162, 180 nota 27).

Essa influência teria passado a uma diáspora de origem sírio-libanesa, com base

nos Estados Unidos, que formaria uma nova elite comercial (Trouillot 1990:67, 98). No

índice temático, Trouillot chama essa leva migratória de “invasão síria” (idem:280).

Na luta por reconhecimento pós-1804, é sempre dito que os dois últimos países a

reconhecer a independência do Haiti, décadas depois da ex-metrópole França, foram os

Estados Unidos e o Vaticano. O ato fundador haitiano ganha contornos de “pecado

original” – enquanto a Igreja Católica consentia em ver escravidão como obra caridosa,

a existência do Haiti seria moralmente inaceitável. Apenas em 1860 é assinado um

acordo pelo qual o Estado haitiano vinha trabalhando há décadas. De um lado o

Vaticano reconheceria o Haiti como nação livre e civilizada, de outro a igreja teria

recebido a tarefa de pacificação de almas, o que significaria a inauguração de grandes

campanhas contra o vodu (Hurbon 1987:145). Esse reconhecimento tardio teria sido

altamente prejudicial à consolidação de um sistema educacional no país (Trouillot

1990:51). Wargny (2008:15, 85) acrescenta que a junta militar que derrubou Aristide –

ex-padre adepto da teologia da libertação, excomungado pela Igreja alguns anos antes –

em 1991 seria tão insuportável e anacrônica que a comunidade internacional se recusa

uninamemente a reconhecê-la, com uma exceção notável: o Vaticano.

A República Dominicana, vizinha que compartilha a mesma ilha, originalmente

uma colônia menos povoada e mais pobre que Saint-Domingue, tornou-se cada vez

mais rica em comparação ao Haiti. A história da relação entre os dois países é extensa e

contém episódios extremos, como o massacre da população haitiana que estava do lado

dominicano da fronteira, ordenado por Trujillo, em 1933. Hoje em dia, boa parte da mão

de obra barata consumida da República Dominicana viria do Haiti, como migração

Page 155: Construções do fracasso haitiano

143

sazonal, e haveria também uma grande população de origem haitiana estabelecida lá

(por exemplo Barthélemy 1989:42, Wargny 2008:63, Jadotte 2005:38).

Além de França, Estados Unidos e República Dominicana, parte significativa da

diáspora haitiana estaria no Canadá. Hérard Jadotte, que viveu vários anos em Montréal,

comenta bastante sobre a atuação desse país e sua política de ajuda. Os livros de

Étienne e Barthélemy também foram publicados no Québec, além de boa parte da

literatura utilizada pelos livros do Corpus. Parte considerável dessa produção é editada

pelo CIDIHCA (centre international de documentation et d‟information haïtienne,

caraïbéenne et afro-canadienne), que parece ser um dos mais articulados e ativos canais

de comunicação construídos pela diáspora haitiana.

Além de Estados nacionais, a atuação de entidades supra-nacionais como a

Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA) e

União Européia (EU), e de instituições financeiras como o Banco Mundial (BM) e o

Fundo Monetário Internacional (FMI) tem uma importância fundamental nos livros de

Fatton, Jadotte e Wargny. Vemos na literatura uma tendência geral no sentido de que,

quanto mais recente o texto e o assunto tratado por ele, maior é o papel que cabe a essas

diversas entidades. Embora elas não sejam do mesmo tipo, por vezes aparecem juntas

sob rubricas como a comunidade internacional, o imperialismo268

ou políticas estatais

impostas de fora.269

268

Mais l‟état calamiteux ne peut se réduire à l‟influence délétère d‟un puissant voisin [Estados Unidos],

fût-il cautionné par la communauté internationale au complet: l‟Union européenne, l‟ONU, les autres

instituitions internationales, la Banque Mondiale... Washington ne s‟est jamais soucié de guider un pays

sans intérêt vers la porte de sortie du sous-dévelopment. Acteur essentiel, l‟impérialisme n‟est pas

responsable unique. La « main » ou le « complot de l‟étranger » se combine à ceux d‟acteurs sociaux et

politiques d‟intérieur. Wargny 2008:97-8. 269

The emergence of this late-20th-century form of piracy is likely to spawn urban and rural discontent

as potential losers […] will organize to defend their interests against foreign-imposed state policies.In

such conflictive conditions the authoritatian temptation will resurface again, as the imposition of the SAP

[Plano de Ajuste Estrutural] will require political surrender to the dictate of international financiers, rule

through decrees, and the autocratic style of technocrats educated in the dogmatism of the World Bank

and IMF [Fundo Monetário Internacional]. Fatton 2002:125-6.

Page 156: Construções do fracasso haitiano

144

Voltando às histórias que os autores contam, o grau de independência que o

Haiti alcançou em sua história é objeto de debates. Se a expulsão das tropas francesas e

da comunidade branca foi bem sucedida em dar ao país autonomia política, a autonomia

econômica nunca teria sido alcançada. Assim, a independência não teria dado fim à

dominação estrangeira, mas simplesmente gerado uma migração de domínios, do

âmbito governamental (“público”) ao do comércio (“privado”), substituição de

dominação pela força por dominação financeira. Trouillot (1990:29) fala de um duplo

vínculo [double bind] vivido não só pelo Haiti, mas pelos governos de terceiro-mundo

em geral – um discurso nacionalista, geralmente sincero e muitas vezes feito com uma

postura messiânica contra os inimigos de fora (Trouillot diz que esse é o caso de

François Duvalier – os autores mais contemporâneos sem dúvida incluiriam Aristide),

seria obrigado a conviver com uma inevitável submissão econômica.

Mais uma vez, lembramos que essa distinção entre política e economia é uma

questão em si. Uma das acusações comuns às políticas do FMI é de que uma orientação

tecnocrática, levando essa distinção analítica longe demais e reorganizando economias

inteiras sob critérios supostamente apenas de eficiência econômica, esvaziaria a política,

transferindo tomadas de decisão dum âmbito público para o privado. Não entraremos

mais no assunto, pois ele é de ordem muito mais geral que o objeto dessa dissertação.

Tentaremos nos ater ao que diz respeito especificamente ao Haiti, como esses dois

critérios ou modos de organizar conceitualmente a realidade (economia e política) se

imbricam em sua história, como sua articulação ou separação são reivindicadas.

Trouillot atribui muita importância aos mecanismos de dominação financeira,

mas de forma alguma ele considera o âmbito do comércio como fechado em si mesmo.

Em sua reconstrução histórica do Haiti, ele argumenta que, sempre que era preciso

resolver alguma discórdia com o governo, comerciantes estrangeiros apelavam ao

Page 157: Construções do fracasso haitiano

145

arbítrio estrangeiro.270

Demonstrações de força de marinhas estrangeiras em águas

haitianas teriam sido um espetáculo recorrente ao longo de todo o século XIX e no

começo do XX. Esses grandes comerciantes também vibrariam com insurreições e

motins, que lhes permitiriam exigir – sob ameaça de uso da força – indenizações

desproporcionais.271

Assim Trouillot pretende mostrar como a busca de comerciantes

estrangeiros por lucro num ambiente como o Haiti do século XIX teria feito deles

poderosos vetores de desestabilização, envolvendo-se em intrigas políticas, lucrando

com o comércio de armas, financiando golpes de Estado e “revoluções”.272

Étienne traz um relato muito parecido sobre a lucratividade da instabilidade

política para comerciantes europeus, o que teria levado dirigentes haitianos a buscar

proteção dos Estados Unidos.273

As disputas entre as grandes potências podiam dar

alguma margem de manobra para as elites nacionais, que escolheriam suas alianças de

acordo com as necessidades do momento, assim como as lutas entre facções da elite

haitiana podiam ser vantajosas para as potências estrangeiras, pelos mesmos motivos.

