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ALICERCES

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ALICERCES      

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II Jornadas de Ciências Sociais e Humanas em Saúde  Saúde: Complexidades e Perplexidades 

  

Comissão Organizadora 

David Tavares (coordenador) Ana Grilo 

Graça Andrade Hélder Raposo Joana Rita 

Margarida Santos Nuno Medeiros Paulo Sousa Teresa Denis 

Teresa Guimarães   

Comissão Científica 

David Tavares Graça Andrade 

Graça Carapinheiro Graça Vinagre João Lobato Luísa Barros 

Margarida Santos Noémia Lopes Paulo Sousa Rui Canário Teresa Denis 

Tiago Monteiro  

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ÍNDICE    Nota de Apresentação .................................................................................................      9 

 

Os Autores ...................................................................................................................    11 

 

 

PARTE I. TECNOLOGIA, SAÚDE E SOCIEDADE 

 

Tecnologia, Mercado e Bem‐Estar Humano:  

Para um Questionamento do Discurso da Inovação 

José Luís Garcia ............................................................................................................    19 

 

A Importância da “Baixa” Tecnologia na Inovação em Biomedicina, 

ou o Caminho “Modesto” Para o Prémio Nobel 

João Arriscado Nunes ..................................................................................................    33 

 

 

PARTE II. SAÚDE, DESIGUALDADES SOCIAIS E CIDADANIA 

 

Equidade, Cidadania e Saúde. Apontamentos para uma Reflexão Sociológica 

Graça Carapinheiro ......................................................................................................    57 

 

Saúde Comunitária: Riscos e Potencialidades da Participação 

Luísa Ferreira da Silva ..................................................................................................    65 

 

O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante 

Bárbara Bäckström ......................................................................................................    79 

 

(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde. Um Avanço Civilizacional 

João Carlos Leitão ........................................................................................................    91 

 

O Controlo Social e a Experiência dos Conselhos de Saúde: 

Inovações Institucionais na Governação em Saúde 

Ana Raquel Matos, Daniel Neves, João Arriscado Nunes, Marisa Matias ...................  107 

 

Os Novos Actores Colectivos no Campo da Saúde:  

O Papel das Famílias nas Associações de Doentes 

Ângela Marques Filipe, João Arriscado Nunes, Marisa Matias ....................................  119 

 

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8  Índice 

PARTE III. A MORTE E O MORRER NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS 

 

Rostos da Morte na Era da Técnica 

Ana Celeste Mendes ....................................................................................................  131 

 

Uma Sombra o Precede. Lei da Morte, Hospitalidade e Cuidados de Suporte 

Manuel Silvério Marques .............................................................................................  147 

 

Medicina Curativa, Medicina Paliativa, Regimes de Acção e Modalidades  

de Constituição do Laço Social entre Médico e Doente: Uma Breve Abordagem 

Alexandre Cotovio Martins ..........................................................................................  167 

 

O Discurso da Boa Morte nas Vozes de Quem Cuida 

Ana Patrícia Hilário ......................................................................................................  183 

 

Direito de Viver e Dignidade da Pessoa Humana: Breves Reflexões  

sobre a Eutanásia Passiva (Um Estudo do Contexto Jurídico Brasileiro) 

Criziany Machado Felix ................................................................................................  191 

 

 

PARTE IV. PERSPECTIVAS PSICOLÓGICAS SOBRE A SAÚDE 

 

Família, Saúde e Doença: Intervenção Dirigida aos Pais 

Luísa Barros .................................................................................................................  207 

 

Adolescentes e Comportamentos de Saúde 

Celeste Simões .............................................................................................................  223 

 

Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol 

Helena Moreira, Marco Pereira, Maria Cristina Canavarro, Tiago Paredes .................  243 

 

Rehabilitación Cognitiva 

María Victoria Perea ....................................................................................................  269 

        

      

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NOTA DE APRESENTAÇÃO  

 

Com a edição deste número especial da Alicerces, publicam‐se 17 textos refe‐rentes a comunicações que foram apresentadas nas II Jornadas de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, sob o lema Saúde: complexidades e perplexidades. 

Este evento, organizado pela Escola Superior de Tecnologia da Saúde do Insti‐tuto Politécnico de Lisboa, em 4 e 5 de Abril de 2008, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação para a Ciência e Tecnologia, consubstancia‐se como  uma  incontornável  referência  nacional  no  domínio  das  ciências  sociais  e humanas no campo da saúde, antes de mais pelo significado dos contributos cien‐tíficos das diferentes comunicações mas também pela sua dimensão (434 partici‐pantes, provenientes de 103  instituições e de 36 grupos  sócio‐profissionais dife‐rentes). 

Na fase actual em que assistimos à consciencialização crescente da importân‐cia assumida pela intervenção das ciências sociais e humanas no universo da saúde em Portugal (de que, aliás, a dimensão destas Jornadas constitui apenas mais um indicador  a  considerar),  a  publicação  deste  conjunto  de  textos,  estruturada  em torno  de  quatro  temas  (Tecnologia,  saúde  e  sociedade;  Saúde,  desigualdades sociais e cidadania; A morte e o morrer nas sociedades contemporâneas; Perspec‐tivas  psicológicas  sobre  a  saúde),  permitirá  seguramente  aprofundar  o  conheci‐mento das problemáticas apresentadas e a complexidade da sua abordagem. 

Por  fim,  em nome da Comissão Organizadora,  expresso um  agradecimento especial a Hélder Raposo e a Nuno Medeiros pelo  trabalho de preparação desta publicação. 

 

 

David Tavares 

(Coordenador da Comissão Organizadora  

das II Jornadas de Ciências Sociais e Humanas em Saúde) 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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OS AUTORES 

 

 

Alexandre Cotovio Martins é sociólogo, docente da Escola Superior de Educação de Portalegre e  investigador do CesNova. Tem  trabalhado como  investigador e con‐sultor  em  diversos  domínios,  entre  os  quais  os  da  sociologia  urbana  e  políticas urbanas; organização social do sector  industrial; políticas de  imigração e  integra‐ção  social de populações  imigrantes; metodologia das  ciências  sociais; globaliza‐ção,  competitividade  territorial e desenvolvimento económico e  social;  atitudes, crenças  e  representações  sociais  dos  estudantes  do  ensino  superior;  políticas sociais, nomeadamente na área do emprego; educação; políticas de saúde; socio‐logia da medicina. 

 

Ana Celeste Mendes é licenciada em Comunicação pela Universidade Católica Por‐tuguesa, mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE e doutoranda do programa doutoral em Sociologia nesta mesma instituição. Dedi‐cando‐se desde 2002 ao estudo das questões relacionadas com a morte, tem tra‐balhado as dimensões que se relacionam directamente com a morte em universo hospitalar, encontrando‐se presentemente a estudar a relação entre as novas tec‐nologias da informação e a forma de recordação dos mortos na contemporaneida‐de. É docente de Sociologia da Saúde na Escola Superior de Saúde da Cruz Verme‐lha Portuguesa. 

 

Ana Patrícia Hilário tem uma licenciatura em Sociologia e Planeamento e o diploma de estudos pós‐graduados em Família e Sociedade. Ambos os graus obtidos no Ins‐tituto  Superior  de  Ciências  do  Trabalho  e  da  Empresa.  É  colaboradora  do  CIES‐‐ISCTE  desde  2007,  onde  tem  participado  em  alguns  projectos  de  investigação, nomeadamente na área da Sociologia da Família e da Sociologia da Saúde. Actual‐mente  encontra‐se  a  realizar o doutoramento  em  Sociologia da  Saúde na Royal Holloway‐University of London  sobre o modo como as  transformações corporais provocadas pelo avançar da doença e da proximidade da morte afectam a  identi‐dade pessoal e social do indivíduo. Entre as suas principais publicações destacam‐‐se as seguintes:  Journeys  into end of  life  research:  some methodological consid‐erations, CIES e‐Working Paper n.º 82/2009; “Suffering bodies: an exploration of the missing  link  between  the  body  and  self‐identity  in  the  dying  process”,  9th European Sociological Association Conference, Lisboa (2009).  

 

Ana Raquel Matos é socióloga, investigadora no Núcleo de Estudos sobre Ciência e Tecnologia em Sociedade do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coim‐bra, no âmbito do qual se dedica à análise de temáticas como ciência e conheci‐mentos; participação cidadã, políticas públicas e democracia em  torno das quais prepara doutoramento. 

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12  Os Autores 

Ângela Marques Filipe é mestre em Sociologia e  investigadora do Centro de Estu‐dos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus  interesses de  investigação cen‐tram‐se na governação da saúde, colectivos na saúde  (sobretudo associações de doentes), biopoder e biocidadania, e reconfigurações da ciência e sociedade. Tem realizado nesses domínios investigação em projectos europeus (como o MEDUSE e DEEPEN)  e  é  actualmente  investigadora  do  projecto  EPOKS  –  European  Patient Organizations in Knowledge Society. Entre as suas publicações destacam‐se: “Acto‐res colectivos e os seus projectos para a saúde: o caso das associações de doentes em Portugal”, Revista de Humanidades Médicas & Estudios Sociales de la Ciencia y la  Tecnologia  (2009);  “Patient  organizations  and  the  economic  and  industrial world: Towards new types of relationship?” e “Social and political stakes of asso‐ciative networks, coalitions, and collectives” in M. Akrich, J. Nunes, F. Paterson e V. Rabeharisoa (orgs.), The Dynamics of Patient Organizations in Europe (2008). 

 

Bárbara Bäckström é professora auxiliar da Universidade Aberta e investigadora do CEMRI desde 2000. Licenciada em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1993), mestre em Demografia Histórica e  Social por  esta mesma  Faculdade  (1997)  e doutorada  em  Saúde  Internacional pelo  Instituto  de  Higiene  e Medicina  Tropical  da  Universidade  Nova  de  Lisboa (2006), com uma tese sobre a Saúde dos Imigrantes. Tem trabalhado nos domínios da Sociologia da Saúde e da Sociologia das Migrações. Tem ainda  formação pós‐‐graduada em Sociologia da Saúde pelo  Instituto Superior de Ciências da Saúde – Sul e em Saúde Internacional pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Traba‐lhou  como  socióloga  em  diversos  projectos  de  investigação  na  área  da  saúde pública no  Instituto de Higiene e Medicina Tropical, no Departamento de Saúde Pública (1995‐2000). É autora do livro Saúde e Imigrantes: As representações e as práticas sobre a saúde e a doença na comunidade cabo‐verdiana em Lisboa. 

 

Criziany Machado  Felix  é  advogada.  Licenciada  em  Ciências  Jurídicas  e  Sociais  e mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente pela Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Foi Professora de Direito Penal, Direito Processual Penal, Execução Penal, Trabalho de Conclusão e Monografias no curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Coordenado‐ra  do Departamento  de  Actividades  Complementares  e Monografias  da mesma faculdade. Foi membro da Comissão de Elaboração do Projecto de Autorização do Curso de Graduação em Direito da Associação Juinense de Ensino Superior do Vale do  Juruena. Actualmente prepara doutoramento em Direito,  Justiça e Cidadania no Século XXI na Universidade de Coimbra. Possui bolsa de investigação da Funda‐ção para a Ciência e a Tecnologia. 

 

Daniel  Neves  é  investigador  no  Centro  de  Estudos  Sociais  da  Universidade  de Coimbra, mestre em Sociologia e doutorando no programa Governação, Conheci‐mento e Inovação. Os seus interesses de investigação articulam os estudos sociais de ciência e tecnologia e com a sociologia e filosofia política aprofundando abor‐dagens performativas na análise de dispositivos de participação em saúde pública. Mais recentemente o seu trabalho está direccionado para as áreas da comunica‐ção em ciência e comunicação em saúde. 

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Os Autores  13 

Graça  Carapinheiro  é  professora  catedrática  no  Departamento  de  Sociologia  do ISCTE‐IUL e investigadora do CIES, do qual foi sócia fundadora. Desde meados dos anos 80 tem desenvolvido investigação na Sociologia da Saúde, sendo a publicação do seu primeiro  livro Saberes e Poderes no Hospital. Uma sociologia dos serviços hospitalares, nas Edições Afrontamento, o resultado da primeira investigação rea‐lizada neste domínio, com base na sua tese de doutoramento. Também inaugurou o  ensino  da  Sociologia  da  Saúde  na  universidade  portuguesa  e,  desde  2007,  é Coordenadora do Mestrado de Sociologia da Saúde e da Doença no Departamento de Sociologia do ISCTE‐IUL. Também faz parte da Coordenação da Secção de Socio‐logia da Saúde da Associação Portuguesa de Sociologia, recentemente constituída. 

 

Helena Moreira é psicóloga. Doutoranda em Psicologia da Saúde na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e bolseira de dou‐toramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Colaboradora na Unidade de Intervenção Psicológica da Maternidade Doutor Daniel de Matos, dos Hospitais da Universidade de Coimbra.  Investigadora do  Instituto de Psicologia e Desenvol‐vimento Vocacional  da Universidade  de  Coimbra  (Unidade  de  I&D  da  Fundação para a Ciência e a Tecnologia). 

 

João Arriscado Nunes é professor associado com agregação da Faculdade de Eco‐nomia e investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Os seus interesses de investigação incluem os estudos sociais da ciência e da tecnolo‐gia, especialmente da biomedicina, ciências da vida e saúde pública, a sociologia política e a teoria social e cultural. As suas publicações cobrem temas como a ciên‐cia  e  a  globalização, os  estudos  sociais  da  investigação biomédica,  a política da biomedicina, as ciências da vida e da saúde pública na Europa e no Brasil, a partici‐pação pública  relacionada  com  ciência,  tecnologia,  saúde  e  ambiente  e  a  acção colectiva e a democracia. Foi co‐organizador de Enteados de Galileu? (2001), Rein‐venting Democracy (2004), The Dynamics of Patient Organizations in Europe (2008) e Objectos Impuros: experiências em estudos sobre a ciência (2008). 

 

João Carlos Leitão é docente no  Instituto Politécnico da Guarda, onde  também é investigador  na UDI. Mestre  em  Sociologia  das Organizações  do  Trabalho  e  do Emprego, licenciou‐se em Sociologia e está a concluir o doutoramento em Sociolo‐gia. Os seus  interesses de  investigação situam‐se na Sociologia da Saúde, Sociolo‐gia da Educação e Sociologia das Organizações, áreas onde tem vindo a desenvol‐ver projectos de investigação. É co‐autor em diversos livros e artigos destacando‐‐se os seguintes títulos: Levantamento Prospectivo do Perfil Formativo dos Alunos do Ensino Secundário na Transição para o Ensino Superior  (2006) e M.  J. Simões, Potencialidades  de  Desenvolvimento  de  Concelhos  da  Zona  da  Serra  da  Estrela (2001). 

 

José Luís Garcia é doutor em Sociologia pela Universidade de Lisboa, após ter feito estudos doutorais na London School of Economics. Actualmente, é investigador do quadro do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Desde 1997 tem investigado as implicações sociais e políticas da tecnologia, dando particular aten‐ção às ciências da vida e ao tópico da medicina e da saúde. Lecciona desde 2004 

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14  Os Autores 

na  Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de  Lisboa e desde 2007 na licenciatura em Ciências da Saúde da Universidade de Lisboa (Faculdade de Medi‐cina, Faculdade de Ciências, Faculdade de Farmácia, Faculdade de Medicina Dentá‐ria, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação). Entre outras obras, é autor de dezenas de artigos e capítulos de  livros publicados em Portugal e no estrangeiro sobre temas como teoria social, comunicação, biotecnociências e medicina. 

 

Luísa Barros é doutorada em Psicologia e agregada em Psicologia da Saúde, profes‐sora catedrática da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Univer‐sidade  de  Lisboa.  Colabora  igualmente  na  Faculdade  de Medicina  Dentária,  na licenciatura em Ciências da Saúde e integra o Conselho Científico do programa de doutoramento em Enfermagem da Universidade de Lisboa. Ensina e  investiga nas áreas da Psicologia da Saúde, Psicologia Pediátrica, Aconselhamento Parental, Psi‐copatologia do Desenvolvimento,  Intervenções Cognitivas  e Desenvolvimentistas com crianças e adolescentes. 

 

Luísa Ferreira da Silva é docente do Departamento de Ciências Sociais e Gestão da Universidade Aberta e investigadora do CEMRI. É agregada em Sociologia da Saúde e doutorada em Ciências Biomédicas – Saúde Comunitária pelo  Instituto de Ciên‐cias Biomédicas Abel Salazar da Universidade Porto (equivalência a doutoramento da École des Hautes Études en Sciences Sociales). Entre as suas várias publicações destacam‐se  as  seguintes:  Modernidade  e  Desigualdades  Sociais,  Universidade Aberta (2008); Saber Prático de Saúde. A saúde na vida de todos os dias, Edições Afrontamento  (2008);  Sócio‐Antropologia  da  Saúde:  sociedade,  cultura  e  saú‐de/doença, Universidade Aberta (2004). 

 

Manuel Silvério Marques é médico, hematologista clínico do IPO aposentado; dou‐tor em Filosofia da Medicina (FM, UL);  investigador do Centro de Filosofia da UL; membro do Centro de Estudos de Filosofia da Medicina do  IPO. Foi entre 2003‐‐2006 professor auxiliar da Faculdade de Medicina, UL; co‐regente do mestrado de Cuidados  Paliativos  e  regente  na  disciplina  de  Introdução  à Medicina.  Chefe  da Unidade Autónoma de Apoio Domiciliário do IPO. Assistente graduado de Hemato‐logia Clínica e tutor do Internato de Hematologia no IPO. Professor auxiliar convi‐dado da Faculdade de Medicina da UBI até 2006/2007. Professor auxiliar convida‐do  do  ISPA  (mestrado  de  Psicossomática). Membro  da  Comissão  Executiva  da Comissão de Ética para a Investigação Clínica. Vogal do Conselho Nacional de Ética para  as  Ciências  da  Vida.  Entre  as  suas  publicações  destacam‐se:  “Minando  as Fundações: três utopias reguladoras da Medicina” (2008); “O Fenómeno Sintomá‐tico” (2008); O Espelho Declinado. Natureza e legitimação do acto médico (1999). 

 

Marco Pereira é psicólogo. Doutorado em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da  Educação da Universidade de Coimbra. Bolseiro de  pós‐doutora‐mento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Investigador do Instituto de Psi‐cologia Cognitiva, Desenvolvimento Vocacional e Social da Universidade de Coim‐bra  (Unidade de  I&D da  Fundação para a Ciência e  a Tecnologia)  e membro do Centro Português para Avaliação da Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde.  Tem  desenvolvido  investigação  na  área  da  gravidez  e  transição  para  a 

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Os Autores  15 

maternidade,  infecção  pelo  VIH/SIDA  e  qualidade  de  vida.  Os  interesses  mais recentes de investigação centram‐se com no estudo da resiliência e da relação de casal em situações de adversidade. 

 

Maria Celeste Simões é professora auxiliar na Faculdade de Motricidade Humana, Universidade  Técnica de  Lisboa.  Licenciada em Educação Especial  e Reabilitação pela Faculdade de Motricidade Humana da UTL, mestre em Psicologia, área Psico‐logia Social, pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, e doutorada em Educação Especial e Reabilitação na área dos compor‐tamentos de risco na adolescência. Coordenadora do projecto “Risco e Resiliência em  Adolescentes  com  Necessidades  Educativas  Especiais”.  Co‐coordenadora  do projecto Aventura Social, cuja acção se desenvolve nas vertentes de Saúde (Estudo dos  comportamentos  e  estilos  de  vida  dos  adolescentes),  Risco  (Promoção  de competências pessoais e  interpessoais com  jovens de  risco) e Comunidade  (Pro‐moção de competências pessoais e  interpessoais com  jovens na comunidade). As suas publicações abrangem áreas como Educação e Promoção da Saúde; Risco e Resiliência na Adolescência; Promoção de Competências Pessoais e Sociais. 

 

Maria  Cristina  Canavarro  é  psicóloga.  Professora  associada  com  agregação  da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e responsável  pela  Unidade  de  Intervenção  Psicológica  da  Maternidade  Doutor Daniel de Matos. É  investigadora e coordenadora da  linha de  investigação “Rela‐ções, Desenvolvimento & Saúde” do  Instituto de Psicologia Cognitiva da Universi‐dade de Coimbra e coordenadora, conjuntamente com Adriano Vaz Serra, do Cen‐tro  Português  para Avaliação  da Qualidade  de Vida  da Organização Mundial  de Saúde. Tem participado, como  investigadora principal, membro e consultora, em diversos projectos de  investigação  I&D  e outros projectos  científicos  com  finan‐ciamento  externo.  Tem  cerca  de  50  artigos  publicados  em  revistas  nacionais  e internacionais com arbitragem científica, 20 capítulos de livros e 3 livros. Tem par‐ticipado,  de  forma  regular,  em  congressos  nacionais  e  internacionais,  obtendo diversos prémios, menções honrosas e nomeações de mérito científico. 

 

María Victoria Perea Bartolomé é  licenciada em Medicina y Cirugía e doutora em Medicina y Cirugía (doutoramento homologado pela Universidade do Porto). Espe‐cialista  em  neurologia.  Professora  titular  de  universidade  com  acreditação  para catedrática. Prémio Especial em Sistema Nervoso Central pela Universidade Com‐plutense de Madrid (1975‐76). Prémio Juan Huarte de San Juan pelo Colégio Oficial de Psicólogos de Castilla y León (2004). Docente da Universidade de Salamanca, é directora  dos  seguintes  programas  de  doutoramento:  “Neuropsicología  Clínica” (USAL); “Neuropsicologia Clínica” (ISMAI); “Neuropsicologia Clínica” (Universidade Lusófona de Tecnologias e Humanidades); “Neuropsicología Clínica” (UNIBE, Costa Rica). Autora de vários livros, artigos, colaborações em enciclopédias, obras colec‐tivas e de numerosos trabalhos apresentados em congressos e reuniões científicas de carácter nacional e internacional relacionados com a neuropsicologia. 

 

 

 

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16  Os Autores 

Marisa  Matias  é  investigadora  do  Centro  de  Estudos  Sociais,  Universidade  de Coimbra. As suas áreas de  interesse  incluem as relações entre ambiente e saúde pública, ciência e conhecimentos e democracia e cidadania. Escreveu, entre outros textos,  “Rumo  a  uma  saúde  sustentável:  Saúde,  ambiente  e  política”,  Saúde  e Direitos Humanos, 3, 2006 (com João Arriscado Nunes), e “Don’t treat us like dirt: the fight against the co‐incineration of dangerous industrial waste in the outskirts of Coimbra”, South European Society & Politics, 9, 2004. Desde 2009 é deputada ao Parlamento  Europeu, membro  do  Grupo  da  Esquerda  Unitária/Esquerda  Verde Nórdica, onde integra as Comissões de Indústria, Investigação e Energia e Ambien‐te, Saúde Pública e Segurança Alimentar. 

 

Tiago Paredes é psicólogo da Unidade de Psico‐Oncologia da Liga Portuguesa Con‐tra o Cancro, Núcleo Regional do Centro. Aluno de doutoramento da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra e mestre em Ava‐liação Psicológica pela mesma Faculdade.  Investigador do  Instituto de Psicologia Cognitiva da Universidade de Coimbra (Unidade de I&D da Fundação para a Ciên‐cia e a Tecnologia) e membro do Centro Português para Avaliação da Qualidade de Vida da Organização Mundial de Saúde. Na qualidade de orador tem participado em congressos nacionais e internacionais e tem integrado as equipas de investiga‐ção de projectos  científicos  com  financiamento  externo.  Tem  artigos publicados em  revistas  nacionais  e  internacionais,  bem  como  capítulos  de  livro,  enquanto autor e co‐autor. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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PARTE I  

TECNOLOGIA, SAÚDE E SOCIEDADE  

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TECNOLOGIA, MERCADO E BEM‐ESTAR HUMANO: 

PARA UM QUESTIONAMENTO DO DISCURSO DA INOVAÇÃO 

José Luís Garcia  

 Desde meados dos anos oitenta do século XX, um conjunto vasto de  líderes 

empresariais e políticos, acompanhados por  figuras e grupos oriundos sobretudo dos meios da gestão, da economia e da tecnologia, começou a promover intensa‐mente à escala mundial uma noção anunciada como motor das sociedades – “ino‐vação”.  Nas  declarações  desses  dirigentes,  o  termo  inovação  surge  geralmente associado  a  uma  ideia  entusiasta  das  novidades  técnicas  e  impulsionadora  do dinamismo económico1. Os promotores da inovação procuram implantar este con‐ceito justificando‐o com o papel que as conquistas tecnocientíficas joga na mudan‐ça económica e nos reflexos que esta pode ter no bem‐estar humano2. Nos seus discursos encontram‐se alusões constantes à importância da inovação como agen‐te da prosperidade económica e impulsionador de inúmeras vantagens para a vida humana  e  social.  Esse  discurso  é  amplamente  reproduzido  pelas  universidades, designadamente nos cursos de gestão, muitas vezes de modo  irreflectido quanto às funções e consequências das tecnologias. 

Na visão dos patrocinadores da inovação ecoam reminiscências das teorias do progresso dos séculos XVIII e XIX, baseadas numa visão panlógica da história em que esta surgia como a realização de um projecto grandioso e benévolo. Sabemos hoje, através da  reflexão  filosófica, histórica e sociológica desenvolvida ao  longo do  século  XX,  que  as  ideias  dos  principais  representantes  do  liberalismo,  assim como de pensadores como Saint‐Simon ou Comte, apesar das suas discordâncias noutros  aspectos,  estavam  impregnadas por uma  concepção providencialista da história. Esta via a mudança técnica como um meio desejável para atingir a meta de prosperidade que seria o culminar da evolução histórica. O mesmo olhar per‐passava o projecto de Karl Marx, um crítico implacável da forma que as sociedades ocidentais do século XIX estavam a tomar e um inspirador da que se tornou a mais importante filosofia política de contestação a essas sociedades. Na sua visão, cons‐tata‐se a confiança no pressuposto de que o capitalismo apenas seria bem interpre‐

                                                              1 A tais concepções não serão alheias as teses da primeira metade do século XX do economista Joseph Schumpeter,  segundo as quais a  inovação  tecnológica é endógena e  fundamental ao desenvolvimento económico, e não um factor externo (Schumpeter, 1996: 125). 

2 Sendo  possível  distinguir  inovação  de  produto,  processos  e  até  em  termos  organizacionais, neste  texto debruçamo‐nos sobre a sua dimensão  tecnocientífica,  isto é, a que se refere aos processos e aos produtos. 

ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 19‐31. 

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20  José Luís Garcia 

tado quando  inscrito como um estádio de uma  lógica histórica em que o desenvol‐vimento das  forças produtivas  tinha como corolário expectável a edificação  futura de uma sociedade que procederia a uma distribuição equitativa dos bens. 

Um exame mais atento à perspectiva dos actuais  impulsionadores da  inova‐ção revela, porém, uma nuance digna de nota quanto às teorias do progresso dos séculos  XVIII  e  XIX. Mais  do  que  a  contribuição  para  o  bem‐estar  humano,  as noções de inovação e de mudança económica são defendidas, no presente, como valor absoluto e incontroverso. A ideia que sobressai nessa visão é que a inovação e a mudança tecnoeconómica têm que ser celebradas por si mesmas, adoptadas sem hesitações e com celeridade,  independentemente de discussões sobre quais são as implicações e benefícios práticos de uma determinada tecnologia, as opções disponíveis nos modos de utilizar certos artefactos ou quais os efeitos de um dado sistema para a vida colectiva. É verdade que a aliança entre ciência e  tecnologia em meados do século XIX ajudou a infundir a convicção que o bem‐estar humano se articulava de perto com a mudança tecnológica, expectativa que nunca foi ver‐dadeiramente posta em causa pelos movimentos socialistas. Havia uma confiança mais ou menos generalizada que os avanços tecnológicos ajudariam a humanidade a  superar  muitas  das  suas  carências  e  fragilidades.  Todavia,  esses  projectos modernistas pensavam a tecnologia como um meio ao serviço do ser humano, que lhe cabia guiar de modo racional e subordinado aos valores de bem‐estar e felici‐dade da humanidade. Nos actuais  líderes globais da mudança  tecnológica é este tipo de pensamento e maneira de conceber a tecnologia que parece ter chegado ao fim e do modo antigo só restou o eco ténue do providencialismo histórico, ago‐ra transfigurado num plano em que cabe à inovação tecnocientífica ser guia e des‐tino da história. Na perspectiva dos decisores do nosso tempo, é supérfluo qual‐quer  debate  sobre  as  relações  entre  a  tecnologia  e  a  estrutura  moral  das sociedades contemporâneas ou sobre os  riscos,  incertezas, subprodutos e desfe‐chos  imprevistos da mudança  tecnológica. Não se sentem  também atraídos pela discussão sobre formas alternativas de organização social e o diferente peso que nelas  poderiam  ter  outros  sistemas  tecnológicos mais  adequados  a  propiciar  o bem‐estar humano. Os limites ao desenvolvimento tecnológico, muitas vezes mais como dispositivo negativo do que como princípio construtivo, esgotam‐se no dis‐curso ambientalista já institucionalizado. 

O  liberalismo económico defendido por essa camada dirigente mundial  tem mostrado uma tendência firme para abraçar, de modo quase irrestrito, o culto da inovação,  impelido pelas oportunidades dos  ciclos de  negócios  subsequentes  às inovações e pela alegação de que só à lógica de mercado cabe decidir quais opções deverão prevalecer3. Despidas da antiga crença de que havia um movimento para a prosperidade universal, as teorias do progresso foram substituídas, em diversos períodos do século XX, por termos como “riqueza económica”, “crescimento eco‐nómico”  e  “inovação”.  A  produção  opulenta  e  omni‐ampliada  de mercadorias, bem como o incitamento ao consumo através da mobilização do desejo e do gos‐to, tornaram‐se na face desfigurada dos ideais de bem‐estar e felicidade. 

                                                              3 Por  exemplo,  a  adopção  de  um  Sistema  Nacional  de  Inovação,  conceito  desenvolvido  por Freeman  (1995: 5‐24), entre outros, parece  ser dominada pelas exigências de mercado, em que o Estado participa  com poucas preocupações além dessa e o  tecnológico emerge  como valor em si. 

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Tecnologia, Mercado e Bem‐Estar Humano  21 

Marx foi quem primeiro percebeu com profundidade que o liberalismo impul‐sionava  o  fenómeno  que  apelidou  de  “mercadorização”  (ou mercantilização),  a transformação de uma coisa ou relação em mercadoria. A atenção de Marx con‐centrou‐se sobretudo na metamorfose do trabalho em mercadoria. Coube ao his‐toriador da economia Karl Polanyi, em pleno século XX, analisar a transformação geradora do sistema da economia de mercado responsável por trazer para o inte‐rior desta realidades que não eram sequer produzidas, como a terra, ou, quando eram, não se destinavam à venda, como o caso do trabalho humano, tendo apeli‐dado essas mercadorias de “fictícias”. Foi sob a lógica do controlo do sistema eco‐nómico pelo mercado, como argumenta Karl Polanyi no seu muito celebrado livro A  Grande  Transformação,  publicado  em  1944,  que  quantidades  crescentes  de âmbitos, grande parte deles desbravados pela tecnologia moderna (pela “idade da máquina”, nas suas palavras), se transfiguraram em mercadorias, constituindo‐se deste modo uma esfera económica que se terá demarcado de outras  instituições na sociedade e que se tornou determinante para a vida do conjunto social. 

Segundo Polanyi, na medida em que nenhum conjunto humano pode subsis‐tir sem um sistema de produção, a sua anexação num domínio institucional delimi‐tado e diferente da sociedade teve como consequência tornar o resto da socieda‐de  crescentemente heterónima  face  a essa estrutura. A  configuração  social que terá  resultado desta enorme mudança histórica  foi uma sociedade que passou a ser dirigida como se fosse um apêndice do mercado, uma sociedade modelada de forma que o sistema  funcione de acordo com as  leis do mercado. Como observa Polanyi numa passagem muito  referida, “em vez de a economia estar  incrustada nas relações sociais, são as relações sociais que estão incrustadas no sistema eco‐nómico” (2000: 77). A consequência do controlo do sistema económico‐produtivo pela economia de mercado consistiu em que esta passou a exercer controlo sobre os  recursos da natureza  e  sobre os  seres humanos nas  suas  actividades diárias. Polanyi oferece a seguinte  ilustração desse controlo do mecanismo de mercado, não lhe escapando a interrelação com a tecnologia moderna e o desenvolvimento de uma economia virada para o aumento da produção, da procura e do consumo: “Enquanto ninguém desprovido de propriedade pudesse satisfazer a sua fome sem primeiro vender o seu trabalho no mercado, e enquanto nenhum proprietário fos‐se impedido de comprar no mercado mais barato e vender no mais caro, a máquina desenfreada haveria de produzir quantidades crescentes de mercadorias para bene‐fício da raça humana. O medo da fome entre os trabalhadores e a atracção do lucro entre os patrões manteriam o vasto sistema em funcionamento” (Polanyi, s.d.). Ain‐da que um grupo de investigadores, conhecido como “nova sociologia económica”, tenha vindo a apresentar o argumento atraente que a história da formação dos mer‐cados modernos não pode ser vista como totalmente desenleada da vida social e das trocas e vínculos comunitários4, tal como apareceria na perspectiva de Polanyi, são 

                                                              4 A este  respeito, ver especificamente Bruni e Zamagni  (2007). A “nova sociologia económica” acolhe uma grande diversidade de abordagens que procuram estudar o cerne das problemáti‐cas económicas,  transpondo as pressuposições que  têm guiado a economia  convencional. O Handbook of Economic Sociology, organizado por Smelser e Swedberg, editado originalmente em 1994, e outros trabalhos de autores como Granovetter (1990), surgem como exemplos des‐te empreendimento ainda com uma posição teórica pouco clara. Para um questionamento do estatuto da “nova sociologia económica”, ver na literatura portuguesa, Ferreira et al. (1996) e Graça (2005: 111‐129). 

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22  José Luís Garcia 

bem patentes no mundo contemporâneo as consequências devastadoras da cons‐trução  de mercados  globais  que  se  regem  quase  exclusivamente  pela  ideia  de lucro e desvinculado de qualquer ideia ou regulação de ordem cívica. 

Desde as duas últimas décadas do século XX, a prossecução tenaz da inovação tem‐se  traduzido  na  atribuição  ao  sistema  produtivo  e  à  esfera  de mercado  de novos  domínios  que  faziam  parte  da  organização  biológica  dos  seres  vivos,  da estrutura da matéria e dos sistemas de conhecimento. Observou‐se neste período a tendência para as  inovações se “agruparem”, para usar um termo de Schumpe‐ter, abrangendo as áreas das tecnologias da  informação (software,  internet, tele‐móveis, novos media), biotecnociências (engenharia genética ou genómica, biolo‐gia sintética, diversas áreas da biotecnologia e das chamadas ciências da vida e da saúde)  e  nanotecnologias,  entre  outros  campos.  A  convicção  de  que  estamos impelidos por uma mudança científica e tecnológica articulada com características estruturais  da  esfera  económica  apoia‐se  largamente  na  saliência  adquirida  por parte do conjunto das novas  indústrias referidas. É um dado  insofismável que os novos  domínios  tecnológicos  têm  estado  a  estimular  alterações  e,  em  muitos casos, a substituir áreas significativas do contexto tecnológico anterior, ao mesmo tempo que procedem à  integração de vários outros5. Acresce ainda que o desen‐volvimento de campos tecnológicos e industriais como o das tecnologias da infor‐mação e das biotecnociências  impulsiona um novo ciclo de negócios e é acompa‐nhado  por  uma  envolvente  de  perturbação,  tanto  em  termos  de  orientação económica e política como ideológica. 

A  importância da  emergência do novo  contexto  sob  a directriz da  ideia de inovação  liga‐se directamente ao tema da transformação do capitalismo de “eco‐nomia do trabalho” em “economia do conhecimento” enquanto mecanismo fulcral da  acumulação  do  capital  numa  ordem  económica  que  tem  procurado  tomar  a forma de um sistema de mercado auto‐regulado à escala mundial. Neste particu‐lar, é importante acentuar que o conhecimento que estamos a aludir não deve ser entendido  como  restringido apenas ao  conhecimento  científico. As novas  indús‐trias emergem em campos cognitivos e científico‐tecnológicos em que as noções de  informação,  comunicação e o modelo  informacional/cibernético  (abrangendo pensar  a  vida  biológica  como  organização  informacional)  têm  usualmente  uma relevância  considerável.  A  exploração  das  utilizações  tecnológicas  da  noção  de informação constituiu o motor do grupo de  indústrias cuja ascensão se apoia nos resultados promissores obtidos em áreas que abrangem  tanto as  tecnologias da informação,  como  as  biotecnociências  baseadas  na  recombinação  do  ADN.  O recurso à potencialidade dos conceitos de  informação e a  integração da  informa‐ção  no  universo  das máquinas  por  parte  da  cibernética  permitiu,  por  exemplo, inaugurar  uma  forma  completamente  nova  de  pensar  o  fenómeno  biológico, desenvolvida no período inicial de constituição da biologia molecular e para a qual foi determinante a ambiance em redor da mecânica quântica, em particular para a 

                                                              5 Sobre esta questão parece apropriado lembrar a noção de “paradigma tecnológico” que o eco‐nomista Dosi  (1992: 147‐162) desenvolve, um conceito que designa um conjunto de práticas tecnológicas determinadas por um modelo  (o microprocessador, por exemplo) que define o tipo de problemas a  resolver e a  trajectória  tecnológica a seguir. A este  respeito,  também a noção  de  “destruição  criadora”  popularizada  por  Schumpeter  (1976)  pode  ser  evocada,  na medida em que designa o modo como o novo substitui o antigo. 

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tendência que se interessou pelo estudo das questões biológicas para clarificar as leis da física6. Se a teoria da informação deu à biologia potencialidades operativas abundantes,  a  sua  adopção  também  gerou  novas  e  importantes  dificuldades, como as que dizem respeito à disseminação da metáfora de “programa genético”e à perspectiva que via nesta noção a fonte do desenvolvimento biológico

7. 

Um elemento  adicional de mudança nos  finais do  século XX  foi o mercado financeiro, que entrou numa dinâmica turbulenta de inovação cujo vigor durou até à deflagração da crise provocada por esse sistema em Setembro de 20088. Procu‐rando tornar‐se sempre mais competitivo, tentou atrair todas as poupanças e mul‐tiplicou os produtos bancários, ao mesmo tempo que se sujeitou a reestruturações dos  sistemas  de  alianças  e  à  redefinição da  forma do  serviço. O movimento de financiarização  da  economia  conjugou‐se  com  o  declínio  das  formas  de  Estado‐‐providência europeias, tendo como pano de fundo o fim da influência da despesa pública sobre a prosperidade económica e o rompimento do equilíbrio  intergera‐cional, com a queda da fecundidade e a acentuação do envelhecimento. O Estado foi perdendo o seu papel capital no desenvolvimento económico e no bem‐estar social, revelando as dificuldades do keynesianismo no novo quadro.  Instalou‐se a tendência para a liberalização das economias nacionais, influenciada por um corpo de doutrinas neo‐liberais que procurou  implementar o mercado como uma  força de modelação da sociedade no seu conjunto, passando a sua forma específica de organização  a  ser  tendencialmente  o  padrão  para  a  constituição  de  múltiplos aspectos da existência humana. 

A economia ganhou  também uma configuração associada a grandes entida‐des  de  poder  privado  à  escala  multinacional  e  transnacional.  As  corporations internacionais  tornaram‐se  uma  das  forças motrizes  dos  processos  económicos, concebendo  e  pondo  em  acção  estratégias  com  efeitos  em  diversos  cenários nacionais. Neste novo  contexto, emergiu paralelamente um  conjunto de esferas sociais  transnacionais  e uma  camada de  actores que  abrangem  todo o  sistema,

 

ultrapassando muitas  das  relações  à  escala  dos  Estados‐nação  e mesmo  entre nações. As autoridades regulamentadoras supranacionais observaram a tendência para colaborar de forma cada vez mais próxima com as corporations, inclinando‐se para reduzir as possibilidades da acção regulamentadora dos governos nacionais e permitindo a auto‐regulamentação dos grandes conglomerados empresariais. 

                                                              6 O modelo informacional aplicado à biologia funda os seus pressupostos nas obras de Schrödin‐ger, What is Life (1989 [1944]), de Shannon e Weaver, The Mathematical Theory of Communi‐cation  (1948) e de Norbert Wiener, Cybernetics  (1948), que contribuíram consideravelmente para a teorização e aplicação do conceito cibernético de “sistema” regulado pela transmissão de informação. 

7 A este respeito, não é destituído de sentido lembrar que não foi sem a resistência manifesta de muitos bioquímicos e biólogos dedicados à  investigação estrutural, acompanhados de outros cientistas,  que  o  conceito  cibernético  se  tornou,  primeiro,  na  noção  básica  de  todo  aquele novo campo científico e, depois, que teve impacto nas mais diversas áreas, e não só nas enge‐nharias e nas ciências fisico‐naturais, nomeadamente a partir do desenvolvimento das tecno‐logias da informação e computação. No que diz respeito a uma literatura reflexiva neste cam‐po,  ver,  entre  outros  importantes  trabalhos,  Jorge  (1995),  Lewontin  (1998), Oyama  (2000), Keller (2000) e Leite (2006). 

8 O rebentamento da chamada bolha “ponto com”, em Abril de 2000, terá sido uma crise espe‐cialmente  relacionada  com a  crença na  inovação  como geradora de  crescimento económico infindável e sem limites – a crença num novo paradigma tecnológico como produtor de riqueza. 

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24  José Luís Garcia 

Uma constatação evidente é o papel jogado pela revolução das tecnologias da informação no quadro deste episódio espectacular. O que possibilitou, em termos técnicos,  aos  actores  transnacionais  e  nacionais movimentarem‐se  no mercado global  foi a existência de uma base  instrumental em evolução  constante, a qual garante o aumento da  capacidade de  colher,  reproduzir,  tratar,  transmitir  infor‐mação de diversos tipos, assim como modificar profundamente as formas de pro‐dução e distribuição. As novas tecnologias da informação estão ainda na génese de profundas alterações na economia internacional através de um conjunto de inova‐ções com impactos em diversos aspectos das economias e das sociedades do sécu‐lo XXI. Esse é o caso do movimento de convergência global entre as tecnologias da informação e as biotecnociências. As  infra‐estruturas  tecnológicas  características deste  movimento  sustentam  o  recurso  às  capacidades  de  processamento  dos computadores  e  ao  uso  da  Internet  para  permitir  a  troca dos dados biológicos  à escala mundial. O ciclo de  transformação do ADN, desde material biológico num tubo de ensaio até ao sequenciamento do genoma como “bioinformação” compu‐torizada e patenteada com valor económico, pressupõe a interligação entre âmbi‐tos da biologia e da  informática, bem como a  sua operatividade à escala global. Este “capital conhecimento biológico” ou “biocapital”, enquanto entidade globali‐zada, é expressão de um sistema económico de mercado tendencialmente único e tecnicamente interconectado, embora heterogéneo e desigual9. 

A emergência e o desenvolvimento do  ramo  industrial das biotecnociências ilustram um último e importante aspecto do contexto que estamos a descrever em termos de crescimento económico: a sua dependência do conhecimento científico. Há mais de dois séculos que o crescimento sistemático de riqueza tem orientado o rumo  das  sociedades  do  ocidente,  um  crescimento  que  pode  ser  considerado “cientificamente sustentado”, para utilizarmos uma ideia certeira de Gellner (1995 [1992]), baseado no  impulso constante que a ciência permite dar à  inovação tec‐nológica e à pesquisa industrial, isto é, à criação e desenvolvimento de uma civili‐zação  tecnológica. Esta  compreensão do  sentido geral das  sociedades modernas elucida  a  diferença  entre  formações  sociais  com  uma  prosperidade  económica dentro dos limites de uma tecnologia simples e outras de crescimento não limita‐do,  alicerçando‐se  este  no  automatismo  da  inovação  científico‐tecnológica  e  na sua aplicação a esferas cada vez mais alargadas da existência humana (e que não se restringem apenas a esta). Mas a ciência, sob cujo apoio floresceu a tecnologia de base científica, também se tornou no factor histórico que permitiu tornar a ino‐vação  largamente desvinculada das relações sociais e abrir a “estrada real para o crescimento económico perpétuo”. Este quadro contrasta com uma modernização apoiada na divisão do trabalho e na tecnologia pré‐científica, que só poderia levar a humanidade até um certo ponto (Gellner, idem). 

Se  a  procura  do  crescimento  económico  ininterrupto  é  caracterizada  pela cada vez maior  intensidade de conhecimento científico e  tecnológico  (e  também de outros  factores  como o marketing, o  conhecimento  sobre os mercados  e os consumidores, os  recursos  comunicacionais e  imaginativos da  força de  trabalho) aplicado aos processos produtivos, as mudanças não ocorrem apenas no sector da 

                                                              9 Para  uma  discussão  relativamente  ao  conceito  de  “biocapital”,  ver  Thacker  (2005),  Garcia (2006a: 981‐1009) e Sunder Rajan (2006). 

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Tecnologia, Mercado e Bem‐Estar Humano  25 

produção.  Para  além  das  implicações  na  organização  do  mundo  industrial  e empresarial, o dinamismo deste processo  tem  vindo a provocar  também altera‐ções sensíveis no próprio campo científico, em relação ao qual não será despropo‐sitado falar de uma verdadeira possibilidade de transfiguração. Esta metamorfose tem vindo a ocorrer com alguma nitidez a partir da Segunda Guerra Mundial, mas só se está a afirmar solidamente desde finais do século XX, envolvendo o próprio estatuto da ciência e direccionando‐a para uma perda substancial da sua autono‐mia relativa face ao mundo industrial, comercial e ao poder político. 

A  ciência moderna  organizou‐se  como  espaço  com  independência  perante outros âmbitos, como a religião, a política e a economia, desde os séculos XVII e XVIII na Inglaterra, edificando papéis científicos delimitados por princípios internos reguladores da actividade científica. O desenvolvimento e expansão da ciência não envolveram apenas a criação de teorias, modos operatórios e a realização de des‐cobertas, mas um processo social de institucionalização num contexto que lhe foi favorável. A análise histórica das relações entre ciência e sociedade dá a conhecer um  campo  científico  heterogéneo,  que  não  é  imune  à  influência  do  poder,  do comércio, do prestígio e se relaciona com sectores sociais fora da esfera científica. A imbricação entre ciência, tecnologia e indústria é um elemento fulcral da consti‐tuição das sociedades industriais e, no século XX, a ciência foi adquirindo também uma  feição  crescentemente  industrializada, que  se  tornou manifesta no período subsequente às Guerras Mundiais. Grandes empresas passaram a integrar labora‐tórios no seu interior e muitos laboratórios também se transformaram em empre‐sas ou passaram a trabalhar como empresas. A indústria passou a ser uma entida‐de  com uma  componente  científica  cada  vez mais  intensa e  sectores da  ciência foram revestindo uma forma  industrial. As teses que defendem a não  linearidade da  inovação  tecnológica,  isto  é,  a  interacção  entre  a  investigação  científica  e outras  áreas  na  cadeia  de  inovação  como  o  desenvolvimento  do  produto  ou  o marketing, confirmam plenamente a integração da ciência nos objectivos mercan‐tis10. A indústria e vários campos particulares da ciência e da tecnologia estabele‐ceram vínculos sólidos de carácter transnacional, geralmente com o apoio e incen‐tivo expresso dos Estados nacionais onde estão integradas. 

A inscrição de esferas científicas na economia e na competição dos mercados reforçou‐se como  tendência  ideológica e como  realidade concreta no quadro do vigor neoliberal  emergente no  curso histórico decorrente das  crises  energéticas dos anos 1970 e das depressões económicas de finais dos anos 1980. Embora ain‐da  não  existam  suficientes  estudos  documentados  que  apontem  o  sentido  das mudanças de reconfiguração do conjunto do campo científico e da sua incorpora‐ção à esfera  industrial e  comercial11, em áreas  como a das  ciências biológicas e médicas  existem  indicações  consideráveis  da  endogeneização  destas  na  esfera empresarial e na lógica da comercialização, assim como de alterações importantes no estatuto e mandato dos  investigadores, muitos vivendo sob a pressão da sua conversão  em  produtores  de mercadorias12.  A  ciência,  de  esfera  relativamente 

                                                              10 Ver Kline e Rosenberg (1986: 275‐305). 11 Entre  a  já  relativamente  considerável  literatura  que  discute  este  tópico  ver Gibbons  et  al. 

(1994), Ziman  (1994; 1996), Weingart  (1997), Krimsky  (2003), Pestre  (2003), Nowotny et al. (2001; 2005), Shinn e Ragouet (2008), Garcia e Martins (2008: 397‐417). 

12 A este respeito, ver, entre outros, Garcia (2006a; 2006b) e Guespin‐Michel e Jacq (2006). 

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26  José Luís Garcia 

autónoma inerente às sociedades liberais e apoiada pelas universidades e labora‐tórios públicos, tem vindo a estar sujeita a uma orientação que a integra no siste‐ma económico de mercado e num campo subordinado à capitalização do conhe‐cimento – isto é, à sua transformação em “capital conhecimento”. Muitos actores do mundo científico, uns entusiastas com a nova missão que a ciência e o ensino superior devem jogar no crescimento económico e outros indiferentes ao que está em  causa  nas  políticas  de  ciência  e  tecnologia,  estão  a  abandonar  a  dimensão moral da sua actividade, a qual se traduzia na  ideia de conhecimento como bem público e isento. Deste ponto de vista, faz todo o sentido questionar os problemas associados ao aumento da influência das grandes corporations nas decisões de um sector sensível da própria civilização liberal, o das interrelações entre as ciências, o Estado, o mercado e o espaço público. A pressão exercida pelos governos e pelas corporations está a conduzir à metamorfose em mercadoria de sectores cada vez vastos da universidade e da investigação científica, e ainda a gerar conflitos provo‐cados pelos próprios avanços científicos e tecnológicos em domínios como os da nossa relação com o fenómeno da vida e com a natureza. 

Com o vigor que o liberalismo económico foi infundindo, a lógica que passou a predominar nas sociedades industriais de mercado tomou a configuração de um sistema de mercado auto‐regulado em processo  incessante de expansão e apro‐fundamento, cujo veículo reside na capacidade do universo tecnológico integrar os indivíduos nos seus mecanismos de produção, consumo e cultura. As posições que vislumbram a democratização da inovação por via da participação do consumidor nas  novas  tecnologias,  apontando  este  desenvolvimento  tecnológico  como  uma emanação do cidadão, de que von Hippel  (2006) é um exemplo, tendem a negli‐genciar que o discurso da co‐criação é uma forma de domínio que na verdade utili‐za  o  trabalho  do  consumidor  para  fins  empresariais  (Zvick  et  al.,  2008:  163). O estímulo  à  inovação  tecnológica  tem  como  contrapartida  a  procura  de  um  alto grau de adopção social aos produtos e resultados tecnológicos em geral regulado apenas pelo mercado  (ou, no que  toca às armas, pela eficácia bélica autorizada pelos Estados) e prescindindo de considerações de origem ética, filosófica ou reli‐giosa. A engrenagem da  inovação tecnológica  foi desenvolvendo o determinismo tecnológico  como princípio que  rege as  sociedades  industriais, do mesmo modo que  o mecanismo  de mercado,  como  assinalou  Polanyi13,  tornou  largamente  o determinismo  económico  num  condutor  destas  sociedades.  Sendo  verdade  que tanto o determinismo tecnológico, como o determinismo económico, não passam de  falácias quando  são considerados como uma  teoria das  sociedades humanas, não nos parece menos rigoroso afirmar que, no quadro das sociedades actuais, são esses  determinismos  que  estão  a marcar muitas  das  direcções  do  nosso  rumo social e o tipo de problemas e perigos que temos de enfrentar. 

As últimas décadas do século XX foram conduzidas pelos líderes mundiais que dirigem a economia e a política de acordo com a orientação que afirma a inovação tecnológica e o mercado como o âmago da vida económica e social, recusando a existência de outro destino que não seja aquele que se subordina a esse primado. Nesta orientação  ressoam, como se disse no  início deste artigo, ecos  ténues – e deformados  –  da  convicção  defendida  por  diversas  variantes  do  modernismo 

                                                              13 A posição do autor a este respeito encontra‐se bem exposta em Polanyi (s.d.). 

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Tecnologia, Mercado e Bem‐Estar Humano  27 

segundo a qual a ciência e a indústria iriam garantir o bem‐estar humano e que o progresso se articulava necessariamente com o avanço  tecnológico e a mudança económica. A experiência que o século XX fez com estas  ideias trouxe o conheci‐mento que muita inovação não está apenas relacionada com benefícios, mas com destruição bélica, ecológica e com desigualdade social, que os avanços tecnológi‐cos integram poder económico e político e não implicam apenas invenção, condu‐zindo também ao conflito. A orientação ideológica que tem condicionado o senti‐do  das  sociedades  desde  os  alvores  do  século  XXI  procura  impor  a  mudança tecnológica e as relações de mercado não tanto por as associar à possibilidade de serem um factor para o bem‐estar humano geral ou o progresso, mas por razões menos nobres e despidas de  ideal cívico. Descurando qualquer avaliação das for‐mas predominantes de envolvimento da ciência e da  tecnologia na economia de mercado do século XX, nos desastres ambientais e nas guerras, negligenciando o carácter controverso de muitas ousadias técnicas e não querendo saber dos pro‐blemas que pode implicar a confiscação da universidade e da ciência por parte da economia liberal, a mentalidade da inovação tem vindo a afirmar o seu poder fren‐te a qualquer regulação ou ponderação dos seus rumos em termos sociais, ecoló‐gicos e políticos (descurando‐se até o reconhecido carácter estocástico que a ino‐vação  em  si  comporta,  exigindo  por  isso maior  vigilância)14. As  elites  dirigentes estão convencidas que somos seres económicos e mercantis por natureza, negan‐do assim o nosso carácter primacial como seres  sociais e simbólicos; não conse‐guem  imaginar  outro  caminho  que  não  seja  o  de  aumentar  a  capacidade  das máquinas e de prosseguir com o projecto de dominar de forma ilimitada a nature‐za e de procurar a riqueza económica infinita, e para tal tentam evitar que a cida‐dania pondere as decisões de orientação para a universidade, de política de inves‐tigação e de directrizes económicas. 

A disposição geral do período histórico, que adquiriu contornos cada vez mais nítidos a partir da Segunda Guerra Mundial, assumiu uma feição crescentemente tecnoeconómica,  estando  em  marcha  uma  tendência  firme  de  fusão  ciência‐‐tecnologia‐mercado que é cega a qualquer pergunta sobre o tipo de mundo que está a estimular. É num contexto de sobredimensionamento da esfera tecnomer‐cadológica que a vida humana e social agora largamente decorre para a maioria da humanidade,  dependente  de  serviços  técnicos  –  abastecimento  de  água,  luz, meios de  transportes,  comunicação, alimentação, etc. – que  se  situam a grande distância  das  comunidades,  dominados  por  experts  e  empresas,  e  cujas  falhas podem  significar  situações  de  degradação,  incerteza  e  ansiedade.  Também  as acções humanas, em particular, as que têm consequências sociais mais penetran‐tes, são preponderantemente desenvolvidas através de sistemas técnicos e cone‐xões técnicas submetidas à lógica da mercantilização. 

                                                              14 Deve ser observado que Schumpeter distinguiu invenção de inovação, sendo que a primeira é 

a criação do produto e a segunda o produto que tem sucesso, aquele que se adapta à socie‐dade. Este último, central neste artigo, é por si só problemático, porque na actual “sociedade de mercado”  sucesso  significa consumo, o que não é necessariamente o melhor critério. O ideal  seria,  entrando  no  registo  político,  que  o  bem‐comum  fosse  o  critério  de  “sucesso”. Embora carecendo de demonstração, a prática corrente dos programas de incentivo à inova‐ção parece guiar‐se, por ora, pela omissão relativamente ao bem‐comum que vá para além do ambiente e do emprego. 

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28  José Luís Garcia 

Tomar consciência das consequências da esfera tecnoeconómica para a ace‐leração do  caminho em que as  sociedades  contemporâneas estão embrenhadas não tem que significar a sua aceitação e, pelo contrário, pode ser uma  forma de insistir na defesa de uma ideia de homem e de sociedade que concede primazia à esfera das relações sociais, contraditando uma perspectiva baseada no primado da tecnologia e do sistema económico. Admitir em termos descritivos e  interpretati‐vos que nas sociedades contemporâneas a mudança tecnoeconómica opera como um motor  que  revolve  a  estrutura  social,  política,  legal,  o mundo  das  artes,  as crenças, os costumes e escalas de valores, não implica a defesa, epistemológica ou política, do determinismo económico e  tecnológico. Aqueles que negam que é a esfera  tecnomercadológica  que  tem  estado  extensamente  a  condicionar  tudo  o demais,  ainda que movidos pela defesa  abstractamente  intocável da  identidade social e política dos seres humanos, não contribuem para que se perceba com cla‐reza  que  só  actuando  politicamente  é  possível  criar  um mundo menos  injusto socialmente, menos  desequilibrado  nas  suas  relações  com  a  natureza  e menos irreflectido com o poder dos dispositivos técnicos. A corrente do “construtivismo social da tecnologia” tem como  intuito estudar as diversas modalidades como os sistemas  e  artefactos  tecnológicos  estão  entrelaçados  com  o  contexto  social  e várias vozes da “nova sociologia económica” procuram mostrar como os mercados estão inseridos na vida social. Constituindo estes empreendimentos perspectivas e agendas de pesquisa completamente legítimas para gerar conhecimento sociológi‐co, não dispensam, porém, a existência de outros olhares e projectos mais centra‐dos  no  questionamento  das  opções  em matéria  de  investigação,  das  escolhas sobre os sistemas tecnológicos, bem assim como os âmbitos em que o mercado se deve subordinar à regulação pública15. Nas nossas “sociedades de mercado”, mais do que ser uma teoria equivocada do mundo social, o determinismo tecnoeconó‐mico é um  facto. A  constatação de que o determinismo  tecnoeconómico está a condicionar poderosamente  tudo o  resto é  a única  forma de  ter  claro que  só  a consciência ética e a acção política podem ser os meios de alterar a esfera tecnoe‐conómica e a sua grandeza na vida social. 

As sociedades têm diante de si a responsabilidade de enfrentar problemas de enorme magnitude gerados pelas tendências descritas, sobressaindo entre eles os que são  inerentes a esta civilização  tecnológica, como a crise ecológica global, o espectro  das  guerras  nucleares  e  a  possibilidade  do  controlo  biológico  do  ser humano – e  também a mercadorização das  formas de vida, das mais  simples às mais complexas – através da engenharia genética. Paralelamente, o mundo con‐temporâneo mantém, pelo menos para a  imensa maioria da humanidade, muitos dos graves problemas de escassez e enfermidade que tinha à entrada das socieda‐des industriais. A indústria, a ciência e a tecnologia, cujos sucessos jogaram inega‐velmente um papel na melhoria das condições dos seres humanos, converteram‐‐se  numa  fonte  de  dificuldades  e  incertezas  num  sistema  que  se  encontra 

                                                              15 Uma contribuição valiosa para uma ponderação sobre a noção de determinismo tecnológico é a 

de Bimber  (1990: 333‐351), em particular, a distinção que faz entre determinismo tecnológico “nomológico”, “normativo” e das “consequências não  intencionais”. Neste artigo, estando em causa a interpretação do sistema, referimo‐nos ao normativo (a crença no determinismo como promessa e necessidade) e ao das  consequências não  intencionais  (envolvido no discurso da incerteza), recusando‐se o nomológico – “leis que regem as sociedades humanas”. 

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Tecnologia, Mercado e Bem‐Estar Humano  29 

actualmente sob o  impulso do ultraliberalismo económico e do projecto de cons‐trução de um mercado mundial autoregulado. O regime de inovação permanente como motor do crescimento económico, da construção de mercados de futuros na área biológica e em outros domínios, da constituição de um biocapital, ou ainda como meio de descobertas ao serviço do poder, da violência e da guerra, coloca a humanidade não só diante de questões morais e políticas completamente desco‐nhecidas, como  sobretudo de um horizonte  inédito de ameaças e perigos que é obra dos próprios seres humanos. Acresce que tudo isto ocorre numa circunstân‐cia em que o elemento político surge com uma imagem de debilidade e irrelevân‐cia no que diz respeito ao debate e à tomada de posições adequadas sobre os pro‐blemas levantados pelas novas formas de poder. 

Moldar  a  sociedade  ao  sistema  tecnoeconómico  vigente,  para  o  conservar sem alterações de maior, tem sido a orientação das oligarquias que comandam o mundo.  Intervir de  forma consciente e  responsável neste sistema, para o abrir à discussão pública  e  colocar  ao  serviço do bem  comum,  tem  sido defendido por aqueles que acreditam numa sociedade verdadeiramente democrática. Mas mes‐mo esta segunda opção, para ser bem sucedida, necessita que seja enformada por uma concepção do ser humano e da sociedade muito distintas da que nos foi lega‐da pela crença na tecnologia e na economia de mercado como fins últimos da vida humana. 

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A IMPORTÂNCIA DA “BAIXA” TECNOLOGIA NA INOVAÇÃO EM BIOMEDICI‐

NA, OU O CAMINHO “MODESTO” PARA O PRÉMIO NOBEL1 

João Arriscado Nunes  

 Em  Julho de 2005, o Prémio Nobel da Medicina ou Fisiologia  foi atribuído a 

dois australianos, o patologista Robin Warren e o médico Barry Marshall, pelo seu trabalho  sobre  a  bactéria  Helicobacter  pylori  e  a  sua  relação  com  patologias comuns da região gástrica. Para alguns, a distinção não era senão o reconhecimen‐to, há muito merecido, de uma contribuição de grande relevância para a medicina. Para outros, ela significou o triunfo de um estilo de investigação em medicina com raízes nos trabalhos pioneiros da microbiologia do século XIX. Para outros, ainda, o significado da distinção residia no  facto de, dessa vez, o Prémio Nobel consagrar um  trabalho com um  impacto visível e  significativo nas vidas e no bem‐estar de milhões de doentes pelo mundo fora. Não deixou de ser notado que, na ocasião, pouco  se  falou  de  genes,  de  genomas  ou  de  temas  ou  tecnologias  “de  ponta”. Warren e Marshall haviam procedido à  identificação,  isolamento e cultura de um agente infeccioso e demonstrado as relações causais entre este e algumas patolo‐gias  comuns do estômago,  como a gastrite  crónica ou a úlcera péptica, abrindo assim caminho ao diagnóstico e a terapias eficazes dessas patologias. Os dois aus‐tralianos  mostraram  que  havia  caminhos  modestos  que  também  levavam  ao Nobel, sem a necessidade de ceder às modas científicas ou de procurar aparecer nas manchetes. Em todo o caso, tratava‐se do coroar de um  longo processo,  ini‐ciado em finais da década de 1970, que levou a bactéria Helicobacter pylori a tor‐nar‐se num ponto de passagem obrigatório (Latour, 1984, 1987, 1999) para os gas‐troenterologistas e para os que eram afectados por doenças gástricas. Warren e Marshall tornavam‐se, assim, os principais porta‐vozes da bactéria e das associa‐ções que permitiam que o que outrora fora considerado como uma entidade ine‐xistente se tornasse uma entidade biomédica real. 

Nas  secções  seguintes,  é  apresentada  uma  versão  desta  história,  que  se apoia, sobretudo, nas narrativas na primeira pessoa do processo de “descoberta” 

                                                              1 A investigação que serviu de base a este artigo foi realizada no âmbito do projecto “Biografias de Objectos e Narrativas de Descoberta nas Ciências Biomédicas: O caso de Helicobacter pylo‐ri”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (POCI/HCT/59430/2004), realizado no Centro de Estudos Sociais. Agradeço a Oriana Brás, Marisa Matias e Ana Raquel Matos a ajuda na preparação da versão original deste texto. O relatório final do projecto (Nunes et al., 2008) está disponível em www.ces.uc.pt. Veja‐se ainda Nunes (2004; 2007). Um agradecimen‐to  especial  é  devido  aos  Professores Manuel  Sobrinho  Simões,  José  Carlos Machado,  Céu Figueiredo e Francis Mígraud. 

ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 33‐54. 

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34  João Arriscado Nunes 

de Helicobacter pylori por Warren e Marshall e nas publicações que documenta‐ram as diferentes  fases desse processo. O objectivo principal deste  texto é o de oferecer  uma  análise  e  interpretação  do modo  como  Helicobacter  pylori  se  foi constituindo  numa  entidade  real  através  do  trabalho  de  criação  de  associações com  actores  e  entidades heterogéneas,  traçando o percurso de uma  “ontologia móvel” (Daston, 2000)2 que a levou, sucessivamente, da condição de agente pato‐génico plausível à de entidade inexistente e, finalmente, à de entidade biomédica estabelecida e reconhecida. 

A abordagem 

A  abordagem  aqui mobilizada  é  inspirada na  chamada  Teoria do Actor‐Rede (TAR)  e,  em  particular,  na  versão  proposta  por Michel  Callon  em  1986  (Callon, 1999).3 Mais do que uma teoria, a TAR é um conjunto de abordagens que partilham premissas comuns no plano da ontologia e dos procedimentos. A versão aqui adop‐tada é especialmente adequada à tarefa de rastrear os processos de constituição de associações fortes entre actores humanos e não‐humanos que permitem “fazer exis‐tir” entidades como bactérias que causam doenças enquanto entidades que podem ser  conhecidas  e manipuladas  no  quadro  de  práticas  clínicas  e  de  investigação, enquanto elementos do que Keating e Cambrosio designam de plataformas biomé‐dicas (Keating e Cambrosio, 2003). A história de Helicobacter pylori constitui um caso exemplar do  tipo de processos que Callon e Latour descreveram e discutiram nos seus trabalhos pioneiros de meados da década de 1980 (Latour, 1984; Callon, 1999). 

Callon  (1999) distingue quatro momentos no processo de  forjar associações fortes através do que, no vocabulário da TAR, se designa de “tradução”: problema‐tização,  interessamento, alistamento e mobilização. De  facto,  como nota Callon, esses quatro momentos tendem a recobrir‐se parcialmente, e qualquer relato do processo de tradução terá de  lidar com as contingências que daí decorrem e que caracterizam os processos de tradução. 

A primeira fase, a problematização, corresponde ao processo através do qual certos actores se  tornam  indispensáveis para  responder a uma dada situação ou problema. Inclui‐se aqui a definição do problema de uma forma que seja capaz de compelir  outros  actores  a  juntar‐se  aos  que  problematizam.  É  possível,  assim, identificar dois actores, Robin Warren e Barry Marshall, como o “primum movens da história” (Callon: 1999: 68). Seguindo uma prática comum associada à versão da TAR aqui adoptada, irei organizar o relato que se segue em torno do “seguir” des‐ses dois actores. Neste caso, e como veremos, os que problematizam não são ape‐nas Marshall e Warren, mas  também as bactérias: estas criam  literalmente uma situação problemática à qual Marshall e Warren respondem através de nova pro‐blematização.  São  ainda  possíveis  problematizações  alternativas,  e  por  isso  são necessários outros passos para que uma delas se afirme como a maneira “certa” ou “única” de  lidar com a situação. A problematização envolve a definição de um 

                                                              2 Sobre este tema, veja‐se ainda Nunes et al. (2008), especialmente os capítulos 1 e 6; Geison e Laubichler (2001); e Rheinberger (1997). 

3 Para  abordagens mais  gerais  da  TAR  e  das  suas  diferentes  versões,  veja‐se  Law  e  Hassard (1999) e Latour (2005). 

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A Importância da “Baixa” Tecnologia na Inovação em Biomedicina  35 

ponto de passagem obrigatório para todos os actores, sem o que estes não serão capazes de responder adequadamente e com sucesso à situação  (de acordo com as  suas  expectativas  e objectivos). A  segunda  fase, o  interessamento,  exige que aqueles que aderiram à definição do problema proposta na primeira  fase  sejam “fixados”,  tornando  elevados os  custos  de não  se  aliarem  aos  “problematizado‐res”. Para isso, estes recorrem a “dispositivos de interessamento”, que são coloca‐dos  entre  os  aliados  potenciais  e  outros  actores,  opositores  ou  potencialmente hostis. A fase seguinte, o alistamento, implica a atribuição de papéis específicos a todos os  “interessados”  e  a  sua  coordenação.  Em  situações  como  a que  é  aqui considerada, esse resultado é conseguido através da produção de enunciados que têm a pretensão de ser mais certos ou rigorosos, bem como dos meios de os pôr à prova de maneira a confirmar a capacidade desses enunciados de resistir a críticas ou a problematizações alternativas ou, ao contrário, a tornar visível a sua vulnera‐bilidade ou fragilidade. Finalmente, o quarto momento, a mobilização, diz respeito ao modo como os “problematizadores” se tornam porta‐vozes dos outros actores que foram “interessados” e “alistados”. 

Os materiais utilizados incluíram as narrativas de Marshall e de Warren publi‐cadas num  volume organizado por Marshall que  reúne um  conjunto de  ensaios sobre a história das observações e da  investigação  sobre bactérias no estômago humano  (2002a),  artigos  publicados  por Warren  e Marshall  entre  1983  e  1985, outras publicações e entrevistas realizadas em Outubro de 2007, com vários pro‐tagonistas deste episódio da história da biomedicina.4 O foco deste texto incidirá, nas secções seguintes, no processo de emergência da entidade que viria ser desig‐nada Helicobacter pylori, ou seja, até à demonstração bem sucedida da sua relação causal com doenças comuns da região gástrica. 

Helicobacter antes de Helicobacter, ou a impossível infecção… 

Em 1979, Robin Warren, então patologista no Royal Perth Hospital, na Austrá‐lia,  encontrou  em  biopsias  da mucosa  gástrica  de  doentes  com  gastrite  o  que pareciam  ser  bactérias  em  forma  de  S.  Através  de  um  processo  de  coloração comum, Warren estabeleceu que se tratava, de facto, de bactérias. O que havia de estranho na descoberta de Warren era o facto de ela contradizer o que, na altura, era uma posição consagrada na gastroenterologia que, desde há mais de um sécu‐lo, mas sobretudo desde os trabalhos de Ed Palmer, publicados em 1954, afirmava que as bactérias não podiam sobreviver no ambiente ácido do estômago, a não ser em estômagos atróficos ou afectados por úlceras.5 Mas, mesmo nesses  casos, a 

                                                              4 A análise foi realizada, sobretudo, a partir de uma leitura rigorosa (close reading) das narrativas de Warren (2002) e Marshall (2002b), que constituem os dois relatos mais completos e pormeno‐rizados deste episódio que estão disponíveis. A sua riqueza e pormenor tornam‐nos especialmen‐te adequados ao  tipo de análise que aqui é oferecida. Entre as publicações anteriores sobre o mesmo episódio, as mais interessantes são as do filósofo da ciência Paul Thagard (1998a; 1998b; 1999). A abordagem de Thagard, contudo, difere da que aqui é proposta, na medida em que ela procura, sobretudo, ilustrar uma teoria sobre a descoberta e a explicação na actividade científica. Para uma apresentação e discussão mais extensas e detalhadas dos  resultados do projecto de investigação em que se baseou este texto, veja‐se Nunes et al. (2008). 

5 Sobre a história de como as bactérias no estômago foram convertidas de entidades plausíveis em entidades  inexistentes, veja‐se as contribuições  incluídas em Marshall (2002a) e Nunes et al. (2008: 71‐73). 

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posição corrente era a de que a  infecção bacteriana parecia ser secundária e de  pouca relevância, e de forma nenhuma deveria ser considerada como a causa da doença ou lesão (Warren, 2002: 151‐152; Palmer, 1954). 

As práticas então correntes na gastroenterologia e na patologia gástrica aju‐davam  a  consolidar  essa  posição. Antes  da  década  de  70,  as  endoscopias  eram menos  comuns do que  viriam a  ser mais  tarde, e a maioria dos estômagos que apareciam  nos  laboratórios  de  patologia  eram  enviados  de  blocos  operatórios, mas provinham  também de autópsias, chegando ao  laboratório  já depois de  ini‐ciada a digestão dos tecidos por acção de enzimas e ácidos. Por essas razões, nem as  bactérias  nem  os  pormenores  da mucosa  gástrica  estavam  disponíveis  para exame patológico. A gastrite crónica era, por isso, difícil de diagnosticar, e pensa‐va‐se  que  ela  tinha  uma  importância menor  do  que  as  úlceras  ou  o  cancro  do estômago. Só as patologias mais visíveis recorrendo às tecnologias então utilizadas eram, por isso, identificadas com mais frequência (Warren, 2002: 152). 

Warren elenca, a esse propósito, um conjunto de crenças, práticas, tecnologias e patologias. Em primeiro lugar, refere‐se a um “estilo” de visualização e interpreta‐ção de materiais de biopsias e de outros espécimes associado à crença na ausência de bactérias como causa de doenças do estômago humano. Em segundo lugar, essa crença  está  associada, por  sua  vez,  às  características dos materiais  acessíveis  aos patologistas e às formas então correntes de descrever patologias gástricas. O uso de tecidos animais como ilustração em manuais contribuiu, segundo Warren, para essas descrições (equivocadas, ainda segundo ele). Finalmente, o uso limitado de tecnolo‐gias como a endoscopia – e as próprias limitações dessa tecnologia, até ao início da década  de  70  –,  não  permitiam  a  obtenção  de  biopsias  gástricas  “bem  fixadas”. Estamos, assim, perante o que parece ser uma configuração robusta de factores que se opõem a que as bactérias sejam “visíveis”. 

Qualquer mudança nessa configuração exigiria, para começar, que a sua con‐sistência, ou a congruência dos elementos que a constituíam, fosse contestada de forma eficaz, através do enfraquecimento e, a seguir, da dissolução dos vínculos que mantinham as relações entre esses elementos. O trabalho de Warren durante os anos  finais da década de 70  irá, precisamente, dar os primeiros passos nessa direcção,  passando  por  três  acontecimentos  principais.  O  primeiro,  que  não  é facilmente identificável a partir das cartas e dos artigos publicados, foi a adopção entusiástica de uma nova classificação das gastrites, publicada em 1972 por Whi‐tehead, Truelove e Gear, que Warren considerou “lógica e fácil de usar”, em con‐traste com práticas anteriores de descrição e classificação de cortes de biopsias. Essa classificação baseava‐se no uso de características como a localização da biop‐sia, a sua profundidade, o tipo e severidade da  inflamação, o grau de atrofia das glândulas  gástricas  e  a  presença  de  metaplasia  intestinal  (Warren,  2002).  Um aspecto que Warren destacou e que viria a ser particularmente importante para o seu trabalho foi a descrição de uma “alteração histológica específica que [os auto‐res]  referiam  como  ‘actividade’,  e que  era uma  característica  comum que havia antes sido ignorada. Podia ver e medir essas alterações, e os resultados pareciam consistentes” (Warren, 2002: 152). 

O segundo acontecimento foi o surgimento, pela mesma época, de uma nova tecnologia para a gastroscopia, o endoscópio de fibra óptica, que finalmente veio a permitir  a obtenção de biopsias  gástricas  adequadas. O  terceiro  acontecimento, 

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finalmente,  foi o  interesse pouco ortodoxo de Warren por diferentes modos de coloração para a visualização de bactérias em cortes histológicos (Warren, 2002). Dado que a maioria das técnicas usadas para esse efeito coloriam também os teci‐dos e assim tornavam “muito difícil ver micro‐organismos contra esse fundo com‐plexo”, Warren veio a interessar‐se por duas técnicas que não apresentavam esse problema: a coloração de Gram e a de Warthin‐Starry, especialmente a segunda. Um elemento adicional foi a microscopia electrónica, a que voltaremos mais tarde, que melhorou  consideravelmente  a  capacidade  de  visualizar  os  pormenores  de cortes de biopsias.6 

Em Junho de 1979, Warren tinha à sua disposição biopsias gástricas bem fixa‐das, que davam a ver, à superfície, grandes quantidades de “bactérias suspeitas” (Warren, 2002: 153). O próprio Warren descreve o acontecimento em termos pró‐ximos dos da descrição de um actor‐rede, de uma associação de actores humanos, de tecnologias e de materiais biológicos: 

Eu havia assistido à chegada do endoscópio e à consequente melhoria da qualidade das biopsias gástricas. Tinha  lido a descrição, por Whitehead, da histologia e patologia gástricas. Andava a experimentar usos da colo‐ração de Warthin‐Starry. Assim, pedi a coloração, neste caso, e lá estava, diante dos meus olhos, uma bela  coloração de prata,  com numerosos bacilos  visíveis  com  clareza, mesmo  com  ampliação  de  baixa  potência (Warren, 2002: 153). 

No relatório dessa observação, Warren sugere, pela primeira vez, uma possível associação entre a gastrite e a presença de bactérias, e faz a primeira referência a essas  bactérias  como  apresentando  a morfologia  de  bactérias  pertencendo  a  um género  já conhecido, o género Campylobacter. O  relatório, de  facto,  faz convergir, no mesmo  texto, a descrição de uma  lesão da mucosa gástrica de um doente e a referência à presença de bactérias, e sugere uma possível associação entre os dois, baseada principalmente na  localização das bactérias. O papel da microscopia elec‐trónica nesta observação  aparece, pela primeira  vez,  como um  elemento  central, cuja importância irá crescer ao longo dos anos seguintes. Warren, contudo, não pro‐pôs nenhuma explicação e recomendou que a condição do doente continuasse a ser investigada. Mas  estava  presente,  já,  a  sugestão  de  que  a  infecção  pela  bactéria poderia ser a causa da lesão observada. Estavam aqui reunidos, pela primeira vez, os principais  ingredientes  daquela  que  viria  a  ser  a  sua  primeira  publicação  sobre  o tema, uma carta ao director da revista Lancet, publicada em 1983. 

Os  colegas  de Warren  consideravam  que  as  bactérias  por  ele  observadas eram  indubitavelmente entidades  reais, mas  sugeriram‐lhe que procurasse mais casos. De facto, a multiplicação de observações permitiria tornar as conclusões de Warren mais  robustas, mais  resistentes  a  eventuais  críticas  ou  a  tentativas  de minimizar a sua importância convertendo‐as em excepções ou em artefactos pro‐duzidos pelas condições e técnicas de observação. Nessa altura, o que estava em jogo era a própria realidade das bactérias observadas e da sua localização e coinci‐dência com lesões específicas do estômago, o seu estatuto enquanto “matérias de 

                                                              6 Para um estudo pormenorizado do modo como a microscopia electrónica influenciou de maneira decisiva a investigação nas ciências da vida e na biomedicina, veja‐se Rasmussen (1997). 

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facto”, contra as tentativas de desacreditar as observações, denunciando‐as como artefactos. Essa era a condição para um primeiro e decisivo passo na desarticula‐ção da configuração dominante de crenças e de práticas, ainda que, nessa altura, tal objectivo não fosse ainda explicitamente assumido. 

Ao  longo dos meses seguintes, Warren foi acumulando observações de bacté‐rias em mais casos, ainda que elas fossem, em geral, em menor número e apresen‐tassem distribuições menos concentradas. Foi possível, contudo, confirmar algumas características morfológicas comuns aos diferentes casos e, sobretudo, parecia cada vez mais evidente a existência de uma  relação entre a presença das bactérias e a ocorrência de  gastrite  crónica  activa. A  capacidade de  identificar  as bactérias  em biopsias e de observar as alterações histológicas nos mesmos casos, segundo o pró‐prio Warren, dependia, em boa medida, da experiência adquirida através da própria prática da observação dos casos (Warren, 2002: 154). Warren estava consciente de que a partilha das  suas observações de modo a persuadir os  seus colegas de que havia  ali  algo  que merecia  atenção  e  esforços  sustentados  obrigava  a  ampliar  o número de observadores e, ao mesmo tempo, a definir um modo de registar obser‐vações que permitisse compará‐las. Ao  longo dos anos seguintes, de facto, tanto o número de observações como de observadores viriam a crescer. 

Chegado a este ponto, Warren conseguira recrutar outros patologistas para a observação e registo da presença de bactérias em biopsias. Além disso, havia con‐seguido “persuadir” as bactérias a tornar‐se visíveis, através do uso de técnicas de coloração adequadas. Mas ainda não conseguia encontrar aliados entre os clínicos. Os interesses destes, de facto eram diferentes dos interesses dos patologistas. Os clínicos  estavam  interessados  em  biopsias  de  qualquer  parte  do  estômago,  que lhes  permitissem  identificar  anomalias  ou  lesões  como  tumores  ou  úlceras.  A maioria considerava ridícula a  ideia de colher amostras do estômago para fins de cultura microbiológica. Tanto a doxa médica como o ethos clínico pareciam, assim, constituir obstáculos importantes para os projectos de Warren: 

Cuidar dos doentes era a sua preocupação principal, antes de qualquer projecto  de  investigação  esotérico.  De  qualquer modo,  toda  a  gente sabia desde há um século que as bactérias não cresciam no estômago. Porque haveria um gastroenterologista equilibrado de  colher amostras de partes aparentemente normais do estômago para procurar bactérias? (Warren, 2002: 154). 

De  cada  vez  que Warren  tentava  discutir  com  clínicos,  estes  costumavam fazer‐lhe duas perguntas. A primeira era: “Se as bactérias estão realmente lá, por‐que é que elas não são, simplesmente, secundárias em relação à  inflamação?” A segunda pergunta era: “Se as bactérias estão realmente lá, porque é que ninguém as descreveu?” A resposta de Warren à primeira pergunta era que, enquanto pato‐logista, não podia ignorar que as “características, posição e distribuição dos bacilos tinham a aparência de uma  infecção primária, com dano secundário da mucosa”. Quanto à segunda pergunta, nessa época, ainda não havia resposta. Embora hou‐vesse, de facto, registos de observações, eles haviam sido ignorados ou postos de lado, e o já referido artigo de Palmer, de 1954, continuava a ser considerado como a referência com mais autoridade sobre o tema. A falta de respostas convincentes e apoiadas na autoridade de  resultados  reconhecidos  tornava difícil persuadir os 

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clínicos a apoiar Warren, e significava também que as respostas obrigariam a um enorme esforço, necessário para desfazer as associações fortes entre a doxa médi‐ca e a prática clínica (Warren, 2002: 155, 157). 

Um ano mais  tarde, Warren descobriu que o Departamento de Microscopia Electrónica do hospital onde trabalhava possuía um arquivo de cerca de uma cen‐tena de  imagens que mostravam bactérias. Essas  imagens haviam sido encontra‐das por um dos seus colegas, o Professor Papadimitriou, que havia também elabo‐rado  descrições  dessas  imagens.  Warren  tentou  convencer  Papadimitriou  a escrever  um  artigo  em  co‐autoria, mas  este  recusou,  parecendo  atribuir  pouca importância ao assunto. Mesmo os que haviam observado bactérias pareciam ter pouco  interesse em trabalhar sobre o assunto (Warren, 2002: 157). Warren deci‐diu, assim, prosseguir sozinho o trabalho, mas adoptando uma estratégia diferen‐te.  Iniciou um estudo baseado no controlo negativo de biopsias gátricas arquiva‐das,  com  o  objectivo  de  descobrir  em  quantos  dos  casos  que  haviam  sido codificados como “normais” apareciam bactérias. Apesar das dificuldades, Warren conseguiu encontrar 20 casos (dos quais foi excluído um, por erro de codificação). Ao mesmo tempo, nas biopsias com que trabalhava, Warren continuou a encon‐trar bactérias em cerca de metade dos casos, “geralmente em biopsias com gastri‐te crónica e apresentando alterações activas”. Inversamente, nos casos “normais” as bactérias não apareciam. (Warren, 2002: 158). 

Warren  começou  então  a  preparar  um  artigo,  e  quase  o  tinha  terminado quando conheceu, em 1981, Barry Marshall. Marshall estava então em estágio no Royal Australasian College of Physicians, no departamento de Gastroenterologia, e tinha como uma das suas tarefas a realização de um pequeno projecto de investi‐gação. Marshall viria a tornar‐se o aliado crucial de que necessitava Warren para encontrar o elo que faltava entre os resultados das análises histológicas e bacterio‐lógicas e o que acontecia com os doentes. 

Em  1981,  o  alinhamento  de  actores  no  drama  em  curso  das  bactérias  no estômago era, pois, o seguinte: 

– Robin Warren, um patologista com um projecto “excêntrico”; 

– Robin Warren, um jovem médico; 

– Bactérias em biopsias da mucosa gástrica, observadas por Warren, e apa‐rentemente associadas à gastrite crónica activa; 

– Técnicas de coloração que permitiam às bactérias tornar‐se visíveis; 

– Microscopia electrónica, aumentando a visibilidade das bactérias e da sua localização; 

– Especialistas em microbiologia que ajudavam a processar e  fazer a cultura das bactérias; 

– Gastroenterologistas, a maioria dos quais estavam alinhados com a ortodo‐xia e manifestavam cepticismo em relação aos resultados obtidos e reivin‐dicados por Warren. 

Do laboratório ao gabinete de consulta e de volta ao laboratório 

A chegada de Marshall permitiu  forjar uma colaboração baseada numa con‐vergência parcial de interesses: 

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Eu  estava  interessado  nas  bactérias  de  Robin  porque,  como  ele  e  eu sabíamos,  supunha‐se  que  o  estômago  era  estéril.  Na  altura,  eu  não sabia, mas ele tinha tentado já desde há algum tempo, mas sem sucesso, recrutar outros para o trabalho… Eu não tinha nenhuma opinião especí‐fica  acerca  da  patogenicidade  dos  organismos  gástricos, mas  sabia  da existência  de  publicações  que  descreviam  Campylobacter  jejuni  como uma  causa  comum  e  recém‐descoberta  de  gastroenterite  e  de  colite associada a alimentos (Marshall, 2002b: 169‐170). 

Por essa altura, Warren tinha ainda de convencer Marshall da plausibilidade da patogenicidade das bactérias no estômago. Apesar de o próprio Marshall reco‐nhecer não ter opinião formada sobre o assunto, estava aberto a uma colaboração com o objectivo de organizar as experiências que permitiriam pôr à prova a possi‐bilidade avançada por Warren, com base nos resultados que havia obtido. Numa longa conversa com Marshall, Warren “apresentou uma argumentação tão boa a favor das bactérias como agentes patogénicos que eu aceitei o conceito de manei‐ra quase natural”. Afinal, “uma nova espécie de bactéria daria uma bela publica‐ção, independentemente de efectivamente causar ou não uma doença” (Marshall, 2002b: 170). 

A  contribuição  de Marshall  para  a  colaboração  incluiu  a  tarefa  crucial  de estabelecer a ligação entre o trabalho em curso e a bibliografia sobre “referências anteriores a bactérias curvas”. Foi assim que Marshall viria a deparar com um con‐junto de descrições de observações de organismos que apresentavam uma forma idêntica, do Handbook of Physiology de Susumu Ito a Vial e Orrego, Salomon e Biz‐zozero, Freedberg e Barron e Doenges, sendo os últimos três artigos identificados através de uma citação no influente artigo de Ed Palmer, de 1954.7 A sua primeira reacção  foi  de  decepção,  ao  verificar  que  bactérias  espiralóides  haviam  já  sido descritas. Ao mesmo  tempo,  contudo,  nessas  publicações  não  se  considerava  a relação  com a gastrite,  “porque a maior parte dos estudos eram  sobre animais, pós‐mortem ou sobre materiais de gastrectomias” (Marshall, 2002b: 170). 

