Construção parou e deixou mil€¦ · Construção parou e deixou 17 mil casas vazias na Madeira...

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Construção parou e deixou 17 mil casas vazias na Madeira 0 desemprego no sector da construção atinge sobretudo os que têm mais de 35 anos. Muitos vêem na emigração a única saída Destaque. 4/5

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  • Construçãoparou edeixou 17 milcasas vaziasna Madeira0 desemprego no sector da construçãoatinge sobretudo os que têm mais de35 anos. Muitos vêem na emigraçãoa única saída Destaque. 4/5

  • CRISE ECONÓMICA

    O arquipélagoda MadeiraparalisouDeixaram a agricultura e as pescas para trabalhar nas obras.Depois do boom sustentado pelos fundos comunitários e peloendividamento, chegou o desemprego. Para onde pode ir ummadeirense desempregado da construção civil aos 47 anos?

    Ana Cristina Pereira

    Hélio

    anda com "o mioloem água". O desempregoapanhou-o aos 47 anos,com cinco filhos a cargo- a mais velha frequenta auniversidade. O condutor

    de pesados já bateu em várias portas.Disseram-lhe que "está difícil",que "estão a deitar gente fora". Osector da construção paralisou naMadeira.

    Só há uma grande obra em curso:a ampliação do Porto do Funchal. E

    essa, como diz o presidente do Sindi-cato da Construção Civil, DiamantinoAlturas, ocupa pouca mão-de-obra.A via construída à cota 500 foi in-

    terrompida, a reabilitação do HotelMadeira Palácio está parada, o Savoyé um buraco...

    Nenhum outro sector tem tantaexpressão na estatística do Institu-to de Emprego da Madeira: repre-senta 27,7% dos 23.741 inscritos emNovembro. Teria ainda mais se os mi-

    grantes - continentais e estrangeiros- não tivessem retornado à origemou acompanhado o movimento desaída das suas empresas.

    Nélio trabalhava há 18 anos na mes-ma empresa. Andava ao volante deum camião a transportar terras e pe-dras de escavações para vazadourosou terrenos agrícolas. Em Março, osalário caiu-lhe na conta com atraso.

    Em Abril, em duas partes. Em Maio,com uma redução drástica.

    Naquele mês, só recebeu 150 eu-ros. Como cuidar dos filhos, entreos 14 e os 22 anos? Quando o donoda empresa convocou os trabalha-dores para anunciar que estava semobras, incapaz de lhes pagar salários,Nélio pediu-lhe que, "por amor deDeus", lhe passasse "a carta para odesemprego". Com isso, pelo menosdurante uns tempos, poderia pagaras despesas da família.

    Ao longo de perto de 20 anos,recorrendo aos fundos comunitá-rios e ao endividamento da região,construiu-se como se não houvesseamanhã. Sobram zonas industriais

  • desocupadas, piscinas secas, camposde futebol quase sem uso. 0 maiorsímbolo do excesso será a Marina doLugar de Baixo, na Ponta do Sol.

    O poder político percebeu que fa-zer obras dava votos, resume o soci-ólogo Ricardo Fabrício. E as famíliasaproveitaram a onda. A procura demão-de-obra era grande, e isso re-flectia-se na remuneração média. Pe-las contas da Assicom, a Associaçãoda Indústria de Construção, rondava269 euros em 1990; 687 em 2000;1054 em 2010. Os homens viraram ascostas à agricultura e às pescas.

    As obras puxavam tudo para ci-ma. No início do século, em plenoboom, a Madeira vivia uma situaçãode pleno emprego. Ricardo Fabrício

    pega, a título de exemplo, no mês deDezembro de cada ano: 4693 desem-pregados em 2002, 5858 em 2003,7038 em 2004, 7231 em 2005, 8464em 2006, 8773 em 2007, 9302 em2008, 13.718 em 2009, 15.648 em2010, 19.016 em 2011.

    Há um tempo que acabou, resumeJoão Carlos Gomes, vice-presidenteda Assicom. Até pela pequena di-mensão, a aposta na construção enas obras públicas tinha de ter um

    prazo. E esse prazo, numa ilha de740 quilómetros quadrados, dois ter-

    ços dos quais reserva natural, nãopodia ser grande.

    Começou a "doer" em 2009Diamantino Alturas situa o início damudança em 2007. Com um Produ-to Interno Bruto insuflado pela zonafranca, caiu para metade o acesso aosfundos comunitários de 2007-2013. Ea República reduziu as transferênciasdo Orçamento do Estado. Isso come-

    çou a "doer" em 2009.João Carlos Gomes aponta a Lei

    das Finanças Regionais como "prin-cípio do fim do investimento públi-co", mas escolhe o 20 de Fevereirode 2010 como marcador. Há umantes e um depois das enxurradas.Naquele dia, a Madeira percebeu-sefrágil. Tratou de reparar os estragos,mas já não havia como disfarçar osburacos. O plano de ajustamentoeconómico e financeiro caiu-lheem cima.

    Que vai fazer agora quem trabalha-va no sector e que, na maior partedos casos, tem familiares a cargo, co-

    mo Nélio? "Esses homens não con-seguirão saltar para outra actividadecom facilidade", sublinha RicardoFabrício, voltando a pegar no totalde inscritos no Instituto de Empregoda região autónoma: metade tem osegundo ciclo ou menos, um terçojá ultrapassou os 45 anos.