O único lado que parece ter saído perdendo sempre com os conflitos é o #2

Haiti. A cada re-organização das finanças e das dívidas do Estado, a cada novo

270

The tradition of foreign nationals calling on their government‟s forces to settle disputes dates from the

Boyer regime. [...] The moral of the story is clear: the foreign trader has always operated in Haiti with

the assurance that he could call in a foreign power if necessary. When the protection of own power has

appeared doubtful or insufficient, he has not hesitated to seek the aid of another. Trouilot 1990:67. 271

Some merchants rejoiced at Haiti‟s many insurrections because they gave them numerous

opportunities to claim exorbitant damages from the state. Others committed arson, burning their own

stores and then claiming indemnities, and they were usually backed by their consulates. Idem:67. 272

Por exemplo: The French diplomat Maxime Raybaud wrote that at least seven of the British and

German merchants involved in political intrigues under Soulouque‟s regime were supplied with

protective consulships. And Raybaud, who reported these facts under cover of a pseudonym that allowed

him to denigrate the Haitian state and people, did not hesite to menace the government with his country‟s

naval might. He even went so far as to threaten Soulouque with an indeminity if Haitian stores in which

there was French merchandise were touched by thugs allegedly working on behalf of the government. The

history of trade in Haiti has thus been marked by the constant use of force by the agents of dependence.

With their metropolitan relations, they were able to put the state in a vise: profit on one side, the cannon

on the other. Moreover, their contempt for Haiti let them do it with a clean conscience. Profit and

contempt went hand in hand. Idem:67-8. Grifos originais. 273

Les intérêts des commerçants-consignataires européens, leurs réclamations pour être dédommagés au

cours des guerres civiles et les démonstrations de force navale de leur pays d‟origine, avaient porté

certains dirigeants à rechercher le soutien actif des États-Unis d‟Amérique. En fait, pour ces

commerçants, les émeutes populaires, les incendies, les insurrections et les guerres civiles étaient très

lucratifs. C‟est pourquoi ils les finançaient. Étienne 2007:138.

Page 158: Construções do fracasso haitiano

146

empréstimo e a cada novo imposto criado (muitas vezes sobre bens básicos de

consumo) para honrar as dívidas com credores internacionais, as massas haitianas

veriam seu trabalhando sofrer uma desvalorização contínua frente a uma vida cada vez

mais cara (Trouillot 1990:103), sem que isso se revertesse em melhorias de

infraestrutura, educação, saneamento, serviços, transportes etc. As duas acusações estão

intimamente conectadas – o Estado seria predador e/ou parasita na coleta de fundos por

ser mínimo na prestação de serviços.

Essas duas “falhas de caráter” do Estado estariam a serviço de desejos e

imposições de atores externos. No contexto pós-Duvalier, a principal crítica às políticas

das agências internacionais, com grande influência dos Estados Unidos, é que haveria

uma forte pressão para diminuir o tamanho do Estado. As chamadas políticas neo-

liberais teriam encontrado terreno fértil no Haiti, fortemente conectadas com as

acusações já comentadas de ausência do Estado e Estado mínimo (por exemplo, Hurbon

1986:21, Wargny 2008:119-20). Fatton, autor do Corpus que mais se dedica à análise

dessas políticas, afirma que o ideal do mercado puro aplicado ao Haiti é um convite ao

desastre econômico, político e social. A retração do Estado levaria à privatização de

funções tão básicas quanto a segurança. De forma geral, a indústria da segurança

privada tenderia a degenerar em indústria da violência privada. Isso geraria um mundo

hobbesiano de “guerra de todos contra todos”, uma descida rumo ao caos.274

Não haveria aí nada particularmente haitiano – essas reflexões se pretendem

aplicáveis a qualquer tentativa de democratizar sociedades em que a maioria da

274

To advocate the withdrawal of the state and the supremacy of the market in a country like Haiti is to

invite economic, political, and social disaster. […] the Haitian state is shrinking its institutional arena. It

is erasing itself through privatization to the best-connected bidders and through budgetary reductions; it

is becoming an irresponsible and unaccountable apparatus of protecting its citizens from violence,

poverty and disease. Its growing social and economic retreat may well cause a descent into chaos.

[…] In Haiti, the accelerated development of private security systems for the wealthy and the recent

wave of criminality – the Ziglendos phenomenon – affecting rich and poor alike, are the harbinger of a

Hobbesian world. By denying any meaningful sense of citizenship, the social and economic emasculation

of the state is generating a descent into a “war of all against all” […] The privatization of essential

functions […] has led to a proliferation of morbid symptoms. Fatton 2002:126-7.

Page 159: Construções do fracasso haitiano

147

população viva na miséria. Mais uma vez, a África é o principal horizonte comparativo.

A responsabilidade pelo desastre estaria, portanto, situada numa escala global.

Ajuda.

Ao descrever os mecanismos pelos quais a comunidade internacional

pressionaria países pobres a diminuir o Estado, Fatton cita a ajuda internacional.

Dádivas e ameaças se aproximariam – o país “presenteado” precisaria cumprir algumas

condições para “merecer” as doações. Um país economicamente dependente de doações

estrangeiras como o Haiti ficaria, portanto, refém desses critérios estabelecidos

alhures.275

O Haiti seria uma república de ONGs (Fatton 2002:29), e as ONGs, ao lado

do exército, seriam o principal meio por onde se fazia sentir a influência dos Estados

Unidos (idem: 39).

A ambiguidade que envolve a ajuda guarda algumas semelhanças com a

ambivalência histórica do Haiti frente à França. De um lado, é o pólo do

desenvolvimento, da modernidade, do conhecimento técnico, de projetos de cooperação,

fonte de dinheiro, de investimentos. Os doadores, pelo menos em seu discurso público,

pretendem combater a corrupção, difundir valores democráticos. Do outro lado, a ajuda

estimularia a dependência, atrofiaria a capacidade produtiva nacional em campos

essenciais, como a produção de alimentos, o que pode ser considerado ou como efeito

colateral acidental e indesejado ou como fruto de cálculos maquiavélicos que

atenderiam a interesses escusos. Assim, a indústria da ajuda internacional seria em si

275

In Haiti, foreign donors and their representatives have persistently threatened to withdraw their

support if Haitian institutions and politicians fail to submit to the stringent requirements of the SAP

[Plano de Ajuste Estrutural]. This is the process that transforms state administrators into “the pimps of

global capitalism”. For example, Michel Camdessus, managing director of the IMF [FMI], traveled to

Haiti to warm parliament of the dire consequences of rejecting privatization. He asserted that such a

rejection “would mean that the people are rejecting the support they need, support that the international

community sees as necessary for Haiti. It will mean that Parliament rejects these policies and this

support at a very heavy cost for the country”. Fatton 2002:126.

Page 160: Construções do fracasso haitiano

148

mesma um instrumento de exploração e chantagem, ao mesmo tempo em que, e eficaz

justamente porque, as esperanças de progresso dependeriam dela.

A aparição mais recuada do vocabulário da ajuda que encontramos está na

convenção assinada em 1915 entre a ocupação estadunidense e o novo governo haitiano,

que segundo Étienne seria uma fachada legal usada pelos ocupantes. Não aparecem

projetos, como no pós-segunda guerra, mas os Estados Unidos se comprometiam a

(artigo VIII) prestar sua ajuda eficaz pela preservação da independência haitiana e

pela manutenção de um governo capaz de proteger a vida, a propriedade e a liberdade

individual, além de (artigo XIII) ajudar o Haiti a explorar seus recursos naturais e

desenvolver um serviço sanitário adequado (citado em Étienne 2007:169-70).