Esta observação aponta para um aspecto crucial da construção dos objectos científicos que está no centro de abordagens como a TAR e, de maneira mais geral, das abordagens nos estudos  sobre a ciência e na história e  filosofia das ciências inspiradas  pela  filosofia  pragmatista:  os  objectos  científicos  não  são  definidos através de propriedades  intrínsecas ou essenciais, mas através das  suas  vincula‐ções ou dos seus efeitos, isto é, daquilo que eles fazem (Nunes, 2008). Este aspec‐to foi bem compreendido (ainda que não nos mesmos termos em que aqui é apre‐sentado) por Warren e Marshall, que não se limitaram a considerar as bactérias e a  sua morfologia, mas desde muito cedo  se  interessaram pelas  suas associações com certas patologias.  Isto não significa, contudo, que tenham sido abandonados os esforços de identificação das bactérias observadas. A revisão bibliográfica efec‐tuada por Marshall  incluía o volume crescente de publicações sobre o que então se  chamava  os  “Campylobacter‐like  organisms”  (CLOs)  encontrados  em  seres humanos. Essa revisão mostrava que algumas das espécies de identificação recen‐te eram comensais, o que suscitava dúvidas, mais uma vez, sobre o possível esta  

                                                              7 Sobre esses trabalhos, veja‐se as contribuições incluídas em Marshall (2002a). 

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tuto  de  agentes  patogénicos  das  bactérias  observadas  por  Warren  (Marshall, 2002b: 170). 

Outras revisões bibliográficas chamaram a atenção para estudos de biopsias gástricas de pessoas  com estômagos  “normais”. Esta  viria  a  ser uma orientação decisiva para o trabalho subsequente, dado que Warren e Marshall estavam inte‐ressados  na  presença  de  bactérias  espiralóides  em  pessoas  sem  diagnóstico  de patologias  gástricas.  Essa  orientação,  contudo,  exigia  capacidade  para  recrutar estômagos “saudáveis” para o estudo, dado que “as  séries de biopsias de Robin haviam sido escolhidas para ele pelos gastroenterologistas que investigavam resul‐tados anómalos de endoscopias” (Marshall, 2002b: 170). 

Marshall trabalhou sobre os primeiros 25 registos de Warren, codificou‐os e ampliou o estudo de maneira a  incluir  informação  relevante obtida, sempre que possível, dos próprios doentes. Tanto Warren como Marshall estavam convencidos de que seria necessário trabalhar sobre biopsias “frescas” obtidas através de um estudo específico e, a partir dessas biopsias,  fazer culturas de bactérias. Warren pediu,  assim,  a Marshall  “biopsias  limpas”  de  áreas  do  antro  gástrico  que  não tivessem sido afectadas por  lesões, em vez de biopsias de rotina, menos adequa‐das a exames histológicos de gastrites. Marshall  recrutou vinte doentes entre os que  se apresentavam no hospital para endoscopias, e que  tivessem  suspeita de gastrite. Foram ainda colhidas biopsias adicionais de áreas do antro gástrico que, durante a endoscopia, parecessem normais. Nos cortes dessas biopsias,  tanto as bactérias como a gastrite activa eram frequentes, o que animou Marshall a pros‐seguir a investigação (Warren, 2002: 159). 

Marshall não só conseguiu “alistar” doentes, mas também a colaboração do Departamento de Microbiologia do Royal Perth Hospital, onde havia sido estabele‐cida uma  rotina para a  cultura de bactérias espiralóides, apoiada na experiência anterior  com  Campylobacters.  Apesar  do  sucesso  na  identificação  de  bactérias, durante seis meses falharam todas as tentativas de efectuar a sua cultura, mesmo com variações de meio e de atmosfera (Marshall, 2002b: 173). 

Entretanto, em Outubro de 1981, ocorreu um episódio que viria a ser decisi‐vo: o primeiro tratamento bem‐sucedido com terapia anti‐infecciosa de um doen‐te que se queixava de  fortes dores de estômago e que apresentava, simultanea‐mente,  inflamação  do  estômago  e  a  presença  de  bactérias  espiralóides.  O tratamento foi feito com tetraciclina, dado que era conhecido o facto de os CLOs serem sensíveis a esse composto. Tanto o doente como o médico que o assistia acederam  a  experimentar  o  tratamento  e  a  realizar  nova  endoscopia  e  biopsia passadas duas semanas. Os sintomas desapareceram, e o paciente ficaria espanta‐do ao descobrir que tal ocorrera graças a um tratamento com antibiótico (Marshall, 2002b: 173). Para Marshall e Warren, contudo, as coisas estavam longe de ser cla‐ras. O estômago do doente continuava a mostrar sinais de  inflamação, ainda que tivesse havido melhoria na histologia e tivessem desaparecido as bactérias. E com um único caso seria  impossível argumentar de maneira sólida a  favor da eficácia do tratamento com antibióticos, dado que continuavam a faltar provas de que as bactérias  seriam  a  causa do problema.  Este  episódio  acabaria,  contudo, por  ter duas consequências  importantes. A primeira  foi a decisão de  realizar um estudo numa escala mais ampla. A segunda tinha a ver com o facto de que o procedimen‐to seguido por Warren e Marshall os sujeitava a serem acusados de violações éti‐

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cas,  com o possível  resultado de  afastar doentes,  colegas  e  a  administração do hospital. Um estudo mais amplo  teria de  ser  realizado em  condições diferentes: “Fazer uma biopsia desnecessária é uma coisa, mas usar resultados pouco claros desse espécimen para justificar uma terapia com antibióticos era outra” (Marshall, 2002b: 173). 

Em  1982,  foi  proposto  um  estudo‐piloto  com  100  doentes,  recrutados  de maneira sucessiva entre os que compareciam no hospital para realização de gas‐troscopias, e que poderia constituir a base de um “ensaio mais elaborado com um grupo de controlo, envolvendo endoscopias e biopsias após o tratamento, com um antibiótico apropriado, de doentes afectados”  (Marshall, 2002b: 175; Marshall e Warren, 1984). O protocolo do projecto definia assim as perguntas a que este pro‐curava responder: 

Está a bactéria observada presente em estômagos normais? Pode‐se cor‐relacionar a presença da bactéria com o tipo e severidade da patologia gástrica? É possível fazer culturas do organismo? Nos doentes que, inde‐pendentemente da  razão para  tal,  foram  submetidos a gastroscopias e biopsias subsequentes, verifica‐se correlação da persistência ou desapa‐recimento  do  organismo  com  os  sintomas  apresentados  pelo  doente? (Marshall, 2002b: 175) 

Todos os participantes eram voluntários, e era exigido consentimento  infor‐mado. Os  procedimentos mobilizados  para  o  estudo  incluíam:  um  questionário incidindo  sobre  um  leque  de  condições  que  poderiam  estar  associadas  com  a infecção bacteriana; gastroscopia; análise histológica; microscopia electrónica; e, depois de codificados os resultados, análise estatística. O questionário focava tópi‐cos  como  “sintomas,  uso  de medicamentos,  alimentação,  animais  domésticos  e viagens”. O  interesse nestes  temas devia‐se a algumas especulações  informadas de Marshall sobre as possíveis origens das bactérias, tais como contaminação por animais, presença do organismo entre os dentes de seres humanos, presença no leite ou em produtos  lácteos, redução na protecção do estômago humano contra agentes  infecciosos  devido  ao  uso  crescente  de medicamentos  anti‐ácidos,  um micro‐organismo  trazido da Ásia para  a Austrália por  turistas, ou mesmo  algum acontecimento desconhecido ou não‐explicado. Havia também especulações sobre se o micro‐organismo não seria especificamente australiano.8 

Foram feitas culturas das bactérias encontradas, recorrendo às mesmas téc‐nicas usadas para a cultura de bactérias do género Campylobacter – cuja cultura era efectuada, em geral, a partir de amostras fecais –, dado que Warren sugerira a existência de semelhanças entre essas bactérias e as “suas”. A diferença estava na não  utilização  dos  antibióticos  que  costumavam  ser  usados  no  procedimento‐‐padrão. As culturas eram deixadas numa câmara de cultura microaeróbica duran‐te dois dias, como era habitual, e, se após serem examinadas não apresentassem organismos considerados invulgares, eram destruídas (Marshall, 2002b: 177). Tra‐tava‐se de  técnicas  laboratoriais de  rotina que, por motivo de uma epidemia de um agente infeccioso num dos serviços do hospital, que mobilizara todos os técni‐  

                                                              8 Para mais pormenores sobre o estudo, ver Marshall e Warren (1984) e Nunes et al. (2008: 84‐86). 

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cos com mais experiência, foram executadas por  jovens técnicos, que seguiram a rotina. Num primeiro momento, todas as culturas foram negativas. Devido a uma distracção, porém, uma das culturas  foi deixada numa câmara durante um  longo feriado de cinco dias. Verificou‐se, depois, que se haviam formado colónias na pla‐ca, que depois de transferidas para lâminas e efectuada a coloração, mostravam a presença de bactérias. Através de microscopia electrónica,  foi possível examinar em pormenor a morfologia dessas bactérias. Estas eram espiralóides, semelhantes a Campylobacter, excepto no que  respeitava à presença de quatro  flagelos  com uma forma invulgar. A reparação de uma avaria no incubador permitiu obter rapi‐damente mais culturas, o que tornou possível diagnosticar de maneira “muito fiá‐vel” a presença das bactérias (Warren, 2002: 160). 

Embora Marshall tivesse de partir para Port Hedland, uma pequena cidade a 200 km a Norte de Perth, antes da conclusão do estudo, conseguiria ainda “termi‐nar  a  organização  do  ensaio,  convencer  os  clínicos  a  levar  os  seus  doentes  a preencher os nossos questionários pormenorizados, e associar todos os resultados clínicos ao meu relatório histológico” (id.). Marshall levou consigo os relatórios das endoscopias e organizou‐os. O resultado foi, para surpresa de ambos, que Warren havia encontrado a bactéria em todos os doentes com úlceras duodenais (13), em 24 dos 28 doentes com úlcera gástrica. “Pudemos assim mostrar que as bactérias estavam relacionadas com o tipo ‘activo’ de gastrite crónica, que delas podiam ser feitas culturas e que eram uma nova variedade de bactéria, e que estavam  rela‐cionadas com úlceras pépticas e, de maneira muito forte, com úlceras duodenais. Este último ponto foi verdadeiramente inesperado” (id.).  

Essa associação, explicitamente reconhecida como inesperada, entre a bacté‐ria e dois tipos de úlceras tornar‐se‐ia mais um passo no reforço das associações necessárias  à  transformação  da  nova  bactéria  num  agente  infeccioso  activo.  O passo  seguinte  seria  a  publicação  desses  resultados,  de  preferência  numa  das revistas médicas de referência. Marshall propôs o envio de uma carta com a des‐crição dos resultados para a revista Lancet. Warren assumiu essa tarefa, redigindo uma  versão  resumida  de  um  artigo  não  publicado  que  descrevia  os  primeiros resultados do seu trabalho. Marshall pensava que a carta não continha nada que pudesse  ser  considerado  “novo”,  e por  isso propôs  escrever uma  carta  comple‐mentar com uma descrição preliminar do trabalho que havia realizado com War‐ren. Ambas as cartas foram enviadas para a revista Lancet e publicadas em 1983, após alguma discussão e negociação com o director da revista (Nunes et al., 2008: capítulo 4). 

Warren e Marshall haviam conseguido, nesta fase, alistar novos e poderosos aliados:  os  doentes  que  se  submetiam  voluntariamente  a  gastroscopias.  Outro importante  aliado  era  constituído  pelos  especialistas  em  microbiologia,  que haviam aceitado o desafio do processamento e  cultura do que  se veio a  revelar como uma nova espécie de micro‐organismo. Mas um acontecimento contingente contribuiu também para converter o que podia ter sido um falhanço rotundo num sucesso: uma peça de equipamento que funcionara mal e uma distracção que aca‐bou por resultar numa experiência bem sucedida. 

Warren e Marshall dispunham agora de todos os recursos necessários ao lan‐çamento  de  um  primeiro  desafio  explícito  à  doxa  da  gastroenterologia  e  à demonstração de que os seus resultados eram, no mínimo, plausíveis. Por outras 

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palavras,  haviam  conseguido  problematizar  a  explicação  dominante  de  doenças gástricas comuns estabelecendo, em primeiro  lugar, que pode haver bactérias na mucosa gástrica; em segundo lugar, a co‐presença dessas bactérias e de caracterís‐ticas histológicas associadas à gastrite crónica activa; em terceiro lugar, que ambas as descobertas  se “aguentavam” quando eram examinadas biopsias do antro de um número estatisticamente significativo de doentes; e, finalmente, que as condi‐ções associadas à presença das bactérias identificadas através de exame histológi‐co podiam não ter relação com sintomas referidos pelos doentes. Cada uma destas afirmações desafiava directamente as abordagens dominantes entre os gastroen‐terologistas. Mas isso não era suficiente para que essas afirmações fossem conver‐tidas em matérias de facto reconhecidas como tais por aqueles que eram desafia‐dos,  e  suficientemente  robustas pare que novos  aliados  se  juntassem  ao  actor‐‐rede em  vias de  constituição.  Faltava ainda um passo  importante: a publicação em revistas com avaliação pelos pares e/ou a apresentação dos resultados a reu‐niões científicas. A publicação, em particular, confere a enunciados o estatuto de enunciados verdadeiros que conseguiram transpor com sucesso a prova da avalia‐ção pelos pares. 

Publicar, porém, era apenas uma de entre várias tarefas que esperavam War‐ren e Marshall. Estes  teriam ainda de mostrar que era do  interesse do conjunto dos  actores  envolvidos  aceitar  os  seus  enunciados  e  seguir  o  caminho  por  eles apontado para o diagnóstico e para o tratamento das doenças gástricas comuns. Para os doentes,  isso significaria a possibilidade de diagnósticos mais rigorosos e de  terapias mais eficazes. Para os  clínicos, o que estava em  jogo era o acesso a meios mais eficazes de descrição da etiologia das doenças gastroduodenais, do seu diagnóstico e  tratamento. Mas  seria preciso ainda persuadir as bactérias a mos‐trar‐se, a revelar a sua existência e a dar a ver as propriedades que lhes eram atri‐buídas pelos  investigadores. Por outras palavras, as bactérias teriam de ser disci‐plinadas.  Mas  disciplinar  micro‐organismos  (ou  quaisquer  outros  objectos  de investigação) exige, em primeiro  lugar, que eles sejam “autorizados” a responder aos desafios que lhes são colocados pelos procedimentos experimentais. Para con‐seguir  domesticar  as  bactérias,  seria  necessário  transformar  os  procedimentos desenvolvidos  por  Warren  e  Marshall  em  pontos  de  passagem  obrigatórios (Latour, 1984) na busca de formas adequadas de diagnóstico e de tratamento. Ao longo de todo esse processo, e apesar dos sucessos indiscutíveis no alistamento de outros actores, Warren e Marshall tinham ainda pela frente a considerável oposi‐ção dos gastroenterologistas. 

A “fixação” dos aliados 

A “fixação” dos aliados de Warren e Marshall nas posições e nos papéis que estes  procuravam  atribuir‐lhes  exigia  que  as  identidades  desses  aliados  fossem estabilizadas. Essa  tarefa,  contudo, não era de  todo  fácil. As bactérias  resistiam, muitas  vezes,  a  dar  a  ver  as  propriedades  que  lhes  haviam  sido  atribuídas,  e  a comportar‐se segundo as expectativas dos  investigadores. Os doentes, ainda que de  início  aceitassem  os  procedimentos  diagnósticos  e  os  tratamentos,  podiam tomar a decisão de abandonar os ensaios ou recusar‐se a cumprir as orientações terapêuticas, caso não fosse visível o sucesso destas. Os colegas podiam dissociar‐

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‐se das proposições de Warren  e Marshall, ou mostrar‐se  abertamente hostis  a estas.  Os  equipamentos  podiam  recusar‐se  a  funcionar  de maneira  adequada. Diferentes formas de resistência ou de  lealdades conflituais podiam  levar à rejei‐ção  das  proposições  de Warren  e Marshall.  Por  isso  era  crucial,  para  estes,  “a construção de dispositivos que pudessem ser colocados entre [inter esse] [os alia‐dos prospectivos] e todas as outras entidades que pretendessem definir de outro modo as suas identidades” (Callon, 1999: 72‐3). 

Warren e Marshall teriam, pois, e em primeiro lugar, de enfraquecer os laços entre os seus colegas e a ortodoxia dominante no meio da gastroenterologia; em segundo lugar, teriam de reduzir a invisibilidade e a falta de resposta das bactérias às formas de experimentação a que eram submetidas. A seguir, teriam de persua‐dir os seus colegas de que a  infecção bacteriana era a causa de doenças comuns do  estômago,  e  persuadir  os  doentes  de  que  o  seu  interesse  em  ter  acesso  a melhores meios de diagnóstico, a  tratamentos eficazes e, eventualmente, à cura para  os  seus  problemas  seria  salvaguardado  através  da  abordagem  que  propu‐nham. 

Estes dois tipos de operações exigiam que a demonstração da superioridade da abordagem proposta por Warren e Marshall fosse realizada de uma forma que resistisse às críticas, mostrando, em primeiro lugar, que as bactérias que eles afir‐mavam existir na mucosa gástrica dos doentes existiam de facto, e que não eram artefactos ou consequência de contaminações; em segundo  lugar, que essas bac‐térias não eram comensais, mas a causa da infecção associada às doenças; em ter‐ceiro lugar, que a resposta eficaz a pelo menos algumas das formas assumidas por essas doenças do estômago, como a gastrite crónica activa ou a úlcera péptica, era uma terapia anti‐infecciosa, não o tratamento com anti‐ácidos. Era necessário ain‐da outro passo, sem o qual os três aspectos referidos continuariam a ser vulnerá‐veis às críticas e a associação entre eles poderia ser desfeita ou debilitada: estabe‐lecer  ligações entre os resultados obtidos e a bibliografia relevante,  identificando referências de observações de patologias gástricas e descrições de bactérias espi‐ralóides na mucosa gástrica, estabelecendo uma  ligação entre esses dois  corpus bibliográficos e propondo uma forma plausível e robusta de os associar através de mecanismos explicativos. 

É neste ponto que a publicação assume importância estratégica. Entre 1982 e 1984, Warren e Marshall  transformaram as  inscrições produzidas no decurso do seu trabalho – notas de laboratório, relatórios de patologistas, questionários, pro‐tocolos, descrições de observações, micrografias, tabelas e gráficos… – em cartas, artigos ou  comunicações a enviar a publicações  com  avaliação pelos pares ou a reuniões científicas (Latour e Woolgar, 1986; Latour, 1987). Os obstáculos, porém, não tardaram a aparecer: 

Em Outubro  de  1982,  apresentei  os  resultados  preliminares  do  nosso estudo  ao  encontro  local  do  nosso  Colégio  de Médicos,  onde  foram recebidos de maneira desdenhosa e, principalmente, negativa. A princi‐pal objecção por parte dos gastroenterologistas era que o nosso estudo havia  encontrado  uma  forte  correlação  entre  gastrite  no  estômago  e úlcera  no  duodeno.  Esse  resultado  parecia  fora  do  lugar  e  incorrecto, dado que “toda a gente sabia” que a gastrite estava associada a úlceras gástricas, mas não especialmente a úlceras duodenais. Eu não tinha res‐

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posta a essa crítica, dado que não tinha tido formação específica em gas‐troenterologia e que as minhas  leituras  (aparentemente  selectivas) me tinham  ensinado  que  era mais  provável  a  associação  entre  gastrites  e úlceras duodenais do que entre  gastrites e úlceras gástricas  (Marshall, 2002b: 180). 

Estas críticas  levaram Marshall a voltar aos estudos publicados, que mostra‐vam que,  contrariamente  às  expectativas,  “as úlceras duodenais pareciam  asso‐ciar‐se mais fortemente às gastrites do que as úlceras gástricas, um ‘paradoxo’ que a  ‘comunidade de  investigação das úlceras’ parecia  ter  ignorado. Este  facto não batia certo com a compreensão então existente da etiologia das úlceras pépticas, e por  isso havia  sido  ignorada. Seria a gastroenterologia uma  ciência ou uma  reli‐gião? Decidi que era a segunda” (Marshall, 2002b: 180‐181). 

Já em 1981, tanto Warren como Marshall estavam conscientes da necessida‐de  de  publicar  os  seus  resultados  antes  que  alguém  os  “vencesse”,  publicando primeiro. Mas a produção das primeiras publicações esteve  longe de ser simples. Após um processo algo atribulado, como foi referido, duas cartas, da autoria, res‐pectivamente,  de Warren  e  de Marshall,  viriam  a  ser  publicadas  em  Junho  de 1983, na revista Lancet, constituindo o primeiro registo publicado do seu trabalho (Warren, 1983; Marshall, 1983).9 

A  partir  da  sua  nova  posição  no  Fremantle Hospital, Marshall  iniciou  uma colaboração  com  o microbiólogo David McGechie  e  com  uma  patologista,  Ross Glancy, que  lhe permitiu prosseguir a recolha de biopsias da mucosa gástrica e a cultura de bactérias, com uma taxa de sucesso desta última da ordem dos 90%. Foi nessa altura também que Marshall começaria a corresponder‐se com gastroente‐rologistas na Europa e nos Estados Unidos acerca de observações que pareciam ser  semelhantes  às  suas  ou,  pelo menos  convergentes  com  estas,  conduzindo igualmente à identificação e cultura de bactérias espiralóides a partir de biopsias. 

Contudo,  e  apesar  dessas  colaborações  internacionais,  as  relações  com  o “establishment” da gastroenterologia na Austrália continuavam a ser, no mínimo, difíceis: 

Em  Fevereiro  de  1983,  Robin Warren  e  eu  escrevemos  um  resumo  a apresentar ao encontro da Gastroenterological Society of Austrália, que teria lugar em Perth […]. Tínhamos a certeza de que o resumo seria acei‐te e, porque o encontro era  local, seriam muito reduzidos os custos de assistir  à  conferência  e  apresentá‐lo.  Lamentavelmente,  porém  […],  o nosso resumo não foi aceite, com uma carta de condolências do secretá‐rio que afirmava que “dos 67 resumos apresentados só pudemos aceitar 56”,  o  que  significava  que  o  nosso material  havia  sido  avaliado  como estando entre os últimos 10%! (Marshall, 2002b: 184). 

Os microbiólogos, em contrapartida, pareciam cada vez mais interessados nas bactérias recém‐descobertas. Em 1983, Marshall  foi convidado a enviar um resu‐mo ao Campylobacter Workshop, a  realizar em Bruxelas, onde apresentou a pri‐

                                                              9 Sobre  os  pormenores  do  processo  de  elaboração  e  publicação  das  cartas,  ver Nunes  et  al. (2008: 90‐91), e as versões  (não  inteiramente coincidentes) de Warren  (2002) e de Marshall (2002b). 

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meira versão de um artigo em co‐autoria com Warren, que viria a ser publicado no ano seguinte na revista Lancet (Marshall e Warren, 1984). O caminho para a publi‐cação, mais  uma  vez,  foi  tortuoso,  devido  à  dificuldade  em  encontrar  revisores para  o  artigo  que  concordassem  ser  este  “importante,  suficientemente  geral  e interessante  para  ser  publicado”.  O  artigo  seria  aceite,  finalmente,  em Maio  e publicado em Junho de 1984, acompanhado de um editorial que chamava a aten‐ção para a sua relevância, e de várias cartas, todas dando conta de resultados que corroboravam os do artigo (Marshall, 2002b: 193‐194).10 

Em  1984,  Warren,  Marshall  e  os  seus  colaboradores  haviam  conseguido alguns sucessos: 

– Warren mostrara  que  podiam  ser  encontradas  bactérias  espiralóides  na mucosa do estômago; 

– Essas bactérias haviam sido encontradas em doentes com diferentes tipos de doenças gástricas comuns, incluindo gastrite crónica activa e úlcera pép‐tica; 

– As bactérias não se encontravam onde essas condições não existiam; – A morfologia das bactérias havia sido descrita, mostrando semelhanças com espécies  conhecidas  de  Campylobacter, mas  também  algumas  diferenças significativas, que sugeriam que poderia tratar‐se de uma nova espécie ou mesmo de um género diferente; 

– Apesar de serem ainda fracas e isoladas, havia algumas provas de que o tra‐tamento com antibióticos podia ser eficaz para condições em que a bactéria estava presente. 

 No seu conjunto, o significado desses sucessos era o de finalmente as bacté‐

rias terem obtido o estatuto de organismos reais, de factos estabelecidos através de observações; e de esses organismos poderem ser relacionados com outras bac‐térias e associados a doenças comuns da região gástrica, ainda que a natureza des‐sa associação não tivesse sido estabelecida. Todos esses atributos resultavam, de facto, de associações activas específicas (Fleck, 1979) com outras entidades, tanto no  laboratório  (meios  de  cultura,  atmosfera, microscopia  electrónica)  como  em contextos clínicos (doentes, patologias gástricas, endoscópios). A própria bactéria estava a tornar‐se num ponto de passagem obrigatório para um conjunto hetero‐géneo de actores humanos,  incluindo patologistas, microbiólogos, alguns clínicos, especialistas de microscopia electrónica e doentes sujeitos a endoscopias e biop‐sias. Faltava ainda, contudo, a associação forte entre bactérias e doenças através da demonstração de uma  relação causal que permitisse enfraquecer a doxa e as lealdades da comunidade dos gastroenterologistas e assim abrir caminho à emer‐gência de uma nova abordagem, em que essa associação constituiria mais um pon‐to de passagem obrigatório para  investigadores e  clínicos, para além dos que  já estavam “a bordo”. Para que esse passo pudesse ser dado, era necessário trans‐formar a questão da natureza dessa associação numa série de enunciados caracte‐rizados por mais “certeza” (Callon, 1999). 

 

                                                              10 Veja‐se Marshall e Warren (1984); Burnett et al. (1984); Langenberg et al. (1984); McNulty et 

al. (1984); Phillips et al. (1984); Shousha et al. (1984); e Thomas et al. (1984). 

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A produção de enunciados caracterizados por mais “certeza” 

Não havia ainda sido demonstrado que a associação entre a bactéria e doen‐ças  como  a  gastrite  ou  a  úlcera  péptica  era  de  natureza  causal.  Para  que  essa demonstração pudesse ter lugar, seria necessário avançar para um novo desenho, experimental, da investigação. O desenho desse procedimento experimental podia ser baseado numa abordagem bem conhecida na bacteriologia, considerada como uma das principais vitórias da  ciência  sobre a doença e os agentes patogénicos. Essa  abordagem  consistia  na  verificação  experimental  dos  postulados  de  Koch. Estes haviam sido formulados, na versão que se tornaria consagrada, por Loeffler, um  colega de Koch, nos  finais do  século XIX. Os postulados de Koch definem as quatro exigências que têm de ser satisfeitas para que fique demonstrado que um dado micro‐organismo é a causa de uma patologia específica: 

I.  O  organismo  encontra‐se  sempre  em  animais  doentes  (incluindo  seres humanos), mas não em animais saudáveis. 

II.  O organismo pode ser isolado e dele podem ser feitas culturas. 

III. O organismo obtido através de culturas inicia e reproduz a doença quando é inoculado em animais susceptíveis (incluindo seres humanos). 

IV. O  organismo  pode  de  novo  ser  isolado  a  partir  de  animais  inoculados (incluindo seres humanos). 

 

O primeiro postulado de Koch  fora satisfeito através dos estudos  realizados por Marshall e Warren em 1982 e 1983, especialmente através do estudo‐piloto em Perth. Havia sido demonstrado que a bactéria estava presente em doentes em quem havia sido diagnosticada gastrite e com uma  forma de úlcera péptica, mas não em doentes que não partilhavam esse diagnóstico. Os resultados haviam sido publicados na revista Lancet em Maio de 1984. 

O  segundo postulado  fora  satisfeito através do  isolamento e da cultura das bactérias a partir de biopsias, conforme a descrição de Marshall e Pearman (1984). 

O terceiro e o quarto postulados de Koch estavam ainda por satisfazer. Falta‐va confirmar, por um lado, que era possível contrair a doença através da inocula‐ção dos organismos resultantes das culturas, e curar a pessoa inoculada através da erradicação do organismo. 

A dificuldade com que deparava o passo que  faltava dar era, sobretudo, de ordem ética, pois exigiria a contaminação deliberada de pessoas com a bactéria. Mesmo o recurso a voluntários não eliminava o problema da legitimidade de expor deliberadamente  seres  humanos  à  doença.  De  facto,  estas  questões  pareciam levantar problemas bem mais sérios do que os que havia suscitado a realização de biopsias suplementares ou a experimentação com terapias baseadas em antibióti‐cos, que  eram  realizadas  em pessoas que  já  estavam doentes.  Sem  esse passo, contudo, seria difícil produzir os enunciados “fortes” necessários à transformação da relação causal entre infecção bacteriana e doença em matéria de facto, dotada de “certeza”. O recurso à experimentação com animais não era uma solução satis‐fatória, dado que os animais mais adequados a servir de organismos‐modelo não pareciam ser afectados pela bactéria, e também devido a problemas práticos rela‐

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cionados com a  inoculação e com a realização de endoscopias em animais.11 Mas mesmo resultados positivos de experimentação com animais seriam ainda dema‐siado fracos para servir de arma a Warren e Marshall contra a doxa da gastroente‐rologia. O problema era ampliado dada a óbvia carência da necessária autoridade científica, sobretudo da parte de Marshall, devido à sua ocupação, ao seu lugar de trabalho e ao seu estatuto profissional: 

Era já visível que não iríamos encontrar um público objectivo. Tudo o que afirmávamos passava ao  lado dos dogmas aceites. Estávamos a minar as bases  da  gastroenterologia,  que  passava  na  época  por  um  “boom”  de financiamento, com o advento dos bloqueadores do receptor H2, os medi‐camentos mais usados no mundo. Também não ajudava eu ter 31 anos e viver na cidade mais isolada do mundo, sem um emprego na universidade, nem mesmo na minha cidade natal (Marshall, 2002b: 185). 

Também não tiveram sucesso as tentativas de obter apoio de empresas farma‐cêuticas que fabricavam medicamentos para úlceras, de instituições de financiamen‐to  público  ou mesmo  de  uma  empresa  familiar. Marshall  não  seria,  assim,  bem sucedido  na  tentativa  de  recrutar  um  dos  mais  poderosos  aliados  que  poderia encontrar, a indústria farmacêutica. Para ele, as razões desse insucesso eram claras: 

Ninguém estava interessado em revolucionar o mundo da gastroentero‐logia,  em parte porque  a  ideia  era  tão  estranha  [esta  seria  a  resposta típica das instituições científicas] e em parte também porque, nessa épo‐ca,  havia muito  pouca  investigação  farmacêutica  na  Austrália,  funcio‐nando  quase  todas  as  empresas  farmacêuticas  como  subsidiárias  de entidades  controladas  a  partir  da  América  ou  da  Europa  (Marshall, 2002b: 185). 

A  excepção  era  uma  empresa  australiana,  Gist‐Brocades  Pharmaceutical Company, que  enviou  informação  sobre um produto, DeNol, um  composto que continha bismuto, usado com sucesso no tratamento de úlceras duodenais. Como Marshall viria a descobrir, o bismuto era usado, desde há muito tempo, como bac‐tericida… Marshall chegaria mesmo a iniciar um estudo com doentes tratados com bismuto, mas sem obter resultados claros. Mais tarde, contudo, viria a aperceber‐‐se de que o  uso,  em  conjunto, de um  antibiótico  (metrodinazol)  e de bismuto parecia ter erradicado bactérias espiralóides de doentes com gastrite e com úlce‐ras pépticas (Marshall, 2002b: 188‐189). O bismuto viria a tornar‐se um dos com‐ponentes das terapias‐padrão para a erradicação de Helicobacter pylori. 

Apesar das dificuldades, em  Janeiro de 1984 Marshall conseguiria uma per‐manência de mais um ano no Fremantle Hospital, a fim de trabalhar a tempo intei‐ro  em  investigação  sobre  a  bactéria,  ainda  que  sem  financiamento  específico. Durante esse tempo, Marshall tratou doentes com gastrite e com gastrite e úlceras pépticas, utilizando  com  sucesso um  tratamento para a erradicação da bactéria,   

                                                              11 Ver, a este propósito, os comentários de Marshall às tentativas goradas, em colaboração com 

o seu colega Stuart Goodwin, de realizar experimentação em porcos  (Marshall, 2002b: 192‐‐193; Nunes et al., 2008: 96). 

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baseado numa combinação de bismuto com um antibiótico (amoxicilina, eritromi‐cina ou metronidazol). 

Na Primavera de 1984, Marshall discutiu com dois dos seus colegas a possibi‐lidade de satisfazer os postulados de Koch através de auto‐experimentação, inge‐rindo  a  bactéria. Os  colegas  não  pareceram muito  convencidos,  inicialmente,  e Marshall não  insistiu na  ideia. Mas tratava‐se, de facto, de uma forma de tornear as dificuldades em encontrar sujeitos para uma experiência, apesar das prováveis objecções da  comissão de ética do hospital. Assim, num dia do  início de  Junho, Marshall chegou cedo ao hospital e pediu a um dos seus colegas que o submetesse a  uma  endoscopia. O  colega  não  fez  perguntas,  e  a  endoscopia  revelou  que  o estômago de Marshall era normal, sem sinais de gastrite ou de infecção. Mais tar‐de, no mesmo dia,  foi  feita uma  cultura da bactéria a partir de um doente  com diagnóstico (confirmado através da histologia) de gastrite activa. O organismo foi submetido a um teste de sensibilidade a metronidazol e o doente foi tratado, com sucesso, com bismuto e metronidazol: um mês depois, não apresentava sinais de infecção. Entretanto, um técnico de  laboratório preparara uma solução contendo o organismo. Depois de tomar cimetidina (para reduzir a secreção de ácido), Mar‐shall  ingeriu  a  solução. Uma  semana depois,  apresentava  sintomas  consistentes com gastrite. Ao décimo dia, uma nova endoscopia e uma biopsia realizada nessa ocasião permitiram confirmar a existência de  inflamação e a presença de bacté‐rias. A  cultura destas  revelou  tratar‐se do mesmo  tipo de micro‐organismo que havia sido ingerido. Duas semanas após a auto‐inoculação, Marshall automedicou‐‐se com  tinidazol. Nova endoscopia,  realizada a seguir, mostrou que as bactérias espiralóides tinham desaparecido. Marshall encontraria, depois, uma descrição de sintomas idênticos aos que tinha manifestado num antigo manual geral de medici‐na (Osler, 1920), associados ao que os autores designavam de “gastrite com hipo‐clorídria”, mas sem a relacionar com infecção bacteriana. Em 1985, uma descrição da auto‐experimentação, reivindicando a satisfação do terceiro e quarto postula‐dos  de  Koch,  era  publicada  por Marshall,  em  co‐autoria  com  os  colegas  que  o haviam auxiliado, no Medical Journal of Austrália.12 

Com a publicação desse artigo, a bactéria tornar‐se‐ia, finalmente, um agente patogénico, e fora demonstrado que era possível a sua erradicação através de um tratamento baseado numa  combinação de um  antibiótico  e bismuto. Warren  e, sobretudo, Marshall  tornaram‐se, assim, os porta‐vozes  legítimos da nova bacté‐ria. Nos anos seguintes, a bactéria seria reconhecida como uma espécie específica pertencente a um género diferente do género Campylobacter. Após ter sido bapti‐zada com diferentes nomes, viria a ser designada definitivamente, em 1989, Heli‐cobacter pylori.13 

Mas foi em 1985 que a bactéria reforçou a sua “realidade” e “facticidade”. Os seus efeitos haviam lançado luz sobre a sua forte associação com a mucosa gástri‐ca e com alterações patológicas do estômago. Mas Marshall e os seus colaborado‐

                                                              12 Para  descrições  pormenorizadas  deste  episódio,  veja‐se  Marshall  et  al.  (1985);  Marshall 

(2002b: 195‐197); Nunes et al.  (2008: 96‐98); Nunes  (2007). Sobre um episódio semelhante de auto‐experimentação, veja‐se Morris e Nicholson (1987). 

13 Sobre  a  atribulada  história  do  “baptismo”  da  bactéria,  veja‐se  Romaniuc  et  al.  (1987)  e Goodwin (1994). 

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A Importância da “Baixa” Tecnologia na Inovação em Biomedicina  51 

res mostraram  igualmente  que  essas  associações  podiam  ser  desfeitas,  dada  a sensibilidade da bactéria a antibióticos. Os doentes com gastrites ou úlceras, por sua vez, estavam fortemente  ligados à bactéria através da  infecção, que só podia ser transformada numa condição susceptível de tratamento através de actividades clínicas e  laboratoriais que permitissem desfazer essa  ligação. Todos os atributos da bactéria foram sendo dados a ver através da sujeição desta a um conjunto de procedimentos clínicos e  laboratoriais, mas  também de  formas de  textualização. De  facto,  o  acesso  da  bactéria  à  condição  de  entidade  real  deveu‐se,  em  boa medida, à circulação de inscrições entre a clínica, o laboratório e os textos, sendo que  estes  últimos  tornariam  possível  a  circulação  e  partilha  entre  as  diferentes comunidades de  investigadores e de clínicos envolvidos ou  interessados na nova matéria de  facto que  era o novo  agente patogénico. A bactéria não  foi  sempre uma entidade estável cuja existência era óbvia ou indiscutível. Trazê‐la à existência exigiu  transformações  sucessivas  da  sua  ontologia,  inseparáveis  dos modos  de “fazer existir” a bactéria enquanto entidade biomédica. 

Mobilização 

Durante a década de 90, assistiu‐se à expansão e consolidação do actor‐rede que havia começado a tomar  forma na década anterior. Foram publicados vários documentos com orientações sobre o diagnóstico e gestão da infecção por Helico‐bacter  pylori  e  sobre  a  descrição  e  classificação  de  gastrites,  que  colocavam  a infecção no centro da sua abordagem – NIH Consensus Statement (Yamada, 1994), Maastricht  Consensus  Statement  (1996),  Updated  Sydney  System  (Dixon  et  al., 1996). No final dessa década, a comunidade dos gastroenterologistas havia aderi‐do  à  nova  posição,  passando  a  infecção  por Helicobacter  pylori  a  constituir  um ponto de passagem obrigatório para o diagnóstico, gestão e terapia de patologias comuns da região gástrica. As novas terapias baseadas na erradicação da bactéria tornaram‐se, assim, um recurso central para os gastroenterologistas. 

Entre meados da década de 80 e os finais da década de 90, cresceu de manei‐ra considerável o número de publicações relacionadas com Helicobacter pylori. Em 1994, Helicobacter pylori foi declarada um carcinogénio de tipo I (o mais agressivo) pela  International Agency for Research on Cancer, um organismo da Organização Mundial de Saúde, sendo a primeira bactéria a ser assim classificada, o que repre‐sentou uma nova  transformação na sua ontologia  (IARC Working Group, 1994)… Em 1997, foi publicada na revista Nature a primeira sequenciação do genoma de uma estirpe de Helicobacter pylori (Tomb et al., 1997) Alguns países criaram pro‐gramas de rastreio selectivo e, em alguns casos, de erradicação da bactéria, com sucesso  assinalável  na  redução  de  doenças  gástricas  em  geral  e  do  cancro  do estômago em particular. A fundação de um grupo internacional de investigadores, o  European Helicobacter  Study Group,  que  viria  a  realizar  desde  1980  reuniões científicas regulares, e de uma revista, Helicobacter, viriam a reforçar a base orga‐nizacional  da  investigação  sobre  a  bactéria.  A  investigação  genética  sobre  esta permitiu cartografar os genótipos das diferentes estirpes e avaliar a sua relevância clínica e epidemiológica, assim como a sua  importância para estudos de genética populacional.  A  associação  de Helicobacter  pylori  com  o  cancro  do  estômago  e outras  doenças  tornou‐se  um  tema  central  tanto  de  diferentes  programas  de 

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52  João Arriscado Nunes 

investigação como de intervenções clínicas. A crescente centralidade da bactéria e dos seus efeitos viria a ser consagrada com a atribuição do Prémio Nobel da Medi‐cina ou Fisiologia a Warren e Marshall em 2005.14 

Ainda que a realidade da bactéria e dos seus efeitos patogénicos já não esteja em  causa,  surgiram novas discussões em  torno do  seu possível  efeito protector contra certos tipos de patologias da parte superior da região gástrica, ou da eficá‐cia das  terapias de  erradicação da bactéria  em  alguns países.  E o próprio Barry Marshall  iniciou um projecto que poderá  conferir novas propriedades à Helioco‐bacter pylori: a utilização de versões geneticamente modificadas da bactéria (para atenuação da virulência) como meios de transporte de vacinas. 

Ao longo de toda esta história, a ontologia de Helicobacter pylori não cessou de se transformar, e as polémicas e controvérsias em torno da bactéria não desa‐pareceram, fazendo esperar novos episódios da atribulada história de uma bacté‐ria que, no espaço de pouco mais de duas décadas, passou de objecto  inviável a protagonista central de um dos episódios mais dramáticos de inovação na biome‐dicina. 

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                                                              14 Para uma análise detalhada desta história, veja‐se Nunes et al. (2008), especialmente os capí‐

tulos 5 e 6. 

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PARTE II  

SAÚDE, DESIGUALDADES SOCIAIS E CIDADANIA  

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EQUIDADE, CIDADANIA E SAÚDE. 

APONTAMENTOS PARA UMA REFLEXÃO SOCIOLÓGICA 

Graça Carapinheiro  

Algumas precisões conceptuais 

Quando falamos em equidade, referimo‐nos a um princípio ético intimamen‐te  ligado ao cumprimento dos direitos humanos e subordinado à  ideia de  justiça social,  encarada  como  um  ideal  que  corresponde  à  repartição  equitativa  dos recursos materiais  e  simbólicos,  como  o poder, o prestígio  e  o  reconhecimento social. Assim, justiça social e equidade têm sentidos próximos e referem‐se a valo‐res e a escolhas sociais, o que confere ao conceito de equidade um carácter pre‐dominantemente moral, moldado pelas condições de relatividade histórica, social e cultural do pensamento dominante sobre a ética e os valores humanos. 

A este propósito, Bauman refere que moralidade tem a ver com escolha. Se não há escolha, não há moralidade. Quer dizer que sociedade, ordem social e cul‐tura seriam inconcebíveis se a moralidade não constituísse o principal atributo das relações humanas. E no pensamento deste autor, sociedade representa a confron‐tação dos seres humanos com esta natureza moral, com a necessidade de fazerem escolhas, mesmo que, ao fim e ao cabo, concluam que a sua natureza está presa a essas mesmas  escolhas. Desta  reflexão  surge  a  ideia  de  que  a  sociedade  grava padrões de ética sobre a matéria bruta e plástica da moralidade, ou seja, que a éti‐ca é um produto social  (2001:44‐45). Ser moral é estar submetido à necessidade de fazer escolhas, sob o constrangimento das condições mais ásperas e penosas da incerteza.  Ser moral  corresponde  à  capacidade  de  enfrentar  dilemas morais  e submeter‐se à condição de viver a vida sob o signo da vacilação. Nesta condição reside em grande parte o valor da liberdade nas sociedades contemporâneas. 

Nestas sociedades, a igualdade de direitos é atingida quando todos os indiví‐duos são  iguais perante a  lei que, em princípio, deve ser  igual para todos. Há um consenso  social  relativamente  ao  facto de que  as desigualdades de direitos  são injustas e devem ser suprimidas. Mas a igualdade de direitos não assegura a igual‐dade de oportunidades. Esta  igualdade é conseguida quando a  situação atingida pelos indivíduos não fica presa a condições estruturais que potenciam as situações de desfavorecimento social ou mesmo de exclusão social, sejam elas de natureza estritamente económica, ou de carácter étnico, religioso e de classe. 

A  igualdade de oportunidades é um  ideal a atingir, mas divergem as  formas concebidas para tal. Amartya Sen (2000) considera que uma dimensão fundamen‐

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 57‐64. 

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tal da liberdade é a “capacitação”. Neste sentido, para que as sociedades assegu‐rem aos cidadãos uma efectiva liberdade e uma real igualdade de oportunidades, é necessário que protejam aqueles  cuja  situação  individual e  social  reduziu essa “capacitação”. 

Por outro lado, a igualdade de situações designa a supressão de todas as for‐mas de desigualdade, ou  seja,  a  repartição uniforme dos  recursos por  todos os cidadãos.  Se  nas  sociedades  contemporâneas  democráticas  existe  consenso  de que a justiça social exige igualdade de direitos e igualdade de oportunidades, esse consenso desaparece quanto à diminuição das desigualdades de  situação, o que equivale a reconhecer que a justiça social não pode ser descrita em termos estáti‐cos, mas apenas em termos processuais, na perspectiva de que estamos a falar de um horizonte que qualquer  sociedade  tem em vista atingir, mas que  se desloca para diante sempre que a sociedade se move na sua direcção. Quando as socieda‐des passaram das primeiras  formas para as  formas modernas de capitalismo, os padrões que permitiam medir a injustiça tornaram‐se claros, bem definidos e bem estruturados, dispondo de maior longevidade de acção. Nas actuais sociedades, tal já não é possível. Estamos numa  fase da história do mundo ocidental em que o conceito de  injustiça é contestado, relativizado e posto em causa em várias fren‐tes, revelando a emergência de novas manifestações de injustiça e iniquidade que, de necessárias passaram a ser reclassificadas de excessivas, não existindo padrões estabilizados de consensualização social para a sua regulação e rectificação. Poder‐‐se‐á dizer que, geralmente, em qualquer sociedade e em qualquer época, há mais humilhação do que se espera existir, mais do que é possível admitir e muito mais do que é possível atenuar ou corrigir e esta é, hoje, também, a condição global da humanidade. 

A este propósito, Rawls  (1997) desenvolve uma  concepção de  justiça  social que rompe com a visão utilitarista das teorias liberais, explicando que certas desi‐gualdades são aceitáveis. Ou seja, em certas condições, as desigualdades podem ser justas, legítimas, respeitando o princípio da equidade. Para Rawls, as desigual‐dades  são  justas e  legítimas  se não  reduzem  a  liberdade dos  indivíduos, nem o igual acesso às posições sociais, e se elas beneficiam os mais desfavorecidos. 

Tudo  isto  vem  a  propósito  da  relação  entre  equidade,  cidadania  e  saúde. Pode‐se dizer que, em múltiplos estudos, (de epidemiologia social, de economia da saúde, de ciência política ou de bioética) equidade em saúde tem‐se referido, qua‐se  sistematicamente,  à  ausência  de  disparidades  sistemáticas  na  saúde  (ou  nas suas principais determinantes), em grupos  com diferentes níveis de  vantagem e desvantagem social, em termos de riqueza, poder e prestígio. Mas tal acepção de equidade será suficiente? 

A equidade em contexto: algumas reflexões 

Se pensarmos na história recente da saúde em Portugal, podemos reconhecer várias  formas de desigualdade, quer de direitos, quer de oportunidades, quer de situações, o que nos  leva a pensar que, hoje, em Portugal, a equidade em saúde continua a ser um princípio sujeito a várias formas de ameaça. Desde logo, no dis‐curso político oficial, nomeadamente sobre a sustentabilidade do serviço nacional de  saúde,  equidade  continua  a  estar  sistematicamente  associado  à  garantia  do 

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direito constitucional da saúde, pese embora a  tónica excessivamente  financeira com que se estabelecem os parâmetros do cumprimento deste direito. De  facto, especial ênfase é dada ao crescimento das despesas de saúde, à redução dos cus‐tos e à melhoria da eficiência da produção de cuidados de saúde, à melhoria da qualidade dos serviços prestados e à discussão sobre os regimes de financiamento que os viabilizam. Não está em causa a legitimidade da prossecução destes objec‐tivos de governação. O que  se pretende assinalar é a diversidade dos  contextos éticos que estão em causa e que dão expressão ao funcionamento do princípio da equidade, ocultos sob a fachada dos “outputs” e dos “outcomes” da saúde, e que mesmo os mais sofisticados  instrumentos de avaliação do sistema de saúde não conseguem alcançar. 

Vejamos a  igualdade de direitos. Os princípios constitucionais da universali‐dade, generalidade e gratuitidade, que consubstanciaram o direito à  saúde,  têm vindo  a  ser  comprometidos  em  sucessivas  revisões  constitucionais  iniciadas  na década de 80 do século passado. Hoje, o acesso aos cuidados de saúde é cada vez mais caro para o cidadão, mais condicionado por assimetrias geográficas na distri‐buição  dos  recursos  de  saúde,  que  se  vão  deslocando  entre  regiões,  de  acordo com concepções e orientações políticas contraditórias e que, de forma diferencia‐da no tempo e no espaço, impulsionam fenómenos de concentração e desconcen‐tração das  tecnologias e dos  recursos médicos especializados, a que  têm estado associadas a formas variáveis de progressiva promiscuidade entre o sector público e o sector privado. Por outro lado, promove‐se a inequívoca repartição da respon‐sabilidade da prestação de cuidados entre o Estado e a  iniciativa privada,  reme‐tendo para o cidadão a responsabilidade da defesa da promoção da saúde  indivi‐dual e colectiva. Mas de que cidadão e de que condição de cidadania estamos a falar? Partimos da hipótese de um sujeito jurídico abstracto, projectado de forma esbatida num quadro de fundo normativo que emoldura a sua existência individual e colectiva, sem  lhe conferir condição de pertença, referência  identitária e acção significativa? Que participação pode ser pensada para um sujeito assim concebi‐do? O que significa, e em que é que se traduz objectivamente, recentrar os servi‐ços de saúde no cidadão‐cliente? Como estabelecer o sentido contrário na relação unívoca do sistema de saúde para o cidadão? Afinal de contas, como integrar nes‐te outro sentido contrário, cidadãos  inseridos em contextos, culturas e experiên‐cias plurais? Como estimular a participação do cidadão na concepção e implemen‐tação das políticas? Como tornar possível esta participação, quando no interior do próprio sector da saúde há grupos profissionais que  têm dificuldade em  fazer‐se ouvir e em fazer‐se representar nos processos mais estratégicos de decisão políti‐ca? Então, falar de  igualdade de direitos não pode ficar restringido à relação dos cidadãos com a saúde  

Neste  quadro  de  fundo  multiplicam‐se  as  fontes  de  produção  de  riscos sociais, articulados à conflitualidade que atravessa a relação entre culturas organi‐zacionais, científicas e profissionais, revelando quão vulneráveis são os terrenos da saúde aos vários regimes de poder profissional. Esta conflitualidade gera as condi‐ções de não cumprimento dos direitos sociais articulados ao exercício dos saberes profissionais nos centros de saúde, por comparação com o exercício desses sabe‐res nos hospitais: a excessiva concentração de recursos nos hospitais; a maior pro‐ximidade dos profissionais dos centros de saúde do controlo  técnico‐burocrático 

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do Estado e dos seus mecanismos de regulação político‐administrativa; a destitui‐ção dos meios de produção da saúde comunitária dos profissionais dos centros de saúde (provocados pelo desinvestimento político na saúde pública), por contraste com o hospital, como lugar de cura, mas também de aconselhamento, de preven‐ção, de recuperação, de reabilitação, de paliação (Carapinheiro, 2006). 

Assim, nestas  tendências  contraditórias de orientação política que acompa‐nham  a  emergência  de  formas  de  acção  de  saúde  pública,  o  cumprimento  dos direitos sociais dos indivíduos são postos em risco, pois continuam a sucumbir face à hegemonia da  cultura hospitalocêntrica. Neste  caso,  trata‐se não  só de  riscos epidemiológicos, dadas as especificidades de desenvolvimento da sociedade por‐tuguesa e da persistência de velhos e novos problemas de saúde pública (tubercu‐lose, malária, gripe das aves, gripe A), mas também de riscos sociais, centrados na experiência de viver novas formas de desigualdade e exclusão sociais, que decor‐rem do não cumprimento dos direitos sociais à saúde: a não garantia do acesso de todos os indivíduos a todos os serviços de saúde, a todos os tipos de cuidados e a todas as tecnologias; o acesso mais caro à totalidade dos bens de saúde; a sobre‐responsabilização individual da saúde colectiva. 

Os  riscos  sociais  que  decorrem  destas  processualidades  visualizam‐se  tam‐bém  ao  nível  das  organizações,  nas  suas  disfuncionalidades  organizativas,  nas ambiguidades dos papeis dos seus profissionais e na desarticulação entre cuidados de saúde; ao nível económico, no aumento das ineficiências, das despesas de saú‐de do Estado e da  comparticipação dos  cidadãos; ao nível moral  (no  sentido do ethos profissional), na dessolidarização  profissional  e na dessolidarização  com  a perspectiva do doente. No extremo, qualquer indivíduo que se aproxime de servi‐ços de saúde pode viver a contingencialidade de experimentar os efeitos da preci‐pitação destes vários tipos de risco social que, sobrepostos aos riscos epidemioló‐gicos  específicos  das  suas  condições  de  saúde,  põem  em  risco  o  princípio  da equidade em saúde. 

No  que  diz  respeito  à  igualdade  de  situações, mantêm‐se  nas  políticas  de saúde, contradições estruturais herdadas do passado, reactivadas no presente em várias dimensões, que aprofundam as desigualdades sociais face à resposta a dife‐rentes  situações de  saúde. Uma delas  é o  facto de,  apesar de  toda  a produção legislativa e de toda a acção política do Estado se ter centrado na vertente da saú‐de pública desde a década de 70, atribuindo um lugar de destaque aos centros de saúde  (1.ª, 2.ª e 3.ª  gerações), o  seu  investimento em  recursos estratégicos  ter vindo  a  ser  preferencialmente  canalizado  para  o  hospital.  Ou  seja,  a  solução encontrada, cuja lógica continua a ser prevalecente, foi a de comprometer os prin‐cípios, prejudicar os direitos e adiar a optimização dos recursos públicos de saúde, fazendo  reformas de saúde que, paradoxalmente, desinvestem nos cuidados pri‐mários e dão prioridade aos  recursos materiais,  técnicos e humanos do hospital, reforçando  sempre  a  sua  centralidade  no  sistema. Ora,  tendo  sido  preconizado que os cuidados primários são o primeiro patamar da relação dos cidadãos com o serviço nacional de saúde, crescem significativamente as desigualdades de situa‐ção face à resolução de problemas de saúde. Até que ponto é que é dada uma res‐posta eficaz às necessidades dos doentes nos centros de saúde? 

É verdade que se têm vindo a criar recentemente as unidades de saúde fami‐liar e os  agrupamentos de  centros de  saúde,  tentando  responder  ao desiderato 

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político de restituir a confiança dos cidadãos e dos profissionais de saúde, perdida em medidas políticas que  se  lhes antecederam, e  respondendo ao descontenta‐mento das populações. Mas será que colocar o centro de saúde no centro do sis‐tema, como proclama o discurso dos responsáveis políticos, elimina totalmente a ancestral posição de dependência  e  subalternidade dos  cuidados primários  face aos cuidados hospitalares? É que, se assim não for, subsistem as condições objec‐tivas do descrédito dos  cuidados de  saúde  aqui  fornecidos,  a desmotivação dos profissionais que são os seus prestadores e o descontentamento dos utentes. Mas como reunir, renovar e recompor tantos recursos perdidos ao longo do tempo? 

Outra  dimensão  desta  desigualdade  diz  respeito  às  várias modalidades  de privatização  dos  serviços  de  saúde,  que  operam  ora  de maneira  autónoma  ou sobreposta aos serviços públicos, quando o Estado delega, quando o Estado se faz substituir e quando o Estado pura e simplesmente se demite. A privatização dos serviços, a mercadorização dos cuidados e a ascensão de um clima de gestão na administração das organizações de saúde gera o encarniçamento dos mecanismos de racionalização dos custos de saúde, apontando para demoras médias de inter‐namento cada vez mais curtas, para a máxima rotatividade dos doentes por cama e para o uso crescentemente selectivo das tecnologias médicas. As potenciais con‐flitualidades que se abrigam nestas tendências desdobram‐se numa cascata de ris‐cos que, doravante não se confinam mais ao risco de adoecer. 

Mas, o que dizer quanto à igualdade de oportunidades? Até que ponto se tem assistido  a  formas  progressivas  de  capacitação  para  a  saúde  dos  indivíduos  em situações económicas, sociais e culturais desfavoráveis, num  tempo histórico em que, segundo demonstram alguns autores, têm entrado em declínio as condições objectivas de funcionamento dos valores comunitários, a emergência de solidarie‐dades sociais espontâneas e a efectiva participação na esfera pública? 

A aferição desta capacitação na  sociedade portuguesa  tem mostrado que a relação dos indivíduos com os profissionais e os serviços de saúde está povoada de processos de desvalorização e desqualificação do estatuto dos saberes  leigos dos doentes, de menorização das suas formas de protagonismo e de exclusão das suas formas de participação. Quando a evidência sociológica mostrou que as trajectó‐rias dos doentes no sistema de saúde estão plenas de  invenção social, enquanto estratégias de  contorno e de  superação dos obstáculos de natureza burocrática, institucional e profissional colocados no acesso aos diferentes recursos de saúde e enquanto  escolhas  realizadas  por  diferentes  sistemas  terapêuticos  alternativos, tornou‐se visível que o sistema de saúde aparece como um sistema global de resis‐tência ao funcionamento dos saberes leigos e à diversidade de estratégias sociais a que estes saberes dão lugar (Carapinheiro, 2002). 

As  possibilidades  subjacentes  a  estas  formas  de  protagonismo  leigo  ficam submetidas  ao  julgamento do exercício dos direitos e das  liberdades  individuais que a posição hegemónica da medicina reivindica para seu uso exclusivo e a opor‐tunidade transforma‐se em risco, não um risco epidemiológico situado no corpo, mas um risco social centrado na experiência de viver novas formas de desigualda‐de e exclusão social. 

A questão que se levanta é esta: estando em risco o princípio da equidade em saúde  pela  elevada  concentração  de  múltiplos  riscos  sociais  de  desigualdade, como equacionar aqui a cidadania? Como determinar as condições de cidadania 

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na saúde? Que referências sustentam as identidades nacionais, regionais e sociais quando a ascensão do neo‐conservadorismo e a erosão dos consensos pós‐guerra do Estado Providência e os temidos efeitos da expansão económica e tecnológica sobre o ambiente se fazem há tanto tempo sentir? Quando vivemos um tempo de mudanças rápidas e irreversíveis, como a globalização das políticas de saúde e dos modelos de gestão dos serviços de saúde? Quando assistimos ao crescimento dos movimentos transnacionais de trabalhadores, refugiados, migrantes e doentes? O crescente sentimento de crise e de  incerteza exprime bem a preocupação com a igualdade de oportunidades e as condições efectivas de cidadania (Carapinheiro e Page, 2001). 

Saúde e ciência: para uma agenda alternativa 

Independentemente  dos  particularismos  históricos  e  civilizacionais  de  cada sociedade no mundo, a propósito das interrogações atrás colocadas é possível tra‐çar um  enunciado  teórico que  articula  as questões do  estado, da  regulação, da ciência  e  da  democracia  nas  sociedades  contemporâneas.  A  proposta  que  este enunciado  encerra  é  a  de  resgatar  do  esquecimento  e  desinteresse  políticos  e públicos  a  que  têm  estado  votados,  tanto  os  sistemas  informais  de  protecção social baseados nas emergências e reemergências de novas articulações entre as solidariedades  públicas  e  privadas,  situadas  na  tríade  constituída  pelas  redes informais,  pelas  associações  da  sociedade  civil  e  pelas  agências  internacionais, como também as formas de vida, os estilos de a viver e de lhe conferir sentido e a inscrição do desejo, que se contorcem sob as malhas da regulação local e global do corpo, da memória, das populações e das consequências da inovação. 

Estabelece‐se a condição epistemológica de não‐aceitação de uma narrativa estandardizada da ciência, exclusivamente produzida a partir dos cânones do con‐trolo e da predictabilidade racionais, no exercício das suas possibilidades heurísti‐cas.  Reclama‐se  um  olhar mais  vasto  que  não  dispensa  o  irracional  e  que  não esconde e oblitera o outro: nas suas vozes, nas suas linguagens, nas suas emoções e nas suas crenças. A ideia que acompanha este pensamento é a da transformação das formas de regulação racional das sociedades, apoiadas nas premissas do saber pericial, do profissionalismo  e da  racionalidade, num  tempo histórico  em que  a reflexividade cresce com a incerteza, tanto no Estado, como na ciência, e se fragili‐zam os mecanismos de auto‐sustentação das suas respectivas legitimidades. 

A este propósito, Shiv Vivasnathan (2008) avança com a  ideia de Kitsch para metaforizar a representação  interna que a ciência estabelecida  faz sobre os seus produtos e artefactos e os consumos ritualísticos que deles são  feitos, em socie‐dades de produção e consumo de massas, numa estratégia de conservação da sua legitimidade, que acaba por converter o vasto espectro da compreensão e aceita‐ção públicas da ciência em múltiplos lugares Kitsch, que dão origem à ideia Kitsch da  ciência  popular  e  ao  sentimentalismo  Kitsch,  imitação  Kitsch  e  romantismo Kitsch de que a ciência seja efectivamente capaz de traduzir o desenvolvimento, a riqueza e o progresso e eliminar o atraso, a pobreza e a exclusão. Em suma, a visão prometeica da ciência acaba por ser uma  ideia Kitsch, quando transposta para os imaginários colectivos e para as representações sociais que acreditam na sua efec‐tividade. 

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Numa tentativa (provavelmente arriscada e controversa) de transposição des‐ta  ideia para a relação que os  indivíduos estabelecem com a saúde e a ciência na sociedade portuguesa, pode observar‐se a eventual emergência de  lugares Kitsch nas estratégias de aproximação a vários tipos de risco, como é o caso do risco do cancro  genético hereditário ou o  risco da  infertilidade  (Mendes, 2007; Augusto, 2004). 

Ao contrário do que seria de esperar, o cancro hereditário ganha mais visibili‐dade do que qualquer outro tipo de cancro: porque se faz anunciar e exige a cons‐ciência individual e social da sua inescapável maldição; porque se traduz em novos modos existenciais de ser que nunca mais o podem expulsar do quadro que orga‐niza a escolha reflexiva das suas escolhas e opções; porque a experiência do medo ganha aqui modulações diversas e imprime impulsos estratégicos diferenciados. 

Então, a simbólica do risco associado a este tipo de cancro organiza‐se à volta do tempo, enquanto marcador médico‐científico de prognósticos que se traduzem em destinos  individuais e sociais – que se estendem do risco como oportunidade ao  risco  como  fatalidade  –  subordinando‐se  ao  reforço  da  confiança  pericial  e submetendo‐se à força da crença na visão prometeica da ciência. Assim, as estra‐tégias de aproximação a este tipo específico de risco correspondem a modos dife‐renciados de gestão do tempo que foram identificados como: agir a tempo quando o tempo é representado como redenção; agir contra o tempo, quando o tempo é representado como culpa; agir à espera do tempo, quando o tempo é representa‐do como esperança (Carapinheiro, 2007). 

Mas  redenção, culpa e esperança podem  funcionar como epítetos do senti‐mentalismo Kitsch, logo como a expressão de lugares (alvos) de regulação científi‐ca do que é ou não aceitável esperar? Ou exprimirão a presença de uma normati‐vidade médico‐científica que conjuga este risco com uma margem incontrolável de incerteza? 

Já  no  caso  da  analítica  do  risco  da  infertilidade,  o  que  se  observou  é  que enquanto para os casais o risco mais elevado reside nos tratamentos de  infertili‐dade e nas técnicas de reprodução medicamente assistida (RMA), para os médicos o risco mais importante é a infertilidade em si, visto que infringe o valor da mater‐nidade biológica e ameaça a normalidade reprodutiva das famílias. Assim, a pers‐pectiva  biomédica  do  risco  desloca‐se  para  uma  sociogénese  do  risco  e  para  a valorização do  risco  social, enquanto que a perspectiva  leiga do  risco desloca‐se para o  campo  contrário, no  sentido da ontogénese biomédica do  risco e para a valorização do risco epidemiológico. 

Na perspectiva leiga, a norma da maternidade biológica e a norma médica do risco são dessocializadas das condições subjectivas e objectivas das suas vidas quo‐tidianas e socializadas às  relações sociais específicas, próprias do  funcionamento deste campo de práticas médicas. Na perspectiva biomédica, pelo contrário, estas normas são politizadas e inseridas no funcionamento da medicina como instituição social. Quer dizer que a perspectiva  leiga submete a racionalidade subjacente ao risco  social  à  racionalidade  subjacente  do  risco  epidemiológico  (Carapinheiro, 2007). 

Será que podemos dizer que as deslocações destas perspectivas correspon‐dem a processos de disembedding, em que os lugares Kitsch operam com uma efi‐cácia acrescida? Será que estamos perante um balanço pendular entre o desejo e 

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64  Graça Carapinheiro 

o risco em que a ciência tenta estender as suas fronteiras reguladoras ao desejo e a sociedade tenta capturar o risco na sua lógica de regulação? Ou estamos apenas perante processos de medicalização da vida que não dispensam movimentos de desmedicalização relativa? 

Se  conjugarmos  os  processos  de  formação  de  riscos  com  os  processos  de medicalização  das  sociedades,  apercebemo‐nos  da  progressiva  transferência  da gestão das políticas da saúde e da vida, do plano público e colectivo para o plano individual e privado. Mas quem tem acesso à difusão dos saberes periciais? Quem dispõe de recursos para os decifrar,  interpretar e colocar ao serviço da sua expe‐riência? Como  inscrever este projecto de gestão da saúde e da vida num  tempo histórico em que a reflexividade cresce com a incerteza, tanto na ciência, como no Estado,  fragilizando‐se os mecanismos de  auto‐sustentação das  suas  respectivas legitimidades? 

Referências bibliográficas 

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SAÚDE COMUNITÁRIA: 

RISCOS E POTENCIALIDADES DA PARTICIPAÇÃO 

Luísa Ferreira da Silva  

Introdução 

Nas últimas décadas, o discurso sobre saúde deu ênfase às noções de educa‐ção, promoção e participação, num objectivo expresso de aproximar da vida quo‐tidiana das pessoas a  instituição social de saúde com vista a melhorar o nível de saúde  das  populações.  Subjacente  a  este  discurso  está  o  reconhecimento  da necessidade de provocar mudanças num sistema dominado pelos cuidados clínicos e  curativos,  com  exigências  tecnológicas  crescentes  e  envolvendo  importantes investimentos  financeiros,  sem  contrapartidas  proporcionais  nas  melhorias  ao nível da própria saúde e ao da satisfação dos utentes. 

É neste contexto que, nas últimas décadas do século XX, as políticas e os sis‐temas  de  saúde  são  instados  a  focar  a  promoção  da  saúde  como  intervenção comunitária. O  papel  central  da  comunidade  no  desenvolvimento  da  saúde  foi enunciado em 1978 pela Conferência de Alma‐Ata (WHO, 1978) que deu relevo à relação de associação entre as desigualdades em saúde e as desigualdades sócio‐‐económicas. Os princípios de promoção da saúde foram desenvolvidos pela Con‐ferência de Otava (WHO, 1986) que definiu com clareza os vários níveis em que a promoção da  saúde  supõe  intervenção: o das políticas públicas, o dos meios de vida socio‐ambientais, o da acção comunitária, o das aptidões  individuais e o da reorientação dos  serviços de  saúde no  sentido de uma atitude e organização da promoção que ultrapasse a prestação de cuidados clínicos e curativos e abarque uma política multissectorial  interventiva nas mudanças sociais e  incentivadora da participação activa dos indivíduos e dos grupos. 

A década de noventa produziu novos textos internacionais em que o objectivo de promoção da saúde se propõe contribuir para a transformação de uma popula‐ção  objecto  de  todos  os  cuidados  em  habitantes  sujeitos  do  seu  próprio  destino (OMS, 1994:44). São valorizadas a opinião e a opção dos cidadãos no que respeita ao conteúdo dos cuidados, aos contratos de prestação de serviços, à qualidade da inte‐racção prestador/paciente, à gestão das listas de espera e ao seguimento das recla‐mações, pelo que é exigido que os cidadãos disponham de meios  importantes, cor‐rectos e oportunos de informação e de educação (WHO 1996). 

Este é o enquadramento político da  saúde  comunitária  como estratégia de promoção de saúde. Estratégia que se caracteriza por uma ruptura com o modelo 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 65‐78. 

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66  Luísa Ferreira da Silva 

clínico em favor de uma conceptualização de saúde global, implicada no processo de desenvolvimento e associada às dinâmicas do desenvolvimento social. A inter‐venção dos profissionais da saúde é integrada na coordenação com os outros sec‐tores  sociais que  incluem o  governo,  as  autoridades  locais,  as organizações não governamentais, a indústria e os media. Os serviços de saúde são instados a parti‐lhar o poder com os outros sectores, as outras disciplinas e, sobretudo, com as pró‐prias pessoas (WHO 1986: 4). 

Este texto analisa a estratégia da promoção da saúde do ponto de vista da ideologia que lhe subjaz. No contexto da globalização capitalista e consequen‐te aumento das desigualdades sociais e na sequência dos movimentos de con‐testação das décadas de sessenta e setenta,  reveladores da crise de  legitimi‐dade das  instituições, a promoção da saúde assenta na ciência o exercício de uma  intervenção reguladora em que os  indivíduos são chamados a participar na  gestão  do  sistema.  Faremos  o  exame  das  noções  de  participação  e  de comunidade  relacionando‐os com os objectivos de  saúde a que  se propõem. Previamente,  situaremos  a  concepção  teórica  de  saúde/doença  em  que  se move a ciência social e faremos referência ao contexto social de afirmação dos saberes leigos da doença. 

Saúde e doença são construções sociais 

A saúde e a doença são construções sociais nas quais a sociedade inscreve a sua visão do mundo e impõe a marca da sua organização. Para além da reali‐dade biológica, o entendimento da saúde e doença é variável com as socieda‐des e a sua distribuição é desigual. 

Nas  sociedades modernas, o modelo biomédico  impôs‐se na  resposta  à doença cuja experiência está hoje fortemente condicionada à medicalização. É verdade  que,  ao  longo  do  século  XX,  a  concepção  biologista  da  doença  foi substituída pela concepção bio‐psico‐social que  integra a psicologia e os com‐portamentos  (Armstrong, 1984). Mas apesar das mudanças no papel social e simbólico  da  medicina  na  sociedade  moderna  e  das  variações  no  próprio modelo médico, a sua abordagem predominante na prática clínica continua a ser a procura da evidência física da doença ou disfunção, assim como o uso de tratamentos físicos (tais como drogas, cirurgia, ou radiação) para corrigir essas anormalidades  (Helman, 1984: 83). É  a esse  conjunto  complexo que  inclui o conhecimento,  as  práticas,  as  organizações  e  os  papéis  profissionais  que  se refere a expressão biomedicina. 

O modelo biomédico  impôs‐se no campo social, alargando o seu espaço para domínios de comportamento anteriormente encarados como problemas morais  (alcoolismo e suicídio, por exemplo), ou como  fenómenos naturais do curso  da  vida  (gravidez,  parto,  envelhecimento). Nesse  sentido,  a  sociedade actual  é  uma  sociedade medicalizada,  que  atribui  significados  de  doença  a numerosas dimensões da existência (Illich, 1975). 

A marca da sociedade na saúde e doença está  também presente na sua distribuição desigual e mais penalizadora dos grupos sociais menos favorecidos nas  hierarquias  de  papel  e  de  status  (Townsend  et  al.,  1982;  Bartley  et  al., 1998; Leclerc et al., 2000). A saúde/doença está, com efeito, muito para além 

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Saúde Comunitária: Riscos e Potencialidades da Participação  67 

do estado natural do  corpo na  sua variabilidade  individual,  sendo  reflexo da interpretação  dos  sinais  do  corpo  como  se  percebe  na  constatação  de  um importante desnível entre a incidência de doença medicamente diagnosticável e  as  taxas  de  recurso  à medicina  (Hannay,  1980).  As  raízes  sociais  da  saú‐de/doença aparecem com efeito na distância que separa o mal‐estar (sentir‐se doente) do adoecer (considerar‐se doente) e do assumir‐se como doente (con‐sultar a medicina ou tornar‐se paciente) (Zempléni, 1985) a qual justifica gran‐de parte do recurso diferenciado aos cuidados médicos, preventivos e curati‐vos,  consoante  o  grupo  social  em  que  se  está  inserido  (Calnan  et  al.,  1991; Blackburn, 1999). A verdade é que a experiência da  saúde e da doença e os comportamentos  a  ela  referidos  são  condicionados  pelas  circunstâncias  da existência e pelas formas ou estilos de vida que nelas se modelam. Não se vive o corpo nem se  fala dele de  forma  idêntica em  todos os grupos sociais  (Bol‐tanski, 1971). 

O cariz social da doença está, para além disso, presente na prática profissio‐nal. Descobre‐se a  influência das representações sociais do senso comum na ten‐dência médica para diferencial classificação como doença, atribuição de diagnósti‐cos  e  definição  de  tratamentos,  segundo  os  grupos  sociais.  Face  a  quadros semelhantes, pessoas de diferentes classes e estatutos sociais, recebem diagnósti‐cos mais ou menos estigmatizantes e tratamentos mais ou menos medicamento‐sos,  situação  que  está  sobretudo  documentada  para  a  doença mental  (Holling‐shead et al., 1958; Scheff, 1975) e para as diferenças de género  (Miles, 1991). A saúde e a doença não são  realidades apenas do corpo  físico mas da sua  relação com o corpo social. 

Novos actores sociais em saúde/doença 

Nas  relações sociais que estruturam o espaço da saúde/doença, os anos recentes foram marcados pelo aparecimento de outros actores para além dos profissionais.  A  doença  crónica  configurou  uma  nova  definição  do  papel  de doente que abandona a atitude tendencialmente passiva e assume a negocia‐ção como processo de construção de uma nova relação médico‐doente e como afirmação reconstrutiva da identidade para além de, ou em resistência a, a eti‐queta  diminutiva  (em  alguns  casos,  estigmatizadora)  de  doente;  de  pessoa doente, o/a “doente” torna‐se “pessoa que tem uma doença”, num processo de distanciação que a coloca, face aos profissionais da medicina, num estatuto de maior igualdade (Baszanger, 1986). 

Paralelamente, em relação a variadas doenças se têm constituído associa‐ções  (de doentes,  familiares, amigos e profissionais) com  funções de suporte emocional e relacional, de  influência no tecido social e na organização de cui‐dados médicos e assistenciais. A partilha de experiências que promove a auto‐‐compreensão, encoraja uma atitude de auto‐regulação na forma de lidar com a doença e o tratamento, atitude que, de certa forma, confronta a dominação médica e configura uma avaliação do seu conhecimento centrado nos proces‐sos do corpo  (Kelleher, 1994). As associações  ligadas à SIDA, protótipo deste tipo de associativismo, combateram com sucesso a  imagem negativa da sero‐positividade e conseguiram influenciar o poder de decisão no que respeita aos 

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direitos em matéria de investigação e de prevenção (Herzlich, et al., 1984; Bas‐tos, 1997; Brown, 1997). 

Mas  não  só  as  pessoas  com  doença(s)  exigem mudança  nos  termos  da relação  entre  os  especialistas  (“conhecimento  sagrado”)  e  a  população (“conhecimento leigo”). Pessoas e grupos da população em geral assumem‐se como competentes e empenhadas na gestão da sua saúde, numa atitude que contesta a despersonalização do “paciente” e  impõe à  instituição de saúde a dimensão subjectiva da vivência dos indivíduos. Individualmente e em associa‐ção, os sujeitos  tornam‐se agentes que  reivindicam um espaço de controlo e de decisão nas opções que configuram os cuidados e que definem a concepção do que é, afinal, a saúde (Herzlich, et al., 1984; Saks, 1998). Multiplicam‐se as possibilidades de escolha de cuidados de saúde pelo reaparecimento de tera‐pêuticas alternativas valorizadoras da experiência subjectiva e propondo para a saúde/doença novas conceptualizações “doces” ou globais e integradoras da procura do significado existencial do mal‐estar (Sharma, 1990; Saks, 1998). 

Esta  intervenção  multifacetada  de  vários  agentes  sociais  –  indivíduos, grupos e organizações – constitui uma das facetas do processo de reflexividade institucional  no  que  contem  quer  de  individualização,  ou  auto‐responsabili‐zação pela própria biografia, quer de subjectivação ou interferência da dimen‐são privada na dimensão político‐institucional. A  reflexividade  da  vida  social moderna consiste no  facto de as práticas sociais serem constantemente exa‐minadas e reformadas à luz da informação adquirida sobre essas mesmas prá‐ticas,  alterando  assim  constitutivamente  o  seu  carácter  (Giddens,  1990). Ulrickh Beck (1994) apelidou de sub‐política esse tipo de actividade caracterís‐tico das sociedades de modernidade tardia que impele os indivíduos e grupos a tornarem‐se agentes da configuração da sociedade a partir de baixo. 

A dimensão educativa da saúde comunitária – a hegemonia da ciência 

A saúde comunitária assenta na promoção da saúde com o significado de: melhorar a capacidade de resposta positiva aos desafios do ambiente físico e social, seja ao nível dos indivíduos, concretizada nos objectivos de preservar o recurso  pessoal  de  saúde  e  desenvolver  as  potencialidades  de  lidar  com  o stress biológico  e psicológico,  seja  ao nível  comunitário de diminuir  as desi‐gualdades, melhorar os indicadores colectivos de mortalidade e morbilidade e diminuir o risco nas condições ambientais. A participação como método para alcançar  tais objectivos dirige‐se ao empowerment  (conceito que passamos a referir pela tradução portuguesa: empoderamento1) das populações, entendi‐do como reforço do exercício da autonomia pelo auto‐controlo da própria saú‐de e do exercício da cidadania pela intervenção colectiva na definição de prio‐ridades da micro‐política (WHO 1986). 

Como método, o discurso da promoção da saúde distancia‐a da “tradicio‐nal” (informativa e pedagógica) educação para a saúde pela ênfase que coloca no empoderamento dos agentes individuais e colectivos com vista ao aumento 

                                                              1 De acordo com parecer de Malaca Casteleiro à CIDM em 1995. 

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da sua capacidade de escolher e de decidir. No entanto, é na estratégia educa‐tiva que a promoção da saúde, assenta a racionalidade das escolhas  informa‐das. A promoção da saúde apoia o desenvolvimento pessoal e social mediante a passagem de informação, a educação para a saúde e o desenvolvimento das competências para a vida. Desta  forma, aumenta as opções disponíveis para que as pessoas exerçam maior controlo  sobre a  sua própria  saúde e  sobre a saúde  do  ambiente  que  as  rodeia,  assim  como  para  que  façam  opções  que conduzem à saúde (WHO 1986: 3). 

A dimensão capacitadora sobre que o texto fundador da promoção da saúde assenta o empoderamento das pessoas e das comunidades, aparece assim como uma dimensão limitada pela concepção implícita do conhecimento como monopó‐lio dos peritos a quem compete democratizá‐lo. Nessa perspectiva, a promoção da saúde  constituir‐se‐ia  em  passagem  dos  conhecimentos  científicos  sobre  saúde, com  construção, na população, de atitudes  condizentes  com  tais aprendizagens. Intervenção que se situa no âmago da governabilidade dos corpos, exercida pelo mecanismo do saber‐poder, recorrendo a processos de interiorização que dirigem a vontade e a auto‐disciplinam. Em suma, está‐se perante uma filosofia de acção inovadora (empoderamento e participação) para objectivos convencionais (Davies, et  al., 1993) na medida  em que  a  finalidade  reside na passagem da mensagem científica sobre a saúde, substituindo por ela o conhecimento popular. 

Ora, o conhecimento  leigo não é apenas um conhecimento feito de “irracio‐nalidades” que oferecem  resistência à adopção da mensagem  racional; ele é um outro tipo de conhecimento cuja “racionalidade” é subjectiva, biográfica, feita da interpretação e da procura do sentido da vida (Williams et al., 1994; Silva, 2008). Na sua relação com as pessoas na comunidade, a  instituição promotora da saúde deve estar aberta a esta dimensão cultural da saúde/doença e aprender com ela sobre as formas de viver esse domínio da vida de que conhece essencialmente os processos biológicos (Nunes, 1997). 

Na  sociedade da mudança permanente,  sociedade  contingencial em que as pessoas são obrigadas a fazer opções em termos de compromisso, as opções indi‐viduais são eivadas de subjectividade o que significa que se integram no fluxo pro‐cessual permanente em que o actor não “é” mas “faz‐se” e que, a cada momento, avalia não só  racional mas também emocional e culturalmente as escolhas entre os riscos potenciais para a saúde e os riscos potenciais para as outras dimensões da sua existência. As escolhas representam o compromisso possível entre o saudá‐vel e as realidades laborais, económicas e sociais, e não são opções livres de con‐dicionalismos externos, apenas determinadas pelo desejo do bem‐estar em saúde, hoje e no futuro. 

Com efeito, o estudo dos problemas de saúde numa perspectiva de identi‐ficação e medida da  importância relativa dos factores de risco, verifica a pre‐dominância da predisposição social e cultural  relativamente ao estilo de vida individual (Frankenberg, 1993). O estilo de vida é uma construção que se deci‐de no espaço situado entre a socialização, condicionada pelas predisposições estruturais, e as escolhas  individuais  (Bourdieu, 1979). É assim que as condi‐ções de vida associadas ao baixo estatuto económico, educacional e ocupacio‐nal estão na base da  incidência diferencial dos comportamentos de  risco, da exposição  aos  perigos  ambientais  e  do  recurso  aos  cuidados  preventivos  de 

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saúde numa relação de causa fundamental (Link et al., 1995; Mckinlay, 1975; Blackburn, 1999). 

No entanto, as estratégias de promoção da saúde  têm  investido  fundamen‐talmente as mudanças de comportamento (Eyles et al., 2001), num procedimento de individualização da doença que oculta as condições estruturais que em grande parte a determinam e que pode contribuir para a culpabilização das vítimas com efeitos discutíveis sobre a saúde das populações (Crawford, 1977; Minkler, 1999). Vários  estudos  têm  verificado  uma  falta  de  coincidência,  nos  actores,  entre  o conhecimento das normas relativas ao modo de vida saudável, as atitudes consi‐deradas  desejáveis  e  os  comportamentos  realmente  efectuados  (Calnan,  1987; Blaxter, 1998; Vieira, 2000). 

Contudo, apesar de as mensagens sobre estilo de vida e comportamentos individuais  terem  sido  adoptadas por uma boa parte da população,  e de consequentemente  se  verificar maior  consciência  sobre  a necessidade de responsabilidade pessoal pela saúde, a capacidade de muitas pessoas para agirem de acordo com esses conhecimentos é, em geral, fortemente limita‐da  pela  ausência  de  um  ambiente  cultural,  social  e  económico  favorável (Ziglio et al., 2000: 144). 

As  potencialidades  da  promoção  da  saúde  apontam  para  a  conjugação  de esforços entre a saúde pública e as disciplinas sociais no sentido de desenvolver uma epidemiologia dos processos sociais (Carballo, 1987) e de por esse meio con‐tribuir para o alargamento do pensamento político‐social sobre o estado de saúde, integrando  os  conhecimentos,  práticas  e  significados  culturais  (Corin,  1975), focando a necessidade de mudanças conceptuais e políticas na via do desenvolvi‐mento e na administração dos recursos, bem como para o alargamento da capaci‐dade reflexiva dos indivíduos e dos grupos e da sua capacidade de resistência sub‐‐política. Paulo Freire  (1969) trabalhou esta perspectiva da conscientização como uma relação que promove a consciência crítica sobre os  factores  (sociais, econó‐micos e políticos) determinantes da  configuração dos problemas e a  capacidade para neles intervir. 

A dimensão participativa da saúde comunitária 

Como processo de empoderamento, a participação supõe que a análise das necessidades deixe de reflectir prioritariamente as preocupações dos profissionais e  passe  a  integrar  o  pensamento  leigo  sobre  as  questões  da  saúde  (Machado, 1990; Bass, 1994; Sturt, 1998). A participação em saúde é assim configurada como partilha do poder num processo que supõe a dinamização da capacidade organiza‐tiva da comunidade para  intervir de  forma consciente e responsável. O empode‐ramento da população é resultado desse processo que não só promove a demo‐cratização do conhecimento para além dos grupos e instituições especialistas onde se sedia, como promove, nos especialistas, a capacidade de escuta e consideração pelo conhecimento  leigo, num processo de “alimentação” da reflexividade mútua que devolve aos agentes, especialistas e leigos, o sentimento de confiança, o dese‐jo e a capacidade de intervir na política. Scott Lash refere‐se a esta possibilidade de desenvolver  uma  noção  do  ‘self’  consistente  com  a  noção  do  “nós”,  como  uma 

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hermenêutica  da  recuperação  da  comunidade  na  sociedade  da  individualização (1994: 161).  

Ou seja, definir a promoção da saúde pela via da participação é instalá‐la no campo necessariamente conflitual dos poderes  (políticos e de administra‐ção, profissionais e  leigos) e suas  fronteiras. Examinemos os níveis concretos de manifestação da ambivalência a que a saúde comunitária está sujeita o que faremos com recurso à distinção das duas direcções em que se orienta a parti‐cipação em saúde: a participação que traz a população para o espaço da insti‐tuição e a participação que leva a instituição ao espaço da vida da comunidade. 

A primeira direcção é a da participação que “senta” a comunidade à mesa das decisões pela via da  representatividade dos  seus organismos e organiza‐ções nos órgãos regulares da gestão do sistema de saúde. Este é, no interior da própria  instituição, um espaço criador da oportunidade de abertura da visão especializada da saúde. No entanto, ele é, na prática, um espaço liderado pelos especialistas  (especialistas  da  saúde,  em  posição  dominante,  mas  também outros especialistas representantes de outras  instituições) onde facilmente se manifesta  a  tendência  redutora  para  a mera  representatividade  formal  dos agentes  leigos, numa perspectiva que encara a participação mais  como uma questão de eficiência do que de democracia. Na prática, os utentes não vêem o seu poder reforçado. Apesar do aumento de informação sobre certos aspectos dos cuidados de saúde, tais como o acesso, ainda se mantém uma assimetria considerável entre utentes e fornecedores (Shabckley e Rugan, 1994; Gabe et al., 2000: 269). 

A divisão social do saber‐poder, visível na distância entre o discurso cientí‐fico  relativo  a  conceitos,  indicadores  e  raciocínios  técnicos,  e  a  expressão popular das preocupações e problemas vivenciados no quotidiano social,  tra‐duz‐se  frequentemente  em  consensos  em  torno  de  objectivos  pré‐estabele‐cidos pelos administradores dos serviços (White, 2000). 

A participação, para ser activa e consciente, terá de estar habilitada a  intro‐duzir o diálogo sobre temas e racionalidades que estão para além da lógica pericial inscrita  nos  relatórios  e  programas,  a  impor  a  construção  de  novos  indicadores capazes  de medir  subjectividades,  a  opor‐se  à  construção  prévia  de  decisões,  a exigir a transparência da contabilidade e outros elementos avaliadores do funcio‐namento dos serviços – habilitação que se desenvolve no  interior do processo de empoderamento da  comunidade que aquelas  instâncias pretendem  representar. “A capacidade técnica (…) poderia então passar do estatuto de modo de apropria‐ção do saber reservado a alguns iniciados para o de construção comum, conjunta, de  um  saber  e  de  um  conhecimento  úteis,  baseado  na  partilha  do  saber  e  do poder” (Pissarro et al., 1994). 