    Como noutros sectores, ou nou-tras zonas do país, as famílias assu-miram compromissos financeiroscom base num certo rendimento.Segundo a Assicom, em 2011, umencarregado geral de obras podiaganhar 989 euros; um pedreiro deprimeira, 733; um servente, 568; ummotorista de pesados, 733; ao queacrescia 7,58 de subsídio de alimen-

    tação por dia de trabalho."Está muito difícil", repetia Né-

    lio, um tanto embaraçado, há unsdias, numa esplanada do Funchal.Por decisão do Governo da Repúbli-ca, no quadro da austeridade, o seusubsídio de desemprego passou de530 para 485 euros. O que lhe vale é

    que, como a mulher o deixou há 12anos com os miúdos, tem habitaçãosocial. Paga 50 euros de renda. "O

    pior é luz, gás, água. O dinheiro deDezembro foi um foguete!"

    A maior parte dos antigos colegascontraiu empréstimos para comprarhabitação. O patrão mantém cincode 14 condutores, dois de quatromanobr adores. "Trabalho em cimade trabalho e a pessoa vai receber oordenado e é um corte", queixava-se, na mesma mesa, Cláudio, um doscondutores. Desde Abril, só duas ve-zes recebeu salário completo. De res-to, 600 em vez de 800 euros. "Nemme apetece ir trabalhar. A gente estásempre a pensar se aquilo vai fechar,se não vai."

    Cláudio já há muito convive como desemprego alheio. Um tio da mu-lher perdeu o emprego como serven-te e virou-se para a agricultura: subs-tituiu os filhos ao lado da esposa nocultivo de vinho. Mas esse tem muitoterreno comprado com dinheiro ga-nho na Venezuela. O namorado deoutra tia da mulher está reduzido atrabalhar à jorna, já deixou de poderpagar a renda, vive por favor em casade um irmão emigrado. E um amigopediu um subsídio para investir nu-ma estufa e cultivar maracujá.

    Falta de economia de escalaAlguns terrenos que o tempo encheude mato estão a ser recuperados, oque já se nota nos tons que cobremas encostas. Com os anos de abando-

    no, muitos saíram dos circuitos deregadio. Será preciso limpar veredase levadas, nalguns casos mesmo tor-nar a contratar quem faça a gestãoda água da rega.

    A produção de cana-de-açúcarcresce por força da procura de mele aguardente. Serve-se cada vez mais

    poncha nos bares da região. Mas até

    quanto poderá crescer a produçãode cana, vinho, banana, abacate,anona, batata-doce? Haverá sempreum problema de falta de economiade escala, salienta Ricardo Fabrício." Como competir com a América doSul? O transporte encarece tudo."

    A pesca do atum, da espada ou dacavala é uma amostra do que era.As fábricas quase desapareceramdo território insular. Como no res-to do país, a emigração afigura-seuma saída. Nalguns casos, a únicasaída. Abrem-se caminhos dentroda União Europeia ou para fora de-la, sobretudo para Angola ou Brasilou o Canadá. Reforçam-se destinostradicionais, como Inglaterra e ilhasdo Canal.

    Nélio não tem "medo de ir paraInglaterra lavar panelas". Cláudiomuito menos. Cláudio já trabalhouperto de nove anos em Jersey. Não

    quer é ir ã toa. Tem duas crianças -um rapaz de cinco e outro de dez.A mulher trabalha no apoio domi-ciliário a idosos, um mercado emexpansão. Imagina-se a fazer comonos anos 60, 70 ou 80. Imagina-se air sozinho, a reunir condições paraos chamar.

    0 Sindicato da Construção até temestado a apoiar o que DiamantinoAlturas chama "uma empresa dealuguer de mão-de-obra". Procuramtrabalhadores especializados pararesponder ao volume de construçãono Canadá. Embarcaram 35 em 2012e no próximo mês avançarão maisalguns: 17 já têm o visto.

    Alguns já lã estão hã seis meses."Dois já mandaram ir a família", con-ta o sindicalista. Tenta acompanhá-los, ainda que de longe, para se cer-tificar de que é seguro continuar a

  • encaminhar profissionais.Muitas empresas têm fechado.

    No auge da construção, operavamumas 500; agora, umas 180. Muitopoucas conseguiram fazer a interna-

    cionalização - menos de meia dúziaavançou para África. Para João Carlos

    Gomes, o tempo é de reflexão. "Du-rante o período de grandes obras,abandonámos as pequenas obras.O futuro é requalificar."

    Não haverá quem negue o exces-so de habitação. Há 17.500 casas fe-chadas, de acordo com os Censos de2011. Mesmo nas habitadas, haverá

    quartos de banho para arranjar, jane-

    las para trocar, cozinhas para modifi-car, exemplifica o dirigente associati-vo. "Construir só se for com grandequalidade. Construiu-se muito e deuma vez só."

    Nélio não sabe o que vem aí. De-posita a sua esperança em alguémcom quem falou. Para já, nem sabebem o que fazer aos dias. Só estevedesempregado uma vez na vida, jálã vão mais de 20 anos. Nessa altura,era muito jovem, estava apaixona-do, só tinha uma filha, estava tudoa começar.

    O antigo patrão não lhe atende otelefone nem lhe responde às men-

    sagens. Estará atentar fugir â indem-nização. De acordo com a lei, Néliotem direito a 14 mil euros. Nunca viutanto dinheiro junto. "Punha metadede reserva e gastava metade na saúdedos meus filhos", diz ele. As idas aodentista estão "pela hora da morte".Um miúdo precisa de botas ortopédi-cas, por exemplo. Arrumados essesassuntos, viajaria até à Alemanha."Se arranjasse trabalho, ficava lã."Esta ilha não é para desempregadosda construção com 47 anos e o 2.°ano de escolaridade.

    Durante décadas foram as obras que puxaram pela economia da Madeira, mas, até pela pequenadimensão, a aposta na construção tinha de ter um prazo (em baixo enxurradasde 2010)

    23mil pessoas estavam inscritasno Instituto de Emprego daMadeira em Novembro

    27.7por cento das pessoas queem Novembro procuravamemprego na Madeira vêm dosector da construção