Trouillot (1990:140) afirma que a partir de 1946, com o fim da segunda guerra

mundial, o Haiti se tornou palco de projetos de numerosas organizações internacionais,

governamentais e privadas, um fluxo de investimentos que teria trazido uma falsa

aparência de progresso. A construção de projetos cartões-postais nas cidades não teria

sido acompanhada por nenhuma melhoria significativa na infraestrutura do país. Os

indicadores mostrariam um declínio contínuo das condições de vida no campo, embora

a crise econômica viesse disfarçada de prosperidade pela nova presença de projetos e

missões, em geral de origem estadunidense, dos quais o país logo se tornaria

dependente.276

Algumas décadas mais tarde, o governo de Jean-Claude Duvalier teria

sido ajudado por uma invasão de funcionários da ajuda estrangeira, ligados aos

ministérios neocolonizados (idem:174), embora supostamente essa mão de obra

qualificada não tenha melhorado em nada a ineficiência do Estado, que no argumento de

Trouillot seria uma precondição estrutural para a manutenção do poder duvalierista

276

The parade of acronyms began in 1946: UNESCO, WHO and other branches of the UN, IIAA

(Institute of Inter-American Affairs), Point IV (Technical Assistance to Underdeveloped Countries), and

other U.S.-dominated programs, as well as a number of health and economic “missions”, burgeoned into

a presence whose indispensability would become obvious only later. Trouillot 1990:140.

Page 161: Construções do fracasso haitiano

149

(idem:175). A ajuda, particularmente dos Estados Unidos, e a corrupção, teriam se

tornado cada vez mais íntimas nos anos 1980s, quando milhares de dólares teriam

entrado direto para as contas da família Duvalier e de duvalieristas proeminentes sem

nunca entrar na economia haitiana, dando-lhes o poder de criar escassez da moeda

americana, concentrando-a em poucas mãos e agindo como banqueiros extra-oficiais

(idem:211-12).

Hérard Jadotte também data o fenômeno no fim da segunda guerra mundial.

Nessa época, o Haiti, de uma nação capaz de gerar ódios viscerais, em sua condição de

mau exemplo, teria passado, para os olhares estrangeiros, a um vazio de sentido próprio,

uma pobreza que não é nada além de um corpo sem alma que se oferece para a

caridade do Outro (Jadotte 2005:105). O paradigma da ajuda estaria totalmente

condicionado por uma percepção da pobreza segundo a qual quem vive na miséria só se

preocuparia com o próprio estômago e com suas necessidades imediatas. Cerca de 800

ONGs bem intencionadas estariam no Haiti tentando resolver tais problemas imediatos

(idem:113).

Contra o argumento clássico do neo-colonialismo, Jadotte oferece uma

explicação religiosa ao fenômeno: “fabricar” o pobre seria uma forma de conjurar “o

rebelde” e “o estranho”. Assim, o ato de caridade abriria as portas do paraíso para

quem se dedica a “salvar” o Outro (idem:116), deixando consciências limpas e

tranqüilas enquanto o conjunto da população pobre nunca alcançaria seu verdadeiro

objetivo: a liberdade e a democracia (idem:114). Nesse caso, a ajuda dita humanitária

não poderia fazer nada, pois esse tipo de demanda não estaria prevista em seu programa.

O enxame de ONGs presentes no país trabalharia com o pressuposto de que a

incompetência e corrupção do governo haitiano as autorizariam a trabalhar diretamente

com a população. Ainda que a constatação seja verdadeira (para Jadotte, certamente é),

Page 162: Construções do fracasso haitiano

150

o problema seria que, ao invés de constituir órgãos efetivos de representação política,

equipes estrangeiras de experts, na ânsia de resolver os problemas por seus próprios

meios, terminariam constituindo verdadeiros governos-fantasmas, como a agência

americana USAID.277

Isso tudo não seria um problema apenas da ajuda dos Estados

Unidos, do Canadá ou da Europa – o problema seria consubstancial à própria filosofia

da ajuda dita humanitária (idem:114). Assim, pior do que não ajudar, ela atrapalharia,

pois seus métodos de resolução de problemas bloqueariam o surgimento de novas

instituições, tornando os agentes locais dependentes de estrangeiros mais bem

equipados, dotados de uma logística própria, e cujas prioridades muitas vezes não

convergiriam com as locais.278

Na ausência de uma sociedade civil articulada no Haiti, a atuação tópica desses

agentes condenaria os embriões de uma possível futura sociedade civil a um

comportamento errático, não amadurecido, justificando assim, paradoxalmente, a

continuação do militarismo do Estado em nome da estabilidade.279

O fracasso haitiano

mostra que é urgente repensar radicalmente a ajuda humanitária que, longe de ser um

motor de novas relações Norte/Sul, reforça estruturalmente um etnocentrismo

internacional que pensávamos relegado à noite dos tempos (idem:122).

277

C‟est cette méconnaissance historique et culturelle qui permet à l‟Agence Américaine de

Développement (AID), avec um personnel de plus de cent soixante-dix (170) experts sur place, de

constituer en soi une sorte de gouvernment-fantôme (shadow-government), plus puissant, mieux informé

et plus efficace que les ministères haïtiens avec qui elle doit traiter. Jadotte 2005:114. 278

En monopolisant les fonctions d‟assistance directe, l‟aide dite humanitaire bloque l‟émergence

d‟institutions locales et nationales capable d‟aider, de répresenter, et d‟apprendre à représenter les

principaux groups sociaux. Elle va à l‟encontre de la construction d‟une société plurielle, dynamique,

suffisamment bien insérée dans le tissue social pour systématiser les revendications et la cohésion des

groupes sociaux non représentés dans l‟appareil politique et administratif. L‟aide dite humanitaire

aboutit donc à une dé-responsabilisation des groupes dirigeants, à une infantilisation des groupes

dominés, et se retrouve à être paradoxalement la meilleure alliée d‟un conservatisme étatique érigé en

système. Jadotte 2005:115. 279

Ajoutée à une simple assistance technique et matérielle (comme si le problème de l‟instauration d‟une

démocratie en actes, seul fondement maintenant, de la démocratie forme de gouvernement, était

principalement d‟ordre technique et matérielle !), l‟aide humanitaire dans sa forme actuelle condamne

les embryons de la société civile haïtienne à n‟avoir que des comportements erratiques, justifiant par la

même la permanence et l‟extension récente, au nom de la stabilité, du militarisme et du conservatisme

d‟État. Idem :118.

Page 163: Construções do fracasso haitiano

151

Nesse novo jogo de forças nas relações internacionais, com a crescente

importância da ajuda dita humanitária, países como o Haiti seriam meros pedintes,

excluídos do âmbito do “direito interpotências”. Nação-pária por excelência

(idem:105), o mais pobre entre os pobres do hemisfério, o Haiti seria também o mais

excluído. A marginalidade internacional seria, portanto, a grande questão da tragédia

haitiana, e sua perpetuação seria o motivo do fracasso da democratização no país.280

Haveria problemas internos, sem dúvida, mas esse sistema de apartheid internacional, o

isolamento do país, potencializaria as relações clientelistas, o sistema de violência

simbólica e efetiva – por isso mesmo, esse isolamento seria deliberadamente cultivado

por figuras como François Duvalier (idem:121).

Laënnec Hurbon é bastante crítico em sua descrição dos efeitos da ajuda.

Segundo o autor;

Parte substantiva da ajuda americana e internacional (Banco Mundial, Banco

interamericano de desenvolvimento) foi desviada pela família presidencial. Desde

os anos 1980s, a assistência internacional chega perto de 100 milhões de dólares

por ano, com prioridade para a agricultura, e trabalhos de infraestrutura em

segundo lugar. A deterioração da condição de vida camponesa será maior,

precisamente, durante o período em que aumenta a ajuda internacional. [...] A

política econômica prevista pela ajuda americana foi para a produção de gêneros

de exportação, que portanto tomaram o espaço dos gêneros de subsistência.