As potencialidades para  intervir ao nível da ordem social que sustenta o nível  institucional  são  compreensivelmente  reduzidas  no  entendimento  que faz  da  participação  um  objectivo  subordinado  à  liderança  da  instituição  de saúde. A pesquisa sobre as experiências de participação em saúde é reveladora de uma “apatia” por parte dos actores  leigos cujo empenhamento decisivo e continuado  é  função,  em  grande  parte,  do  suporte  político  e  organizativo (Kennedy, 2001) e da existência de  interesses comunitários organizados,  inte‐resses esses que as administrações têm relutância em aceitar (White, 2000). 

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Segundo alguns autores, o que deve entender‐se na contestação leiga que manifesta  insatisfação com o sistema de saúde, não é que as pessoas preten‐dem  ser  associadas  à  sua  gestão burocrática, mas que pretendem  sobre ele serem informadas e consultadas (Williams, et al., 1994). 

O  acesso  à  informação  e  à  comunicação  é uma  condição da  integração social nas sociedades de modernidade  tardia. É a  informação que alimenta a reflexividade  dos  agentes  sociais,  fundamenta  as  escolhas,  sustenta  a  auto‐‐afirmação no  relacionamento com o sistema, enriquece a comunicação com os  outros  agentes,  incentiva  a  associação  colectiva,  possibilita  a  tomada  de palavra nos momentos de consulta organizada e cria as condições para a parti‐cipação  representativa não meramente  formal. A prática de  “consulta  infor‐mada”  (preparada mediante distribuição de dossiers, organização de  sessões de informação e debate, acessibilidade a documentos, etc.) poderá ser induto‐ra de mudanças e estabelecer as bases para a organização do exercício do con‐trolo na instituição e seus sistemas periciais. 

Vários países  (Inglaterra, Dinamarca, Alemanha, França, nomeadamente, na Europa)  têm vindo a organizar o debate aberto à participação do público, sobre as questões de princípio e de funcionamento do sistema de saúde, tais como os direitos dos utentes, a prevenção, a acessibilidade, etc. O objectivo de tal mobilização dos cidadãos é a promoção do esclarecimento colectivo – criar uma ‘cultura de saúde pública’ (Garros, 2000) – e da participação directa, viabi‐lizando a decisão conciliadora do  interesse geral com os  interesses particula‐res. Contrariamente ao que se poderia prever, esses debates concluem que as reivindicações  não  se  dirigem  ao  acréscimo  de  serviços  e  de  cuidados mas antes à dimensão humana nos cuidados de saúde e à qualidade da relação com os profissionais: melhor informação, melhor escuta, melhor acompanhamento, mas  também mais  transparência e mais  respeito pela  sociedade  civil no que respeita à relação com as estruturas de cuidados (Khodoss, 2000). 

Portugal não se implicou ainda na direcção destas experiências de demo‐cracia directa que, como referem Letourmy et al.  (2000), não só melhoram a informação e a reflexão responsável por parte dos agentes, como contribuem para a mudança da relação médico‐doente e, nessa medida, para a mudança nas práticas médicas. 

 (…) estas experiências  foram  implementadas no contexto de  trabalhos parlamentares ou sob égide governamental. De forma nenhuma preten‐diam  substituir‐se  ao  funcionamento  representativo  das  instituições, mas tinham como objectivo alimentar o debate e a reflexão dos respon‐sáveis políticos. Do que  se  trata é de  fazer emergir um ponto de vista suplementar aos já existentes, os dos técnicos (Ghadi et al., 2000: 23). 

A experiência mostra que este  tipo de  iniciativas  são  interessantes, no entanto muito  está  ainda  por  conseguir.  Para  além  dos  problemas  de definição, denominação ou legitimidade dos representantes dos utentes ou da população, o tempo de palavra nestas instâncias é ainda em gran‐de  parte  ocupado  pelos  profissionais  (…). A  emergência  de  um  verda‐deiro debate social sobre as prioridades de saúde em que cada pessoa possa e ouse exprimir‐se, necessita de um  longo  trabalho preparatório de informação e até de formação. (Garros, 2000: 91‐92). 

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A segunda direcção da participação é a da inversão na comunidade. Neste campo,  a  ambivalência  primeira  do  processo  de  construção  da  participação tem também a ver com a liderança do processo, colocada na iniciativa da insti‐tuição de  saúde. As  instituições  (aqui,  como  sinónimo de organizações)  são, pela  sua  própria  natureza,  cristalizações  de  poderes  (profissionais, maiorita‐riamente)  sobre os quais  assenta a organização  social.  Instituidora do poder médico nas hierarquias profissionais e da  consequente valorização de priori‐dades tecnológicas na distribuição dos recursos (dinheiro, tempo e categorias de  pessoal),  nos  objectivos  e  nos  indicadores  de  avaliação,  a  instituição  de saúde  tende a  remeter a  saúde  comunitária para a periferia do  sistema. É o equilíbrio  da  instituição  que  está  em  jogo,  com  a  saúde  na  comunidade  a representar a ameaça à estabilidade, assente na especialização dos seus pro‐fissionais e na barreira que os separa dos seus “utentes”. A saída para o exte‐rior numa atitude de constituir um desafio à aplicabilidade dos seus conheci‐mentos,  às  certezas  assentes  em  conceitos  abstractos  e  técnicos que pouco têm em conta a experiência da vida e a procura de significados para a doença, e à  capacidade de  relacionamento  “desprotegido” no  sentido de  imersão no “mundo da vida” com as suas regras interaccionais tão diferentes das que vigo‐ram no espaço institucional. 

A saúde comunitária aparece, na generalidade dos países europeus, aliada a políticas mais ou menos  consistentes de  saúde pública a nível da administração local (Fassin, 1998). Ela é transposta para a prática principalmente através de pro‐jectos,  alguns  com  características  de maior  continuidade,  designadamente,  em alguns países, do ponto de vista do retorno para os objectivos dos serviços (Den‐mark Ministry of Health, 1994; Bass, 1994; Haglund et al., 1997; Green, 1999). 

Portugal é particularmente  inactivo, no contexto mundial, no que respeita a implementação da  saúde  comunitária. Apesar das declarações programáticas do Plano Nacional de  Saúde e da existência de uma estrutura de  saúde pública no interior das ARS,  responsável pela saúde comunitária, a  falta de  regulamentação adequada e de recursos, nomeadamente humanos, leva a que a saúde comunitária seja abordada na perspectiva de programas definidos em função da prevenção da doença  individual  e  se  corporize  em  projectos  locais  de  trabalho  directo  com “comunidades” (zonas de habitação) desfavorecidas e onde se acumulam os pro‐blemas sociais relacionados com a exclusão social. São, genericamente, iniciativas que estão na base da criação de programas de informação ou de acções dirigidas à mudança de hábitos. São raras as intervenções de saúde comunitária que se direc‐cionam  para  o  objectivo  de  participação  continuada  das  pessoas  da  população‐‐alvo, mediante a dinamização da organização de grupos  locais e da formação de líderes. 

Na  saúde  comunitária,  a definição da  “comunidade” é usualmente  feita pelos  profissionais  (um  bairro  degradado;  uma  comunidade  étnica;  etc.),  de acordo com os seus próprios objectivos e com base numa convicção de homo‐geneidade que, à partida, não cria espaço ao equacionamento da diferenciação social,  da  conflitualidade  interna,  ou  da  auto‐organização  da  população;  a “comunidade”  é  muitas  vezes  sinónimo  de  grupos,  “administrativamente” criados (a associação de pais, o  lar de  idosos, os professores, etc.) a quem as acções são dirigidas (Jewkes et al., 1990). De uma forma geral, o objectivo que 

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subjaz à promoção da participação directa das pessoas e grupos ou organiza‐ções da comunidade está informado pela visão biomédica da saúde e utiliza a participação  para  validar,  legitimar  ou  tornar  menos  ineficazes  as  acções dos/as profissionais (Bass, 1994). 

Apesar dessas limitações, reconhece‐se nestas práticas de iniciativa volun‐tarista e empenhada, o germe da pesquisa‐acção emancipatória no que têm de associação de pessoas com competências diversas que se  inter‐apoiam e esti‐mulam no desenvolvimento da acção crítica e na assunção de responsabilida‐des mútuas,  determinadas  a  aprendizagens mútuas  e  a  deixarem‐se  corrigir pela prática  (Gomes, 1992).  Instauram um espaço novo de  interacções entre profissionais de saúde, agentes da comunidade e profissionais de outras orga‐nizações sociais cujas potencialidades de celebração da diferença presente na pluralidade de discursos as situa no espírito da pesquisa nomádica baseada na convicção de que não há uma  verdade única  sobre o mundo, mas  todos os conhecimentos são contingentes e processuais (Fox, 1999). 

No  entanto,  o  seu  carácter  periférico  no  interior  da  instituição  reduz  estas experiências a uma dimensão voluntarista e pontual que lhes minimiza a capacidade de interferir com a ordem instituída em que se movem os poderes da saúde. Ficam consideravelmente inalteradas, na cultura da instituição, as suas relações hierárqui‐cas subordinadas ao poder‐saber médico como verdade fundacional, a falta de diá‐logo com as visões  leigas da saúde, a exclusão da subjectividade na experiência do ser doente, a não consideração da causalidade social no risco de adoecer, a rigidez da burocracia, a visão dos direitos dos utentes numa perspectiva  individual e não colectiva, a atribuição de recursos que privilegia os cuidados curativos e a passivida‐de face aos mecanismos do poder político‐económico nas suas responsabilidades de controlo das condições ambientais. 

A  promoção  da  participação  comunitária  em  saúde  descobre‐se  assim enredada nas relações de  força construtivas da sua produção como mecanis‐mo de  regulação que pretende disputar, no  terreno, um espaço potenciador do  vector  da  emancipação. Na  prática,  ela  tem  funcionado  como  ponto  de resistência no interior do sistema, mas não tem tido capacidade para instaurar a reorientação dos serviços de saúde2. 

Síntese final 

A  saúde  comunitária  tem  como  objectivo  a  promoção  da  saúde  numa abrangência que,  implicando todos os aspectos da vida  individual e colectiva, representa uma nova configuração da bio‐política de regulação social. Nela, os agentes sociais são chamados a tomar parte activa e responsável,  integrando de  forma  consciente  a  sua  qualidade  de  sujeitos  políticos.  A  estratégia  de intervenção na comunidade conjuga a vertente participativa dirigida ao reforço do poder das populações, com a vertente educativa que a ela contribui pela divulgação do conhecimento especializado. Esta dimensão educativa comporta 

                                                              2 Fica excluída deste texto a participação como mecanismo político (na sociedade brasileira) rea‐lidade diferente da europeia no que tem de intervenção legalizada de representantes de toda a sociedade na definição de políticas e sua execução. 

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riscos e potencialidades, do ponto de vista da emancipação e empoderamento das pessoas e comunidades, riscos e potencialidades compreendidos na dialéc‐tica que se joga entre uma prática tradicional de “medicalização” da experiên‐cia  da  saúde/doença  (educação  baseada  numa  estratégia  dominantemente informativa)  e  uma  prática  colaborante,  aberta  à  pluralidade  de  discursos, capaz de aceitar a visão leiga com a mesma seriedade com que encara a visão científica, reconhecendo a cada uma o seu valor específico. 

A promoção da saúde  joga‐se também no campo das condições estrutu‐rais que influenciam a saúde, em relação aos quais a tensão se situa entre uma orientação que privilegia a actuação médica nos efeitos ou a intervenção polí‐tica  nas  causas.  Esta  última  exige  uma  conjugação  de  esforços  capazes  de reverter directamente para  a política  governativa os  conhecimentos  capazes de  influenciar  as  decisões  no  sentido  da  saúde,  assim  como  de  alimentar  a reflexividade dos agentes sociais, individualmente ou em grupo, contribuindo à sua capacidade de decisão crítica e de exercício de contestação relativamente às medidas de política que, por intervenção ou por omissão, prejudicam a saú‐de. É neste contexto de desenvolvimento da capacidade de reflexão informada que faz sentido apelar à participação, seja ao nível da organização e funciona‐mento  da  instituição  de  saúde,  seja  ao  nível  da  construção  do  sentimento comunitário  em  torno da procura de  verdades plurais  capazes de  instituir o diálogo entre a ciência e a vida prática. 

Promover a saúde pode então significar uma mudança cultural em que a atenção  que  se  dá  ao  corpo  deixe  de  reverter  para  a  procura  de  cuidados médicos, em favor de um modo de vida em que o desporto deixar de ser uma distracção, as férias deixam de ser um privilégio, a alimentação variada e feita de alimentos frescos deixa de ser um luxo, etc. para passarem a ser factores de saúde. 

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O ACESSO À SAÚDE E OS FACTORES DE VULNERABILIDADE  

NA POPULAÇÃO IMIGRANTE 

Bárbara Bäckström  

 Segundo os dados do Relatório Anual do Observatório de Acesso à Saúde nos 

Imigrantes, da Rede Internacional Médicos do Mundo de 2007 (Chauvin e Parizot, 2007) apenas um terço das pessoas inquiridas, imigrantes irregulares, que sofrem de um problema de saúde crónico beneficia de um tratamento em curso e perto de metade das pessoas que declararam pelo menos um problema de saúde sofreu um atraso ao recorrer aos cuidados de saúde. 

O mesmo relatório afirma ainda que os obstáculos mais frequentes ao acesso e  continuidade dos  cuidados de  saúde,  expressos pelas próprias pessoas, dizem principalmente respeito ao desconhecimento dos seus direitos, dos locais onde se devem dirigir para receber esses cuidados, ao custo dos tratamentos, às dificulda‐des administrativas, ao medo de uma denúncia, à discriminação e às barreiras lin‐guísticas  e  culturais.  Tendo  como  referência  a  nossa  experiência  no  terreno, (Bäckström,  2006  e  2008)  é  de  destacar,  em  primeiro  lugar,  entre os  principais obstáculos, aqueles que podemos associar às condições de vida e que contribuem directamente para a deterioração do estado de saúde, nomeadamente, as precá‐rias condições de habitabilidade, alimentação deficiente, baixos rendimentos e as difíceis e incertas condições de contratação e de segurança no trabalho. 

Determinantes da saúde e imigração 

Uma das áreas em que nos debruçamos para compreender a saúde e a  imi‐gração, numa perspectiva sociológica, é a dos determinantes de saúde. A saúde é resultado de uma rede complexa de determinantes que envolvem factores biológi‐cos e genéticos, psicológicos e sociais, estilos de vida e comportamentos, o meio ambiente físico, socioeconómico e cultural, aspectos relacionados com os sistemas de  saúde  e  as  políticas  de  saúde  (Reijneveld,  1998a).  Segundo  Gravel  (2000)  é reconhecido  que  a  saúde  é  influenciada  pelos  factores  associados  à  etnicidade. Estes factores reflectem os aspectos culturais, os valores, as crenças, as práticas e as particularidades biológicas e genéticas. Podem ser considerados como determi‐nantes da saúde, ligados à saúde e ao bem‐estar, ao contexto social, cultural e físi‐co, aos hábitos de vida, à utilização formal e informal da saúde, à forma de enten‐der a doença e os valores educativos. 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 79‐90. 

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80  Bárbara Bäckström 

Os  determinantes  da  saúde  podem  ser  de  dois  tipos:  os  determinantes  da saúde, aqueles que estão associados ao estilo de vida, onde se incluem os compor‐tamentos tais como: o consumo de tabaco e álcool, a alimentação e a actividade física, enquanto o outro tipo de determinantes está ligado aos factores externos e nele se incluem determinantes socioeconómicos da saúde sendo estes a educação, o emprego e as condições de trabalho, o rendimento, as condições de habitação, o ambiente e a cultura. Também podemos considerar as redes de suporte sociais e comunitárias enquanto  importantes determinantes da saúde, assim como os  fac‐tores genéticos e as condições de acesso a serviços de saúde. 

No estudo sobre a saúde dos imigrantes (Bäckström, 2006) a evidência empí‐rica demonstrou que  a  condição  socioeconómica das pessoas  revela  as maiores diferenças e marca a posição de variável explicativa na  saúde e bem‐estar, bem como no acesso e tipo de utilização dos serviços de saúde. Conclusão esta, que foi ao encontro de Nettleton  (1995), que  refere existirem diversas explicações para padronizar a saúde e a doença pela etnicidade, através dos factores genéticos, cul‐turais e socioeconómicos. Sem excluir a influência dos primeiros, as circunstâncias sociais nas quais as pessoas vivem e a natureza das relações sociais que os indiví‐duos  experimentam  são  as  considerações  mais  importantes  para  a  saúde  e  a doença. Também como  indica Germov  (1998) a construção  social da  saúde e da doença,  e  a  etnicidade, não podem  ser  isoladas dos  efeitos da  classe  social, do género e da idade. Pelo contrário, a etnicidade interage com cada um destes facto‐res. Venema (1995) acrescenta que os determinantes da relação entre grupos de imigrantes, grupos étnicos e a  saúde  são geralmente compostos por  factores de pertença a um grupo, factores socioculturais e factores socioeconómicos. O factor sociocultural evidencia as diferenças de cultura e o socioeconómico  inclui a posi‐ção social, o acesso ao consumo de bens, a participação no mercado de trabalho, valores e normas e o acesso à informação. Os determinantes socioeconómicos têm ganho  especial  relevo  no  esforço  de  compreensão  da  relação  entre migração  e vulnerabilidade  no  que  diz  respeito  à  saúde  (WHO,  2003).  As  desigualdades socioeconómicas que estão associadas a contextos de pobreza, exclusão social e a situações  laborais  precárias  podem  traduzir‐se  em  reduzidas  oportunidades  de acesso  à  educação,  informação  e  utilização  dos  serviços  sociais  e  de  saúde. De acordo com Smaje (1995) uma comunidade migrante encontra‐se tão estratificada quanto a sociedade de acolhimento. A relação dos  imigrantes com os serviços de saúde e as políticas específicas de saúde para os imigrantes têm de ter em conta as diversidades  de  origem  e  dos  grupos  sociais,  sendo  necessário  estar  atento  às especificidades que daí resultam, o que exige um ajustamento e adaptação a essa realidade. 

Muitas vezes, os padrões étnicos na saúde e na doença são resultado de outras categorias  produzidas  socialmente  e  que  reproduzem  as  desigualdades  sociais.  A etnicidade, usada como variável explicativa, sobretudo nos estudos anglo‐saxónicos, esconde as  condições  sociais, económicas e  culturais que estão na base das desi‐gualdades e que são os factores determinantes da saúde e da doença das pessoas. A diferença  cultural  e  étnica  também  pode  influenciar  a  saúde  e  as  desigualdades sociais na  saúde. Estas diferenças  são explicadas pela posição  socioeconómica e a atenção deve ser dada, desde o início, à relação entre a posição socioeconómica e a saúde, e não à pertença a um grupo étnico minoritário. 

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O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante  81 

Em contexto migratório  importam também as condições de  legalização e de integração,  o  exercício  da  cidadania,  o  direito  à  protecção  social,  o  racismo,  a estrutura familiar e redes informais de suporte e o acesso ao emprego, à educação e aos serviços de saúde. 

Identificámos na  literatura sobre etnicidade, migrações e saúde a existência de uma relação entre a saúde e as características socioeconómicas e culturais da área de  residência onde vivem os  imigrantes  (Macintyre et al., 1993; Reijneveld, 1998b).  A  residência  numa  área  pobre  pode  ser  um  determinante  ainda mais poderoso do que o  rendimento, a educação ou outro  indicador socioeconómico. Os  imigrantes apresentam, em geral, piores condições de vida do que as popula‐ções dos países de acolhimento. Frequentemente, residem em zonas degradadas com  reduzidos serviços de âmbito social e de saúde, em condições habitacionais deficientes e sem infra‐estruturas básicas. 

Outro factor muito importante de alteração da saúde dos imigrantes é o tem‐po de residência no país de acolhimento. O tempo de residência mais  longo está associado ao total de sintomas relatados pelos  indivíduos de ambos os sexos em conjunto e em separado. A duração da estadia tem a ver com o ano de chegada ao país  de  acolhimento  e  uma maior  duração  significa  uma  pior  saúde  (Williams, 1993). O tempo de permanência influencia a avaliação que os indivíduos fazem da sua situação. Quanto maior a “integração”, maiores são as necessidades percebi‐das e mais os  valores  se  assemelham  aos padrões dominantes da  sociedade de acolhimento  e maior  a  sensação de  exclusão. Outros  estudos  chegam  à mesma conclusão,  afirmando que  a  saúde dos  imigrantes  recém‐chegados  é melhor do que a dos indivíduos “locais”. Os níveis de morbilidade para os imigrantes tende a ser mais baixo do que para a população de origem. Ao imigrarem, as pessoas são “seleccionadas” com base no seu estado de saúde. No entanto, uma vez chegados aos países de acolhimento estes grupos podem tornar‐se mais vulneráveis e mais expostos a factores de risco, ao se confrontarem com um novo contexto onde se deparam com enormes diferenças que vão desde o meio ambiente, o clima, a lín‐gua, a cultura, ao funcionamento dos serviços. À medida que o tempo de residên‐cia vai aumentando verifica‐se que crescem também as taxas de morbilidade e de mortalidade  dos  imigrantes,  como  consequência  dos  estilos  de  vida,  particular‐mente do regime alimentar. Há tendência para um aumento da necessidade per‐cebida de aceder aos serviços por parte dos imigrantes que já estão há mais tempo no país e que têm um maior grau de alfabetização. 

Outro determinante  importante da  saúde dos  imigrantes é  a própria expe‐riência  da  imigração  que  poderá  ter  inúmeros  efeitos  positivos,  pois  os  recém‐‐chegados, de culturas diferentes, possuem muitas vezes mecanismos eficazes de adaptação às perturbações e ao stress. Os sólidos valores  familiares e comunitá‐rios  poderão  também  contribuir  para  que  o  país  de  acolhimento  seja  um  lugar mais saudável para se viver. Existe, por enquanto, uma pesquisa insuficiente sobre os pontos fortes dos imigrantes e o lado positivo da imigração na saúde. Podemos agrupar em três grandes categorias os  factores que  influenciam a saúde dos  imi‐grantes que estão em processo migratório: as características sociodemográficas e culturais do  imigrante, as experiências pré‐migratórias,  incluindo as condições de partida e as experiências e condições pós‐migratórias (Massé, 1995). 

A distância cultural do país de origem e as dificuldades de adaptação no local de acolhimento podem ser factores sociais determinantes de saúde. O processo de 

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adaptação na sociedade de acolhimento pode constituir uma experiência particu‐larmente difícil para alguns grupos etnoculturais, mais precisamente, para certos subgrupos sociais no interior de um dado grupo etnocultural. 

O acesso aos cuidados de saúde das pessoas em situação  irregular – resultados do Inquérito Europeu 

Os Médicos do Mundo criaram um Observatório Europeu do Acesso aos Cui‐dados de Saúde que permite testemunhar sobre as dificuldades de acesso aos cui‐dados de saúde no território europeu por parte das pessoas que vivem em situa‐ção precária. Este testemunho apoia‐se em constatações e inquéritos face a face, no terreno, junto das pessoas mais vulneráveis com o objectivo de convencer não só os diferentes governos, mas também as instituições europeias, da necessidade de melhorar o acesso à prevenção e aos cuidados de saúde. 

Para tal, realizaram em 2006 o estudo europeu sobre o acesso aos cuidados de saúde das pessoas em situação irregular (Chauvin e Parizot, 2007). No total, 835 pessoas,  estrangeiros  em  situação  irregular,  foram  interrogadas  em  sete países: Bélgica, Espanha, França, Grécia,  Itália, Portugal e Reino Unido. Os questionários foram administrados por intervenientes das missões de Médicos do Mundo ou, em casos mais  raros,  por  intervenientes  das  associações  parceiras  de Médicos  do Mundo. Quando participámos como comentadores na apresentação dos  resulta‐dos contidos neste relatório, tecemos algumas considerações, que gostaríamos de aqui evocar. Em primeiro  lugar chamou‐nos a atenção a referência no estudo de que o Médicos do Mundo não tem vocação de organismo de pesquisa e que  isso impõe uma dupla  restrição ao  inquérito. Por um  lado, cada questão colocada ao paciente deve apresentar‐lhe directamente uma mais‐valia em matéria de acesso a uma cobertura de saúde e aos cuidados médicos; por outro, as questões coloca‐das também devem contribuir para construir um conhecimento sobre as dificulda‐des encontradas pelos pacientes, tal como sobre o seu estado de saúde. Pergun‐tamos se se trata de uma restrição ou de uma forma de pesquisa orientada para a população,  com  uma  vertente  de  investigação‐acção.  Pensamos  que  o  que  os Médicos do Mundo denominam de restrição pode ser considerado uma vantagem à luz das metodologias participativas com grupos em que a acção tem o objectivo de induzir uma mudança numa comunidade e a investigação contribui para a com‐preensão do fenómeno em estudo. De uma forma simplificada, podemos afirmar que  a  investigação‐acção  é  uma metodologia  de  investigação  orientada  para  a melhoria da prática nos diversos campos da acção. 

Um inquérito europeu que tem como objectivo ser comparativo de realidades encontradas em contextos tão diversos como são os sete países estudados (Bélgi‐ca, Espanha, França, Grécia, Itália, Portugal e Reino Unido) depara‐se com dificul‐dades metodológicas ligadas à diversidade das situações encontradas e com a falta de  representatividade.  Esta  última  é,  evidentemente,  muito  difícil,  ou  mesmo impossível  de  conseguir,  nomeadamente,  por  falta  de  estatísticas  fiáveis  sobre esta população. Para além disso, o público‐alvo que recorre nesses países aos cen‐tros dos Missões dos Médicos do Mundo não é representativo da totalidade dos imigrantes em situação  irregular, e esta amostra, não sendo aleatória, pode estar de  certo modo  enviesada  porque  estamos  apenas  perante  uma  população  de 

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O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante  83 

utentes que recorreram aos centros dos Médicos do Mundo e que se declararam em situação  irregular. Sabe‐se que, por medo, não há muita gente a declarar‐se em situação irregular. 

A  comparação  por  países  torna‐se muito  difícil.  A  União  Europeia  agrupa actualmente 27 países e os sistemas de saúde dos diferentes países da UE são ain‐da muito díspares, o que reflecte situações muito diversas e difíceis de comparar. Da mesma forma, a história e tipo de fluxos migratórios em cada país europeu dá origem a diferenças  importantes e contextos particulares. Encontram‐se grandes variações no seio da Europa no que respeita a imigração e também à saúde. Assim, podem‐se  identificar  inúmeras diferenças de um país para o outro, ao nível das populações encontradas, da sua diversidade geográfica e tipologias distintas, das suas problemáticas, das práticas das equipas no terreno, dos contextos, dos meios de intervenção, da definição dos conceitos, do vocabulário utilizado, da língua, das leis, o que pode  implicar uma compreensão e uma  representação diferentes das situações. 

De  país  para  país  utilizam‐se  diferentes  termos  para  caracterizar  o  facto  de aceder aos cuidados de saúde através de uma “cobertura de saúde”: cartão de saú‐de, cartão de utente, cartão da segurança social, cartão do sistema de saúde, certi‐dão, ajuda médica. No relatório referido utiliza‐se o termo cobertura de saúde. 

As legislações dos diferentes países europeus relativamente ao acesso a uma cobertura de saúde para os estrangeiros em situação irregular são muito diversas. A legislação Portuguesa que rege o acesso dos imigrantes aos cuidados de saúde é bastante favorável a uma proximidade dos imigrantes com o Sistema Nacional de Saúde. Segundo o  relatório dos Médicos do Mundo  (Chauvin e Parizot, 2007) os direitos  teóricos  abrangem  a  quase  totalidade  dos  indivíduos  em  Portugal  e  na prática  uma  proporção  considerável  beneficia  deles,  comparativamente  com outros países da União Europeia. 

 

Direitos teóricos e acesso efectivo a uma cobertura de saúde 

Países Direitos teóricos 

Teoria Acesso Efectivo 

Prática 

Bélgica e França Quase totalidade  dos indivíduos 

Uma ínfima minoria beneficia des‐ses direitos 

Itália, Espanha e Portugal Quase totalidade  dos indivíduos 

Proporção considerável beneficia deles 

Reino Unido Acesso às consultas  de medicina geral 

Só têm acesso às consultas de medicina geral; os outros cuidados 

de saúde não são geralmente cobertos 

Grécia  Mais restritivos  Menos acessíveis 

   Fonte: Relatório dos Médicos do Mundo, 2007. 

 

Nestes países, quase 80% dos inquiridos podem, em teoria, beneficiar de cui‐

dados de saúde, mas apenas 24% beneficiam realmente deles. A análise de dife‐

rentes  indicadores  do  Index  de  Políticas  de  Integração  de Migrantes  (Niessen, 

2007) mostra, no entanto, que a maioria dos  imigrantes e seus descendentes são 

afectados por situações de desvantagem relativamente à população dos países de 

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acolhimento. No caso português, vários indicadores põem em evidência essa desi‐

gualdade no domínio do emprego, das condições de habitação, no acesso à educa‐

ção, saúde e outros aspectos da vida social. Os cidadãos de países terceiros regis‐

tam uma taxa de desemprego mais elevada do que a dos portugueses, apresentam 

uma estrutura profissional em que predominam as actividades de baixa qualifica‐

ção e menores salários; têm piores condições de habitação, e, consequentemente, 

apresentam maior risco de pobreza e exclusão social (Baganha et al., 2002; Fonse‐

ca et al., 2002; Malheiros et al., 2007). 

Imigrantes irregulares 

Apenas  um  terço  dos  imigrantes  em  situação  irregular  na  União  Europeia 

afectados por um problema de saúde crónico beneficia de tratamento; e um em 

cada dez destes  imigrantes viu recusado um tratamento durante um episódio de 

doença, revelou este estudo. A falta de informação é responsável pelo afastamen‐

to destas pessoas dos  cuidados médicos,  já que mais de metade dos  imigrantes 

dizem que não sabem onde se dirigir. Mas cerca de 25% confessam que têm medo 

de ser denunciados, e preferem enfrentar a doença a ter de sair do país. 

Aos  imigrantes  irregulares  também  são associadas nestes diferentes países, 

diversas  designações  como  “sem  papéis”,  “ilegais”,  “indocumentados”  e  “sem 

autorização”. Os imigrantes irregulares são um grupo da população que está sujei‐

to a níveis elevados de vulnerabilidade, numa situação de quase exclusão social e 

de pobreza. São populações mais vulneráveis, em situações de crise e de exclusão, 

com dificuldades de acesso à prevenção e aos cuidados de saúde. Essa vulnerabili‐

dade  é  causadora de uma pior  saúde  e um pior  acesso  aos  cuidados de  saúde, 

cujos factores de risco conduzem a uma maior exposição a doenças e epidemias. 

Consideramos que a condição de  imigrante à chegada ao país de acolhimento  já 

reflecte alguma vulnerabilidade, apesar de termos visto que para emigrar é preciso 

reunir as poupanças e a  coragem necessárias a um projecto desta envergadura. 

Após a chegada, mais vulneráveis se tornam os que não possuem documentos e 

que ficam expostos a uma dupla vulnerabilidade. Urge nesses casos assegurar‐lhes 

e garantir‐lhes a condição de regulares, ou seja, “com papéis”, “legais”, “documen‐

tados” ou “com autorização”. 

Determinantes enquanto obstáculos e “não facilitadores” da integração no aces‐

so à saúde 

Os principais determinantes da saúde dos imigrantes prendem‐se com aque‐

les que já foram referidos. Estes podem transformar‐se em obstáculos ou barreiras 

considerando que a maioria dos  imigrantes enfrenta  inúmeras dificuldades e pro‐

blemas em inúmeros aspectos, que poderão ter a ver nomeadamente com o aces‐

so à habitação, o emprego, a falta de informação, o desconhecimento dos direitos 

e dos deveres, assim como a ignorância dos locais onde se devem dirigir e serviços 

existentes, a falta de cobertura de cuidados de saúde, custos das consultas e dos 

tratamentos, a necessidade de apoio  social e dificuldades  financeiras, a  falta de 

documentos (estatuto irregular), uma protecção social limitada, a falta de confian‐

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O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante  85 

ça  nos médicos  e  dificuldade  de  comunicação  ou  barreira  da  língua  e  barreiras 

administrativas e burocráticas. 

Os imigrantes com estatuto irregular em Portugal, apesar de a lei portuguesa enquadrar  os  irregulares  garantindo‐lhes  o  acesso  ao  SNS,  efectivamente  depa‐ram‐se  com  dificuldades  quando  se  dirigem  aos  serviços  públicos  de  saúde,  no acesso a cuidados de saúde, na obtenção do cartão de utente e no pagamento das taxas moderadoras.  No mesmo  relatório  refere‐se  ainda  a  recusa  de  cuidados pelos profissionais, se bem que em Portugal esta recusa ocorra por vezes ao nível do pessoal administrativo que faz o atendimento ao público. Por norma, os médi‐cos  e pessoal de  saúde não  se  recusa  a  tratar ninguém. O  comportamento dos administrativos  e  profissionais  de  saúde  é,  na  verdade,  outro  dos  factores  que pode  ser  determinante  no  uso  dos  serviços.  Frequentemente,  os  profissionais apresentam um  limitado  conhecimento da  legislação ou da  sua aplicabilidade, o que  se  traduz  na  exclusão  das  comunidades  imigrantes  do  sistema  de  saúde. (Wolffers et al., 2003). Temos vindo a constatar que em Portugal registam‐se inú‐meros  casos  de  obstáculos  administrativos  em  que  as  equipas  de  funcionários administrativos  se  recusam a aceitar  imigrantes  indocumentados  sob  falsos pre‐textos de desconhecimento da lei. No entanto, existem diferenças significativas de um centro de saúde para outro, no que respeita ao conhecimento sobre o direito de acesso ao SNS por parte dos  imigrantes  irregulares. Alguns  centros de  saúde parecem desconhecer que os cuidados básicos de enfermagem e a vacinação são gratuitos, enquanto noutros estes direitos são respeitados na prática diária. Além disso, o acesso aos serviços de saúde depende, até certo ponto, da boa vontade dos administrativos e das equipas médicas (Bäckström et al., 2008). 

Um outro factor determinante no acesso dos imigrantes aos serviços de saú‐de,  que  se  pode  tornar  num  obstáculo  para  os  irregulares  é  ainda  o medo  da denúncia, de ser preso ou de ser expulso, o qual impede alguns imigrantes de utili‐zarem  adequadamente  os  serviços.  Também  sabemos  que  a  discriminação  e  a estigmatização  são  barreiras  socialmente  produzidas  e  associadas  à  situação  de imigrante, sobretudo a de irregular, podendo condicionar o acesso à informação e à utilização dos serviços de saúde. 

Como vimos na  identificação dos determinantes da saúde, o tempo de  resi‐dência e a duração da estadia no país de acolhimento determinam o acesso efecti‐vo e não meramente teórico a uma cobertura de saúde. A antiguidade de residên‐cia no país de acolhimento está relacionada com o tipo de obstáculos referidos. Os principais obstáculos no acesso aos cuidados de saúde evoluem com o passar dos anos  sem  autorização  de  estadia  no  país  de  acolhimento.  No  estudo  referido (Chauvin e Parizot, 2007)  revelam‐se as diferenças dos obstáculos  com o passar dos anos. No caso dos recém‐chegados e dos que estão há pouco tempo no país de  acolhimento  referem‐se o medo da denúncia,  as barreiras  administrativas,  a falta de  informação  (como o desconhecimento dos direitos  e dos  locais onde  ir para serem tratados), problemas de habitação, horários  inadaptados aos dos ser‐viços de saúde, de insuficiência ou mesmo falta de cobertura de cuidados de saú‐de. Com mais tempo de residência no país de acolhimento realçam‐se as barreiras culturais, o medo da discriminação e perduram os obstáculos  financeiros. Relati‐vamente  às  barreiras  culturais,  ao  contrário  do  que muitos  estudos  na  área  da etnicidade, migrações e saúde  referem, estas não são  referidas como obstáculos 

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nos primeiros meses da emigração. A barreira cultural, bem como as dificuldades de adaptação linguística, são vividas enquanto obstáculos no acesso aos cuidados de saúde somente alguns anos após a chegada e é sentida ao nível do processo de integração em geral. 

Como  também é  referido no  relatório dos  resultados do estudo, a percepção do estado de saúde e do risco de estar infectado pode ser diferente, particularmente em função dos grupos migratórios maioritários. Os problemas de saúde mental são relatados  a  propósito  dos  requerentes  de  asilo,  das  pessoas  refugiadas  ou  dos migrantes  sem  documentos. Os  diversos  factores  socioeconómicos  tais  como  um baixo rendimento, as condições de vida e de habitação, expõem‐nos efectivamente a riscos sanitários  importantes. A estes  factores  juntam‐se muitas vezes a situação laboral e a exposição a  riscos e doenças profissionais. No contexto da migração e saúde, é cada vez mais consensual que a migração, em si, não representa um factor de risco. No entanto, o tipo de migração, o trânsito e acolhimento, as políticas de imigração e de  integração do país de acolhimento e o estatuto  legal, sobretudo no caso dos  irregulares, podem ser considerados  factores de risco ou até de exclusão social, tornando os imigrantes parte de uma população vulnerável com uma limitada capacidade para exercer os seus direitos. Um outro factor de vulnerabilidade asso‐ciado ao processo migratório é a própria experiência de afastamento do país de ori‐gem e a ruptura das relações familiares e sociais (Unaids/IOM, 2001). Essas pessoas, para  além  de  terem  sofrido muitas  vezes  choques  e  traumatismos  consideráveis, vivem em condições muito  frágeis e de enorme vulnerabilidade, devido sobretudo ao isolamento social, à ruptura com a família e a perda de redes sociais, o que pode fragilizar ainda mais o seu estado de saúde psicológico. 

Desenham‐se  actualmente  políticas  europeias  de  saúde  para  imigrantes estando  Portugal  fortemente motivado  no  sentido  de  construir  uma  política  a favor da integração dos imigrantes, oferecendo‐lhes os mesmos cuidados de saúde e serviços de saúde “universais”. Nesta perspectiva, os responsáveis pela produção de  cuidados de  saúde,  assim  como os  seus profissionais, deveriam  actualizar os seus  conhecimentos e documentar‐se a  fim de poderem  interpretar os aspectos ligados às culturas e aumentar a eficácia dos serviços que produzem e que são dis‐ponibilizados, aconselhando‐se a formação dos profissionais de saúde na área da “saúde e multiculturalidade” para a adopção de práticas de saúde  integradoras e culturalmente sensíveis. 

Como refere o relatório, a falta de informação é um dos principais obstáculos no acesso a uma cobertura da saúde. As pessoas não estão informadas acerca dos seus  direitos.  Recomendam‐se medidas  de  veiculação  da  informação,  junto  dos imigrantes, relativamente aos seus direitos e deveres com base no “Acesso à saú‐de por parte dos  imigrantes/despacho n.º 25.360/2001”. A par do obstáculo da informação,  no  acesso  a  uma  cobertura  de  saúde,  encontram‐se  os  obstáculos administrativos. Deve‐se igualmente investir na educação, na formação e na divul‐gação de  informação destinados  a  imigrantes  através de medidas  e políticas de integração dos que já residem em Portugal. Devem‐se desenhar projectos de edu‐cação e promoção da saúde, para a população imigrante, tendo em conta as suas particularidades  culturais  e  simbólicas.  Deve‐se  também  apostar  na  criação  do Programa de cuidados de saúde a  imigrantes do Plano Nacional de Saúde – Pro‐grama Nacional de Luta contra as desigualdades em saúde. 

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O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante  87 

 

Recomendações 

Desde 2001 que a lei portuguesa reconhece a estes cidadãos, ao contrário de outros Estados‐membros, o direito ao acesso aos cuidados de saúde. O principal problema é que este direito nem sempre é aplicado na prática e a maioria dos imi‐grantes  irregulares não é aceite nos  serviços de saúde, que não sabem como os enquadrar no sistema. 

Torna‐se  imprescindível a promoção de políticas de  legalização dos  imigran‐tes em  situação  irregular de  forma a eliminar esta barreira da  situação  irregular que só por si, já constitui um obstáculo para a plena  integração na sociedade. Os principais obstáculos no acesso aos cuidados de saúde evoluem com o passar dos anos decorridos  sem  autorização de estadia no país de  acolhimento. A  situação irregular  reflecte‐se  em  todos  os  domínios  da  vida  de  um  imigrante:  emprego, habitação, serviços sociais, saúde, educação, justiça, tornando‐se num ciclo vicioso que vai aumentando as situações de vulnerabilidade, pobreza e de exclusão social. O medo da denúncia, de ser detido e deportado, obriga‐o a viver numa situação de clandestinidade e silêncio. Muitas vezes os “irregulares” não utilizam os serviços públicos por  receio e não  têm o mesmo nível de acesso aos serviços disponíveis para os restantes imigrantes com estatuto legal regularizado e outros cidadãos. 

O estatuto de  “irregular”  funciona por  si  só enquanto um  factor de  risco e este estatuto deveria ser o mais curto possível. Como refere MacPherson (2004) a exposição a doenças infecto contagiosas pode ocorrer durante essa fase da migra‐ção irregular. 

Daqui resulta uma maior utilização de outros serviços prestados pelas ONG, instituições religiosas e associações por parte dos cidadãos em situação irregular. 

Para se conseguir uma melhoria significativa da saúde dos migrantes é neces‐sário primeiramente, melhorar as condições de vida, laborais e económicas. Torna‐‐se  necessário  investir  em  políticas  fora  da  saúde,  ou  seja,  tomar  as medidas necessárias  para  se  atingir  uma  integração  efectiva  e  plena,  começando  pela melhoria das condições de vida e de acesso aos cuidados de saúde, proporcionan‐do uma gestão mais eficaz da saúde pública. No Plano Para a  Integração dos  Imi‐grantes  (PII)  (Acidi/Presidência do Conselho de Ministros, 2007) as medidas pro‐postas no plano vão ao encontro das nossas recomendações. Recomendamos que se faça chegar junto dos imigrantes a informação sobre os seus direitos e deveres bem como as condições de acesso aos serviços de saúde tal como as medidas 22 e 23 do PII: “promover a realização de acções de formação, educação e de comuni‐cação para combater a falta de  informação dos  imigrantes relativamente aos ser‐viços de saúde, incentivando‐os a utilizar o Sistema Nacional de Saúde; promover o acesso dos imigrantes aos serviços de saúde”. 

No caso particular dos imigrantes em situação irregular recomenda‐se que se divulgue o despacho 25.360 de 2001,  tal  como na medida 24 do PII  “Garantir o acesso  à  saúde  por  parte  dos  cidadãos  estrangeiros  em  situação  irregular,  nos termos previstos na Lei, através da possibilidade da sua  integração no SNS com a apresentação de credencial a emitir pelo ACIDI, I. P., em alternativa ao atestado de residência emitido pelas  Juntas de  Freguesia, de  forma  a  agilizar  a aplicação do Despacho n.º 25 360/2001 do Ministério da Saúde”. 

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88  Bárbara Bäckström 

É necessário promover e desenvolver sistemas de informação eficientes, uni‐formes  e  possíveis  de  comparar  nos  diferentes  países  da  União  Europeia  bem como desenvolver investigação específica e dirigida sobre a saúde e a migração. A limitação da  informação  e  as questões  éticas que  a produção de dados  levanta constituem  um  dos  problemas  da  pesquisa  neste  domínio  do  conhecimento. Devem‐se utilizar populações de referência e amostragens idênticas nos diferentes contextos de forma a comparar resultados ao nível europeu. 

Deve‐se  investir na  formação dos profissionais de  saúde e no planeamento adequado dos serviços de saúde. A presença de profissionais que dominem as lín‐guas dos  imigrantes permite  facilitar o acesso das minorias ao  sector. O esforço passa pela preparação dos profissionais de saúde para que saibam como lidar com os migrantes não só no que se  refere ao  trato, à  linguagem, à compreensão dos seus valores, das suas atitudes, da sua cultura, mas também em termos técnicos. As medidas 26 e 28 do PII contemplam esta vertente com um plano de Formação para  a  interculturalidade  dos  profissionais  do  Sistema  Nacional  de  Saúde  e  o desenvolvimento de um Programa de Mediação sociocultural na rede de hospitais e de centros de saúde em territórios com elevada presença de imigrantes, respec‐tivamente. O Plano para a Integração dos Imigrantes, na área da saúde, considera também útil a  implementação, na rede hospitalar portuguesa, de referenciais de boas práticas, como por exemplo, o referencial dos “Hospitais Amigos dos Migran‐tes”, desenvolvido em 12 países europeus. Este  referencial visa  criar um atendi‐mento  mais  adequado  às  necessidades  específicas  dos  imigrantes,  através  da melhoria da  gestão da diversidade e do desenvolvimento de  algumas  iniciativas para promover conhecimentos nas áreas da  interpretação, da formação em com‐petências culturais para o pessoal hospitalar e na delegação de responsabilidades nos cuidados materno‐infantis. 

O acesso aos serviços de saúde por parte dos  imigrantes é  influenciado por todos os factores enumerados, tais como as barreiras linguísticas e a iliteracia, mas também em grande parte, pela falta de estatuto legal, o que torna essencial ultra‐passar estes obstáculos e garantir uma melhor integração social a fim de se alcan‐çar uma melhoria ao nível da  sua  saúde. As questões  como o desenraizamento, deslocação,  inserção  social  e  integração  influenciam  a  saúde.  Deve‐se  procurar melhorar a saúde dos  imigrantes através da  integração na sociedade e do empo‐werment,  em  colaboração  com os  vários  sectores:  governo, ONG  e  a  sociedade civil. Deve‐se,  como  recomenda o  PII, desenvolver parcerias  entre Organizações Não Governamentais, o Sistema Nacional de Saúde e outras entidades para a pro‐moção do acesso dos imigrantes e minorias étnicas à saúde1. 

Em suma, só ultrapassando efectivamente todos estes obstáculos se poderá conseguir uma melhoria significativa ao nível do acesso e à continuidade dos cui‐dados de saúde para a população imigrante regular e irregular. 

Ao reflectirmos, por um lado, acerca dos determinantes da saúde e, por outro lado, sobre os obstáculos e/ou barreiras que os imigrantes encontram na sua rela‐ção com a saúde, consideramos que estamos a contribuir para uma melhor com‐preensão desta problemática, assim como para a melhoria das políticas de saúde centradas  na  população migrante.  Para  um  bom  acolhimento  e  integração  dos 

                                                              1 Medida 29. 

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O Acesso à Saúde e os Factores de Vulnerabilidade na População Imigrante  89 

imigrantes, deve‐se pensar numa política de  integração dos  imigrantes,  indepen‐dentemente do  seu estatuto  jurídico, que  seja  ampla e multidimensional. Reco‐menda‐se a  implementação de práticas culturalmente sensíveis, de  iniciativas na área da formação/informação e de acções que envolvam a comunidade e que, em conjunto,  contribuam  para  a  plena  integração  e  exercício  da  cidadania  dos  imi‐grantes. 

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(DES)IGUALDADES, ENVELHECIMENTO E SAÚDE. 

UM AVANÇO CIVILIZACIONAL 

João Carlos Leitão  

 A organização social tal como a conhecemos hoje nos países desenvolvidos, 

vai buscar os seus alicerces à ideia de Estado de Bem‐Estar, partindo da premissa da redistribuição da riqueza de um país pelos seus concidadãos, ou seja, a ideia de que parte PNB1 deve servir para minorar as diferenças sociais existentes entre os diversos estratos sociais, sobretudo no que diz respeito às condições básicas para sobrevivência dos  indivíduos, como seja: Sistema de Saúde, Educação, Segurança Social e Justiça. 

Este conceito de sociedade de Bem‐Estar, funda‐se na ideia de uma sociedade que tem como valor central o trabalho, pressupondo que grande parte dos indiví‐duos em vida activa que pertencem a uma determinada sociedade trabalha, sus‐tentando, deste modo, através das suas contribuições, os pilares desta sociedade. 

O estado de Bem‐Estar é fruto das sociedades subjacentes à Segunda Guerra Mundial, tendo os parceiros sociais, como os sindicatos um papel fundamental na organização do estado e na supressão das discrepâncias sociais, ou seja, o “Estado de Bem‐estar  foi criado no período do pós‐guerra como  solução política para as contradições sociais” (Offe, 1990). 

Em suma  longe de ser um sistema perfeito o estado de Bem‐Estar, na socie‐dade pós‐moderna deverá responder a grandes alterações na sociedade, desde o envelhecimento destas populações sobretudo na Europa e no Japão, mas também respondendo a uma nova sociedade que considerava o ócio, como sendo o valor central em substituição do valor do trabalho. 

A  sociedade do pós‐guerra,  visou  garantir  condições de  vida  incomparavel‐mente melhores aos seus concidadãos. 

Como  grande  imagem  deste  período,  ficam  as  consequências  sociais  deste desenvolvimento, que é o envelhecimento da estrutura demográfica das popula‐ções dos países desenvolvidos, assistindo‐se nos últimos cinquenta anos, ao sur‐gimento de um novo “grupo social que atrai o  interesse  individual e colectivo de forma  crescente,  devido  às  suas  implicações  a  nível  familiar,  social,  económico, político etc.” (Requejo Osorio e Pinto, 2007), os velhos. 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 91‐106. 

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Figura 1: Pirâmides demográficas 1991‐2001 

 

Fonte: INE, Recenseamento Geral da População, 1991 e 2001. Resultados Definitivos 

 

Analisando o caso português através das pirâmides etárias, verificamos que de 1991 a 2001, há um crescimento das classes etárias dos mais idosos, sobretudo no topo da pirâmide, que aliás é bem visível nas últimas duas classes etárias (>=85 e 80‐84). 

Por  oposição  a  estas  duas  classes  etárias,  encontramos  nas  pirâmides  um estreitamento da sua base, sobretudo nas classes etárias dos 0‐4 anos e dos 5‐9 anos, que comparando a base das pirâmides de 1991 para 2001 verifica‐se, que esse estreitamento é muito mais severo. 

Para além da análise das pirâmides, o que se pode ainda afirmar, tendo em conta outros indicadores demográficos (ver quadro infra), é que a diminuição dos grupos etários dos mais novos é cada vez mais uma realidade demográfica. De tal modo, que  acaba por pôr  em  causa  a  “sociedade de bem‐estar”  a  longo prazo, dada a diferença futura entre a população em idade activa e por isso contributiva no esforço social para esta sociedade e aqueles que já tendo ultrapassado a idade activa, gozam no seu pleno direito a reforma. 

 

Figura 2: Taxa de fertilidade total na União Europeia 

 

        Fonte: Europe in Figures, Eurostat Yearbook, 2005 

 

Para esta nova  realidade social, muito concorreram os seguintes  factores: o aumento da esperança de vida, a diminuição da taxa de mortalidade em todas as 

 

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(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde  93 

idades, mas em particular nas classes etárias dos mais  idosos, devido ao avanço dos cuidados sócio‐sanitários e a uma diminuição sem precedentes da fecundida‐de nos últimos anos, como de resto bem se comprova no gráfico anterior, sendo que Portugal segue exactamente a tendência europeia. 

Por  outro  lado,  este  novo  fenómeno  do  envelhecimento  das  sociedades desenvolvidas, tem vindo a ser abordado partindo de diversos olhares, subsidiários de diversas áreas do conhecimento. A perspectiva biológica considera a “velhice humana uma redução da capacidade funcional devido ao curso do tempo” (Reque‐jo Osorio e Pinto, 2007). Na perspectiva psicológica do envelhecimento, considera‐‐se que durante o ciclo vital existem momentos de crescimento e de declínio, sen‐do que na velhice o declínio ocorre mais acentuadamente. Esta perspectiva  tem ainda em conta, que associada à velhice, está a  ideia de desocupação, por oposi‐ção à ideia de ocupação, porém o conceito base subjacente a todo este processo é a procura incessante da ideia de bem‐estar. 

Noutra perspectiva,  considera‐se que o envelhecimento é  também um pro‐cesso cultural e social, sendo aqui visto sobretudo como uma alteração de atitudes e mentalidades, que vem mudando o papel dos velhos na nossa sociedade, per‐dendo estes um espaço de respeito e profunda estima pelo que representam em substituição da ideia de juvenilização da sociedade. 

Assim, segundo Osório, a velhice define‐se por ser um estado de envelheci‐mento que começa precocemente e que ao longo da vida adulta se combina com processos de amadurecimento e desenvolvimento. 

Do ponto de vista sociológico, considera‐se estar perante um grupo socioeco‐nómico, que se distingue em duas categorias: a) pessoas  reformadas, com plena capacidade  física e mental, que estão na economia  como  consumidores e  como parte  da  economia  informal;  b)  pessoas  biologicamente  velhas,  com  autonomia funcional reduzida e dependentes de recursos externos, que  lhes permitam man‐ter boas condições de vida. (pessoas entre os 80 e 90 ou mais anos) 

Para a sociologia, a  ideia de trabalho ou se quisermos o seu conceito, é um valor central, um conceito de referência em especial porque demarca o papel do homem na estrutura social, a sua capacidade de produzir e consumir e sobretudo serve  de  referência,  ou  elo  de  ligação,  entre  os  indivíduos  e  a  sua  participação activa na economia de uma sociedade, contribuindo através do seu trabalho para o bem comum. Ou seja, no dizer de Solow o valor do trabalho transforma‐se numa instituição social, uma vez que é o garante desta sociedade. Solow, considera que o trabalho, não pode ser visto como qualquer outro produto que está no mercado, uma vez que não se rege somente pela lei da oferta e da procura “o trabalho como bem económico tem algo de especial” (Solow, 1992). 

Nesta perspectiva estes pilares, são o garante da  funcionalidade do próprio sistema, não permitindo grandes desregulações, que  teriam um  impacto social e económico extremamente negativo. 

A reforma é vista como uma conquista social, inserida num conceito mais lar‐go  de  justiça  social,  “libertando  as  pessoas  de  trabalhar  até  à  incapacidade” (Requejo Osorio e Pinto, 2007). Contudo por oposição à ideia de trabalho, a refor‐ma carrega implicitamente conotações sociais opostas, ou seja, os indivíduos vêem cerceado o seu estatuto social e económico. 

Seja  como  for, devemos  considerar do  ponto de  vista histórico um  avanço social profundo nas nossas sociedades, sobretudo por que foi possível atingir uma 

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disponibilidade  económica  e  financeira  que  se  traduziu  num  bem‐estar  social  e económico sem precedentes com implicações profundas na cidadania. 

Ser reformado significa então do ponto de vista social, “estar livre do trabalho, dispor  de mais  tempo  livre  e  assume menos  responsabilidades  sociais,  por  outro lado, perde oportunidades de emprego, limita os seus contactos sociais e tem menor relevância e poder social. Do ponto de vista económico, beneficia da segurança da pensão vitalícia, de assistência sanitária gratuita, bem como de vantagens  fiscais e serviços em espécie gratuitos. No entanto tem de assumir as  limitações da revisão da pensão, as maiores necessidades de assistência sanitária, impostos crescentes e a perda de poder de compra” (Requejo Osorio e Pinto, 2007). 

No caso concreto de Portugal, o sistema de pensões tem características muito particulares, dado o seu atraso  relativo na  implementação de um sistema global pensões, que no contexto actual significa que nem toda a população se encontra coberta ainda hoje por um sistema de pensões, por outro lado, a ideia de um sis‐tema de bem‐estar como vemos noutras sociedades europeias parece estar defini‐tivamente fora do nosso alcance, uma vez que a partir de 1980 o comportamento demográfico português, ao acompanhar a  tendência de outras  sociedades euro‐peias e, mais que isso, plasmar em muito pouco tempo o mesmo saldo fisiológico, põe em causa a sustentabilidade do sistema de pensões, sendo que a relação hoje entre os que estão na vida activa e os reformados tende para um maior desequilí‐brio, por cada cidadão reformado existem 1,9 cidadãos em idade activa. 

 

Figura 3: Divisão da população da União Europeia por classes etárias 

                          Fonte: Europe in Figures, Eurostat Yearbook, 2005 

 

O que, aliás, se comprova na análise do  ratio  idosos/jovens, que de 1940 a 2005, passou de  vinte  idosos por  cada  cem  jovens, para no  ano 2000, passar  a haver mais  idosos do que  jovens, e em 2005 atingir uma relação de cento e sete idosos por cada cem  jovens, deixando bem claro a  futura tendência demográfica de envelhecimento da população portuguesa e o risco da clara insustentabilidade do sistema de segurança social a curto e médio prazo, caso não haja medidas que respondam de forma efectiva a um novo reequilíbrio do sistema. 

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(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde  95 

 

 Gráfico 1: Ratio idosos por cada 100 jovens 

 

                         Fonte: INE, 2005 

 

 

Estamos assim perante um caso  inacabado de uma sociedade de bem‐estar, de uma sociedade que dado o seu envelhecimento no topo e na base da pirâmide demográfica  evidencia  alguns  sinais  de  regressão  demográfica,  impossibilitando por um lado, a cobertura universal de todos os cidadãos e por outro lado, assegu‐rar aos seus cidadãos rendimentos provenientes das pensões que permitam uma vida condigna. 

Ainda que este seja um problema comum a todas as sociedades europeias e não só (ex. Japão), a verdade é que no caso português, este problema reveste‐se de contornos culturais, sociais e económicos diferentes das restantes sociedades. 

Do ponto de vista cultural, existe da parte dos cidadãos um forte sentimento de resistência e de sentimento de injustiça nas contribuições destes, para as prestações sociais  que  visam  aperfeiçoar, manter  ou  garantir  o  estado  de  bem‐estar,  sejam quais forem e independentemente das suas características. Em parte fica a dever‐se a uma profunda incapacidade dos sistemas educacional, político e dos mass media, em explicar ao cidadão comum a importância destas prestações sociais, dado que a ideia de Estado que passa de geração em geração é a ideia de uma realidade contrá‐ria aos interesses do cidadão e que em nada contribui para o seu bem‐estar. 

A  fraca  taxa de educação  formal dos portugueses é em diversos  sentidos o maior aliado deste sentir acima descrito. Esta perspectiva cultural em muito fica a dever‐se à fraca literacia e qualificação dos portugueses, que dificulta a compreen‐são da ideia de Cidadania e de Estado. 

Em  termos  económicos,  sendo  a  estrutura  produtiva  baseada  em mão‐de‐‐obra pouco escolarizada e qualificada, promove uma fraca produtividade e pouco valor acrescentado, assentando num paradigma de desenvolvimento já por si frá‐gil. Dadas  as  condicionantes  acima descritas  a  sustentabilidade do  sistema,  seja por  via  dos  incrementos  percentuais  das  prestações,  seja  pelo  alongamento  da vida activa dos cidadãos. Uma grande percentagem dos trabalhadores ainda exer‐ce  ou  exerceu  trabalhos  fisicamente muito  exigentes  e  penosos  (na  agricultu‐ra/pesca e na  indústria),  criando grandes  resistências ao prolongamento da vida activa pelo esgotamento físico destes, ou pelo aumento percentual das suas con‐tribuições, dado que este tipo de trabalho de baixa qualificação é mal remunerado. 

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A  imagem  seguinte pretende  retratar de  forma mais nítida possível, o pro‐blema de sustentabilidade da Segurança Social portuguesa. 

O envelhecimento humano – uma etapa multifacetada da vida 

Considerar o envelhecimento humano como um processo, em que o desgaste sofrido pelo indivíduo o esgota, que acumula erros atrás de erros, é ter uma pers‐pectiva muito reducionista do processo de envelhecimento humano. 

De igual forma, considerar este processo como um declínio mental ou intelec‐tual que o entende “como um processo de deterioração celular e evolução orgâni‐ca” (Requejo Osorio e Pinto, 2007) numa perspectiva organicista é também olhar o fenómeno partindo da exclusão da interacção do indivíduo e o meio. 

É precisamente esta última perspectiva, que entende o envelhecimento como a interacção entre o indivíduo e o meio, considerando que aquilo que determina o envelhecimento  humano  é  precisamente  este  percurso  dialéctico  de  adaptação entre o homem e o meio.  

O modelo considera que para além da interacção já descrita entre o indivíduo e o meio, este acaba por se modificar em função das alterações produzidas por si próprias. O ambiente e a realidade cultural acabam por ser modeladoras da con‐duta  humana,  que  adquirem  uma  característica  especial  uma  vez  que  não  são determinadas geneticamente, sendo por  isso o envelhecimento um processo úni‐co, vivido diferentemente por cada indivíduo.  

Considera‐se que o indivíduo estabelece uma relação única entre ele próprio e a cultura, gerando um universo biocultural, que torna diferente o seu envelhe‐cimento, abrindo uma perspectiva unidimensional desse processo.  

Como  fica  claro,  todas estas profundas  transformações  sociais, assentes no prolongamento da vida dos  indivíduos, demonstram um grande avanço do ponto de vista social. A qualidade de vida na Europa, na América do Norte e Japão atingiu um patamar nunca antes alcançado.  

Contudo como desde já se vê, há um “mundo” ou uma parte deste, que ficou de  fora de todo este desenvolvimento desejável. Parte desse mundo coexiste no hemisfério sul do nosso planeta, mas  também no hemisfério norte encontramos “ilhas de pobreza” ou de subdesenvolvimento guetos sociais, culturais e económi‐cos,  que  contrastam  profundamente  com  ambientes  de  prosperidade,  paredes‐‐meias com a pobreza profunda. 

Alguns desses guetos estão no coração envelhecido das nossas cidades, nas partes velhas das nossas urbes que tardam em conhecer uma verdadeira política de integração social e de rejuvenescimento dos centros da cidade. 

Quando existem alterações nas zonas velhas da cidade, na sua grande maio‐ria,  são  intervenções  de  especulação  imobiliária,  algumas  de  engenharia, muito menos de arquitectura e praticamente nenhumas de  intervenção social  junto das populações, na sua maioria  idosas, com condições de saúde precárias, em condi‐ções de isolamento familiar, social, económico e de segurança. 

Dando exemplos e falando da cidade de Lisboa, assim se encontra toda a zona velha da cidade, Graça, Penha de França, Anjos, Arroios, Alcântara, Mouraria, Bair‐ro Alto e agora também as Avenidas Novas (Av. de Roma e Alvalade). Todas estas áreas  e  outras  carecem  obviamente  de  requalificação  social,  arquitectónica,  de 

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serviços que respondam às reais necessidades dos seus habitantes e muito menos de especulação  imobiliária,  sem uma política de  reorganização do espaço  social, cultural e demográfico da  cidade. Este  retrato não é muito diferente das outras cidades, mudarão os nomes dos bairros a escala a que as coisas acontecem, mas a degradação será em tudo semelhante. 

Poder‐se‐á falar de uma cidade de velhos, onde o espaço dos serviços ganha cada vez mais terreno, numa cidade viva durante o dia, mas morta durante a noi‐te,  com movimentos  pendulares  diários  de  uma  população  que  chega  à  cidade pela manhã e parte ao  final do dia, deixando‐a despovoada até ao outro dia de manhã, onde os velhos solitariamente esperam por novo dia. 

Mas  ao mesmo  tempo que  se  vê um  envelhecimento no  centro urbano das cidades, encontramos mais uma linha divisória entre novos e velhos no nosso País, a tão marcada diferença entre  litoral e  interior. Temos assim um  litoral densamente povoado e um interior com menor densidade populacional e sobretudo envelhecido. 

 

 

Figura 5: Índice de envelhecimento/ /estimativas da população residente por concelhos em 2003 

Fonte: I120 

NE, O País em Números, 2004 

 

 

Se a Norte do Tejo encontramos agregados populacionais mais concentrados, a Sul do Tejo encontramos uma população mais dispersa no território por isso iso‐lada.  Estas  características de povoamento,  limitam  em muito  a  vida dos  velhos, sendo no Alentejo que encontramos as taxas de suicídio mais altas do país. Tam‐bém será aqui, que mais difícil será prestar apoio social a estas populações enve‐lhecidas não só pela distância, mas também pela eficácia em muito determinada pelos custos de uma intervenção de proximidade da assistência social e de cuida‐dos de saúde. 

 

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Grande parte das diferenças entre o  litoral e o  interior estão tipificadas, em torno dos indicadores de qualidade de vida como seja os descritos no quadro infra. 

 

Quadro 1: Variação teórica associada aos indicadores de tipologia urbano/rural 

Dimensões  Indicadores  Urbano  Rural 

Dinâmica demográfica 

Var.  %  da população  residen‐te 1991‐2001 

Dinâmicas demográficas mais positivas  (ou  menos negativas,  tendo em  conta o comportamento,  tanto  dos saldos  natural,  como efectivo,  a  nível  nacional, entre  os  dois  censos)  e  um maior  índice  de  juventude 

Dinâmicas  demográficas mais  negativas,  com  re‐flexos  directos  na acentuação  dos processos  de  enve‐lhecimento. 

%  de  população com  menos  de  15 anos 

Actividades económicas 

SAU por exploração (hectares) 

Uso  do  solo  para  fins agrícolas  com um  significado muito  residual,  a  par  de idêntico  comportamento  do emprego  na  agricultura. Relativa  importância  do sector  secundário,  num contexto  de  forte predominância  do  emprego nos  serviços.  Níveis  de qualificação  mais  elevados dos activos residentes

A  importância  das actividades  agrícolas  é medida,  tanto  pelo volume  de  emprego  na agricultura,  como  pela maior  intensidade  de utilização  agrícola  do solo. Em contrapartida, é de  esperar  um  peso diminuto  das  actividades industriais e baixos níveis de  qualificação  da  mão‐

%  de  activos  na agricultura 

%  de  activos  na  in‐dústria 

%  de  activos  mais qualificados 

Infraestruturas  e equipamentos

População  servida com  estações  de tratamento  de águas residuais (%) 

Relativamente ao acesso a serviços públicos avançados, é de esperar uma posição mais  favorável dos concelhos com características mais urbanas, o mesmo se passando no  que  respeita  aos  níveis  de  cobertura  por  algumas redes  de  saneamento  básico.  No  entanto,  e  dado  o esforço, de âmbito nacional, de  investimento neste tipo de  infraestruturas,  equipamentos  e  serviços,  ao  longo das  últimas  décadas,  a  par  de  processos  de  regressão demográfica  que  tendem  a  subverter  os  limiares  de rendibilidade em áreas  rurais, pode  também esperar‐se a  detecção  de  baixas  taxas  de  cobertura  em  áreas urbanas, em especial nos concelhos suburbanos. 

Recolha  e  recicla‐gem de resíduos só‐lidos em 2001 (%) 

%  de  freguesias com TV por cabo 

%  de  freguesias com  3  redes  de telemóvel 

%  de  escolas básicas  com  acesso à internet 

Fonte:  Tipificação das  Situações de  Exclusão  em Portugal Continental, Área de  Investigação  e Conhecimento e da Rede Social, ISS, IP Com a colaboração da Geoideia para o tratamento esta‐tístico, Janeiro 2005  

 Verifica‐se também, que a proporção dos que deixaram a vida activa, vivem tam‐

bém no  interior do país,  sendo por essa  razão que a dicotomia  litoral/interior mais uma vez fica bem vincada, mostrando bem a diferença entre aqueles que dependem de uma pensão ou reforma para a sua sobrevivência e aqueles que trabalham e uma larga fatia da população do interior, que se aproxima da idade da reforma. 

Se  por  um  lado  todos  os movimentos migratórios  internos  ou  externos  se caracterizam, pela  saída dos novos para outros  territórios  e  a permanência dos velhos no território de origem, não se estranhará que os velhos ocupem a parte do 

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(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde  99 

território menos atractiva, quer do ponto de vista dos empregos, quer por conse‐quência das infraestruturasou da ausência delas. Por outro lado, no caso do nosso território é também notório que a parte menos atractiva é aquela que tem como actividade principal a agricultura, ou seja, o  interior onde existe uma depreciação do valor do trabalho realizado nessa actividade e onde, por essa razão, conjunta‐mente com a pouca qualificação e idade de quem fica, a inovação, no sentido mais amplo é de difícil realização, sendo por isso territórios com baixo índice de atracti‐vidade de populações mais novas e mais escolarizadas. 

 Figura 6: Proporção de população residente 

cujo principal meio de sobrevivência são as pensões/reformas 

 

                               Fonte: INE, O País em Números, 2004 

 

Na nossa sociedade é também muito comum que uma vez chegada o fim da vida activa os indivíduos abandonem o litoral e as grandes cidades, voltando para os seus  lugares de origem,  reforçando assim com população, mas, mais velha as regiões que já por si estão envelhecidas, o que acaba por reforçar ainda mais este quadro do envelhecimento do interior. 

Mas nem tudo é negativo, também transportam novas ideias e novas formas de  fazer  as  coisas,  encontrando‐se  aqui  e  ali  exemplos de  inovação  social, para tornar estes territórios mais atractivos. 

De resto, nesta imagem fica bem visível na comparação dos valores médios das pensões entre regiões, ainda que as médias não deixem ver as realidades mais expres‐sivas do ponto de vista das diferenças entre  sujeitos. A oposição é  clara, entre  ter‐ritórios mais atractivos de qualificações, emprego, sectores de actividade mais inova‐dores, melhores salários e melhores pensões em detrimento dos menos atractivos. 

Sendo os  valores médios das pensões muito exíguos, a média mais alta do valor das pensões é 235,10€ em Portugal e verifica‐se no litoral maioritariamente, a  imagem do  território nacional deixa bem  claro, mais uma  vez, a divisão entre litoral e interior, consequência de todos os indicadores já identificados e que resul‐ta na diferença entre o sector de actividade baseado na  indústria e serviços mais radicados no litoral, exigindo mais qualificações e por isso maiores salários e con‐sequentemente melhores pensões. 

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 Figura 7: Valor médio mensal das pensões/reformas 

 

                        Fonte: INE, 2004 

 

 

Em  contraponto,  encontramos  um  interior  em  que  o  sector  de  actividade principal é a agricultura e alguma  indústria extractiva, onde predominam os salá‐rios baixos e agricultura de subsistência e por isso valores médios de pensão muito baixos (192,18€), Esta situação fica a dever‐se em grande parte ao quadro qualifi‐cacional dos recursos humanos que desempenham estas profissões, que em con‐sequência da fraca qualificação têm salários muito baixos, sendo as suas pensões também muito baixas. 

Parte  deste  problema,  radica  numa  ausência  de  política  regional,  que  se preocupe em reduzir assimetrias entre regiões. Como consequência, as regiões do interior são menos atractivas, com condições de atracção deficitárias da população com novo quadro qualificacional e das empresas, o que se manifesta no desinte‐resse empresarial, para investir nestas regiões e reequilibrar o território, quer em termos de desenvolvimento, quer em termos populacionais, acelerando‐se o pro‐cesso de desertificação humana do interior. 

Os valores médios das pensões são tanto mais preocupantes, quanto tenha‐mos em conta os limiares de sobrevivência, aceites para Portugal. Embora Portugal tenha o  Limiar de  Sobrevivência mais baixo da União  Europeia, 387€  (77.587$), facilmente se verifica que o valor médio das pensões é insuficiente (235,10€), mui‐to abaixo do Limiar de Pobreza. 

O problema é  tanto maior quanto considerarmos que Portugal é dos países da União Europeia que tem uma taxa de distribuição da riqueza mais deficitária da Europa,  tendo  em  conta  os  países  que  disponibilizaram  os  dados  ao  Eurostat. Como de resto se vê no gráfico infra. 

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(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde  101 

 Figura 8: Desigualdade na distribuição da riqueza em 2001 

 

                                       Fonte: Eurostat, 2005 

 

 

Existe assim uma profunda incapacidade de uma grande fatia da nossa popu‐lação ter uma vida condigna no nosso País, ou seja, corresponder como seria natu‐ral  às necessidades diárias de  alimentação,  saúde,  sempre mais exigente  com o avanço da idade, habitação e justiça e eventualmente de educação. Digo eventual‐mente porque apesar de ser uma população com uma profunda  insuficiência de educação  formal,  também  sabemos que quanto menor  é o  seu  grau de  escola‐ridade, menos sentem essa necessidade e no caso da população reformada, como é o nosso, consideram que o processo de educação formal, “já não vem a tempo, era bom quando era novo, se pudesse ter estudado”. Apesar de tudo, são cada vez mais os  idosos que procuram formação quer para aprender a  ler, quer no Ensino Superior Sénior. 

As  implicações  do  envelhecimento  demográfico  das  sociedades  desenvol‐vidas, são sobretudo abordadas do ponto de vista económico e de sustentação da Segurança Social. Muito pelo contrário, o envelhecimento humano afecta as nos‐sas  sociedades  de  forma multidimensional  na  forma  como  trabalhamos,  repar‐timos o  tempo  social no nosso percurso de  vida, nos  riscos  sociais  (que enfren‐tamos),  nas  identidades  sociais  inerentes  a  cada  idade,  nas  relações  entre gerações. 

“O alargamento da vida, põe em causa todo o modelo cultural de organiza‐ção  social desde  as  idades  aos  tempos  sociais, ou  seja,  a necessidade de redefinir o papel das diversas gerações e o seu papel na produção de rique‐za” (Guillemard, 2005: 377). 

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102  João Carlos Leitão 

 

Figura 9: Comparação entre limiares de pobreza e salários médios 

  Um outro aspecto  fundamental a ter em conta, é o emprego nas diferentes 

gerações, bem como a posição dos indivíduos no sistema de protecção social. Mas muito mais está para definir, como seja, o papel das diferentes gerações na nossa sociedade no que diz respeito “ao seu lugar na produção da riqueza, como será a transferência de recursos, como se estruturará as novas  formas de solidariedade entre gerações” (Guillemard, 2005: 317). 

Uma abordagem multidisciplinar das implicações do envelhecimento da população 

Deste modo  para  se  compreender  os  efeitos  do  envelhecimento  da  nossa sociedade, sobre ela própria  torna‐se necessário a utilização de uma perspectiva teórica que abranja as evoluções  interdependentes entre três dimensões centrais que são: o mercado de trabalho, o sistema de protecção social e a organização das temporalidades no ciclo de vida. 

Contudo  será  que  se  deve  olhar  para  o  envelhecimento  nos  países  desen‐volvidos como uma  fatalidade, ou devemos olhar este acontecimento como uma determinante  somente  demográfica,  ou  antes  pelo  contrário  como  já  se  disse, como um conjunto multidimensional, com respostas políticas diferentes nos diver‐sos países mostrando as diversas  formas de compreender e entender este  fenó‐meno? 

Na sua grande maioria os países europeus encorajaram as pré‐reformas, de tal modo, que as taxas de emprego entre activos dos 55 aos 64 anos caíram para metade entre 1975 e 1995. Contrariamente os países escandinavos encorajavam, através de políticas  activas de  emprego dirigidas  aos maiores de  45  anos  a  sua 

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permanência no mercado de trabalho, em vez de se antecipar a sua saída do mer‐cado de trabalho. 

Quando  analisamos  as  taxas  de  empregabilidade,  no  Japão,  Suécia  e Dina‐marca no grupo etário dos 55 aos 64 anos, verificamos que estas taxas são muito altas por comparação com a dos restantes países. Nestes últimos casos demons‐tram carreiras em declínio com dificuldades de promoção e salários mais baixos e mais dificuldades para aceder à formação. Acima dos 50 anos verifica‐se, também, uma  vulnerabilidade  crescente  perante  o  desemprego,  sendo mesmo  de  longa duração em muitos casos. 

Apesar de  tudo, o esforço começa a ser  feito e segundo Vieira da Silva “no limite,  pretende‐se  prolongar  com  alguma  dimensão  a  sua  carreira  poderá  até manter  aquela  prestação  que  estava  prevista,  se  não  houvesse  esta  reforma. Obviamente, que vai depender da evolução da esperança de vida. São factores que se vão desenvolver num espaço muito longo” (Silva, 2007). 

Também em Portugal e apesar do relatório da OCDE, o esforço começa a ser feito, embora a sensação para os trabalhadores seja de profunda injustiça, contu‐do estas medidas têm obviamente consequências sociais, como de resto se vê nos países que já as aplicaram. 

Nestes países  também se verifica, que quer os  jovens, quer os velhos estão cada vez mais  tempo  fora do mercado de  trabalho, por  razões obviamente dife‐rentes. Por um lado, os mais novos têm mais dificuldade em arranjar emprego e a encontrar a estabilidade no emprego, necessária para constituir família que, surge cada vez mais tarde. Por outro, os mais velhos, quase sempre, passam por prolon‐gados e cada vez maiores processos de desemprego de longa duração. 

Ou seja, parece que do ponto de vista económico, na nossa sociedade será mais barato manter um  jovem desempregado, do que um velho  reformado, por outro  lado, a  tendência será para os  jovens entrarem mais tarde no mercado de trabalho e consequentemente saírem mais tarde desse mercado de trabalho, pro‐longando a sua vida activa, como sendo mais uma forma de reequilibrar o sistema de segurança social. 

Temos assim várias hipóteses de reequilíbrio da segurança social, ou formas conjugadas para o seu reequilíbrio: 

– Saídas mais tardias do mercado de trabalho ou vida activa; 

– Entrada mais tardia no mercado de trabalho, percursos mais curtos de vida contributiva, aumentada unicamente pela dilatação da vida activa na recta final da vida; 

– Aumento das prestações  sociais, para a  segurança  social, o que no nosso país dada a política  salarial de baixos  salários, dificultaria muito este pro‐cesso e a forma como culturalmente se vê este tipo de contribuições; 

– Diminuição das prestações sociais do estado para os reformados e pensio‐nistas, o que é uma quebra sem precedentes na solidariedade entre gera‐ções e com profundas consequências sociais de ainda maior exclusão social; 

– Ou numa perspectiva neoliberal, permitir‐se uma privatização desta área e responsabilizar os  indivíduos pela sua  futura performance no  final da vida activa, como de resto se pode ver no exemplo dos EUA. 

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104  João Carlos Leitão 

De algum modo o que se tem concretizado é a configuração de políticas de protecção social e de emprego diferentes nas diversas culturas, devemos conside‐rar assim que “a forma como esta questão é analisada depende sempre do contex‐to social. Assim resultará das  interdependências entre os normativos, políticas de protecção  social  e  emprego  e  sistemas  de  relações  profissionais”  (Guillemard, 2005: 322). 

Compreender hoje o envelhecimento, significa entender a velhice como um processo, um processo que  tem  características biológicas,  sociais  e psicológicas, sendo que cada uma destas características é condicionada pelo meio envolvente, seja ele físico, social, cultural e genético de cada um dos indivíduos. 

Mas o indivíduo também é visto como parte activa neste processo, na medida em que toma decisões na sua vida que  influenciam e condicionam o processo de envelhecimento. O Homem torna‐se assim, como um meio que do ponto de vista psicológico tem mecanismos de “auto‐regulação do indivíduo no campo de forças, pelo  tomar  de  decisões  e  opções,  adaptando‐se  ao  processo  de  senescência  e envelhecimento” (Paúl, 2005: 275). 

Em  todo este processo, considera‐se  também que é um processo biológico, chamando à atenção dos estudiosos que os processos de envelhecimento também são processos biológicos considerando‐se que a vulnerabilidade dos  indivíduos é crescente e de maior probabilidade de morrer, a que se chama senescência. 

Por último considera‐se que os processos sociais, também têm o seu peso na forma como se envelhece, é através dos papéis sociais que cada um desenvolve durante  a  sua  vida,  que  se  pode  apropriar mais  ou menos  às  expectativas  da sociedade, para o seu nível etário. 

“A perspectiva multidisciplinar do envelhecimento abriu caminho à geronto‐logia, ainda que com  raízes anteriores, emerge de  forma clara a partir da segunda metade do século XX e ganha na visibilidade na década de oitenta.” (Paúl, 2005: 275). 

Este ganho de notoriedade da gerontologia em muito se fica a dever à primei‐ra Assembleia Mundial Sobre o Envelhecimento. Foi sem dúvida a primeira mani‐festação global por parte dos Estados, onde se manifestou a preocupação sobre os riscos para o bem‐estar da humanidade que podem  resultar do alongamento da longevidade. Esta assembleia  teve  como primeiros objectivos elaborar princípios orientadores de uma política mundial para o envelhecimento e formular recomen‐dações, sobre medidas a serem tomadas. 

Esta assembleia centrou‐se sobretudo na identificação das necessidades cres‐centes e constrangimentos de um mundo que envelhece. Assim considerou‐se que seria primordial  estabelecer mais  apoio médico  e mais  apoio  social,  contudo  as condições de escassez financeira da segurança social, dificultam em muito que se faça frente às necessidades sociais reconhecidas. 

Contudo a crise não se estabelece unicamente por pressupostos económicos, mas também por pressupostos socais. As  famílias tradicionais também se encon‐tram em crise, enfrentado extremas dificuldades para assegurar os cuidados dos seus velhos. 

A família ou a ideia dela tem vindo ao longo dos tempos gradualmente a ser alterada. Para Saraceno (1997), na Roma Antiga predominava uma estrutura fami‐

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(Des)Igualdades, Envelhecimento e Saúde  105 

liar patriarcal em que o vasto leque de pessoas se encontrava sob a autoridade de um mesmo chefe, durante a  Idade Média, as pessoas começaram a estar  ligadas por  vínculos matrimoniais,  formando novas  famílias. Dessas novas  famílias  fazia também parte a descendência gerada que, assim, tinha duas famílias, a paterna e a materna. Com a Revolução Francesa surgiram os casamentos laicos no Ocidente e com a Revolução Industrial, tornaram‐se frequentes os movimentos migratórios para  as  cidades maiores,  construídas  em  redor  de  complexos  industriais.  Estas mudanças  demográficas  originaram  o  estreitamento  dos  laços  familiares  e  as pequenas  famílias, num  cenário  similar  ao que  existe hoje  em dia. As mulheres saem de casa, integrando a população activa, e a educação dos filhos é partilhada com as escolas. 

É  a  evidência  que  “a  família  vem‐se  transformando  através  dos  tempos, acompanhando as mudanças religiosas, económicas e sócio‐culturais do contexto em que se encontram inseridas” (Saraceno, 1997). Esta é um espaço sócio‐cultural que deve ser continuamente renovado e reconstruído. 

De acordo com o que foi descrito anteriormente, pode‐se caracterizar quanto à estrutura de  família nuclear ou conjugal, ou seja, a que consiste num homem, numa mulher e nos seus filhos, biológicos ou adoptados, habitando num ambiente familiar comum (Giddens, 2000). 

Mas para  além de  todas  estas mudanças na nossa  sociedade,  é necessário olhar para o envelhecimento da nossa sociedade, estando conscientes de que as suas nuances também marcam pesadas diferenças sociais, sobretudo aquelas que resultam de diferenciação social sejam elas quais forem. Podemos assim sistemati‐zar algumas delas que têm bastante peso no processo de envelhecimento  indivi‐dual e  colectivo, na  forma de expressão  concreta da qualidade de  vida de  cada indivíduo, antes da sua vida activa, durante a sua vida activa e finalmente depois da sua vida activa. 

– Género; 

– Cultura (etnia); 

– Características físicas e psicológicas do indivíduo; 

– Variáveis comportamentais (exemplo: profissões de risco psicológico, como controladores de tráfego aéreo, ou físico, como mineiros); 

– Variáveis económicas; 

– Meio físico onde desenvolve as suas actividades (vive e trabalha); 

– Meio social (conjunto de oportunidades potenciadas pelo seu grupo de per‐tença); 

– Serviços sociais e acesso prestados pelas entidades competentes. 

 

Todos  estes  factores,  desde  as mudanças  históricas  referidas  às  questões sociais e por isso transversais a qualquer época histórica, alteram profundamente a forma como a velhice é percepcionada sentida e vivida por cada um dos sujeitos no seu processo individual de envelhecimento. É urgente a redefinição do papel de velho nas nossas sociedades, onde os velhos mais parecem ser uma entidade esta‐tística e eleitoral. 

Fica de algum modo por definir “qual o papel das diferentes gerações na nos‐sa  sociedade, o  seu  lugar na produção da  riqueza, como  será a  transferência de  

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106  João Carlos Leitão 

recursos,  como  se  estruturará  novas  formas  de  solidariedade  entre  gerações” (Guillemard, 2005: 317). 

A  sociedade deverá olhar para esta nova dinâmica  social  como um desafio que urge responder, fruto de um dos maiores avanços civilizacionais e que necessi‐ta de equilíbrio entre um marco de desenvolvimento e a necessidade de se recon‐figurarem os papéis sociais nas nossas sociedades. 

Referências bibliográficas 

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O CONTROLO SOCIAL E A EXPERIÊNCIA DOS CONSELHOS DE SAÚDE: 

INOVAÇÕES INSTITUCIONAIS NA GOVERNAÇÃO EM SAÚDE1 

João Arriscado Nunes, Daniel Neves, Marisa Matias, Ana Raquel Matos 

Introdução 

Os Conselhos de Saúde, criados no Brasil no âmbito do processo de reforma sanitária e de construção do Sistema Único de Saúde  (SUS), constituem uma das inovações mais interessantes no campo da saúde e do envolvimento dos cidadãos na definição das políticas de saúde. Estes surgem como  instituições híbridas que associam mecanismos  de  democracia  directa  com  os  da  democracia  represen‐tativa (van Stralen, 2005). 

A  sua  compreensão enquanto espaços  institucionais de participação  cidadã será tanto mais abrangente e eficaz se forem tomados em consideração 3 pilares distintos que enformam a sua existência: um pilar político, que tomou forma com o movimento  sanitarista brasileiro; um pilar de conhecimento e de produção de saberes,  que  corresponde  à  emergência  de  um  novo  paradigma  no  domínio  da saúde pública e que dá pelo nome de Saúde Colectiva; e, finalmente, um pilar ins‐titucional,  ligado à própria criação do Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. É, aliás, ao SUS que os conselhos de saúde se encontram vinculados. 

O movimento sanitarista brasileiro 

O movimento sanitarista brasileiro nasceu na década de 70 do século XX no interior  das  Universidades  Brasileiras,  mais  precisamente  nos  recém‐criados Departamentos de Medicina Preventiva, num contexto político de crescente oposi‐ção ao regime autoritário. O movimento fez coincidir com o projecto sanitarista de melhoria das condições de saúde da população brasileira um projecto político de democratização do Estado e uma nova concepção de saúde, que esteve na base da emergência de um novo paradigma de saúde pública. Nele foi produzida uma críti‐ca ao regime autoritário e à sua actuação no campo da saúde, colocando em causa a centralização das decisões nas mãos de técnicos, burocratas e políticos, vulnerá‐veis às pressões e interesses dos sectores privados. Os efeitos perversos das políti‐cas de saúde então existentes foram realçados, como a excessiva dependência em 

                                                              1 A  investigação que serviu de base a este artigo  foi  realizada no âmbito do projecto “Resear‐ching Inequality through Science and Technology” (ResIST), financiado pela Comissão Europeia (CITS‐CT‐2005‐020952), realizado no Centro de Estudos Sociais. 

ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 107‐118. 

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108  João Arriscado Nunes, Daniel Neves, Marisa Matias, Ana Raquel Matos 

relação aos actores privados e a endémica exclusão da maioria da população no acesso a cuidados primários de saúde. A frase “Saúde é Democracia” é reveladora da percepção pelos sanitaristas de que não seria possível uma efectiva melhoria das  condições  de  acesso  à  saúde  pela maioria  da  população  brasileira  sem  um decisivo passo para a conquista da democracia (Arouca, 1986). 