(Hurbon 1987:19-20).

Organismos de ajuda estrangeiros teriam decidido que o massacre dos porcos

kreyols seria a solução adequada para uma suposta peste suína (que Hurbon chama de

pretexto), quebrando assim a economia camponesa. Grandes quantidades de arroz

produzido nos Estados Unidos e doado ao Haiti seriam logo capturadas pelo governo

para revenda no mercado. Esse comércio teria arruinado os plantadores de arroz do

Artibonite (uma província pouco montanhosa, no oeste do Haiti). Para conter a crise,

agências americanas de ajuda distribuíram alimentos aos camponeses. Mas não era

280

La sortie ou la continuation de la marginalité internationale constitue, en effet, le véritable enjeu de la

tragédie haïtienne. En ce sens, ce drame ne concerne pas seulement les Haïtiens, mais également tous

ceux qui posent l‟exigence démocratique à l‟échelle internationale, et qui refusent la forme d‟aparthaid

qu‟instaure dans les faits cette forme de marginalisation. Idem :107.

Page 164: Construções do fracasso haitiano

152

isso que eles pediam (idem:21). O #1 Haiti seria o real beneficiário da ajuda, enquanto o

#2 Haiti seria lesado por ela. As primeiras “revoltas da fome” [émeutes de la faim, food

riots], cujas primeiras versões foram registradas em 1984 e 85, no pós-1986 teriam se

tornado uma ameaça ao governo de transição, ainda cheio de reflexos de makoutismo,

tensão que teria culminado em eventos trágicos como o massacre de 300 camponeses

na região de Jean-Rabel (idem:20,21).

Wargny também afirma a importância da ajuda, principalmente dos Estados

Unidos, para Baby Doc. Com essa ajuda, Jean-Claude teria alcançado excelência na

prática do esporte nacional desde 1804 que é o desvio de dinheiro público (2008:69).

Em 1997, mais da metade do orçamento haitiano viria da ajuda internacional, tornando

o país completamente dependente e refém das intimidações para privatizar e reduzir o

espaço do Estado, feitas por gente como Bill Clinton e Jacques Chirac (idem:128).

Quando desapareceu a ajuda internacional pública (encabeçada pela União Européia),

da qual o Estado haitiano seria totalmente dependente, teria ficado a contribuição vital

mas incontrolável dada por centenas de ONGs. Ajuda e cristianização também viriam

juntas, com a presença maciça de seitas religiosas [geralmente protestantes e

estadunidenses] mais proselitistas que interessadas no progresso (aí é preciso tirar o

chapéu para as ONGs européias, frequentemente menos arrogantes e mais laicas).

Para todas elas [seitas e ONGs], o Haiti constitui um faroeste: cada uma delimita seu

território, seus modos de ação, de intervenção (idem: 144).

No Corpus, como um todo, há uma ambivalência – a ajuda é necessária, mas faz

mal. Wargny é quem mais reconhece o valor de trabalhos de ONGs que, na opinião

dele, fazem um trabalho sério e competente. Mas, num nível geral, Wargny condena a

ajuda, assim como Trouillot, Hurbon, Fatton e Jadotte. Um provérbio africano (que

numa lógica culturalista pode vir como um exemplo de “sabedoria popular”), que serve

Page 165: Construções do fracasso haitiano

153

de epígrafe a Jadotte (2005:113), ilustra bem a atitude geral de desconfiança frente à

dádiva estrangeira que encontramos na literatura: Se a troca equivale a um presente, que

cada um guarde o que lhe pertence. Provérbio Mossi (África).

Considerações finais.

Nesse capítulo, nossa intenção foi mostrar a quem a literatura atribui a culpa

pelo desastre haitiano. “O povo”, “a elite” e “a comunidade internacional” teriam

parcelas de culpa distribuídas de forma desigual segundo cada autor, mas o que é

comum a todos é a construção dessas grandes unidades, uma articulação dos fatos numa

lógica de sujeitos coletivos que coloca os termos dentro dos quais cada um se posiciona.

Vimos que desde 1804 o Haiti teria sido construído com uma população muito

pouco escolarizada. Competência técnica, logística, bons equipamentos, capacidade de

investimento – tudo viria de fora, e no fim, tudo voltaria para fora.

Essa relação entre dentro e fora se replica em pelo menos dois níveis, Haiti (lado

de dentro) e resto do mundo (lado de fora), #2Haiti (dentro) e #1Haiti (fora). Os termos

podem ser invertidos, como quando o Haiti é descrito como um país fora do mundo, ou

o campesinato como fora da comunidade nacional – mas essa inversão altera pouco ou

nada o resultado. Independente do que se convencione chamar de dentro ou fora, há

uma sequência de ausências (-) de um lado, antítese dos índices de progresso (+)

encontrados do outro. Geralmente encontramos localizado no mundo blan o pólo (+) em

relação ao Haiti, assim como no #1 Haiti em relação ao #2 – cada qual em sua escala,

são os pólos do progresso (e de outros termos que costumam acompanhá-lo como

desenvolvimento, crescimento, modernização além de idéias cujo parentesco é menos

óbvio mas ainda assim fica muito claro no Corpus, como democracia e liberalismo).

Page 166: Construções do fracasso haitiano

154

Todas essas palavras são objetos de polêmicas, suas definições estão cercadas de

disputas. Mas não é só do desacordo conceitual que vem a ambiguidade – ela

geralmente está presente mesmo com uma única definição. É que, ao mesmo tempo em

que o progresso seria a única esperança, sua busca seria também uma fonte de

desgraças.

A escravidão, desgraça prototípica, já continha essa ambiguidade – organização

da produção em larga escala, geração de imensas riquezas, apoiadas sobre um sistema

brutal de exploração. O dilema econômico original com o qual se debateram as

primeiras lideranças do Haiti independente –“como reproduzir a riqueza de Saint-

Domingue sem sua escravidão?”– guarda semelhanças com questões contemporâneas.

A tragédia haitiana, tal como descrita no Corpus, passa sempre por uma necessidade

urgente de melhoria material, dependente do exterior (tanto no nível quanto

internacional) e, ao mesmo tempo, recusa do domínio exterior que tenta se impor,

ameaçando a própria soberania do país.

O Haiti estaria num impasse.

Page 167: Construções do fracasso haitiano

155

Conclusão.

Nossa proposta foi identificar, a partir de um pequeno conjunto de autores, os

pontos em torno dos quais se estruturam uma multiplicidade de argumentos sobre a

“tragédia” haitiana. Tentamos nos manter sempre fiéis ao que eles originalmente

queriam dizer, mas, ao mesmo tempo, propor uma grade de inteligibilidade que não está

em nenhum deles. Esperamos que o esquema apresentado seja válido para um número

muito maior de textos.

No primeiro capítulo abordamos a forma como o tempo aparece nas narrações,

fornecendo ao mesmo tempo um panorama histórico, diacrônico, e esquemas de eficácia

permanente. Esse tipo de estrutura (a)temporal, de feições mitológicas, aparece com

uma constância infalível – diferentes genealogias são propostas para cada questão,

mescladas com misturas de temporalidades que, de certa forma, suspendem as

especificidades para mostrar, num grau de abstração mais genérico, permanências,

inércias e repetições.