O movimento Sanitarista teve o seu apogeu em 1986, com a VIII Conferência Nacional de Saúde, onde as suas propostas  foram  transformadas num programa que viria a ser inscrito na Constituição Federal de 1988 e nas leis orgânicas de cria‐ção do SUS. A definição de saúde que encontramos no relatório final da Conferên‐cia é decisiva para a compreensão do movimento da  reforma sanitária. Esta cor‐responde ainda a uma ampliação do conceito de saúde, que propõe uma ruptura com o domínio do paradigma biomédico: 

1) Em seu sentido mais abrangente, a saúde é a resultante das condições de  alimentação, habitação, educação,  renda, meio ambiente,  trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso a serviços de  saúde. É,  assim,  antes de  tudo, o  resultado das  formas de organização social de produção, as quais podem gerar grandes desigual‐dades nos níveis de vida. 2) A saúde não é um conceito abstracto. Define‐se no contexto histórico de determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimen‐to, devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas. 3) Direito à saúde significa a garantia, pelo Estado, de condições dignas de vida e de acesso universal e igualitário às ações e serviços de promo‐ção, protecção e recuperação de saúde, em todos os seus níveis, a todos os habitantes do território nacional,  levando ao desenvolvimento pleno do ser humano em sua individualidade. 4) Esse direito não  se materializa,  simplesmente pela  sua  formalização no  texto  constitucional.  Há,  simultaneamente,  necessidade  do  Estado assumir explicitamente uma política de saúde consequente e  integrada às demais políticas econômicas e sociais, assegurando os meios que per‐mitam efectivá‐las. Entre outras condições, isso será garantido mediante o controle do processo de  formulação, gestão e avaliação das políticas sociais e econômicas pela população. (Arouca, 1986) 

Saúde Colectiva 

Naquele que veio a ser designado de paradigma da Saúde Colectiva, o estudo dos processos de saúde‐doença passou a dar enfoque não aos  indivíduos, ou ao seu  simples  somatório, mas  às  determinantes  sociais  dos  processos  de  saúde‐‐doença e ao colectivo social, com as suas classes sociais e as suas dinâmicas rela‐cionais, assim como à distribuição social da doença e da saúde. Assumiu‐se tam‐bém que os problemas de produção de  saúde e doença verificados numa popu‐lação são indissociáveis das condições sociais, económicas e políticas em que esta vive. O  trabalho  de  identificação  e  caracterização  destas  determinantes  sociais, que  esteve no  centro da  reflexão do projecto  sanitarista,  conduziu  à necessária articulação de múltiplos saberes disciplinares como a sociologia, a antropologia, a economia, mas  também com os saberes  locais daqueles que, por estarem próxi‐mos dos contextos  locais, melhor conseguem  identificar as determinantes sociais implicadas nos processos de saúde‐doença das comunidades. 

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Esta  intenção de  incluir as experiências,  saberes e práticas vindas da  socie‐dade civil na construção democrática de um novo modelo de  saúde  foi  realçada por uma das  figuras  emblemáticas do movimento  sanitarista,  Sérgio Arouca, no seu discurso de abertura da VIII Conferência: 

Porque o problema aqui não é o de buscar um modelo de saúde que seja adequado  à nossa  cultura de brasileiros,  tirado do bolso de uma hora para a outra, mas sim o de se buscar um sistema de saúde cuja experiên‐cia tenha sido gerada nas vivências do trabalho comunitário de bairros, nas práticas dos sindicatos, da Igreja, das secretarias de saúde, estaduais e municipais, que tanta coisa têm enfrentado no sentido de transformar esse sistema, baseados no conhecimento, inclusive, de pessoas que, por assumirem mais  a  convivência  com  esse  sistema perverso,  foram para algum lugar do país e começaram alguma experiência concreta, na tenta‐tiva de modificá‐lo. (Arouca, 39: 1986) 

Nesta perspectiva, a materialização do direito à saúde não é dada por adquirida pela via da sua inscrição na Constituição e pela sua formulação legal, surgindo, antes, como um processo de construção permanente de exercício da democracia. Apesar de configurada como uma responsabilidade do Estado, a participação da sociedade civil para a sua efectivação  foi  fortemente enfatizada, nomeadamente através das suas múltiplas entidades  representativas, na  formulação da política, planeamento, gestão, execução e avaliação das acções na saúde. Tratou‐se, assim, de uma propos‐ta de redefinição do sistema público de saúde enquanto projecto colectivo e demo‐crático que, obrigatoriamente, ocorreria  apenas  através da  inclusão,  em primeiro lugar, das múltiplas entidades oriundas da sociedade civil no debate em torno do sis‐tema de saúde e, em segundo, dos múltiplos saberes e práticas que dela emanam para os espaços até então restritos da medicina e da saúde (Nunes et al., 2007). 

O sistema único de saúde 

A  Constituição  Brasileira  de  1988  sancionaria  as  directrizes  do movimento sanitarista cristalizadas pela VIII Conferência ao estabelecer a saúde como direito de cidadania e responsabilidade do Estado, e a participação da sociedade civil no planeamento e gestão como as directrizes centrais que mais tarde seriam  funda‐doras do SUS. 

 

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos  e  ao  acesso universal  e  igualitário  às  ações  e  serviços para  sua promoção, proteção e recuperação. (Constituição Brasileira, artigo 196) 

As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes directrizes: 

I   –  descentralização, com direção única em cada esfera do governo; 

II  –  atendimento  integral,  com prioridade para  as  actividades pre‐ventivas, sem prejuízo de serviços assistenciais; 

III  –  participação da comunidade. (Constituição Brasileira, artigo 198) 

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O SUS  foi posteriormente  regulamentado pela  Lei n.º 8.080  (1990). No  seu artigo 36  foi declarado que o processo de planeamento e orçamentação do SUS deveria ser  feito no sentido ascendente, do nível  local para o  federal, através da auscultação de órgãos deliberativos especificamente criados para essa  função. A saúde emergiu, assim,  como uma questão de  cidadania e a participação política dos cidadãos na definição das políticas de saúde e no controlo da sua  implemen‐tação como condição para a sua concretização (Guizardi e Pinheiro, 2006). 

Os Conselhos Municipais de Saúde 

Os  Conselhos  de  Saúde  foram  criados,  juntamente  com  as  Conferências  de Saúde, através da Lei n.º 8.142 (1990). Esta lei trata “da participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências  intergovernamentais de recursos finan‐ceiros na área da saúde” e criou, em cada esfera de governo, e sem prejuízo das fun‐ções do poder legislativo, a Conferência de Saúde e o Conselho de Saúde. 

A representação dos usuários tanto nos Conselhos como nas Conferências, seria paritária em relação ao conjunto dos demais segmentos. Deste modo, a sua arquitectura  institucional  caracteriza‐se  por  uma  composição  paritária  entre representantes dos usuários  (50%) e representantes dos órgãos  institucionais e trabalhadores  (25%  cada).  No  caso  do  Conselho Municipal  de  Saúde  de  Belo Horizonte, este é composto por 36 membros, dos quais 18  são  representantes dos usuários, 9 representantes dos trabalhadores de saúde do SUS de Belo Hori‐zonte  e  9  representantes  dos  prestadores  de  serviços  públicos  e  privados  de saúde. A distribuição dos  lugares de representação dos usuários no seu  interior surge organizada em duas lógicas de inclusão distintas, uma primeira territorial e ligada à organização espacial do próprio SUS no território do Município de Belo Horizonte, e uma outra  ligada a grupos de risco e a associações de usuários do SUS como, por exemplo, associações de pensionistas, mulheres e portadores de doenças crónicas. 

Segundo a Lei n.º 8.142, os Conselhos de Saúde são de carácter permanente e, por definição, a  instância deliberativa do sistema de saúde nos seus três níveis de governo – federal, estadual e municipal. Actuam na formulação de estratégias e no  controlo  da  execução  da  política  de  saúde  na  sua  instância  correspondente, inclusivamente nos seus aspectos económicos e financeiros. As suas decisões são homologadas pelo  chefe do poder  constituído na  respectiva  esfera de poder. A importância dos Conselhos Municipais de Saúde no SUS está patente no facto de ser por  intermédio destes que os municípios são dotados dos recursos federais e estaduais destinados à saúde. 

O Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte, no seu conjunto, é consti‐tuído por uma multiplicidade de órgãos com atribuições e níveis de actuação dis‐tintos. É constituído, num primeiro plano mais restrito, pelo Plenário  (a  instância deliberativa), a Mesa Directora (composta por dois usuários, um trabalhador e um representante dos prestadores de  serviços), a Secretaria Executiva  (com  compe‐tências de assessoria administrativa), as várias Câmaras Técnicas (com competên‐cias de assessoria em relação a várias áreas temáticas), os vários Conselhos Distri‐tais  de  Saúde  e  as  Comissões  Locais  de  Saúde  instaladas  em  cada  unidade  de saúde.  Num  plano mais  alargado  e  informal  (dependendo  da  organização  dos 

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O Controlo Social e a Experiência dos Conselhos de Saúde  111 

vários segmentos da sociedade civil), o Conselho é constituído pelo conjunto das Plenárias – sendo as de usuários e de trabalhadores as que mais se destacam. 

Ainda segundo a Lei n.º 8.142, as Conferências de Saúde, que reúnem perio‐dicamente de 4 em 4 anos com a representação dos vários segmentos sociais, fica‐ram incumbidas da avaliação da situação da saúde e da tarefa de propor as direc‐trizes  para  a  formulação  da  política  de  saúde  nos  níveis  de  governação  corres‐pondentes. A organização das Conferências ocorre no sentido ascendente, com a realização de conferências distritais, municipais, estaduais e, finalmente, federais de modo a  incorporar no estabelecimento dos parâmetros para a saúde os saberes, as necessidades e as expectativas territoriais da população no sentido micro‐macro. 

Se, por um  lado, as Conferências de Saúde  são  responsáveis pelo estabele‐cimento das metas e dos parâmetros de  interesse público mediante as quais  se deve reger o governo da saúde, os Conselhos de Saúde são responsáveis pelo con‐trolo e fiscalização das acções políticas de governação à  luz dos parâmetros defi‐nidos pelas Conferências. 

Território enquanto espaço de cidadania 

A  criação de um  sistema público de  saúde descentralizado  capaz de propor‐cionar  condições  de  implementação  de  políticas  mais  democráticas,  igualitárias, transparentes e orientadas para um esbatimento das desigualdades locais, regionais e  estaduais  no  acesso  da população  à  saúde,  aparece,  assim,  vinculado  à  institu‐cionalização destes espaços em todos os níveis e etapas de implementação das polí‐ticas  de  saúde.  A  forte  dimensão  territorial  destes  espaços  e  o  carácter  descen‐tralizado dos processos de  tomada de decisão  indicam a  sua percepção enquanto estruturas institucionais mediadoras da construção do território enquanto espaço de cidadania  (Santos,  2007).  Essa  construção deve  ser  entendida  como um processo onde a existência ou não de infra‐estruturas (educação, saúde, transportes, etc.) e a possibilidade de acesso das populações desempenham um papel importante: 

A possibilidade de um  indivíduo ser, em maior ou menor grau, cidadão, depende largamente da sua localização no território. Enquanto um dado local  aparece  enquanto  condição  de  pobreza,  outro  local,  pode,  no mesmo momento histórico,  facilitar o acesso a bens e serviços disponí‐veis, em  teoria, para  todos, mas que na  verdade  são  inacessíveis para muitos. (Santos, 2007: 107). 

Neste contexto, a cidadania emerge como sendo o resultado da mediação de múltiplas entidades. A definição do grau em que cada  indivíduo é  realmente um cidadão deve  ser entendido pelas  condições de possibilidade que  lhe  são dadas para levar a cabo com dignidade o seu projecto de vida (Nunes et al., 2009). 

Controlo social, Estado e sociedade civil: um novo modelo de governação 

A actuação dos Conselhos de  Saúde enquanto  sistemas de accountability é designada pelos diversos  actores  intervenientes  como o  “controlo  social” que  é exercido pela sociedade civil através da sua participação na definição, problema‐tização e avaliação das políticas públicas de saúde promovidas pelo Estado. 

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112  João Arriscado Nunes, Daniel Neves, Marisa Matias, Ana Raquel Matos 

 [O  controlo  social]  foi  uma  conquista  da  sociedade  civil  brasileira, devendo ser entendido como um instrumento de democracia. Tem como pressupostos básicos o desenvolvimento da cidadania, a construção de espaços democráticos, beneficiar o conjunto da sociedade e ter actuação permanente. 

Democratizar o Estado implica reconhecer que na nossa sociedade exis‐tem  interesses diferentes e  contraditórios. Este  reconhecimento mate‐rializa‐se na constituição de canais e/ou mecanismos/instrumentos que facilitam  a expressão dessas múltiplas demandas e em espaços para a negociação de alternativas de acção e soluções que as  levem em consi‐deração. (ConSaúde, n.º 1: 7) 

 

Assim, a designação de controlo social reclama, em primeiro lugar, o reconhe‐cimento  da  existência  de  diferentes  e  conflituais  interesses  na  sociedade;  em segundo lugar, a criação de “canais” e espaços que possibilitem que a expressão e a confrontação desses  interesses; e, em terceiro  lugar, que esses diferentes  inte‐resses  se  engajem  num  exercício  de  negociação  ou  de  composição  de  soluções adequadas aos problemas trazidos para o debate público. 

Ainda que a definição de  “controlo  social” nomeie o eixo Estado/sociedade civil, os moldes  como um  e outro  são  concebidos  sugere  a  emergência de  con‐cepções distintas das comummente  representadas. Neste sentido, é exigida uma problematização do que é Estado e do que é sociedade civil, por oposição a uma concepção dicotómica de tradição liberal que opõe o Estado à sociedade civil. Tal decorre  da  emergência  de  novas  configurações  ancoradas  em  novas  dinâmicas relacionais entre a sociedade, nos seus diferentes segmentos organizados, o seu território e as estruturas institucionais de poder que tradicionalmente a governam. Estas configurações  revelam que, ao  invés de concepções estanques e bem deli‐neadas de Estado e de sociedade civil, estamos perante uma heterogeneidade de actores e entidades – sejam movimentos de doentes, movimentos de pensionistas, sindicatos laborais na área da saúde, organizações empresariais, etc. – que se arti‐culam de modo complexo, em distintas escalas, actuando em diferentes domínios e mobilizando interesses distintos, por vezes conflituantes. 

Podemos, assim, sintetizar o controlo social como um processo que assume a sociedade como protagonista, o Estado e a sua acção como o seu foco de atenção e a promoção da democracia como seu objectivo. Apesar de o Estado  (e as suas acções)  ser visado  como objecto de  controlo, a  criação de espaços públicos que possibilitam à sociedade civil, diversa e conflitual, encontrar um espaço de expres‐são, conflito e negociação coloca‐a  (e aos que a protagonizam) no centro de um processo onde as acções públicas deixam de ser da exclusiva responsabilidade do Estado, passando a derivar de configurações de actores que assumem como objec‐tivo central a promoção da democracia. 

Enquanto concepções mais convencionais assumem uma distinção bem deli‐neada  entre  instituições  públicas  sujeitas  a  accountability  e  os  sujeitos  a  quem estas devem prestar contas, a noção de controlo social obriga a que os cidadãos sejam  simultaneamente  fiscalizadores e  fiscalizados. Em  suma, uma acção anco‐rada num controlo social permite redistribuir a responsabilidade do Estado através de novas configurações de Estado e de sociedade civil, em todos os níveis, ou seja, desde a deliberação até à avaliação das acções. Como tal, através dos Conselhos 

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de Saúde e da concepção de controlo social enquanto mecanismo de accountabi‐lity, parecem existir indícios que apontam para a constituição de uma nova conste‐lação de governação nos domínios da saúde pública com a articulação dos actores formais  e  dos múltiplos  actores  oriundos  da  sociedade  civil.  Por  outro  lado,  os Conselhos surgem como espaços de construção continuada de uma cidadania ter‐ritorializada vinculada ao domínio da saúde pública onde a participação e o contro‐lo social por eles operado desempenham um papel central. 

Os Conselhos de Saúde: um modelo eficaz? 

Para uma avaliação da eficácia dos Conselhos e do exercício do controlo social enquanto mecanismo de accountability deve ser tida em conta a seguinte questão: em que medida um Conselho de Saúde, enquanto espaço de participação, serve como mecanismo de mitigação das desigualdades no  acesso  à  saúde pelos  seg‐mentos mais desfavorecidos da população?  Esta questão desdobra‐se  ainda  em duas  outras  questões,  ainda  que  intimamente  interdependentes.  Em  primeiro lugar, em que medida é que a participação dos sectores organizados da sociedade nestes espaços de tomada de decisão é efectiva? Em segundo lugar, em que medi‐da é que essa participação tem servido para a construção do território enquanto espaço de cidadania? Com efeito, a construção dos Conselhos de Saúde enquanto espaços de democratização da gestão da saúde só ocorrerá se o seu funcionamen‐to quotidiano  se  traduzir em práticas democráticas de participação e de diálogo que permitam uma  construção da  saúde  como dimensão  central da  cidadania e como projecto colectivo que vise o bem‐estar da sociedade civil no seu conjunto.  

Relativamente à primeira questão, está em causa compreender até que pon‐to a inclusão de diferentes actores se traduz na sua real participação nos processos de  tomada de decisão e, adicionalmente, em que medida as suas preocupações, necessidades e saberes são incorporadas e contribuem para a definição dos parâ‐metros e dos processos de tomada de decisão em saúde. Em situações em que se assiste a uma reprodução dos contributos resultantes do domínio do saber técni‐co‐administrativo no espaço do Conselho, assim  como no desempenho das  suas funções deliberativas, podemos estar perante modelos de organização que confi‐guram processos de “dupla delegação” (Callon et al., 2001), ou seja, uma reprodu‐ção dos processos de delegação política e cognitiva que caracterizam os mecanis‐mos formais da democracia representativa.  

O  princípio  de  “dupla  delegação”  traduz‐se  numa  separação  entre  leigos  e especialistas e entre representação e participação. De acordo com este modelo, os cidadãos são caracterizados por um duplo défice: o défice de capacidade política (ao assumir‐se que estes são guiados por interesses privados e individuais e, como tal, dificilmente capazes de representar o  interesse público, que deve ser assegu‐rado pelos seus representantes eleitos) e de conhecimento (colocando cientistas e especialistas no papel de  legítimos defensores do  interesse público em matérias de  decisão  que  envolvam  dimensões  técnicas).  Neste modelo,  que,  a  título  de exemplo, tem vigorado nas sociedades democráticas da Europa, os cidadãos ape‐nas são capazes de fazer opções e ter uma participação relevante em processos de tomada de decisão mediante o  recurso  a uma  educação  apropriada. O  caso do Conselho Municipal por nós estudado afasta‐se desta concepção, configurando um 

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espaço onde são produzidas novas configurações de conhecimento e onde, para utilizar a terminologia definida por Arnstein (1969), há lugar a uma efectiva redis‐tribuição de poder nos processos de co‐decisão que se aproxima de um processo de “parceria”. Efectivamente, no caso analisado, os cidadãos  revelam‐se capazes de  controlar  o  seu  envolvimento  nos  procedimentos  participativos  (incluindo  a capacidade de  influenciar a distribuição de  informação, a definição da agenda e das prioridades, a formulação de estratégias e programas de acção, a distribuição dos recursos financeiros, o envolvimento nas deliberações, a capacidade de gerar decisões vinculativas, etc.) e de exigir que os processos postos em prática sejam inteligíveis para aqueles que neles participam. 

A qualidade da participação é medida em função da real capacitação dos cida‐dãos  para  desempenharem  um  efectivo  exercício  de  controlo  social,  influindo efectivamente na definição das estratégias e programas políticos e participando da distribuição dos benefícios que deles advém. No caso concreto do Conselho Muni‐cipal de Saúde de Belo Horizonte, e tendo em conta que as tomadas de posição do conselho são de carácter deliberativo e obrigatoriamente homologadas pelo Pre‐feito,  está  igualmente  implicado  um  nível  de  implementação  e  interferência  na definição das políticas públicas de saúde: 

[…]  como  é que  seria  esse diálogo do Conselho  com o Gestor?  Então, através  de  alguns  documentos  fixos,  necessários.  Por  exemplo,  e  um deles é o Plano de Saúde! Sem Plano de Saúde ninguém recebe verba de investimento ou verba de custeio. Então, é uma prerrogativa. O momen‐to do Plano, que geralmente vai por 4 anos, de 4 em 4 anos o Gestor vai chegar, dialogar com o Conselho  […] através de um documento, com o que ele planeja para os próximos 4 anos. É o início de um diálogo com o controle social e o Conselho pode modificar o plano, ele revisar o plano, ele pode modificar da forma que ele queira. Mas só o Plano resolveria? Não!  […]. A Conferência  tira as directrizes. As directrizes  tem que esta contempladas no Plano. O Plano tem de estar de acordo com as directri‐zes que a sociedade maior decidiu. Então está no Plano. No Plano, não adianta você ter um bom Plano que está em consonância com a confe‐rência, e mais com algumas demandas que o próprio Conselho verificou (ele é deliberativo por isso ele pode pôr também). Se não tiver dinheiro ele não sai de intenção! Então, o diálogo de se aprovar a proposta orça‐mentária, antes de ela ir para o legislativo, e quem aprova é o legislativo. Ela tem de passar pelo Conselho de Saúde para verificar essa compatibi‐lidade,  essa  possibilidade,  entre  aquilo  que  está  proposto  no  Plano  e aquilo que você  tem na questão de dinheiro, do orçamento do próprio município! Outro momento  importante de diálogo documental do Gestor como Conselho é o relatório de gestão anual. Então, você planejou, você tem dinheiro, mas, e depois de um ano, executou o quê? Você queria reduzir a mortalidade  infantil de 18 por mil para 16 por mil, você não conseguiu ou você até conseguiu para 15 por mil. O Gestor tem de falar para o Conselho porque  é que  ele  conseguiu mais, por que  é que  ele conseguiu menos, o que é que  impediu, se  foi  falta de  recursos huma‐nos, ou outra coisa. Ele tem de ter esse diálogo franco, essa autocrítica, porque na realidade, sem esse instrumentos, sem o relatório de gestão, sem o relatório financeiro, sem o plano de saúde, sem o orçamento, e se isso não tiver uma coerência entre si. Sem isso não tem um diálogo claro 

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com o Conselho. […]. Mas sem esse diálogo e sem essa coerência entre os documentos, o processo de gestão fica pequeno. E um dos problemas que a gente nota hoje, é que a relação do Conselho com o Gestor não é apenas  fiscalizar  se  gastou  ou  não!  Isso  é  importante?  É!  Agora,  é  o poder de planejamento e de execução que os gestores  têm que  ter no processo. Então o Conselho tem que estar de olho: está tudo certinho? Está tudo documentado? Quer dizer, se ele aprovar todas essas peças, o dinheiro vem da reserva federal e vem da esfera estadual! Mas só isso é importante  para  o  conselho?  Para  decidir  o  processo?  A  coerência,  o resultado,  e  no  final,  você  fala:  não,  realmente,  investiram  tantos milhões, e você conseguiu ter como resultado uma melhoria da qualida‐de de  vida da população!  Porque  a  saúde  é  vista pela qualidade. Não queremos  saber  se  aumento  ou  não  o  nº  de  internações. Aumentou? Aumentou. Precisou? Precisou. Mas e isso é importante? A pergunta que a gente tem de fazer com a reforma sanitária é: melhorou a qualidade de vida  da  população?  Ou  piorou?  Se  está  tendo mais  internações  você pode dizer: ah, então melhorou o sistema de saúde! Mas não é isso que nós  queremos!  Nós  queremos  a  inversão  do  modelo,  queremos  um modelo mais preventivo e menos  curativo,  isso é a  finalidade geral de um bom planejamento e o que o SUS necessita! (Entrevista2: 650‐704) 

Deste modo, o poder deliberativo e fiscalizador investido no Conselho Muni‐cipal de Saúde de Belo Horizonte, em articulação com o papel desempenhado pela Conferencia de Saúde, exercem uma real  interferência na definição e redefinição das políticas municipais de saúde. Recorrendo novamente à tipologia de Arnstein (1969) – traduzida numa ‘escada da participação’ cujos degraus são: Manipulação, Terapia, Informação, Consulta, Pacificação, Parceria, Delegação de Poderes e Con‐trolo dos Cidadãos – a acção do Conselho parece aspirar a um pleno controlo dos cidadãos no domínio das políticas públicas de saúde. No entanto, a análise da sua eficácia  enquanto mecanismo  dialogista  de  prestação  de  contas  revela  também proximidade com o ‘degrau’ correspondente à delegação de poderes. Os poderes atribuídos ao Conselho, assim  como o  facto de  ser necessário o  seu aval para a aprovação do Plano Municipal de Saúde e para a aprovação das contas do Fundo Municipal de Saúde, garante uma mais valia negocial com os gestores públicos e privados da saúde que permite que os usuários detenham algum poder no proces‐so de tomada de decisões no âmbito da definição estratégica das políticas públicas de saúde. Podemos, assim, considerar que o Conselho de Saúde de Belo Horizonte possui um  já elevado nível de eficácia no quadro do que podemos denominar de mecanismos participativos de accountability. 

Regressemos agora à questão da eficácia da actuação dos Conselhos de Saú‐de: em que medida essa participação tem servido para a construção do território enquanto espaço de cidadania? Em que medida promove efectivamente o acesso à saúde pelos segmentos mais desfavorecidos da população? O trabalho realizado pelo Conselho  tem ajudado a expandir a  rede pública de  saúde para  zonas pro‐blemáticas em termos sociais e marcadas por claras insuficiências na área da saú‐de, como a inexistência de infra‐estruturas capazes de dar respostas às necessida‐des  da  população  e,  consequentemente,  a  existência  de  graves  défices  nos serviços básicos de prestação de cuidados de saúde: 

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[…]  nós  conseguimos  junto  ao  Conselho  a  gestão,  porque  eu  bato  de frente com a gestão, da Centro‐Sul, conseguimos esses centros de saúde nos piores  locais que são as vilas que médico nenhum, gestor nenhum quer ir lá em cima na vila, mas conseguimos. (Entrevista1, 1194‐1205) 

Com  um  forte  vínculo  local  às  comunidades  e  com  um  conhecimento  pro‐fundo da  sua  realidade quotidiana, a acção do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte  tem obtido  resultados  francamente positivos na  consolidação da rede pública de cuidados médicos através da sua extensão para zonas marginaliza‐das  e,  em maior  ou menor  grau,  ignoradas  pelas  estruturas  políticas  e  técnico‐‐administrativas. Num país como o Brasil, com debilidades na expansão da rede de saúde pública e dificuldades em termos do seu  funcionamento, é nos municípios como o de Belo Horizonte, onde a actuação dos Conselhos de Saúde e a participa‐ção da sociedade organizada na definição das políticas públicas de  saúde é  real‐mente efectiva, que  se encontram os melhores  resultados em  termos de  indica‐dores de saúde. 

Por outro lado, as associações no domínio da saúde, através da sua participa‐ção nos Conselhos de  Saúde, desempenham ainda um papel preponderante em outras áreas como, por exemplo, no assegurar da distribuição de medicamentos a doentes crónicos que não têm possibilidade de os adquirir no mercado: 

A nossa associação tem um convénio com o município aonde os nossos pacientes de Belo Horizonte recebem, no caso, não só a medicação pelo SUS que é o gama‐interferon e a imunoglobulina, mais os antibióticos, os remédios do dia a dia. Então nós recebemos. E temos um convénio com o  Estado,  a  secretaria  estadual  também  fornece  para  os  pacientes  do interior, e  isso a gente  tem um  formulário que encaminha  tudo direiti‐nho. E isto tudo quem faz é a associação. Então é este o nosso programa. (Entrevista1, 1245‐1251) 

A  actuação  das  associações  de  doentes  e  usuários  através  do  Conselho  de Saúde de Belo Horizonte na obtenção de serviços e de bens tem sido fulcral para garantir o tratamento de uma franja da população estigmatizada e sem acesso ao mercado para adquirir os tratamentos necessários. 

As associações actuam ainda na melhoria das condições de acesso da popu‐lação aos serviços de saúde como, por exemplo, no encaminhamento de doentes com doenças raras para os serviços apropriados e o seu acompanhamento nos tra‐tamentos específicos: 

Agora temos uma coisa no Brasil hoje, principalmente em Minas Gerais que está dando muito certo, é o Tele Saúde. O Tele Saúde nós estamos interligados com outras cidades daqui, outros países da Europa, e mes‐mo  lá dentro. Se um doente hoje vai num centro de saúde, o caso dele não é para a atenção básica, é uma doença mais grave, aquele médico discute com a universidade ou até lá fora, então isto ajuda bastante, tan‐to os pacientes grave como as associações. Então hoje, no meu caso que sou  representante  da  [Associação  de  doentes  com]  Imunodeficiência Primária, se eu tenho um paciente da Regional Venda Nova que é uma Regional mais carente, lá na atenção básica, uma criança recém‐nascida com 2, 3 meses, está tendo muita infecção, não está se desenvolvendo, 

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se suspeita da Imunodeficiência Primária. Aí o pediatra entra em contac‐to pelo Tele Saúde com o nosso serviço. E aí a gente se discute e enca‐minha a criança para a gente. Aí é  feito os exames e  se  realmente  for diagnosticado  a  Imunodeficiência  agente  acompanha,  se não, devolve, ou  então  no  caso  da  fibrocística  ou  de  outras  doenças  mais  graves, encaminha para o próprio serviço ali dentro. (Entrevista1, 1227‐1240) 

Deste modo, é através da mediação das associações que o Estado e o Muni‐cípio vêem asseguradas muitas das suas responsabilidades no que respeita à iden‐tificação da população doente e ao seu acompanhamento quotidiano, garantindo o acesso a medicamentos e aos respectivos tratamentos. 

Apesar das premissas fundamentais de constituição do SUS – igualdade e uni‐versalidade no acesso à saúde – e da  responsabilidade  imputada ao Estado pela Constituição  Brasileira  em  fazer  cumprir  estas  premissas,  a  realidade  brasileira revela graves carências e inúmeras deficiências na rede de saúde pública e as difi‐culdades do Estado e de muitos dos Municípios em corrigir essa  situação. Deste modo, as associações têm vindo a assumir um papel activo na busca de soluções para alguns dos problemas que mais se destacam junto das populações mais des‐favorecidas. Os Conselhos de Saúde têm sido um importante mecanismo de capa‐citação para as associações de usuários e demais movimentos organizados actua‐rem no domínio da saúde. O papel desempenhado por elas é potenciado pela sua ligação formal aos Conselhos, ao funcionarem, por um lado, como pontes de aces‐so à  informação relativa às políticas de saúde e, por outro, como plataformas de intervenção  política  de  defesa  dos  direitos,  interesses  e  necessidades  daqueles que representam. Tal têm‐lhes permitido desenvolver acções concertadas e capa‐zes de transformar positivamente a realidade da saúde em diferentes níveis terri‐toriais. A actuação dos Conselhos de Saúde na gestão  local da  saúde, articulada com as restantes actividades em que se encontram envolvidos, tem revelado o seu papel central enquanto agentes positivos de transformação social no respeitante à melhoria efectiva das condições de acesso à saúde das comunidades locais. 

Dificuldades e desafios futuros 

Apesar  das  dificuldades  encontradas  na  constituição  e  funcionamento  dos Conselhos de  Saúde,  especialmente  em pequenos municípios,  eles  têm‐se  reve‐lado como um recurso central para garantir a realização do preceito constitucional da saúde como direito de todos e obrigação do Estado. Em termos gerais, tem sido reconhecido que a participação da  sociedade civil, através do Conselhos Munici‐pais de Saúde nas políticas públicas de saúde, tem contribuído para uma melhoria efectiva da qualidade dos serviços públicos  locais, havendo um efeito de redistri‐buição dos benefícios gerados por tais políticas e uma redução dos desiguais níveis de acesso à saúde. A capacidade de organização, fundamentalmente a nível local, da sociedade civil – na figura de associações e movimentos sociais – desempenha um papel fulcral para o eficaz funcionamento dos conselhos de políticas para a sua consolidação  no  sentido  da  redistribuição  de  benefícios  e  para  a mitigação  das desigualdades. 

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118  João Arriscado Nunes, Daniel Neves, Marisa Matias, Ana Raquel Matos 

Daqui  ressalta que, apesar deste esforço de dar voz aos distintos grupos da sociedade civil, a concepção da sociedade civil que aqui emerge como sendo cons‐tituída por uma heterogeneidade de entidades organizadas,  juntamente  com os mecanismos  de  representatividade  criados  pelos  Conselhos  de  Saúde  parecem conduzir à exclusão de todo um conjunto de grupos sem capacidade de organiza‐ção  –  e  dos  quais  destacamos  as  populações mais  vulneráveis  das  favelas  e  as populações indígenas. A capacidade de organização e de reivindicação surge como essencial para o  seu  reconhecimento enquanto actores políticos e, deste modo, para a sua inclusão no espaço de participação dos Conselhos de Saúde. Este é aliás um  dos mais  sérios  desafios  à  ampliação  da  democracia  sanitária  no  Brasil  e  à defesa da máxima “A  saúde é direito de  todos e dever do Estado” embutida no projecto de construção do SUS. 

Referências bibliográficas 

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Saúde, Brasília: Centro de Documentação do Ministério da Saúde, 1987, pp. 35‐42. CALLON, Michel; LASCOUMES, Pierre; BARTHE, Yannick (2001), Agir dans un Monde Incer‐

tain: essai sur la démocratie technique, Paris: Seuil. GUIZARDI, Francini L.; PINHEIRO, Roseni (2006), “Dilemas culturais, sociais e políticos da 

participação dos movimentos sociais nos Conselhos de Saúde”, Ciência & Saúde Colectiva, 11 (3): 797‐805. 

NUNES, João Arriscado; MATIAS, Marisa; MATOS, Ana Raquel; NEVES, Daniel (2007), New Accountability Systems: experimental initiatives and inequalities in public policy and health policy domains  capacity building, Relatório de  Investigação. Coim‐bra: CES 

NUNES, João Arriscado; MATIAS, Marisa; MATOS, Ana Raquel; NEVES, Daniel (2009), New Accountability Systems: Policy Report, Relatório de investigação. Coimbra: CES. 

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OS NOVOS ACTORES COLECTIVOS NO CAMPO DA SAÚDE: 

O PAPEL DAS FAMÍLIAS NAS ASSOCIAÇÕES DE DOENTES 

João Arriscado Nunes, Ângela Marques Filipe,  Marisa Matias 

 

Introdução 

Ao longo dos últimos anos tem sido dada importância crescente à análise de movimentos que  têm emergido,  sobretudo nos países europeus, no domínio da saúde.  Genericamente  definidos  como  movimentos  sociais  em  saúde  (Epstein, 1996; Rabeharisoa, 2006; Callon et al., 2001; Escobar, 2003; Brown e Zavestoski, 2005), estes movimentos podem assumir diferentes  formas mais ou menos  insti‐tucionalizadas: desde as organizações de saúde e associações de doentes, a formas de activismo terapêutico, a movimentos de utentes dos serviços de saúde, movi‐mentos pela justiça ambiental, colectivos emergentes associados a ameaças à saú‐de pública, iniciativas para a promoção e defesa do direito à saúde e seus serviços. Ainda neste  domínio,  a própria mobilização  colectiva provou  ser  uma  forma de trazer enquadramentos alternativos para os problemas no espaço público, abrindo novos lugares de controvérsia (Nunes, Filipe e Matias, 2006). 

Neste  texto procuramos  reflectir  sobre uma  forma particular de movimentos neste domínio, as associações de doentes, tendo como contexto de análise privile‐giado a sociedade portuguesa. Para tal, recorremos a parte dos resultados de traba‐lho realizado no âmbito de um projecto europeu (Governance, Health and Medicine: Opening Dialogue between Social Scientists and Users, MEDUSE). Ao procurar anali‐sar  esta  diversidade  de  características,  actividades  e  transformações  associadas  a este fenómeno, a nossa investigação centrou‐se em três eixos principais: a) as rela‐ções das associações com os profissionais de saúde e o envolvimento em práticas de investigação; b) o  seu papel  social e político;  c)  as  formas de  internacionalização, sobretudo à escala europeia e a formação de redes associativas.  

A metodologia  usada  partiu  dum  levantamento  inicial  das  associações  de doentes  existentes  em  Portugal  com  vista  à  construção  duma  base  de  dados, seguida duma caracterização geral desse universo complementada pelo recurso à aplicação de um questionário. Foi igualmente realizada uma vasta análise qualita‐tiva,  incluindo a  revisão de  literatura existente, dos documentos disponibilizados pelas associações e as  informações disponíveis nas  suas páginas online, e  foram organizados dois grupos de discussão com os representantes das associações. Os dados recolhidos através de questionário às associações de doentes e da realiza‐

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 119‐128. 

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120  João Arriscado Nunes, Ângela Marques Filipe, Marisa Matias 

ção de grupos de discussão permitiram‐nos, desde logo, proceder a uma caracteri‐zação das associações de doentes em Portugal.  

Um dos elementos que emergiu logo desde as análises preliminares foi verifi‐car o peso significativo da família no universo das associações de doentes em Por‐tugal (muito relacionado com a fraca profissionalização das mesmas), assim como a afirmação da experiência familiar e da vivência da doença ou deficiência enquan‐to aspectos centrais na constituição e actividade destas associações. É esta dimen‐são de análise que procuraremos aprofundar ao longo deste texto.1 

A emergência e consolidação das associações de doentes 

Ao longo das últimas décadas, têm vindo a constituir‐se, em diferentes países da Europa, da América do Norte e da América Latina, novos actores colectivos no campo das políticas de saúde. De entre esses actores colectivos destaca‐se a emer‐gência de associações de doentes como objecto particular de interesse, na medida em que vêm a desempenhar um papel crescente na transformação do campo da saúde.  A  expressão  “associação  de  doentes”  é  aqui  utilizada  num  sentido mais alargado, referindo‐se não apenas a associações de doentes, como a associações de  pessoas  portadoras  de  deficiência  ou  outro  tipo  de movimentos  (sociais)  de saúde em torno de determinadas situações ou condições e que se constituem em organizações. 

As  transformações  no  domínio  da  saúde  passam  pela  abertura  de  novos espaços de participação para os doentes e para os que a eles prestam cuidados fora do âmbito profissional, como forma de promoção da defesa dos seus direitos e, em particular, do direito ao acesso a cuidados de saúde pelos doentes ou pes‐soas portadoras de deficiência. As associações de doentes promovem práticas ino‐vadoras de mediação entre os diversos actores no campo da saúde, como os pro‐fissionais e as  instituições de prestação de cuidados, os governantes e decisores políticos, as comunidades científicas e de investigação, os prestadores de cuidados não convencionais e a indústria farmacêutica (Rabeharisoa, 2003; 2006; Rabeharisoa e Callou, 2002; Barbot, 2002; Gaudillière, 2002; Dodier, 2003). 

A promoção e organização de plataformas e de federações de associações e de coligações entre estas e outros actores, nacionais como internacionais, têm vindo a constituir uma das formas mais eficazes de ampliar a sua visibilidade e capacitação enquanto actores políticos, situação que é particularmente relevante no espaço da União Europeia. As associações  têm estado ainda envolvidas em actividades  tradi‐cionalmente consideradas como a reserva dos especialistas, investigadores e profis‐sionais de  saúde,  tais como a  investigação biomédica. E é no  seio da  investigação que associações de doentes têm conseguido intervir activamente na redefinição de prioridades de  investigação, na organização de  ensaios  clínicos, na  angariação  de fundos para financiamento de  investigação e no processo de produção de conheci‐mento sobre situações e condições nas quais existe escassa ou nula produção cientí‐fica (Epstein, 1996; 2000; Rabeharisoa e Callou, 2004). No campo das doenças órfãs, das doenças degenerativas, das doenças do foro mental e das várias formas de defi‐

                                                              1 Para a análise completa realizada ao longo do projecto, ver Nunes, Filipe e Matias (2007). 

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Os Novos Actores Colectivos no Campo da Saúde  121 

ciência, as associações de doentes têm contribuído para o combate à doença e para a  sua  redefinição  enquanto  problema  que  é  simultaneamente  científico,  clínico, moral,  social e político, através de diversas práticas de  sensibilização e difusão de informação. Precisamente neste campo, têm emergido alguns dos exemplos de pla‐taformas mais fortes e activas no contexto europeu, de que são exemplos a EUROR‐DIS – que teve um papel central na aprovação do Acto Europeu sobre Medicamentos – ou o  European Disability  Forum –  cuja  luta pelo  reconhecimento  social  e pelos direitos das pessoas portadoras de deficiência foi fundamental.  

As associações de doentes em Portugal e o papel da família 

Como já foi referido, este texto procura abordar uma dimensão específica do trabalho desenvolvido, centrando‐se no papel da família no contexto das associa‐ções de doentes em Portugal. No caso português, o peso da família na sociedade e a  importância do papel da família nestas associações decorre da sua centralidade em redes sociais que procuram responder às limitações dos sistemas de segurança social  estatal  e  de  solidariedade  social  (Portugal,  2005;  Santos,  1993). A  família tem assumido, assim, uma relevância considerável no apoio a situações de doença ou de incapacidade dos seus membros, mas também no acesso ao sistema de saú‐de e na complementaridade com este especialmente em situações a que ele não é capaz  de  responder.  Este  é  o  cenário  geral  em  que muitas  das  associações  de doentes e familiares operam, em particular, quando falamos de saúde mental ou perturbações de desenvolvimento, onde são os familiares dos doentes que tomam a iniciativa de promover formas de associativismo e mobilização colectiva.  

Partindo dessas  características e especificidades do  contexto português,  foi construída uma tipologia que organiza as associações por referência ao papel que a família aí ocupa, tendo sido definidas as seguintes categorias: 1) as auto‐denomi‐nadas associações de familiares de doentes; 2) as associações de doenças crónicas e/ou  incapacitantes; 3) as associações de doenças  raras, perturbações de desen‐volvimento/mentais ou metabólicas; 4) outras associações, grupo este que  inclui associações  de  doenças  infecciosas,  associações  para  a  humanização  do  parto, associações que lidam com problemas de infertilidade, associações que lidam com problemas relacionados com distúrbios alimentares, entre outras. 

Verificámos que, tanto nas auto‐denominadas associações de familiares como nas que  actuam no  campo das  associações de doenças órfãs, degenerativas e do foro mental ou das várias formas de deficiência, as famílias assumem um papel mui‐to significativo. Nestas últimas, e tendo em conta que, por motivos diversos, os seus portadores têm dificuldade de se organizar no espaço público, as famílias assumem ainda um papel fundamental ao funcionarem como grupos de pressão e de sensibili‐zação,  contribuindo para o  combate  à doença e para  a  sua  redefinição enquanto problema que é simultaneamente científico, clínico, moral, social e político. 

Partindo  destas  categorias,  os  dados  recolhidos  através  do  questionário (informação  correspondente  a 2006/07) mostram o peso maioritário do  tipo de associações onde o papel central da família é directamente  identificado, uma vez que as associações que integram os três primeiros tipos representam 61% do das associações. Essa distribuição pode ser verificada através do Gráfico 1. 

 

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Gráfico 1 

                  Uma outra característica importante das associações de doentes em Portugal, 

e em especial daquelas onde a  família é crucial, é a sua  fraca profissionalização, sendo  que  um  terço  não  emprega  qualquer  assalariado  e,  simultaneamente,  a esmagadora maioria  (cerca de 94%) assenta numa base de voluntariado. Quanto mais ampla é esta base mais dominante é a estrutura associativa onde a família é uma componente fundamental. Esta distribuição fica particularmente clara quan‐do  cruzamos o número de  voluntários existente nas diferentes associações pelo tipo de associação identificada (ver Gráfico 2). 

 

Gráfico 2 

 voluntários por tipo de associação

0%

10% 

20% 

30% 

40% 

50% 

60% 

70% 

80% 

90% 

100%

menos de 10 voluntários

de 11 a 50voluntários

51 ou maisvoluntários

número de voluntários

outras

associação de doenças raras,perturbações desenvolvimento/mentais ou metabólicas

associação de doenças crónicase/ou incapacitantes

associação de familiares

tipologia das associações de doentes (amostra)

19%

12%

30%

39%

associação de familiares

associação de doençascrónicas e/ouincapacitantes

associação de doençasraras, perturbaçõesdesenvolvimento/mentaisou metabólicasoutras

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Os Novos Actores Colectivos no Campo da Saúde  123 

A forte participação dos familiares nas associações de doentes está também patente na constituição das direcções das associações sendo que 35% são familia‐res directos das pessoas afectadas (pais, cônjuges, irmãos, filhos). Apenas 15% das associações incluem nos seus órgãos directivos pessoas com vínculo profissional e é também relevante que quase um terço das associações (27%) inclua portadores da doença(s) em causa (ver Gráfico 3). 

 

Gráfico 3 

               Não é apenas nas esferas de organização ou funcionamento das associações 

existentes que as famílias estão no centro da actividade das associações de doen‐tes. Outros dados confirmam que, quando identificado o público‐alvo destas asso‐ciações em alguns domínios  centrais da  sua actividade  como a disseminação de informação ou o apoio e aconselhamento, a  família  tem um peso esmagador no domínio dos ‘destinatários’ dos serviços prestados (que vão desde o atendimento telefónico  à divulgação de  informação  através de  revistas ou  newsletters), peso esse que ronda os 90%. 

Num  outro  plano  de  análise, mais  evidenciado  a  partir  dos  resultados  dos grupos de discussão, a centralidade das relações familiares na própria existência e actividade  das  associações  de  doentes  veio  igualmente  a  confirmar‐se  nas  nar‐rativas de experiência da doença e daqueles que lidam com ela e com os seus por‐tadores  diariamente. Assim,  foi  possível  constatar  o  papel  central que  a  família assume nas associações de doentes através do  seu envolvimento nas várias das formas de mobilização e acção acima descritas mas também, desde  logo, na pró‐pria  fundação e constituição destes novos actores colectivos que  são as associa‐ções  de  doentes.  Esta  dimensão  é  particularmente  relevante  no  contexto  das associações  de  familiares  que  procuram  responder  aos  problemas,  limitações  e ansiedades  com que  se deparam os portadores  ao  lidar  com  certas doenças ou condições. Fazem claramente parte dessa dinâmica as associações onde a família está presente num contexto de doença crónica ou incapacitante, em que o estado de fragilidade e vulnerabilidade dos familiares é contínuo, prolongado e até acen‐tuado no tempo. Nestes casos, há igualmente outras implicações para a estrutura 

membros da direcção face à doença ou deficiência

27%

23%11% 1%

23% 

15%Portador

pai ou mãe

companheiro/a, irmã(o), cônjuge

filho/a

simpatizante

laço profissional   

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124  João Arriscado Nunes, Ângela Marques Filipe, Marisa Matias 

familiar, por exemplo no plano dos  rendimentos  familiares, sobretudo nos casos que envolvem cuidados paliativos continuados. 

Já no domínio das doenças órfãs e raras, a família surge como o actor central de  prestação  de  apoio  ao  doente, muitas  vezes  transformando  aquilo  que  são experiências pessoais de vida e de perda em acção colectiva pelo reconhecimento e  institucionalização  da  doença  ou  pelo  acesso  a medicamentos  órfãos. Nestes casos, as associações tornam‐se nos principais actores de provisão e disseminação de  informação,  bem  como  um  promotor  das  acções  de  sensibilização  pública. Além disso, procuram desenvolver  formas de  cuidado especializado ou direccio‐nado a uma população, muitas vezes negligenciada, alargando ao mesmo tempo o reconhecimento da dignidade e da  igualdade desses cidadãos. No caso das doen‐ças  raras e, mais especificamente, onde não há  terapias efectivas disponíveis, o que faz com que os doentes sigam uma trajectória de degenerescência que acaba, muitas vezes, numa morte prematura, as associações assumem a tarefa de tradu‐zir essa perda pessoal em mobilização e acção colectivas: 

Quando  [o filho mais novo] começou a  ir para a escola, tinha o  João mais dois anos e frequentava o ensino especial, uma vez pediu para nós o irmos buscar: “mãe vem‐me buscar, leva o mano e vem‐me buscar” e nós fomos buscá‐lo à escola, na primeira classe, onde os outros miúdos se aperceberam que ele  tinha  irmão diferente  […]. Então começámos por  fazer sessões de esclarecimento  aos meninos  da  primária  do  que  era  a  síndrome  da  qual padecia o João […]. Nós vamos lançar a partir de Abril uma mega‐campanha em todos os meios de comunicação […] para isto das doenças raras […] lan‐çar um projecto que é pioneiro no mundo  […] por homenagem  ao  João, porque ele um dia achou que não tinha uma escola onde tivesse uma peda‐gogia  diferenciada,  especializada  para  a  sua  doença,  então  um  dia  disse: “faz‐me  uma  escola”.  (representante  de  associação  de  doenças  raras,  12 Março de 2007). 

Na sua maioria estas doenças têm uma origem genética, pelo que a transmis‐são da doença de pais para filhos coloca de imediato a família como o meio onde teve origem o problema/patologia, ao mesmo tempo que concentra as responsa‐bilidades e as implicações de um cuidado continuado e atenção ao familiar doente. Assim, a família está no centro tanto das causas como dos efeitos de certas doen‐ças e da  sua gestão, podendo,  como  já  foi  referido,  ter um papel de difusão de informação ou criação de novos conhecimentos sobre a doença através da partilha de experiências e de histórias de vida e de família: 

E realmente esta população [doentes com hemoglobinopatias] encontra‐se com um problema gravíssimo que é: são pais de crianças doentes que não conseguem ter um projecto de vida dito normal porque têm imensas limita‐ções. Não conseguem ter uma profissão porque se o filho está doente eles têm que deixar o emprego porque o nosso país infelizmente ainda não tem uma  legislação que apoie estas situações, não é? Porque se a criança  fica doente, o pai muitas vezes não pode ficar com ela o tempo que é necessário. E agora imaginem isto em populações imigrantes… (representante de asso‐ciação de familiares de doentes, 12 Março de 2007). 

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Os Novos Actores Colectivos no Campo da Saúde  125 

Este é  também o  caso de algumas doenças neurodegenerativas. Aqui, e de maneira especialmente vincada, a autonomia e agência do indivíduo são limitadas e exige‐se à família um nível e intensidade de cuidados que transformam os fami‐liares em prestadores de cuidados,  independentemente da  idade da pessoa afec‐tada pela doença. 

Nós continuamos, realmente, no âmbito da saúde a ter uma problemática imensa e um longo caminho a percorrer […]. E é claro que no autismo, quem é que os representa? Os familiares. Os familiares […], com a doença mental, também estão saturados, estão deprimidos, estão sobrecarregados. […] Mas consegui que na área da saúde, o plano de acção social viesse com algumas, vamos dizer, medidas mínimas que me vêm satisfazer e que vão desde eu ter, no ramo da saúde, médicos, psiquiatras, neurologistas a quem eu possa recorrer e saber: este médico, este clínico que aqui está, é bom para tratar o meu filho com autismo. Não é andar por aí por fora a correr um e outro e as pessoas telefonarem: “eu tenho o meu filho com este e este problema,  já toma uma medicação já não sei há quantos anos, não sei se está a funcionar, não  sei  se não está a  funcionar”.  (representante de associação de pertur‐bações do desenvolvimento e doenças mentais, 19 Fevereiro de 2007). 

Muitas dessas patologias, como outras ligadas a perturbações do desenvolvi‐mento ou ainda as doenças mentais,  têm uma  forte  incidência nas pessoas mais jovens, assumindo os pais ou  irmãos um papel fundamental na prestação de cui‐dados. Quando se  trata de uma  forma de deficiência ou de uma doença do  foro mental, emergem também questões importantes sobre os problemas enfrentados em termos de discriminação e da necessidade de (re)integração social e/ou ocupa‐cional. Neste caso, o papel da família reside numa  luta específica pelo reconheci‐mento da diferença e de direitos da pessoa portadora de deficiência que posterior‐mente terão implicações na integração socioprofissional desta, na melhoria da sua qualidade  de  vida  e  na  aquisição  de  uma maior  autonomia.  Neste  contexto,  a mobilização dos familiares no seio duma associação de doentes marca de maneira muito forte a identidade desta e, ao mesmo tempo, qualifica de um novo modo os familiares, enquanto prestadores de cuidados e de porta‐vozes. 

O papel social [da associação] acho que é importante e acho que é reconhe‐cido, principalmente, porque temos tentado fazer um trabalho em rede. Nos sítios onde nos encontramos procuramos os centros de saúde, os hospitais, as  juntas de freguesia e procuramos conhecer todas as respostas que exis‐tem na comunidade e estabelecer uma rede e uma boa articulação entre as várias  respostas  que  existem.  Além  disso  a  associação,  em  si,  dispõe  de vários técnicos tanto na área do serviço social como da psicologia como da terapia ocupacional e imediatamente nós tivemos uma resposta social, den‐tro das nossas capacidades, satisfatória Para além disso, transmitimos muita informação a quem procura. (representante de associação de famíliares de doentes, 19 Março de 2007). 

Por último, vale a pena  referir explicitamente algumas associações que  lidam com um conjunto de doenças que, não envolvendo directamente os familiares dos doentes  como  prestadores  de  cuidados  ou  porta‐vozes,  podem  ter  implicações directas e  indirectas para a  família,  como acontece no  caso de doenças  transmis‐

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síveis e infecciosas, em que os familiares das pessoas infectadas constituem, muitas vezes, o primeiro círculo de risco de contágio. Por outro lado, nestes casos, a família poderá assumir uma posição de rejeição ou de abandono da pessoa doente, espe‐cialmente quando a patologia em questão é associada publicamente a  formas de discriminação e a imagens de degradação física, uma situação extensiva aos familia‐res  contagiados.  O  papel  da  família  pode  assim  assumir  alguma  ambiguidade, podendo os  familiares das pessoas doentes  funcionar  como promotores de acção pública, nomeadamente no campo da prevenção, das campanhas de sensibilização e rastreio, mas também tornar‐se agentes de discriminação das pessoas doentes: 

É assim, eu na minha casa tive Hepatite C … nós pensamos todos no doente ‘infectado’ e ninguém pensa no  ‘afectado’ que às vezes fica pior do que o doente. Nas hepatites se houver 150 mil infectados, há 300 mil afectados, no mínimo. Cada doente tem o marido e o filho, ou a mulher e o filho, são afec‐tados. […] A minha filha – eu tive a doença dentro de casa – ela não admite sequer ouvir falar em Hepatite C. Ela tudo o que seja Hepatite C, ela foge. E já sofri suficientemente em relação a isso. […] Porque ela tinha 14 anos na altura em que se descobriu, o pai começou o tratamento e perdeu as amigas todas. Porque o doente em tratamento de hepatite C muitas vezes torna‐se violento. (representante de associação ligada a doença infecciosa, 12 Março de 2007). 

Num outro plano de intervenção, algumas outras associações estão ligadas a problemas que têm a ver com a própria constituição de famílias. É o caso das que lidam com problemas de fertilidade ou com a desumanização do parto. Embora de forma distinta, em ambas as situações manifesta‐se uma preocupação com o aces‐so  a  cuidados  de  saúde  humanizados  e  com  a  importância  de  redes  sociais  de apoio. Nesta situação, o motor da criação de associações  será a percepção ou a experiência  de  uma  desadequação  da  prestação  de  cuidados  de  saúde  ou  da informação tradicionalmente fornecida no meio médico e profissional. 

Ao nível do nosso papel social é dos nossos objectivos dar apoio psicológico às pessoas, ao doente infértil. Elaborámos já um folheto e temos em revisão científica […] um guia e um manual com informação sobre infertilidade. Por‐que temos vindo a constatar pelas pessoas que nos contactam que há muita falta de  informação nesta área. Os casais quando se deparam com o pro‐blema da infertilidade e quando recorrem aos serviços médicos mais especí‐ficos das consultas de  infertilidade, nem  sempre há oportunidade de  lhes explicar concretamente qual é a abrangência do seu problema, quais as suas possibilidades. […] Pretendemos também, a longo prazo, melhorar a huma‐nização e o acesso aos cuidados de saúde públicos, porque de facto depa‐ramo‐nos  com  longas  listas  de  espera,  quer  para  as  primeiras  consultas, como  propriamente  para  os  tratamentos,  e  depois  há muitos  casais  que conseguem  entrar  numa  consulta  externa  hospitalar  e  depois  não  têm dinheiro para fazer tratamento. […] é uma associação que tem por fim […] tentar orientar as pessoas e no fundo, fazendo já a ponte para o nosso papel político, conseguir junto dos nossos governantes que alguma coisa mude em termos de apoios aos casais  inférteis. (representante de associação de pro‐blemas de fertilidade, 19 Março de 2007)  

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Os Novos Actores Colectivos no Campo da Saúde  127 

 

Considerações finais 

Como vimos, no universo das associações de doentes é muito significativo o peso da  família. Esse peso  tem a ver, por um  lado, com a  importância do volun‐tariado nas estruturas, órgãos e actividades das associações, que é, por sua vez, o reverso da fraca profissionalização destas. Por outro lado, a experiência familiar e a vivência da doença ou deficiência são aspectos centrais na constituição e activi‐dade destas associações. 

Tratando‐se de um universo muito heterogéneo e susceptível de ser descrito, dividido e classificado de diferentes maneiras, qualquer tentativa de construção de uma  tipologia  é  condicionada  pelos  objectivos  de  quem  a  elabora. Neste  caso, procurámos elucidar os diferentes modos de envolvimento de familiares das pes‐soas doentes ou portadoras de deficiência na constituição e actividades das asso‐ciações.  A  tipologia  que  propusemos  decorre  deste  propósito  de  inventariar  e explorar esses modos de envolvimento e as  suas  implicações nas  características das associações. Como mostrou a análise dos grupos de discussão, o envolvimento da  família  é  transversal  a  todos os  tipos de  associações  independentemente de estas se auto‐definirem como associações de familiares e/ou de pais e amigos. O que varia conforme os tipos de patologias ou formas de deficiência e as suas impli‐cações sociais é o modo de envolvimento dos familiares, que vai desde a prestação de cuidados, passando pela condição de porta‐vozes dos doentes ou portadores de deficiência, ou até mesmo co‐afectados pela doença. 

Como  tem  acontecido  noutros  países,  e  com  todas  as  especificidades  que revelam no contexto da sociedade portuguesa, as associações de doentes estão a emergir no campo da saúde como novos actores colectivos com uma visibilidade pública  crescente, embora  com uma  capacidade ainda  limitada de  influenciar as políticas públicas e de saúde em Portugal. Este cenário deve‐se ao facto que uma proporção significativa das associações de doentes em Portugal está num primeiro estádio organizacional associado à sua recente criação, à sua limitação de recursos humanos e  financeiros e  fraca profissionalização. Como  referido,  aqui emerge  a proeminência do trabalho voluntário e da participação dos familiares dos doentes nas associações desde a sua constituição, à sua liderança no desenvolvimento das suas actividades e missões. Esta característica dominante tem por seu  lado a ver com as trajectórias históricas particulares no domínio na saúde em Portugal bem como no seu cenário associativo mais lato. 

Directamente relacionado com estes aspectos está o facto das associações de doentes portuguesas ainda terem um papel e legitimidade limitados ao nível social e político. Eles são actores emergentes e cada vez mais relevantes nos campos da promoção  e  educação para  a  saúde, prevenção de doenças  e provisão/dissemi‐nação  de  informação. Os  tipos  de  informação  providenciados  vão  desde  o  foro médico ao aconselhamento jurídico e psicológico. Assim, como outras associações estrangeiras, as associações de doentes em Portugal partilham o objectivo, por um lado, de lutar contra a doença e, por outro lado, lutar contra a discriminação que ela causa ou, inversamente, pelo reconhecimento duma certa condição ou proble‐ma. Outra tendência  igualmente visível no cenário nacional é o papel emergente das associações como mediadores entre diferentes actores no domínio da saúde (privados, públicos, políticos, médicos, económicos, entre outros). Nesse  sentido 

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algumas das associações estão a tornar‐se também mediadores enquanto tradução entre os discursos sociais e científicos e entre eles e outros actores, inclusivamente introduzindo questões na política como no caso da diabetes e da infertilidade. 

Estes dados e a investigação comparativa realizada no projecto que serviu de base a esta análise sugerem um papel central que as associações de doentes pode‐rão vir a desempenhar no futuro. Neste processo, e nas condições específicas de Portugal, é de prever que as famílias de doentes e portadores de deficiência pas‐sem por uma  redefinição e,  talvez, por uma ampliação do  seu protagonismo no domínio da saúde e da prestação de cuidados. 

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PARTE III 

 

A MORTE E O MORRER 

NAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS  

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ROSTOS DA MORTE NA ERA DA TÉCNICA 

Ana Celeste Mendes   

Nada de mais natural, quotidiano e universal do que a morte. E, contudo,  a morte  impõe‐se  como  um  imponderável  que  desen‐coraja a razão que nenhuma linguagem consegue dominar. 

Louis Vincent‐Thomas 

  Tendo em conta a ideia defendida por diversos teóricos, de que as civilizações 

se definem pelo modo como tratam os moribundos e os defuntos, a morte surge‐‐nos como um indicador privilegiado de questionamento do contexto social, como um dos grandes reveladores das sociedades e das civilizações e um dos instrumen‐tos mais importantes para o seu questionamento e a sua crítica. 

O Homem da antiguidade, que vivia num mundo impregnado de paganismo e de maravilhoso, detinha com a morte uma relação de proximidade que a partir daí parece ter deixado de conseguir. As mudanças, que durante séculos foram sendo graduais,  conheceram, no  século XX, uma grande  celeridade,  tendo a morte e o morrer sido revestidos de uma  invisibilidade social que se tornou num dos traços mais marcantes da era moderna. Associados às mudanças operadas nas diversas estruturas sociais, os ideais que proliferam no ocidente a partir da segunda meta‐de do século passado, afastaram o fim de vida e a morte para os bastidores da vida social. A emergência do novo  ideal de  felicidade que proliferou no Ocidente nas últimas décadas do  século  XX  e  a  aceleração do  ritmo da  vida que  a  sociedade moderna conheceu (aceleração que não contempla  interrupções, ritmo vertigino‐so que se mostra indiferente à paragem definitiva a que a morte obriga), contribuí‐ram para um certo silenciamento social de dimensões tão intrínsecas à existência quanto o sofrimento e a morte. Mas nos  finais século XX,  início do século XXI, o panorama parece  ter voltado a mudar: o aparecimento de doenças de difícil ou impossível  controlo  que  surgem  ligadas  à  senescência  e  afectam  um  número importante de  indivíduos, o aparecimento de novas doenças, as dificuldades com que a medicina se confronta no combate a doenças como o cancro, que se torna‐ram, sobretudo, doenças crónicas, com finais de vida muito prolongados exigindo um  tipo  de  intervenção  específica  (em  nome  das  quais  a medicina  paliativa  se desenvolveu),  bem  como  as  acções  terroristas,  que,  com  os  atentados  11  de Setembro de 2001, vieram pôr em causa a aparente intocabilidade do valor da vida do homem contemporâneo e a segurança que caracterizou os  ideais da vida dos 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 131‐145. 

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tempos modernos. Todos estes aspectos vieram dar uma nova visibilidade e con‐ceptualização à morte dos dias de hoje. 

A sensação de insegurança, a fragilidade e volatilidade da vida humana, pare‐cem, assim,  ter  contribuído para o aparecimento de um nova  sensibilidade  face aos  temas  da morte  e  do  sofrimento  humanos. O  número  de  livros  publicados sobre o assunto, a proliferação de eventos de discussão sobre o tema da morte e do morrer, as diversas campanhas de sensibilização que tornam socialmente visí‐veis doenças como cancro e a SIDA, os movimentos em torno da humanização da medicina,  a  psicologização  das  vivência  do  sofrimento  e  do  luto,  bem  como  a introdução da medicina paliativa na agenda política nacional, parecem indicar que nos encontramos numa fase de mudança no modo como o homem vive e concebe a morte.  “In  some  circles”,  escreve  Tony Walter,  “not  least  the  quality media, death and our feelings about death are no longer taboo but the new radical chic” (Walter, 1994: 27). 

A compreensão do ambiente social dos nossos dias  implica, de modo  inegá‐vel, o conhecimento daquilo que envolve as vivências e representações da morte. A morte, ou mais especificamente, a consciência da morte, constitui fundamento essencial para o sentido da vida. Se o Homem não tivesse consciência da morte, se não concebesse a ideia (ainda que inconcebível) da sua finitude, a vida – e, inexo‐ravelmente, a vida  social  também – perderia muito do  seu  significado. Surgindo como  forma de atribuir alguma ordem e  sentido à  força  caótica que a natureza parece  lançar sobre o homem, a cultura humana toma, no que se refere ao pro‐cesso de morte e ao sentimento de perda, uma forma especial. As especificidades que o  fenómeno da morte encerra, a densidade que  comporta,  concorrem para que a natureza e a cultura manifestem, aqui, os seus aspectos fundamentais. 

A  abordagem  do  tema  implica  o  confronto  com  continuidades  e  desconti‐nuidades, com movimentos rápidos e movimentos lentos, com acelerações e desa‐celerações que se encontram presentes em toda a conjuntura social e, logo, tam‐bém, em torno das questões que dizem respeito às construções sociais e vivências da morte. À  semelhança do que acontece com  toda a  sociedade e  recorrendo à terminologia de Bourdieu, o “campo morte” da sociedade portuguesa contempo‐rânea  é  constituído  por mecanismos  e  forças  contraditórias  capazes,  não  só  de revelarem  que  os  processos  sociais  detêm  características  plurais,  não  homogé‐neas, como também que se constroem a partir de tensões que se desenrolam no interior dos mecanismos que lhes dão forma. A dimensão temporal que envolve a morte é disso exemplo. Plural nos ritmos que assume e nos efeitos que produz, a vivência da morte parece comportar, hoje, duas grandes tendências temporais que manifestam cadências contrárias: o ritmo lento que se assiste na vivência do pro‐cesso de morrer (sustentado pelas terapêuticas e procedimentos médicos e levado até às últimas consequências nas situações em que se recorrem às tecnologias de suporte de vida) é  contrário ao  ritmo  rápido, que parece envolver os modernos rituais da morte, como a cremação (que, pela rapidez com que decompõem o cor‐po em cinzas, reporta o Homem, a um ritmo avassalador, para o fenómeno da dis‐solução do outro, para a dimensão  irrealizável da não‐existência, ou até mesmo naquilo que constitui a pressão social laboriosamente tecida em torno dos enluta‐dos para que rapidamente resolvam a sua dor e o seu sofrimento (Ariès, 1977). 

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A  cientifização  da  vida  e  o  desencantamento  do mundo  na  reconfiguração  da morte moderna 

Constituindo uma dimensão  intrínseca ao  indivíduo, questão  inultrapassável, necessária à espécie, a morte biológica não é em si um acidente que sucede à vida, ou melhor, aos seres vivos, mas o último estádio de um processo inaugurado pela concepção deles (Pohier, 1999: 26). Resultando da destruição irreversível da fede‐ração das células que constituem os tecidos, os órgãos, a morte biológica detém, através da tanatomorfose  (processo de decomposição do corpo), um efeito cata‐bólico, de mineralização de milhões de  insectos que, denominados de “trabalha‐dores da morte”, tornam o cadáver útil ao ecossistema (Thomas, 2001). 

O tipo de assunção acima descrita, faz parte da visão científica da morte que, a partir do século XIX, se foi enraizando no mundo ocidental. Baseadas na ciência moderna, as nossas actuais concepções  sobre a vida e a morte conduzem‐nos a adoptar uma noção específica do Universo. Não se encontrando  reservado a um pequeno escol,  imperando, pelo contrário, em todos os domínios da vida social e desde a idade mais precoce, o discurso científico surge hoje como um saber ligado à verdade, conhecendo uma forte legitimação social (Giddens, 1996). 

A cientifização da vida, acompanhada pelo processo de desencantamento do mundo1  (Martins,  1985),  afastou  o  homem  moderno  das  concepções  mágico‐‐divinas enquanto forma de explicação dos processos da vida e da morte, ao mes‐mo  tempo que o aproximou das explicações ao nível da vida  celular. O discurso oriundo da biologia parece contribuir para uma mudança ao nível das percepções sociais dos processos da vida e da morte. O indivíduo moderno aceita a concepção biológica enquanto explicação visível do fenómeno da morte. Concepção plena de sentidos  científicos  que  a  patologia  e  a medicina  legal  se  encarregam  hoje  de explicitar, mas vazia da dimensão espiritual, afastada do absoluto, do mistério, que a morte humana convoca. 

A partir do século XIX, a morte foi usurpada das mãos dos padres para passar a  ser manipulada pelos médicos  (Bradbury, 1999: 47). Herdeiro do pensamento lógico e racional, o Homem da era moderna encontra‐se próximo do discurso pro‐duzido pela ciência e pela medicina mas arredado das instâncias que, ao longo de séculos, tomaram a seu cargo o problema espiritual da morte. Ao contrário do que se passava em tempos antigos, o Homem moderno encontra‐se a sós com o misté‐rio  incontornável do seu  fim. A  transformação da morte em processo de morrer implica que à  inalienável experiência do sofrimento  físico  (a doença não permite que  seja  outro,  que  não  o  doente,  a  viver  o  tempo  de  dor),  se  venha  juntar  o sofrimento espiritual do doente, a solidão potenciada pela azáfama do quotidiano hospitalar, pelo não‐saber agir dos familiares, pelo constrangimento do ambiente que  o  rodeia.  Paralelamente  ao  aumento  do  tempo  de  vida  dos  doentes  com doenças mortais,  adensam‐se  as necessidades dos  indivíduos em  fim de  vida. A situação  idiossincrática  em  que  o  doente  terminal  se  encontra,  coloca‐o,  numa dimensão outra, num plano de existência com o qual os outros não se identificam (Elias, 1985). O recolhimento que, a dada altura, parece caracterizar aquele que se encontra na fase final da sua existência, contrasta em absoluto com aqueles que a 

                                                              1 Expressão de Max Weber que significa “a eliminação da magia enquanto técnica de salvação”. 

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si  se  chegam,  cheios  de  palavras,  cheios  de  “coisas  do mundo”.  Acontece,  no entanto, que muitos daqueles que se encontram no seu fim,  já não têm vontade de conversar. Rita2, uma doente em  fim de vida que conheci, expunha de modo claro  a  vontade  que  agora  a  habitava.  “Já  não me  apetece  falar…  apetece‐me estar”. Este “estar” é, pois, um “estar” que se reveste de características novas, um “estar” cujo sentido parece impossível de apreender com profundidade por parte daqueles que nunca passaram por semelhante experiência. 

A desagregação social que a morte implica, a desordem que a morte imprime, revela‐se, pois, a vários níveis. Erguida sobre a égide da razão e alicerçada no pen‐samento  lógico‐matemático, a  sociedade moderna  tornou‐se  (apesar da enorme consumo de  imagens de sofrimento e de morte que os media difundem e que o indivíduo de hoje consome) profundamente necrófoba (Thomas, 2001). Caídas em desuso, vazias de sentido, as formas rituais e orais de outrora deixaram de deter o papel social que detinham, sem que tenham sido, pelo menos de modo massifica‐do, substituídas por outras (Elias, 1985). A segunda metade do século XX conhece, portanto, além das reconfigurações do panorama da morte, o vazio ritualístico que prolifera  em  seu  redor.  Perante  o moribundo,  que  surge  aos  olhos  dos  outros como um ser  frágil perante a morte, torna‐se  frequente que os outros, ou  fujam ou façam de conta que a morte não está a caminho. 

No meio hospitalar é  frequente o comportamento oscilar entre o activismo febril e o abandono tácito. Escudando‐se por detrás do papel profissional, o médi‐co e os enfermeiros  tendem a  limitar os contactos aos gestos  técnicos  indispen‐sáveis. A angústia que acomete os profissionais (remetendo sempre para a própria morte, a morte do outro gera angústia e desconforto) acresce, no caso dos familia‐res, o desgosto e a estupefacção. Demasiado incrédulos com a eminência do desa‐parecimento do outro, esgotados pelo esforço continuado que o acompanhamen‐to de uma doença prolongada exige, os familiares surgem, com frequência, como indivíduos necessitando de apoio e cuidados, tentando, contudo, esconder as suas fragilidades do moribundo. À desagregação física e emocional do doente terminal, sucede‐se a desestruturação do ambiente que o circunda. Face à disrupção que se impõe, ao fim que, pianíssimo se aproxima, ergue‐se, assim, nas palavras de Hei‐degger, a “Solidão do Ser perante o Absoluto” (Lévinas, 2003). Violentíssimo con‐fronto que remete já para uma existência outra, que antecipa a entrada no “misté‐rio”,  a  dissolução  do  sentido  do  eu.  E  poderá  ser  este  confronto  solitário  do homem com a sua morte, este processo que é também a passagem do ser “pela noite escura da alma”, que poderá ser capaz, como nos mostra Leloup, de devolver ao Homem a capacidade de pensamento profundo, a reflexão espiritual, a reflexão metafísica da existência, dimensões que o modo de vida moderno tende, por nor‐ma, a afastar do quotidiano rotineiro (Hennezel e Leloup, 2001). 

O Homem que no tempo do abrandamento da vida  (tempo que antecede o silenciamento final) se confronta com a ideia (já) inevitável da sua finitude, com a ideia  da  sua morte,  parece,  ao  fim  de  várias  provas,  dotar‐se  de  características muitas vezes novas, de capacidades  interiores até aí desconhecidas, que o reves‐tem de uma profundidade e intensidade únicas. A noção de que o tempo se esgota,   

                                                              2 Nome fictício. 

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o sentimento tremendo de que o presente já não contém um futuro, tende a dotar aquele que está a morrer de uma clarividência e densidade novas que  tornam o fim de vida num tempo em que a existência parece revestir‐se de uma espessura única. Este  tempo, que é o  tempo da  vivência da morte é,  contudo, um  tempo novo,  uma  possibilidade  que  resulta  das  reconfigurações  operadas  no  seio  da medicina. 

O progresso científico e tecnológico veio mudar radicalmente a epidemiologia da morte.  Até  ao  século  XX morria‐se  sobretudo  devido  a  doenças  infecciosas, sendo a morte  rápida e o  sofrimento  curto, pelo que nem médico nem doente, tinham  alguma  coisa  a  dizer  sobre  a  etapa  final.  Contrariamente,  hoje  a morte opera em tempo longo. Morrendo sobretudo de doenças prolongadas como pato‐logias vasculares ou oncológicas ou devido à falência de múltiplos sistemas, o indi‐víduo  leva tempo a morrer. O  longo tempo da morte e o prolongado sofrimento que  isso  implica  tornam a “hora  incerta” da morte, num desafio para doentes e médicos  (Antunes, 2008). Este novo  tempo de espera,  tempo em que o homem “está morto mas ainda não” (Vicente, 2008)  implicou a reconfiguração da atitude da medicina face a estes doentes que, experienciando a morte como um processo e não como um momento, começaram a exigir o controlo não só da forma de mor‐rer, como das circunstâncias em que a morte acontece (constituindo, a eutanásia, o exemplo mais evidente dessa intenção). 

O  direito  “à  verdade”  (Castra,  2003)  e  o  direito  à  consciência  (Hennezel  e Leloup, 2001) visam proteger o doente da atitude paternalista (Ariès, 1975; Elias, 1985) que, escondendo ao doente a verdade sobre o seu estado ou mantendo‐o inconsciente nos últimos dias de vida, impedem o Homem de viver a etapa final da sua existência e de conceder uma conclusão à sua vida. 

Os cuidados paliativos na reconfiguração do panorama da morte 

Assente numa  lógica diferente da medicina  curativa, os  cuidados paliativos (resultantes da articulação das políticas de dor com os cuidados continuados) sur‐gem da oposição de um  conjunto de médicos3 à obstinação  terapêutica  (Castra, 2003), à  futilidade  terapêutica  (Marques, 2002) e à  tentativa de manutenção da vida sob qualquer forma. Reconhecendo os limites da intervenção da ciência e da técnica médica em muitas situações clínicas associadas a doenças que se prolon‐gam no tempo, os médicos deste segmento de  intervenção médica dão primazia ao valor da atenuação do sofrimento, deslocando para lugar secundário o valor da preservação da vida a todo o custo. No âmbito dos cuidados paliativos, o valor do “cuidado”  sobrepõe‐se  ao  valor  da  “cura”.  Concebendo  o  doente  como  um  ser global,  os  cuidados  paliativos  (prestados  por  uma  equipa multidisciplinar)  com‐

                                                              3 O movimento dos cuidados paliativos teve início na segunda metade dos anos 60 do século XX em Inglaterra, sendo a sua mentora Cicely Saunders, uma oncologista do St. Christopher’s Hos‐pice, que  já nesta altura  considera desadequados os  cuidados prestados pelos hospitais aos doentes que estão próximos da morte. Saunders  institui assim uma outra maneira de cuidar daqueles que têm uma morte anunciada, deslocando o esforço tenaz que se encontrava asso‐ciado à dimensão da cura, para a dimensão do cuidado ao outro que, sendo muitas vezes um ser dependente, necessita de ajuda para morrer sem sofrimento ou com o menor sofrimento possível (Almeida e Melo, 2002). 

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preendem o doente enquanto um ser global, prestando assim atenção, não só à dimensão física do sofrimento, como também à sua dimensão psicológica e espi‐ritual. A grande especificidade dos cuidados paliativos, a diferença possivelmente marcante, reside na atenção que esta abordagem concede às questões das depen‐dências,  ao  sofrimento  e  às  vulnerabilidades  da  condição  humana.  O  cuidado àquele  que,  tantas  vezes  decrépito,  desfigurado,  irrecuperável,  se  alimenta  do desespero,  implica  uma  acção  centrada  na  conservação  da  dignidade  humana, uma  acção  conservadora  que  consiga  traduzir  ao  outro,  mesmo  incapacitado, mesmo dependente, o  sentido que o outro  tem. O  cuidado  ao doente  terminal requer uma  sensibilidade específica e um  trato cuidado que  implica, como mos‐tram Almeida e Melo, um acompanhamento efectivo, um “estar ali”, sendo capaz de responder à questão, que tantas vezes se coloca, “Que figura faço?”, sobretudo com o gesto, seguramente com a atitude cuidada, “Não tenhas vergonha! Estamos contigo. Gostamos de ti.” (Almeida e Melo, 2002). 

Estruturados  em  torno  de  uma  organização  flexível,  os  cuidados  paliativos erguem‐se de acordo com o respeito pela identidade do doente, não o isolando da família, nem descurando os pormenores práticos que sirvam para suportar melhor as suas deficiências físicas. A comunicação com o doente, o acompanhamento reli‐gioso e o “encontro com o doente no  seu próprio nível emotivo”  (Thomas, 2001) fazem parte da reintegração da dimensão humana que a burocratização hospitalar tende a fazer esquecer. À terapia química  junta‐se, assim, a escuta, a presença e a paciência de quem acompanha, de modo efectivo, o indivíduo doente. O espírito das equipas  de  cuidados  paliativos  é  o  da  aceitação  do  frente‐a‐frente  com  a morte, tomando consciência do seu significado, atitude que se encontra nos antípodas do comportamento que caracteriza a medicina de índole curativa. A medicina moderna, fortemente científica e  tecnológica,  tende a conceber a morte  como um  fracasso, remetendo‐a, por isso, para locais afastados do seu olhar e da sua reflexão. 

A obstinação terapêutica, resultante da vontade cega de manter a vida a todo o custo acaba, assim, por encontrar resistências. Ao valor da vida, sobrepõe‐se o da  dignidade  da  vida,  conduzindo  isto  ao  redimensionar  do  problema.  A  pos‐sibilidade  da  tecnologia  conseguir manter  viva  uma  vida  sem  possibilidades  de autonomia levanta sérias questões em múltiplos domínios. Por um lado, impõe‐se a necessidade de racionalizar os recursos disponíveis, por outro, coloca‐se a ques‐tão da eutanásia e das decisões médicas que tanto podem ser  favoráveis, com o investimento na manutenção de alguns procedimentos  (como antibioterapia, ali‐mentação, hidratação), como podem resultar na decisão de deixar a doença seguir o seu curso, oferecendo assim, ao doente, uma morte que chega “não antes, nem depois, mas na hora certa”. A questão do tempo certo da morte coloca‐se na con‐temporaneidade e  resulta da  reconfiguração que a ciência e a  tecnologia vieram imprimir ao tempo e ao modo de morrer. Hoje os indivíduos não tendem só a viver mais tempo, como a vida pode ser prolongada até limites outrora impensáveis. No entanto, esta é uma questão complexa, que  inscreve muitas questões relativas à morte dos doentes na dimensão da ética e da moral. De acordo com Thomas, e à semelhança do que aconteceu com a ciência e com a técnica, que organizaram a vida até ao ponto de lhe retirarem o seu sentido profundo, também a obstinação terapêutica e a eutanásia constituem um modelo idêntico de organização e desu‐manização da morte (Thomas, 2001). 

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Os  cuidados paliativos e o  tempo  lento da morte,  recolocam‐na no  seio da família, dando‐lhe uma nova forma de visibilidade social.  Integrando aqueles que são mais próximos do doente, chamando a família a agir e atribuindo‐lhe especial importância no acompanhamento ao doente, os cuidados paliativos potenciam a singularidade  do  doente,  atribuindo  especial  importância  ao  valor  da  dignidade que,  em  indivíduos  profundamente  comprometidos,  reside  na  possibilidade  e capacidade de criarem laços e suscitarem emoções até ao fim. O combate ao iso‐lamento social e emocional do doente, dando‐lhe visibilidade enquanto ser sofre‐dor mas  único  no  seu  sofrimento,  surge,  pois,  como  questão  central  no modus operandi deste tipo de cuidados. 

Medicalização, rivatização e individuação da vivência da morte e do luto 

As  características de unicidade e  individualidade que os  cuidados paliativos atribuem ao ser doente, encontram‐se intimamente relacionadas com o individua‐lismo moderno, valor central da sociedade pós‐industrial e essencial na construção da  vivência do processo de morte  e  até dos novos  rituais  fúnebres. A partir do século XVIII, o processo de  laicização da moral  colocou num pedestal o  ideal de dignidade  inalienável do homem e os deveres de  cada um para  consigo próprio que  acompanham  esse  ideal  (Lipovetsky,  2004). A  autonomia moderna da  ética erigiu a pessoa humana em valor central, pelo que cada  indivíduo passou a ter a obrigação de respeitar a humanidade que existe em si, de não agir contra o fim da sua natureza, de não se despojar da sua dignidade inata. O direito a “morrer com dignidade”,  que  é,  em  termos  últimos,  um  pedido  de  eutanásia,  é  a  expressão última do individualismo actual. “À semelhança da família, do sexo, da procriação, da religião, a relação com a morte tende a reciclar‐se na lógica do direito subjecti‐vo e das opções  livres”  (Lipovetsky, 2004: 76). O  fim de  vida preconizado pelos cuidados paliativos surge assim como uma construção profundamente imbrincada no  direito  individual,  na  liberdade  de  opção,  na  individualidade  e  na  existência exclusiva de cada ser humano. A  ideia de uma moral  individual característica que aponta para o imperativo pós‐moderno de cada um viver à sua maneira, encontra‐‐se afecta ao  indivíduo não só naquele que é o tempo da sua vida como também naquele que será o tempo da sua morte. A pluralidade que caracteriza as manifes‐tações rituais  face à morte contemporânea traduz a  ideia de que o homem deve relacionar‐se com a morte do mesmo modo como se relaciona com a vida: “à sua maneira” (Walter, 1994). 

A expressão individual face às questões que envolvem a morte, manifestam‐se tanto  ao  nível da  vivência  do processo  de morte  e  disposições  últimas  por parte daquele que vai morrer, como também ao nível da vivência do desgosto e do  luto, por parte daqueles que  lhe  sobrevivem. Ao  contrário daquilo que acontece numa cultura comunitária, em que o profundo receio do indivíduo é, mesmo no que toca à morte, ver‐se afastado do seu grupo (Morin, 1970), numa cultura fortemente indivi‐dualista, o receio mais profundo do homem é aquele que diz respeito à dissolução da individualidade, à perda do sentido do seu “eu” (Morin, 1970; Walter, 1994). 

Associada à dignidade que se pretende conceder ao homem na fase final da sua vida, a individualidade da sua morte surge enquanto valor a perseguir. A marca identitária que poderá ser encontrada nos  ritos  fúnebres de um  indivíduo deter‐

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minado relembrará aos sobreviventes a sua exclusividade enquanto ser individual e único, inscrevendo no espaço‐tempo o acontecimento daquela morte específica. Contrariamente à posição defendida por Elias  (1985), a morte moderna caracte‐riza‐se, de  acordo  com Walter, não pela desritualização, mas pela  existência de rituais privados, de natureza  laica e de pendor  individualista, que, por não serem partilhados pela colectividade, parecem não existir. Demonstrado ter uma posição diferente de teóricos como Ariès e Elias, Walter defende que o  indivíduo de hoje tem  convicções profundas  sobre o modo de  viver o  luto  (Walter, 1994). Na  sua perspectiva, a  imagem de desagregação do sentido que o  luto parece ter na con‐temporaneidade advém da desagregação das formas colectivas dos rituais. Viven‐do o luto “à sua maneira” e não de acordo com formas socialmente estabelecidas, o enlutado pode não ser facilmente reconhecido enquanto tal. Mas a invisibilidade social do  luto não significa a  inexistência do  luto. As  formas ritualísticas que, em termos colectivos, entraram em desuso, abriram espaço à entrada de novos rituais e simbolismos que hoje, mais do que nunca, parecem concentrar‐se na importân‐cia única que o falecido detinha para aqueles que eram próximos. A morte de um familiar, o desaparecimento de alguém a quem o indivíduo se encontra ligado por laços  emocionalmente  fortes  é,  aliás,  hoje  sentido  como  um  duríssimo  golpe, como uma amputação no mais profundo do espírito. “One person  is absent, and the whole world is empty” (Walter, 1994: 23). 

A partir do século XIX, e tal como mostram vários autores, a preocupação do Homem com a morte passou a  ser a preocupação que  subjaz à possibilidade do desaparecimento  do  outro. Outro  que  é  hoje  ser  único,  pleno  de  sentido  para aqueles que lhe são próximos e que a ele se encontram ligados de forma exclusiva. É por este motivo que a partir do século XIX os túmulos passam a expressar o des‐gosto dos sobreviventes e que a partir do século XX as cerimónias  fúnebres pas‐sam a ser cada vez mais privadas, tendencialmente familiares (Walter, 1994: 23). Como afirma Bradbury (1999), a morte passa a dizer respeito ao defunto e à sua família. Nas sociedades em que a cremação era já uma prática comum no início do século XX, as cinzas são entregues aos  familiares que decidem sobre o destino a dar‐lhes, de acordo com um desejo previamente expresso pelo defunto. 