No segundo capítulo, vimos os problemas de integração, a dinâmica entre

Unidade desejada e Divisão constatada. Essa divisão gera resultados diferentes de

acordo com o critério de separação proposto, mas seu resultado típico é sempre dois. O

conflito entre os dois Haitis se manifesta em diversas modalidades (linguística, de

orientação política, de classe, de cor/raça, geográfica, religiosa...), e é uma relação

sempre hierárquica. Não acreditamos que seja necessário buscar em qualquer dos

dualismos uma matriz original a partir da qual os outros seriam derivados (ainda que

haja hipóteses tentadoras, como a dicotomia entre civilização e barbárie, muito bem

explorada na obra de Laënnec Hurbon, e a divisão entre senhores e escravos, base do

mito de origem do Haiti). A discussão sobre o que seria ou não divisão original ou

Page 168: Construções do fracasso haitiano

156

derivada cabe ao tipo de literatura que queremos analisar sem encampar uma ou outra

posição. Antes, parece-nos que nas sucessivas transformações de um registro ao outro,

uma série de analogias rapidamente disparadas associa pares de idéias que, em outro

contexto, poderiam não ter nada em comum. Cada divisão, quando postulada, possui

consequências específicas, que tentamos explorar. De qualquer forma, a ausência de um

“meio comum”, formulada de diversas formas, é sempre parte essencial da utopia (como

as coisas deveriam ser) e do “fracasso haitiano” (como as coisas supostamente são), tal

como construído pelos autores do Corpus.

No terceiro capítulo, começamos trazendo para o domínio econômico problemas

já formulados em outro registro. Partimos do dilema original discutido pelos autores,

situado na relação entre abolição da escravidão e o rápido empobrecimento do Haiti

independente em relação à colônia de Saint-Domingue, para analisar as supostas origens

ou causas para o empobrecimento contínuo (ou o não-desenvolvimento) do país. Os

termos do debate criam um campo de posições que funciona atribuindo predicados a

“sujeitos coletivos”. Nos argumentos da literatura, identificamos três principais: “o

povo”, “a elite” e “as grandes potências”. Tentamos também evidenciar a construção

conceitual subjacente a cada um desses agentes coletivos.

Lidamos exclusivamente com material sobre o Haiti, a maioria produzido por

autores haitianos, na intenção explícita de nos abster de discussões de maior amplitude.

Mas, obviamente, noções como “povo”, “elite”, “comunidade internacional”, bem como

as respectivas atribuições de culpa, também funcionam em outras mitologias nacionais

(ou estaduais, regionais, municipais, continentais etc., guardadas as devidas

proporções). A crítica dos supostos problemas de integração, de que tratamos no

segundo capítulo, certamente poderá ser encontrada também entre intérpretes de outras

nações. É difícil saber com precisão até que ponto o que encontramos nas formas de

Page 169: Construções do fracasso haitiano

157

falar sobre “o Haiti” seria válido para outros países, questão que ultrapassa as intenções

desse trabalho. Mas é preciso admitir, pelo menos como hipótese, que alguns dos

dilemas haitianos talvez sejam bem pouco especificamente haitianos.

Para começar, a própria história marcada por lutas entre facções, golpes e

assassinatos de chefes de Estado pode ser comparada a como o processo de

independência e construção nacional aconteceu em países como México, Argentina,

Uruguai, Cuba... A crítica de que o Haiti não era a nação unitária que supostamente

deveria ser dificilmente menciona que, quase ao mesmo tempo, países tão “ocidentais”

quanto os Estados Unidos e a Itália viviam problemas de integração tão graves que

chegaram à deflagração de guerras civis. O horizonte comparativo do Corpus não são os

Estados nacionais cujo processo de formação foi mais ou menos contemporâneo, mas os

países da África pós-colonial, cuja independência é muito mais recente.281

Assim o Haiti

aparece na literatura como um tipo África transplantada, fora de lugar e fora do tempo,

sem par, um país excepcional.

Sem questionar a originalidade histórica da revolução haitiana, há sem dúvida

processos de ordem mais geral. Em primeiro lugar, a construção de sujeitos coletivos

(como, por exemplo, “o povo haitiano”) é uma operação conceitual muito generalizada

281

O principal denominador comum provavelmente é a miséria contemporânea, medida através de uma

multiplicidade de indicadores de renda, saúde, educação, violência, segurança alimentar etc. A lógica dos

indicadores propõe uma leitura mensurável da realidade, que por sua formulação mesma indica aquilo que

precisaria melhorar, aonde devem acontecer intervenções, o que delimita o campo da governabilidade.

Uma vez estabelecidos tais parâmetros, o Haiti aparece como um país ingovernável (ou, no mínimo,

ingovernado), sem Estado.

É importante notar que esse tipo de acusação não pesa apenas sobre o Haiti. Como exemplo, citamos

um artigo de Jeffrey Herbst e Greg Mills publicado na revista Foreign Policy, chamado There is no

Congo – Why the only way to help Congo is to stop pretending it exists. O texto começa assim: The

international community needs to recognize a simple, albeit brutal fact: The Democratic Republic of the

Congo does not exist. All of the peacekeeping missions, special envoys, interagency processes, and

diplomatic initiatives that are predicated on the Congo myth -- the notion that one sovereign power is

present in this vast country -- are doomed to fail. It is time to stop pretending otherwise.

Congo has none of the things that make a nation-state: interconnectedness, a government that is able

to exert authority consistently in territory beyond the capital, a shared culture that promotes national

unity, or a common language. Instead, Congo has become a collection of peoples, groups, interests, and

pillagers who coexist at best.

Disponível em: http://www.foreignpolicy.com/story/cms.php?story_id=4763. Último acesso em 4 de

outubro de 2009.

Page 170: Construções do fracasso haitiano

158

e aparentemente condição sine qua non para a existência dos mais diversos

nacionalismos. Ela pressupõe, ao mesmo tempo, homogeneidade entre os indivíduos

que supostamente são parte de um mesmo “povo”, e heterogeneidade em relação a

“outros povos”. Ao mesmo tempo em que a suposição dessa homogeneidade interna /

heterogeneidade externa descreve comportamentos ou “traços culturais”, ela também os

prescreve. Como prescrições, são também utopias.

A partir de então, a heterogeneidade interna se torna um problema que

demandaria explicação. Parece-nos altamente provável que variações dessa questão (que

Herzfeld 1992 explora a partir do conceito weberiano de teodicéia) apareçam em

literaturas que se propõe a interpretar outras nações. A constatação parte da leitura de

Neiburg (1995) sobre intérpretes do peronismo e da Argentina, onde há uma

convergência impressionante com alguns dos temas que encontramos a respeito do

Haiti.282

A tese dos dois Brasis também já foi desenvolvida por vários autores do

chamado “pensamento social brasileiro”. Desconhecemos como se formulam os

supostos dilemas de outras nações, mas não devemos nos surpreender caso encontremos

alhures a mesma tese dos dois países (um oficial, outro à margem), muito conectada à

construção de sujeitos coletivos como “o povo” e “a elite”. Temas como o

“imperialismo”, a “ajuda internacional”, empréstimos e dívidas, “transição

democrática”, o “neoliberalismo” também possuem uma enorme abrangência. O mesmo

vale para os esquemas de eficácia permanentes, que Lévi-Strauss originalmente remeteu

à história da revolução francesa. Talvez esse tipo de leitura (a)histórica exista em todos

os mitos de origem nacionais.

282

Falando sobre como alguns intelectuais reliam a história argentina a partir da oposição entre peronistas

e antiperonistas, Neiburg (1995:265) diz que os autores em questão discutiam sobre um suposto estado

permanente de crisis, de falta de integración, motivado por la oposición entre dos Argentinas. [...] Una

Argentina era visible, urbana, moderna, cosmopolita, ligada al mercado mundial por medio de la

metrópoli de Buenos Aires. La otra era oculta, rural, tradicional, ligada al mercado interno y su máxima

expressión eran las provincias del interior del país. [...]