As questões  ligadas à morte contemporânea  remetem‐nos para a dimensão dos novos  rituais  fúnebres e das práticas  individuais de  luto. Na  linha do pensa‐mento de Walter, Littlewood  (1993) defende que hoje se concede  liberdade aos enlutados para viverem da forma que  julgarem mais adequada o seu sofrimento, dando‐lhes espaço e liberdade para viverem um luto privado, não afecto a normas pré‐estabelecidas  e  que,  ao  ser  descoincidente  das  convicções  daqueles  que  se situam ao seu redor, se pode tornar num luto desamparado e solitário. A pressão social que tende, hoje, a recair sobre os enlutados tem sido, aliás, objecto de refle‐xão. O  indivíduo sofredor é hoje coagido a viver a sua dor de  forma rápida e em privado. Um sofrimento demasiado visível ou prolongado é, actualmente, conside‐rado mórbido  (Ariès,  1975)  e  tido  como  um  atentado  ao  bem‐estar  social.  Do mesmo modo que em volta do doente  terminal  se  tende a erguer a  “tirania do pensamento  positivo”  (Holland  e  Lewis,  2000),  em  torno  do  enlutado  tende  a erguer‐se um discurso que  visa  re‐introduzi‐lo, da  forma mais  rápida possível, e sob qualquer condição, na normalidade do quotidiano. A aparência normal do dia‐‐a‐dia do enlutado afasta, dos olhos dos outros, o peso do sofrimento e do trágico 

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que a  ideia de morte transporta. A única norma que parece  imperativa em todas as  formas modernas dos  rituais prende‐se, assim,  com a  forma discreta  como o indivíduo deve demonstrar o seu desgosto. O enlutado deve mostrar os seus senti‐mentos  de  forma  discreta,  sem  incomodar  quem  o  rodeia.  (Ariès,  1975;  Elias, 1985).  O  desgosto  profundo  deve  ser  vivido  na  privacidade.  “Privacy  is  distin‐guished both from individualism and from the sense of community, and expresses a model of relating to others that is quite specific and original”, escreve Ariès (Wal‐ter, 1994). 

Comercialização e ritualização da morte moderna 

O  desejo  de  privacidade  actualmente  manifesto  encontra‐se  intimamente relacionado com a dimensão da comercialização da morte que, a partir do século XX,  começou  a  prosperar  nas  sociedades  do Ocidente.  Recorrendo  aos  serviços funerários, a família prescinde dos serviços das mulheres da comunidade, tradicio‐nalmente encarregues de preparar o corpo do defunto, enquanto a família se ocu‐pava da organização e preparação da cerimónia fúnebre (Walter, 1994). Em mea‐dos do século XX, as decisões relativas às cerimónias  fúnebres  ficam a cargo dos familiares mais próximos do defunto, que passam a pagar a quem os execute. A sociedade de mercado, que reduz o significado da vida a um processo de acumula‐ção de bens, introduz o cadáver no seu circuito (Thomas, 2001). 

A prosperidade da indústria funerária torna‐se, a partir daqui, um importante factor no que toca ao equacionamento das questões relativas à morte contempo‐rânea. Tendo como principal objectivo o  lucro e como clientes  indivíduos poten‐cialmente fragilizados e em sofrimento, o sector da indústria funerária parece sur‐gir como um elemento sui generis no mercado. Não deixando de ter em atenção as possibilidades  inovadoras que o ramo oferece e não perdendo de vista a concor‐rência do mercado dos nossos dias  (Bradbury, 1999), o  sector  funerário oferece hoje uma multiplicidade de artigos e  serviços  fúnebres que,  surgindo  sobretudo como  estratégias  criativas  em  termos  comerciais,  se  destinam  a  assinalar  um momento limite da existência humana, um momento trágico, de absoluta ruptura para aqueles que se confrontam com o desaparecimento do outro, daquele que faz parte da construção de si. 

A  dimensão  trágica  da  existência  humana,  a  ruína  que  se  abate  sobre  o Homem no percurso da sua vida, prende‐se (ainda que de forma não consciente) com a certeza  inultrapassável do seu desaparecimento, com a  ideia  irrepresentá‐vel de um futuro pautado pela sua não existência. “A voz do mistério sussurra‐me ao ouvido: deixarás de ser!” (Unamuno, 2007: 41). Mas porque a ideia da sua não existência é  irrepresentável para o Homem  (Jankélevitch, 2003; Lévinas, 2003), a ideia da morte, a tormenta da morte, chega ao indivíduo através da morte daquele que  lhe é próximo, da morte daquele a quem o Homem se encontra emocional e profundamente  ligado4 e  cujo desaparecimento  surge  como uma  amputação da sua existência (“Eu sou eu com o outro”, diz Heiddeger)5. 

                                                              4 Esta morte é a morte a que Vladimir Jankélevitch (2003) denomina de “morte na segunda pes‐soa”, a morte que não sendo já me pertence: mais além seria a minha morte. 

5 Citado por Emmanuel Lévinas (2003: 56). 

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Ao colocar as questões que se relacionam com os procedimentos e rituais de morte nas mãos dos agentes funerários, os familiares enlutados assumem, desde logo,  o  papel  de  consumidores,  colocando‐se,  assim,  no  seio  de  uma  relação comercial.  Tal  como  todas  as outras  instâncias da  vida,  a morte  tornou‐se num objecto mercantilizavel, num negócio  com objectivos de  lucro em que a  criativi‐dade,  a  inovação,  a  imagem  e  a  satisfação  do  cliente  se  tornam  essenciais.  As necessidades  específicas  dos  enlutados,  outrora  colmatadas  pelos membros  da comunidade que  formavam  fortes  redes  sociais de apoio aos  familiares em  luto são actualmente supridas  (e  isto quando são) pelas empresas  funerárias, a  troco de pagamentos onerosos6. 

Tendo em conta que o enlutado necessita, de modo imediato, de fazer esco‐lhas que se prendem com os artefactos, procedimentos e cerimónias fúnebres, e uma vez que esta escolha decorre numa situação em que o indivíduo se encontra emocionalmente  fragilizado,  o  agente  funerário  torna‐se,  frequentemente,  num elemento  importante quer no que toca ao aconselhamento, quer no que toca ao acompanhamento dos enlutados/clientes até ao  final das cerimónias. No estudo que  desenvolveu  sobre  as  representações  da morte,  Bradbury  concluiu  que  os agentes  funerários em  Inglaterra se sentem bastante honrados com a sua profis‐são, sentido que desempenham um papel social de grande importância (Bradbury, 1999).  Associando  os  objectivos  inerentes  às  actividades mercantis  dos  dias  de hoje aos ideais de humanidade e dignidade, as empresas do sector funerário pare‐cem  formar  os  seus  agentes  para  a  prossecução  de  objectivos  comerciais, mas também para o acompanhamento dos sofredores, prestando o auxílio e os servi‐ços necessários ao bem‐estar dos sobreviventes. 

A desritualização da sociedade moderna ou ausência de ritos de forte sentido colectivo,  de  que  nos  fala Walter  (1994),  parece  não  só  abrir  espaço  à  acção  da indústria  funerária,  como  tende  a  tornar  o  terreno  propício  ao  acolhimento  de rituais e comportamentos novos, de natureza secular, em que o sentido último da acção  se  encontra bem mais  relacionado  com  as opções de  vida  (e  logo,  com  as opções  de morte)  daquele  que morre,  do  que  com  crenças  religiosas,  colectiva‐mente partilhadas, que visam assegurar uma boa‐passagem para uma vida‐além. O exponencial  aumento  do  número  de  cremações  que  se  tem  vindo  a  registar  nos últimos anos em Portugal e o posterior destino que é dado às cinzas  (deitadas ao mar, depositadas em local eleito pela família ou defunto, conservadas em casa, par‐tilhadas por vários recipientes e divididas pelos familiares mais próximos ou mesmo lançadas no espaço por um  foguetão, ao serviço de uma  funerária americana, que dispõe desse serviço para multimilionários) é demonstrativo do privilégio que é hoje concedido às convicções individuais e às capacidades económicas, edificadas ao lon‐go do percurso de uma vida que deve conhecer um final que lhe seja consonante. 

Afastado da religião e dos rituais de outrora, o Homem de hoje parece querer viver  e morrer  “à  sua maneira”.  E  se  a  tendência para  a  individuação na  forma como o homem vive a vida e “vive a morte” pode não implicar, como já referimos, a ausência de  ritos e de normas  reguladoras dos comportamentos  face à morte, 

                                                              6 Veja‐se o caso das refeições oferecidas pela família no fim das cerimónias fúnebres, que tradi‐cionalmente ficavam a cargo das mulheres da comunidade e que hoje constituem um dos ser‐viços que a empresa funerária tem para oferecer aos seus clientes. 

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poderá, contudo, levar a uma contradição entre aquilo que pode ser a experiência privada da morte e o discurso público sobre a mesma (Walter, 1994). 

O papel da indústria funerária na reconfiguração do sentido e vivências da morte 

Uma vez consumada a morte, tem início um mecanismo que torna o defunto refém da um  sistema de  regras  técnico‐burocráticas, que o  retiram  temporaria‐mente  das mãos  da  família  e  o  colocam  no  seio  de  uma  engrenagem  onde  o regard medical e a emissão de certificados adquirem especial  importância  (Mar‐tins, 1985). A burocratização e a racionalização da vida moderna, sobre cujas con‐sequências  Max  Weber  reflectiu  amplamente  e  que  acompanham  a  vida  do Homem de hoje,  impõem‐se no momento da morte. As  lógicas que  subjazem  à organização da morte  contemporânea não  se encontram  afastadas da  racionali‐dade ocidental. A  cientifização, a  tecnicização e a burocratização,  características da sociedade moderna  (Martins, 1985), encontram‐se, aliás, presentes nas ques‐tões da morte, de forma esplendorosa. 

No hiato  temporal que decorre entre o momento da morte e a entrega do corpo à  família  (exceptuando os  casos em que a morte ocorre em  casa e que o médico dispensa a autópsia), o corpo é preparado pelos agentes funerários para as cerimónias que se avizinham. Dentro do leque de opções que, a este nível, se colo‐cam  (como  são  exemplo  o  embalsamamento7  ou  a  tanatoestética8),  a  tanato‐praxis9 começa, no que aos procedimentos tanatológicos diz respeito, a ganhar um peso cada vez mais elevado (Bradbury, 1999) entre nós (o número de tanatopraxis realizadas em Portugal em 2008 foi, a título de exemplo, mais do dobro das reali‐zadas em 2007). 

Visando  evitar  o  confronto  dos  sobreviventes  com  a  degradação  corpórea daquele que morreu, com a iminência da sua decomposição física e com a fealda‐de da morte, as novas técnicas aplicadas à morte parecem contribuir para a cons‐trução dos novos “rostos da morte”. Através da aplicação de técnicas de conserva‐ção e maquilhagem, o impacto do confronto com o corpo morto – a iminência do processo de decomposição, símbolo da ruína humana –, questão central na rela‐ção do Homem com a morte  (Seale, 1998) tende, hoje, ser minimizado. A repre‐sentação  da  “boa‐morte”  passa,  assim,  pela  imagem  de  integridade  física  e  de serenidade do corpo sem vida. A tanatopraxis, técnica de conservação temporária   

                                                              7 Técnica que permite conservar o corpo morto por um longo período de tempo. 8 Consiste em melhorar o  aspecto do defunto  recorrendo  apenas  a procedimentos de ordem estética. 

9 A tanatopraxis consiste numa operação em dois tempos diferentes: em primeiro lugar, pratica‐‐se uma verdadeira limpeza dos tecidos com injecção nas artérias carótidas, axilares e femurais de um produto à base de formaldeído, o thanatyl. Este líquido substitui o sangue e acrescenta‐‐lhe  um  corante,  amaranto  ou  eosina,  para  compensar  a  descoloração  dos  tegumentos.  A injecção realiza uma re‐hidratação que confere um aspecto de tonicidade e salienta os globos oculares  encovados.  Em  seguida,  faz‐se  o  tratamento  das  cavidades, meio  particularmente séptico que é  submetido a uma verdadeira purga. As vísceras do abdómen  são puncionadas com a ajuda de um trocarte, enquanto o seu conteúdo é evacuado por aspiração. O cadáver é assim limpo de gases, de líquidos diversos, de matérias fecais. Seguidamente, injecta‐se o fluí‐do conservante: um litro de thanatyl para um adulto de setenta quilos (Thomas, 2001). 

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do cadáver, revela‐se um importante instrumento na construção desta imagem. A substituição dos fluidos corpóreos por um composto químico que adia o  início da decomposição do corpo e a aplicação de operações cosméticas visam devolver ao indivíduo morto  a  imagem  que  tinha  em  vida,  ao mesmo  tempo  que  eliminam germes  potencialmente  perigosos  para  aqueles  que  contactam  com  o  defunto durante os rituais fúnebres, o que se encontra em total consonância com o impe‐rativo higiénico da sociedade contemporânea (Bradbury, 1999). De modo análogo, a dissolução das marcas do sofrimento e de degradação  física que se encontram inscritas no  corpo do defunto,  coadunam‐se  com os  imperativos da beleza e do afastamento do sofrimento para longe do olhar, característicos dos nossos dias. O grande  intuito  da  tanatopraxis  é,  de  facto,  o  da  restauração.  O  cadáver  deve transmitir serenidade, pelo que as marcas mais desagradáveis tendem a ser mini‐mizadas  pelo  tanatopractor:  as  placas  pregaminhadas  devidas  à  desidratação,  a lividez cadavérica, o encovamento e a revulsão dos globos oculares e as petéquias (manchas escuras que aparecem cinco horas após a morte) são rapidamente tra‐tadas. O rosto é remodelado e discretamente colorido:  injecções, suturas, aplica‐ções de pequenas próteses rectificam o traço da boca ou o encovamento das pál‐pebras, enquanto uma base de maquilhagem disfarça o escurecimento provocado pelo formol (Thomas, 2001)10 Se a um primeiro nível a tanatopraxis visa a higiene e a decência, num segundo nível orienta‐se para uma finalidade estética. O objectivo é, assim, conferir ao defunto o aspecto humano que foi o seu. 

É necessário ter em atenção que a tanatopraxis constitui, por vezes, a única possibilidade de devolver o defunto aos  familiares no decorrer dos  rituais  fúne‐bres. Casos em que, outrora,  a drástica deterioração do  corpo  impossibilitava o contacto directo dos parentes e amigos com o falecido podem, através destas prá‐tica, ser recuperados, o que se revela de enorme importância para quem os restos mortais de um parente constituem o único suporte que subsiste dos sentimentos de  amor,  de  gratidão  ou  de  respeito  que  lhe  foram  dedicados.  A  exposição  do defunto por altura dos rituais fúnebres parece, pois, ser bem conseguida, se o cor‐po morto conseguir conservar a imagem que o indivíduo detinha em vida. As ques‐tões que se  relacionam com a visibilidade social da morte parecem, assim, estar relacionadas com uma certa desconstrução da própria  imagem da morte. Conse‐guindo dotar o corpo morto de uma  imagem em que a erosão física subjacente à morte  se  encontra  escondida  ou  ausente,  a  ciência  e  a  tecnologia  permitem esconder dos sobreviventes a natureza violenta e trágica do processo de decom‐posição  física que, é no  fundo, a  imagem  imediata da morte humana.  Ilusão de permanência de vida que as  tecnologias da memória conseguem. Utilizadas para captar e  reproduzir  a  imagem do  indivíduo,  as novas  tecnologias permitem que estejamos, não só perante formas de rituais inovadoras (tais como os funerais vir‐tuais que  já se praticam em algumas zonas do Brasil e os cartões de condolência virtuais), como perante novas formas dos sobreviventes relembrarem os seus mor‐tos. As  imagens de vídeo que  já  funcionam, de  forma  interactiva, nas sepulturas dos  cemitérios  japoneses,  são  disso  exemplo.  Filmes  dinâmicos  que mostram  o 

                                                              10 Vale  a pena  sublinhar que os profissionais de  tanatopraxis  franceses, mentores da  tanato‐

praxis que se pratica em Portugal, não caem nos exageros que caracterizam a actuação dos tanatopractores americanos. 

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indivíduo em vários momentos da sua vida e que, sendo de acesso  restrito  (fun‐cionam através de código), permitem que a relação dos sobreviventes com os seus mortos se faça de um modo ainda mais virtual. 

A  sensação  de  virtualidade  característica  do  desaparecimento  daquele  que existiu mas que  já não está presente é assim materializada. A  inexistência que  se mistura com uma existência virtual, aquele que não estando, está, através do som, através da imagem, perpetua a ilusão da permanência. O espaço ocupado por aque‐le que morre  reveste‐se de ausência e de vazio. Mas a  recuperação virtual da sua existência, o  retorno da  imagem, da  voz, parece dissolver, de modo quimérico,  a irreversibilidade que a morte comporta. À semelhança do que acontece com a ima‐gem da  fotografia, que é, no  fundo, a cristalização de um  fragmento da  realidade (Sontag, 2003), as  imagens que as novas  tecnologias  reproduzem do  ser ausente, como que perpetuam a sua existência no espaço‐tempo. A descoincidência espácio‐‐temporal característica da modernidade ajuda, contudo, a esbater a estranheza do fenómeno. Na verdade, a vida moderna anima‐se do “esvaziamento” do tempo que é a pré‐condição para “o esvaziamento do espaço”  (Giddens, 1996). O advento da modernidade pautou‐se, aliás, “pela promoção das relações entre os ‘outros’ ausen‐tes que, encontrando‐se  fisicamente distantes,  tornam o  lugar  cada vez mais  fan‐tasmagórico (o local é completamente penetrado e modelado por influências sociais muito  distantes)  “  (Giddens,  1996:  13).  A  unilinearidade  que  as  sociedades  pré‐‐tradicionais conheceram esbateu‐se nos tempos modernos. Muitas das interacções sociais ocorrem hoje num domínio de espaço e tempo esbatidos que parecem ser a antecâmara da virtualidade da memória associada àquele que morre. 

Mediatização e des‐sacralização da morte contemporânea 

O exponencial desenvolvimento do  conhecimento médico‐científico, a  cres‐cente tecnificação da sociedade (Martins, 1985) e as transformações operadas ao nível dos sistemas sociais e políticos da modernidade, concorreram para a edifica‐ção da  ideia de controlo sobre a vida e sobre os  fenómenos que caracterizam o homem da era moderna  (Giddens, 1996). A  racionalidade  tipicamente ocidental, tal  como Weber  a define,  concorreu,  a par da  crescente  ideia de  controlo  e de auto‐controlo (Giddens, 1996), para o afastamento das situações da vida mais sus‐ceptíveis de provocar emoções fortes e violentas (Elias, 1985). Apostada em afas‐tar‐se da dimensão do sofrimento e da tragédia, a sociedade contemporânea afas‐tou‐se  inevitavelmente da morte. Tema de natureza profundamente  inquietante para o Homem, a morte revela‐se como o tema que mais se mostra capaz de susci‐tar reacções emocionalmente fortes (Morin, 1970; Ariès, 1975; Elias, 1985), tendo‐‐se convertido no decorrer do  século XX num assunto  tabu,  sobre o qual  toda a gente evitava falar (Ariès, 1975). 

A força aniquiladora e irreversível da morte tornou‐se inconveniente. Criando a  ilusão de que se não  falar sobre ela, se não a presenciar, a afasta, o  indivíduo passou  a  evitar  o  contacto  directo  com  toda  a  realidade  tanatológica  (Thomas, 2001). Mas o indivíduo que se afasta do confronto imediato com a morte, aquele que se arreda do sofrimento próximo, é o mesmo indivíduo que passa a consumir um número crescente de imagens de tragédia, de sofrimento e de morte, que lhe chegam através dos meios de comunicação. A morte torna‐se, assim, rapidamente, 

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a imagem que dela se passa. Para quem o contacto com a morte é essencialmente virtual, a morte e a imagem da morte parecem tornar‐se, deste modo, realidades sobrepostas. Como  se entre a morte e a  representação da morte não houvesse distância, como se entre o  indivíduo e a  imagem da morte não se  interpusesse a objectiva, a  imagem  trabalhada, editada, a  imagem que  convida o espectador a assistir, confortavelmente sentado, ao espectáculo do sofrimento, ao espectáculo da morte que muitas vezes não é mais do que o convite para assistirmos ao espec‐táculo do macabro (Sontag, 2003). 

A  sobre‐exposição  a estas  imagens, o  sucessivo  confronto  com  a morte do outro distante, daquele cuja morte apenas me  lembra que aquela não é a minha morte (Morin, 1970; Jankélevitch, 2003) tem, de acordo com vários autores, gran‐de possibilidade de  se  tornar perversa. A permanente  exposição  às  imagens da morte (não à morte‐em‐si) esvaziam‐na do drama que a morte comporta. Falar da morte de  forma descuidada,  falar sem o  intento da discussão séria que pode ser feita em seu redor mas, ao invés disso, incorrer na banalização que advém da sua generalização e da sua redução a um acontecimento mundano, é o caminho para a eliminação  do  trágico  (Thomas,  2001).  A morte  longínqua,  a  que  nos  chega  de forma  des‐sacralizada  através  dos media,  a  que  Jankélévitch  (2003)  chama  de “morte na  terceira pessoa”, é a morte  longínqua, a morte espectáculo que nada transfigura no  íntimo do espectador – e, por  isso, bem diferente da vivência da morte daquele que nos é próximo (que é, aliás, a única forma de a vivermos, uma vez que somos incapazes de viver a nossa morte) e que é sentida como irreal, dis‐ruptiva e avassaladora – é a morte esvaziada de sentido. Falando dela excessiva‐mente  e  com  ligeireza, mediatizando‐a,  substituímos  o  rito  pelo  espectáculo  (a morte é, no entanto, diferente da encenação que dela se faz), o que apenas serve para encobrir a desorientação e a angústia que a morte suscita (Thomas, 2001). 

Servindo de pilar estruturante nos momentos de crise e nas situações marginais da vida social, o discurso oral e a  linguagem permitem ao  indivíduo construir uma relação  intersubjectiva  com a  realidade o que, de acordo  com Berger e  Luckman, impede que,  face a uma experiência como a da morte, o  indivíduo se encontre de forma desprotegida face à sua natureza animal (Seale, 1998). Mas perante a expe‐riência única, limite, da morte, perante a proximidade da violência aniquiladora que a morte provoca, o poder da palavra e a força estruturante do discurso, conseguem muito pouco”. Perante a prova da morte, perante a morte em si mesma, essa dor quente, viva, escaldante com que se debate e se exaspera qualquer ser, é sabido que não pode nascer nem  crescer nenhuma palavra, nenhuma  voz.  É  verdade que  se pode falar sobre, em torno, contra, mas nunca da morte” (Thomas, 2001: 36). 

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UMA SOMBRA O PRECEDE. 

LEI DA MORTE, HOSPITALIDADE E CUIDADOS DE SUPORTE1 

M. Silvério Marques   

Such  (technical)  knowledge  has  to  be  balanced with  a  detailed consideration of social and personal factors. ‘Feelings are facts in this house’ as one of the nuns of St Joseph’ s Hospice put  it, and intuitive thinking has to be added to the discursive if we are to ap‐proach the full reality of another person. 

C. Saunders, Selected Writings, 1958‐2004 

  O tópico “Saúde, complexidades e perplexidades” é uma óptima maneira de 

nos fazer pensar “sobre a morte e o morrer nas sociedades contemporâneas” sem facilidades  e  sem  fingimentos. Bem hajam, pois, por  esta oportunidade. O meu propósito neste trabalho é limitado: partilhar algumas interrogações em torno do desaparecimento  da  ordem  social  “hospitaleira”,  ou  seja,  da  invenção  do mori‐bundo anónimo. 

Antes quero deixar uma breve nota  sobre a  complexidade no horizonte da tensão  inegável entre o decadente humanismo médico‐assistencial e uma biome‐dicina “épica” e reificadora (Marques, 1999; 2006). Trata‐se de aceitar o papel da incerteza e da incógnita no mundo da vida, no mundo das escolhas e dos valores: a medicina é, desde os gregos, uma prática de afrontamento e de redução do acaso (os  gregos distinguiam,  segundo o prognóstico, doenças do  acaso  e doenças da necessidade). Daqui a  invenção do kairós, a boa ocasião, a exigência de acribia, a justa medida. Daqui a teoria da prudência, da precaução, o célebre preceito primo non nocere; muitos argumentos utilizados nos debates sobre as oposições aristoté‐licas  tyché/techné  (acaso/arte) e necessário/não necessário  foram  integrados na doutrina da Krisis, da decisão. 

No exercício da clínica  (e na vida), o  juízo é  incerto, vulnerável, entre singu‐laridade  e  complexidade.  Com  efeito,  a melhor  compreensão  da  complexidade organizada a partir da nova “iatromecânica” e da velha “iatrofilosofia” remete‐nos hoje para o “todo” biopsicossocial. O acto médico, que já foi principalmente regi‐me  (dieta) e profecia  (prognóstico), hoje é cura e cuidado, prevenção e reabilita‐

                                                              1 A investigação que serviu de base a este artigo foi realizada no âmbito do projecto “Medicina, Filosofa e Sociedade”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, a decorrer entre 2007‐2010 (CF, UL) e tendo como investigador responsável, Adelino Cardoso. 

ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 147‐165. 

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ção, tende a ser cada vez mais reparação e paliação. É, porém, sempre, encontro e relação terapêutica; mais que a doença, o seu foco é – deve ser – o doente e a sua circunstância. A boa posição é, por  isso, clínica; o termo clínica significa, etimolo‐gicamente,  à  cabeceira do doente.  Eis os  contornos desta pequena  apologia da hospitalidade em medicina, em especial do acolhimento e do reconhecimento do doente  dependente  ou  em  fim  de  vida.  Afinal  a morte  é  uma  tragédia  inter‐‐pessoal: sempre único o ser humano, nunca é só. Uma sombra o precede. 

Centralidade  

O sujeito  individual, o paciente, no seu padecer, nas suas queixas, nas suas deliberações é o  sujeito‐objecto primeiro do acto médico, o alvo das  intenções, das acções e das omissões da terapêutica curativa e da terapêutica de suporte (ou cuidados paliativos ou cuidados de suporte). Quer dizer que a  família do doente, apesar de pilar essencial (ninguém o negará), não é o centro das atenções. Esta é a posição recentemente reafirmada, contra certa ortodoxia, por Randall e Downie, na sua excelente Filosofia dos Cuidados Paliativos: “there is no special relationship, and  no  implicit  promise,  between  professionals  and  the  relatives  of  patients” (2006: 222)2. Obra original, que li com avidez, na qual, a par de muitas ideias con‐cordantes, vim a encontrar uma tese muito discutível que envolve as fundações da medicina clínica (e das profissões de saúde em geral): “one must conclude that the close personal relationship which the philosophy of palliative care advocates to the end of relieving psychosocial and spiritual distress is neither achievable nor desira‐ble.”  (Randall  e Downie, 2006: 165)3. A premissa maior, uma proposta deflacio‐nista da aliança terapêutica, não seria aceitável, suponho, pela maioria dos médi‐cos (e dos enfermeiros, etc.) que tratam doentes4. E uma tal ablação do espiritual, uma tal neutralidade do emocional – em condições normais – não parece sequer humana e clinicamente possível5; esta  impressão reforça‐se à  luz de obras como, por exemplo, a de Frankl em medicina e neuropsiquiatria – a busca incoercível do sentido e a eficácia da logoterapia –, ou a de Levinas em filosofia – o rosto e a ética da hospitalidade (Frankl, 1959; Levinas, 1961; 1974)6. De que  lugar falam aqueles especialistas? E porquê? Suponho que poderia ser uma forma hiperbólica de alerta para o abuso do poder médico7. Convém, certamente, à aceitação do risco moral, 

                                                              2 Estes especialistas já nos haviam contemplado com uma outra obra de referência, a Ética dos Cuidados Paliativos (Randall e Downie, 2002). 

3 Contra Kearney (2000, etc.). Compare‐se com Marques (1999; 2006). 4 Note‐se que Randall e Downie defendem uma ciência  clínica prudencial  (a antiga  ciência do indivíduo, como tenho sugerido, tentando pensar o acto médico, Marques, 1997, 1999). 

5 Excluo a chamada medicina de guerra, a medicina de catástrofe, e afins… 6 Compare‐se com Saunders  (2006/1981: 161, 218), onde menciona o que  ia beber em Viktor Frankl e à evocação da significação e do amor, nem que fosse em (remotas)  lembranças pés‐soais. Compare‐se ainda com Derrida (1977/2003: 76). 

7 E de rejeição do poder do anel de Giges (figura célebre tomada aqui de uma  lição de Richard Zaner proferida em 2000, na conferência anual da European Society of Philosophy of Medicine and Health Care). Notar‐se‐á que os laboratórios farmacêuticos com o financiamento de muita pseudo‐investigação e os media com a fácil projecção que não vem de graça, subverteram as legítimas ambições de alguns profissionais…  

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da finitude, da mortalidade, ou seja, à recusa da ilusão de omnisciência e de omni‐potência. Se a  ilusão fosse realizável precipitaríamos o decaimento do ontológico (determinações  meramente  negativas  da  consciência,  incluindo  da  consciência moral) sobre o ôntico, sobre o pulsional e suas representações. Coligam‐se, aqui, entre outras instâncias, o excedente, a representação e a re‐centralização da pre‐sença e da finitude (Henry, 1985: 351)8. Pelo contrário, a clínica reclama a capaci‐dade de o “terapeuta” se pôr entre parêntesis temporário para, num tempo ulte‐rior,  entrar  com  paciência,  receptividade  e  concentração  (q.b.)  em  processo transferencial. 

Seja, para documentar muito por alto estas considerações, a seguinte vinheta a propósito de um caso clínico de um doente muito grave observado no domicílio cerca de 3 meses antes de falecer: 

 FC, 68 a, Arquitecto. Mieloma Múltiplo. Início há 8 anos (anemia, dores, fractura patológica….)  • iúvo, 2 filhos. Apoio familiar (‘cuidadora principal’: a irmã) • camado. Dependente há c. 5 meses (escala de Norton # 15) • valiação. Prognóstico: doença em fase terminal. Bons cuidados básicos e bom acompanha‐mento 

• roblemas activos: mau controlo da dor; confusão e períodos de agitação psicomotora; depres‐são?… 

• evisão terapêutica: resistência à Morfina?+ Bifosfonato+ Corticóide+ Sedati‐vo+Antidepressivo… 

? Vontades expressas anteriormente pelo do doente? Medidas “agressivas”?; Onde falecer? D‐7: Sem via oral; passa a fármacos & soros por via submucosa, subcutânea e transcutânea; rea‐firmado o desejo de falecer em casa…  D‐3: exprime, em período de lucidez, desejo de morrer Re‐discutidas com a família as medidas possíveis Sedação (sedação paliativa).  D‐0: falecimento Acompanhamento da família no trabalho de luto 

  Como acompanhar e manejar, com humanidade e eficácia, o sofrimento e os 

sintomas imbricados deste doente (e os reflexos na família), a entrar em fase agó‐nica, sem pecar por excesso ou por defeito?; como cuidar do corpo, da mente e do espírito honrando quanto possível a capacitação (ou empowerment), a sua identi‐dade, a sua pessoa? Sabe‐se, da muita investigação empírica realizada, que as von‐tades  claras  do  doente  com  doença  terminal  incluem  a  resolução  dos  sintomas (dor, etc.), o não prolongamento do sofrimento e do morrer, o encerrar de ques‐tões pendentes, o reforço das ligações emocionais, a possibilidade de preparação para a morte dando sentido e completude à sua existência. Ou seja, capacitação, integridade, dignidade  (Steinhauser et al., 2000; Fuster e Doyle, 2004; Ellershaw, 2003; AAVV, 2005)9. Em contrapartida cabe aos profissionais o dever de efectua‐rem a autocrítica em equipa e a cada um de fazer o seu “exame de consciência”. 

  

                                                              8 Compare‐se com Derrida (1997/2003: 68). 9 Sobre a dignidade Chochinov (2002; 2004), é controverso e indispensável. 

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Exemplo das perguntas que cada profissional deverá efectuar em consciência e em reunião de equipa • O doente morreu acompanhado, com dignidade e em paz? Deu‐se‐lhe o tempo (por ele) pedido? • Libertou‐se o doente, adequadamente, dos tormentos sintomáticos e da dor total? • Respeitou‐se a sua vontade? • Como se sente cada membro da equipa…? (… e se a sua conduta fosse publicitada?) 

 Compreender‐se‐á,  agora, porque  falamos de  acolhimento, de  abertura, de 

auto‐afecção (Kübler‐Ross, 1969; Lo et al., 1999a; 1999b). Os laços da afectividade, segundo Michel Henry (que desenvolveu uma teoria incontornável sobre o eu, o si e os  afectos)  são dobras da  auto‐doação,  isto  é,  são prestações que  abraçam  a não‐fenomenalidade da fenomenalidade10, não sendo originariamente inconscien‐tes (Henry, 1985: 368). 

Perplexidades 

Quem tem prática de oncologia e de medicina de cuidados paliativos  (MCP) em Portugal11 sabe que ainda em 2008 cerca de metade dos doentes com doença em fase terminal eram enganados – o subterfúgio, a mentira  impiedosa e o com‐plot  familiar ainda  são  atitudes muito  comuns na nossa  cultura12. O efeito mais frequente, creio, não é a esperança, é a crueldade: condenar‐se, porventura invo‐luntariamente, o doente a atravessar na mais profunda  solidão e no mais mudo desespero as inúmeras perdas e medos do fim da vida deixando eternamente sus‐pensos desejos ou obrigações pessoais. Evidentemente que se morre sempre só. Mas espera‐se dos  familiares, dos amigos, dos próximos, na  fase de maior  sofri‐mento  e  vulnerabilidade  do  doente  terminal,  a  presença,  a  solicitude,  o  apoio, para que consiga viver até ao fim13. A vida tornou‐se, é notório, difícil e madrasta para tantos dos nossos concidadãos; mas não se pense que a divisão entre morte digna e morte indigna é uma simples questão de classe social: quem faz domicílios vê muita miséria nos ricos e grandeza nos pobres14. 

                                                              10 Ou uma pré‐fenomenalidade prática, emocional (Henry, 1985: 354). Esta hipótese não nega‐

ria, suponho, a dinâmica inconsciente reactiva do recalcamento, do esquecimento, da forclu‐são. No campo clínico é o domínio nocturno (ou solar) explicitado em cuidados paliativos em termos de dor total, pela agudização do síndrome dolorosa; é o fenómeno saturado ou inten‐sificado  e  a  sua  indizibilidade  (limitações  de  tempo  e  lugar)  Tentei  tratar  a  intensificação, seguindo Goethe, Filomena Molder e Jean‐Luc Marion, em Marques (2008a). 

11 A MCP  não  é,  entre  nós,  uma  “especialidade” mas  comporta  know‐how  diferenciado  que requer aprendizagem clínica, teórica, ética. Ver, entre muitos outros, Twycross (2001), Hanks et al. (2001), Cassel (1999), Malherbe (1999). 

12 Evidentemente  que  o  dever  de  revelação  (disclosure)  não  é  uma  enunciação mecânica  do diagnóstico e do prognóstico; cada doente tem a sua vontade de saber (ou não saber) e cada cultura os  seus  constrangimentos. É  interdito mentir. Dito  isto, há  sempre o dever de não abandonar o doente. 

13 Veja‐se Paul Ricoeur (2006) e o comovente  livro póstumo dos seus escritos e dos seus “Ais” (2008). 

14 O que não significa que não haja terríveis e inadmissíveis carências em muito lares e famílias pobres de Lisboa. Tal devia preocupar mais o poder e os serviços públicos; cabe, também, aos profissionais de saúde e suas organizações (se enxergam mais que os interesses corporativos) lutar por maior equidade. 

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Notem‐se  estes  dados  recentes  (reportam‐se  aos  doentes  oncológicos  da Unidade de Oncologia do Hospital do Espírito Santo de Évora e ao  local de faleci‐mento no ano de 2003/2004) que espelham a  transformação de uma  sociedade tradicional ainda muito solidária noutros campos, a região de Évora (Feio, 2008)15; obviamente  faltavam  (e  faltam)  recursos  e  apoios  no  domicílio  aos  doentes,  às famílias  e  prestadores  de  cuidados,  principalmente  assistência  durante  24h/dia, 365 dias/ano, de enfermagem especializada, cuidados pessoais e médicos16. 

 Local de falecimento de doentes com cancro 

Distrito de Évora, 2003/2004 N=118, em % 

Local  Residentes  Não residentes  Total 

Hospital Agudos (idem, no S. de Urgência) 

75 (13,8) 

90,6 (7,5) 

82 (11) 

Lar/U. Cuid. Continuados  3,3     

Domicílio  7,7  0  4,2 

  Ora, o médico competente (qualquer profissional de saúde), seja como actor, 

como testemunha ou como cúmplice (por exemplo na “mentira piedosa”), tem a honra  de  acompanhar  os  doentes  e  suas  famílias  e  o  privilégio  de  intervir  em situações de  grandeza  e de miséria da humanidade. Quando  enfrenta  a doença avançada e refractária e propõe tratamentos paliativos, haverá momentos em que não pode deixar de se perguntar: neste caso, o que é a boa morte?; o que significa morrer  com  dignidade?;  como  dar más  notícias?;  como  dobrar  o  cabo  da  boa esperança?; e o das  tormentas?; e como não causar  sofrimento evitável?; como respeitar as opções do doente?; e as suas derradeiras vontades?; prefere morrer em casa ou no hospital?; e o que manda o estado da arte, em termos de prescri-ções “positivas” e “negativas”?; como sopesar o acompanhamento moral e espiri-tual (coping)?; quando e como agir se o doente foi enganado e tiver expectativas erradas?  (Tomé  e Marques,  2008;  Saunders,  1978/1979;  2002;  2006;  Folscheid, 1997; Ricoeur, 2001; 2004)17 Que as coisas não são simples, e exigem uma mudan-ça de cultura  institucional,  resulta  também de um estudo exploratório que efec‐tuamos recentemente em Lisboa (com uma amostra de doentes do IPO e da equi‐pa MCP do Centro de  Saúde de Odivelas18): mostrou que os doentes  (N=58)  se 

                                                              15 Ver também a sua tese de mestrado em MCP, com a minha gratidão. 16 Isto é mais que sabido há muitos anos (visto de fora, parece que com a política de Correia de 

Campos sofreu um impulso positivo na boa direcção). Compare‐se com Billings (2002), Gomas (2001), Murphy‐Ende (2001). 

17 É claro que estas perguntas só devem  (e podem) ser postas com tempo, no tempo próprio, por médico que conhece o doente, que conquistou a sua confiança e que o não deserta no fim (por exemplo entregando‐o a outro colega ou a outra equipa); não esquecer a imensidade de questões de índole técnica afloradas atrás (ver vinheta clínica). 

18 Este estudo  foi efectuado antes da Unidade de Cuidados paliativos do Centro de Saúde de 

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sentiram,  segundo os  familiares,  “totalmente”  (50.9%) e  “parcialmente”  (33.3%) informados (informação parcial?19); quase 20% ignoravam a sua situação20. 

A grande perplexidade acerca da morte e do morrer nas sociedades contem‐porâneas mais desenvolvidas é, está à vista de todos, a seguinte: porque é que a morte se tornou, em poucas gerações, como mostrou Phillipe Ariès, tão envergo‐nhada, tão solitária, tão negociada, tão desumana, havendo, em geral, em potên‐cia, tantas condições em contrário…? A resposta não é fácil nem eu a tenho.  

Mas  é  claro,  para  todos,  que  boa MCP, Unidades  de  Suporte  hospitalar  e apoio domiciliário – qualificados e certificados por entidades independentes e idó‐neas – constituem a segunda condição para um ocaso da vida digno; a primeira é enfermagem especializada disseminada pelo país em articulação com os Cuidados Primários. Porém há quem se interrogue: não poderá o negócio da doença prolon‐gada, a sua monopolização e hiper‐medicalização, não apenas subverter o princí‐pio  da  autonomia,  como  também  alimentar  a  reificação  e  agravar  a  alienação humanas21?  Robert W.  Higgins,  psicanalista  com  larga  experiência  de  acompa‐nhamento de doentes  em  fim de  vida,  tem  vindo  a  avisar‐nos,  com  efeito, que assistimos à invenção de uma nova casta de intocáveis, os moribundos. Para ele, a sociedade ocidental quer é arrumar os “trapos” velhos e os doentes “terminais” a um  canto…”tout  se  passe  comme  si  nôtre  societé  instaurait  une  ‘symbolization’ […], une ‘représentation’ et une ‘ritualization’ de la mort, qui reposent essentielle‐ment  sur  le  ‘mourrant’  […]  avec  la  prétention  illusoire  de  nous  délivrer  et  de  la mort, et de ce que nous devons aux morts””  (Higgins, 2003a: 28)..  Haverá algum exa‐gero, mas…  Provavelmente, a melhor  resposta da sociedade passa pela  redesco‐berta da hospitalidade: a definição da boa morte é absolutamente  íntima; a vida digna até ao fim não é fácil e, constitui um teste ao respeito pelos direitos huma‐nos pela comunidade de cidadãos que se… respeitam. Para os profissionais não é novidade: a vida é breve, a arte longa, a ocasião fugaz, a experiência enganadora, o juízo difícil… 

  

                                                                                                                                                        Odivelas  ter sido abandonada pelas suas chefias  (a quem aliás  reiteramos o agradecimento pela disponibilidade). 

19 Que a disclosure não é uma questão assim tão simples pode ver‐se nos trabalhos de Lamon e Christakis  (2003). Quanto a nós portugueses, não esqueçamos que ainda  se vive  imerso na cultura desumana (política, social, jurídica, médica, etc.) do talvez, do faz de conta, do escre‐ver Direito (não direito) por linhas tortas.  

20 Marques,  Bacelar‐Nicolau  et  al.  (2008)  (Humanização  dos  cuidados  paliativos  em  contexto domiciliário: interpretação clínica e conclusões principais de um inquérito com o questionário SERVQUAL‐M, projecto financiado pela FCG ao Serviço de Apoio Domiciliários do IPO, Lisboa). Repare‐se que neste estudo empírico  retrospectivo, uma percentagem elevada de doentes, segundo  a  opinião  retrospectiva  dos  cuidadores,  faleceu  com  sintomatologia  agravada, nomeadamente  dores  (60%),  obstipação  (67%)  e  depressão/ansiedade  (43%). Mas  dos  58 familiares/doentes que responderam ao questionário apenas uma minoria estava insatisfeita (uma  classe  de  5  indivíduos mostra‐se  francamente  insatisfeita);  uma  classe  de  15  estava moderadamente satisfeita, havendo 38  indivíduos  fortemente satisfeitos com a qualidade e prontidão dos  serviços prestados. Estes  resultados  fazem problema e movem‐nos a alargar este trabalho. 

21 Henk  ten Have  (2000), examinando o caso holandês, explicou‐nos, há uns anos, alguns dos danos colaterais e paradoxais causados ao princípio da autonomia. 

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Uma Sombra o Precede  153 

 Oblativo/ablativo 

O acto médico é um facto social total. O significado preciso, operatório, das categorias estruturantes (do conhecimento) da biologia (não da vida), tem vindo a ser cada vez mais determinado e contextualizado, a saber: parte/todo,  indivíduo, escala,  propriedade  emergente,  autopoiése,  diferenciação,  morfogénese,  rede, integração,  atractor,  trajectória,  história,  população,  dinâmica  social,  evolução, etc. Encobre‐se, aqui, na pregnância destes conceitos, o abismo que a ciência abriu entre naturalismo e  facto experimental, por um  lado e  sentido e  fenomenologia natural,  por  outro.  Comparem‐se  com,  por  exemplo,  estas  duas  categorias  que atravessam assimétrica e ortogonalmente todos os domínios e escalas do campo médico (em especial da enfermagem): a oblação e a ablação. Como o todo e a par‐te e o uno e o múltiplo, são categorias que conformam os gestos comuns da clínica (Marques, 2008c). Ablação, não a cirúrgica22, mas a da fala, do tempo, da solicitu‐de, da  relação; por exemplo, a  supressão da autonomia ou a exclusão do nosso convívio do idoso, do doente “pesado”, do moribundo: a sua morte social e legal, como, a dos  leprosos até há pouco, é exarada antes do  seu passamento. Não é evidente que, quando o doente quer mandar na sua vida e conhecer a sua situação se deve facultar toda a informação solicitada e suscitar a possibilidade de delibera‐ções antecipadas  (tipo  living will)?23; não  seriam estruturantes para a moral das famílias e das comunidades, permitindo evitar e resolver bem tantos dilemas dia‐bólicos? 

Falhamos por recusar ao doente o tempo, por mentir, por esquecer a subjec‐tividade, por capturar o espiritual, por ignorar o cultural, e, assim, por não abolir, quanto possível, a dor e o sofrimento, as dele e as dos seus. Higgins (2003), como disse,  alertou  para  a  indução  obscena  de  vergonha  no  doente moribundo  pela comunidade, que nele descarrega os seus  fantasmas e  terrores  (um processo de vitimização expiatória)24. É a destruição da confiança básica, da esperança, do sen‐tido, tantas vezes sob o pálio de panaceias eficazes. Enfim, o psicanalista protesta contra a evacuação da companhia, da escuta, da voz, da fala intermediária (como diz  François  Flahault25). Numa palavra,  falta hospitalidade26:  “Faute d’une méta‐phore ou d’une fiction qui seules permetent d’entrer en relation,  le mourant reste cet être rendu diaphane ou totalement opaque, par cette anticipation ‘réaliste’ de sa mort que rien ne vient signifier, rappeler comme étant aussi et d’abord  ‘notre   

                                                              22 Uma outra ablação relevante, agora no contexto da história da ciência, é a metodologia sub‐

tractiva em medicina experimental segundo Claude Bernard: sublata causa, tollitur efectus. 23 Sei que a questão das deliberações antecipadas é complexa e pode gerar ainda mais perplexi‐

dade;  eis  algumas  razões  comuns  de  hesitação:  stress  e  incapacidade  de  decidir  (Larson, 1993), esperança e desespero (Kodish, Post, 1995, Kissane, 2004), mudança de opinião e revi‐são de crenças (Fagerlin, 2004). 

24 A certo passo, o autor, reportando‐se explicitamente à obra de René Girard, afirma mesmo: “qui délegue aux mourants émissaires nos dificultés avec la mort” (Higgins, 2003: 153). 

25 Para a inscrição da subjectividade no corpo, entre outros, ver Flahault (1978/1979; 2002; 2008). 26 E, acrescente‐se,  faltam, para os profissionais, espaços de  reflexão ditos “grupos de  fala” e 

apoio profissional de psiquiatria de ligação (como se diz na gíria). 

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mort’,  notre  ‘en  commum’.”  (Higgins,  2003b:  151)27.  Ao morrente  abandonado uma sombra o engole. 

Por outro  lado,  embora o pluralismo de  valores  e práticas  seja desejável  e inevitável nas sociedades multiculturais, verifica‐se um agravamento da mercado‐rização, reificação, fragmentação e tecnicização dos sentires e dos saberes envol‐vidos (médicos, etc.). A par da liberdade e a capacitação do doente, tem estado na ordem do dia na medicina e na bioética Ocidentais a preocupação auto‐reflexiva por  parte  de  uns  quantos:  cresce,  justamente,  a  crítica  aberta,  sem  agendas escondidas e sem disfarces, com a assunção plena das  inquietações pessoais nos planos técnico, moral e filosófico28. Eu, pelo meu lado, aprendi (e julgo que todos o vemos),  que  a  determinação  prática  do  bem  não  é  aproblemática,  algorítmica, dogmática, nem sequer democrática; pelo contrário, é prenhe de aporias e exige o esforço  persistente,  situado,  casuístico,  intersubjectivo,  em‐carne‐e‐osso…  Pare‐ceu‐me,  há  tempos,  que  era  conveniente  distinguir  entre  três  regimes  de  bem moral: (i) bem instrumental, isto é a correcção, o bem como meio, ou aptidão, etc., para um  fim  (a beleza, a perfeição de uma  tela de Gauguin),  (ii) bem adjectivo, baseado em valores  internos  (o pintor bom, a bondade na e da actividade expe‐riente; daqui a  inevitável  tomada de  responsabilidade pelos actos próprios –  tão raro nas culturas complacentes – o spondaios), e (iii) bem substantivo, concreto ou real, o esforço oblativo, autêntico, do indivíduo para (na definição de Paul Ricoeur) bem viver com e para o Outro em instituições justas (uma grosseira analogia sensí‐vel: Gauguin pintor versus Gauguin pai de família). 

Hospitalidade 

Para além das  indicações de Higgins, uma outra causa estrutural das nossas dificuldades, independentemente de sermos profissionais ou leigos, e que foi vivi‐da na carne por Fernando Gil, está expressa num texto impressionante que escre‐veu no leito de um hospital público, um ano antes de falecer. Concentro‐me numa configuração, o testemunho austero de um tipo de anonimato: 

Paradoxalmente  a mesma  impessoalidade  anónima  que  em  tese  geral compromete a aplicabilidade da lei moral a acções determinadas […] é o que permite considerar o doente hospitalizado como um ‘um fim em si’. […] o princípio de  funcionamento do hospital público é o  ‘véu da  igno‐rância’ […]. O anonimato assegura a igualdade de cuidados, entre outras coisas porque curar exige a cooperação do doente. De começo simples possibilidade, a fraternidade ganha corpo. (Gil, 2005b) 

 

                                                              27 E Higgins remete para o Homo Sacer, o que é demais e de menos, depois da Vida Nua de G. 

Agamben (1998/1995). O mesmo é,  infelizmente, aplicável aos  idosos solitários, carenciados ou dependentes (Trotter, 2000). 

28 “Sem agendas subreptícias”: veja‐se a lisura e positividade argumentativa na bela obra assu‐midamente confessional de Malherbe (1990). Destaco entre nós, pela sua relevância e eleva‐ção Jorge Melo e J. M. Pereira de Almeida (1998; 2002), João Lobo Antunes e Walter Osswald, sem esquecer Fernando Gil. A noção de medicina reflexiva está discutida em Epstein (2008) e Williams e Frankel (2008). 

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Conjecturo que, através de uma espécie de analogia de atribuição, o anoni‐mato que se vê ser ambivalente, se transforma e bifurca em  inospitalidade (diga‐mos, no plano horizontal; diacronia) e, dialecticamente, em filia (no plano vertical; sincronia). A ablação do nome, o anúncio da filia, interpela‐nos a todos. 

A abolição do nome, a perda da individualidade ou a reificação da pessoa, lida superficialmente como impessoalidade, pode (em primeira aproximação) ser clas‐sificada, segundo o escopo, em (i)  impessoalidade‐em‐si (de coisa), (ii) para‐si (de servo),  (iii) para outrem  (de ermita: Robinson Crusoé), para  tal  comunidade  (do pária, de género, de minoria, do inimigo), e (iv) para a família nuclear (por inveja, do  doente,  de moribundo,  etc.)29.  A  analogia  de  atribuição  percebe‐se,  talvez, melhor na clínica, com o profissional de saúde que exerce uma “medicina defen‐siva” e que se assume, exclusivamente, como técnico ou cientista amoral30. Direi, para  abreviar  argumentos,  que  resulta  da  instalação  narcísica  do  profissional (quantas  vezes o mais  responsável) no  anonimato da  “massa”, do número e da contabilidade de doentes, sobretudo no sector hospitalar e nas clínicas privadas. Esta  acídia  vai‐os  arrastando  para  a  “deformação  profissional”,  guardando,  da magestas,  apenas  o  verniz  e  atingindo  o  ponto  em  que,  sem  se  darem  conta, caiem na  (auto‐)reificação, na  indiferença  e,  até, porventura, na perda das pró‐prias emoções31; uma vez aí, anedónicos,  já violaram a promessa de  lealdade,  já abandonaram  o  doente  (são  formas  lamentáveis  e  relativamente  frequentes  de medicina fria e inóspita). Uma indicação indirecta de que este processo é corrente e pode ser insidioso são as tentativas de captura da relação de cuidado por mais e mais métricas e medidas burocráticas, a bem das próprias ciências clínicas e, até, para a humanização da medicina e glória da enfermagem! Uma destas putativas quantificações, muito controversa desde o início, sobretudo em contexto de MCP, é a da Qualidade de Vida (Nussbaum e Sen, 2003); Randall e Downie opõem‐se‐lhe vivamente32. Aqui o anonimato  leva a reificação, não reconhecimento,  inospitali‐dade (hostilidade) e ablação da alteridade, a recordar, assustadoramente, o Homo Sacer e A Vida Nua de Giorgio Agamben (1998/1995). 

O que é concordante com a outra deriva (holística ou totalitária?) da MCP, a medicalização das emoções humanas normais e a pulsão de  interferir com  inten‐sidade na vida moral e espiritual (existencial) do doente que aqueles especialistas também contestam33: “intrusive questioning to identify the patient’s psychological 

                                                              29 Eu sei que esta é uma grande simplificação e uma definição meramente provisória (Derrida, 

1977/2003: 39, 45; Flahault, 2002; 2007). 30 Nesta opção por uma medicina defensiva podemos incluir a postura legítima de economia de 

sofrimento (problemas de stress, coping e burnout). 31 Temos  visto  o  resultado  do  pensamento  operacional  e  de  verdadeira  alexitimia  em  soma‐

tizações… 32 Randall e Downie  (2006: 265, 297)  contestam pois, que a Qualidade de Vida em MCP  seja 

quantificável: este é, aliás, um conceito qualitativo! (Marques, 1999). Chegam a propor que, em Medicina de Cuidados Paliativos se abandone o  termo qualidade de vida, mas não essa “filosofia” (Randall e Downie, 2006: 34, 49)! Consequentemente, recusam (2006: 239) o fun‐damentalismo dos profissionais que se propõem criar escalas para questões do foro íntimo e espiritual e, ainda por cima, aplicá‐las a doentes graves ou moribundos, os mais vulneráveis e indefesos. 

33 Segundo Randall e Downie, “normal human emotions and  reactions  should not be medical‐ized” (2006: 163). 

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and spiritual concerns so  that an  ‘intervention’ can be applied,  is very difficult  to justify unless there  is strong evidence that the  ‘intervention’  is actually effective.” (Randall e Downie, 2006: 162)34. Esta crítica, esta recusa, supõe, creio, a fixação do lugar da ética aquém da utilidade e além da necessidade, antes da técnica e fora das técnicas. Mas se não medicalizamos – se não avaliamos – as emoções huma‐nas (normais/anormais), quid da normal sensibilidade, da empatia, do acompanha‐mento, da partilha, da hospitalidade? Como diagnosticar o sofrimento, o medo, a angústia, o desespero, a depressão?35 Esta análise  resulta,  também, creio, numa crítica da coisificação e da filosofia utilitarista implícita que almeja fixar, normativa e paternalisticamente, o que é bom para  cada doente,  ignorando problemas da decisão  como o do  “frame”, da  intransitividade das preferências,  etc.  (que  aqui não posso desenvolver). 

Dir‐se‐á, portanto, encurtando alguns argumentos, cooptando uma  ideia de Paul Ricoeur, que só uma analogia da acção pode salvar a analogia do sensível36: é o subir pela escada da razão analógica depois jogada fora, a resolução da suspen‐são fenomenológica e a posição de contentor que vai permitir a elevação do acto médico a acto moral. Aqui, a moral, a moral clínica, nasce de facto e de jure da e na relação com o doente que sofre e interpela37. Na verdade, a clínica, da anamne‐se  ao  diagnóstico  até  à  paliação,  é  inseparável  do  valor:  está  impregnada  pela escolha. E quem escolhe, escolhe‐se. A experiência clínica, sempre intersubjectiva, mesmo se pseudo‐amoral, é moral pela negativa e, mesmo na execução da técnica mais diferenciada,  “tem em  comum  com a da esfinge o  facto de  se dirigir a um homem a andar que não tem outro lugar próprio para além do caminho em direc‐ção a um destino que lhe é desconhecido, mas que, como a sua sombra, o precede” (Dufourmantelle,  introdução a Derrida, 2003/1997: 17). Esta sombra vem da fini‐tude,  vem  do  acto  concusso.  A mudança mais  impressionante  (para  um  clínico 

                                                              34 Esta posição conforta‐me: embora delicadamente se possa abordar a questão no momento 

próprio para o doente, sempre achei que o profissional de saúde, enquanto tal, não se deve imiscuir nas opções metafísicas, existenciais ou  religiosas do doente,  a não  ser que este o peça (ou o seu porta‐voz) e, então, deve limitar‐se a seguir as práticas correntes da religião do doente. 

35 Sem descrer da realidade da doença, recordemos (i) que a fronteira normal/patológico é con‐vencional e contextual  (Canguilhem),  (ii) a  importante  teoria de Balint do médico como  fár‐maco… e (iii) a obra de Bion da relação terapêutica contentor/contido (Cassel, 1999; Kissane, 2004; Marques, 2002; 2006; 2008). 

36 Sobre a analogia e a ideia de clínica ver Marques (1999: 73) – no plano do corpo e da doença: “Afinidade  generativa,  polaridade,  intensificação  complicação,  são  coordenadas  que,  no âmbito de uma teria clínica da morfologia, merecem, suponho, ser discutidas”; e no plano da relação, “Uma boa história clínica […] envolve empatia (tema que não examino aqui), o diá‐logo, prática de  inter‐locução e algum domínio técnico. Destaco a técnica dita das respostas abertas, […] das  locuções neutras, da repetição verbal, das perguntas abertas, da paráfrase. Requer  ainda  o manejo  das  emoções,  praesentia,  doação,  consiliência,  autenticidade,  con‐fiança: as ajudas à comunicação são a passividade  (…receptiva), a sintonia, a nomeação da emoção, o assentimento ou  legitimação, o  respeito, o  suporte  emocional”  (Marques, 1999: 330)  –  figurei  nessa  obra  a  analogia  da  clínica  como  analogia metafísica  ou  de  atribuição, como um espelho declinado. 

37 Neste texto, e em geral em medicina, ética clínica e bioética (tal como as entendo), moral e ética são sinónimos e, genericamente, definidas (seguindo Ricoeur) como a procura de bem viver com e para o outro, numa sociedade  justa. A  interpelação fundacional de outrem tem sido tematizada por Jean‐Luc Marion. 

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como eu) que conduziu a este lugar deserto e inabitável, talvez tenha sido a captu‐ra e desvirtuação sub‐reptícia da alma, da ideologia, da linguagem e da terminolo‐gia  tradicional  da Medicina  e  da  Enfermagem  (clientes  e  não  doentes,  produ‐ção/produto e não assistência/tratamento/cura…, etc.)38. 

 “… da lei da morte” 

Ter‐se‐á visto que uma certa magestas exprimia a inteligência, a sensibilidade, a paciência, a segurança, a auto‐confiança, a reserva dos grandes clínicos: são atribu‐tos de um habitus, plasmado na fisionomia, construído, merecido, em dias e noites passados à  cabeceira dos doentes,  lutando  contra a  lei da morte. Era o  resultado natural de uma gesta de lutas, de ajudas, de vínculos clínicos: vidas talhadas com a principal ferramenta terapêutica da Grécia Antiga, a escuta, a palavra (Lain Entralgo mostrou‐o há muitos anos). Como diz o psicanalista André Green (2002), a relação terapêutica consiste em volver a si por via da ida ao doente39, em se sentir por via do dizer de outrem, consiste no idioma do sofrimento, da queixa, do corpo, como Hipó‐crates disse lapidarmente em Lugares no Homem 2,1: “A natureza (physis) do corpo (soma) é a fundação (arché) do discurso (logos) da medicina”. 

Recebemos  (ainda  hoje)  cada  doente,  cada  novo  caso,  cumprindo  um  rito imemorial e uma anamnese que, desde os arcanos da medicina hipocrática, institui um  espaço  narrativo  entre  clínico  e  doente.  É  a  condição  de  reconhecimento (aknowledgment) do doente. Devemos fazer a nossa apresentação (se convém) no início da entrevista – eu sou fulano… – e solicitar ao doente que diga o nome, se identifique…, ao que vem, etc.40 São  também  regras de simples humanidade, de acesso ao doente, reiteradas no encontro clínico: não se compreende que possam parecer supérfluas e dispensáveis na paranóia de tudo temporizar e contabilizar41. É por isso que, de muitos lados, profissionais de saúde, eticistas, filósofos, sociólo‐gos, religiosos, simples  leigos, vêm  insistindo na necessidade de regressar a algu‐mas das condições deontológicas do exercício profissional (com doentes em fim de vida e não só) (AAVV, 2005; Callahan, 1997): 

– revalorizar a confiança e a esperança, no contexto das diferentes trajectó‐rias da doença (equivale ao retorno à prevalência da clínica); 

– cultivar paciência para com o Real: dar tempo e dar espaço condignos, isto é, dar hospitalidade ao moribundo; 

                                                              38 “Economicismo”, aqui, para simplificar muito, não quer excluir a  responsabilidade da medi‐

cina  (e  enfermagem)  não  a  liberal, mas  a  comercial,  da  dicotomia  consigo mesmo  (pluriem‐prego, acumulações público‐privado,  conflitos de  interesse); aquela mutação de  terminologia terá sido depois adoptada, se não erro, compreensivelmente, por técnicos e administrativos e por algumas escolas de enfermagem e grupos de generalistas, por razões diversas, desde as cor‐porativas  (e não principiais) às pragmáticas  (por exemplo, o acompanhamento de muitas pes‐soas sãs na medicina familiar, na educação sanitária, em cuidados básicos e preventivos, etc.). 

39 Citando o autor: “accomplir le retour sur soi au moyen du détour par l’autre” (Green, 2002: 59). 40 Noutros  trabalhos  explorei  a  ideia  que  as  questões  clínicas  do  tipo  “De  que  se  queixa?”, 

“Como se sente?; Dói?; Está melhor?” exige a atenção à Vida ou ao indivíduo, implica um fun‐do de com‐passibilidade e, ainda, engendra uma métrica interna primordial co‐determinante da justeza, da justa medida (Marques, 2002, 2007). 

41 Nada a obstar a estudos do trabalho e a uma filosofia do trabalho racionalista exigente… 

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– garantir o não‐anonimato e construir consensos para se poder  respeitar a pluralidade das situações individuais e dos sistemas de crença; 

– pensar o morrer: acontecimento interpessoal (e não  individual) que requer uma reforma do ethos, das  instituições e… onde e quando houver Justiça, da  legislação  (Cadoré,  2001a;  2001b;  sobre  a  esperança,  Marcel,  1998; Kadish e Post, 1985; Zaner, 2000). 

 Nas  controvérsias  públicas  em  torno  da  disclosure,  do  respeito,  da  auto‐

nomia, da sedação paliativa e terminal, do suicídio assistido, da eutanásia, temos ouvido nesta Cidade as mais desvairadas vozes. As mais autoritárias e dogmáticas, por vezes de médicos, disfarçam mal as comuns preplexidades, angústias e impas‐ses  da  condição  humana  e  exibem  frequentemente  uma míope  e  brutal  inso‐lência42. Arrisco‐me a  sugerir um motivo pelo qual esse  “especialista”  finge com tanta  facilidade:  na  realidade,  no  seu  cerne,  na  sua  carne,  “il  n’a  pas  vu  assez mourrir,  c’est  pourquoi  il  parle  au  non  d’une  vérité”43. Não  viu  que  as  decisões morais são sempre escolhas singulares entre Eu e Tu, que em medicina, em saúde, Tu não requer fundação, mas sentir (e sentir‐se)44. 

Em questão está o saber ver, o querer ver. Houve quem nos tenha ensinado. Um paciente dizia à sua médica: “I thought it so strange. Nobody wants to look at me. – Will you turn me out if I can’t go better?” (Saunders, 2006: 79)45. Outra pa‐

                                                              42 Vemo‐lo em todas as seitas e opiniões. 43 Na  fala do Dr. Rieux: “Paneloux est un homme d’études.  Il n’a pas vu assez mourrir et c’est 

pourquoi  il parle au nom d’une vérité. Mais  le moindre prêtre de campagne qui administres ses paroissiens et qui a entendu la respiration d’un mourrant pense comme moi. Il soignerait la misère avant de vouloir en démontrer l’excellence. “ (Camus, 1963: 102). É, para mim, evi‐dente, que algo  como a dimensão do  sagrado, do numinoso, do enorme  comparece nesta mensagem, não no valor semântico  facial mas nos actos concretos dos Rieux – enfermeiros ou médicos – que, felizmente, ainda vão existindo. Veja‐se, além disso, o pequeno debate em torno da eutanásia e de decisões médicas de fim de vida, recentemente (2008), no Público. 

44 Acerca da legislação, mais algumas observações. O problema do desejo colectivo e individual de libertação da lei da morte (a morte medicamente assistida, MMA, dizem os jornais) não é homólogo ao da IVG, não tem a mesma significação, nem história, nem acuidade, nem disse‐minação,  nem  transparência  (seja‐se  pró  ou  contra).  Contesto  que  seja  ética,  política  e socialmente bom, no nosso país, submeter a MMA, agora, a um debate público parlamentar ou plebiscitário. Falta muita coisa. Em primeiro lugar formação científica e reflexão colectiva nas  áreas  respectivas.  Faltam  ideias  puras,  claras  e  distintas  dos  profissionais.  Falta  com‐preensão pública do que é eutanásia, suicídio assistido, sedação paliativa e sedação terminal, encarniçamento terapêutico, ordem de não reanimação, etc. Falta vontade e capacidade polí‐tica de desenvolver e generalizar a MCP. Mais, leis úteis e provavelmente necessárias, como a discutida  pela Ordem  dos Médicos  francesa  há meia  dúzia  de  anos,  dita  de  “Excepção  de Eutanásia”  (CCNE, 2000),  requerem,  creio,  comunidades  cultas em Direitos Humanos e em Direitos  de  Saúde,  dotadas  de  um  Aparelho  Judicial  capaz,  oportuno,  competente,  eficaz, isento, fiável e prestigiado. Falta‐nos, também, auto‐regulação profissional séria, transparen‐te e escrutinizável (para dar um exemplo, foi público e notório que não há ainda procedimen‐tos  deontológicos  e  mecanismos  institucionais  transparentes  de  colheita  e  atribuição  de órgãos para transplante, etc., nem para apropriação de mais‐valias, honorários, etc – afinal os órgãos colhidos ou doados são um bem comum). Requerer‐se‐ia, ainda, uma “regressão” no ethos  profissional.  E,  por  fim,  eu  não  o  quereria  para mim, médico  (por  uma  espécie  de escrúpulo, de sentimento moral), nem para os meus filhos e netos, nem para o meu médico. Sinto, porém, que as coisas não podem ficar como estão; não haverá outro caminho? Para um pequeno diálogo, apenas sobre a eutanásia, sem concessões, ver Jonas e Dönhoff (1995). 

45 Podia também referir o  Ivan  Illich de Tolstoi, o Diário XII de Torga ou A Morte de Virgílio de Broch. 

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ciente, antes de  fazer morfina, queixa‐se das dores sem nome – repare‐se que é uma descrição densa e aguda do moi‐peau de Didier Anzieu: “The pain was so bad that if anyone came into the room, I would say: ‘Don’t touch me, don’t come near me’  […]  It  felt  as  if  something  had  come  between me  and  the  pain”  (Saunders, 2006: 280). E depois de tratada com morfina: “‘She was alert and cheerful […] and maintaining her composture until her death some weeks later’” (Saunders, 2006). 

Cumpre‐me  agora  explicar,  sucinta  e  esquematicamente, por que  é que  as decisões médicas do  fim da vida dão a ver melhor a  reificação e/ou a auto‐reifi‐cação, que são graves em si, e, na clínica, gravíssimas: estas, não apenas, impedem o reconhecimento (Ricoeur, 2004; Honneth, 2007) como a boa prática, a acribia, a justeza. E expulsam a libertação estóica da lei da morte. 

Boa prática  

Ele é um doente em estado grave que nos pergunta com frontalidade: “Quan‐to tempo de vida me sobra…?”, ou promete “Eu vou lutar!”… Para lá da coragem e da  determinação,  admiramos  a  sua  vontade.  Desta,  disse Michel  Henry  “C’est l’apparaître sui generis de la volonté que fait d’elle et peut seule faire d’elle la réa‐lité” (1985: 167); e “Il existe une réalité en soi, totalement étrangère au monde de la représentation […] cette réalité en soi nous est accessible […] c’est la volonté; le mode selon laquelle elle se donne à nous c’est notre corps” (1985: 163)46. Faculta a inscrição no corpo, mediada pela fala intermediária, que se articula com o lugar do Sujeito, o nome próprio, a autoridade de primeira pessoa – sujeito que nasce hós‐pede e refém, como disse Levinas (1961; 1974) – e, por isso, com a sua autonomia. A seguinte interrogação de Fernando Gil (2005b), no artigo antes referido, atinge, certeira, o alvo: “Como fazer sentido de coisas tão díspares – a burocracia hospita‐lar, uma mesma imagem ‘natural’ que se perpetua através dos séculos, a medicina e os seus limites, a morte e o arcaísmo do pranto colectivo, o amor e a piedade?”. Uma  sombra  nos  precede  e,  ao  nascer mais  um  dia,  deparamo‐nos  espantados com a Natureza e, perplexos, repetimos a história. Como tematizá‐los e obter uma orientação satisfatória para a praxis? Os sinais de fogo do Sujeito cegam, o halo de luz subjectiva torna‐o  impenetrável, porque, como Fernando Gil afirmava em Eu: “parece haver uma descontinuidade entre o sentimento de unidade da consciência […] e a dificuldade […] de determinar um pólo estável de tal unidade” (1998: 227). 

São descrições  finais das perplexidades, das aporias e dos desafios, amplifi‐cadas e complicadas pela vivência contemporânea da vulnerabilidade,  (do acom‐panhamento) da doença incurável, da paliação, da perda e do luto na nossa socie‐dade47. Continuo a pensar que, para estas situações – dada a óbvia incomensura‐bilidade das perdas, singulares e irreparáveis –, o bom ponto de partida (mas não de chegada!) é a  intuição pré‐racional, emocional, de que o homem é medida de 

                                                              46 A demonstração é demasiado longa e passa pela teoria da passibilidade originária e da auto‐

‐afecção;  fica aqui uma  indicação: “le monde de  la veille est homogène au  rêve et compose avec ‘lui les feullets d’un même livre’” (Henry, 1985: 162). 

47 Como fazê‐lo com profissionais que agora aprendem medicina em e‐sebentas e em v‐doentes (v‐virtuais, meios excelentes apenas para algumas aquisições e aprendizagens) com docentes que fraco exemplo dão e dificilmente são modelo na Faculdade ou no Hospital? – isto, mutatis mutandis, aplica‐se a todas as profissões de saúde essencialmente clínicas. 

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todas  as  coisas:  afinal  a  inteligibilidade  de  noções  como  sofrimento,  dor,  espe‐rança,  identidade,  individuação, santidade de vida, qualidade de vida  implicam o primado da relação intersubjectiva, a capacidade de auto‐afecção e, sobretudo, de auto‐calibração, de cada indivíduo: outra designação do homo mensura48. Assumo que esta é uma verdade médica evidente, dita do ser/estar cujo sentido da exis‐tência é o sentido da co‐existência, Mitsein. Daquele a quem pergunto, tocado ori‐ginariamente  por  um  não  sei  quê  que  me  chama:  “– Diz‐me,  o  que  te  ator‐menta?”49;  “– Sentes‐te pior/sentes‐te melhor hoje?”, etc. São expressões  funda‐cionais oblativas que lançam a ponte entre a acção contentora do clínico e o hós‐pede doente, por  isso, aí, então, o  seu doente e não um Outro. Nos  celebrados Seminários de Zollicon, Heidegger assinalou‐as como estar‐lançado, sin‐tonia, tota‐lidade,  compreensão  (lição  de  1.3.1966,  1987/2001:  139).Então,  se  quisermos resumir esta proposta muito esquematicamente com um compromisso acerca das mediações (os lugares, os baptistérios, os discursos) a que a Medicina ain‐da poderia recorrer, teríamos as seguintes analogias “baptistas”: 

 Baptismos e Baptistérios: um quadro analítico

Baptistérios  Comentários 

Eu‐Tu   Conservação não fusional da vida, do corpo, do desejo, da digni‐dade, da diferença… Hospitalidade, intersubjectividade; interpessoalidade da morte… 

Nós   Nome, família, cultura, comunidade;Ideal do Eu…; Sagrado, profano, secular… 

Próprio  Sentir‐se; devir‐humano e identidade; unicidade;Narcisismo de vida e narcisismo de morte… 

 O que  remete, evidentemente, para a subjectivização e para estruturação e 

desestruturação  clínica  da  intersubjectividade,  complemento  necessário  mas ausente deste estudo – é a irredutível complexidade, incompletude e incerteza na fixação da justa medida, mesmo com o mais escrupuloso cumprimento das regras da arte. 

Pintei com grossas pincelados o frágil regime hospitaleiro que a medicina foi, pode e deve  ser, mormente quando  se atinge a hora  incerta da mors certa  (Gil, 2005). No campo da saúde não há boa e inteligente e competente prática sem ava‐liação dos resultados e sem verdadeira investigação (ideias, métodos qualitativos e estatísticos)50. Além da hermenêutica e da etnometodologia, a narrativa tem esta‐

                                                              48 Eu sei que decorreria daqui uma postura pró suicídio e, com alguma  torsão, pró eutanásia, 

etc. Não abordo o suicídio e o suicídio assistido aqui; fi‐lo em Marques (2006) e noutros tex‐tos  e  lugares, designadamente em  várias discussões  académicas  e públicas  a propósito do magnífico e inteligente filme Mar Adentro. Ver também Améry (1996). Quanto ao resto só me cabe assumir e reafirmar a contradição (tenho procurado estudar as fundações do acto médi‐co que me/nos orientem nas navegações por estas águas turvas e profundas (Marques, 2006; 2008c). Fica também à vista com que reservas aceito o homo mensura. 

49 Danièle Cohn, conferência proferida no Porto 2001, citando, salvo erro, Hannah Arendt. 50 E, indiscutivelmente, em oncologia, boa parte dessas investigações inserem‐se no movimento 

dito Medicina Baseada na Prova (EBM). Ver Qaseem et al. (2008), AAVV (1995). 

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do em destaque na investigação qualitativa em medicina e enfermagem51. Procura responder a questões como as seguintes: como é o discurso médico corrente?; é anti‐narrativo, meramente perlocutório, retórico, impessoal, anómico? (Mattingly, 1998: 12) Como é posta ou deposta a agentividade, a duração, o drama ou a sub‐jectividade  experiencial?  (Mattingly,  1998:  12,  92,  154,  resp.)  A  fenomenologia, método mais exigente, tem sido menos utilizada (Marques, 2008a)52. O maior inte‐resse destes vários métodos qualitativos de  investigação é a capacidade de opôr resistência à reificação e de abrir uma porta de acesso à experiência do sujeito (o doente, o cuidador, o familiar… o profissional), experiência por oposição a experi‐mentação ou a  colecção  “cega” de dados empíricos  (o véu duplo da  indiferença estatística). Em resumo, em MCP, na doença avançada e na vivência da dor  (dor total), da perda, da solidão, da agonia, da dissolução dos existenciais53 – varieda‐des de fenómeno saturado (Marques, 2002; 2008a) –, a triangulação de métodos parece ser o caminho privilegiado para uma ciência clínica do rigor, que possa con‐viver com a opacidade e a sombra do incomensurável. 

Recomendação final 

Decorre  daqui,  cremos,  a  importância  e  oportunidade  do  conselho  político sábio de Cecily Saunders (ainda mais válido entre nós, dadas as violações do Estado de  Direito  pelos  próprios  poderes  instituídos):  “The  regulation  of  withholding/ withdrawing treatments and the aliviation of suffering is very difficult […] Overleg‐islation will not preclude abuse […] and is likely to introduce complexity that actu‐ally increases suffering”54. Até à penúltima geração de médicos formados nas esco‐las euro‐americanas, os clínicos podiam proclamar ainda “pas de chair anonyme, pas de douleur de personne!” (Henry, 2003: 123). Assim se salvava a hospitalidade, o nome próprio, a autoridade de primeira pessoa, a experiência do corpo. Do cor‐po que não vendeu a sua sombra (von Chamisso, 2005/1835). 

     

                                                              51 Ver  os  trabalhos  de  Paul  Ricouer  e  Jerome  Bruner  (muitas  obras),  Flahault  (1978/1979), 

Kleitman (1988), Hunter (1991), Mattingly (1998), Delvechhio‐Good et al. (2000). 52 São muito bons os trabalhos de Dick Zaner (1988; 2000), essencialmente inspirado em Schutz, 

e a antologia editada por Toombs (2001). Confira‐se uma tentativa de síntese do estado agó‐nico em Marques (2006). 

53 Sobre os quatro existenciais, compreensão, sintonia ou attunement, linguagem, corpo‐vivido, vd F. Svenaeus, in Toombs (2001: 101). 

54 Saunders (2002/1998: 371‐372, carta de 24‐03‐1998 dirigida a Therèse Lavoie‐Roux, Senadora do Canadá). Aprendemos, já há uns anos, que as indicações são claras em relação aos opiói‐des no tratamento da dor, da dispneia, etc., e em relação aos neurolépticos ou anestésicos na sedação em estados de dor refractária ou sofrimento terminal… Todavia, assim como é peri‐goso fixar nos manuais guidelines técnicos e normas rígidas – “éticas” ou deontológicas – para profissionais  (e/ou equipas) sem senso clínico e sem  formação  (ou apenas com  informação livresca), é também uma aberração nestas matérias aplicar a força da Lei num país de Justiça arbitrária, dependente e ineficaz. 

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MEDICINA CURATIVA, MEDICINA PALIATIVA, REGIMES DE ACÇÃO 

E MODALIDADES DE CONSTITUIÇÃO DO LAÇO SOCIAL ENTRE MÉDICO 

E DOENTE: UMA BREVE ABORDAGEM 

Alexandre Cotovio Martins 

Apresentação 

Este pequeno escrito é dedicado ao estudo das modalidades de formação do laço  social  entre médicos  e  doentes  nos  cuidados  paliativos. No  seu  contributo parcelar para o empreendimento,  tenta encarar os cuidados paliativos como um tipo de cuidado de saúde que põe em questão muitos dos pressupostos que orga‐nizam a prática médica moderna, ao posicionarem o doente, com a sua subjectivi‐dade, no centro das preocupações dos prestadores de cuidados de saúde e, desig‐nadamente,  dos  médicos.  Como  ilustração  empírica  do  trabalho  conceptual desenvolvido,  propõe‐se  também  uma  interpretação  sociológica  do  Programa Nacional de Cuidados Paliativos. 

Da medicina  curativa  à medicina paliativa:  coordenadas de uma  interpretação sociológica 

Regimes de acção e modalidades de  constituição do  laço  social entre médicos  e doentes 

A tese principal que percorre este texto é a de que estudar os cuidados palia‐tivos de um ponto de vista sociológico envolve, necessariamente – embora não se esgotem  nisso  as  possibilidades  de  interpretação  sociológica  do  domínio  –,  dar conta das diferentes formas de envolvimento na acção e construção do laço social entre médicos  e  doentes  que  tendem  a  dividir  uma medicina  curativa  de  uma medicina paliativa.  

A perspectiva de análise a que  recorremos para elucidarmos as nossas pre‐tensões é, antes de mais, aquela a que poderemos chamar, nos termos de um dos seus principais  impulsionadores, de sociologia dos regimes de envolvimento (Thé‐venot, 2006). De acordo com os autores que vêm trabalhando este quadro teórico (Thévenot,  2006;  Boltanski  e  Thévenot,  1991),  os  indivíduos,  quando  procuram coordenar a sua acção com a de outros, fazem‐no através de diferentes “modos de entrada” nessa mesma acção. Para Laurent Thévenot, estes “modos” podem ser adequadamente entendidos como diferentes  regimes de envolvimento na acção. Diz‐nos o autor: 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 167‐181. 

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À  la  différence  des  modèles  de  l’action  qui  mettent  leur  accent  sur l’acteur, sa collectivité ou son individualité, sa conscience ou son incons‐cience, sa réflexion ou son irréflexion, notre caractérisation des régimes d’engagement met en évidence le façonnement conjoint de la personne et  de  son  environnement,  que  requiert  leur  engagement.  (Thévenot, 2006) 

Os principais eixos diferenciadores dos diversos regimes de envolvimento na acção, no seio desta perspectiva, são, diz‐nos Thévenot, a avaliação ou julgamento que os  indivíduos fazem, em situação, sobre a sua própria conduta – procurando uma acção conveniente à situação específica em que se encontram – e o apoio que essa avaliação ou julgamento encontra na própria situação. 

Nous distinguons  les  façons différentes dont  la  réalité est éprouvée, et dont la conduite est évaluée dans chacun d’eux […]. La notion de conve‐nance […] est employée pour distinguer les évaluations de l’engagement selon les régimes, parce qu’elle s’offre à des gradations […]. Elle conduit à  caractériser  la  dynamique  de  chacun  des  […]  régimes  à  partir  de  la forme d’évaluation qui  le gouverne et du genre d’appui qu’elle  trouve dans l’environnement matériel de l’agent. (Thévenot, 2006) 

Sobre estes parâmetros analíticos, Thévenot identifica três diferentes regimes de envolvimento na acção, os quais variam entre um modo de envolvimento mais íntimo e pessoal e um espaço de constrangimentos convencionais típicos da esfera pública, mais  geral  e  racional.  Assim,  para  o  autor  francês,  temos  três  grandes regimes de envolvimento, distribuídos sobre um eixo que vai do singular ao geral: o regime familiar, o regime de plano e o regime público, diferenciados em função do  julgamento  feito  pelo  indivíduo  em  situação  sobre  a  forma  de  coordenação conveniente à mesma num eixo de gradações de generalidade das relações entre os seres em presença. O autor define assim o primeiro destes regimes (Thévenot, 2006): 

Dans le régime d’engagement familier, le bien maintenu est localisé et per‐sonnalisé. Nous l’avons nommé aise. […] Le bien‐être éprouvé dans la com‐modité  d’un  entourage  dépend  étroitement  de  la  personne  qui  se  l’est accommodé  et  du  cheminement  de  familiarisation  effectué  d’auprès  du milieu façonné par  l’usage. Ce bien est plus qu’une habitude, notion faible pour exprimer  le rapport dynamique avec un milieu rapproché, qui est  lui aussi éprouvé. 

O regime de acção em plano, por seu turno, envolve uma subida em genera‐lidade das relações entre os seres em presença, na medida em que se desloca para lá do círculo das solidariedades construídas pelo uso íntimo: 

Le régime de l’action en plan correspond à un niveau d’engagement si com‐mun qu’il porte le risque d’être invisible dans la spécificité de son appréhen‐sion d’événements en tant que conduites humaines. […] Le bien de cet en‐gagement  en plan  tend  lui  aussi  à  se dissoudre dans  l’idée  banale d’une action accomplie. […] [L]’engagement en plan connaît un premier élargisse‐ment dans une prise à  témoin d’autrui, qui concourt à  l’engagement par‐ 

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‐delà  les choses en gage. C’est  la promesse qui connaît une modalité plus formalisée dans  les organisations:  le projet. L’engagement en plan s’élargit encore en prenant en compte autrui dans sa propre capacité d’agent  indi‐viduel  engagé  dans  son  plan.  L’engagement  est  alors  stratégique,  tenant compte d’autrui, asymétriquement. (Thévenot, 2006) 

Por sua vez, o regime de maior generalidade na forma como os indivíduos jul‐gam e coordenam as suas acções em situações específicas é, finalmente, o regime público. Aqui, 

L’engagement est apprécié selon un ordre de grandeur légitime qui s’adosse à une spécification du bien commun […]. La réalité n’est probante que pour autant qu’elle est publiquement qualifiée selon cette grandeur en termes de prix, d’efficacité, de  renom, etc. La personne  trouve des gages de son en‐gagement dans la disposition de ces choses qualifiées, dans un dispositif de leur agencement cohérent.  […] L’agent est une personne qualifiée selon  la grandeur, non pas un simple individu. Son pouvoir légitime repose sur cette qualification qui marque sa participation au bien commun. […] Il est clair que ce régime est préparé pour des engagements mutuels qui ne s’enferment pas dans  les ententes à demi‐mot épousant deux familiers, ou  les contrats conjoignant les plans de deux individus, mais qui s’ouvrent à un autrui géné‐ralisé  […]. Une coordination d’un ensemble plus complexe d’actions  impli‐quant des ajustements réciproques à distance, avec des acteurs anonymes, fait venir des demandes de garantie publique correspondant à ce  régime. (Thévenot, 2006) 

A obra de Luc Boltanski e Laurent Thévenot implica, então, que se pensem as modalidades pelas quais os  indivíduos em  situação operam  julgamentos  sobre a própria conduta, no sentido de a coordenarem com as exigências que reconhecem nessa mesma  situação ou de  lançarem eles próprios  exigências de  coordenação sobre outros1, num espectro de possibilidades que oscila entre a proximidade do regime familiar e a generalidade do regime público. 

Aqui, iremos centrar‐nos sobre dois dos regimes brevemente apresentados: o regime familiar e o regime do plano. Sobretudo, procurando investigar aquilo que esses regimes implicam ao nível da estruturação do laço social, na medida em que é  justamente  sobre  a  representação do  laço  social  entre médicos e pacientes  e respectivas exigências de coordenação que pretendemos centrar a nossa interpre‐tação dos cuidados paliativos. 

Na verdade, a diferenciação entre aqueles dois regimes implica uma diferen‐ciação nos  julgamentos e modos de coordenação activados pelos  indivíduos, em termos das modalidades de estabelecimento do laço social com outros significati‐vos implicados numa situação. Neste âmbito, pensamos útil, de um ponto de vista interpretativo, o recurso à obra de um autor que, embora volvidos quase noventa anos  sobre  a  sua morte,  ainda hoje parece  trazer ensinamentos  centrais para a elucidação da acção social: Max Weber. 

Segundo Max Weber (1993), toda a acção social é significativa, na acepção de 

                                                              1 Por exemplo, quando exigem uma reparação por um acto ou omissão cometidos por outrem. 

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que os  indivíduos  lhe  atribuem um  sentido  subjectivo2. A  compatibilidade desta asserção, central na complexa sociologia weberiana, com a perspectiva da socio‐logia dos regimes de envolvimento, é perceptível se nos recordarmos que, para os autores  que  desenvolveram  esta  última,  os  indivíduos  operam  sempre,  na  sua acção  social,  avaliações  e  juízos  subjectivos  sobre  essa mesma  acção,  os  quais recaem, necessariamente, na categoria genérica do sentido dado à própria acção3. Assim, é apropriado dizer‐se que,  como qualquer outra  relação  social, a  relação entre médicos e doentes envolve a produção de um sentido subjectivo sobre essa mesma  relação, por  ambas  as partes ou,  se quisermos  integrar  as perspectivas, uma determinada avaliação da conduta própria em função da do(s) outro(s) e uma avaliação da conduta do(s) outro(s). Nos termos de Weber  (1993), a constituição de sentido envolve a orientação para o outro e uma determinada  representação da ordem das coisas que estão envolvidas, directa ou  indirectamente, nessa rela‐ção.  Para  os  autores  da  chamada  economia  das  convenções,  esta  dimensão  de orientação para o outro tem que ver, antes de qualquer outra coisa, com o esforço e as exigências de coordenação da acção em situação (Thévenot, 2006). 

Analisando a obra de Weber neste particular, Paul Ricoeur (1991) mostra‐nos que é  importante, para esclarecer o sentido da acção significativa, compreender‐mos qual o tipo de conexão ou laço social de que falamos, quando falamos de uma determinada acção. Segundo este autor, podemos distinguir, de forma ideal‐típica, logo à partida, um elo predominantemente  integrativo de um elo predominante‐mente associativo. O autor francês refere‐se à tipologia, preconizada por Weber e inúmeras vezes retomada na tradição sociológica, que distingue entre comunidade (Gemeinschaft) e sociedade (Geselschaft). No primeiro caso, os  indivíduos partici‐pam num ordenamento social que lhes dá uma sensação de pertença comunitária; no segundo, vêem os seus laços com os outros sobretudo como um elo mais con‐tratual, mais exterior e menos envolvente4. Num caso, temos um tipo de relação mais  “quente”, mais  emocional  e  próxima;  no  outro,  uma  relação mais  “fria”, racional e distanciada. Nos termos de Max Weber (1995), 

Nous appelons “communalisation” [Vergemeinschaftung] une relation socia‐le lorsque, et tant que, la disposition de l’activité sociale se fonde – dans le cas particulier, en moyenne ou dans le type pur – sur le sentiment subjectif (traditionnel ou affectif) des participants d’appartenir à une même commu‐nauté [Zusammengehörigkeit]. § Nous appelons “sociation” [Vergesellschaf‐tung] une  relation  sociale  lorsque,  en  tant que  la disposition de  l’activité 

                                                              2 Assim  como o qualificativo  social  apenas  faz  sentido, na  sociologia weberiana, quando este sentido subjectivo envolve a orientação, por uma qualquer via, para o outro. 