Page 171: Construções do fracasso haitiano

159

Com nossas atenções voltadas exclusivamente ao caso do Haiti, tentamos

mostrar como funciona uma constelação específica de temas que, na literatura, está

destinada a explicar o “fracasso”, o desenrolar trágico dos acontecimentos pós-

independência, porque o país se tornou tão pobre, porque todas as tentativas de

modernizar, democratizar e desenvolver parecem falhar miseravelmente. Nesse

percurso, dedicamos muito mais espaço às perguntas que às respostas, a descrição dos

problemas que das possíveis soluções, em parte porque assim o fazem também os

autores em questão, mas, além disso, porque parece-nos que a própria forma como as

perguntas estão formuladas já contém, implícitas em si mesmas, as respostas. Há um

consenso de fundo entre todos os autores de que o Haiti deveria se tornar um país mais

desenvolvido, moderno e democrático. O dissenso está na definição do que significam

termos como desenvolvimento ou democracia. Dar sentido a essas palavras, que todos

reconhecem como desejáveis, é também indicar os caminhos que o país deveria seguir.

O engajamento que encontramos nos textos, a vontade de mudar a realidade e as

receitas para como fazê-lo, passam muito por aí.

Mesmo Gérard Barthélemy, o autor mais desconfiado e ambíguo quanto ao valor

do desenvolvimento, explicita logo nas primeiras páginas de seu livro que escreve do

ponto de vista de um desenvolvedor. Ao reconhecer a positividade de uma cultura anti-

desenvolvimentista no #2 Haiti, o autor propõe que seria preciso acabar com a

exterioridade do Estado para colocá-lo a serviço do povo, para criar a União, o Um

(termo aparentemente emprestado de Pierre Clastres), por uma síntese afro-ocidental

das duas culturas, créole e bossale (Barthélemy 1989:187).

Robert Fatton Jr., autor que mais se dedica a discutir concepções de democracia,

constrói todo seu argumento em torno da crítica ao que ele chama de democracia

predatória. Partindo de uma avaliação positiva das grassroot organizations, ele

Page 172: Construções do fracasso haitiano

160

considera que só a partir desses movimentos de base, populares, é que se poderia

construir uma democracia merecedora do nome (nesse sentido muito parecido às

propostas de Jennie Smith 2001).

Sauveur Pierre Étienne está no pólo oposto. Sua descrição dos chamados

movimentos populares os trata como mais uma fonte de relações clientelistas,

populistas, demagógicas, organizadas sobre bases não-modernas tais como vizinhança

ou religião, o que as tornaria inimigas da democracia. Sua mobilização seria um vetor

contra a estabilização nacional, e se há algum conteúdo nas diversas revoltas e protestos

que ele registra, é a pura busca pelo poder e ganho pessoal da parte de quem os

promove. Assim, igualmente desejando a democracia para o Haiti, Étienne a coloca em

termos de uma coalização ou um pacto entre as elites, o reconhecimento mútuo entre os

líderes, que deveriam disputar apenas nas urnas, respeitando as regras do jogo, sem o

apoio de grupos armados ou de organizações populares vinculadas a personagens

carismáticos.

Laënnec Hurbon coloca-se em termos um pouco diferentes, em sua forte crítica

da história intelectual haitiana e anti-haitiana (blans que escreviam para desmoralizar o

país). Mas, politicamente, a julgar pelo prefácio que ele fez ao livro de Étienne, Hurbon

compartilha plenamente as opiniões desse autor.

Em Hérard Jadotte, a questão é ambígua. Interessantemente, a coletânea junta

artigos de diferentes momentos. As organizações populares, especialmente os

movimentos católicos de base (2005:110, 117), são elogiadas como forças essenciais na

luta contra a velha opressão duvalierista. Depois, um suposto revanchismo contra a

velha ditadura é atacado como anti-democrático, e Jadotte denuncia a falsa dicotomia

makout / anti-makout. Assim, o autor passa de problemática da revolução [pós-

Duvalier, fim dos anos 80] à problemática da democracia [cena política dominada por

Page 173: Construções do fracasso haitiano

161

Aristide e pelo movimento Lavalas, que seriam profundamente anti-democráticos por

seu suposto voluntarismo e aversão à política institucional]. Se nossos traços culturais

mais profundos são um suposto costume de fazer tabula rasa da história, de cada novo

regime tentar extirpar qualquer vestígio do último, o ideal dali em diante seria, ao

contrário, uma conciliação, um pacto. Seria preciso criar e cultivar uma esfera pública,

terreno por excelência da integração. Só assim poderíamos assistir ao nascimento da

sociedade haitiana e construir a verdadeira democracia, que ele qualifica como liberal

(adjetivo que, contudo, considera neutro e opõe a adjetivos marcados, associados ao

movimento Lavalas).283

Jadotte coloca-se assim contra a suposta tentativa de Aristide de

construir o que ele chama de uma república plebiscitária.284

Por fim, em Trouillot a questão haitiana seria a questão camponesa. Embora

crítico da modernização, que, segundo ele, em todos os ramos – eletricidade, construção

civil, transportes – acentuou disparidades (1990:210), o autor afirma a necessidade de

organizar melhor a produção e os recursos econômicos. Seu argumento vai contra a

concentração de renda e de poder, de representação política, mas não contra a

modernidade ou o desenvolvimento por si mesmos. A solução seria então integrar esse

campesinato, criar mecanismos por meio dos quais “o povo” (ou, em seus termos, a

283

Précisons plus encore, nous sommes sur la voie de construction d‟une démocratie sans adjectif : ni

populaire, ni participative. Cela veut dire d‟abord et avant tout une démocratie libérale avec comme

caractéristique fondamentale, le respect par tous les pouvoir des libertés individuelles (Jadotte

2005 :243-44), ou seja, le respect de l‟individu et de chaque individu, dans son intégrité, dans sa sûrete/

securité, dans la propriété, dans son intimité (idem : 240). 284

Cf. a resenha de Slavoj Zizek (que leva o significativo título de Democracy versus the people) ao livro

Damming the flood – Haiti, Aristide and the politics of containment, de Peter Hallward. (A palavra

lavalas em haitiano é traduzida em inglês como flood.) Após narrar brevemente a “história rebelde do

povo haitiano” (desde 1804...), Zizek a conecta a acontecimentos contemporâneos: The story goes on

today. The Lavalas movement has won every free presidential election since 1990, but it has twice been

the victim of US-sponsored military coups. Lavalas is a unique combination: a political agent which won

state power through free elections, but which all the way through maintained its roots in organs of local

popular democracy, of people’s direct self-organisation. Although the “free press” dominated by its

enemies was never obstructed, although violent protests that threatened the stability of the legal

government were fully tolerated, the Lavalas government was routinely demonised in the international

press as exceptionally violent and corrupt. The goal of the US and its allies France and Canada was to

impose on Haiti a “normal” democracy - a democracy which would not touch the economic power of

the narrow elite; they were well aware that, if it is to function in this way, democracy has to cut its links

with direct popular self-organisation. Meus grifos. Texto disponível em:

http://canadahaitiaction.ca/?p=105. Último acesso em 8 de fevereiro de 2010.

Page 174: Construções do fracasso haitiano

162

nação) possa ter acesso às instâncias de decisão, e consiga ter formas legítimas de

expressar suas vontades e insatisfações frente ao Estado. Sua “solução” é parecida com

a de Fatton (que se apóia bastante em seus textos), embora Trouillot escreva em um

momento bem anterior.