3 Este julgamento, condição da coordenação da acção, pode envolver uma coordenação de si para si próprio, ou mesmo com o mundo dos objectos, o que configura algo que está para lá da defini‐ção de acção social em Max Weber, mas esta questão não é central para a nossa discussão.  

4 Sobre  as  formas  de  representação  cognitiva  associadas  a  estes  diferentes  laços,  podemos recorrer ao  trabalho de Thévenot sobre os diferentes regimes de acção e verificarmos que a um  laço  comunitário  corresponderia uma abordagem cognitiva como aquela estudada  tradi‐cionalmente pela  fenomenologia e a um  laço  societário, uma abordagem mais centrada nos interesses racionais e estratégicos dos  indivíduos. Curioso é notar que ambas as modalidades cognitivas de representação, assim como uma outra, mais própria do regime público e assente em convenções (resultantes de  investimentos de forma, no sentido de Thévenot), encontram espaço na sociologia weberiana. 

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sociale se  fonde sur un compromis  [Ausgleich] d’intérêts motivé rationnel‐lement  (en  valeur  ou  finalité)  ou  sur  une  coordination  [Verbindung] d’intérêts motivée  de  la même manière.  En  particulier,  la  sociation  peut (mais non uniquement) se fonder typiquement sur une entente [Vereinba‐rung] rationnelle par engagement mutuel [gegenseitige Zusage]. 

Estes dois modelos de relação social são, pensamos, tipos ideais – retomando a expressão weberiana – particularmente  interessantes para dar conta de diferentes modalidades de organização do  laço social e das associadas exigências de coorde‐nação postas em jogo pelos indivíduos. Isto, na medida em que estes, em situação, podem envolver‐se na acção de uma  forma mais  intimista, emocional e “quente”, estando assim próximos de um laço comunitário5, ou de uma forma mais distancia‐da, racional e “fria”, estando assim mais próximos de um laço societário. 

Identificamos aqui um segundo nível de afinidade profunda entre a tipologia weberiana e o quadro analítico desenvolvido pelos autores de De  la Justification, nomeadamente em tudo aquilo que  implica a diferenciação entre uma acção  ins‐crita no regime familiar e uma acção inscrita no regime de plano. Das palavras de Laurent Thévenot, extraem‐se sentidos particularmente esclarecedores desta liga‐ção profunda, se tivermos presentes aqueles conceitos weberianos: 

Dans  l’engagement familier,  la personne concernée apprécie une action qui convient en  jugeant par  l’aisance si un geste est bien coordonné ou non. […] L’intimité de l’amour ou de certaines formes d’amitié, la sollici‐tude du soin, permettent l’accès d’autrui à certains de ces repères fami‐liers. Mais […] passer au régime du plan et à son format d’appréciation fonctionnel [est passer à un régime que] communique commodément le langage ordinaire de l’action. (Thévenot, 2006) 

É  certo que, para os autores  franceses, o  fundamento do  regime  familiar é diferente daquele que Weber aponta para o laço comunitário (o sentimento tradi‐cional ou afectivo). Com efeito, Thévenot (2006) deixa claro no seu entendimento da acção no quadro do regime familiar que esta envolve operações de avaliação e julgamento  realizadas  pelo  indivíduo. Ora,  a  tipologia weberiana  das  formas  de acção – afectiva, tradicional, racional por referência a valores e racional por refe‐rência a fins – não reserva espaço suficiente para este tipo de avaliação no quadro da acção afectiva ou da acção tradicional, largamente conduzidas pela emoção ou o hábito profundamente enraizados. Não obstante, a densidade desta afinidade entre as duas perspectivas é perceptível, sobretudo, não ao nível do fundamento que elas atribuem aos diferentes modos de acção, o que já notámos, mas ao nível do registo em que se estabelecem o laço social e a coordenação das acções6. 

                                                              5 Sobre este assunto, veja‐se também o regime da agapé, analisado por Luc Boltanski, que não desenvolvemos aqui por economia de espaço. 

6 É ainda certo que esta afinidade no  registo não esgota o domínio específico dos  regimes de acção familiar e de plano, na perspectiva da sociologia dos regimes de envolvimento. Thévenot demonstra‐o  claramente  quando  descreve  o  regime  familiar  a  partir  da  familiaridade  com objectos, não apreensível à luz da definição de acção social de Max Weber. Assim, quer o laço comunitário, quer o  laço societário, no sentido weberiano, representam apenas modos parti‐culares de envolvimento no seio dos regimes familiar e de plano. 

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Pois bem, o que nos parece digno de discussão é que é  justamente da dife‐rença  entre  estes  registos  –  aqui  explicitados  em  linguagens  diferenciadas  –, comunitário  e  societário  ou,  em  todo  o  caso,  familiar  e  de  plano,  que  parece emergir  uma  das  tensões mais  centrais  da medicina moderna,  tensão  esta  que aparece redobrada quando falamos de cuidados paliativos. 

 

Modalidades de constituição do  laço social entre médicos e doentes e tensões na profissão médica 

Tudo  indica que uma das  tensões mais  fortemente geradoras de controvér‐sias internas à profissão médica, nomeadamente no plano da relação entre médi‐cos e doentes, no decurso da própria história da medicina, é organizada em função de diferentes  registos de  constituição e diferentes  formas de  representar o  laço social que configura essa mesma relação. 

Com efeito, o conflito entre uma racionalidade médica objectiva e distanciada e o subjectivismo e particularismo dos problemas, angústias e queixas dos doentes parece recobrir diferentes formas de avaliar e coordenar as acções e, por esta via, a constituição do laço social com os doentes, por parte dos médicos. Existe, assim, um  espaço  de  oscilação  entre  uma  representação  e  exigência  de  coordenação mais associativa, funcional e racional deste  laço e uma representação e exigência de coordenação mais comunitária, integrativa e emocional do mesmo. 

A  tensão entre a objectividade do olhar e acção médicos e a subjectividade do paciente é, em rigor, uma tensão central no próprio desenvolvimento histórico da medicina. Ao ponto de, muitas vezes,  implicar praticamente a diluição da sub‐jectividade relacional de ambos para dar lugar a uma relação racionalizada e cen‐trada mais na doença que no doente7. Como bem demonstra Roselyne Rey (2000), a propósito da temática da dor no quadro do desenvolvimento do saber e da acção médicos, a medicina constituiu‐se historicamente muito a partir do relegar da sub‐jectividade do doente para um plano de inferioridade, quando não de total exclu‐são, face ao olhar objectivo do médico: 

[La  logique]  qui  s’occupe  de  la  maladie  plus  que  du  malade,  qui  se détourne  des  séquelles  de  la maladie  (cicatrices  douloureuses,  consé‐quences  secondaires  des  traitements,  douleurs  post‐opératoires),  est renforcée avec les succès de la médecine. Elle repose sur un point de vue optimiste sur  les pouvoirs et  les ambitions de  la médecine, et  la reléga‐tion de  la douleur à un rang modeste ou négligeable est comme  la ran‐çon ou l’envers de cet optimisme. Cette situation définit aussi un certain type de relations entre  le médecin et  le malade, elle souligne  l’absence du malade comme sujet, l’aliénation de sa parole et de son vouloir. 

As condições históricas de surgimento de um tal olhar médico, frio, racional, linear  e  centrado numa  recusa da proximidade  face  à  subjectividade do doente encontram em Michel Foucault (2007) um interessante intérprete. Reportando‐se 

                                                              7 Que, no  limite, configura um  tipo de  relação que pôde ser criticada  (embora não especifica‐mente no caso da relação médicos – doentes) como reificadora, por autores como, por exem‐plo, Herbert Marcuse ou Jürgen Habermas. 

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ao  nascimento  da  clínica moderna,  este  autor  afirma  que  ela  repousa,  em  boa medida, justamente naquela reconversão do olhar (e concomitantemente da rela‐ção com o paciente): 

La médecine moderne a  fixé d’elle‐même sa date de naissance vers  les dernières  années  du  XVIIIe  siècle. Quand  elle  se  prend  à  réfléchir  sur elle‐même, elle  identifie  l’origine de  sa positivité à un  retour, par‐delà toute  théorie,  à  la modestie  efficace  du  perçu.  En  fait,  cet  empirisme présumé repose non sur une redécouverte des valeurs absolues du visi‐ble, non  sur  l’abandon  résolu des  systèmes et de  leurs  chimères, mais sur une réorganisation de cet espace manifeste et secret qui fut ouvert lorsqu’un regard millénaire c’est arrêté sur la souffrance des hommes. Le rajeunissement  de  la  perception médicale,  l’illumination  vive  des  cou‐leurs et des choses sous le regard des premiers cliniciens n’est pourtant pas un mythe; au début du XIXe siècle,  les médecins ont décrit ce qui, pendant  des  siècles,  était  resté  au‐dessous  du  seuil  du  visible  et  de l’énonçable  […]. Les  formes de  la rationalité médicale s’enfoncent dans l’épaisseur merveilleuse de  la perception, en offrant comme visage pre‐mier de la vérité le grain des choses, leur couleur, leurs taches, leur dure‐té,  leur  adhérence.  L’espace  de  l’expérience  semble  s’identifier  au domaine  du  regard  attentif,  de  cette  vigilance  empirique  ouverte  à l’évidence des seuls contenus visibles. L’œil devient  le dépositaire et  la source de la clarté; il a pouvoir de faire venir au jour une vérité qu’il ne reçoit que dans la mesure où il lui a donné le jour; en s’ouvrant, il ouvre le vrai d’une ouverture première […]. 

Igualmente Foucault sugere, por outro  lado, que este processo de  racionali‐zação, associado ao surgimento da prática clínica em condições de modernidade, exige  uma  forma  específica  de  relacionamento,  racionalizado  também  ele, mas assimétrico: 

L’expérience clinique  […] a vite été prise pour un affrontement simple, sans concept, d’un regard et d’un visage, d’un coup d’œil et d’un corps muet, sorte de contact préalable à tout discours et libre des embarras du langage, par quoi deux  individus vivants sont “encagés” dans une situa‐tion commune mais non réciproque. (Foucault, 2007) 

Este olhar reconvertido, moderno, asséptico e higienista, capaz de encarar a doença como  fenómeno empírico e sobretudo, de olhar o doente de uma  forma hiper‐racionalizada  e  fundada  numa  perspectiva  fisiológica,  é  um  olhar  a  que Georges Canguilhem dedicou o  seu estudo. Este autor  consegue  identificar uma contradição  fundamental na aparente assepsia deste olhar  fisiologista, do ponto de vista da própria ideia de medicina. Sobretudo, naquilo que tal olhar envolve de esquecimento da condição subjectiva do doente e da patologia e do doente como fundamentos primeiros do estudo da fisiologia e até mesmo de qualquer ideia de doença. Realizando um  roteiro crítico pela história da clínica, Canguilhem  (2007) sente‐se autorizado a dizer que 

Tout  concept  empirique  de maladie  conserve  un  rapport  au  concept axiologique de  la maladie. Ce n’est pas, par  conséquent, une méthode  

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objective que  fait qualifier de pathologique un phénomène biologique considéré.  C’est  toujours  la  relation  à  l’individu malade,  par  intermé‐diaire de la clinique, qui justifie la qualification de pathologique. Tout en admettant  l’importance  des  méthodes  objectives  d’observation  et d’analyse dans la pathologie, il ne semble pas possible qu’on puisse par‐ler,  en  toute  correction  logique, de  “pathologie objective”. Certes une pathologie  peut  être méthodique,  critique,  expérimentalement  armée. Elle peut  être dit objective, par  référence  au médecin qui  la pratique. Mais l’intention du pathologiste ne fait pas que son objet soit une matiè‐re vidée de subjectivité. 

Nos termos deste seu roteiro crítico, burilado a partir da sua dupla formação, em filosofia e em medicina, Canguilhem (2007) faz o seguinte diagnóstico: 

il y a […] un oubli professionnel – peut‐être susceptible d’explication par la théorie freudienne des lapsus et actes manqués – qui doit être relevé. Le médecin a tendance à oublier que ce sont les malades qui appellent le médecin. Le physiologiste a tendance à oublier qu’une médecine clinique et thérapeutique, point toujours tellement absurde qu’on voudrait dire, a précédé la physiologie. 

Independentemente do reconhecimento do carácter normativo que a medi‐cina não pode, segundo Canguilhem, deixar de  ter, o que  importa uma vez mais reter é, precisamente, o  confronto entre uma medicina  racionalista,  societária e cujas  exigências  de  coordenação  ao  nível  da  constituição  do  laço  social  com  o doente  relegam  para  segundo  plano  a  sua  subjectividade  e  uma medicina mais centrada  no  doente,  que  reserva  um  lugar  a  este,  para  lá  da  eficácia  industrial (Boltanski e Thévenot, 1991; Resende, 2003) dos seus próprios dispositivos  tera‐pêuticos e técnicos. É justamente sobre este ponto crítico e revelador que se esta‐belece o difícil e complexo processo de construção  ideológica de um domínio de intervenção médica novo: os  cuidados paliativos, que  analisaremos  agora muito brevemente, através do exemplo português e à  luz do quadro  interpretativo que vimos estabelecendo. 

O caso português: os cuidados paliativos nos seus documentos orientadores 

Um  dos  aspectos  centrais  que  decorrem  da  discussão  precedente  é  o  da importância  do  tipo  de  laço  social  estabelecido  entre médicos  e  doentes  e  das concomitantes exigências de  coordenação da  acção presentes na  acção médica. Pois bem, o que nos importa destacar neste quadro é que encaramos a represen‐tação médica da natureza do  laço social8 com os doentes – mais comunitário ou mais societário, enquadrado num regime de exigências de coordenação mais fami‐liares ou mais sujeitas a um plano ou uma estratégia de acção – como central na organização e discussão dos cuidados paliativos no domínio da  saúde em condi‐ções de modernidade. 

                                                              8 Centramo‐nos agora nesta questão porque, tratando‐se de analisar documentos, pretendemos sobretudo trabalhar as dimensões propriamente ideológicas que os percorrem. 

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A  tensão  entre  os  dois  tipos  de  representação  do  laço  social  acima  traba‐lhados (com as avaliações e exigências de coordenação que lhes estão associadas) parece  hoje  encontrar‐se  francamente  representada  na  distinção  ideológica  no seio da comunidade médica entre uma medicina curativa e uma medicina de cui‐dados, consubstanciada, designadamente, nas políticas de saúde, orientadas para a dor, os cuidados continuados e os cuidados paliativos. Efectivamente, estes últi‐mos são domínios da medicina em que o olhar médico objectivo e todo o aparato tecnológico e  relacional que  configura o  seu dispositivo de actuação  se  curvam, por assim dizer, para entrarem num quadro em que o seu valor específico se vai progressivamente anulando face ao crescimento da preocupação e atenção com a qualidade  relacional  e  psicológica  da  vida  do  paciente  em  estado  avançado  ou terminal de doença mortal.  

Ademais, esta tensão parece estar hoje de certo modo aumentada de alguns graus  quando  existe  um  duplo  constrangimento  que  impende  sobre  a  prática médica: por um  lado, os médicos são escrutinados publicamente sobre o grau de erro da sua abordagem e tendem, consequentemente, a refugiar‐se na tecnologia para praticarem uma medicina defensiva  (Sampaio, 2006) e ancorada em  repre‐sentações objectivistas da relação entre médico e doente; por outro lado, sofrem influências, directas e indirectas, no sentido de “humanizarem” a sua prática clíni‐ca e, assim,  conferirem um  cunho mais  comunitário,  “personalizado” e  subjecti‐vado à mesma. 

Na verdade, a especificidade dos cuidados paliativos tende a fazer com que se coloque a tónica desta discussão no segundo dos termos, consubstanciado a partir de  uma  representação  comunitária  do  laço  social  e  do  correspondente  desvelo intersubjectivo exigido aos médicos – e restante pessoal – que da área se ocupam. Ouçamos, a este respeito, o que nos diz um médico sobre este assunto (Devalois, 2006): 

L’accompagnement  de  fin  de  la  vie  désigne  les  actions  menées  par l’ensemble des acteurs  impliqués par  la  fin de  la vie, survenant dans  le cadre d’une maladie grave comme un cancer  incurable.  Il s’agit de pro‐fessionnels de  santé  (dans  leur diversité et  le  respect de  l’interdiscipli‐narité) mais aussi de bénévoles (qui représentent une dimension origina‐le  et  indispensable de  la démarche).  Il  s’agit  aussi des  accompagnants naturels que sont la famille et les proches du malade. […] Le terme “soins palliatifs” permet de qualifier des soins dont la finalité n’est ni d’obtenir la  guérison,  ni  de  maintenir  une  fonction  vitale  défaillante,  mais d’améliorer la qualité de vie. 

Esta tentativa de melhoria da qualidade de vida e de recentramento do foco dos cuidados no doente terminal, também em função das suas necessidades sub‐jectivas, tende a conduzir à estruturação de unidades especializadas nos cuidados paliativos (Lamour, 2006): 

L’Unité  de  Soins  Palliatifs  est  un  lieu  spécialisé.  Sa  spécificité  est d’accueillir, de façon temporaire ou permanente, des patients atteints de maladie  grave,  évolutive, mettant  en  jeu  le  pronostic  vital,  en  phase avancée ou terminale, lorsque la prise en charge nécessite l’intervention d’une équipe pluridisciplinaire ayant des compétences spécifiques. […] Il 

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en découle: a) une compétence technique qui s’affine avec  le temps; b) un  travail  permanent  sur  la  relation  humaine,  basé  sur  l’écoute  et l’observation,  lors des multiples  interactions patient famille soignant; c) un  lieu de  sécurisation pour  les patients et  les  familles en  situation de crise. 

A mencionada divisão ideológica entre representações do laço social tem con‐figurado,  tudo o  indica, diferentes  tomadas de posição no plano da  intervenção pública dos médicos, nomeadamente na área dos cuidados paliativos, em Portu‐gal. Como refere José Resende (2006), no nosso país, a questão dos cuidados palia‐tivos – nomeadamente, face a outras questões não oriundas do domínio de uma medicina plenamente  curativa e  terapêutica,  como as áreas dos  cuidados  conti‐nuados e da dor – autonomiza‐se sobretudo através da intervenção pública de um conjunto de médicos, que 

intentam definir, quer do ponto de vista científico e técnico, quer do ponto de vista normativo e moral, o espaço dos cuidados paliativos e as diferenças significativas deste conceito em relação aos outros dois conceitos: a dor e os cuidados  continuados. Nesta operação  semântica  e  conceptual produzida publicamente,  quer  através  dos  meios  de  comunicação  social,  quer  em encontros científicos, os médicos porta‐vozes deste segmento de  interven‐ção médica tentam destacar a centralidade do valor da atenuação do sofri‐mento deslocando o valor da preservação da vida a todo o custo para um lugar mais periférico, ou mesmo secundário. 

Como afirma o mesmo autor, este “movimento” dos médicos  tem passado, em parte, pela  insistência  junto dos decisores políticos, no sentido de estes  inte‐grarem a questão dos cuidados paliativos na agenda política. 

O que é facto é que esta questão tem vindo a mobilizar actores sociais diver‐sos na vida social e política portuguesa, extravasando o domínio restrito dos pro‐fissionais médicos; tem‐se observado a criação de organizações específicas para a mobilização e tradução pública das questões ligadas à especificidade dos cuidados paliativos. Casos de organizações deste  tipo  são o Movimento de Cidadãos pró‐‐Cuidados Paliativos ou a Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. 

A utilização deste tipo de plataforma para a tentativa de inclusão da questão dos cuidados paliativos na agenda política e, mais do que isso, na própria lei, teve expressão  particularmente  evidente  numa  petição,  realizada  pelo  supra‐citado Movimento  de  Cidadãos  pró‐Cuidados  Paliativos,  entregue  na  Assembleia  da República  a  26  de  Fevereiro  de  2004,  contendo  vinte  e  quatro mil  assinaturas (Petição n.º 70/IX/2.ª). 

Esta petição tinha como principal propósito a inclusão dos cuidados paliativos na Constituição da República Portuguesa. Neste documento dizia‐se, com efeito, que o Art.º 64.º do Capítulo  II da Lei Fundamental, no seu ponto 3, consagrava o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação e pretendia‐se ver aqui incluídos,  também, os cuidados de natureza paliativa. A  inclusão de  tal  figura no articulado legal deveria ser feita, nos termos do documento, em representação de “milhares de cidadãos que pretendem que o seu ciclo natural de vida termine com dignidade”. 

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Na sequência desta petição, pediu aquele órgão parlamentar, a 15 de Março do mesmo ano, informação sobre esta questão ao gabinete do Ministro da Saúde, que  afirmou  estar  a  ser  elaborado,  então,  um  Programa  Nacional  de  Cuidados Paliativos,  radicado nas  recomendações da Organização Mundial de  Saúde  e do Conselho da Europa, no sentido da  inclusão dos cuidados paliativos nos sistemas de  saúde,  na  previsão  da  criação  deste  tipo  de  cuidados  no  Plano  Oncológico Nacional  2001‐2005,  bem  como  no  Plano  Nacional  de  Saúde  2004‐2010. Mais afirmou aquele gabinete que previa que o referido Programa Nacional de Cuidados Paliativos se  implementasse, gradualmente, até 2010, em complemento da Rede de  Cuidados  Continuados,  mais  vocacionada  para  a  prestação  de  cuidados  de recuperação global, centrados na reabilitação, readaptação e reintegração (Relató‐rio Final da Petição n.º 70/IX/2.ª). 

O Programa Nacional de Cuidados Paliativos  foi aprovado a 15 de  Junho de 2004, como explicitava a Circular Normativa n.º 14/DGCG, de 13 de  Julho, docu‐mento do Ministério da Saúde. Nesta Circular Normativa, que divulgava o conteú‐do daquele Programa, as questões associadas aos aspectos subjectivos e relacio‐nais  do  doente  e  da  doença  adquiriam  forte  centralidade.  Com  efeito,  este normativo estatuía que 

Os  cuidados  paliativos,  no  âmbito  do  presente  Programa,  incluem  o apoio à família, prestado por equipas e unidades específicas de cuidados paliativos, em internamento ou no domicílio, segundo níveis de diferen‐ciação.  Têm  como  componentes  essenciais:  o  alívio  dos  sintomas;  o apoio  psicológico,  espiritual  e  emocional;  o  apoio  durante  o  luto  e  a interdisciplinaridade. 

A distinção entre uma medicina curativa e uma medicina paliativa, por outro lado, encontrava neste mesmo Programa uma forte ancoragem, consubstanciada desde  logo na  sua própria  fundamentação, que  faz depender a possibilidade de organização de um sistema de cuidados paliativos de uma mudança nos quadros de referência e perspectivação da própria ideia de saúde: 

A  cultura  dominante  da  sociedade  tem  considerado  a  cura  da  doença como o principal objectivo dos serviços de saúde. Num ambiente onde predomina o carácter premente da cura ou a prevenção da doença, tor‐na‐se difícil o tratamento e acompanhamento global dos doentes incurá‐veis, com sofrimento intenso. 

A autonomização dos cuidados paliativos, no âmbito deste documento orien‐tador, faz‐se a partir de um conjunto de pressupostos de mudança. Desde logo, ao nível dos já referidos quadros de percepção da própria doença. Mas, também, nes‐ta sequência, ao nível da organização dos serviços e da sua vocação tradicional: 

a  abordagem da  fase  final da  vida  tem  sido encarada, nos  serviços de saúde, como uma prática estranha e perturbadora, com a qual é difícil lidar. § O hospital, tal como o conhecemos, vocacionou‐se e estruturou‐‐se,  com  elevada  sofisticação  tecnológica,  para  tratar  activamente  a doença. No entanto, quando se verifica a falência dos meios habituais de tratamento e o doente se aproxima inexoravelmente da morte, o hospi‐tal raramente está preparado para o tratar e cuidar do seu sofrimento. 

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§ O centro de saúde, essencialmente dedicado à promoção da saúde e à prevenção da doença, também tem dificuldade em responder às exigên‐cias múltiplas destes doentes.  § De  facto, num  ambiente onde predo‐mina o  carácter da  cura ou da prevenção da doença,  torna‐se difícil o tratamento  e  o  acompanhamento  global  dos  doentes  com  sofrimento intenso na fase final da vida e a ajuda que necessitam para continuarem a viver com qualidade e dignidade. 

Além disto, a articulação dos cuidados paliativos com outro tipo de cuidados específicos – como constituem casos notáveis os cuidados continuados e os cuida‐dos associados à dor –, é motivo de preocupação particular: 

Embora esteja naturalmente implícita na Rede Nacional de Cuidados Con‐tinuados a prestação de acções paliativas em sentido genérico, não está prevista, naquela Rede, a prestação diferenciada de cuidados paliativos a doentes em  fase avançada de doença  incurável  com grande  sofrimento. […] Urge, portanto, colmatar esta carência.  […] A  solução para este pro‐blema não assenta na simples manutenção de respostas híbridas, simulta‐neamente curativas e paliativas, nem  se enquadra na Rede de Cuidados Continuados, essencialmente vocacionada para a  recuperação global e a manutenção da funcionalidade do doente crónico, nem no Plano Nacional de Luta Contra a Dor, vocacionado para o tratamento da dor física e não do sofrimento global. […] A complexidade do sofrimento e a combinação de factores físicos, psicológicos e existenciais na fase final da vida, obrigam a que a sua abordagem, com o valor de cuidado de saúde, seja, sempre, uma tarefa multidisciplinar, que congrega, além da família do doente, pro‐fissionais de saúde com formação e treino diferenciados, voluntários pre‐parados e dedicados e a própria comunidade. 

O Plano Oncológico Nacional, definido por Resolução do Conselho de Minis‐tros publicada em Diário da República a 17 de Agosto de 2001 (RCM n.º 129/2001), define  especificamente  os  cuidados  paliativos  como  um  domínio  de  relevo  no quadro de uma estratégia nacional para a oncologia, curiosamente estabelecendo uma distinção tácita entre uma primeira “fase” no ciclo de tratamento e cuidado de saúde, realizada em função da doença e uma segunda “fase”, em que se integra o cuidado ao doente e à sua família: 

Quando  os  tratamentos  específicos, dirigidos  à  doença,  deixam  de  ter lugar,  as  necessidades  do  doente  e  da  família  continuam  a  exigir  um apoio humanizado e eficaz.  […] Na maioria dos doentes  com  cancro o período de maior  sofrimento, pela  intensidade,  complexidade e  rápida variação  das  perturbações  físicas,  psíquicas,  sociais  e  existenciais,  é  a fase  terminal da doença, em que à exacerbação do  sofrimento  corres‐ponde, entre nós, um progressivo vazio de apoio qualificado. 

Como se depreende, este diagnóstico implicava, agora, uma inflexão do olhar dos profissionais de saúde, ou pelo menos a entrada em campo de profissionais com um olhar diferente, que  consubstanciasse uma melhoria da  abordagem  ao doente, nas diferentes e complexas dimensões do período final da sua existência. 

 

 

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Medicina Curativa, Medicina Paliativa, Regimes de Acção  179 

 

Conclusão 

A terminar este pequeno percurso analítico, parece‐nos sobretudo relevante salientar a centralidade que a explicação e compreensão sociológicas podem  ter na análise dos temas e problemas da saúde e, concretamente, no domínio dos cui‐dados  paliativos.  A  organização  social  da  acção médica  nas  nossas  sociedades parece  tender,  na  verdade  e  paradoxalmente,  a  fazer  esquecer  o  seu  enraíza‐mento social. O estudo dos regimes de envolvimento na acção e das modalidades de constituição do laço social entre médicos e doentes, nas várias dimensões que lhes estão associadas, é um exemplo de um dos planos em que a sociologia pode contribuir  para  a  organização  de  um  quadro  reflexivo  sobre  a  própria  prática médica. Embora aqui apenas muito brevemente explorado, parece‐nos um campo fecundo de análise em torno do qual os sociólogos interessados pela saúde e pela profissão médica têm, seguramente, possibilidades de realização de trabalho cien‐tífico imensas. Este texto não pretendeu mais, no final de contas, do que fornecer algumas pistas adicionais para esse trabalho. 

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O DISCURSO DA BOA MORTE NAS VOZES DE QUEM CUIDA 

Ana Patrícia Hilário  

Introdução 

Através deste estudo pretendeu‐se compreender quais os elementos que con‐figuram o sistema de valores dos profissionais de saúde que trabalham num serviço de cuidados paliativos. A construção de um sistema de valores permite que os pro‐fissionais de saúde atribuam significado ao trabalho que desenvolvem com doentes terminais. O conceito de boa morte é aqui  introduzido como a  categoria analítica que permite compreender os elementos que configuram esse sistema de valores.  

O facto de à partida se definir a boa morte como um processo que envolve a realização de uma série de procedimentos sociais, conduz a que os diversos acto‐res envolvidos no processo de morrer possuam uma expectativa concreta e dife‐renciada do que consideram ser uma morte ideal. Ora, ao se propor que o sistema de  valores  partilhado  pelos  profissionais  de  saúde  é  construído  e  reconstruído dentro do cenário de prestação de cuidados, parte‐se da hipótese de que a ocor‐rência ou não de uma boa morte tem  implicações directas na configuração desse sistema de valores.  

Optou‐se por desenvolver a pesquisa numa unidade residencial de prestação de cuidados paliativos a doentes oncológicos terminais. Privilegiou‐se o método de estudo de caso, através da observação participante e continuada do investigador, por um período de quatro meses. A partir da análise qualitativa de 9 entrevistas em profundidade feitas a enfermeiros, com idades compreendidas entre os 26 e os 64 anos, procurou‐se então perceber quais os elementos que configuram o siste‐ma de valores partilhado por esses profissionais de saúde.  

A experiência em torno da morte e do morrer 

Na modernidade tardia, a morte desaparecera da vida em comunidade, pas‐sando a ser encarada como uma experiência individual, que ocorre sob a égide do poder  médico,  tendo‐se  tornado  desprovida  de  significação.  A  este  propósito, Ariès (1975) refere que a aceitação e a resignação que caracterizavam as atitudes perante  a morte  na  vida  pré‐século  XX,  foram  substituídas,  no  século  XX,  pelo medo. Para o autor, o vazio social que assiste ao do processo de morrer encontra‐‐se relacionado com a progressiva laicização da sociedade.  

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 183‐190. 

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184  Ana Patrício Hilário 

Mellor e Shilling (1993) salientam, por exemplo, que a sequestração da morte e do morrer na modernidade tardia poderá dever‐se à diminuição da  importância atribuída ao domínio do sagrado, bem como ao progressivo crescimento da refle‐xividade  social  e  à  exaltação  do  papel  do  corpo  sobre  a  identidade  individual. Gorer  (1965)  considera,  por  seu  turno,  que  a morte  se  tornara  tão  vergonhosa como o sexo, ocupando o lugar que outrora lhe estava destinado. O autor sublinha que  a  morte  é  escamoteada  através  de  mentiras  fantasiosas,  sendo  encarada como algo de maléfico, não se ousando até a proferir o seu nome. 

Segundo  Illich  (1976),  a medicalização  reduziu  a  capacidade  dos  indivíduos lidarem com a dor, o  sofrimento e a morte. A morte é agora considerada como algo de anormal e inesperado e, simultaneamente, representa uma falha nas tera‐pêuticas médicas.  Kubler‐Ross  (1969)  sublinha  que  esta  ocultação  da morte  se deve à transição do  indivíduo doente para as  instituições hospitalares. Mas, dado que as  instituições hospitalares foram concebidas para tratar e curar os doentes, têm dificuldades em dar resposta às necessidades dos doentes em fase terminal. 

Oliveira (1999) salienta que a morte foi desumanizada e afastada da vida quo‐tidiana. A maioria dos  indivíduos vive de  facto os seus últimos dias no quarto de uma  instituição hospitalar, rodeado de aparelhos sofisticados, sendo observado e assistido por um vasto  leque de profissionais, que  zelam para que  se mantenha vivo. Para Thomas (2001), a morte no hospital surge, simultaneamente, como uma resposta à exigência de cuidados de saúde e à necessidade de ocultação e institu‐cionalização  da morte. As  estruturas  organizacionais  do  hospital,  ao  terem  sido concebidas  com  o  propósito  de  tratar  e  curar  o  doente,  podem  ser  encaradas como uma forma de recusa da aceitação da morte.  

A consciencialização destes aspectos levou ao desenvolvimento de uma nova filosofia de cuidados, que actualmente se denomina de cuidados paliativos, mas cuja expressão  inicial teve por base o movimento moderno dos hospícios (Clark e Seymour, 1999). 

A emergência de uma nova filosofia de cuidados 

O movimento moderno dos hospícios surgiu como reacção aos cuidados des‐personalizados prestados aos doentes  terminais na generalidade das  instituições hospitalares (McNamara, 2004). Os primeiros líderes do movimento moderno dos hospícios  consideravam  que  a  agonia  do  doente  terminal  se  devia  sobretudo  a intervenções  técnicas  invasivas  que  prolongavam  desnecessariamente  a  vida (Abel, 1986).  

Antes de mais, é de realçar que os hospícios apareceram na Idade Média, liga‐dos a ordens religiosas, sendo compreendidos enquanto lugares de hospedagem a peregrinos doentes ou cansados, que aí encontravam um lugar de repouso. Sendo assim, os hospícios modernos não devem ser encarados como espaços de interna‐mento, mas enquanto uma  filosofia de cuidados que visa a restauração da digni‐dade humana (Clark e Seymour, 1999).  

Novas  iniciativas de  caridade  começaram  a desenvolver‐se  após  a  Segunda Guerra Mundial com o propósito de melhorar a qualidade de vida dos doentes em fase terminal. De destacar a criação, em 1967, do St. Christopher Hospice, no Rei‐no  Unido  (Clark  e  Seymour,  1999).  O  reconhecimento  dos  cuidados  paliativos 

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O Discurso da Boa Morte nas Vozes de Quem Cuida  185 

como uma especialidade médica, em 1987, deve  ser  compreendido  como outro dos marcos  importantes no desenvolvimento desta  filosofia de prestação de cui‐dados (Hockley, 1997).  

O termo paliativo advém do étimo latino pallium que significa manto ou capa. Nos cuidados paliativos os sintomas são encobertos com o  intuito de promover o bem‐estar  do  doente  (Twycross,  2003). O  cuidar  deve  assim  ser  compreendido como o conceito que delimita as práticas dos profissionais de saúde e a organiza‐ção dos serviços (Clark e Seymour, 1999).  

Os cuidados paliativos não são mais do que uma forma de acompanhamento ao doente terminal através de uma estreita colaboração terapêutica (Clark e Sey‐mour, 1999). Ao encararem a morte e o pesar enquanto factos naturais da vida, os cuidados paliativos promoveram uma crítica à medicalização e  institucionalização do processo de morrer e, simultaneamente, a aceitação da ideologia da boa morte (McNamara, 2004). 

A ideologia da boa morte 

Os  profissionais  de  saúde  que  trabalham  em  cuidados  paliativos  tendem  a construir um sistema de valores cuja base assenta na ideologia da boa morte, com o propósito de atribuir significado ao trabalho que desenvolvem com os doentes terminais (McNamara et al., 1995). A este propósito, Kubler‐Ross (1969) refere que a noção de boa morte apela ao retorno do processo de morrer para o ambiente familiar e enfatiza a partilha do conhecimento médico da situação com os doentes. 

Segundo  Payne  et  al.  (1996a)  as  percepções  sobre  uma  boa  ou má morte encontram‐se relacionadas com o desenvolvimento de certas interacções entre os desejos dos doentes, a  capacidade de atingir as expectativas dos vários  interve‐nientes e o controlo que é exercido sobre o processo de morrer. A este propósito, Costello  (2005)  refere que as percepções acerca de uma boa ou má morte  cen‐tram‐se sobretudo no processo de morrer e nas expectativas dos doentes e seus familiares e não no evento da morte em si mesma.  

Seymour (1999) sugere que o que existe são múltiplas representações sobre a trajectória ideal de morrer. A autora sublinha que a experiência de uma boa morte é frequentemente associada à imagem de uma morte natural, pacífica, dignifican‐te e não prolongada. Por exemplo, Lawton (2000) e McNamara et al. (1994) salien‐tam que para os enfermeiros dos hospícios uma boa morte é  aquela em que o paciente morre sem dores e sereno.  

A  interpretação do discurso dos sujeitos entrevistados sugere a presença de uma  lógica  idêntica à que fora apresentada por estes autores. Uma boa morte é, de facto, definida como uma morte tranquila, acompanhada pelos familiares e em que o paciente se encontra livre de dores. Como ilustração, considere‐se o seguin‐te excerto: 

“Uma boa morte será uma morte acompanhada, de preferência. Do meu ponto de  vista,  acompanhado pela  família  e de preferência  sem  cons‐ciência.  Sem  consciência  porque  eu  acho  que  a  pessoa  não  beneficia nada em aperceber‐se do que é que lhe está a acontecer.” (Enf.ª Cláudia) 

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Segundo McNamara et al.  (1994), a ocorrência de uma boa morte depende de  factores  inerentes ao contexto social e cultural em que o doente se encontra inserido, assim  como de aspectos associados à evolução da doença. A este pro‐pósito, Lawton (2000) refere que é difícil para os profissionais de saúde obterem um controlo eficaz da dor e dos desconfortos  físicos provocados pela progressão da doença, pelo que os doentes morrem agitados, confusos e angustiados.  

Do discurso dos enfermeiros entrevistados sobressai a  ideia de que uma má morte é aquela que envolve sofrimento  físico e solidão, como podem  ilustrar os seguintes excertos:  

 “Uma má morte, é a morte em que o doente que está para morrer está sozinho, com dores, em que a família não está presente.” (Enf.ª Carla) “A mim faz‐me imensa confusão os doentes a lutarem para serem inde‐pendentes, e depois, às vezes, nem é gradualmente, é uma coisa muito rápida,  a  ficarem  acamados,  a  ficarem  agónicos,  a  ficarem  dispneicos. Acho que as pessoas… Acho que o ser humano não precisava de passar por isso!” (Enf.ª Isabel)  

Para a maioria dos enfermeiros dos serviços de cuidados paliativos a morte no hospital é medicalizada e institucionalizada (McNamara et al., 1994). Aí o doen‐te  terminal encontra‐se sobre o controlo dos profissionais de saúde,  rodeado de aparelhos  sofisticados,  longe  dos  familiares  e  amigos,  sem  oportunidade  de expressar os seus sentimentos (Oliveira, 1999). Ilustrativo desta ideia é o seguinte excerto de uma entrevista:  

“Eu acho que a partir do momento em que uma pessoa entra no hospital e fica internada perde completamente a identidade. A sua identidade! A sua independência! A sua autonomia! Só o facto de entrar e ter de vestir uma bata e tirar a roupa que é sua é simplesmente dizer que nós é que estamos ali! Nós é que sabemos o que vamos fazer! E que eles estão ali só para serem tratados” (Enf.ª Isabel) 

Os sujeitos entrevistados referem ainda que o facto de trabalharem num ser‐viço de prestação de cuidados paliativos a doentes terminais contribuiu para que deixassem de compreender a morte como um falhanço da medicina e passassem a encarar o processo de morrer com mais naturalidade. Note‐se que alguns enfer‐meiros sublinham que através do seu trabalho na unidade de cuidados paliativos conseguiram compreender melhor as necessidades daqueles que se encontram na fase final da vida. Tome‐se como ilustração o seguinte excerto: 

“Quando nos confrontamos com a morte não percebemos muito bem o que estamos ali a fazer porque  lutamos para salvar vidas. Por exemplo, no hospital há uma reanimação e o nosso objectivo é salvar. Aqui depa‐ramo‐nos com uma  situação em que não há mais nada a  fazer.”  (Enf.ª Matilde) 

Da análise dos discursos dos sujeitos entrevistados sobressai a  ideia de que trabalhar num serviço de prestação de cuidados paliativos a doentes  terminais é algo satisfatório tanto em termos pessoais como em termos profissionais. 

 

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O Discurso da Boa Morte nas Vozes de Quem Cuida  187 

 

A morte suficientemente boa 

McNamara (2004) salienta que os profissionais de saúde tendem a colocar em primeiro plano o controlo da dor física e dos sintomas associados à progressão da doença. A autora sublinha que tal pode ser compreendido como um  instrumento que permite assegurar algum tipo de certeza num processo que se caracteriza pela incerteza. A este propósito, Steinhauser et al. (2000) referem que tanto os doentes como  os  profissionais  de  saúde  tendem  a  associar  a  concretização  de  uma  boa morte à minimização dos sintomas. Ora, os enfermeiros entrevistados consideram que a dor e o controlo dos sintomas são um elemento central na prestação de cui‐dados paliativos, visto que tal determina o bem‐estar geral do doente. Como ilus‐tração, considere‐se o seguinte excerto: 

“Aspectos prioritários na prestação de cuidados paliativos: temos o con‐trolo da dor. Eu acho que  isso é fundamental porque acaba por ser um ciclo! Se eles  têm dor não querem comer! Se eles  têm dor não conse‐guem fazer as pequenas coisas que poderiam! Se eles têm dor não que‐rem saber de nada! Se lhes tirarmos a dor, e se eles não tiverem dor, se calhar já conseguem tomar o pequeno‐almoço. Se conseguiram tomar o pequeno‐almoço,  conseguem  tomar  banho,  se  conseguiram  tomar banho sentem‐se mais à vontade e com mais cuidados conseguem dar umas voltas pela unidade.” (Enf.ª Matilde) 

O aumento da dor e do sofrimento  físico associado à progressão da doença são, de  facto, os aspectos que mais afligem os doentes  terminais  (Kutner et al., 1999). Porém, alguns estudos sugerem que através da administração de cuidados paliativos é possível minimizar as situações de desconforto físico provocadas pelo avançar da doença e proporcionar aos doentes uma morte digna e serena (Hallen‐beck, 2005). 

Não  obstante,  segundo  os  sujeitos  entrevistados  a  ocorrência  de  uma  boa morte depende de uma diversidade de factores, tais como a ocorrência ou não de certo tipo de sintomas, o desconhecimento ou não da situação e a existência ou não  de  conflitos  familiares.  Ilustrativo  desta  ideia  é  o  seguinte  excerto  de  uma entrevista: 

“Portanto, também há situações que por muito que se ache que as dores até estão  controladas… Há um  conjunto de  factores:  se o doente está revoltado,  se  o  doente  teve  uma  zanga  com  um  filho  que  ainda  não resolveu. Por muito que as características sejam positivas, basta uma!” (Enf.ª Matilde) 

McNamara  (2004)  sublinha  que,  os  aspectos  psicológicos  são  considerados como menos previsíveis e, consequentemente, menos possíveis de controlar, sen‐do por  isso delegados para um  segundo plano. A  interpretação do discurso dos sujeitos entrevistados sugere, no entanto, uma certa preocupação em satisfazer as necessidades emocionais dos doentes, como o pode ilustrar o seguinte excerto: 

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“É muito importante que se eles estiverem conscientes e orientados, que pouco  tempo  antes  de  falecerem,  consigam  fazer  aquilo  que  sempre tiveram vontade e nunca conseguiram.” (Enf.ª Mafalda) 

Embora o estabelecimento de uma comunicação franca entre os profissionais de saúde e o doente terminal seja considerado como um elemento central ao nível da filosofia dos cuidados paliativos (Seale et al., 1997), as expectativas dos doentes não são na maioria das vezes atingidas e a informação disponibilizada pelos médi‐cos é em geral considerada  insuficiente  (Kutner et al., 1999). De  facto, os enfer‐meiros entrevistados  tendem a usar as questões que os doentes  colocam  como pistas que permitem perceber se este se encontra preparado para discutir a sua situação  clínica  e  a  proximidade  da morte.  Ilustrativo  desta  ideia  é  o  seguinte excerto de uma entrevista: 

“Eu  acho que  acabamos  todos por  esperar que o doente  solicite. Que faça perguntas para nós respondermos acerca do tema. Se o doente não perguntar nós fazemos de conta que é um dia‐a‐dia absolutamente nor‐mal […]. Eu não vou tomar a iniciativa de falar ao doente da morte! Acho que acabo por distraí‐lo. A não ser que ele me pergunte! Se ele me per‐guntar eu também não fujo à pergunta.” (Enf.ª Sara) 

De sublinhar que os profissionais de saúde quando não se sentem confortá‐veis para  falar  abertamente  sobre  a morte optam por  limitar os  seus  contactos com o doente (Seale e Field, 2000). Note‐se que, apesar da percentagem de profis‐sionais de saúde que informam os pacientes sobre a gravidade da sua situação clí‐nica  ter  aumentado nas últimas décadas  (Seale,  1991),  a proporção de doentes que desconhecem o  seu diagnóstico devido  à  inexistência de uma  comunicação franca entre o médico e o paciente ainda é significativa (Tulsky, 2000).  

A  análise  do  discurso  dos  sujeitos  entrevistados  revela  uma  cumplicidade entre os profissionais de saúde e os familiares, de forma a escamotear a verdade ao doente, sob o pretexto que este não  irá suportar a situação. Como  ilustração, considere‐se o seguinte excerto de uma entrevista: 

“Tem  a  ver  com  uma  opção  familiar.  E muitos médicos  também  não estão  ainda  preparados!  Penso  eu!  Para  comunicar  com  o  doente  e dizer‐lhe de forma frontal que o doente vai morrer! Que vem para aqui passar os últimos dias!” (Enf.ª Maria) 

Apesar dos enfermeiros entrevistados considerarem que é importante estarem activamente envolvidos no processo de morrer, sublinham que  lhes é difícil rotular as experiências dos doentes. Também ilustrativo desta opinião é o seguinte excerto: 

“Aqui depende de pessoa para pessoa! Não há um padrão!  […] Básica‐mente sem dor consegue‐se. Agora da maneira como ele esperaria, isso é sempre uma dúvida, temos que conhecer relativamente bem os doen‐tes, e nem sempre temos oportunidade para isso.” (Enf.ª Mafalda) 

A este propósito, McNamara (2004) refere que os profissionais de saúde ten‐dem a usar uma noção pragmática e contingente do processo de morrer, ou seja, que se aproxima o mais possível das circunstâncias que a pessoa escolheu. 

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O Discurso da Boa Morte nas Vozes de Quem Cuida  189 

 

Considerações Finais 

Concluiu‐se, através desta pesquisa, que o  sistema de valores desenvolvido pelos profissionais de saúde com o propósito de atribuir significado ao seu traba‐lho com doentes terminais, cuja base assenta na  ideologia da boa morte, é cons‐truído e reconstruído dentro do cenário de prestação de cuidados.  

Na tentativa de proporcionar uma boa morte, os sujeitos entrevistados ten‐dem  a  dar  prioridade  ao  controlo  da  dor  e  dos  sintomas,  delegando  para  um segundo  plano  as  necessidades  psicológicas,  sociais  e  espirituais  dos  doentes. Estes  enfermeiros  reconhecem  que  a  tarefa  de minimizar  o  sofrimento multidi‐mensional é um desafio complexo, daí que admitam que muitos doentes não con‐sigam atingir o ideal de boa morte proposto pela filosofia inerente à prestação de cuidados paliativos. 

Os enfermeiros falam assim, quando muito, na existência de uma morte sufi‐cientemente boa. Ou seja, na morte que se aproxima o mais possível das circuns‐tâncias que a pessoa escolheu. É, de facto, evidente o recurso a uma noção prag‐mática e contingente do processo de morrer.  

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DIREITO DE VIVER E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: 

BREVES REFLEXÕES SOBRE A EUTANÁSIA PASSIVA 

(UM ESTUDO DO CONTEXTO JURÍDICO BRASILEIRO)1 

Criziany Machado Felix   

Morrer é dormir. Nada mais. E por um sonho, diremos, as aflições se acabarão e as dores sem número, patrimônio da nossa débil natureza.  Isto é o fim que deveríamos solicitar com ânsia. Morrer é dormir… E talvez sonhar. 

(William Shakespeare, Hamlet, ato III). 

Considerações iniciais 

A morte descrita por Shakespeare, cujo fragmento se encontra supramencio‐nado, é desejada por muitos no mundo contemporâneo, porquanto esta mudou seu  caráter,  não  é  mais  uma  morte  domiciliar  rodeada  das  pessoas  queridas. Atualmente,  a morte  dá‐se  ora  antes  de  termos  um  tratamento  digno;  ora  em meio a tratamentos que gostaríamos de nos furtar. 

No  contexto brasileiro,  as pessoas menos  afortunadas  financeiramente, que, raramente  têm acesso às modernas  tecnologias, morrem, muitas vezes, na espera de uma  chance de  consultar um médico; é  a  “eutanásia  social”,  a mistanásia. Os mais privilegiados economicamente têm à sua disposição uma larga gama de trata‐mentos, que, por vezes, são extremamente úteis, outras, acarretam apenas a morte longe da  família,  longe dos amigos,  longe do calor humano e próximo do  frio das máquinas hospitalares. Esse paradoxo deve‐se, em boa parte, ao progresso geomé‐trico da ciência e tecnologia na área médica e das demais ciências da vida. 

Para muitas pessoas, a disponibilidade da medicina de alta  tecnologia para “consertar” as marcas da vida é uma  fonte de esperança e consolo. Para outras, são  tratamentos  fúteis  que  podem  acarretar males maiores  do  que  benefícios. Porém, é comum a recusa a abrir mão de tratamentos desproporcionais por parte de alguns médicos e familiares na busca incessante da “vida”. Essas pessoas agem 

                                                              1 Este artigo consiste numa versão revista, condensada e atualizada do artigo intitulado “Eutanásia passiva: breves reflexões acerca do respeito à dignidade da pessoa humana ao morrer”, publica‐do na revista Depoimentos, n.º 11, Jan.‐Jun. 2007, pela Faculdade de Direito de Vitória/Br., que tem por base parte da dissertação de mestrado  em Ciências Criminais  intitulada  Eutanásia: reflexos  jurídico‐penais e o respeito à dignidade da pessoa humana ao morrer e apresentada em Agosto de 2006 na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/Br. 

ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 191‐204. 

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192  Criziany Machado Felix 

como se a “vida” não fosse também morte. Vida é nascimento, desenvolvimento e morte; por vezes o desenvolvimento é menor do que esperávamos, e a morte che‐ga antes do que almejávamos, mas ela também é parte da vida. 

A não consideração da morte como uma dimensão da existência humana e do conseqüente desafio de lidar com ela como um dos objetivos da medicina faz com que  sejam  introduzidos  tratamentos agressivos que  somente prolongarão o pro‐cesso de morrer. A postura a ser pautada diante desse processo traz  implicações éticas e jurídicas que deverão ser analisadas em cada caso, é uma exigência intro‐duzida pelos novos paradigmas científicos,  traduzindo a complexidade das  inter‐faces da problemática da (in)admissibilidade de práticas eutanásicas. Todavia, em face  da  limitação  espacial  deste  ensaio,  optamos  por  discorrer  apenas  sobre  a modalidade passiva, a qual será diferenciada das outras modalidades para, poste‐riormente, serem analisadas as implicações no campo da bioética e do direito. 

Definições necessárias 

A questão polêmica e complexa encontra‐se  longe do consenso. A eutanásia evidencia  seu  caráter problemático desde o  intuito de defini‐la. Em  seu  sentido etimológico, a palavra deriva dos vocábulos gregos “eu”, prefixo que significa bom, e “thánatos”, substantivo equivalente à morte, e alude ao ato de dar a “boa mor‐te”,  podendo,  portanto,  verificar‐se  em  situações muito  dessemelhantes  e  obe‐decendo  aos mais diversos propósitos. Nesse diapasão,  faz‐se necessário proce‐dermos a algumas conceituações a fim de delimitarmos o objeto de nossa análise. 

Iniciaremos a abordagem discorrendo sobre a natureza da prática da conduta eutanásica. Valemo‐nos para tanto das considerações de Jimenéz de Asúa  (1929: 252‐253) que destaca a necessidade de distinguir a eutanásia médica da prática do homicídio por piedade, praticado por familiares ou amigos fiéis e desinteressados. Alude que a eutanásia praticada pelos médicos nos seus  justos  limites2 carece de substância polêmica, pois é uma verdadeira cura, um meio benéfico para os que sofrem cruelmente. A problemática reside na morte dada por pessoas  ligadas ao paciente por  laços de  família, de amizade ou de amor, porque devemos verificar “se ao matador não o guiou um motivo egoísta”. Se a resposta for negativa o autor entende ensejar um perdão judicial. 

Martin  (1998: 183), em posição  similar  a de  Jimenez de Asúa, destaca  ser o questionamento de consistir a eutanásia, exclusivamente, num ato médico ou não, uma ambigüidade que surge freqüentemente em relação à sua natureza e aduzindo que o uso consagra o sentido das palavras, propõe que se reserve a palavra eutaná‐sia exclusivamente para denotar atos médicos que, motivados por compaixão, pro‐voquem precoce e diretamente a morte a  fim de eliminar a dor. De nossa parte, concordarmos apenas com as posições de Jimenéz de Asúa e de Martin sobre a dis‐tinção que se impõe entre a eutanásia realizada por médicos e a morte misericordio‐sa dada por outras pessoas, pois concebemos a eutanásia como ato médico. 

                                                              2 Releva mencionar que Jimenéz de Asúa (1929) ao discorrer acerca dos justos limites da prática de  eutanásia  estava  referindo‐se  aos  casos  de  eutanásia  de  duplo  efeito,  ou  seja,  aquela acarretada  indiretamente por ministrar‐se medicamentos que objetivem diminuir ou aliviar a dor do paciente. 

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No que diz respeito à conduta do agente, podemos classificar a eutanásia em por  ação  ou  positiva  e  por  omissão  ou  negativa;  ou,  ainda,  em  ativa  e  passiva. Observando‐se o fim perseguido pelo autor, podemos dividir a eutanásia ativa em: direta,  indireta  ou  pura.  Esta  última  modalidade,  consistente  na  aplicação  de meios no auxílio à boa morte desprovido de efeitos que abreviem o  curso vital, não acarretando maiores questionamentos. 

A problemática circunscreve a confusão, que é feita, por alguns doutrinado-res, entre a modalidade ativa e a por ação; e a modalidade passiva e a por omis-são, bem como entre a modalidade ativa e a direta; e a passiva e a indireta. 

Javier Gafo (1989: 54), ao abordar a distinção entre eutanásia ativa e passiva, entende ser o primeiro caso a colocação em prática de uma ação médica positiva com a qual ou se acelera a morte de um enfermo ou se põe fim a sua vida. Aduz o autor que, de  forma  contrária, no  caso da eutanásia negativa não há uma ação positiva, senão que simplesmente não se aplica nenhuma terapia ou ação que pos‐sa prolongar a vida do enfermo. A característica da eutanásia passiva ou negativa seria, portanto, a omissão, a não aplicação de uma terapia disponível. 

Nesse mesmo sentido, é a posição traçada por Pessini e Barchifontaine (2000: 293), ao afirmarem ser a eutanásia ativa (positiva ou direta) uma ação médica pela qual se põe termo à vida de uma pessoa enferma, podendo também ser chamada de morte piedosa ou  suicídio  assistido  e  ser  a eutanásia passiva  (negativa) uma omissão, ou seja, a não aplicação de uma  terapia médica com a qual se poderia prolongar a vida da pessoa enferma. 

Parece‐nos oportuno apontar que os referidos autores equivocam‐se, pois na eutanásia passiva também pode haver uma ação, uma vez que o agente pode frus‐trar a ocorrência de técnicas que  já vêm sendo utilizadas, sem que com  isso  leve diretamente à morte. Essa morte pode advir por outros  fatores proliferados em razão  da  ausência  da  aplicação  dessas  técnicas,  portanto,  indiretamente. Nessa orientação é a posição de Lecuona (1997: 99): 

Es  importante no  asimilar  la distinción entre eutanasia  activa  y eutanasia pasiva a  la distinción entre acción y omisión, pues aunque pudiera encon‐trar‐se algún parentesco entre ellas, no son exactamente equivalentes. Un médico  que  desconecta  el  respirador  de  un  paciente,  por  ejemplo,  cier‐tamente está realizando una acción: está haciendo algo, a saber, retirando un aparato y por lo tanto dando muerte al paciente cuja vida dependía del mismo. Sin embargo, esa acción normalmente se clasificaría como un acto de  eutanasia pasiva, puesto que  sin  el  respirador  la muerte  del  paciente sobreviene naturalmente, sin major intervención por parte del médico. Aquí, el médico no da muerte activamente a un paciente, sino que pasivamente le deja morir.3 

                                                              3 “É importante não assemelhar a distinção entre eutanásia ativa e eutanásia passiva à distinção entre ação e omissão, pois ainda que puderámos encontrar algum parentesco entre elas, não são exatamente equivalentes. Um médico que desconecta o  respirador de um paciente, por exemplo,  certamente  está  realizando  uma  ação:  está  fazendo  algo,  a  saber,  retirando  um aparelho e, portanto, dando a morte ao paciente cuja vida dependia do mesmo. Entretanto, essa  ação  normalmente  se  classificaria  como  um  ato  de  eutanásia  passiva,  porque  sem  o respirador a morte do paciente sobrevém naturalmente, sem maior  intervenção por parte do médico. Aqui, o médico não dá morte ativamente a um paciente, senão que passivamente lhe deixa morrer” (tradução nossa). 

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Ainda,  no  sentido  do  exarado,  vale mencionar  as  considerações  de Morão (2006: 38): 

Devem  também  ser  consideradas  situações  de  eutanásia  passiva  certos casos de omissão da continuação do tratamento médico que se encontram, não  obstante,  relacionados  com  comportamentos  activos,  como  designa‐damente, o caso da interrupção da reanimação artificial. Pois, como defende actualmente a melhor doutrina, na esteira da construção roxiniana, o acto de desligar um aparelho reanimador, embora traduzindo uma conduta acti‐va de uma perspectiva fenomenológica, consubstancia afinal uma omissão do ponto de vista normativo, uma omissão através da acção, uma vez que representa uma recusa da continuação da intervenção médica. 

Consideramos, portanto, que  a  eutanásia passiva é  aquela em que  alguém decide retirar de outra pessoa, com a finalidade de acelerar sua morte, os apare‐lhos ou medicamentos que a mantêm viva, ou negar‐lhe o acesso a  tratamento que poderia prolongar sua vida, restando, dessa forma, a possibilidade de um agir positivo, bem como de um agir negativo. Pode‐se nomeá‐la, ainda, “ortotanásia”, o termo tem origem etimológica grega, provendo do prefixo “orthós”, que significa normal, correta, e do substantivo “thánatos”, equivalente à morte, significando o morrer corretamente, humanamente. 

Por eutanásia ativa concebe‐se aquela que uma pessoa administra à morte a outra, podendo encurtar‐lhe a vida diretamente – eutanásia direta – ou podendo o tempo de vida ser reduzido indiretamente através de medicamentos ministrados para aliviar a dor – eutanásia  indireta,  também denominada eutanásia de duplo efeito. 

A bioética, seus princípios basilares e as interfaces com o direito 

Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bios  (vida) e ethike (ética). Atualmente a bioética compreende, basicamente, o campo de  interseção da ética  com  as  ciências biológicas, que  se  transformou numa  área do  conheci‐mento interdisciplinar, apresentando múltiplas facetas. “O objetivo principal desse campo de estudos éticos consiste, assim, em trabalhar as relações entre a ética e a vida humana, a ciência e os valores humanos, sendo necessariamente interdiscipli‐nar” (Barreto, 2001: 43). 

Pautaremos  nosso  estudo  no  paradigma  principialista4,  que  está  entre  os modelos de análise da bioética mais divulgados e propõe a orientar as ações três princípios: a autonomia (princípio do respeito à autonomia), a beneficência e a jus‐tiça. É a denominada “Trindade Bioética”. Alguns doutrinadores acrescentam um quarto  princípio:  a  não‐maleficência. Os  princípios  aludidos  não  têm  disposição 

                                                              4 Destacamos que o paradigma principialista não é o único modelo de análise teórica da bioéti‐ca, embora seja o mais utilizado; existem outros como os paradigmas: liberatório, das virtudes, casuístico, fenomenológico e hermenêutico, narrativo, do cuidado, do direito natural, contra‐tualista e antropológico personalista. Todavia, optamos pela abordagem através do viés princi‐pialista por considerarmos que as demais perspectivas são, em realidade, abordagens, aprimo‐radas  em  alguns  aspectos  e  deterioradas  em  outros,  do  próprio  principialismo.  Assim,  não podemos considerá‐los como exclusivos e sim como complementares. 

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hierárquica entre si e são válidos prima  facie, a situação em causa e suas conse‐qüências é que  indicarão que princípio deve ter precedência, em caso de colisão. Esse modelo é amplamente aplicado na práxis clínica, pois se considera que possui resultados  bastante  positivos  em  relação  ao  respeito  pela  dignidade  da  pessoa humana. 

O princípio do respeito à autonomia  (autos, eu; nomos,  lei) denota que todos devem  ser  responsáveis por  seus  atos. A  responsabilidade, nesse  sentido,  implica atos de escolha. Segundo nos ensina Clotet (2003: 144), o princípio em tela pode ser analisado sob dois enfoques distintos, quais sejam: sob o aspecto exclusivo do médi‐co, referindo‐se nesse caso à autonomia do médico ou do profissional da saúde, ou entendido  como o  reconhecimento e a expressão da vontade do paciente ou dos seus representantes nas diversas etapas ou circunstâncias do tratamento médico. 

Em face do respeito à dignidade da pessoa humana, refutamos posições que considerem a prevalência da autonomia do médico ou profissional da  saúde em detrimento da autonomia do paciente. Clotet (2003: 145), no sentido do exposto, destaca que: “o direito de autodeterminação do paciente ou do seu representante deveria  ser  sempre  respeitado pelo profissional da medicina, pois este de modo geral deveria sempre agir conforme o  interesse do paciente, manifestado através da sua vontade autônoma”. 

A autonomia expressa a liberdade de escolha, a possibilidade do paciente optar em relação a tudo que diga respeito à sua pessoa, de decidir sobre sua história pes‐soal, de decidir sobre a  ingerência ou não no seu curso vital. Entretanto, para que isso seja possível faz‐se mister que ele tenha total consciência do seu estado clínico, devendo, dessa  forma, o consentimento ou a  recusa à submissão de determinada terapêutica estar vinculado ao esclarecimento da situação do paciente por parte dos profissionais da saúde que lhe estiverem ministrando atendimento. 

A validade do consentimento  informado depende da capacidade de fato5 do indivíduo  em  consentir,  que  se  encontra  disciplinada  no  Código  Civil  pátrio  nos artigos 3.º e 4.º, que versam respectivamente: 

 Art. 3.º São absolutamente  incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I –  os menores de 16 (dezasseis) anos; II –  os  que,  por  enfermidade  ou  deficiência  mental,  não  tiverem  o 

necessário discernimento para a prática desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua von‐

tade. Art. 4.º São  incapazes, relativamente a certos atos, ou a maneira de os exercer: 

                                                              5 É de extrema importância que não se confunda a “capacidade de direito” (personalidade) com a “capacidade de  fato”. A capacidade de direito, personalidade  jurídica, é  igual para  todos e exprime a aptidão genérica para adquirir direitos e contrair obrigações. Ela independe da cons‐ciência ou da vontade humana, pois a capacidade de direito é atributo de todo homem, e dele inseparável. O mesmo não ocorre com a capacidade de fato (ou de exercício), que é a faculda‐de de poder exercer pessoalmente os direitos de que se é titular; esta pressupõe a existência de duas faculdades: a consciência e a vontade. A falta de uma dessas faculdades ou de ambas torna  a  pessoa  incapaz.  Tal  incapacidade  pode  ser  suprida  pelo  instituto  da  representação (Felix, 1996: 222). 

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I –  os maiores de 16 (dezasseis) anos e menores de 18 (dezoito) anos; II –  os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência 

mental, tenham o discernimento reduzido; III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; 

 Diante do exposto, deparamos‐nos com dois tipos de incapacidade, respecti‐

vamente, a incapacidade absoluta e a relativa. A primeira consiste numa restrição do poder de agir, devido à ausência da faculdade do exercício pessoal e direto dos direitos de personalidade – dessa forma, são representados por terceiros nos atos que se relacionam com seus direitos e  interesses. A segunda refere‐se a pessoas que não possuem integralmente qualidades que lhes permitam liberdade de ação para procederem com completa autonomia – dessa forma, a  legislação exige que sejam assistidos por terceiros nas tomadas de decisões; não são privados de inge‐rência ou participação na vida jurídica. 

Como podemos perceber, a capacidade, compreendida como capacidade de fato, é  imprescindível para validar‐se o consentimento. Todavia, outros requisitos também se apresentam como necessários para que o paciente possa validamente prestar sua anuência a um tratamento, quais sejam: a revelação adequada e veraz da informação pela equipe médica; a compreensão adequada dessa informação e o consentimento voluntário. 

O testamento vital, também denominado de Living Will ou Testament de Vie, é uma forma de respeito à autonomia do paciente que aparece ao lado da possibi‐lidade do consentimento  informado. Através desse documento a pessoa determi‐na, de  forma escrita, que  tipo de  tratamento ou não  tratamento deseja  receber caso se encontre doente, em estado incurável, terminal, ou em estado clínico não condizente com a dignidade da pessoa humana. Pode ser revogado pelo paciente a qualquer momento. Serve para uma pessoa manifestar sua vontade de forma ine‐quívoca, caso, em momento futuro, não possa fazê‐lo. Além de evitar procedimen‐tos médicos que o paciente não desejaria receber, poderia assegurar que o médico não fosse processado em face de sua omissão. 

Outro princípio que devemos analisar é o princípio da beneficência. “Do  latim bonum facere (fazer o bem)”. Segundo ensina Clotet (2003: 64) “o princípio da bene‐ficência  tenta,  num  primeiro momento,  a  promoção  da  saúde  e  a  prevenção  da doença e em  segundo  lugar pesa os bens e os males buscando a prevalência dos primeiros”. Portanto, quando não for mais possível fazer‐se o bem ao paciente deve‐‐se buscar não lhe fazer mal. É aqui que reside o princípio da não‐maleficência. Por ilação, temos que o princípio da não‐malefícência envolve uma abstenção, qual seja a do profissional da saúde de fazer o mal, de não tomar nenhuma atitude que venha a trazer conseqüências negativas para o paciente; ao passo que o princípio da bene‐ficência tem como norte uma comissão, um agir, em prol do bem do paciente. 

O último dos princípios da “Trindade Bioética” é o da justiça. “O princípio da Justiça,  nesse  campo,  indica  a  obrigação  de  se  garantir  uma  distribuição  justa, eqüitativa  e universal  dos  bens  e  serviços  (dos  benefícios)  da  saúde.  Liga‐se  ao contexto da cidadania, implicando uma atitude positiva do Estado, no que se refe‐re ao direito à saúde” (Fabriz, 2003: 111). 

Adotando a posição de Barreto (2001), entendemos que os três princípios apre‐sentados não foram estabelecidos para concomitantemente resolverem as questões controversas oriundas das profundas mudanças no campo das ciências biomédicas 

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contemporâneas, porquanto estes são referências de três campos de atuação distin‐tos, ainda que todos relacionados à pessoa humana. Nessa senda, servem para privi‐legiar um dos aspectos da relação médico‐paciente: o princípio da autonomia refere‐‐se ao espaço decisório que cabe à pessoa humana a submeter‐se a tratamento ou não, bem como a  frustrar tratamentos  já  iniciados; os princípios da beneficência e não‐maleficência enfatizam o papel do profissional da saúde ao tratar com o corpo e a mente da pessoa humana; e o princípio da justiça relaciona‐se com o poder públi‐co estatal e da sociedade, por onde se procura realizar o mais alto grau de  justiça, através da  justa distribuição dos benefícios e serviços de saúde e da obrigação de tratamento igualitário, respeitadas as diferenças de quadros clínicos. 

Para os fins propostos no presente estudo releva apenas a análise dos princí‐pios da autonomia e da beneficência e não‐maleficência. Assim,  levando em con‐sideração uma abordagem contemporânea do direito, não arraigada no positivis‐mo jurídico, podemos afirmar que na base da discussão jurídica da morte eutaná‐sica  encontra‐se  o  princípio  da  dignidade  da  pessoa  humana,  que  se  expressa, dentre  outras  formas,  através  dos  princípios  da  autonomia  e  da  beneficência  e não‐maleficência, princípios estruturais da bioética. 

A (in)disponibilidade do direito à vida e o respeito devido à pessoa humana 

Um  argumento,  aparentemente  forte,  pautado  para  impedir  a  admissibili-dade da  eutanásia  consiste na  consideração que  a  vida  é um bem  indisponível. Vários são os autores adeptos desse pensamento, por considerarem que o direito à vida é absoluto e deve sobrepor‐se aos demais direitos fundamentais. Destaca-mos alguns: 

Nessa seara, Diniz (2002: 21) aduz que “o direito à vida, por ser essencial ao ser humano, condiciona os demais direitos da personalidade”. Entende que “a vida humana deve ser protegida contra  tudo e contra  todos, pois é objeto de direito personalíssimo”. Na mesma linha é a posição de Bitencourt (2004: 28): 

 

A conservação da pessoa humana, que é a base de tudo, tem como con‐dição primeira a vida, que mais que um direito, é a condição básica de todo o direito  individual, porque  sem ela não há personalidade, e  sem esta não há o que se cogitar de direito individual. 

O respeito à vida humana é, nesse contexto, um imperativo constitucional, que, para ser preservado com eficácia, recebe ainda a proteção penal. A sua  extraordinária  importância,  como  base  de  todos  os  direitos  funda‐mentais da pessoa humana, vai ao ponto de impedir que o próprio Estado possa  suprimi‐la, dispondo a Constituição Federal que “não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX” (art. 5.º, inciso XLVII, letra a). Com efeito, embora seja um direito público subjetivo, que o próprio Estado deve respeitar, também é direito privado, inserindo‐se  entre  os  direitos  constitutivos  da  personalidade.  Contudo, isso não significa que o indivíduo possa dispor livremente da vida. Não há um direito  sobre  a  vida, ou  seja, um direito de dispor,  validamente, da própria  vida.  Em  outros  termos  a  vida  é  um  bem  indisponível,  porque constitui elemento necessário de todos os demais direitos. 

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A  inviolabilidade do direito à vida ora descrito encontra, segundo a maioria dos autores que o defendem, seu respaldo na Constituição Federal no artigo 5.º, caput, e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo 3.º, que preceituam respectivamente: 

 

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer nature‐za, garantindo‐se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade… 

Art. 3.º Todo homem tem direito à vida, à  liberdade e à segurança pes‐soal. 

 

Diante do exposto, constata‐se que os contrários à prática da eutanásia consi‐deram o direito à vida como absoluto, sendo que todos os demais direitos, por con‐seguinte, decorreriam deste. Todavia, cumpre destacar que, não obstante o direito à vida assumir posição de relevo no ordenamento jurídico brasileiro, sendo reconheci‐do como bem jurídico constitucional digno de tutela penal, não possui, como qual‐quer outro, caráter absoluto. A autorização da pena de morte, em caráter excepcio‐nal, no caso de guerra declarada, prevista na alínea ‘a’ do inciso XLVII do artigo 5º da Carta Constitucional, é um dos exemplos do caráter relativo do direito à vida. 

Acresce‐se ao exemplo referido as situações em que o Código Penal brasileiro admite  a  possibilidade  de mitigação  do  direito  à  vida,  como  quando  prevê  não configurar  crime  o  agente  que  “mate  outrem”  amparado  por  causas  de  justifi‐cação, tais como  legitima defesa, estado de necessidade ou estrito cumprimento do dever  legal, ou ainda, diante de discriminantes putativas, bem  como quando autoriza determinadas formas de aborto ou não incrimina a tentativa de suicídio. 

Canotilho  (2002:  407),  no  sentido  do  pensamento  supra  exarado,  entende que o direito à vida pressupõe sua proteção perante terceiros; e não contra tudo e contra todos, como abordam alguns partidários do caráter absoluto deste direito, deixando uma abertura para fazermos a  ilação de ser o consentimento do titular do direito suficiente para ensejar uma eutanásia lícita. 

Discorrendo sobre a (in)disponibilidade do bem jurídico vida, por parte de seu titular, Zaffaroni (2002: 465) assevera: “a vida é o mais disponível dos bens jurídi‐cos, porque costumamos consumi‐la a cada momento a nosso bel‐prazer”. Corro‐boramos a posição do autor em comento, pois entendemos que “viver” são contí‐nuos atos de disposição da própria vida. 

É, pois, flagrante o caráter relativo do direito à vida, sendo uma constatação que se  impõe a sua disponibilidade, em determinadas situações, em especial por parte de seu titular, porquanto, ademais de sua relatividade, trata‐se de direito à vida e não de um dever de perpetuação; viver não é uma obrigação; não é, e não pode ser considerado, compulsório. A relativização do direito à vida a fim de asse‐gurar o respeito devido à dignidade da pessoa humana  impõe‐se em decorrência da necessidade de refutarmos situações indignas e degradantes. 

Todavia, cumpre mencionarmos que a disponibilidade da vida também não é um direito absoluto, sofrendo mitigações em diversas situações, a exemplo, entre outros, das pessoas que não têm capacidade de exarar seu consentimento, e, não podendo, pois, dispor sobre ingerências em seu curso vital. 

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Encontramo‐nos diante de situações que fogem aos rigores das regras jurídi‐cas, pautam‐se em princípios, via de regra, em colisão. Assim, é mister, para viabi‐lizar uma adequada postura  frente ao  tema, estudarmos não apenas a  (in)dispo‐nibilidade do direito à  vida, mas  também as dimensões da dignidade da pessoa humana e as principais teorias sobre princípios em colisão. 

A dignidade da pessoa humana, no ordenamento  jurídico brasileiro, encon‐tra‐se situada entre um dos cinco fundamentos do Estado Democrático de Direito, no artigo 1.º, inciso III, da Carta Constitucional de 1988. Canotilho (2002: 225), ver‐sando  sobre o  tema, assevera que  “trata‐se de princípio antrópico que acolhe a ideia pré‐moderna e moderna de dignitas‐hominis, ou  seja, do  indivíduo confor‐mador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projecto espiritual”. 

A dignidade possui uma dúplice perspectiva, qual seja: uma dimensão auto‐nômica e outra assistencial, protetiva. Quando não for possível a conduta de uma determinada  pessoa  ser  pautada  pela  dimensão  autonômica,  em  especial  nas questões bioéticas ora propostas, devemos seguir respeitando a dignidade da pes‐soa humana na sua perspectiva protetiva, ou seja, devemos analisar o caso pelo prisma da beneficência e da não‐maleficência, pois o direito à assistência é devido a todos os seres humanos, mesmo aos incapazes de reger‐se de forma autônoma6. 

É, pois, nesse ponto que a discussão acerca do direito de morrer encontra o seu maior gargalo, porquanto para alguns o direito à vida deve sobrepor‐se à dig‐nidade da pessoa humana, e para outros, esta deve sobrepor‐se àquele. 

Princípios constitucionais em colisão: aportes para sua interpretação e ponderação 

Buscando pautar a postura jurídica que julgamos adequada ao tratamento da eutanásia passiva deparamos‐nos com alguns princípios da bioética que freqüente‐mente estão em tensão quando discutimos  ingerência no curso vital e devem ser analisados à luz da máxima da proporcionalidade. 

Abstratamente, as garantias constitucionais do direito à vida e do respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana deveriam coexistir em harmonia, sendo, dessa forma, um direito à vida digna. Contudo, nem sempre esse ideal é atingido. Nessa senda é que se  impõe como corolário  lógico da tarefa de  julgar, em situa‐ções de princípios conflitantes, a máxima da proporcionalidade, que se subdivide em três máximas parciais (ou subprincípios): adequação, necessidade e proporcio‐nalidade em sentido estrito. 

O  subprincípio  da  adequação,  também  denominado  de  princípio  da  perti‐nência,  idoneidade  ou  princípio  da  conformidade,  exige  uma  relação  empírica entre o meio e o fim: o meio deve levar à realização do fim. Demanda uma relação adequada entre um ou vários  fins determinados e o meio ou os meios com que são levados a termo. 

O subprincípio da necessidade é também descrito como princípio da exigibi‐lidade, da  indispensabilidade, da menor  ingerência possível, da  intervenção míni‐

                                                              6 Nesse sentido, ver Dworkin (2003: 337‐340), pois o autor assevera que a dignidade possui uma voz ativa e outra passiva, sendo que ambas encontram‐se  interligadas, pois é no valor  intrín‐seco da vida humana que encontramos respaldo para afirmar que mesmo aquele que  já per‐deu a consciência de sua dignidade, ou nunca a teve, merece tê‐la respeitada e considerada. 

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ma, da escolha do meio mais suave e da proibição de excesso, sendo, inclusive, por alguns autores, confundido nessa última acepção com o próprio princípio da pro‐porcionalidade em sentido lato. O exame deste subprincípio, consoante nos ensina Ávila (2003: 114), “envolve a verificação da existência de meios que sejam alterna‐tivos àquele inicialmente escolhido, e que possam promover igualmente o fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais afetados”. 

A análise da proporcionalidade em  sentido estrito  leva em  consideração os interesses em tensão, verifica‐se a relação custo‐benefício da medida a ser toma‐da, isto é, devemos ponderar os danos a serem causados e os resultados a serem obtidos. Nessa seara, Ávila  (2003: 116) aduz que “o exame da proporcionalidade em sentido estrito exige a comparação entre a importância da realização do fim e a intensidade da restrição aos direitos fundamentais”. 

Como  podemos  perceber,  o  princípio  da  proporcionalidade  demanda  uma dimensão tripla, devendo as questões que forem discutidas sob seu prisma serem pautadas na adequação, necessidade e proporcionalidade – em sentido estrito – dos meios mitigados em prol dos fins objetivados. A sua relevância demonstra‐se na análise de situações concretas, quando bens jurídicos ou direitos fundamentais igualmente habilitados a uma proteção do ordenamento jurídico se encontram em colisão,  porquanto  não  existe  hierarquia  entre  os mesmos,  já  que  possuem  a mesma  natureza  normativa,  devendo  ser  igualmente  obedecidos.  Surge  como parâmetro das interpretações constitucionais e ponderações destinadas a solucio‐nar colisões, devendo sua aplicabilidade ocorrer através de suas projeções: a con‐cordância  prática  e,  na  impossibilidade  desta,  o  dimensionamento  de  peso  ou importância dos princípios em tensão. 

Tendo como corolário o princípio da unidade da Constituição, através do qual se estabelece que nenhuma norma constitucional possa ser interpretada em con‐tradição com outra norma da Constituição e  levando‐se em conta que não existe escalonamento  entre  normas  de  direitos  fundamentais,  faz‐se  necessária  a  har‐monização das normas constitucionais em pauta no caso a ser analisado, através do denominado princípio da “concordância prática”. 

A  concordância  prática  é  uma  forma  de  interpretação  constitucional  que objetiva a aplicação simultânea e conciliável dos princípios constitucionais, ainda que no caso concreto seja necessário o abrandamento de um deles, desde que não perca  sua  identidade, pois  a harmonização busca obter a máxima efetivação de todos os princípios em discussão. 

Não obstante a relevância do princípio da concordância prática, ou da harmoni‐zação, para a interpretação das normas constitucionais, nem sempre é possível solu‐cionarmos as colisões entre princípios aplicando‐o. Em muitos casos, faz‐se necessá‐rio o dimensionamento de peso ou importância dos princípios sob discussão. 

O critério da Dimensão de Peso ou  Importância foi estruturado por Dworkin (2002), a fim de buscar a solução de casos difíceis, com fulcro na distinção por ele proposta entre  regras e princípios, e aperfeiçoado por Alexy  (2001). Assim, para uma melhor compreensão das questões a serem exaradadas, analisaremos o pen‐samento de ambos, pautando as divergências e as convergências entre eles. 

Afirma Dworkin (2002: 40‐43) que a diferença entre regras e princípios reside numa distinção  lógica, decorrente da natureza da orientação que oferecem. Não obstante os dois conjuntos de padrões apontarem para decisões particulares acer‐

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ca da obrigação  jurídica em circunstâncias específicas, as regras são aplicáveis na lógica do “tudo ou nada”, o que não ocorre com os princípios. Se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou ela é válida e a sua conseqüência norma‐tiva deve ser aceita, ou ela não é considerada válida, em nada contribuindo para a decisão. Portanto, se duas regras entrarem em conflito, uma delas deverá ser con‐siderada  inválida. Os princípios  ao  contrário, não determinam  as  conseqüências normativas de forma direta, mas apenas contêm fundamentos, os quais devem ser examinados em conjunto com outros fundamentos provenientes de outros princí‐pios. 

Pautando‐nos na posição de Dworkin podemos afirmar que um princípio não determina as condições que tornam sua aplicação necessária; ao revés, estabelece uma  razão –  fundamento – que  impele o  intérprete numa direção, mas que não reclama uma decisão específica. Dessa maneira, quando nos deparamos com um princípio frente a outro, haverá prevalência de um em detrimento do outro, o que não significa que ele perca a sua condição de princípio, que deixe de pertencer ao sistema jurídico. 

Alexy (2001), partindo desse posicionamento aprimora‐o e elabora sua teoria dos direitos fundamentais. Ressalva que apesar de sua distinção entre princípios e regras se parecer com a de Dworkin, distingue‐se dessa em um ponto essencial, na caracterização dos princípios como mandados de otimização. Concebe a  tese de Dworkin  como  demasiadamente  simples,  justificando  sua  posição  da  seguinte maneira: 

 

El punto decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los princi‐pios son normas que ordenan que algo sea  realizado en  la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que están caracterizados por el hecho de que pueden  ser  cumplidos en diferente grado y que  la medida debida de  su  cumplimiento  solo depende de  las posibilidades  reales  sino también de las jurídicas. El ámbito de las posibilidades jurídicas es determi‐nado por los principios y reglas opuestos. En cambio, las reglas son normas que  sólo  pueden  ser  cumplidas  o  no.  Si  una  regla  é  valida,  entonces  de hacerse exactamente  lo que ella exige, ni más ni menos. Por  lo  tanto,  las reglas contienen determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible. Esto significa que la diferencia entre reglas y principios es cualitativa y no de grado. Toda norma es o bien una regla o un principio (Alexy, 2001: 66‐67).7 

                                                              7 “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível. Dentro das possibilidades jurídicas e  reais  existentes.  Portanto,  os  princípios  são mandatos  de  otimização,  que  estão  caracte‐rizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu  cumprimento  não  só  depende  das  possibilidades  reais  senão  também  das  jurídicas.  O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras opostos. Ao contrá‐rio, as regras são normas que só podem ser cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então se deve  fazer  exatamente o que ela  exige, nem mais nem menos. Portanto,  as  regras  contêm determinações no âmbito do fática e juridicamente possível. Isto significa que a diferença entre regras e princípios é qualitativa e não de grau. Toda norma é bem uma regra ou um princípio” (tradução nossa). 

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Essa distinção é evidenciada, consoante Alexy, quando nos deparamos com conflitos de regras ou colisões de princípios. O primeiro só poderá ser solucionado se introduzirmos em uma das regras uma cláusula de exceção que elimine o confli‐to ou com a declaração de que uma é inválida. O segundo deverá ser solucionado de maneira  totalmente  diversa. Quando  dois  princípios  entram  em  colisão,  um deve  ceder  ao outro.  Porém,  isso não  importa declarar que o outro princípio  é inválido, ou que deva ser excepcionado. O que ocorre é que em face de determi‐nadas  circunstâncias,  a  tensão  entre  esses mesmos  princípios  pode  ser  solucio‐nada de forma diferente. Os princípios não possuem mandatos definitivos, senão só prima facie, pois ordenam que algo deva ser realizado na maior medida do pos‐sível, levando em conta as possibilidades jurídicas e fáticas (Alexy, 2001: 89). 

A distinção entre as teorias esposadas é bastante tênue, sendo a posição de Alexy um aprimoramento da de Dworkin no que tange à consideração dos princí‐pios serem mandatos de otimização, aplicando‐se, dessa forma, a problemática da eutanásia, porquanto, nessa situação estar‐se‐ia a discutir qualitativamente a apli‐cabilidade do respeito à dignidade da pessoa humana, através dos diversos prin‐cípios da bioética a serem pautados na discussão. 

O tratamento jurídico da eutanásia passiva no ordenamento brasileiro: conside‐rações finais 

O  intérprete  deve,  frente  ao  caso  concreto,  verificar  qual  o  direito  que  o ordenamento em sua unidade deseja assegurar, sempre buscando a harmonia dos princípios em tensão e, apenas quando esta não for possível, decidir  levando em consideração o princípio que naquela determinada situação assume maior peso ou importância. 

Quando estivermos diante de situações que o indivíduo capaz solicita ou anui com a prática da eutanásia estamos diante de uma  tensão entre direitos  funda‐mentais de igual hierarquia, quais sejam: o direito à vida e o respeito devido à dig‐nidade da pessoa humana. Dessa forma, a legitimidade da interpretação somente preservar‐se‐á na medida em que  respeitarmos a máxima da proporcionalidade, através de sua  tripla dimensão: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. Todavia, questiona‐se qual das posições dessa máxima deverá pau‐tar a decisão a ser tomada? O postulado da concordância prática ou a dimensão de peso ou de importância? Será possível conciliar os direitos em questão? Ou deve‐mos proceder ao dimensionamento de peso ou  importância para verificar qual o princípio que deverá ser condicionalmente precedido? 

A reposta a esta questão parece‐nos que decorrerá da dimensão que dermos ao direito à vida; porquanto,  se  consideramos esse uma  faculdade que pode ou não ser exercida por seu titular, e não um dever, uma  imposição, uma compulso‐riedade;  temos que é  viável, através da aplicação do princípio da proporcionali‐dade, concluirmos que o direito à vida é complementado pelo  respeito devido à dignidade da pessoa humana e assim respectivamente, sendo possível a harmoni‐zação de ambos através do postulado da concordância prática. 

O  fundamento da premissa exposta encontra  respaldo nas considerações  já exaradas de que a vida é um direito disponível – por parte de seu titular – e relati‐vo. O direito à vida deve, pois, compreender todas as fases da vida humana, quais 

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Direito de Viver e Dignidade da Pessoa Humana  203 

sejam nascimento, crescimento e morte. Dispomos diariamente de nossa vida, ao fazer escolhas, ao  tomar atitudes, ao deixar de  tomá‐las, e por que não devería‐mos dispor do  tratamento a que desejamos ou não nos  submeter? Por que não poderíamos escolher quando basta de sofrimentos? Por que, na iminência da mor‐te, ou  em  condições humanas degradantes, não podemos  fazer o que por uma vida inteira fizemos: decidir? 

Em  face das  considerações  supra,  temos que  a pessoa  capaz, devidamente informada,  em  decorrência  da  dimensão  autonômica  da  dignidade  da  pessoa humana em harmonização com o direito à vida – e não dever – poderá, pautada na concordância prática, dispor acerca da suspensão ou não aplicação de determina‐das terapêuticas – ortotanásia. 