No Corpus de forma geral, e especialmente em Jadotte e Étienne, encontramos

uma oposição entre moderno, laico e institucional de um lado, e religioso, supersticioso

e messiânico do outro. O primeiro funciona como o critério segundo o qual a realidade

haitiana, no outro pólo, é julgada e condenada. Em Étienne e Lundhal há uma

associação muito forte e explícita entre a idéia de modernidade, a Europa e os Estados

Unidos, como lugares onde existiria o respeito à diversidade, tolerância com opiniões

diferentes, liberdade de mercado e racionalidade econômica. Por contraste, o Haiti

aparece ligado ao atraso, à demonização dos adversários (mesma idéia de tabula rasa

que Jadotte considera o defeito cultural mais profundo e que faz Wargny considerar

como movidas pelo mesmo impulso a déchoukaj anti-duvalierista do fim do século XX

e as revoltas escravas do século XVIII), à tirania, ao despotismo, à improdutividade e

relações parasitas (neopatrimoniais nos termos de Étienne) na qual o Estado suga todas

as energias do povo sem oferecer nada em troca, à África. A acusação de que, na época

de seu nascimento, o país seria dominado por laços tribais, indica que a “tribo” seria

uma unidade de curto alcance, pouco pública, portanto anti-moderna. A oposição entre

público e privado baliza o debate, e supostamente a construção de uma vida pública

seria a solução, ainda que a definição do que é público varie bastante (não temos mais

tempo para isso, mas seria interessante analisar as flutuações de sentido de termos como

“sociedade civil organizada”, “organizações populares”, “terceiro setor”, etc.)

Page 175: Construções do fracasso haitiano

163

Em todo caso, vemos como a descrição dos fenômenos opera por ausências em

oposição a uma suposta presença plena, invariavelmente situada em países ricos,

daquilo que deveria existir, mas não existe no Haiti.

Ao delinear esse campo discursivo, não tivemos a intenção de denunciar o fato

de que esse pensamento funciona por estereótipos (especialmente na construção das

unidades de análise tratadas no último capítulo), como se se tratasse de uma invenção

inócua de imaginações férteis. Muito pelo contrário, os estereótipos são criativos (como

argumentou Michael Herzfeld 1992). Convenções de auto-representação coletiva

possuem efeitos, há diversas formas de pressão e incentivo para que comportamentos se

aproximem dos estereótipos. Tais convenções, portanto, são altamente instrumentais,

pois fornecem possíveis bases sobre as quais reivindicações e críticas podem se tornar

legítimas para uma dada comunidade. As mais eficazes são as mais convincentes,

aquelas nas quais as pessoas mais se reconhecem, as mais compartilhadas. Esse ponto é

importante para pensar como o campo discursivo que analisamos pode se articular com

questões de outra ordem (técnica, política, orçamentária, legal, publicitária etc.),

reflexão que já ultrapassa em muito nossas forças e que apenas poderemos esboçar nos

limites deste trabalho.

Vejamos muito brevemente, a título de exemplo e como convite ao

desenvolvimento de pesquisas futuras, como algumas idéias sobre os dilemas haitianos

apareceram na experiência de campo, como alguns dos temas levantados a partir do

Corpus circulam fora da elite letrada. Em uma oportunidade eu entrevistava Messiê

Aubin, vendedor de livros no mercado de Jacmel, tentando cruzar sua trajetória pessoal

com eventos como a queda de Duvalier, a ascenção e queda de Aristide, a invasão dos

Estados Unidos e a chegada das tropas da ONU. Aubin respondia a todas as minhas

perguntas com a mesma indiferença. Duvalier, só conheceu o filho: ele foi um ditador.

Page 176: Construções do fracasso haitiano

164

Já Aristide, ele foi eleito, duas vezes. Votei nele, da primeira vez. Depois ele estragou

tudo, perseguiu os estudantes, pessoas foram mortas. Mas não foi culpa dele, eu não o

culpo. As coisas sempre dão errado por aqui. Eu perguntei, como assim? Ele explicou

como quem fala com uma criança que não entende. Esses políticos que você está me

perguntando, já vi muitos deles entrarem e saírem. O que você precisa entender é que o

Haiti é um país de selvagens. As pessoas não têm o que comer. E quando você tem fome

e não tem nada para comer, isso te transforma num selvagem. Não importa quem esteja

no governo, enquanto as pessoas não tiverem o que comer, nada vai mudar isso.

Enquanto vestia “seu povo” em uma acusação antiga, Aubin revertia o que alhures

aparece como transcendência para uma questão bem imanente. Ninguém nasce

selvagem, é a fome que os fabrica. Consequentemente, não se abandona esse estado

lendo livros em francês, mas, simplesmente, tendo o que comer.

A grande narrativa que vimos no Corpus não é de forma alguma privilégio

exclusivo da elite letrada. Há episódios da história da revolução haitiana amplamente

conhecidos e debatidos, que, mais uma vez funcionando simultaneamente como

discursos sobre o passado, o presente e o futuro, podem se prestar a muitos usos. Um

caso impressionante para mim foi uma conversa que tive com Brother Frantz, um jovem

protestante. Ele me contou da cerimônia de Bois-Caïman (1791), na qual um porco teria

sido sacrificado em ritual vodu, e os escravos presentes teriam planejado a insurreição

generalizada e a guerra contra a escravidão. Segundo Brother Frantz, o que aconteceu

então foi um pacto com o demônio. Embora reconhecesse a importância do evento, ele

julgava que acabar com a escravidão daquela forma havia amaldiçoado o país até o

presente. Veja os Estados Unidos, eles sempre estiveram com Jesus Cristo, e hoje são o

país mais poderoso do mundo. Veja a República Dominicana, eles ficaram com Jesus, e

hoje estão muito melhor do que nós. O Haiti nasceu de um pacto com o demônio, é por

Page 177: Construções do fracasso haitiano

165

isso que os diabos [diab la] são tão fortes por aqui hoje em dia, é por isso que estamos

nessa miséria agora. É por isso que devemos voltar ao senhor Jesus Cristo. Brother

Frantz era um garoto de uns vinte anos, muito mais escolarizado que a média,

inteligente e muito crítico das intervenções de que o Haiti tem sido objeto nos últimos

anos. Enquanto muitas pessoas evitavam citar a MINUSTAH em conversas comigo,

Frantz dizia abertamente o que pensava (o que inclusive lhe valeu reprovações de seus

amigos, feitas em minha presença, de que ele não deveria discutir aquilo com um blan,

muito menos brasileiro). Colocando sua fala no contexto, sua narrativa do mito de

origem do Haiti como um pacto com o diabo diagnosticava um problema ao mesmo

tempo em que apontava a solução. A natureza divina da solução proposta por ele se

contrapunha às soluções terrestres. Creio que, ao dizer que o Haiti precisava de Jesus,

Frantz me dizia também que não precisa da ONU nem de nenhuma intervenção apoiada

por exércitos estrangeiros. No limite, não precisaria nem mesmo dos abundantes grupos

missionários dos Estados Unidos que atuavam na região, e que eu o ouvi criticar em

outra oportunidade, argumentando que não via porque aquelas pessoas que vinham

cristianizar o Haiti pensavam ter uma ligação com Deus mais intensa que ele ou seus

colegas de igreja e de estudos bíblicos. É aí que podemos apreciar suas tomadas de

posição ao afirmar que o Haiti não precisava de nada daquilo, mas apenas de Jesus

Cristo, que ele concebia como uma força superior acessível a qualquer pessoa que lesse

e estudasse a bíblia.

No campo, o paradigma da ajuda mostrou-se muito predominante nas relações

entre blans e aysiens. A idéia de ajuda traz algo que parece voluntário, opcional.

Lucson fazia “trabalho voluntário” em uma missão protestante, por vezes passava mais

de dez horas seguidas cozinhando para as sucessivas turmas de missionárias e

missionários estadunidenses (cada turma passava cerca de duas semanas na região). Ele

Page 178: Construções do fracasso haitiano

166

me contou que pagava para comer na missão, pagava pela comida que passara o dia

inteiro cozinhando, o que me parecia um absurdo. De onde ele podia tirar dinheiro para

pagá-la? Embora trabalhasse muito, Lucson não tinha emprego remunerado. Tive pelo

menos parte da resposta quando eu estava em um cybercafé e Lucson me pediu para

checar e-mails, e que eu traduzisse o que as pessoas estavam lhe escrevendo (algumas

mensagens estavam em inglês, e ele não entendia). Todas as suas correspondências, sem

exceção, tinham como tema principal o envio de dinheiro, de ajuda. Ele me pediu para

escrever algumas respostas, agradecendo a quem ajudava (frases do tipo tem gente que

só diz que vai ajudar mas nunca manda um centavo, você sim é sincero e gosta de nós),

reforçando o pedido a quem ainda não tinha ajudado. Seu trabalho voluntário gerava

uma dívida, mas uma dívida ambígua, opcional, que ao ser conceitualizada como ajuda

permite jogar para o campo da generosidade desinteressada a sobrevivência alheia.

Lucson sabia disso, e mobiliza como podia os estereótipos para conseguir o dinheiro de

que precisava. Por exemplo, quando aparecia uma missionária de Israel ou da Áustria,

que falava uma língua diferente, ele se interessava em aprender frases no novo idioma, e

as duas primeiras frases que ele perguntava eram sempre as mesmas: como se diz “eu

estou com fome” na sua língua? E “eu estou com sede”? Ele me perguntou o mesmo,

aprendeu a dizer isso em português, repetiu a frase muitas vezes, inclusive logo após

fartas refeições quando vinha me dizer Felipe, eu estou com fome, rindo e acrescentando

em kreyol algo como está vendo como eu aprendi bem a sua língua?

De uma forma geral, é muito comum encarar blans como possíveis fontes de

recursos. Por exemplo, uma vez eu andava a caminho de casa quando fui parado por um

homem que eu nunca tinha visto. Ele veio me dizer que no seu bairro havia muitas

crianças órfãs. Então tirou do bolso um papel já velho, que parecia estar no seu bolso há

muito tempo, com umas poucas linhas escritas em francês, sobre o plano de construção

Page 179: Construções do fracasso haitiano

167

de um orfanato. Ele queria que eu financiasse esse projeto, através de meus contatos

com embaixadas – sendo blan (ele não me conhecia, eu era um blan qualquer) parecia-

lhe óbvio que eu tivesse tais contatos. Talvez seja anedótica demais a imagem de um

homem que anda trazendo em seus bolsos, sabe-se lá há quanto tempo, um projeto de

orfanato (e, portanto, um projeto de recursos para construção de um orfanato), escrito

numa língua que ele compreende mal, caso encontre algum blan no seu caminho. Mas,

com certeza, ele não é o único.

Assim, as pessoas se auto-miserabilizam frente ao olhar estrangeiro, devolvendo

a imagem que lhes foi projetada, como se tivessem lido o próprio Cristophe Wargny.

Isso não significa de forma alguma que a miséria não seja real, mas sim que as pessoas

jogam com os estereótipos para conseguir o que querem, e geralmente de uma forma

muito consciente e astuta. Para nós, o desafio que se coloca daqui em diante é como

descrever essa lógica em sua positividade. Como não tratar as pessoas como apenas

miseráveis, desprovidas de tudo, esperando a boa vontade alheia, sem minimizar com

isso a terrível realidade da miséria, da desigualdade, da fome. Como descrever as

estratégias em jogo, tanto da parte de blans quanto de aysiens? Como abandonar

parâmetros normativos de outras realidades, como prestar mais atenção à forma como as

coisas acontecem do que a como elas deixam de acontecer? Sem dúvida, há muita coisa

acontecendo. A idéia de que “eles não tem nada” está equivocada – no mínimo, eles tem

o nosso estereótipo a respeito da ausência total, e sabem usar isso a seu favor.285

Em janeiro de 2010, quando essa dissertação já estava quase concluída, um forte

terremoto destruiu boa parte de Porto Príncipe e Jacmel (não temos muitas notícias

285

Assim como blans também sabem. Por exemplo, a ONU possui uma classificação da segurança das

regiões onde seus funcionários são lotados. Trabalhar na “zona vermelha” (supostamente mais perigosa)

paga melhor que na “zona amarela”. Portanto, a definição do perigo é uma convenção que possui

conseqüências muito evidentes. Na suposta ausência de segurança (mais ou menos correlata à suposta

ausência do Estado), há muito mais a descrever do que a mera ausência.

Page 180: Construções do fracasso haitiano

168

sobre o interior do país, mas sem dúvidas cidades menores da região também foram

afetadas). O número de mortes está estimado em mais de duzentos mil só em Port-au-

Prince, e o de desabrigadas atinge a casa dos milhões.

Durante algumas semanas, o terremoto no Haiti dominou os noticiários no Brasil

e no mundo. Na cobertura da tragédia, vimos esse campo discursivo em ação de uma

forma extrema. Uma avalanche de descrição das ausências e de cenas da destruição total

da capital, de cadáveres, de pessoas “desprovidas de tudo” sobrevivendo duramente

graças à ajuda de soldados brasileiros ou das forças da ONU, bandos de famintos

lutando pela comida generosamente doada, às vezes jogada de helicópteros. Pouca ou

nenhuma menção às redes de ajuda mútua geridas pelas próprias haitianas/os, e muita

ênfase na ajuda, de celebridades de Hollywood engajadas em levantar rios de dinheiro

para reconstruir o país a gafes diplomáticas patéticas,286

evidenciando a posição

profundamente ambivalente da comunidade internacional. Fica muito claro que o

discurso não é só discurso, há uma série de ações que são coerentes com ele e que lhe

dão uma realidade de outra ordem.

Assim como a natureza é cooptada para se nacionalizar e assim naturalizar o

Estado-nação inscrevendo-o nas paisagens, desastres da ordem do terremoto que

destruiu Porto Príncipe também podem ser, e nesse caso efetivamente foi, cooptados

para provar as mais diferentes teses.287

E ainda que duas pessoas usem exatamente a

mesma expressão, como Brother Frantz e o pastor evangélico estadunidense Pat

286

Numa entrevista à rede de televisão SBT, o cônsul do Haiti em São Paulo, George Samuel Antoine,

sem saber que estava sendo filmado, comentou que o desastre estava sendo boa publicidade para nós,

disse que os africanos tem em si uma maldição e conjeturou que o terremoto seria conseqüência da

religião praticada no país (muita macumba). 287

Alguns exemplos; a hipótese, atribuída a Hugo Chavez, de que o terremoto seria conseqüência de

testes nucleares dos Estados Unidos na região; a crítica de que, por culpa e malícia da ajuda internacional

especialmente via Estados Unidos, as construções no Haiti seriam feitas com um cimento de péssima

qualidade, fator supostamente crucial para que a destruição tenha alcançado tal magnitude; a tese do

cônsul de que o africano tem uma maldição em si; ou que o terremoto seria conseqüência de um pacto

com diabo, travado quando o país se livrou do julgo francês, opinião agora divulgada por Pat Robertson.

Page 181: Construções do fracasso haitiano

169

Robertson usam o “pacto com o diabo”, isso não necessariamente significa que estejam

dizendo a mesma coisa ou usando a idéia no mesmo sentido (para não mencionar a

diferença entre conversar com um antropólogo blan após um culto onde havia cerca de

oito ou nove pessoas, e possuir espaço num programa de televisão acompanhado por

milhares). Apenas a pesquisa empírica poderá devolver os contextos originais,

mostrando quais são as respectivas implicações práticas que acompanham cada

formação discursiva.

Page 182: Construções do fracasso haitiano

170

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