Situação diversa é quando se discute a colisão entre direito à vida e respeito à dignidade da pessoa humana de  indivíduos  incapazes de manifestar  sua  vontade. Nessas situações estar‐se‐ia discutindo a dimensão assistencial ou protetiva da dig‐nidade da pessoa humana. Não devemos, portanto,  cogitar da disponibilidade do direito à vida por parte de seu titular, e sim, no dever do Estado de impedir que ter‐ceiros  acarretem danos  a uma pessoa  enferma. Na maioria desses  casos, não há como aplicarmos o postulado da concordância prática, devendo o intérprete deter‐minar qual o princípio que deverá ser considerado de maior peso ou importância.  

Assim, ao analisarmos o direito à vida, nos casos de pessoas incapazes de mani‐festar  sua  vontade, deveremos discutir  seu peso em  face da dignidade da pessoa humana, que deverá  ser dimensionada através dos princípios beneficência e não‐‐maleficência, sendo esses princípios interpretados como mandatos de otimização. 

Respeitadas  essas  interpretações,  entendemos  que  não  deverá  haver  inge‐rência do direito penal a fim de criminalizar a conduta realizada pelo médico, por‐quanto, embora o Direito Penal seja um conjunto de normas jurídicas voltadas ao poder punitivo do Estado, assim como tudo que decorre das relações do Homem, não é estático, está em freqüente mutação; em especial na situação proposta nes‐te estudo, em  face da  realidade desnudada pelo avanço da ciência médica. A  lei penal incriminadora não pode ser cegamente aplicada desconhecendo a dinâmica do processo civilizatório e, ao  julgador, sem substituir‐se ao  legislador, cabe exa‐minar as nuances do caso concreto, dentro dos parâmetros constitucionais. 

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PARTE IV  

PERSPECTIVAS PSICOLÓGICAS SOBRE A SAÚDE  

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FAMÍLIA, SAÚDE E DOENÇA: 

INTERVENÇÃO DIRIGIDA AOS PAIS 

Luísa Barros   A ideia de que a família é um elemento crucial na equação descritiva e explica‐

tiva dos processos de saúde e doença de cada pessoa é hoje bastante consensual. A família, como determinante fundamental dos processos de desenvolvimen‐

to, adaptação e perturbação do sujeito, é chamada a explicar a aquisição de hábi‐tos e estilos de vida saudáveis e de risco, a exposição a comportamentos de risco e as estratégias de confronto com esses riscos, os processos de adoecer, de aceita‐ção do diagnóstico e de adaptação à doença crónica ou prolongada, de adesão aos tratamentos e de vivência da doença terminal. 

Mas a saúde e doença de cada pessoa  também são chamadas a explicar os processos de adaptação e perturbação da família que constituem, ou de cada um dos seus membros. 

Finalmente a família é, ela mesma, enquanto entidade dinâmica, possível de caracterizar como mais ou menos saudável, sendo que a saúde da família afecta, necessariamente, a saúde actual e futura dos seus membros. 

Assim é quase unanimemente aceite que a família é um determinante impor‐tante dos processos de saúde e doença, quer o sujeito ocupe as posições de filho, irmão ou pai/mãe, sendo que a família mais alargada tem sido, enquanto tal, pou‐co estudada (Tinsley, Castro, Ericksen, Kwasman, e Ortiz, 2002; Roberts e Wallan‐der, 1992; Turk e Kerns, 1985). 

O conceito de família na literatura da psicologia da saúde, não é alvo de gran‐de discussão,  sendo  reconhecidas as múltiplas  formas da mesma, e valorizada a sua importância nas diferentes fases da vida. A família é definida como um grupo composto  por membros  com  obrigações mútuas  que  fornecem  uns  aos  outros uma gama alargada de  formas de apoio emocional e material  (Dean, Lin e Ensel, 1981). Caracteriza‐se por ter uma estrutura, funções e papéis definidos, formas de interacção, recursos partilhados, um ciclo de vida, uma história comum, mas tam‐bém um conjunto de  indivíduos com histórias, experiências e expectativas  indivi‐duais e únicas. 

Dizer que a família tem um ciclo de vida (Relvas, 1996) significa que evolui ao longo do tempo. Traços mais fixos como o tamanho, a estrutura ou o nível sócio‐‐cultural, cruzam‐se com outros bem mais dinâmicos, como o desenvolvimento da família em si mesmo, mas também de cada um dos seus membros, as tarefas pró‐prias de cada fase, os outros contextos com que os seus membros interagem, etc. 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 207‐221. 

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208  Luísa Barros 

Família é, pois, uma realidade múltipla, mas sobretudo dinâmica, isto é, a relação entre o todo e as partes que o compõem é altamente variável entre grupos e famí‐lias, mas também dentro de cada família, ao longo do desenvolvimento e em fun‐ção de tarefas diferentes. 

A  influência dos pais nos processos de saúde e doença dum filho, criança ou adolescente, ou a influência dum filho doente na adaptação dos pais, são as rela‐ções que têm sido mais estudadas. As primeiras são também aquelas que têm sido o objecto principal do nosso  trabalho, pelo que  incidirei particularmente nestas (Barros, 2002; 2003). 

Esta conferência  foi, pois, uma oportunidade para revisitar as minhas asser‐ções fundamentais sobre estas relações entre família, saúde e doença, na intenção de partir de algumas certezas para avançar para outras tantas interrogações e, na medida do possível, chegar, pelo menos, a algumas propostas concretas e opera‐cionalizáveis. O tema da conferência, “complexidades e perplexidades”, surgiu‐me como particularmente  adequado para  glosar o  tema, pois  todo o  conhecimento adquirido sobre este tema vai no sentido da complexidade e abre, claramente para algumas  perplexidades.  O  que  tentarei  será  apresentar  algumas  sugestões  que permitam ultrapassar, provisoriamente, algumas dessas perplexidades. 

Comecemos então por aquilo que sabemos. Cerca de quatro décadas de tra‐balhos sobre a família, a saúde e a doença, permitem‐nos algumas certezas. Se o modelo biomédico se centrava no funcionamento biológico do corpo  individual e em particular de cada um dos seus órgãos e sistemas, a perspectiva biopsicosocial, hoje largamente dominante nas ciências da saúde, ciências humanas e comporta‐mentais, encara a saúde e doença numa perspectiva mais alargada e abrangente. Reconhece‐se  a necessidade de  enquadrar  essa  vivência da  saúde  e da doença, não só na pessoa, como um todo biológico, psicológico e social, mas também na perspectiva de um sujeito que é construtor de significados individuais, sempre na relação com os outros, valorizando assim os múltiplos contextos em que a pessoa se  integra  e  com  os  quais  co‐constrói  esses  significados.  E  valoriza‐se  a  família como  um  desses  contextos  privilegiados  (Kazak,  Simms  e  Rourke,  2002;  Turk  e Kerns,  1985).  Nesta  perspectiva,  a  compreensão  das  experiências  de  saúde  e doença  apela para dimensões de  idiossincrasia, multiplicidade,  subjectividade,  e transformação. 

Na nossa síntese, recorremos a uma leitura ecológica, que vê a família essen‐cialmente  como  um  contexto  de  vivência  e  construção  de  saúde  e  de  doença (Bronfenbrenner, 1979; Kazack, 1989). Não apenas um contexto, mas de todos os contextos, um dos mais duradouros, e  social e psicologicamente  relevantes  (Cic‐chetti e Aber, 1998), não só pela  influência directa que tem junto dos seus mem‐bros, mas pelo facto de ser frequentemente um elemento de selecção, mediação ou  transformação  em  relação  a  outros  contextos  determinantes mais  alargados como a escola, o grupo de amigos, o trabalho ou a comunidade. 

Mas recorremos também a uma leitura transaccional em que cada elemento da família troca com a família como um todo, e com cada um dos outros elemen‐tos,  informação e  influência sobre o modo como procura a saúde ou se adapta à doença (Fiese e Sameroff, 1992; Thompson et al., 1992; 1994; Turk e Kerns, 1985). 

Finalmente  recorremos  ainda  ao  modelo  desenvolvimentista  (Bugental  e Johnston, 2000; Newberger e White, 1989; Pratt, Hunsberger, Pancer, Roth e San‐

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Família, Saúde e Doença: Intervenção Dirigida aos Pais  209 

tolupo,  1993;  Thompson  et  al.,  1992;  1994),  considerando  que  a  relação  entre cada um dos membros da família, e o sistema familiar como um todo, depende da fase do ciclo de vida da família, da fase do ciclo de vida de cada um dos seus mem‐bros, e das competências desenvolvimentistas que cada elemento possui para dar significado às suas experiências e afectar o sistema familiar como um todo. 

A  família é, de  todas  as  instituições da nossa  sociedade, uma das que  tem maior potencial para actuar como protector do stress  imposto pela doença e dis‐função, mas  também uma das que, em  casos de doença, mais provavelmente é afectada pelo stress, pelo esgotamento dos recursos e pela sobrecarga ou altera‐ção dramática das  funções de alguns dos  seus membros. E,  sendo por definição uma estrutura que tem como objectivo central a protecção dos seus membros, é também, paradoxalmente, uma das instituições que tem um maior potencial para aumentar, ou mesmo multiplicar, esse stress imposto pela doença e disfunção, ou mesmo para causar um dano que comprometa a saúde dos seus membros. 

Se fizermos uma rápida revisão dos trabalhos realizados sobre esta temática, podemos referir que a partir dos anos setenta se observa a emergência de grande número de estudos sobre a relação entre a família, a doença e a saúde. Tal fenó‐meno é transversal às ciências da saúde e às ciências sociais e comportamentais, nomeadamente nas áreas da psicologia e da sociologia, mas  também da política ou da educação. Nas Ciências da Saúde observamos o desenvolvimento da Medi‐cina de Família que se baseia na ideia de que um determinado percurso de saúde ou de doença é  influenciado pelo modo como os membros da  família  interagem uns  com  os  outros  e  de  que  a  intervenção  deve  ter  em  conta  o  conhecimento sobre o funcionamento da família como um todo, e não apenas os seus membros isoladamente. Mais recentemente, a implementação do modelo de cuidados cen‐trados na família em serviços de pediatria veio demonstrar as vantagens de orga‐nizar serviços que têm em conta as necessidades e objectivos definidos pela famí‐lia, e que definem como um dos seus objectivos fundamentais o desenvolvimento duma  relação de partenariado  com  famílias em que  se  reconhece  a diversidade (Committee on Hospital Care, 2007; King, King e Rosenbaum, 1999). 

Nas Ciências Sociais destacarei a área da psicologia da saúde e da doença, não por ser a mais relevante ou influente, mas apenas porque me falta a competência para  falar de outras áreas do saber. Neste domínio, começou‐se por relacionar a estrutura, o tamanho e o funcionamento da família com a emergência da doença, num paradigma muito dependente do modelo psicossomático. Os clássicos estu‐dos de Minuchin (1974) são um exemplo que parece ter esgotado as suas poten‐cialidades explicativas, atendendo ao avanço do  conhecimento  sobre a etiologia multifactorial da maioria das doenças que não permite mais  aceitar  explicações simplistas e  lineares. Mais recentemente, a psicoimunologia vem trazer um olhar mais actual e cientificamente validado para o papel dos factores familiares na etio‐logia multifactorial  de  algumas  doenças,  como  o  cancro  ou  as  doenças  cardio‐‐vasculares, mas  sem permitir ainda estabelecer  relações preditivas muito  fortes (Siegel e Graham‐Pole, 1995). 

Outros autores estudaram o  impacto da doença na  família e  como é que a vivência de determinadas doenças prolongadas, crónicas ou terminais, influenciam a  experiência  dos membros  da  família,  sejam  estes  o  conjugue,  os  filhos  ou  os irmãos (Michelle, Sónia e Elliot, 2007; Varni, Kaatz, Colegrove e Dolgin, 1983). 

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210  Luísa Barros 

A  doença  de  qualquer membro  duma  família  representa  um  stressor  para todos os seus membros, sobrecarregando o uso dos recursos materiais e psicoló‐gicos e obrigando a uma  reorganização da estrutura e  funcionamento da  família em função das tarefas de cuidar do doente, ou da mudança de papeis imposta pela doença a alguns dos seus elementos, sejam estes o próprio doente, ou o cuidador principal  (Varni e Wallander, 1988). No entanto este  stresse é experienciado de forma muito diferenciada conforme o significado que o indivíduo e a família cons‐troem para essa doença. 

Nos  estudos  iniciais  a orientação  geral  era bastante negativa,  sendo que o foco era sobretudo nas consequências negativas da doença para a  família, ou da perturbação  familiar  no  aparecimento  ou  agravamento  da  doença.  Progressiva‐mente, o âmbito dos estudos  foi‐se alargando, permitindo demonstrar empirica‐mente que a família desempenha um papel importante em 5 áreas: 

1) Na definição do que é saúde e doença, e portanto, do que é tratado como tal. 2) Na promoção da saúde e no incentivo a comportamentos de saúde e/ou de 

risco, através de esforços conscientes e deliberados ou mais inconscientes e automáticos. 

3) Na decisão do quando e a quem pedir ajuda, ou de como procurar cuida‐dos médicos em caso de doença. 

4) Na definição do papel de doente 5) Na adesão a tratamentos e recomendações dos profissionais de saúde.  Posteriormente, o  interesse pela perspectiva da  salutogénese, da qualidade 

de vida e da positividade, fez emergir duas novas áreas: 

1) A influência da família nas crenças, atitudes e comportamentos de saúde e de protecção, no sentido de compreender melhor como se cresce e aprende a ser saudável em família. Sabemos que a família é um determinante importante desses comportamentos de  saúde  e de  risco  e que  é  também um  elemento  crucial no sucesso ou insucesso dos processos de mudança em saúde (deixar de fumar, adop‐tar uma alimentação mais  saudável ou um estilo de vida mais activos)  (Carvajal, Wiatrek, Evnas, Knee e Nash, 2000; Charron‐Prochownik e Kovacs, 2000; Davison, Markey e Birch, 2000; Pine, McGoldrick, Burnside, Curnow, Chester, Nicholson e Huntington, 2000; Tilson, McBride, Lipkus e Catalano, 2004). 

2) Os processos familiares de adaptação e confronto positivo da doença, isto é, como é que os recursos, as forças e estratégias positivas das famílias permitem que a maioria consiga encontrar  formas  relativamente  flexíveis e positivas de  se adaptar  a  situações  de  doença  grave  e  prolongada,  apesar  do  enorme  stress  e sobrecarga que a doença  representa para a estrutura e  funcionamento  familiar, mas também para cada um dos membros. Nesse sentido, alguns estudos sobre a adaptação  à  doença  crónica  têm‐nos  ajudado  a  conhecer  a multiplicidade  das estratégias de  adaptação que os diferentes membros duma  família podem usar para integrar a doença dum dos seus membros, e do papel dessas estratégias para uma vivência positiva da doença e para um prognóstico mais positivo. Mas  tam‐bém dos custos que esta adaptação tem, sobretudo para alguns dos membros da família (Seiffge‐Krenke, 2001; Mullins, Wolfe‐Christensen, Pai, Carpentier, Gillaspy, Cheek e Paige, 2007). 

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Família, Saúde e Doença: Intervenção Dirigida aos Pais  211 

Ainda mais recentemente, a abordagem critica da psicologia da saúde (Lyons 

e Chamberlain, 2006) vem alertar para a necessidade de estudar o significado da 

experiência da  saúde e doença no  contexto mais alargado das vivências morais, 

políticas,  económicas  e  sociais.  Esta  corrente  emergente da psicologia da  saúde 

tem questionado os aspectos mais positivistas, quantitativos e  individualistas dos 

estudos mainstream e contribuído para uma leitura mais plural, qualitativa e con‐

textualizada da compreensão dos fenómenos de saúde e doença que se afasta da 

leitura validada pelo sistema médico. Nesta abordagem, podemos dizer que o sis‐

tema  familiar  também  contribui para  a  construção do  significado  dum determi‐

nado processo de doença neste contexto mais alargado da vida do indivíduo e do 

sistema familiar, comunitário, social e político. 

A partir desta  revisão muito  rápida e geral sobre os  resultados dos estudos 

que relacionam a família, a saúde e a doença, não é difícil deduzir recomendações 

generalistas e bastante consensuais no sentido de se atender a factores familiares, 

e de integrar elementos da família no processo de saúde e doença das pessoas. No 

entanto, se este tipo de afirmações muito gerais são fáceis de aceitar e bastante 

consensuais, elas acabam por levantar dúvidas e perplexidades quando se preten‐

de  passar  desta  leitura  globalizante,  bem  intencionada mas  algo  simplista  para 

uma que tenha em conta a complexidade do conhecimento actual sobre famílias, 

saúde e doença. 

Podemos  assim  dizer  que  as  inconsistências  da  literatura  são  importantes, 

que  a  maioria  dos  estudos  são  essencialmente  correlacionais,  não  permitindo 

definir a direcção dos efeitos observados nem abrindo perspectivas  solidamente 

avaliadas para uma verdadeira intervenção com a família. Por outro lado, o recur‐

so predominante a estudos quantitativos e grupais, com amostras pouco controla‐

das, não permite abranger com detalhe e rigor a diversidade dos percursos indivi‐

duais de adaptação e perturbação. 

Em 1976, Marinker considerou que a investigação nesta área não era mais do 

que um conjunto desorganizado de intenções sentimentais, mitologias e tradições 

sobre a vida familiar. Trinta anos depois, podemos afirmar que a investigação em 

diferentes áreas das ciências da saúde e das ciências sociais avançou significativa‐

mente. Conhecemos melhor algumas das vias pelas quais esta associação família‐

‐saúde‐doença se processa, e somos capazes de desenhar modelos de investigação 

que  nos  permitem  prever  com maior  grau  de  confiança  a magnitude  de  alguns 

desses efeitos, ou identificar algumas variáveis moderadoras ou mediadoras desta 

equação. 

Mas a prática e  reflexão dos profissionais ainda se queda,  frequentemente, 

neste  nível  politicamente  correcto  das  boas  intenções  pouco  concretizadas  em 

medidas  eficazes,  quando  não  cai  no  erro  grave  de  recorrer  a  estas  asserções 

generalistas  para  justificar  a  inutilidade  ou  a  ineficácia  das  intervenções,  ou  a 

impossibilidade de agir. Quantas vezes não ouvimos nos media, mas também nas 

instituições e nos serviços, que a culpa é da família, ou que com aquela família não 

há nada a fazer, ou ainda que se houvesse outra família… 

É certo que a família adquiriu hoje certos direitos e aceitou certos deveres no 

apoio e acompanhamento dos doentes, ou que as acções de promoção de saúde 

tentam, embora por  vezes de  forma  incipiente,  integrar  a  família  como um dos 

seus vectores. Mas como profissionais de saúde, como podemos usar estes conhe‐

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212  Luísa Barros 

cimentos  para  avançar  com  opções metodológicas  simples,  pragmáticas  e  que 

permitam melhorar a eficácia das práticas preventivas ou a qualidade do atendi‐

mento aos sujeitos e às suas famílias? 

Eis algumas das asserções que podem orientar a nossa busca de pragmatismo 

interventivo: 

1. Do  cruzamento dos estudos desenvolvimentistas  com os estudos  sobre 

famílias, podemos  concluir pela possibilidade de,  em  cada  fase da  vida  e  com 

cada  família,  escolher  os  vectores mais  importantes  a  usar  nos  programas  de 

prevenção e promoção, a partir de dados de investigação (Tinsley, Castro, Erick‐

sen, Kwasman e Ortiz, 2002). Ao longo do desenvolvimento a influência da famí‐

lia é sempre  importante, mas é diferentemente  importante em fases diferentes 

e para áreas de comportamento diferentes. Sabemos que na fase da família com 

filhos pequenos os pais estão especialmente motivados e interessados em adop‐

tar estilos de vida e práticas saudáveis que possam proteger os  filhos de  riscos 

antecipáveis  a  curto  prazo,  podendo,  dada  a  intervenção  adequada,  mudar 

mesmo  os  seus  hábitos  pessoais  de  alimentação,  consumos,  protecção  do 

ambiente doméstico ou do meio de transporte. Os adolescentes e adultos jovens 

não  serão  tão  directamente  influenciados  pelos  comportamentos  actuais  da 

família, mas continuam a ser muito  influenciados pelas experiências anteriores 

em família, pelo que tem sido sugerido que a intervenção deve passar pela refle‐

xão e discussão dessas experiências; ou que nas  idades mais avançadas a vivên‐

cia a dois pode ser claramente facilitadora de mudanças de estilos de vida neces‐

sários a uma 3.ª  idade mais saudável e  feliz, pelo que deve haver uma atenção 

especial às  interacções  comportamentais que as  sustentam ou  impedem e aos 

significados atribuídos a essas mudanças. 

2. A  valorização da  família não  conduz, necessariamente,  à necessidade de 

intervir com toda a família ou de provocar mudanças profundas na família. Pode, 

apenas, significar a possibilidade de agir  junto de algum ou alguns elementos da 

família para mudar ou transformar a experiência de doença, a adaptação às  limi‐

tações e a adesão aos  tratamentos. Por exemplo,  sabemos que os adolescentes 

filhos de pais com doença crónica grave têm probabilidade de ter sintomas psico‐

lógicos severos. Nestes casos a comunicação com o progenitor saudável pode ter 

efeitos muito protectores nesta relação, pelo que se recomenda reforçar esta liga‐

ção, ajudando o progenitor saudável a dividir a sua atenção entre o cônjuge doen‐

te  e  o  filho  adolescente  (Brown,  Fuemmeler  e  Anderson,  Jamieson,  Simonian, 

Kneuper Hall e Brescia, 2007). Noutro exemplo  interessante, constatou‐se que as 

crianças diabéticas, cuja mãe é o cuidador principal, aderem melhor ao tratamento 

quando  as mães  reportam maior  apoio  social  dos  cônjuges,  pelo  que  se  reco‐

menda que a intervenção seja direccionada para o envolvimento desse pai, e não 

centrada principalmente na mãe ou no filho (Seiffge‐Krenke, 2002). 

 

É nesta perspectiva que se insere o trabalho que tenho desenvolvido: Aquilo 

que tenho para partilhar é um pouco do caminho que tenho percorrido na  inves‐

tigação  e na  formação de diferentes profissionais de  saúde. Não  se  trata  certa‐

mente  do  único  nem  provavelmente  do melhor, mas  apenas  duma  via  possível 

para pensar a  influência da  família na saúde e na doença, duma perspectiva que 

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Família, Saúde e Doença: Intervenção Dirigida aos Pais  213 

enquadre modelos  teóricos  actuais  e  robustos, mas  permita  encontrar  vias  de 

acção pragmáticas e eficazes no contexto das profissões de saúde. Nesta  valorização  da  família  como  determinante  da  adaptação  da  criança, 

tenho‐me centrado particularmente nos pais. E  faço desde  já um parêntese para esclarecer que nesta designação  refiro  tanto os pais biológicos,  como quaisquer outros adultos que os substituam (avós, padrastos, pais adoptivos). Esta valoriza‐ção é pertinente nas situações em que o doente é uma criança, ou naquelas em que existem crianças em famílias com doentes. 

As justificações para esta centralidade da parentalidade são múltiplas. Os pais são os adultos que maior responsabilidade têm na organização dos múltiplos con‐textos físicos e sociais em que os filhos se vão desenvolver. Não só os seleccionam (e.g., bairro, escola, família alargada, actividades de tempos livres), como de facto os constroem, pela interpretação e valorização que dão a cada um desses ambien‐tes.  E  se  constituem  a  si mesmos,  enquanto modelos de  comportamentos  e de significações, como um dos principais contextos de vida da criança (Barros, 2003). 

Os pais são importantes protectores e/ou moderadores da saúde da criança e do  adolescente,  e  a  fonte  de  influência mais  estável  e  duradoura  ao  longo  da infância e adolescência na construção da saúde dos filhos, mantendo‐se os efeitos desta influência muito para além da entrada na vida adulta. Os pais constituem‐se em programadores de actividades, modelos de comportamento e de significações, organizadores de  contextos e de experiências de vida dos  seus  filhos, essenciais para a construção de saúde ao longo de todo o ciclo de vida. 

Os  pais  têm  sido  responsabilizados  pelo  comportamento  e  desenvolvimento dos  filhos, muito para além da  transmissão genética  (Maccoby, 2000). O  interesse pelas atitudes parentais e pela sua relação com o comportamento da criança acom‐panhou quase toda a história da psicologia do desenvolvimento. A influência das ati‐tudes e práticas educacionais dos pais na saúde  física e psicológica dos  filhos está largamente documentada. Os pais influenciam a saúde dos filhos por meio das suas atitudes educativas, como modelos de comportamentos e crenças de  saúde, e de crenças especificas em relação à prevenção e vivência da doença (Azar, Reitz e Gos‐lin, 2008; Newberger e White, 1989; Sameroff e Feil, 1985; Sigel, 1992, 1993). 

Por outro  lado, os pais são, na maioria dos casos, adultos capazes de toma‐rem consciência das suas significações,  isto é, sujeitos que continuamente reflec‐tem,  planeiam  e  executam  acções  orientadas  para  a  protecção,  o  bem‐estar,  a saúde, a integração social e a realização pessoal dos filhos. Embora esta actividade parental se estruture numa dialéctica constante e dinâmica entre os  interesses e necessidades da criança, os outros interesses e necessidades pessoais e os de ter‐ceiros. 

Pode‐se então constatar que as atitudes e  significações parentais  se consti‐tuem num determinante de protecção ou de risco, que irá influenciar a adaptação da criança em  interacção com uma diversidade de outras variáveis pessoais e de contexto. 

No  entanto,  não  se  trata  apenas  de mais  um  factor,  como  a  pobreza,  o 

desemprego materno ou a qualidade do ambiente escolar. É uma dimensão cuja 

influência  é  contínua  e  dinâmica,  à  qual  é  possível  aceder  directamente  e  que 

pode ser transformada pela acção daqueles mais directamente motivados para a 

mudança  –  os  próprios  pais.  É,  igualmente,  uma  dimensão  que  pode  servir  de 

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214  Luísa Barros 

mediador,  protector  ou  agravante  em  relação  à maioria  das  outras  variáveis  já 

identificadas, na medida em contribui decisivamente para dar significado a esses 

factores (e.g., uma doença da criança, o divórcio dos pais). 

Numa perspectiva construtivista  temos afirmado que os pais, nas  suas con‐

cepções subjectivas ou implícitas, apresentam, de forma mais ou menos reflectida 

e elaborada, modelos ou teorias sobre os objectivos de saúde, a importância rela‐

tiva  dos  vários  determinantes  de  saúde,  o  grau  de  controlo  sobre  a  saúde  dos 

filhos atribuído a si mesmos, e as estratégias para controlar e influenciar as atitu‐

des facilitadoras ou inibidoras da saúde das crianças. 

Mas podemos ir mais longe, dizendo mesmo que os pais, ao construírem sig‐

nificações sobre o que é uma família, o que é ser pais e mais especificamente ser 

bons pais, constroem também as linhas orientadoras do papel que se atribuem a si 

mesmos e aos outros membros da  família, definindo regras e valores em grande 

medida prescritivos desses mesmos papeis. Num estudo elaborado em colabora‐

ção com Santos  (Barros e Santos, 2006), procurámos avaliar essa diversidade de 

conceitos  familiares. Encontrámos essa diversidade, mas constatámos  também a 

possibilidade de a organizar numa sequência hierárquica de 5 níveis progressiva‐

mente mais complexos,  integradores e abstractos, à semelhança de outros estu‐

dos que fizemos sobre outras áreas de significação relacionadas com a saúde e a 

doença. Assim, encontrámos (e darei apenas exemplos de 3 níveis diferentes) pais 

que consideram que “ser bons pais é algo de natural e evidente e que as tarefas 

essenciais dos pais  são o satisfazer  todas as necessidades/vontades dos  filhos, o 

estar  sempre presente para proteger os  filhos de  todos os perigos”; outros que 

afirmam que “é difícil saber se se é um bom pai, e que ser bom pai significa coisas 

diferentes para pessoas diferentes e em  fases diferentes, e que as tarefas essen‐

ciais são ajudar os  filhos a ser  felizes e saudáveis, mas também definir normas e 

saber  comunicar  com os  filhos”, e outros ainda que afirmam que o  conceito de 

bons pais “é um processo subjectivo do qual nos vamos aproximando ao longo da 

vida sem nunca poder considerar completo; é saber compreender e  responder a 

múltiplas necessidades que se organizam de forma evolutiva e dialéctica: como a 

protecção versus autonomia, ou o compreender as necessidades de cada uma ver‐

sus ajudar cada  filho a compreender as necessidades dos outros, e que para ser 

bons pais é preciso aceitar crescer e mudar com os nossos filhos”. 

A  ideia de que existe uma relação entre o que os pais definem como princí‐

pios reguladores dos bons cuidados parentais e as suas acções como educadores 

parece consensual e de bom senso. Compreender que pais diferentes têm  ideias 

diferentes sobre o que é ser pais e ser  filhos pode contribuir para que os profis‐

sionais tenham um maior respeito pela diversidade de atitudes parentais, e sejam 

mais eficazes na selecção de objectivos e de metodologias de intervenção. 

Parece‐nos  pois,  importante,  identificar metodologias  específicas  de  envolvi‐

mento, responsabilização e autonomização dos pais enquanto construtores da saú‐

de dos filhos. A intervenção dirigida aos pais deverá, no mínimo, ter em conta estas 

significações, de modo a poder ser bem aceite e ter eficácia; no máximo visar a pro‐

moção do desenvolvimento dos próprios pais, de modo a que estes possam perspec‐

tivar conceitos de saúde mais flexíveis e abrangentes, ou compreender melhor o seu 

papel como educadores para a saúde a médio e longo prazo e no contexto da multi‐

plicidade de influências que determinam o desenvolvimento dos filhos. 

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Família, Saúde e Doença: Intervenção Dirigida aos Pais  215 

Intervir  com as  crianças e adolescentes, quer numa perspectiva preventiva, quer remediativa ou terapêutica, implica provocar mudanças na sua trajectória de desenvolvimento, mudando algo no ambiente ou contexto de vida da criança ou na própria criança, de modo a que se redireccione o percurso de desenvolvimento para um mais adaptativo (Cummings, Davies e Campbell, 2000). Orientar as nossas acções para a mudança das significações e das atitudes parentais é uma forma de objectivar essa mudança dum determinante que se prolonga no  tempo. Quando recorremos apenas a  intervenções específicas e muito centradas na criança, ape‐sar de poder haver efeitos a curto prazo, estes tendem a desaparecer se não hou‐ver mudanças no contexto que ajudem a manter as mudanças na criança. 

Sameroff e Fiese (1990) apresentam uma  interessante definição das modali‐dades de  intervenção à  luz do modelo transaccional, que nos permite enquadrar intervenções mais  dirigidas  a  comportamentos  e  intervenções mais  dirigidas  a mudanças de  significações. No  caso da  família  com uma  criança doente ou  com problemas de desenvolvimento, podemos  sumariar esta abordagem na  seguinte árvore de decisão: 

 

Diagnóstico    Intervenção Impacto na Família 

Exemplo 

A criança pode ser tratada directa‐mente? 

SIM                                    Não            

Remediação  Alterações mínimas e por curto tempo 

Prescrição dieta alimentar e de padrão de exercícios respiratórios  

Os pais têm conhecimentos educacionais adequados? 

SIM                      Não 

Redefinição  Mudar significações e paradigmas parentais (Longo prazo) 

Redefinir os objectivos de saúde física e psíquica 

 

Não existem competências educacionais adequadas? 

SIM  Reeducação  Mudanças estruturadas e prolongadas nas interacções (Longo prazo) 

Treino de competências de interacção e disciplina 

  De alguma  forma podemos ver neste exemplo as duas vias de acção privile‐

giada com os pais, que podem ser usadas pelos vários profissionais de saúde no contexto da sua profissão, e que não devem ser vistas como separadas ou alter‐nativas, mas antes integradas e relacionadas entre si. Uma facilita e cria condições para a outra: mudam‐se atitudes que permitem criar novas experiências e novas interpretações, ou seja novos significados; ou sugerem‐se modelos, criam‐se con‐frontos  e  conflitos  cognitivos  que  facilitam  a  emergência  de  novos  significados, que por sua vez permitem construir novas experiências concretas. 

É  possível  utilizar  o  conhecimento  actual  necessariamente  enquadrado  em paradigmas  ecológicos,  transaccionais,  e  desenvolvimentistas, mas  recorrendo  a grelhas mais micro na análise das  interacções, de  forma a  seleccionar os  instru‐mentos de intervenção mais eficazes e menos intrusivos e que podem fazer senti‐

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do para os profissionais de saúde que trabalham com pais e crianças em diferentes contextos de saúde e doença. 

Começarei  por  quatro  sugestões  bastante  gerais.  É  necessário  aprender  a observar o paciente pediátrico na interacção com a família, escutar e questionar as crianças e os pais, os outros membros da  família. O  interesse, valorização e esti‐mulação  da  actividade  reflexiva  permite  ao  profissional  apreender  a  situação duma forma mais completa e complexa. O profissional deve aprender a transmitir interesse genuíno e aceitação pela  idiossincrasia e  subjectividade da vivência de cada pessoa, e de cada família, no seu contexto particular concreto, mas também no seu contexto significativo. Esta atitude de aceitação não se pode quedar por um conjunto de boas intenções: aprende‐se, treina‐se e avalia‐se. Finalmente o profis‐sional  deve  organizar  a  comunicação  a  partir  das  ideias,  expectativas  e  signifi‐cações dos pais sobre os processos de saúde e doença, de educação, prevenção e tratamento, relevantes para cada situação concreta. 

Para  tal podemos  recorrer a algumas metodologias  clássicas e  simples, que tentarei sistematizar de forma sintética: 

1) A escuta activa e empática, e a metodologia mais específica da  inquirição reflexiva, conduzem o pai/mãe à reflexão sobre as perspectivas do próprio, e facili‐ta a compreensão das suas significações, certezas, dúvidas e  incoerências  (Joyce‐‐Moniz e Barros, 2005). Nesta metodologia, o profissional coloca um conjunto de questões  que  convidam  o  interlocutor  a  interrogar‐se  sobre  as  suas  atitudes  e ideias, e a submetê‐las à contradição, para o conduzir a um raciocínio mais descen‐trado. As questões  também podem  ajudar os pais  a  reflectir  sobre  as  ideias de outras pessoas que opinam sobre o seu filho (e.g., outros pais, professores, médi‐cos), facilitando a sua comparação. Permitem que o profissional conduza os pais a examinar não só os seus comportamentos e rotinas, mas sobretudo a suas signifi‐cações. A  inquirição pode ser  fomentada pela apresentação de nova  informação, pelo debate entre diversos participantes que apresentam  significações divergen‐tes, ou pelo  próprio profissional que  confronta os participantes  com problemas novos, ou com perspectivas diferentes, conduzindo assim a atenção das pessoas para significações diferentes e concorrentes. E pode ajudar os pais a conscienciali‐zarem as suas significações sobre o valor da saúde,  sobre as normas sociais que influenciam as suas atitudes, ou sobre o impacto da doença. Pode ser um elemen‐to importante na ligação entre o componente de fornecimento de informação e a efectiva mudança cognitiva e comportamental. 

2) A  observação  comportamental  conduzida  pelo  profissional,  de  forma objectiva,  intencional  e  registada  numa  grelha  ou  check‐list,  permite  identificar comportamentos,  interacções,  orientações  e  viéses,  padrões  de  atenção  e  de reforço comportamental, ou de estimulação. Esta observação não deve, no entan‐to, conduzir a interpretações precipitadas e que não têm em conta a interpretação da própria criança e/ou dos seus pais. 

Paralelamente, o profissional pode  incentivar os pais a auto‐observarem‐se, 

através de metodologias muito simples de monitorização e registo, o que facilita a 

concretização do auto‐conhecimento e aumenta a tomada de consciência sobre os 

comportamentos ou significações relevantes para a saúde dos filhos. É uma meto‐

dologia de observação  intencional dos comportamentos, pensamentos, emoções 

ou reacções somáticas do próprio. E pode ser estendida à monitorização das reac‐

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ções  comportamentais  e  somáticas  do  filho,  assim  como  da  interacção  entre  o 

próprio e o  filho. Ou mesmo ser  traduzida numa monitorização descentrante, na 

qual o pai/mãe é convidado(a) a observar outros pais em interacção com os filhos 

(Barros, 1998; Santos, 1997). Pode incluir a quantificação de indicadores objectivos 

(número de vezes que o meu  filho  tem determinada  reacção atitude), ou escalas 

subjectivas, em que se pede uma objectivação de valores naturalmente subjecti‐

vos  (grau de  satisfação/bem‐estar). A  análise, discussão ou  até  a  representação 

gráfica dos resultados podem ajudar os pais a compreender melhor a relação entre 

os seus comportamentos e as suas significações, ou entre os seus comportamen‐

tos e significações e os do filho. A reactividade própria destas metodologias valori‐

za o potencial de modificação de significações e comportamentos. 

3) Outro grupo de metodologias relaciona‐se com a informação (Joyce‐Moniz 

e Barros, 2005). Actualmente  considera‐se que os pais, e os próprios pacientes, 

têm direito à  informação  relevante  sobre os  seus processos de  saúde e doença. 

Mas existem ainda muitos obstáculos, ambiguidades e dificuldades na comunica‐

ção  dessa  informação,  que  não  tem  sido  suficientemente  estudada  e  ensinada 

para que  seja, de  facto, utilizada  como uma das metodologias mais  eficazes de 

facilitação de controlo e de adaptação à doença, que pode ser. As metodologias de 

procura  e  fornecimento  de  informação,  ocupando  uma  parte muito  grande  da 

acções dos diferentes profissionais, têm sido das menos estudadas ou valorizadas, 

sendo geralmente remetidas para uma dimensão menor ou secundária, que impli‐

ca  a  transmissão  de  conhecimento  objectivo,  e  é  geralmente  unilateral.  Isto  é, 

pressupõe que a autoridade transmita  informação aos pais. Ao contrário, parece‐

‐me que deve ser valorizada e claramente assumida como uma actividade de co‐

‐construção, em que pais e profissionais colaboram na exploração e sistematização 

de  significações que possam partilhar,  fundamentadas  tanto  em  conhecimentos 

objectivos, concretos e abstractos, como nas atribuições e interpretações de cada 

um dos elementos da relação (Dillon, 2008). 

A procura da informação pelos pais visa a abertura a novos conhecimentos e 

perspectivas, pela busca de conhecimentos mais adaptados e diversificados, seja 

pelo recurso directo a outros (e.g., especialistas, outros pais), seja pelo recurso a 

fontes de  informação disponíveis  (e.g.,  livros,  revistas, programas de  televisão e 

rádio,  internet). Pais mais  informados são pais com maior percepção de controlo 

sobre a  situação e mais  capazes de  serem autónomos na gestão da doença dos 

filhos,  ou  na  antecipação  e  resolução  das  consequências  problemáticas  dessa 

mesma  doença.  Frequentemente,  os  pais  tomam  a  iniciativa  desta  procura  e  o 

papel do profissional consiste em respeitar e valorizar esta estratégias, e ajudá‐los 

a interpretar, ordenar e coordenar as informações recolhidas, ou sugerindo fontes 

de informação fidedigna. 

Pelo  seu  lado,  no  fornecimento  da  informação  o  profissional  serve‐se  de 

didácticas  sobre  desenvolvimento,  educação  e/ou  saúde  da  criança,  ou  sobre 

estratégias específicas de  interacção e comunicação, de modo a propor aos pais 

novas  interpretações, ou encorajá‐los a adoptar atitudes educacionais diferentes. 

É uma metodologia para ajudar os pais a aceitarem o diagnóstico de doenças ou 

problemas de desenvolvimento, e para aderirem às propostas específicas de tra‐

tamento dos diferentes especialistas. 

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4) Outro grupo de metodologias dirige‐se directamente à gestão das activida‐des e interacções familiares e visam a aprendizagem e sistematização de estratégias específicas para interagir com a criança ou para resolver problemas concretos. 

O profissional pode sugerir e planear com os pais uma programação de acti‐vidades para períodos específicos, que permite uma melhor estruturação do meio e das rotinas familiares, de modo a alcançar os objectivos educacionais e de saúde definidos pela família. Pode, por exemplo, sugerir que o progenitor menos envol‐vido fique responsável por determinada actividade, valorizando a sua competência específica para a desempenhar. Ou que um irmão que se sente algo esquecido na dinâmica centrada nos cuidados ao doente possa ter um papel  importante numa actividade  familiar. Com o ensaio comportamental, o profissional ajuda os pais a antecipar algumas dessas estratégias ou actividades, modelando atitudes positivas ou sugerindo modos mais eficazes de as aplicar. Estas estratégias podem contri‐buir  para  a  organização  de  ambientes  familiares  e  educacionais  que  favoreçam estilos de vida saudáveis e dificultem condutas e estilos de vida perigosos ou noci‐vos, e para o incentivo a ambientes familiares mais apoiantes e onde a comunica‐ção é mais positiva. 

Não é necessário que os diferentes profissionais de saúde recorram a meto‐dologias muito sofisticadas para  integrar a  família, mais especificamente os pais, na sua intervenção com os pacientes pediátricos. O profissional precisa de conhe‐cer e valorizar a importância das relações familiares e o papel primordial dos pais, enquanto  elementos de protecção  e de  facilitação da  saúde  e desenvolvimento dos filhos. De estar atento as interacções entre os pais e os filhos, observando‐os, mas observando‐se também a si mesmo, como elemento facilitador ou reforçador de padrões mais ou menos adaptativos de interacção familiar. 

Em suma, podemos concluir afirmando que é hoje uma evidência o papel da família na vivência dos processo de saúde de doença, que esse papel só pode ser compreendido numa abordagem que  integra a multiplicidade e a  subjectividade dos conceitos de família, dos valores e normas sociais. E que há ainda um grande caminho a percorrer por todos os profissionais de saúde, para passar dos discursos teóricos  e  bem  intencionados  de  apoio  à  família  ou  de  caracterização  patologi‐zante de padrões familiares menos desejáveis, para o desenvolvimento e aplicação de metodologias simples, generalizáveis e eficazes, na valorização das dimensões positivas desta vivência familiar e na minimização do sofrimento das famílias face a situações de doença e disfunção. 

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ADOLESCENTES E COMPORTAMENTOS DE SAÚDE 

Celeste Simões  

Introdução 

Muitos jovens hoje, e segundo as tendências apontadas em diversos estudos, muitos mais no futuro, estão em risco de vida, de adquirir doenças, deficiências e incapacidades,  entre  outras  consequências  negativas  para  a  saúde  (DiClemente, Hansen, e Ponton, 1996; United States Department of Health and Human Services, 2000). Uma questão que se destaca neste cenário é a origem deste risco. Enquan‐to que anteriormente as causas da mortalidade e morbilidade nos jovens estavam associadas a factores de ordem biomédica, hoje essas causas estão essencialmente associadas a factores de origem social, ambiental e comportamental (Irwin, Burg, e Uhler Cart, 2002; Steptoe e Wardle, 1996). Comportamento e estilo de vida são, então,  determinantes  cruciais  para  a  saúde,  doença,  deficiência/incapacidade  e mortalidade prematura. Dentro dos estilos de vida que colocam em risco a saúde, o bem‐estar e muitas vezes a própria vida dos  jovens, encontra‐se um  largo con‐junto  de  comportamentos,  nomeadamente  o  consumo  de  substâncias  (álcool, tabaco, drogas, medicamentos), a violência, o suicídio, os acidentes, as desordens alimentares, a gravidez na adolescência e as doenças sexualmente transmitidas. 

Como já foi referido, é evidente que estes comportamentos têm consequências negativas a nível pessoal. Para além deste tipo de consequências encontram‐se tam‐bém as consequências a nível social que se poderão traduzir em diversas dimensões de  desvantagem  social,  nomeadamente  na  integração  social  e  na  independência económica. Outros tipos de “custos” são os encargos económicos que a sociedade tem  que  suportar  para  cuidados  de  saúde,  reabilitação  e  institucionalização  dos jovens (Izumi, et al., 2001; Pronk, Goodman, O’Connor, e Martinson, 1999). 

A perspectiva de que a  construção da  saúde e do bem‐estar desde o  início pode prevenir sérios e dispendiosos problemas para o indivíduo e para a sociedade tem  vindo  a  aumentar  nas  últimas  décadas.  Organismos  como  o  Conselho  da Europa  (2003)  ou  a Organização Mundial  de  Saúde  (WHO,  2003)  salientam  nas suas directrizes a prevenção primária como uma parte importante dos programas nacionais  de  saúde  e  educação.  Neste  âmbito  torna‐se  importante  realçar  três aspectos que se destacam nestas directrizes. Em primeiro, a necessidade de uma intervenção preventiva precoce, dado que  a  flexibilidade da  criança e do  jovem fazem deles alvos ideais para os programas de prevenção, a serem implementados em  contextos  vocacionados para  a promoção do desenvolvimento do  indivíduo, 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 223‐241. 

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nomeadamente o contexto escolar. Em segundo  lugar, a noção de que qualquer intervenção  integrada num âmbito preventivo não se deve  limitar aos momentos de crise ou a prevenir crises. Deverá para além disso promover e optimizar a capa‐cidade de  tomar decisões e, consequentemente, a autonomia do  jovem. Em  ter‐ceiro lugar, a importância de incluir os principais contextos de vida e os seus inter‐venientes nestes processos, dado estes constituírem uma das principais influências na vida dos adolescentes. 

Adolescência e adolescentes  

A infância e a adolescência nem sempre foram consideradas períodos especiais na vida do ser humano, como o são actualmente. A adolescência, tal como hoje é entendida, é um  fenómeno  recente. O  termo adolescência  tem origem na palavra latina adolescĕre, que quer dizer crescer para adulto. Sempre se cresceu para adul‐to. Mas nem sempre  foi dado a este crescimento um  tempo de vida  tão alargado como nos tempos vigentes. Nos dias de hoje, a adolescência é um período alongado, que  se estende até à  terceira década de vida, em que o adolescente vive com os pais. Para este facto são apontadas várias causas: culturais, como a maior liberaliza‐ção, aceitação e tolerância dos costumes; sociais, onde se destaca o prolongamento dos estudos que leva consequentemente a uma maior dependência; e económicas, como o desemprego ou trabalho precário (Braconnier e Marcelli, 2000). 

Uma das questões que ao longo da curta história da adolescência se tem sis‐tematicamente levantado, é a da turbulência e instabilidade que o jovem vive nes‐ta  fase  da  sua  vida.  Apesar  de  estarem  um  pouco  de  lado  as  perspectivas  de “storm and stress”, continuam‐se a estudar os problemas da adolescência porque eles são  reais e  trazem consigo mal‐estar e novas dificuldades. No entanto, exis‐tem  hoje  noções  diferentes  em  relação  a  estes  problemas  que  permitem  ver  a adolescência de outro modo. Sabe‐se hoje, que alguns jovens encontram na ado‐lescência  dificuldades, mas  que  tal  não  é  verdade  para  todos.  Sabe‐se  também que,  quando  existem  dificuldades,  estes  problemas  não  se  generalizam  a  todas áreas  de  funcionamento  do  jovem  ou  atingem  necessariamente  graves  propor‐ções.  Sabe‐se  ainda,  que muitos  dos  problemas  da  adolescência  surgem  como forma de adaptação do adolescente aos novos desafios que se lhe colocam (Sprin‐thall e Collins, 1999). E são múltiplos os desafios a vencer: a adaptação a toda uma nova condição biológica, a conquista de uma nova autonomia, o estabelecimento de novas relações  interpessoais próximas e duradouras, a progressão académica, entre outros. E como se  isto não bastasse, o adolescente precisa ainda, tal como todo  o  ser  humano,  de  sentir‐se  valorizado  como  pessoa,  estabelecer  um  lugar num grupo produtivo, sentir‐se útil para os outros, dispor de sistemas de suporte e saber usá‐los, fazer escolhas  informadas e acreditar num futuro com oportunida‐des  reais. Ultrapassar  estes  desafios  e  preencher  estas  necessidades  tornam‐se requisitos  necessários  para  que  os  adolescentes  se  tornem  adultos  saudáveis  e produtivos (Carnegie Corporation of New York, 1995). 

Um dos temas centrais da adolescência continua a ser a forma como se ultra‐passam estas mudanças  também denominadas de  transições, desafios, crises ou necessidades. Para alguns autores a adolescência é um período de mudanças dra‐máticas a nível familiar, a nível escolar, ao nível das amizades, a nível profissional. 

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Adolescentes e Comportamentos de Saúde  225 

É um período de  confusão e de  sentimentos paradoxais  (excitação e ansiedade, felicidade e tristeza, certezas e incertezas) que não se limitam ao jovem, mas que se estendem também aos pais, professores e amigos dado que vivem também os seus problemas (Lerner e Galambos, 1998). Para outros, a maioria dos jovens está preparada para lidar com as mudanças biológicas, cognitivas, emocionais e sociais da  adolescência  e ultrapassá‐las  com  sucesso  (Steinberg,  1998). De  acordo  com esta perspectiva, parte dos problemas que surgem na adolescência não têm con‐sequências graves ou a  longo prazo. Devem pois ser equacionados como fazendo parte  do  desenvolvimento  normal,  como  formas  exploratórias  necessárias  ao desenvolvimento, ou como reflexo de um desfasamento entre a maturidade bioló‐gica e a maturidade social (Baumerind, 1987; Irwin, 1987; Moffitt e Caspi, 2000). 

A adolescência é essencialmente um  tempo de  crescimento, de desenvolvi‐mento de uma progressiva maturidade a nível biológico, cognitivo, social e emo‐cional. Nas sociedades modernas não existe um acontecimento único que marque o fim da  infância ou o  início da adolescência. Esta transição envolve um conjunto de mudanças  graduais  em múltiplas  esferas  da  condição  humana,  que  ocorrem durante um período mais ou menos alargado, e que preenchem toda a adolescên‐cia  (Steinberg, 1998). O adolescente tem pois de se adaptar às novas circunstân‐cias, que lhe dão um novo olhar sobre o mundo e sobre si próprio. 

Várias teorias procuram explicar o desenvolvimento humano. Algumas delas, as chamadas teorias de estádio como, por exemplo, a teoria do desenvolvimento cognitivo de Piaget (Piaget, 1983), a teoria epigenética de Erikson (Erickson, 1982), a  teoria  do  desenvolvimento moral  de  Kohlberg  (Kohlberg,  1981),  a  teoria  do desenvolvimento  interpessoal de Sullivan  (Sullivan, 1996) ou de Selman  (Selman, 1980), salientam aspectos específicos na adolescência como motores de evolução: a aquisição das operações formais, a procura e estabelecimento de uma identida‐de pessoal, a aquisição de uma moral convencional, uma maior orientação para os amigos ou a tomada de uma perspectiva mútua na relação com os outros. Outras teorias como, por exemplo, a da aprendizagem social (Bandura, 1986, 2001), apre‐sentam um processo global de aprendizagem  independente da etapa da vida do indivíduo, processo este responsável pela aquisição de grande parte do reportório comportamental individual. Outras falam de um conceito interessante, as “arenas de  conforto”,  como é o  caso da  teoria  focal  (Coleman, 1974), que  refere que  a adaptação às mudanças na adolescência será mais fácil se o adolescente se sentir bem nos contextos que  lhe são significativos. E estes contextos são a  família, os amigos e a escola. Apesar de recentemente ter surgido uma teoria que desvaloriza o papel da família no desenvolvimento do adolescente, a teoria da socialização de grupo  (Harris, 1995), a maioria dos autores e da  investigação realizada em torno do papel da família, mostra que a família ocupa um  lugar de destaque na sociali‐zação do adolescente  (Braconnier e Marcelli, 2000; Sanders, 2000; Toumbourou, 2001). À família é atribuída a passagem de atitudes, valores e normas de conduta que  irão guiar o adolescente na sua vida presente e  futura. Os pais  têm ainda a função de servir de apoio e suporte afectivo, constituindo assim um elemento faci‐litador da adaptação do adolescente às novas circunstâncias de vida. Alguns jovens desenvolvem‐se  em  contextos  familiares  estáveis  a nível  emocional,  social,  eco‐nómico, etc., o que faculta a passagem do jovem pela adolescência. Outros porém, pertencem a  famílias em situação de desvantagem que muitas vezes constituem 

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226  Celeste Simões 

um  risco  adicional  para  além  dos  inerentes  à  própria  adolescência.  Os  amigos constituem um outro importante espaço de desenvolvimento (Oldenburg e Kerns, 1997; Oliveira, 1999). Nesta fase da vida é atribuída uma especial importância aos amigos. Dada a sua similaridade em termos etários, estes são uma boa fonte para comparação social a nível de valores e atitudes relacionadas com formas de estar e de  agir.  Dados  de  estudos  apontam  a  influência  dos  amigos  como  um  factor determinante do comportamento desviante. No entanto, outros estudos apontam a  falta de  amigos  como  factor preditivo de problemas de  saúde mental. Nestas relações parece existir um factor chave e que se traduz nas atitudes e comporta‐mentos dos amigos, e que dependendo da sua posição e acção, positiva ou negati‐va, poderão assim  constituir uma  fonte de  influência positiva ou negativa. Tam‐bém a escola apresenta,  tal como os contextos anteriores, um  forte  impacto no ajustamento dos adolescentes  (Bearman, 1998; Bonny, Britto, Klostermann, Hor‐nung,  e  Slap,  2000;  Braconnier  e Marcelli,  2000). Dados  de  vários  estudos  têm mostrado que a ligação à escola é importante para o bem‐estar do adolescente e constitui um  importante factor de protecção contra o comportamento desviante. A percepção de um bom ambiente escolar e de segurança, o sentimento de per‐tença  à  escola  e  de  ligação  com  os  colegas  e  com  os  professores  são  factores importantes para o sucesso escolar. 

Saúde na adolescência 

A adolescência é um período crítico na cronologia da saúde. Muitas das esco‐lhas  com  impacto na  saúde, e que perduram por  longo  tempo,  são  feitas neste período de  vida  (McManus, 2002). Talvez esta  constitua uma das  razões para o facto do estudo dos problemas de comportamento continuar a dominar a literatu‐ra do desenvolvimento do adolescente entre os anos 80 e 90 (Steinberg e Morris, 2001), quando se sabe actualmente que a maioria dos adolescentes ultrapassam este  período  sem  desenvolverem  dificuldades  significativas  em  termos  sociais, emocionais ou comportamentais. 

A adolescência é geralmente considerada como um período de saúde  (Irwin et  al.,  2002),  dada  a menor  vulnerabilidade  dos  jovens  à  doença  (Bruhn,  1988; WHO, 2003). Esta visão dos jovens como um grupo saudável não é apenas externa, dado que a grande maioria dos  jovens também se vê como saudável. Resultados do  estudo  HBSC, mostram  que  cerca  de  90%  dos  estudantes  referem  sentir‐se saudáveis (Scheidt, Overpeck, Wyatt, e Aszmann, 2000). Apesar de experienciarem alguns  sintomas  de mal‐estar,  a maioria  dos  adolescentes  não  parece  traduzir esses sintomas em percepções de uma má saúde. Os dados deste mesmo estudo, relativos a Portugal, mostram que  cerca de 95% dos  jovens portugueses partici‐pantes no estudo sentem‐se saudáveis, sendo que destes cerca de 32% dizem sen‐tir‐se muito saudáveis (M. G. Matos, Simões, Carvalhosa, Reis, e Canha, 2000). 

Ainda que os adolescentes  sejam menos  susceptíveis à doença ou a outras condições  negativas  aliadas  à  saúde,  por  vezes  também  são  confrontados  com problemas de saúde mais ou menos graves e com a morte. Diomsina e Vyciniene (2002)  referem  que  entre  os  problemas  de  saúde mental mais  prevalentes  na infância  e  adolescência  se  encontram  as  perturbações  da  ansiedade.  Efectiva‐mente, de acordo com os resultados do estudo HBSC (Health Behaviours in School‐

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‐aged Children), os sintomas de mal‐estar psicológico afectam uma percentagem significativa  de  jovens. Uma  vez  por  semana  ou mais,  cerca  de  62%  dos  jovens referem  sentir‐se  nervosos,  44%  referem  irritabilidade,  38%  referem  sentir‐se deprimidos  e  uma  percentagem  similar  com  dificuldades  em  adormecer  (M. G. Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000). Dado que os problemas de saúde tendem a aumentar ao longo da adolescência, quer a nível de sintomas psicológicos quer a nível de sintomas físicos, é  importante que a prevenção seja precoce (Scheidt, et al., 2000; Sweeting e West, 2003). Também os dados do estudo HBSC realizado em Portugal, confirmam esta tendência de uma evolução negativa ao nível dos sinto‐mas de mal‐estar nos adolescentes (M. G. Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000). Os jovens que apresentam sintomas físicos e psicológicos têm mais dificuldades no contexto familiar e escolar e com os amigos. Apresentam ainda um envolvimento mais  frequente  com  o  consumo  de  substâncias  e  violência,  comparativamente com os jovens que não apresentam sintomas de mal‐estar. Tal como aumentam os sintomas de mal‐estar, diminuem  as percepções de  saúde,  sendo neste  caso os adolescentes mais velhos aqueles que se sentem menos saudáveis (Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000; Pedersen, 1998). Por outro  lado, sentir‐se saudável está fortemente  associado  ao  evitamento  de  comportamentos  de  risco,  tais  como  o fumar, beber álcool e consumir drogas. 

Os adolescentes que reportam menos frequentemente sintomas físicos e psi‐cológicos são também os que mais referem ser felizes. Para esta associação entre as percepções de  felicidade  e de  saúde parecem  contribuir  a  satisfação  consigo próprio  e  a  satisfação  com  os  contextos  de  vida  significativos. O  suporte  social constitui  um  factor  que  contribui  para  o  bem‐estar  e  saúde  dos  adolescentes (Chen, Wang, Yang, e Liou, 2003; Yarcheski, Mahon, e Yarcheski, 2001). As rapari‐gas mais felizes são as que melhor estão  integradas socialmente,  isto é, têm ami‐gos, passam  tempo  com eles e  têm  facilidade de  comunicação  com estes  (King, Wold, Tudor‐Smith, e Harel, 1996). Nem só a satisfação nas relações com os pares, são elementos  importantes para o bem‐estar do adolescente. Também uma boa comunicação com os pais e a percepção de um bom relacionamento familiar estão positivamente associadas  com o bem‐estar  subjectivo e negativamente  com  sin‐tomas de mal‐estar (Chou, 1999; Jackson, Bijstra, Oostra, e Bosma, 1998; Weitoft, Hjern, Haglund,  e Rosen,  2003).  Igualmente,  uma  atitude  positiva  em  relação  à escola e a percepção de um ambiente escolar positivo têm sido encontrados como factores  significativamente  associados  ao  bem‐estar  dos  adolescentes  (Burns, Andrews, e Szabo, 2002). King et al. (1996) referem ainda outros factores associa‐dos ao bem‐estar, tais como o estatuto socioeconómico, o estar satisfeito com a sua aparência e estar raramente de mau humor. Factores como a solidão e os sin‐tomas depressivos, por outro  lado, estão negativamente associados com o bem‐‐estar (Mahon e Yarcheski, 2001; Whalen, Jamner, Henker, e Delfino, 2001). É ain‐da importante referir que níveis mais baixos de bem‐estar psicológico constituem factores de risco para o desenvolvimento de problemas relacionados com o con‐sumo de substâncias (Griffin, Scheier, Botvin, e Diaz, 2001; Pitkanen, 1999). 

Um dos aspectos que tem atraído a atenção dos investigadores nesta área é a diferença entre géneros. Os resultados de muitos estudos mostram que os rapazes e as raparigas diferem em termos de estatuto de saúde, comportamento de saúde, comportamentos de risco e factores de protecção. De um modo geral, são as rapa‐

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rigas adolescentes e pré‐adolescentes que apresentam percepções de bem‐estar mais  baixas  (Thomas  e  Brunton,  1997). As  raparigas  sentem‐se mais  frequente‐mente sós, pouco  felizes e pouco  saudáveis, comparativamente com os  rapazes. São também as raparigas que dizem com maior frequência que não estão satisfei‐tas com a sua imagem corporal, existindo como tal uma maior referência à inten‐ção ou prática de dietas. São ainda as raparigas que mais  frequentemente apon‐tam  sintomas  de  mal‐estar  físico  (dores  de  cabeça,  costas  e  estômago),  e psicológico  (irritabilidade,  nervosismo,  sintomas  de  depressão  e  dificuldade  em adormecer)  (Matos, Simões, Canha, e Fonseca, 2000; Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000; Matos, et al., 2006). Em relação aos sintomas de depressão, os estu‐dos mostram  que  estes  apresentam  uma maior  prevalência  nas  raparigas  (2,5 raparigas para  1  rapaz)  e  são  também  as  raparigas que  apresentam uma maior variedade de sintomas depressivos (Windle e Davies, 1999). Em relação à evolução da perturbação, verifica‐se que esta tem mais probabilidade de continuidade nas raparigas do que nos rapazes (Duggal, Carlson, Sroufe, e Egeland, 2001). Os rapa‐zes  geralmente  sentem‐se  mais  felizes,  mais  saudáveis  e  menos  sós  (Matos, Simões, Canha, et al., 2000; Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000; Matos, et al., 2006). No entanto, apesar desta visão mais positiva ao nível do seu bem‐estar, os rapazes também apresentam diversos problemas com  impacto na sua saúde. São os rapazes que apresentam maiores níveis de experimentação e consumo regular de substâncias, como o álcool, tabaco e drogas (Gabhainn e François, 2000; Matos, Simões, Canha, et al., 2000; Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000; Matos, et al., 2006; Reardon  e Buka,  2002).  Também Windle  e Davies  (1999)  referem  que  os rapazes consomem mais álcool, comparativamente com as raparigas. São ainda os rapazes que  apresentam mais problemas de  externalização  (problemas de  com‐portamento, défice de  atenção e hiperactividade  (Sells e Blum, 1996; Thomas e Brunton, 1997) e também um maior envolvimento em lutas (Matos, et al., 2006). 

De uma forma geral, poder‐se‐ia sintetizar o perfil comportamental de saúde das  raparigas  e  rapazes  adolescentes  utilizando  a  expressão  apresentada  por Matos, Simões, e Canha (1999), que aponta os rapazes como “mais virados para o mundo” e as raparigas como “mais voltadas para elas próprias”. Os rapazes apre‐sentam mais problemas de externalização  (problemas de comportamento e con‐sumos), enquanto que as raparigas apresentam mais problemas de internalização (problemas com a imagem corporal e sintomas de mal‐estar psicológico). Segundo Kolip e Schmidt (1999), é preciso entender estas diferenças em relação com o pro‐cesso de socialização, não esquecendo no entanto o papel dos factores biológicos. Um outro factor com  influência a este nível, poderá ser encontrado nos sistemas de cuidados de saúde e nas interacções que se estabelecem entre os profissionais de saúde e os utentes, que não são isoladas da questão do género. As autoras dão o exemplo das raparigas que, possivelmente, não têm mais queixas que os rapa‐zes, mas percebem os seus sintomas de forma diferente ou é‐lhes mais fácil falar destes. Um outro exemplo são as queixas dos rapazes na  infância que, de acordo com os estudos, são levadas mais a sério e consequentemente vão mais ao médi‐co. Perante esta diferenciação em termos de necessidades e problemas, as autoras salientam a importância de estabelecer cuidados preventivos, curativos e reabilita‐tivos especializados para rapazes e raparigas. 

 

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Comportamentos relacionados com a saúde 

Dentro dos múltiplos factores que afectam a saúde, encontram‐se os compor‐tamentos com ela relacionados. Os estados de mal‐estar, perturbação ou doença são  influenciados  por  um  estilo  de  vida  não  saudável  (Adler,  1995;  Pattishall, 1994), que por sua vez é composto por padrões comportamentais não saudáveis, ou que envolvem algum risco para a saúde, mantidos ao  longo do tempo e apre‐sentados  em  vários  contextos  (Andrews  e  Dishion,  1994).  Os  comportamentos relacionados com a saúde, para além da influência que têm no continuum “saúde‐‐doença”,  têm  também  influência  sobre  os  comportamentos  futuros.  De  facto, vários estudos têm mostrado que o comportamento anterior constitui o principal preditor do comportamento futuro (Conner e Sparks, 1996; Ogden, 1996). O com‐portamento anterior  também parece  ser um dos melhores preditores das  inten‐ções comportamentais futuras. Um estudo realizado com adolescentes portugue‐ses, mostrou  que  o  comportamento  anterior  constituía  o melhor  preditor  das intenções relacionadas com comportamentos de saúde, nomeadamente, ter uma alimentação equilibrada, praticar desporto, não consumir bebidas alcoólicas e não fumar ou tomar drogas (Simões, 1997; Simões e Marques, 2000). 

Os comportamentos relacionados com a saúde geralmente surgem classifica‐dos  como  comportamentos de  saúde positivos e negativos. Os  comportamentos de saúde positivos traduzem‐se em comportamentos que contribuem para a pro‐moção da saúde, prevenção do risco e detecção precoce da doença ou deficiência. Como exemplos de comportamentos de saúde positivos temos o uso do cinto de segurança, os cuidados de higiene, alimentação equilibrada,  realização de check‐‐ups regulares, etc. Os comportamentos de saúde negativos referem‐se a compor‐tamentos que, pela sua  frequência ou  intensidade, aumentam o  risco de doença ou acidente. Como exemplos dos comportamentos de saúde negativos encontram‐‐se o  consumo de  substâncias,  a  alimentação desequilibrada,  a  condução  sob o efeito do álcool, etc. (Ogden, 1996; Steptoe e Wardle, 1996). De acordo com Røy‐samb,  Rise,  e  Kraft  (1997),  os  comportamentos  relacionados  com  a  saúde  (que abrangem os comportamentos promotores de saúde e comportamentos de amea‐ça à  saúde) podem  ser  conceptualizados em diferentes dimensões. Num estudo realizado pelos autores, a agregação de diferentes comportamentos relacionados com a saúde deu origem a categorias de comportamentos: adicção, alta acção, e protecção. A adicção engloba o consumo de álcool e tabaco, comportamentos de risco quando se está embriagado (como nadar, andar de barco, de bicicleta ou de mota), e  andar de  carro embriagado ou  com  alguém que está a  conduzir  sob o efeito do álcool. A alta acção engloba comportamentos como conduzir a velocida‐des elevadas, andar de mota, desportos de risco (por exemplo, esquiar ou mergu‐lho) e a actividade física. Este último comportamento faz também parte dos com‐portamentos de protecção que  incluem  ainda,  a utilização de  equipamentos de segurança, a higiene oral e a dieta alimentar. 

Os comportamentos de saúde negativos, comportamentos de adicção ou de alta acção, são geralmente conhecidos por comportamentos de risco. Como já foi referido, os comportamentos de risco constituem a maior ameaça à saúde e bem‐‐estar dos adolescentes. Segundo  Igra e  Irwin  (1996), o  termo  risk‐taking  (correr 

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riscos) tem sido usado para ligar conceptualmente um conjunto de comportamen‐tos  prejudiciais  à  saúde,  nomeadamente  o  consumo  de  substâncias,  comporta‐mentos sexuais de risco, condução imprudente, comportamento homicida ou sui‐cida,  desordens  alimentares,  e  delinquência.  Trimpop  (1994)  refere‐se  ao  risk‐‐taking  como  um  comportamento  controlado,  consciente  ou  não,  com  uma incerteza percebida acerca das suas consequências (possíveis benefícios ou custos) para o bem‐estar físico do próprio ou outros. Igra e Irwin (1996) referem também uma  certa  incerteza  quanto  aos  resultados  dos  comportamentos  de  risco,  no entanto,  afirmam  que  estes  comportamentos  são  voluntários.  E  o  correr  riscos (risk‐taking) leva os adolescentes a ficar em risco (at‐risk). Segundo Jessor (1991), o termo at‐risk tem dois significados dependendo da  idade dos  jovens,  isto é, os adolescentes mais novos podem estar em  risco para  iniciar  comportamentos de risco, enquanto os adolescentes mais velhos, que já praticam estes comportamen‐tos, estão em risco de consequências negativas para a saúde. 

Uma das questões que nos últimos anos se tem levantado em torno dos com‐portamentos de risco na adolescência é a diferenciação entre os diversos compor‐tamentos de risco. Existem comportamentos de risco que envolvem algum perigo, mas que mais não são do que simples experiências construtivas, que fazem parte do crescimento normal (Michaud, Blum, e Ferron, 1997; Ponton, 1997) e compor‐tamentos de risco que têm potencial para comprometer o desenvolvimento ajus‐tado dos jovens. 

O desenvolvimento normal do adolescente envolve uma progressiva indepen‐dência e autonomia da família, uma maior associação com os pares, a formação da identidade e a maturação fisiológica e cognitiva. Este turbilhão de mudanças per‐mite ao  jovem abrir novos horizontes e experimentar novos comportamentos. E dentro  destes  novos  comportamentos  estão  incluídos  comportamentos  que  se denominam  de  comportamentos  de  risco.  Estes  comportamentos  servem  para experimentar novas componentes da vida não descobertas até então, sem os limi‐tes estabelecidos ou a protecção dada pelos pais. Podem servir para ganhar acei‐tação e respeito dos pares, para ganhar autonomia dos pais, para manifestar rejei‐ção pelas normas e valores convencionais, para lidar com a ansiedade, frustração e antecipação do  fracasso, para confirmar para si próprio ou para os outros deter‐minados atributos, para moldar a sua  identidade, e ainda como prova de maturi‐dade e transição para um estatuto mais adulto (Jessor, 1991; Ponton, 1997). Ten‐do em conta estas  importantes funções  instrumentais, poder‐se‐á considerar que os comportamentos de risco são muitas das vezes normativos e saudáveis para os adolescentes (Ponton, 1997). 

No  entanto,  os  comportamentos  de  risco  podem  também  constituir  uma séria ameaça à saúde dos adolescentes. Para Baumerind (1987), os comportamen‐tos de risco tornam‐se destrutivos quando contribuem directa ou  indirectamente para a alienação dos adolescentes. Assim, os comportamentos de risco são poten‐cialmente perigosos quando levam o jovem a afastar‐se da sua comunidade, a não partilhar interesses com aqueles que lhe são próximos, quando levam o jovem ao desencontro com o seu papel na sociedade, ou a sentir‐se incompreendido e rejei‐tado  pela  sociedade.  Segundo  Igra  e  Irwin  (1996),  os  comportamentos  de  risco podem ser considerados não normativos devido ao momento em que têm lugar e à sua extensão ou gravidade. Determinados comportamentos podem ser conside‐

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rados de risco, devido ao facto de ocorrerem num momento em que não era à par‐tida suposto terem lugar, como é o caso do consumo de álcool ou o comportamen‐to sexual em  idades precoces. Ambos os comportamentos se tornam normativos com o passar do tempo, quando o adolescente se aproxima da idade adulta. Tam‐bém  pela  sua  gravidade,  alguns  comportamentos  podem  ser  entendidos  como comportamentos de  risco, como é o caso da delinquência e o consumo de subs‐tâncias. Muitos adolescentes praticam actos delinquentes de menor gravidade e experimentam tabaco e álcool. No entanto, os actos delinquentes graves e o con‐sumo de substâncias  ilícitas são considerados comportamentos de risco devido à sua gravidade (Igra e Irwin, 1996). Lerner e Galambos (1998) falam de três critérios que podem ser úteis para distinguir estes dois tipos de comportamentos: a  idade de  início do comportamento, a duração do comportamento, e o estilo de vida do jovem. Quando os comportamentos de  risco começam cedo  têm mais probabili‐dade de se tornar verdadeiros problemas. Se estes comportamentos ultrapassam a experimentação,  isto  é,  se  com  o  passar  do  tempo  estes  comportamentos  são mantidos, encontra‐se mais um sinal de possíveis problemas  futuros. Por último, se  estes  comportamentos  surgem  aliados  a  outros  comportamentos  de  risco  e, como tal, permitem categorizar o estilo de vida do jovem como um estilo de vida de risco, então os adolescentes podem já estar envolvidos em problemas significa‐tivos. Também Braconnier e Marcelli (2000) falam da necessidade de estar atento aos aspectos quantitativos dos comportamentos de risco, até mais do que os qua‐litativos, para que perante determinados sinais se realize uma intervenção preven‐tiva de uma escalada nos  comportamentos problema. Entre os  sinais apontados pelos  autores,  encontra‐se  a  questão  da  repetição  do  comportamento  de  risco (consumos,  violência,  problemas  escolares)  da  duração  do  comportamento (durante mais de 3 meses ou mesmo 6 meses ou mais), e a questão da acumulação de comportamentos de risco e acontecimentos de vida negativos. 

Um aspecto importante que tem influência sobre o risk‐taking é a percepção do risco. Se um risco não é percebido como tal, é provável que a resposta não seja a mesma que é dada a um comportamento que é percebido como sendo de risco (Trimpop, 1994). As percepções do risco traduzem‐se na percepção da vulnerabili‐dade pessoal a um determinado acontecimento crítico (Schwarzer e Fuchs, 1995). Segundo Trimpop  (1994), os  factores mais determinantes na percepção do  risco são as preferências pessoais, as experiências anteriores, e as interpretações indivi‐duais  do  risco.  Dentro  das  interpretações  individuais  do  risco  encontra‐se  uma percepção comum entre os jovens, a percepção da invulnerabilidade. A percepção de  invulnerabilidade  é,  segundo  Schwarzer  e  Fuchs  (1995),  uma  das  potenciais causas dos comportamentos de risco. As percepções do risco são muitas vezes dis‐torcidas e reflectem uma “pré‐disposição optimista”, o que conduz a uma subes‐timação do risco objectivo. Weinstein (1987, cit. in Ogden, 1996) apresenta quatro factores que contribuem para as percepções incorrectas do risco, e da susceptibili‐dade a este último, que constituem o chamado “optimismo  irrealista”: a) falta de experiência pessoal com o problema; b) a crença de que é possível prevenir o pro‐blema  através de  acções pessoais;  c)  a  crença de que  se o problema  ainda não apareceu, também não irá aparecer no futuro; d) e a crença de que não se trata de um  problema  frequente.  Os  resultados  de  um  estudo  realizado  por  Moore  e Rosenthal  (1992),  indicam que os adolescentes mais velhos subestimam os com‐

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portamentos de  risco mas, no entanto,  conseguem  fazer  julgamentos  acerca da probabilidade de alguns acontecimentos ocorrerem. Tem sido ainda possível veri‐ficar que  grande parte dos  adolescentes  têm  consciência dos potenciais perigos aliados aos comportamentos que praticam (que por vezes apenas surgem a longo prazo), mas preferem  ignorá‐los devido ao facto de valorizarem mais outras con‐sequências psicossociais (a curto prazo), possíveis de obter através destes compor‐tamentos (Irwin, 1987; Schwarzer e Fuchs, 1995). Para Trimpop (1994), as pessoas ajustam o seu comportamento de acordo com o risco percebido. Este facto, visto da perspectiva do  alto  risco, parece  algo normal, na medida  em que  se  tomam mais precauções quando o perigo  é  elevado. No  entanto,  isto  significa  também que as pessoas aumentam a sua exposição ao perigo quando o risco percebido é baixo. Ou seja, de acordo com o autor, ao tornar‐se o envolvimento mais seguro as pessoas irão compensar este aumento de segurança correndo mais riscos. Schwar‐zer e Fuchs (1995) referem que existem muitas razões, quer a nível pessoal quer a nível social, que suportam o facto dos comportamentos de risco serem atractivos e persistentes.  Trimpop  (1994)  refere  que  a  literatura mostra  que  correr  riscos  é essencial para a sobrevivência, é divertido, e permite obter recompensas por parte de outros, bem como auto‐recompensas. Assim, segundo o autor, não se deve ten‐tar  eliminar os  comportamentos de  risco dos  jovens. Alternativamente poderão ser  criadas  actividades de  risco, desenvolvidas num  contexto de  segurança, que permitam assim obter o prazer do risco, mas simultaneamente a garantia necessá‐ria ao bem‐estar e desenvolvimento saudável. 

Um dos estudos realizados em território nacional que tem investigado a saúde na  adolescência  é  o  estudo  “Health  Behaviours  in  School‐aged  Children (HBSC/OMS)”. Trata‐se de um estudo colaborativo da Organização Mundial de Saú‐de, integrado na Rede Europeia, que está a ser realizado em mais de 40 países, e que recolhe dados de 4 em 4 anos de modo a monitorizar as evoluções neste campo. O objectivo geral deste estudo é conhecer os comportamentos ligados à saúde, os esti‐los de vida e respectivos contextos nos jovens em idade escolar. Complementarmen‐te,  pretende‐se  compreender  a  forma  como  os  jovens  percebem  a  sua  saúde  e desenvolver um sistema nacional de informação acerca da saúde e estilo de vida dos jovens. Os dados recolhidos neste estudo ao longo dos últimos anos têm mostrado que a maioria dos adolescentes portugueses atravessa este período das suas vidas sem  apresentar  grandes  problemas. No  entanto,  uma  (preocupante) minoria  evi‐dencia contextos, processos e comportamentos lesivos da sua saúde. 

Estes dados estão bem patentes num estudo desenvolvido por Simões (2005), que agregou os dados recolhidos no estudo HBSC/OMS em 1998 e 2002 (Matos e Equipa do Projecto Aventura Social, 2003; Matos, Simões, Carvalhosa, et al., 2000) bem como uma amostra de adolescentes  institucionalizados nos Centros Educati‐vos do  Instituto de Reinserção  Social, onde  foi possível  verificar  a  existência de quatro diferentes grupos de adolescentes no que diz respeito aos seus comporta‐mentos relacionados com a saúde (consumo de tabaco, álcool e drogas ilícitas; sin‐tomas psicológicos, satisfação com a escola; satisfação com a vida; comunicação com os pais; comunicação com os amigos; relacionamento com os colegas; e rela‐cionamento com os professores). Assim um primeiro grupo, que agregou mais dois quintos  dos  sujeitos,  é  caracterizado  por  incluir  adolescentes  que  apresentam valores médios na maioria das variáveis em estudo. Têm uma comunicação  fácil 

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com a  família e  com os amigos, por  vezes  têm um  relacionamento  fácil  com os colegas, a satisfação com a escola situa‐se também em valores medianos, sentem‐‐se  felizes, e ocasionalmente consomem  tabaco e álcool e  têm sintomas de mal‐‐estar  psicológico. O  grupo  2,  que  agregou  cerca  de  um  quinto  dos  sujeitos,  é composto por adolescentes que apresentam algumas dificuldades a nível pessoal e interpessoal. São adolescentes que  referem dificuldades na comunicação com os pais e com os amigos ou mesmo não ter amigos, dificuldades na relação com os colegas, não estar satisfeitos com a escola, não se sentir felizes, ter frequentemen‐te  sintomas  de mal‐estar  psicológico  e  ocasionalmente  consumos  de  tabaco  e álcool. O grupo 3, que agregou cerca de um terço dos sujeitos, caracteriza‐se por incluir adolescentes que não apresentam problemas de relacionamento  interpes‐soal nos contextos avaliados, que referem ser muito felizes, estar bastante satisfei‐tos com a escola, raramente ou nunca ter sintomas de mal‐estar psicológico e não estar  envolvidos  em  qualquer  tipo  de  consumo  de  substâncias. O  grupo  4,  que agregou cerca de um décimo dos sujeitos, caracteriza‐se por  incluir adolescentes que apresentam dificuldades de relacionamento com os pais, algumas dificuldades com os colegas, mas por outro lado, facilidade no relacionamento com os amigos. São adolescentes que  referem não  ser  felizes e estar  insatisfeitos  com a escola. Referem  ter  frequentemente  sintomas  de mal‐estar  psicológico,  bem  como  um forte envolvimento nos consumos de drogas lícitas e ilícitas. 

Considerando os valores obtidos neste estudo em cada um dos grupos, em termos de percentagem de  sujeitos neles  incluídos, parece poder dizer‐se que a maioria dos adolescentes apresenta um desenvolvimento saudável, o que reforça a ideia já existente de que a perspectiva de “storm and stress” não é a mais ajus‐tada para caracterizar a adolescência. Contudo, uma análise dos grupos em função do  género,  idade, evoluções  temporais,  colocação escolar  /percurso de desajus‐tamento social, revela que, para alguns grupos, esta perspectiva poderá fazer sen‐tido. É o caso dos grupos de  jovens  tutelados, quer os mais novos, quer os mais velhos, onde é possível verificar que a maioria dos sujeitos se encontra nos grupos 2 e 4, que corresponde aos grupos onde se encontra o maior número de proble‐mas. Em relação aos outros grupos, parece ser necessário ter atenção a alguns fac‐tores, especialmente à idade, dado que se verifica que o grupo que apresenta um maior nível de ajustamento é caracterizada pelos adolescentes mais novos, e que a classe que apresenta um maior nível de desajustamento é caracterizada por ado‐lescentes mais  velhos.  Também o  género  surge  como  factor de destaque, dado que  se  verifica que o grupo onde  surgem  como  característicos os problemas de internalização prevalecem as raparigas, e no grupo com maior nível de desajusta‐mento prevalecem os  rapazes  (considerando na  comparação  com as  raparigas o mesmo nível de idade). Estes resultados parecem ir ao encontro dos resultados de outros estudos, que mostram que os adolescentes mais velhos apresentam mais comportamentos problema e uma maior regularidade na prática desses compor‐tamentos, e que os  rapazes e os que estão  fora do  sistema escolar apresentam mais probabilidade de entrar em múltiplos comportamentos de risco, comparati‐vamente  com  outros  jovens  (Mitchell, Novins,  e HolmesIssue,  1999;  Reardon  e Buka, 2002; Sells e Blum, 1996; Swaim, Bates, e Chavez, 1998). 

Parece pois que os  jovens mais novos  se encontram mais  ajustados,  verifi‐cando‐se uma tendência com a idade e com factor tempo para migrar para “espa‐

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ços” mais desajustados. Contudo, o factor idade parece também determinante de uma migração para um outro “espaço”, que envolve certos riscos e  insatisfações próprias do desenvolvimento, mas que não se poderá caracterizar necessariamen‐te como um “espaço problemático”. Esta migração parece ainda dependente do género, dado que as raparigas parecem ter mais tendência para “evoluir” para os problemas de  internalização, enquanto que os rapazes surgem com mais tendên‐cia para  se polarizarem para os problemas de externalização. Tal  como  referem Wagner, Cohen, e Brook (1996), os acontecimentos de vida stressantes têm mais probabilidade de estar associados a problemas de comportamento nos rapazes e a sintomas de depressão nas raparigas. É possível pois, que os desafios e os proble‐mas com que os adolescentes se defrontam ao longo desta fase constituam fonte de stress, e que esta “evolução” seja o reflexo da interacção entre os adolescentes e o envolvimento. 

Promoção da saúde na adolescência  

Os dados apresentados ao  longo deste  trabalho mostraram a existência de múltiplos factores de risco e de protecção que interagem e que têm como resulta‐do um maior ou menor envolvimento dos jovens em comportamentos que podem ameaçar a sua saúde. Como se sabe, os comportamentos de risco apresentam fun‐ções  utilitárias  importantes  para  os  adolescentes,  e  este  aspecto  constitui  um importante factor que leva os jovens a aderir a este tipo de comportamentos. Mas, também se sabe que estes mesmos comportamentos  trazem consequências gra‐ves a curto, médio e  longo prazo em várias esferas da sua vida, nomeadamente pessoal, interpessoal, familiar, escolar e profissional. 

Perante este cenário urge prevenir. Como  já se teve oportunidade de referir em outras abordagens  (Simões, 2000, 2005, 2007), quatro questões  importantes destacam‐se no cenário da prevenção: (1) a necessidade de uma intervenção pre‐coce, (2) que promova os factores de protecção dos comportamentos de risco; (3) que envolva os principais contextos de vida; e  (4) que seja delineada para vários comportamentos alvo. 

A  necessidade  de  uma  intervenção  precoce  é  consubstanciada  em  vários estudos que mostram que o envolvimento em comportamentos problema aumen‐ta com a idade. Para além deste aspecto, um outro factor que reforça esta posição é a verificação de que o comportamento anterior constitui um dos principais facto‐res determinantes do comportamento futuro, e de que os comportamentos de ris‐co constituem um dos principais  factores de risco de outros comportamentos de risco. Torna‐se pois  importante  intervir em etapas precoces do desenvolvimento, de preferência em etapas onde ainda não tenha ocorrido estes comportamentos. É pois preciso estar atento, em etapas muito precoces, nomeadamente nos pri‐meiros momentos na escola, a potenciais factores de risco, ou a lacunas na protec‐ção, ou ainda a  comportamentos que poderão  indiciar  futuros  comportamentos problema. 

O  segundo  aspecto  referido,  a promoção de  factores de protecção, deverá constituir  a  essência  da  intervenção.  Para  esta  concepção  actual  de  prevenção, contribuiu sem dúvida o conceito de resiliência, e a  investigação em torno desta, que privilegiou a procura de factores e processos de protecção. De entre os vários 

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factores apontados na literatura, destacam‐se, por exemplo, as atitudes, a percep‐ção do  risco e as competências sociais. Em  relação a este último aspecto muitos estudos  (Farrington,  2001; Matos,  2005;  Scheier,  Botvin,  Griffin,  e  Diaz,  2000; Simões e Matos, 1994; Simões, Rocha, Malho, e Matos, 2002; Webster‐Stratton, Reid, e Hammond, 2001),  têm  revelado que este  tipo de competências é  funda‐mental para um melhor ajustamento dos  indivíduos. Competências de comunica‐ção interpessoal, competências para lidar com os sentimentos, competências para lidar com stress, competências alternativas à agressividade, competências de reso‐lução de problemas, surgem na literatura como importantes factores de protecção dos comportamentos de  risco, na medida em que os sujeitos que delas dispõem apresentam uma maior capacidade para se adaptar a diferentes situações e para lidar com as adversidades. 

Dado  que  a protecção,  tal  como  o  risco,  se  situam  em  diversos  contextos, torna‐se  importante  que,  tal  como  referem Matos,  Gonçalves,  Dias,  Gaspar,  e Simões  (2003), qualquer  trabalho preventivo de  acção directa  sobre o  indivíduo aborde os seus contextos de vida e envolva os seus intervenientes, no sentido de se obter uma diminuição do risco e uma activação dos recursos de apoio. Muitos dos programas de promoção da saúde têm tido uma base escolar. A escola consti‐tui  um  dos  principais  contextos  na  vida  de  um  adolescente  e  tem,  ou  deve  ter como objectivo a educação, na verdadeira acepção da palavra, pelo que esta tem de continuar a ser um contexto de referência para a implementação deste tipo de acções. Apesar das  intervenções preventivas com base escolar serem  fundamen‐tais e constituírem um dos enquadramentos principais a este nível, é preciso não esquecer, no entanto, que os programas escolares podem não chegar àqueles que estão em maior risco, ou seja os jovens absentistas e os jovens que abandonaram a escola (Aveyard, Markham, Almond, Lancashire, e Cheng, 2003; Weinberg, Rah‐dert, Colliver, e Glantz, 1998). Torna‐se assim fundamental, o desenvolvimento de acções  que  envolvam  as  componentes  acima  referidas  em  outros  contextos, nomeadamente o  comunitário.  E  a  este nível  alguns  estudos mostram que  este tipo  de  acções  deve  de  aproveitar  os  recursos  da  comunidade,  nomeadamente através do estabelecimento de ligações e colaboração com as instituições comuni‐tárias, da criação de oportunidades de participação dos jovens na comunidade, do desenvolvimento de planos de vida futura e da ligação com o mundo do trabalho (Farrington, 2001; Rolf e Johnson, 1999). Para além destes dois contextos, a família constitui por excelência um contexto chave para a promoção da saúde. Aspectos como o apoio, a afectividade, a comunicação, as regras, a supervisão são aponta‐dos como determinantes do bem‐estar e consequentemente do ajustamento dos jovens. Parece assim não existir dúvidas sobre a  importância da  inclusão dos pais em acções de base escolar ou comunitária, que visem o apoio e a  formação dos mesmos em relação aos múltiplos aspectos aliados à vida dos jovens. Este tipo de apoio torna‐se ainda mais relevante para as famílias oriundas de contextos desfa‐vorecidos e famílias disfuncionais. 

Finalmente,  um  último  aspecto  importante  no  cenário  da  prevenção,  a implementação de programas delineados para vários comportamentos problema. A investigação e a intervenção realizadas neste campo têm mostrado que existem diversas razões que suportam esta directriz (DiClemente, Ponton, e Hansen, 1996; Lynskey,  Fergusson,  e  Horwood,  1998; Michaud,  et  al.,  1997; Windle  e  Davies, 

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1999). E uma das principais razões consiste no facto dos comportamentos proble‐ma partilharem vários  factores de risco, mas simultaneamente vários  factores de protecção.  Este dado parece  reforçar, não  apenas  a  questão da  importância de programas multifocais, mas também a importância de se apostar preferencialmen‐te  em  acções  que  visem  a  promoção  de  factores  de  protecção,  visto  a maior homogeneidade destes (comparativamente com os factores de risco) para diversos comportamentos de risco. Contudo, apesar das similaridades nos factores relacio‐nados com os comportamentos de risco, é  importante não esquecer que existem também diferenças nomeadamente em termos de género, de idade e de percurso de vida, pelo que estas mesmas diferenças devem ser equacionadas nos progra‐mas de intervenção (Jessor, 1991; Kolip e Schmidt, 1999; Simões, 2007; Thomas e Brunton,  1997).  Parece  assim  importante  considerar  aspectos  determinantes, como são as diferenças a nível de crenças e valores, conhecimentos, ou necessida‐des utilitárias e afectivas, aliados a diferentes grupos que poderão, por  sua vez, constituir  o  resultado  de  diferentes  processos  desenvolvimentais,  educacionais, culturais e sociais. 

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QUALIDADE DE VIDA E SAÚDE: APLICAÇÕES DO WHOQOL 

Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

 

Qualidade de vida na perspectiva da Organização Mundial de Saúde (OMS) 

O instrumento World Health Organization Quality of Life (WHOQOL) destina‐‐se à avaliação da qualidade de vida (QdV), tendo sido desenvolvido em coerência com a definição assumida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), isto é como a percepção do  indivíduo sobre a sua posição na vida, dentro do contexto dos sis‐temas de cultura e valores nos quais está inserido e em relação aos seus objectivos, expectativas, padrões e preocupações (WHOQOL Group, 1994, p. 28). 

Trata‐se de uma definição que resulta de um consenso  internacional, repre‐sentando  uma  perspectiva  transcultural,  bem  como multidimensional,  que  con‐templa a complexa influência da saúde física e psicológica, nível de independência, relações sociais, crenças pessoais e das suas relações com características salientes do  respectivo meio na  avaliação  subjectiva da QdV  individual  (WHOQOL Group, 1993, 1994, 1995, 1998). 

 

O projecto WHOQOL 

O interesse pelo conceito de QdV, aliado à sua crescente relevância no âmbito da saúde e à constatação da  inexistência de um  instrumento de avaliação de QdV que privilegiasse uma perspectiva transcultural e subjectiva, conduziu a OMS a reu‐nir um conjunto de peritos pertencentes a 15 diferentes culturas (WHOQOL Group) com o objectivo de debater o conceito de QdV e, subsequentemente, construir um instrumento para a sua avaliação: o WHOQOL‐100. O desenvolvimento do WHOQOL partiu de três pressupostos centrais: (1) a essência abrangente do conceito de QdV; (2) que uma medida quantitativa,  fiável e válida pode  ser  construída e aplicada a várias populações; e (3) qualquer factor que afecte a QdV influencia um largo espec‐tro de  componentes  incorporados no  instrumento e este, por  sua vez,  serve para avaliar  o  efeito  de  intervenções  de  saúde  específicas  na  QdV  (WHOQOL  Group, 1993).  

A construção deste instrumento surgiu num contexto de simultânea relevân‐cia e falta de precisão conceptual do conceito de QdV, caracterizado por uma proli‐feração  de  instrumentos  de  avaliação, muitos  deles  sem  base  conceptual  e  na generalidade ancorados na cultura anglo‐saxónica. Para além desta preocupação 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 243‐268. 

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244  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

conceptual, do ponto de vista metodológico, a sofisticação que lhe está subjacente tem  contribuído  para  a  imagem  de  robustez  conceptual  e  psicométrica  que  o WHOQOL apresenta. 

Desde a formalização do grupo de QdV da OMS, em 1991, e a apresentação das características psicométricas do estudo multicêntrico, o projecto estendeu‐se a praticamente todo o mundo estando, actualmente, o WHOQOL (nas versões lon‐ga e abreviada) disponível em mais de 40  idiomas diferentes  (Skevington, Sarto‐rius, Amir, e WHOQOL Group, 2004) e sendo um dos instrumentos mais utilizados internacionalmente  para  avaliar  a QdV.  Em  Portugal,  as  duas  versões  genéricas foram desenvolvidas pelo Centro Português para a Avaliação da QdV  (para uma revisão do processo de desenvolvimento e aplicação destes instrumentos cf. Cana‐varro et al., 2006; Rijo et al., 2006; Vaz Serra et al., 2006a, 2006b). 

 

Os instrumentos da família WHOQOL 

O  primeiro  instrumento  de  avaliação  da  QdV  desenvolvido  pelo WHOQOL Group foi o WHOQOL‐100. Trata‐se de uma medida genérica cuja estrutura assen‐ta nos seguintes seis domínios: Físico; Psicológico; Nível de  Independência; Rela‐ções Sociais; Ambiente; e Espiritualidade. No âmbito de cada domínio, 24 facetas específicas sumariam o domínio particular em que se  inserem. Adicionalmente, o instrumento contempla uma faceta geral que avalia a satisfação global com a QdV e a percepção geral de saúde. Cada faceta é avaliada através de quatro perguntas. Na versão portuguesa de Portugal foi acrescentada uma nova faceta à versão ori‐ginal, designada por FP25: Poder Político (Rijo et al., 2006). 

A versão abreviada do WHOQOL é composta por 26  itens e está organizada em 4 domínios:  Físico, Psicológico, Relações  Sociais  e Ambiente,  incluindo  ainda uma faceta sobre QdV geral. Cada faceta é avaliada através de uma pergunta, cor‐respondente a um item, à excepção da faceta sobre QdV em geral, que é avaliada através de dois itens, um correspondente à QdV em geral e outro sobre a percep‐ção geral da saúde. 

A elaboração de módulos específicos precisou de esperar a conclusão do ins‐trumento  nuclear,  na  medida  em  que  os  módulos  específicos  seriam  apenas necessários para cobrir aspectos não contemplados na medida genérica. A OMS, partindo da versão genérica, desenvolveu um módulo específico para avaliação da QdV em doentes  infectados pelo VIH. Este novo  instrumento tem  igualmente em conta a definição de QdV assumida pela OMS e referida anteriormente. O WHO‐QOL‐HIV tem em acréscimo um conjunto de itens que reflectem aspectos particu‐lares da vida dos doentes infectados, e que derivaram de diversas sessões de gru‐pos  focais de experts  internacionais organizadas pela OMS  (WHOQOL‐HIV Group, 2003).  De  forma  semelhante  à medida  genérica,  este  instrumento  encontra‐se organizado nos mesmos  seis domínios mencionados e em 29  facetas específicas (as 24  facetas que compõem o  instrumento original mais 5 específicas: Sintomas dos Pleople Living with HIV AIDS (PLWHA); Inclusão social; Perdão e culpa; Preocu‐pações sobre o  futuro; e Morte e morrer) e uma  faceta  relativa à QdV geral e à percepção  geral de  saúde. O Grupo WHOQOL‐HIV desenvolveu  igualmente uma medida abreviada, constituída por 31 perguntas, duas de âmbito mais geral e 29 representando cada uma das facetas específicas (WHO, 2002a; 2002b). 

 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  245 

 

Qualidade de vida e doença crónica 

A partir dos anos 80 do século XX, o conceito de QdV começa a ganhar uma importância crescente no domínio da saúde e dos cuidados de saúde, aumentando a sua relevância no discurso e prática médica (Lowy e Bernhard, 2004; Naughton e Shumaker, 2003; Ribeiro, 1994; Stenner, Cooper, e  Skevington, 2003). Para esse facto contribuiu o aumento da expectativa de vida, em virtude do progresso tecno‐lógico da medicina (Fleck, 2008; Han, Lee, Lee, e Park, 2003), a mudança nas doen‐ças, de predominantemente infecciosas a predominantemente crónicas (Bowden e Fox‐Rushby, 2003;  Lowy e Bernhard, 2004), a  insuficiência das medidas médicas objectivas e tradicionais na avaliação das  limitações  impostas pela doença e seus tratamentos nas diferentes dimensões de vida da pessoa doente (Bonomi, Patrick, Bushnell, e Matin, 2000; Ribeiro, 1994) e, por último, o movimento de humaniza‐ção da medicina  (Fleck, 2008). Estes  factores conduziram, portanto, a que a QdV começasse  a  ser  introduzida  na  investigação  na  área  da  saúde  com  o  principal objectivo de avaliar o  impacto específico não médico da doença crónica e como um critério para a avaliação da eficácia dos tratamentos médicos (Bowling, 1995; Ebrahim, 1995, cit. por Kilian, Matschinger, e Angermeyer, 2001). 

É no âmbito da doença crónica que se tem verificado um maior interesse em avaliar a QdV, sendo que a  importância da conceptualização deste conceito está intimamente ligada à evolução das doenças prolongadas (Heinemann, 2000; Ribei‐ro, 1994). A  incerteza persuasiva que envolve o diagnóstico e prognóstico, a pro‐gressão da doença e a imprevisibilidade que a caracteriza, bem como aos seus tra‐tamentos,  resultam  inevitavelmente  em  algum  grau  de  perturbação  emocional, sem esquecer as limitações físicas e funcionais persistentes que conduzem à alte‐ração do funcionamento e rotina diária, interferindo com a capacidade para traba‐lhar, desempenhar papeis familiares e sociais e com o envolvimento em activida‐des  de  lazer  (Doka,  1993).  Em  virtude  do  seu  diagnóstico  ameaçador,  dos  seus tratamentos prolongados e muitas vezes agressivos e da incerteza do prognóstico, a doença crónica constitui‐se como um risco para a QdV do indivíduo. 

Compreende‐se, assim, o  interesse de  investigadores e clínicos em avaliar a QdV na doença crónica, bem como o facto de em praticamente todas estas enfer‐midades  a QdV  ter  sido  estudada,  desde  as  doenças  cardiovasculares,  infecção VIH, passando pelo cancro, artrite, doenças reumáticas em geral, doenças neuro‐lógicas, entre outras  (Ribeiro, 1994). Esta avaliação reveste‐se de especial  impor‐tância ao permitir i) identificar o impacto da doença e seu tratamento em diversas áreas de vida do doente; ii) melhorar o conhecimento acerca dos efeitos secundá‐rios dos tratamentos;  iii) avaliar o ajustamento psicossocial à doença;  iv) medir a eficácia  dos  tratamentos;  v)  definir  e  desenvolver  estratégias  com  vista  a  uma melhoria  do  bem‐estar  dos  doentes;  e  vi)  proporcionar  informação  prognóstica relevante quer para a resposta ao tratamento quer para a sobrevivência. 

Qualidade de vida e infecção por VIH/SIDA 

A avaliação da QdV é central na compreensão da forma como vive uma pes‐soa infectada pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH). As particulares carac‐

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terísticas do processo de  infecção pelo VIH e a  inevitável progressão para Síndro‐me de Imunodeficiência Humana (SIDA), os efeitos colaterais das terapêuticas uti‐lizadas,  bem  como  a  conveniência  em  iniciar  precocemente  a  terapêutica  anti‐‐retrovírica  (TAR)  nos  portadores  assintomáticos,  convergem  na  necessidade imperativa, e cada vez mais generalizada, de avaliar a QdV. Esta importância deve‐‐se sobretudo à natureza da própria doença, caracterizada pela imprevisibilidade e pelas  múltiplas  recorrências  (Remple,  Hilton,  Ratner,  e  Burdge,  2004),  e  pela necessidade  de  avaliar  os  efeitos  dos  tratamentos  no  bem‐estar  dos  indivíduos infectados pelo VIH (Bing et al., 2000). A nível do cuidado individual, a optimização da QdV dos doentes infectados será essencial para aumentar a adesão aos regimes terapêuticos e, por conseguinte, prolongar o tempo de vida (Wu, 2000). 

Este instrumento tem tido uma aplicabilidade crescente na avaliação da QdV dos PLWHA. Em seguida apresentamos uma breve resenha de estudos, baseados no WHOQOL‐HIV, que  salientam a  influência dos determinantes  sociodemográfi‐cos  e  clínicos  na  QdV  destes  doentes.  No  estudo  de  campo  do WHOQOL‐HIV (WHOQOL‐HIV Group, 2004), as comparações sociodemográficas e clínicas revela‐ram  efeitos  significativos do  género  e  idade. Concretamente, pior QdV  entre  as mulheres e entre os doentes com menos de 34 anos. 

No estudo de validação  italiano (Starace et al., 2002), os autores não encon‐traram associações significativas entre os factores sociodemográficos (idade; géne‐ro; educação; estado  civil; e  situação profissional),  clínicos  (CD4+;  carga vírica; e regime HAART  – Higly  Active  Anti‐Retroviral  Therapy)  e QdV,  com  excepção  da faceta 7  (Imagem  corporal e aparência), na qual as mulheres  registaram valores significativamente mais  baixos,  comparativamente  aos  homens.  Na  análise  por estádio  serológico  (assintomático;  sintomático; e SIDA), os domínios Físico, Nível de  Independência  e  Espiritualidade  mostraram  poder  discriminativo.  No  total, observaram‐se diferenças estatisticamente significativas em 10 facetas específicas. 

O  estudo  da  versão  em  Português  do Brasil  (Zimpel,  2003;  Zimpel  e  Fleck, 2007) revelou que em relação ao estádio de infecção, todos os domínios apresen‐tam capacidade discriminativa sendo o maior poder observado nos domínios Físico e Nível  de  Independência. Neste mesmo  estudo,  encontraram‐se diferenças nos domínios relativamente às características sociodemográficas idade, género e esta‐do  civil. Os  indivíduos  com  idade  inferior a 35 anos, apresentaram piores  scores nos domínios  Psicológico, Ambiente  e  Espiritualidade.  Em  relação  ao  género,  as mulheres  apresentaram  piores  médias  nos  mesmos  domínios,  bem  como  no domínio das Relações  Sociais. Em  relação  ao estado  civil, os  solteiros  revelaram melhores  resultados em  todos os domínios quando comparados com os casados (ou vivendo em união de facto), mas com significação estatística nos domínios Físi‐co e Relações Sociais. A  influência dos  indicadores económicos foi estudada atra‐vés das variáveis escolaridade e nível  sócio‐económico. Relativamente à variável educação  (+/‐  8  anos  de  estudo)  verificou‐se  que  uma maior  escolaridade  está associada  a uma melhor QdV  em  todos os domínios. O mesmo  se  verificou  em relação ao nível socioeconómico, onde se observou que os níveis superiores apre‐sentaram resultados significativamente mais elevados em todas as dimensões. 

 

 

 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  247 

 

Qualidade de Vida em Oncologia 

O cancro é, actualmente, a segunda causa de morte nos países  industrializa‐dos,  tendo  a  sua  incidência  e mortalidade  vindo  a  aumentar  nos  últimos  anos (Pimentel, 2006). Na Europa, é considerado um dos principais problemas de saúde, tendo sido registados em 2006 cerca de 3.2 milhões de novos casos e mais de 1.5 milhões  de mortes  (Ferlay  et  al.,  2007).  Em  Portugal,  representa  também  uma importante  causa  de morbilidade  e mortalidade,  diagnosticando‐se  anualmente entre 40 a 45 mil novos casos (Pimentel, 2006). 

Este  aumento  generalizado  da  incidência  do  cancro  deve‐se  não  só  às mudanças  de  estilo  de  vida  e  envelhecimento  da  população, mas  também  ao aumento da sobrevivência e à evolução dos meios de diagnóstico. Com efeito, o progresso da medicina no diagnóstico e tratamento das doenças oncológicas con‐tribuiu para que o  cancro  tivesse evoluído de uma doença  inevitavelmente  fatal para uma doença crónica, ameaçadora do bem‐estar do  indivíduo  (Osoba, 1991; Bessel,  2001).  Paralelamente,  muitos  dos  tratamentos  actualmente  existentes estão associados a uma substancial morbilidade, física e psicológica, embora mui‐tas vezes com ganhos mínimos em termos de resposta ao tumor e sobrevivência. Foi por estas razões que, a partir dos anos 80, a QdV começou a ser considerada e estudada no campo específico da Oncologia, passando a ser conceptualizada como um  importante  resultado quer da própria doença quer do  seu  tratamento, mas também  como uma medida auxiliar na  tomada de decisões  clínicas  (Koinberg et al., 2006; Osoba et al., 2005; Pimentel, 2006). 

Efectivamente, os profissionais de saúde têm vindo a aperceber‐se que a eficá‐cia dos tratamentos ou das suas intervenções ou, de uma forma geral, o sucesso dos cuidados  de  saúde  em  oncologia,  não  podem  apenas  ser  avaliados  recorrendo  a indicadores biomédicos, como o tempo livre de doença, as complicações médicas ou a toxicidade dos tratamentos. É essencial considerar também outras variáveis, como a percepção que o doente tem da doença e dos tratamentos e a forma como estes influenciam os diversos domínios da  sua  vida. Assim, na  avaliação do  impacto de uma doença crónica, como é o caso do cancro, onde muitas vezes o objectivo do tra‐tamento não é a  cura, mas  sim a  redução das  limitações  impostas pela doença a vários níveis, é fundamental avaliar e considerar a QdV do doente (Pimentel, 2006). 

Cancro da mama 

O  cancro  da mama  é  o  tumor maligno  com maior  prevalência  no mundo industrializado  e  o mais  comum  no  sexo  feminino,  prevendo‐se  que  na  Europa uma em cada onze mulheres seja diagnosticada com esta doença. Em Portugal, é também o tipo de cancro mais  frequente na mulher, estimando‐se que em 2006 tenham sido registados aproximadamente 5600 novos casos e 1100 óbitos (Ferlay et al., 2007). 

Os  avanços  técnicos  e  científicos na detecção precoce  e no  tratamento do cancro da mama têm conduzido a uma diminuição muito significativa da mortali‐dade  o  que,  por  sua  vez,  tem  vindo  a  determinar  um  aumento  importante  do número de sobreviventes. Estima‐se que existam cerca de 4,4 milhões de mulhe‐

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res em todo o mundo e 18265 em Portugal, a quem  foi diagnosticado cancro da mama nos últimos cinco anos  (Ferlay et al., 2004). O prolongamento da vida e a conceptualização desta doença como doença crónica, trazem consigo a questão da quantidade de vida sem qualidade (Pais‐Ribeiro, 2001), tornando‐se, deste modo, fundamental  a  consideração  da QdV  e da  adaptação  emocional  da  doente  com cancro da mama ao longo de todo o percurso da doença (Kornblith, 1998). 

Nos últimos anos, muitos investigadores têm‐se dedicado ao estudo da QdV e da adaptação psicossocial da mulher com cancro da mama (Bardwell et al., 2004; Carver, 2005; Helgeson e Tomich, 2005; Knobf, 2007; Kornblith et al., 2007). Os estudos neste âmbito realizados têm mostrado que a maioria das doentes é resi‐liente,  conseguindo  adaptar‐se  bem  ao  diagnóstico  e  às  exigências  psicológicas, físicas e sociais associadas aos tratamentos (Bloom, Peterson, e Kang, 2007; Ganz et al., 1996; Helgeson, Snyder, e Seltman, 2004; Massie e Shakin, 1993). Embora seja frequente a presença de dificuldades de adaptação e uma diminuição da QdV numa fase inicial da doença (Barraclough, 1999; Veach, Nicholas, e Barton, 2002), alguns estudos têm apontado para uma prevalência de apenas 20% a 30% de sin‐tomatologia  psicopatológica  clinicamente  significativa  ao  longo  do  percurso  da doença (Massie e Popkin, 1998; Nezu e Nezu, 2007). Globalmente, tem‐se consta‐tado  que  a QdV  geral,  alguns  anos  depois  do  diagnóstico,  é  boa  (Bloom  et  al., 2007; Ganz, Greendale, Petersen, Kahn, e Bower, 2003; Tomich e Helgeson, 2002), sendo  por  vezes  comparável  (Dorval,  Maunsell,  Deschenes,  Brisson,  e  Masse, 1998; Tomich e Helgeson, 2005) ou mesmo  superior  (Peuckmann et al., 2007) à QdV de mulheres sem história pessoal de doença oncológica. 

Este estudo pretende, assim, analisar e comparar a QdV e a adaptação emo‐cional  de  um  grupo  de mulheres  recentemente  diagnosticadas  com  cancro  da mama e de um grupo de mulheres sobreviventes desta doença, por forma a detec‐tar diferenças e similitudes entre estas duas fases da doença. 

Tumor do aparelho locomotor 

Os doentes diagnosticados com sarcomas do aparelho locomotor apresentam‐‐se  como  um  grupo  bastante  debilitado  e  incapacitado,  que  está  vulnerável  ao desenvolvimento de dificuldades psicossociais e que pode manifestar um compro‐misso significativo na QdV global (Felder‐Puig et al., 1998). Esta vulnerabilidade para a manifestação de problemas psicológicas e ao nível social, assim como a QdV global diminuída, são compreensíveis se atendermos aos riscos que estão associados a este tipo particular de  cancro e às  consequências negativas dos  seus  sintomas e  trata‐mentos. Designadamente, o diagnóstico de um tumor maligno do aparelho locomo‐tor coloca desde  logo o risco de surgir uma restrição permanente na mobilidade e um funcionamento físico reduzido, o risco da perda de um membro e, eventualmen‐te, de um desfiguramento físico, sem esquecer o risco da perda da própria vida (Cus‐todio, 2007; Ginsberg et al., 2007). Por sua vez, estes doentes sofrem frequentemen‐te de dor crónica e intensa, fracturas dos ossos, défices neurológicos e apresentam uma actividade física reduzida (Mercadante, 1997), para além de que os seus trata‐mentos  intensivos  implicam  habitualmente  longos  períodos  de  internamento,  a administração de elevadas doses de quimioterapia e/ou radioterapia, daí resultando efeitos secundários significativos, e envolvem cirurgias extensas que podem reque‐

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rer a amputação de membros ou a mutilação de partes do corpo (Aksnes, Hall, Jeb‐sen, Fossa, e Dahl, 2007; Felder‐Puig et al., 1998; Schreiber et al., 2006). O diagnósti‐co  de  sarcoma  do  aparelho  locomotor,  a  própria  doença  e  os  seus  tratamentos fazem‐se  portanto  acompanhar  de  efeitos  negativos  que  incluem  alterações  das competências físicas, funcionais e mentais, alterações dos papeis pessoais e sociais e alterações da aparência e imagem corporal, daí resultando um impacto na QdV. 

Atendendo  às  implicações  deste  tipo  específico  de  cancro  para  as  diversas áreas de vida do doente e à escassez de literatura que existe no nosso país acerca desta temática, procurámos no presente trabalho avaliar a QdV de doentes diag‐nosticados com sarcomas do aparelho  locomotor, assim como  identificar os seus possíveis factores de variabilidade. 

Estudos Empíricos 

Considerações gerais 

Por questões de organização, optámos por apresentar uma secção destinada aos  três estudos empíricos. Cada  trabalho  segue  a estrutura básica dos estudos empíricos, incluindo síntese e discussão dos resultados. Com a finalidade de evitar a repetição da descrição dos instrumentos utilizados, na secção instrumentos ape‐nas são referidas as características psicométricas do estudo de validação nacional. 

Qualidade de vida e infecção por VIH/SIDA 

Método  

Amostra 

As recomendações da OMS relativamente aos critérios de amostragem para a validação internacional do instrumento, preconizam um mínimo de 200 indivíduos, e a constituição do grupo clínico a partir dos seguintes critérios: (a) Idade: 50% da amostra deve ter menos de 30 anos de  idade;  (b) Género: 50% da amostra deve ser do sexo masculino; e (c) Estado de saúde. Este critério deve ter em conta uma distribuição equivalente pelos três estádios de infecção: assintomático; sintomáti‐co sem SIDA e SIDA. 

A amostra  total  ficou constituída por 200  indivíduos, com uma  idade média de 39,23 anos (DP=9,21 anos). A maior parte da amostra (60%) é do sexo masculi‐no. No conjunto da amostra regista‐se que quase metade dos inquiridos são soltei‐ros (47,5%) e a maioria (72,0%) pertence ao nível socioeconómico baixo (de acor‐do com a tipologia de Simões, 1994). 

Relativamente  às  características  associadas  com  a  infecção VIH  verificámos que a maioria dos sujeitos refere infecção por via sexual (66,5%) e estado serológi‐co assintomático (43,7%). Chamamos a atenção para o facto de 18,1% dos inquiri‐dos não  ter conhecimento do  seu estado  serológico. Estes  indivíduos não  foram considerados nas análises relativas à influência desta variável na QdV dos doentes infectados. 

 

 

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Instrumentos 

O WHOQOL‐HIV  é  um  instrumento  de  auto‐avaliação  da QdV  que  inclui  um módulo específico para  a  infecção VIH e  foi descrito  anteriormente. A  versão em português (de Portugal) encontra‐se validada (Canavarro, Pereira, Simões, Pintassil‐go, e Ferreira, 2008) e apresentou boas características psicométricas. A consistência interna,  avaliada  através  do  de Cronbach  apresenta  valores  aceitáveis,  quer  se analisem os seis domínios (.90) ou cada domínio individualmente [variando entre .86 (Espiritualidade) e  .95  (Psicológico)]. O  de Cronbach para as 120 questões  foi de .98.  Em  relação  à  validade,  o  WHOQOL‐HIV  mostrou‐se  um  bom  discriminador quando considerados quer o estado serológico quer a percepção geral de saúde. 

 

Análises estatísticas 

Para o tratamento estatístico e análise dos dados utilizámos a versão 15.0 do programa SPSS (Statistical Package for the Social Sciences). Em primeiro lugar, para a  caracterização  da  amostra  recorremos  sobretudo  à  estatística  descritiva  (fre‐quências relativas, médias, desvios‐padrão). Para outras análises, e com o objecti‐vo de averiguar a existência de diferenças entre os diferentes grupos constituídos, recorremos à estatística inferencial, aceitando como estatisticamente significativas todas as diferenças às quais aparecesse um nível de  significação  inferior a 0.05. Neste sentido, e em  função das variáveis consideradas,  foram realizados: teste T de  Student; Análises  da Variância  (ANOVA)  e  testes  post  hoc,  bem  como  o  seu equivalente não paramétrico, o teste de Kruskall‐Wallis. 

Resultados  

Determinantes sociodemográficos 

Género  

A análise por domínios não revelou diferenças estatisticamente significativas, no entanto, as mulheres apresentam pior QdV em quase todos os domínios, com excepção nos domínios Nível de Independência e Relações Sociais. 

Relativamente às  facetas, três discriminam homens de mulheres, sendo que as mulheres apresentam piores scores na faceta Segurança física [t(1,197) = 2.307; p = .022]; e nas  facetas específicas do módulo VIH: Preocupações  sobre o  futuro [t(1,197) = 2.112, p = .036] e Morte e morrer  [t(1,197) = 3.191; p = .002]. No con‐junto das 29 facetas específicas, as mulheres pontuam menos em 18 facetas. 

 

Idade 

No que diz  respeito  à  idade, o  critério de  amostragem da OMS  estabelece como ponto de corte os 30 anos. No presente estudo este critério não foi rigoro‐samente  cumprido.  Como  ponto  de  corte  considerámos  para  efeitos  de  análise estatística, a medida de tendência central Mediana. Neste sentido, consideraram‐‐se duas categorias de idade: inferior e superior a 39 anos. 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  251 

Em relação aos domínios não se verificaram diferenças quando consideradas estas categorias. Os  indivíduos mais velhos apresentam, em geral, pior QdV, com excepção dos domínios Ambiente e Espiritualidade. Relativamente às  facetas,  só na  Actividade  sexual  se  encontraram  diferenças  estatisticamente  significativas [t(1,197) = 4.231;  p = .000]. No  total,  os  indivíduos mais  velhos  apresentam  pior QdV em 21 das 29 facetas específicas, assim como na faceta que avalia a QdV glo‐bal e percepção geral de saúde. 

 

Estado civil 

Na análise por estado  civil não  se encontraram diferenças  com  significação estatística entre os domínios da QdV, assim como na faceta que avalia a QdV geral. A análise por facetas específicas relevou uma diferença significativa na faceta Espi‐ritualidade,  Religião  e  Crenças  pessoais  (2 = 13.421;  p = .004),  apresentando melhor QdV os indivíduos Viúvos. 

 

Habilitações literárias 

A análise em  função das habilitações  literárias revelou diferenças significati‐vas no domínio Ambiente (2 = 12.100; p = .007). Os testes post hoc registaram as diferenças entre os indivíduos com habilitações ao nível do Ensino Superior, relati‐vamente  aos  indivíduos  com  escolaridade  ao nível do 1º  ao 3º  ciclos do  Ensino Básico.  

Por  sua  vez,  na  análise  por  facetas,  registaram‐se  diferenças  em  6  das  29 facetas  específicas:  Pensamento,  aprendizagem,  memória  e  concentração (2 = 12.979;  p = .005);  Capacidade  de  trabalho  (2 = 8.721;  p = .033);  Recursos económicos  (2 = 12.100;  p = .007);  Oportunidades  para  adquirir  novas  informa‐ções  e  competências  (2 = 24.584; p = .000);  Participação  e/ou  oportunidades  de recreio  e  lazer  (2 = 9.299;  p = .026);  e  Transportes  (2 = 9.949;  p = .019).  Como previsível, os piores resultados de QdV registam‐se entre os  indivíduos com grau de instrução mais baixo. 

 

Nível socioeconómico (NSE) 

Nas  análises  relativas  ao NSE  utilizou‐se  a  tipologia  de  Simões  (1994),  que diferencia três níveis: baixo, médio e elevado. Os resultados revelaram uma dife‐rença estatisticamente significativa no domínio Ambiente (2 = 13.596; p = .001). O NSE  baixo  apresenta  piores  valores  de  QdV  neste  domínio  (Média = 55.16; DP = 12.76),  comparativamente  aos  indivíduos  do  NSE  médio  (Média = 61.80; DP = 13.36)  e  elevado  (Média = 74.09;  DP = 15.90).  Ambas  as  diferenças  foram estatisticamente significativas. 

Por facetas, os resultados mostraram a existência de diferenças significativas em 6 das 29 facetas específicas: Apoio social (2 = 6.098; p = .047); Segurança físi‐ca (2 = 6.998; p = .030); Ambiente no lar (2 = 6.999; p = .030); Recursos económi‐cos (2 = 25.396; p = .000); Oportunidades para adquirir novas informações e com‐petências  (2 = 21.226;  p = .000);  e  Transportes  (2 = 13.192;  p = .001).  O maior poder discriminativo verificou‐se na faceta Recursos económicos. 

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252  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

 

Determinantes associados à infecção por VIH 

Categoria de transmissão 

No que diz  respeito  aos determinantes  associados  com  a  infecção VIH,  em primeiro  lugar,  procedemos  à  análise  da  função  discriminativa  da  categoria  de transmissão. Os  resultados obtidos mostram a existência de diferenças estatisti‐camente  significativas,  quando  se  considera  esta  variável,  em  dois  domínios  do WHOQOL‐HIV:  Psicológico  (2 = 10.892;  p = .012)  e  Nível  de  Independência (2 = 9.142; p = .027)  e na  faceta  geral da QdV  (2 = 13.922; p = .003). De  forma geral, apresentam piores scores de QdV os indivíduos infectados por via de drogas injectáveis. Ao invés, os indivíduos que especificam infecção através de contactos com sangue apresentam melhores resultados de QdV nos diferentes domínios. 

Na análise por facetas, observaram‐se diferenças estatisticamente significati‐vas em 8 das 29 facetas específicas. Em particular, observaram‐se diferenças esta‐tisticamente  significativas  nas  seguintes  facetas:  Energia  e  fadiga  (2 = 9.960; p = .019);  Pensamento,  aprendizagem,  memória  e  concentração  (2 = 9.493; p = .023); Imagem corporal e aparência (2 = 9.330; p = .025); Sentimentos negati‐vos  (2 = 9.295; p = .026); Capacidade de trabalho  (2 = 7.925; p = .048); Recursos económicos (2 = 9.454; p = .024); Oportunidades para adquirir novas informações e competências (2 = 10.295; p = .016); e Perdão e culpa (2 = 8.726; p = .033). De forma  geral,  apresentam  pior  QdV  os  indivíduos  infectados  através  de  drogas intravenosas,  comparativamente  aos  que  referem  infecção  através  de  contacto com sangue. Nas facetas Recursos económicos e Perdão e culpa, a diferença regis‐ta‐se  relativamente  aos  sujeitos  infectados  através  de  relação  sexual  com  um homem. 

 

Estado serológico 

Considerando  o  estado  serológico  dos  inquiridos,  observaram‐se  diferenças estatisticamente  significativas em  cinco domínios do WHOQOL‐HIV, na  faceta que avalia a QdV global e percepção geral de saúde e em 16 das 29 facetas específicas. No domínio da Espiritualidade não se encontraram quaisquer diferenças. Nesta aná‐lise não se consideraram os indivíduos que referiram desconhecer o seu estado sero‐lógico. O maior poder discriminativo, de acordo com o estado serológico observou‐‐se,  por  ordem  decrescente,  nos  domínios  Nível  de  Independência  (F = 16.699; p = .000); Físico (F = 8.597; p = .000); Relações sociais (F = 6.695; p = .002); e Psicoló‐gico (F = 3.362; p = .029). No que se prende com as facetas específicas, a Dependên‐cia  de medicação  ou  tratamentos  (F = 15.789;  p = .000);  Capacidade  de  trabalho (F = 10.071; p = .000) e Dor e desconforto (F = 9.340; p = .000). 

Síntese dos resultados e discussão 

O presente estudo teve como principal objectivo avaliar os determinantes da QdV dos doentes  infectados pelo VIH. Para o efeito, consideraram‐se os determi‐nantes sociodemográficos (género; idade; nível sócio‐económico; habilitações lite‐rárias; e estado civil) e os associados com a infecção VIH (categoria de transmissão e estado serológico). 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  253 

No  que  se  prende  com  o  género,  verificámos  que  esta  variável  não  se constituiu  como um  importante  contexto de  influência na  avaliação da QdV dos doentes  infectados, embora sejam consistentes menores pontuações nos domínios e facetas de QdV entre o sexo feminino. Este facto tem  igualmente sido observado noutros estudos que utilizaram o WHOQOL‐HIV (WHOQOL‐HIV Group, 2004; Zimpel, 2003; Zimpel e Fleck, 2007). A  idade não se revelou um importante  determinante,  embora  uma  menor  pontuação  nos  domínios  e facetas de QdV se encontrasse associada a uma maior idade. Estes dados dife‐rem dos resultados encontrados nos centros Brasileiro (Zimpel, 2003; Zimpel e Fleck, 2007) e no estudo piloto do WHOQOL‐HIV Group (2004), que encontra‐ram diferenças estatisticamente significativas considerando esta variável. 

O NSE e as habilitações literárias, dois dos principais indicadores sociais, reve‐laram‐se os mais  importantes determinantes da QdV nestes doentes, sendo que uma melhor QdV se encontra associada a um maior NSE e a níveis superiores de escolaridade. De forma previsível, verificaram‐se diferenças estatisticamente signi‐ficativas no domínio Ambiente e, no total, em ambos os indicadores, 6 facetas dis‐criminaram as diferentes categorias de cada variável. Estes  indicadores  têm sido igualmente  referidos  como  centrais noutros estudos que utilizaram estes  instru‐mento (Zimpel, 2003; Zimpel e Fleck, 2007). 

Quando considerado o estado serológico, apenas o domínio da Espiritualida‐de não apresentou poder discriminativo. Os resultados mostram ainda que entre os indivíduos infectados, e de forma consistente entre os grupos, são os domínios Físico e Espiritualidade, que apresentam piores  scores,  sugerindo que a  infecção por VIH se estende para além dos aspectos directamente associados com a saúde física. Em relação à categoria de transmissão, na faceta geral e nos domínios Psico‐lógico e Nível de  Independência encontraram‐se diferenças com significação esta‐tística e, de forma consistente, foram os  indivíduos que especificam  infecção por meio de drogas injectáveis que apresentaram piores índices de QdV. 

Em síntese, neste estudo, variáveis demográficas como as habilitações literá‐rias e nível sócio‐económico e características associadas à infecção VIH (categoria de  transmissão e estado  serológico)  revelaram‐se  importantes determinantes da QdV dos doentes infectados. Assumindo uma abordagem mais vasta das questões relativas aos cuidados, o conhecimento destes dados poderá ser bastante útil para os profissionais de saúde, para que estes considerem não apenas as variáveis de natureza clínica, mas tenham igualmente em conta a presença de factores socioe‐conómicos  no  planeamento  de  intervenções  (e.g.,  clínicas;  psicossociais)  para melhoria da QdV dos doentes infectados. 

Qualidade de vida e cancro da mama 

Método 

Amostra 

A amostra é constituída por 70 mulheres  recentemente diagnosticadas com cancro da mama (GD), 74 sobreviventes de cancro da mama, livres de doença (GS) e 78 mulheres saudáveis, sem história pessoal de doença oncológica (GC). 

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254  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

A  idade média das participantes do GD é de 52.43 anos (DP = 7.82), do GS é de 52.72 anos (DP = 9.59) e do CG é de 44.53 anos (DP = 8.58), sendo a diferença entre as médias significativa, F(2, 211) = 21.34, p < .001. Relativamente ao estado civil, existe uma maior prevalência de mulheres casadas ou a viver em união de facto no GC (96.2%) do que nos restantes dois grupos (GD = 84.3% e GS = 80.8%), sendo esta diferença significativa, χ² (2, N = 221) = 8.87, p < .01. As sobreviventes estão maioritariamente não activas (65.8%), enquanto que as restantes participan‐tes encontram‐se, na sua maioria, empregadas (GD = 68.1% e GC = 76.9%). A dife‐rença na distribuição pelas categorias é significativa, χ²  (2, N = 221) = 31.38, p < .001. Relativamente ao nível socioeconómico, a maioria das participantes dos três grupos pertence ao nível médio (GD = 59.4%, GS = 60.3%, GC = 56.4). No que diz respeito  à  escolaridade,  as  participantes  do GD  e  do GC  têm maioritariamente estudos  secundários ou  superiores  (53.6%  e 52.6%,  respectivamente),  enquanto que a maioria das sobreviventes tem apenas o ensino básico ou primário (55.4%). 

No que diz respeito às características clínicas do GD e do GS, a duração média da doença é de 1.35 meses (DP = 0.59; entre 1 e 3 meses) para o GD e de 93.84 meses  (DP = 77.98; entre 15 a 384 meses) para o GS. O tipo de cancro mais  fre‐quente é o  carcinoma ductal  invasivo  (79% no GD e 60% no GS). A maioria das sobreviventes realizou mastectomia (91.4%) e apenas 8.6% cirurgia conservadora; adicionalmente, 59.4% efectuaram esvaziamento ganglionar axilar; 44.1% realiza‐ram apenas quimioterapia, 16.2% apenas radioterapia, 33.8% ambos os tratamen‐tos e 5.9% não realizou qualquer tratamento. As participantes do GD não tinham ainda efectuado a cirurgia, nem nenhum  tratamento neoadjuvante ou adjuvante no momento em que participaram no estudo. 

 

Procedimento 

O GD  foi recrutado aquando o seu  internamento para realização de cirurgia da mama  (mastectomia ou cirurgia conservadora), no serviço de Ginecologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra  (HUC). As doentes  foram abordadas pelos investigadores  no  primeiro  dia  do  internamento,  tendo‐lhes  sido  explicados  os objectivos do estudo e entregue o protocolo de avaliação. Foram  incluídas neste grupo mulheres  recentemente diagnosticadas com cancro da mama  (no máximo há  três meses),  que  não  tivessem  ainda  realizado  quimioterapia  e  sem  história pessoal de cancro da mama. O GS foi igualmente recrutado no mesmo serviço des‐te hospital, e também no Movimento Vencer e Viver do núcleo regional do centro da Liga Portuguesa Contra o Cancro. As participantes do serviço de Ginecologia (n =  36)  encontravam‐se  internadas  para  realização  de  cirurgia  reconstrutiva  da mama, tendo a recolha dos dados seguido o procedimento anteriormente descri‐to. O grupo de participantes pertencentes à associação de voluntariado (n = 35) foi contactado pessoalmente pelos investigadores, tendo preenchido o protocolo em casa e, posteriormente, devolvido por correio. Para participarem no estudo, estas mulheres deveriam ter  já  finalizado qualquer tratamento adjuvante de quimiote‐rapia ou radioterapia, sendo a sua situação clínica estável e indicadora de remissão total da doença. O GC incluiu mulheres sem antecedentes oncológicos e foi recru‐tado por  conveniência.  Todas  as participantes deveriam  ter  idade  superior  a 18 anos e serem capazes de  ler e escrever Português. Todas preencheram o consen‐

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  255 

timento informado, tendo os dados sido recolhidos de forma a manter‐se sempre a confidencialidade das informações obtidas. 

 

Instrumentos 

Qualidade de Vida. Foi utilizado como medida de avaliação da QdV o WHOQOL‐‐Bref. Este instrumento apresenta valores aceitáveis de consistência interna, avalia‐da pelo alpha de Cronbach de  cada um dos quatro domínios.  Esta medida,  varia entre .66 (Domínio Relações Sociais) e .84 (Domínio Físico). Esta versão mostrou, tal como a versão longa, capacidade para discriminar indivíduos doentes de saudáveis. 

Sintomatologia depressiva e ansiosa. Para avaliar a presença de sintomatolo‐gia depressiva e ansiosa foi utilizada a versão portuguesa da Hospital Anxiety and Depression Scale – HADS (Pais‐Ribeiro et al., 2007; Zigmond e Snaith, 1983). Este instrumento é  constituído por 14 questões, que  se distribuem por dois  factores (depressão e ansiedade), e pretende resolver o problema da sobreposição de sin‐tomas decorrentes da doença física e da perturbação emocional, excluíndo todos aqueles que se relacionam simultaneamente com as duas situações. A versão por‐tuguesa apresenta valores adequados de consistência interna (α = .76 para a esca‐la de ansiedade e α = .81 para a escala de depressão). 

 

Análises estatísticas 

Todas as análises estatísticas foram realizadas com o pacote estatístico SPSS 15. Para a caracterização da amostra recorreu‐se à estatística descritiva (frequên‐cias relativas, médias, desvios‐padrão), utilizando‐se o teste do qui‐quadrado e a ANOVA  para  análise  das  diferenças  entre  as  características  sociodemográficas  e clínicas entre os grupos. Tendo em conta as diferenças significativas encontradas na  idade,  actividade profissional e  estado  civil, estas  variáveis  foram estatistica‐mente  controladas  nas  análises  subsequentes.  Para  a  análise  das  diferenças  de médias na QdV e adaptação emocional entre os três grupos analisados, efectuou‐‐se uma análise de covariância multivariada (MANCOVA). Quando o efeito multiva‐riado era significativo, eram conduzidas análises de covariância univariada (ANCO‐VA)  para  cada  variável  dependente,  prosseguindo‐se  com  o  teste  post‐hoc  de Bonferroni para detecção das diferenças entre os pares de médias. 

Resultados 

Adaptação emocional 

A MANCOVA revelou um efeito significativo do tipo de grupo [Pillai’s Trace = 0.68; F(4,388) = 3.43, p = .009, η² = .034] nos níveis de depressão e de ansiedade. As análises univariadas mostraram que na variável ansiedade existiam diferenças significativas entre os grupos [F(2,194) = 4.20, p = .016, η² = .041]. A partir dos tes‐tes post‐hoc  foi possível verificar que as mulheres com diagnóstico  recente  (M = 9.71, DP = 0.61) encontravam‐se significativamente mais ansiosas que as sobrevi‐ventes (M = 7.21, DP = 0.63), não se distinguindo, contudo, da população geral (M = 9.04, DP = 0.57). 

 

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256  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

Qualidade de vida 

Com o objectivo de explorar as diferenças entre os  três grupos nos quatro domínios  e na  faceta  geral da QdV  foi  efectuada outra MANCOVA,  controlando igualmente o efeito das covariáveis  referidas. Verificou‐se um efeito significativo do  tipo de grupo na QdV  [Pillai’s Trace = 0.198; F(10, 380) = 4.17, p =  .000, η² = .099], tendo as análises univariadas posteriormente evidenciado que as diferenças significativas se situavam na  faceta geral da QdV  [F(2,198) = 4.18, p =  .017, η² = .041] e no domínio relações sociais [F(2,198) = 4.64, p = .011, η² = .045]. Por meio dos  testes  post‐hoc  constatou‐se que  as mulheres  recentemente diagnosticadas apresentam uma pior QdV geral (M = 58.08, DP = 1.96) comparativamente com o GC  (M  =  65.46,  DP  =  1.90),  mas  pontuações  significativamente  superiores  no domínio relações sociais  (M = 77.90, DP = 2.03) relativamente ao GS  (M = 70.61, DP = 2.14) e GC (M = 69.93, DP = 1.96). 

 Quadro 1: Médias ajustadas (desvios‐padrão) e testes F univariados  

para as diferenças entre os grupos na adaptação emocional e na qualidade de vida 

 Diagnóstico M (DP) 

Sobreviventes M (DP) 

Controlo M (DP) 

F  η² 

HADS           

Depressão  5.06 (.50)  4.90 (.52)  5.44 (.47)  0.29  .003 

Ansiedade  9.71 (.61) a  7.21 (.63) b  9.04 (.57) ab  4.20*  .041 

WHOQOL‐bref           

Faceta geral  58.08 (1.96) a  64.71 (2.07) ab  65.46 (1.90) b 4.18*  .041 

Físico  65.94 (2.02)  66.80 (2.13)  71.59 (1.95)  2.19  .022 

Psicológico  70.52 (1.75)  73.81 (1.85)  69.15 (1.70)  1.67  .017 

Relações sociais 77.90 (2.03) a  70.61 (2.14) b  69.93 (1.96) b 4.64**  .045 

Ambiente  64.09 (1.79)  62.29 (1.89)  61.84 (1.74)  0.43  .004 a, b as médias que na mesma linha não partilham a mesma letra são significativamente diferen‐tes entre si, com p < .05 no teste post‐hoc de Bonferroni 

* p < .05; ** p < .01 

Síntese dos resultados e discussão 

Os  resultados  obtidos mostraram  que  a QdV  dos  três  grupos  é,  em  quase todos os domínios, muito semelhante. Relativamente ao GD e, tendo em linha de conta todas as mudanças que caracterizam esta fase (Barraclough, 1999; Veach et al., 2002),  seria, à partida, de esperar  resultados  inferiores nos diferentes domí‐nios,  tal como  tem  sido  reportado em outros estudos  (Bloom, Kang, Petersen, e Stewart, 2007; Ganz et al., 1996; Maguire, Lee, e Bevington, 1998). Já os resulta‐dos obtidos no GS vão ao encontro do que é comummente referido na literatura, ou seja, de que a QdV nesta  fase da doença é comparável à da população geral (Dorval, et al., 1998; Kornblith et al., 2007; Tomich e Helgeson, 2002) ou até mes‐mo superior (Ganz, Rowland, Desmond, Meyerowitz, e Wyatt, 1998).  

Não obstante o facto de as mulheres recentemente diagnosticadas apresen‐tarem pontuações  inferiores na  faceta geral de QdV, nos restantes domínios não se observou um padrão de resultados negativos. Não se distinguindo dos restantes grupos nos domínios físico, psicológico e ambiente, o GD mostrou resultados supe‐ 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  257 

riores no domínio  relações sociais, distinguindo‐se significativamente dos  restan‐tes dois grupos. Estes resultados reflectem, de certa forma, a importância que, na fase  de  diagnóstico,  as  relações  interpessoais  e  a  activação  das  redes  de  apoio social têm no confronto com a doença. Embora não seja possível, partindo somen‐te destes resultados, retirar conclusões sobre o papel das redes sociais de apoio na adaptação à doença, estes dados parecem ir ao encontro do que tem sido encon‐trado  em  outros  estudos,  nos  quais  se  tem  verificado  a  activação  das  redes  de suporte  social  e  enfatizado  o  papel,  na  adaptação  a  esta  etapa  da  doença,  do apoio social e da qualidade das relações estabelecidas com os outros (Helgeson e Cohen, 1996; Schroevers, Ranchor, e Sanderman, 2003).  

No que diz respeito aos resultados de adaptação emocional, verificou‐se que as participantes do GD estavam significativamente mais ansiosas que as sobrevi‐ventes, não se distinguindo do GC. Efectivamente, a fase de diagnóstico de cancro da mama pode ser conceptualizada como um período de crise, durante o qual a doente sente a sua vida, o seu futuro e o seu corpo ameaçados, podendo, assim, experienciar  níveis mais  elevados  de  depressão  e/ou  ansiedade. Deste modo,  a manifestação de níveis  superiores de  ansiedade, bem  como de outras  emoções negativas, é frequente e esperada neste período, podendo ser perspectivada como parte  de  um  processo  de  adaptação  normal  a  um  acontecimento  de  vida  tão adverso  como  o  diagnóstico  de  cancro  da mama  (Moreira,  Silva,  e  Canavarro, 2008). O  facto de as sobreviventes apresentarem valores médios de depressão e ansiedade semelhantes aos do GC e, no caso da ansiedade,  inferiores aos do GD, sublinha a adaptação positiva já evidenciada pelos resultados de QdV obtidos, indo assim  ao  encontro do que  se  tem  verificado, de uma  forma  geral, na  literatura (Kornblith, 1998; Kornblith e Ligibel, 2003).  

O presente trabalho aponta para a importância e necessidade de uma avalia‐ção cuidada da QdV e da adaptação emocional da doente com cancro da mama nas diferentes fases da doença. Esta avaliação permitirá a distinção entre respos‐tas  normativas  de  adaptação  e  respostas  caracterizadas  por  níveis  clinicamente significativos  de  psicossintomatologia  para  que,  deste  modo,  se  possa  intervir atempada e adequadamente nas situações apropriadas. A detecção e intervenção precoces poderão conduzir a melhorias substanciais na saúde mental da mulher, no seu ajustamento e, de uma forma global, na sua QdV. Efectivamente, conhecer a QdV destas doentes tem‐se transformado progressivamente numa necessidade fundamental, possibilitando aos vários serviços de saúde obter, para além de indi‐cadores biomédicos do  funcionamento  físico das doentes, a percepção que estas têm do  impacto da doença no seu bem‐estar  físico e emocional. Desta avaliação poderá resultar o planeamento de intervenções de cariz preventivo e o desenvol‐vimento de protocolos terapêuticos promotores da QdV e do bem‐estar das doen‐tes com cancro da mama. Simultaneamente, conhecer as suas necessidades pode‐rá promover uma prestação de cuidados mais adequada por parte dos diferentes profissionais de saúde, o que, por sua vez, se reflectirá numa maior satisfação por parte dos utentes com os serviços de saúde. 

 

 

 

 

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258  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

 

Qualidade de vida e tumor do aparelho locomotor 

Método 

Amostra e Procedimento 

A metodologia  usada  neste  estudo  exploratório,  transversal  e  comparativo 

envolveu o recrutamento de 81 doentes diagnosticados com sarcoma do aparelho 

locomotor, da Unidade de Tumores do Aparelho Locomotor, Serviço de Ortopedia 

B, dos HUC, que  se encontravam a  realizar  tratamento cirúrgico ou  tratamentos 

complementares  de  quimioterapia  e/ou  radioterapia. O  protocolo  de  avaliação, 

composto por uma ficha de dados sociodemográficos e clínicos e pelo WHOQOL‐

‐100,  foi administrado durante o período de  internamento no  caso dos doentes 

que  se encontravam hospitalizados a  receber quimioterapia ou que haviam  sido 

submetidos recentemente a cirurgia e no momento da entrada na Unidade para os 

doentes que estavam a ser submetidos a quimioterapia em regime de hospital de 

dia. Os doentes a receberem radioterapia em regime de ambulatório foram avalia‐

dos  imediatamente  antes  ou  após  a  sessão  de  radiação  e  outros  participantes 

foram recrutados nas consultas externas do Serviço de Ortopedia A dos HUC, tam‐

bém antes ou após a consulta médica.  

Foi ainda usado um grupo de controlo constituído por 81  indivíduos “saudá‐

veis” (sem doença) pertencentes à população geral, com características demográ‐

ficas  comparáveis  às  do  grupo  clínico.  Como  critério  de  inclusão,  estes  sujeitos 

deveriam  responder negativamente às  seguintes  três questões:  (1)  “tem alguma 

doença crónica?”, (2) “toma alguma medicação de forma regular?”, e (3) “consul‐

tou um médico ou profissional de saúde no último mês (excepção feitas às consul‐

tas de prevenção, e.g., revisões em ginecologia)?”.  

Todos  os  sujeitos,  aquando  o  recrutamento  para  o  estudo,  apresentavam 

idades superiores a 18 anos ou exerciam o papel social de adulto e todos eles assi‐

naram o respectivo consentimento informado de participação. 

No que se refere às características sociodemográficas da amostra, quer no gru‐

po clínico quer no grupo de controlo, a maioria dos sujeitos tinha uma idade inferior 

a 45 anos (60.5% e 53.1%, respectivamente), era do sexo masculino (55.6% nos dois 

grupos), pertencia ao nível socioeconómico baixo  (51.9% e 53.1%) e estava casada 

ou vivia em união de facto (56.8% e 63%). Também nos dois grupos a maior parte 

dos participantes apresentava habilitações literárias ao nível do Ensino Básico (59.3% 

no grupo de controlo e 60.5% no grupo clínico), sendo que no grupo de controlo a 

maioria tinha uma escolaridade ao nível do 2º e 3º Ciclos (30.9%) e no grupo clínico 

as habilitações  situavam‐se  ao nível do 1º Ciclo para  a  grande parte dos doentes 

(28.4%). O  teste  do  qui‐quadrado  de  Pearson  para  a  análise  da  comparabilidade 

entre os dois grupos em termos das variáveis sociodemográficas revelou valores que 

não foram estatisticamente significativos. Deste modo, grupo clínico e grupo de con‐

trolo apresentavam características sociodemográficas similares.  

A respeito das características clínicas do grupo de doentes, 48.1% dos sujeitos 

foram diagnosticados há mais de 1 ano e a maioria encontrava‐se a receber trata‐

mento em regime de internamento (53.1%). A respeito do tipo de tratamento rea‐

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  259 

lizado, a maior parte dos doentes foi submetida a cirurgia conjuntamente com tra‐

tamentos complementares, designadamente quimioterapia e/ou radioterapia neo‐

‐adjuvantes  e  adjuvantes  (40.7%).  De  entre  aqueles  que  realizaram  cirurgia,  a 

maior parte foi submetida a cirurgia de conservação/excisão (51.9%).  

 

Instrumentos 

No presente estudo foi usada a versão em português de Portugal do Instrumen‐to de Avaliação da QdV da OMS – WHOQOL‐100 (Canavarro et al., 2006), já descrita anteriormente. Os estudos psicométricos conduzidos numa amostra da população portuguesa  atestam  as  suas  boas  qualidades  de  consistência  interna  (valores  de alpha de Cronbach entre .84 e .94 para os domínios individualmente, .81 para o con‐junto dos seis domínios, .93 para o conjunto das facetas e .97 para as 100 perguntas) e de estabilidade temporal (coeficientes de correlação teste‐reteste entre .67 e .86). A validade de constructo foi demonstrada pelas correlações positivas e moderadas entre  os  diferentes  domínios  do  instrumento,  assim  como  pelas  intercorrelações também positivas e moderadas entre os 6 domínios e a  faceta geral, e a validade discriminante  pela  capacidade  do  instrumento  em  diferenciar  indivíduos  doentes daqueles que pertenciam à população normal. 

 

Análises estatísticas 

Para o  tratamento estatístico e análise dos dados  recorremos à versão 15.0 do SPSS. Foram determinadas estatísticas descritivas para a caracterização socio‐demográfica da amostra, utilizando‐se o teste do qui‐quadrado de Pearson para a análise da homogeneidade entre os grupos clínico e controlo. Para a comparação da QdV em ambos os grupos e para a análise da associação entre variáveis socio‐demográficas e clínicas e QdV do grupo de doentes, usámos o teste t de student e a análise da variância (ANOVA) seguida dos testes post‐hoc. Os resultados com um nível de significância inferior a .05 foram considerados como estatisticamente sig‐nificativos. 

Resultados 

Qualidade de Vida em Doentes com Tumor do Aparelho Locomotor 

A  avaliação  da  QdV  de  doentes  diagnosticados  com  sarcoma  do  aparelho locomotor partiu da comparação de médias entre o grupo de controlo e o grupo clínico nos diferentes domínios e faceta geral do WHOQOL‐100 (quadro 2). 

Observando  o  quadro  2,  verificamos  a  existência  de  diferenças  estatistica‐mente  significativas  entre  os  dois  grupos  no  domínio  físico  (t = 5.37;  p <.001)  e domínio nível de  independência  (t = 8.91; p <.001) da QdV, assim como na  faceta geral  (t = 4.44; p <.001). Nestes domínios do WHOQOL‐100  e na  faceta  geral da QdV, o grupo  clínico obtém pontuações médias  inferiores  comparativamente ao grupo de controlo, sugerindo que, de um modo geral, os doentes com tumor do aparelho locomotor apresentam uma pior percepção de QdV nas dimensões refe‐ridas, assim como uma pior QdV global, quando comparados com  indivíduos  

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260  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

 

Quadro 2: Comparação de médias nos diferentes domínios  e faceta geral do WHOQOL‐100 

Domínios + Faceta Geral 

Controlos  Doentes t  p 

Média (DP)  Média (DP) 

D1 (Físico)  63.12 (13.30)  49.37 (18.58)  5.37  .000 D2 (Psicológico)  68.67 (11.55)  64.68 (14.28)  1.93  .055 D3 (Nível de Independência)  77.97 (11.88)  52.35 (22.42)  8.91  .000 D4 (Relações Sociais)  69.03 (12.39)  68.40 (14.09)  0.30  .764 D5 (Ambiente)  61.73 (10.14)  59.67 (10.96)  1.23  .222 D6 (Espiritualidade)  64.66 (18.46)  68.36 (17,00)  ‐1.32  .188 

QOL GERAL  69.06 (13.62)  57.58 (18.73)  4.44  .000 

 “saudáveis”. Nos domínios psicológico, relações sociais e ambiente, embora o gru‐po clínico revele pontuações médias  inferiores, as diferenças encontradas não se mostraram significativas. Contudo, verificamos que no domínio psicológico o teste t  de  Student  revelou  um  resultado  limítrofe  (t = 1.93;  p = .055).  Para  o  domínio espiritualidade, encontramos pontuações médias inferiores no grupo de controlo, se bem que, mais uma vez, a diferença não se tenha revelado significativa.  

 Factores de Variabilidade da Qualidade de Vida  

Neste estudo procuramos ainda  identificar os possíveis  factores de variabili‐dade da QdV em doentes com tumor do aparelho locomotor. Para o efeito, fomos analisar a associação entre as variáveis sociodemográficas e clínicas e as diferentes dimensões da QdV e faceta geral avaliadas pelo WHOQOL‐100.  

Factores sociodemográficos 

Idade  

Em relação à idade, encontrámos no domínio nível de independência pontua‐ções médias  superiores  no  grupo  de  doentes  com menos  de  45  anos  (t = 3.63; p<.01), sendo que, no domínio espiritualidade, são estes doentes que apresentam uma pior percepção de QdV (t = ‐2.52; p <.05). 

 Género  

Para a variável género, verificamos a existência de diferenças estatisticamen‐te significativas no domínio espiritualidade do WHOQOL‐100. Designadamente, os doentes do sexo feminino obtiveram, em média, pontuações superiores compara‐tivamente aos doentes do sexo masculino (t = ‐2.12; p < .05). 

 Habilitações literárias  

No que se refere às habilitações literárias, não considerámos a categoria “sem escolaridade” na medida em que esta é  representada apenas por um sujeito. Os resultados da ANOVA revelaram um efeito significativo da variável escolaridade no domínio nível de independência da QdV [F(3,74) = 4.04; p < .05]. Ao realizarmos os testes Post‐Hoc constatámos que os doentes com estudos superiores e os doentes 

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Qualidade de Vida e Saúde: Aplicações do Whoqol  261 

com habilitações  literárias ao nível do 2º e 3º ciclo do Ensino Básico obtêm pon‐tuações médias  superiores  comparativamente  aos  doentes  com  habilitações  ao nível do 1º ciclo.  

 

Estado civil 

Em relação ao estado civil, a categoria “viúvo(a)” não foi igualmente conside‐rada uma vez que  também ela é  representada apenas por 1 sujeito. Verificamos um efeito significativo desta variável demográfica no domínio físico [F(2,77) = 3.90; p < .05] e nível de  independência  [F(2,75) = 3.90; p < .05] do WHOQOL‐100. Mais especificamente, em ambos os domínios da QdV, os testes Post‐Hoc revelaram que os doentes solteiros obtêm pontuações médias superiores comparativamente aos doentes casados ou em união de facto.  

Factores clínicos 

Tempo desde o diagnóstico 

Em relação ao tempo desde o diagnóstico, verificámos um efeito significativo no domínio espiritualidade da QdV [F(2,71) = 4.62; p <.05], evidenciando os testes Post‐Hoc que os doentes diagnosticados há menos de 6 meses obtêm, em média, pontuações  superiores  quando  comparados  com  os  doentes  que  receberam  o diagnóstico há mais de 1 ano.  

 

Regime de tratamento 

Relativamente ao regime de tratamento, o teste t de student revelou diferen‐ças  estatisticamente  significativas  no  domínio  nível  de  independência  (t = ‐3.80; p <.001) e na faceta geral de QdV (t = ‐2.93; p < .01). Designadamente, os doentes em  regime  de  internamento manifestaram  uma  pior  percepção  de  QdV  nessa dimensão do WHOQOL‐100, assim como uma pior QdV global. 

 

Tipo de tratamento 

Finalmente, para o tipo de tratamento, os resultados da ANOVA evidenciaram um efeito significativo desta variável clínica no domínio nível de independência da QdV [F(2,59) = 3.74; p < .05]. Os testes post‐hoc revelaram que os doentes subme‐tidos a quimioterapia obtêm pontuações médias inferiores comparativamente aos doentes  que  realizaram  cirurgia  e  tratamentos  complementares  (quimioterapia e/ou radioterapia) neo‐adjuvantes e adjuvantes. 

Síntese dos resultados e discussão 

O presente  trabalho evidencia a existência de diferenças significativas entre um grupo de doentes diagnosticados com sarcoma do aparelho  locomotor e um grupo de controlo composto por indivíduos “saudáveis”, pertencentes à população geral, numa medida de avaliação da QdV. Designadamente, os nossos resultados 

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262  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

revelam que os doentes com sarcomas apresentam pontuações médias inferiores nos domínios físico e nível de independência, assim como na faceta geral, compa‐rativamente aos controlos. Com efeito, na nossa amostra, os doentes com tumor do aparelho  locomotor percepcionam uma pior QdV nas dimensões  física e nível de independência, bem como uma pior QdV global. 

A QdV diminuída no domínio físico era esperada na medida em que os doen‐tes  do  nosso  grupo  clínico  apresentam  uma  doença  crónica  somática  que  tem associadas várias e importantes implicações físicas, já referidas noutro ponto deste trabalho. Também outros estudos  realizados em doentes de sarcomas,  inclusiva‐mente com tumores ósseos e dos tecidos moles das extremidades, evidenciam os significativos compromissos que ocorrem nas dimensões físicas (cf. Aksnes e Bru‐land, 2007; Aksnes, Hall,  Jebsen, Fossa, e Dahl, 2007; Punyko et al., 2007; Thijs‐sens, Hoekstra‐Weebers, van Ginkel, e Hoekstra, 2006). 

Atendendo à natureza específica deste tipo de cancro e aos compromissos no funcionamento físico e limitações funcionais que resultam da doença e do seu tra‐tamento, seria também de esperar um impacto negativo no domínio nível de inde‐pendência da QdV. Com efeito, tratando‐se de um tumor maligno primário que se desenvolve no osso  e nos  tecidos moles  conjuntivos  (incluindo  ligamentos,  ten‐dões,  músculos,  cartilagens,  bainhas  nervosas,  veias,  tecidos  sinoviais,  entre outros), que se  localiza no aparelho  locomotor e cujos tratamentos são habitual‐mente agressivos (podendo envolver cirurgias extensas, a amputação de membros e elevadas doses de quimioterapia e radioterapia), uma das áreas que se encontra mais comprometida é sem dúvida a mobilidade do doente. Por sua vez, são tam‐bém comuns as dificuldades em realizar as actividades da vida diária e a diminui‐ção da  capacidade de  trabalho, para além de que os doentes  com  sarcomas do aparelho  locomotor  encontram‐se  bastante  dependentes  de  medicação  e  de outros tratamentos, como aliás acontece em qualquer tipo de doença oncológica. Os nossos  resultados  são  coerentes  com os  estudos  conduzidos  em doentes de sarcomas,  os  quais  têm  revelado  problemas  ao  nível  do  funcionamento  físico  e compromissos  funcionais  caracterizados por  restrições na mobilidade,  limitações no desempenho das actividades diárias e menor capacidade para trabalhar ou para prosseguir os estudos (Marchese et al., 2007; Punyko et al., 2007; Thijssens et al., 2006). 

No domínio psicológico da QdV, embora os doentes com tumor do aparelho locomotor tenham apresentado uma pontuação média inferior comparativamente aos indivíduos “saudáveis”, a diferença encontrada não se revelou estatisticamen‐te  significativa,  tendo  o  teste  t  de  student  evidenciado  um  resultado  limítrofe (p = .06).  A  literatura  no  domínio  da  oncologia  tem  demonstrado  que  a  grande maioria  dos  doentes  oncológicos  manifesta  reacções  emocionais  esperadas, comuns e até mesmo adaptativas, as quais fazem parte de um processo normal de ajustamento  (Bishop, 1994; Fawy e  Fawzy, 1994; Holland, Greenberg, e Hughes, 2006). Deste modo, é consensual que a maior parte dos doentes com cancro acaba por se ajustar relativamente bem à sua doença, sendo que apenas uma minoria de 30%‐40%  desenvolve  problemas  psicológicos  clinicamente  significativos  (Bishop, 1994; Holland et al., 2006; Moorey e Greer, 2002). Assim sendo, tem sido sugerido que as  implicações psicológicas do cancro não devem ser sobrestimadas e que a doença  oncológica  pode  afectar menos  o  domínio  psicológico  da  QdV  do  que 

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geralmente se pensa (Andrykowski, Carpenter, e Munn, 2003; White, 2001). Estu‐dos realizados em doentes de sarcomas e em sobreviventes deste tipo de cancro, nos quais  foram usados  como  instrumentos para a avaliação da QdV o  SF‐36, o RAND‐36 e o EORTC QLQ‐C30, não encontraram igualmente um impacto significa‐tivo na dimensão psicológica  (Asknes  et al., 2007; Hoffmann, Gosheger, Gebert, Jurgens, e Winkelmann, 2006; Thijssens et al., 2006). 

Neste estudo, os doentes diagnosticados com sarcoma do aparelho  locomo‐tor percepcionaram uma pior QdV global quando comparados com os  indivíduos da população geral. Tendo em conta as consequências e limitações físicas, as difi‐culdades funcionais, vocacionais e de mobilidade, as implicações psicológicas e até mesmo as sequelas a nível social (e.g. dificuldades no funcionamento e actividade sexual) que  acompanham  a patologia  tumoral do  aparelho  locomotor  e os  seus tratamentos, era de esperar que a sua QdV global se encontrasse comprometida. 

Finalmente, no presente  trabalho encontrámos ainda uma associação entre algumas variáveis sociodemográficas e clínicas e a QdV dos doentes com este tipo de cancro. Nomeadamente, as variáveis demográficas  idade, género, habilitações literárias e estado civil, assim como as variáveis clínicas tempo desde o diagnósti‐co, regime de tratamento e tipo de tratamento, revelaram‐se factores de variabili‐dade da QdV no nosso grupo clínico. Diversos autores (Aksnes et al., 2007, Schrei‐ber et al., 2006; Thijssens et al., 2006) verificaram  igualmente uma  influência das variáveis demográficas e clínicas na QdV de doentes com sarcomas a  receberem tratamento, assim como em sobreviventes deste tipo de cancro, incluindo pacien‐tes com tumores ósseos e dos tecidos moles do aparelho locomotor. 

Em  género  de  conclusão,  é  importante  referir  que,  na  prática  clínica,  uma especial atenção deve ser colocada na avaliação do impacto não médico deste tipo específico de cancro, assim como se revela necessário desenvolver programas de reabilitação e  intervenção psicossocial multidisciplinares que  ajudem  a pessoa  a lidar com a doença e seus tratamentos e que promovam a sua QdV. Tais progra‐mas deverão ser adaptados ao contexto socioeconómico e clínico do paciente. 

Futuramente será importante realizar investigações que examinem os efeitos específicos das variáveis sociodemográficas e clínicas na QdV destes doentes onco‐lógicos (e.g. a  influência dos tratamentos actuais que os doentes se encontram a realizar) e que permitam replicar os resultados encontrados no presente estudo. 

Notas finais 

Os  instrumentos  de  avaliação  da  QdV  que  suportam  os  presentes  estudos foram desenvolvidos por um grupo de peritos da OMS,  tendo como base, por um lado, uma preocupação conceptual,  fundamentada numa assunção do conceito de QdV  como  subjectivo,  transcultural  e multidimensional,  e,  por  outro,  uma  forte preocupação metodológica,  da  qual  é  reflexo  o  rigoroso  protocolo  desenvolvido. Estes  contornos históricos  constituem‐se  como os pontos‐fortes dos  instrumentos da família WHOQOL e reflectem‐se, essencialmente, nos diferentes aspectos da sua concepção e utilização. Estes aspectos, associados à solidez psicométrica que os ins‐trumentos têm revelado na sua validação e utilização em diferentes culturas, é res‐ponsável pela grande divulgação que o WHOQOL tem tido, sendo dos instrumentos mais utilizados para avaliar QdV. 

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264  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

 

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268  Maria Cristina Canavarro, Marco Pereira, Helena Moreira, Tiago Paredes 

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REHABILITACIÓN COGNITIVA 

María Victoria Perea   La  rehabilitación de  las personas  con daño  cerebral  tiene  como objetivo  el 

restablecimiento del funcionamiento más óptimo posible a nivel cognitivo, psico‐lógico y social, para que  la persona pueda adquirir un desarrollo autónomo en su vida diaria. Para ello, es importante el trabajo conjunto entre el paciente y los pro‐fesionales, en coordinación con los familiares y recursos externos. 

Los objetivos  de  la  rehabilitación neuropsicológica han de  coincidir  con  los objetivos de cualquier otro programa de intervención en que participe el paciente, y cuando la plena reintegración familiar, social y laboral no sea posible, el proceso de  rehabilitación  se  centrará  en  facilitar  a  las  personas  afectadas  los  recursos necesarios que garanticen la mejor calidad de vida posible. 

El primer caso de rehabilitación neuropsicológica (RN) se debe a P. Broca en 1865, quien tras reconocer su imposibilidad para enseñar a leer a un paciente afá‐sico, utilizó diferentes estrategias de lectura de letras, sílabas, palabras, hasta con‐seguir  la  lectura.  Las  primeras  aproximaciones  a  la  RN  de  forma  sistemática  se hicieron en Alemania a principios del siglo XX (1ª guerra mundial). Walter Poppel‐reuter en 1914 creó un centro de rehabilitación en Colonia, para  la rehabilitación de pacientes con problemas visuales tras herida de bala, resaltó la importancia de la integración de equipos multidisciplinares en los procesos de RN, el apoyo social y el entrenamiento en actividades de la vida diaria. 

Kurt Goldstein en 1916 fundó el Instituto para la Investigación de los defectos del daño cerebral en Francfort. Puso de manifiesto la importancia de las pautas de ejecución en  los test y no tanto  los aspectos cuantitativos de  los mismos. Resaltó el interés en los procesos de restauración y sustitución de funciones. 

A.  R.  Luria  (1902‐1977)  planteó  una  aproximación  rigurosa  y  científica  a  la rehabilitación  del  daño  cerebral. Destaca  su modelo  comprensivo  del  funciona‐miento cerebral (Psicología Soviética); la aproximación individualizada de las técni‐cas en cada caso;  la utilización de  las vías  intactas;  la reorganización de  los Siste‐mas Funcionales Cerebrales después de una  lesión y  la necesidad de proveer de feedback a los pacientes para aportarles información constante de su ejecución en las tareas. 

Las  consecuencias  de  las  lesiones  cerebrales  no  permanecen  estables,  sino que sus efectos se modifican en el tiempo. El  impacto de  las enfermedades debe ser medido en función del deterioro, daño o  incapacidad (impairment), discapaci‐dad (disability) y de la minusvalía (handicap) que provocan, OMS (1980). Teniendo 

                                                              ALICERCES, Lisboa, Edições Colibri / Instituto Politécnico de Lisboa, 2010, pp. 269‐284. 

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270  María Victoria Perea 

en cuenta estos tres aspectos: el deterioro, considerado como  los síntomas y sig‐nos consecuencias del daño orgánico causado por la enfermedad; la discapacidad, referida a las limitaciones que aparecen para las actividades de la vida diaria (AVD) y la minusvalía, situación ambiental que limita a la persona discapacitada, deberán organizarse los programas de rehabilitación. 

El  primer  requisito  a  tener  en  cuenta  en  rehabilitación  cognitiva  es  hacer explícito el objetivo de la intervención. ¿Que queremos re‐entrenar, o restaurar en un sistema cognitivo dañado? ¿O que  intentamos entrenar en  los pacientes para compensar sus déficit? y ¿a través del uso de que estrategias alternativas? El sis‐tema  dañado  puede  restaurarse  o  por  lo  menos  mejorarse  por  los  ejercicios estructurados y  la práctica usando tareas que contengan elementos similares a  la habilidad objetivo. A veces el sistema dañado no puede ser restaurado por la prác‐tica exclusivamente y el objetivo de la RC debe ser proporcionar al sujeto las técni‐cas y/o los dispositivos que le permitirán el máximo de independencia en las acti‐vidades de la vida diaria. El acercamiento compensatorio ha ganado aceptación en los últimos años ya que  la restauración de funciones no se generaliza en muchos casos. La restauración de funciones tiene algún éxito con las habilidades cognitivas básicas  como  la  atención  y  la  velocidad  de  procesamiento  (Benedict  y  Harris, 1989). Ambos acercamientos presuponen algún grado de conciencia del déficit y consecuente la necesidad de usar las técnicas de aprendizaje. 

Para poder comprender los diferentes modelos de rehabilitación cognitiva, es necesario comprender el concepto de Sistema Funcional Cerebral (SFC). Un SFC es un sistema dinámicamente estable de vínculos o relaciones entre diferentes áreas corticales  y  subcorticales,  cada  una  de  las  cuales  aporta  un  determinado  factor cognitivo, para el establecimiento de una determinada función psicológica. 

Los SFC son el resultado de  la adquisición ontogenética, únicamente factible por  la vía del aprendizaje (espontáneo y sistemático; práctico y  lingüístico) que el individuo realiza en el curso de su vida en condiciones sociales de existencia (fami‐lia, trabajo, estudios, etc.). Hay una especificidad de la información que está defi‐nida  anatómicamente  y que  es  el  resultado del proceso  evolutivo del  SNC  (vías ópticas, acústicas, termoalgesia, etc.). A  lo  largo de  la vida se organizan trayecto‐rias específicas de circulación de la información, propias de cada sujeto. 

Por otra parte los componentes de una única función compleja, se represen‐tan  en  lugares  distintos  del  sistema  nervioso,  interconectados,  constituyendo colectivamente una red integrada para esa función. Las áreas corticales individua‐les contienen el sustrato neural de componentes de varias funciones complejas y pueden pertenecer a diferentes redes que, en parte, se solapan. De esta manera las  lesiones  confinadas  a  una  única  región  cortical  es  probable  que  provoquen defectos múltiples. 

Los déficit neuropsicológicos restan autonomía al  individuo y  le discapacitan para llevar a cabo una serie de actividades que antes le resultaban rutinarias y que son  necesarias  o  incluso  fundamentales  para  desempeñar  algunos  de  los  roles ejercidos previamente a  la  lesión  (marido, madre, estudiante, profesional) y que forman parte de su identidad y su proyecto de vida. 

Esta disminución o pérdida de autonomía e  independencia del paciente, así como  los  posibles  cambios  conductuales  y  emocionales  experimentados  tras  el daño  cerebral  adquirido  tienen  consecuencias  importantes  en  la  estructuración 

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Rehabilitación Cognitiva  271 

familiar. Tanto los roles como la situación económica y social de la familia pueden verse alterados y es muy  importante que  los cuidadores busquen apoyo y ayuda para poder, a su vez, ayudar mejor. 

La modalidad y severidad de los déficits cognitivos, así como la estimación de un  pronóstico  funcional,  dependen  esencialmente  de  la  etiología,  naturaleza, extensión y localización de la lesión. En el desarrollo de la rehabilitación cognitiva influye entre otros factores la forma de inicio, la instauración de la lesión. Hay que valorar si la lesión tuvo un inicio brusco, agudo o fue el resultado de una patología lentamente progresiva. Generalmente una  lesión  lenta producirá menos daños y más recuperación que una lesión rápida, con la misma extensión. No solo hay que valorar  la  localización de  la  lesión sino también como y cuando esa  lesión se pro‐duce. En los programas de rehabilitación hay que tener en cuenta que los trastor‐nos severos y de  larga duración de una función compleja  individual, suponen por lo general la implicación simultánea de varios componentes de la red relevante. 

Otros indicadores importantes para la estimación del pronóstico son la dura‐ción del período de coma y la duración de la amnesia post‐traumática. Sin embar‐go, factores personales como la edad, el nivel educativo o la personalidad premór‐bida,  así  como  el  grado  de  desorientación  (personal,  espacial  y  temporal),  la presencia o ausencia de conciencia del déficit y alteraciones conductuales severas tras el DCA, son importantes en la determinación del nivel y ritmo de recuperación de las alteraciones neuropsicológicas. 

Además del tamaño de la lesión hay muchas variables que afectan a la tasa de recuperación. Esas variables son la edad, el sexo, la mano dominante, la inteligen‐cia y  la personalidad. En  términos generales, se estima que  la  recuperación des‐pués de una lesión cerebral sea mayor si el paciente es una mujer joven, inteligen‐te, optimista y zurda. 

En cuanto a la edad se ha verificado, en diversos estudios que la recuperación de soldados con  lesiones cefálicas fue mayor en el grupo que tenía entre 17 y 20 años que en el de 21 a 25 años, y ésta  fue mayor que en el grupo mayor de 26 años. Que  los pacientes mayores de 40 años a quienes se extirpó  la zona del  len‐guaje en  la región temporal posterior del hemisferio  izquierdo tuvieron una recu‐peración menor que  los pacientes más  jóvenes. Sin embargo,  la edad no siempre es un factor significativo en la recuperación, porque contribuye al establecimiento de muchos tipos de lesiones cerebrales; los accidentes vasculares y otras enferme‐dades cerebrales son más comunes en las personas mayores, y tienen más proba‐bilidades de sufrir un detrimento de las funciones motora y cognitiva por los pro‐cesos normales  inherentes al envejecimiento. De ahí que  la  recuperación podría ser enmascarada por la senectud. 

La mano dominante y el sexo podrían influir en la evolución de la lesión cere‐bral. Varias teorías afirman que el cerebro femenino y el masculino difieren tanto en el aspecto anatómico como en el de la organización funcional y los estudios por imágenes revelan menor lateralización funcional en las mujeres. Considerando los datos de  los estudios por  imágenes,  las mujeres revelan mayor activación funcio‐nal bilateral  y, por  tanto,  también deberían mostrar una  recuperación  funcional más importante. 

De  la misma manera,  los  individuos con mano  izquierda dominante parecen tener una  función menos  lateraliza da que  los diestros,  lo  cual vuelve a  resultar 

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ventajoso en el reclutamiento de regiones  indemnes después de una  lesión cere‐bral. Por lo general, se considera que los individuos más inteligentes se recuperan mejor que los menos inteligentes. No hay una razón obvia que explique esta dife‐rencia, aunque  las propiedades neurológicas que permiten que  la  inteligencia sea superior podrían ofrecer una ventaja después de la lesión. Por ejemplo, las perso‐nas más  inteligentes podrían  tener más plasticidad  cerebral  y, en  consecuencia, responderían mejor a  la adaptación  tras  la  lesión aunque esta posibilidad no es fácil de comprobar. Como alternativa,  los  individuos más  inteligentes podrían ser capaces  de  desarrollar más  estrategias  para  resolver  problemas  que  los menos inteligentes. Una  complicación  es  que,  aunque  la  recuperación  definitiva  de  un individuo muy  inteligente  pueda  ser  óptima  en  relación  con  la  recuperación  de otras personas, la deficiencia residual podría ser la misma porque el individuo muy inteligente requiere un nivel de funcionamiento superior. De hecho, los pacientes con inteligencia superior suelen quejarse más por los efectos negativos de las defi‐ciencias residuales sobre la calidad de vida. 

El papel de  la personalidad en  la  recuperación es difícil de evaluar, pero  se piensa, por lo general, que los individuos optimistas, extravertidos y tranquilos tie‐nen mejor pronóstico después de una lesión cerebral. Una razón de esto podría ser que los más optimistas respecto de su recuperación tienen más probabilidades de adaptarse a  los programas de rehabilitación. Desafortunadamente,  la  lesión cere‐bral puede ejercer una influencia negativa sobre la personalidad. Por ejemplo, los pacientes  pueden  volverse  depresivos  y,  como  consecuencia,  su  recuperación podría ser escasa o, cuando menos, lenta. 

Los organismos vivos poseen una habilidad para modificar su conducta a través de mecanismos  complejos  que  constituyen  la  plasticidad  cerebral.  La  plasticidad cerebral  implica un ámplio rango de respuestas que el organismo pone en marcha para adaptarse a los requerimientos de su entorno (caminar, comer o resolver pro‐blemas). Son respuestas individuales, diferentes en cada sujeto y que cada organis‐mo  desarrolla  para  responder  a  las  demandas  externas  e  internas.  Constituye  la suma de recursos que el organismo utiliza para cumplir sus objetivos. La plasticidad cerebral esta sujeta a posibles variaciones que pueden ocurrir en el desarrollo indivi‐dual. Incluye los cambios estructurales y funcionales que se producen en el proceso de desarrollo o de cambio cuya finalidad es la modificación del funcionamiento con‐ductual con el fin de adaptarse a las demandas de un contexto particular. 

El sistema nervioso no es un sistema estático, sino que cambia con el tiempo. Esta capacidad de cambiar, que es una de  las características más  importantes del sistema, puede observarse  incluso en  los organismos más simples. En el caso de lesiones  cerebrales,  los  factores  tróficos  endógenos  que  se  producen  en  zonas próximas a la lesión permiten la supervivencia de las neuronas y son la base de la llamada recuperación espontánea. 

Para que un animal aprenda un tipo de asociaciones, el sistema nervioso debe sufrir alguna  forma de cambio que permita codificar esta asociación. Por  lo  tanto, como regla general, podemos afirmar que los cambios en el comportamiento, que se describen (de acuerdo con  las circunstancias) como aprendizaje, memoria, hábitos, maduración, recuperación y otros, se asocian con  los cambios correspondientes en el sistema nervioso. Para comprender procesos como la memoria y la adquisición de hábitos es necesario entender la naturaleza de la plasticidad cerebral. 

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La plasticidad cerebral puede evaluarse a muchos niveles, desde  los cambios observables en  la conducta hasta mapas cerebrales, organización sináptica, orga‐nización fisiológica, estructura molecular y mitosis. A continuación consideraremos cada uno de estos niveles. 

El aprendizaje y el  recuerdo de  la  información nueva  se vinculan  con algún tipo de cambio en las células del sistema nervioso. Se considera que estos cambios constituyen el registro neurológico de  la  información aprendida. Deducción de  la plasticidad a partir de los cambios en la conducta. 

Todos  los  sistemas  sensitivos desarrollan muchos mapas que  son  las  repre‐sentaciones topográficas del mundo externo. Los homúnculos presentes en la cor‐teza motora y  somatosensitiva  representan ejemplos de estas  representaciones. Para determinar el tamaño y la organización de los mapas motores se puede esti‐mular  la  corteza directamente,  recurrir a  la estimulación magnética para  inducir movimientos  o  mediante  la  utilización  de  imágenes  funcionales  para  elaborar mapas de las áreas activadas cuando el individuo realiza diferentes actividades. Los resultados de  los estudios en ratas, monos y seres humanos demostraron que el entrenamiento motor específico podía aumentar el  tamaño de  los diversos com‐ponentes de los mapas motores. Es la plasticidad en los mapas corticales. 

El estudio de la organización sináptica se llevó a cabo con tinciones similares a la de Golgi para mostrar  las arborizaciones dendríticas y con microscopio electró‐nico para examinar el número y el tamaño de las sinapsis. 

Jacobs y col. examinaron la estructura dendrítica de las neuronas en diferentes regiones corticales que intervenían en diversas tareas computarizadas. Estos autores trataron de determinar si existía una relación entre la complejidad de la ramificación dendrítica en un área determinada y  la naturaleza de  la tarea realizada en ella. Por ejemplo, cuando compararon  la estructura de  las neuronas presentes en  la  repre‐sentación somatosensitiva del tronco con la estructura de las neuronas pertenecien‐tes a la representación somatosensitiva de los dedos hallaron mayor complejidad en el segundo grupo de células. Así mismo, cuando compararon las células del área de los dedos con  las de  la circunvolución supramarginal, que es una región del  lóbulo parietal  asociada  con procesos  cognitivos  superiores  (o  sea,  con  el pensamiento), hallaron que las neuronas situadas en éste eran más complejas. 

Estos autores postularon que  las experiencias vitales predominantes, como  la profesión de un  individuo, debían  alterar  la estructura de  los  árboles dendríticos. Cuando compararon  las células de  las áreas torácica y digital y de  la circunvolución supramarginal encontraron diferencias individuales llamativas. En todas las especies de animales evaluadas, se observaron cambios dependientes de la experiencia. 

Plasticidad en la organización fisiológica. La hipótesis general evaluada en los estudios  fisiológicos  de  plasticidad  cerebral  es  que  el  sistema  nervioso  puede modificarse por estimulación eléctrica. Dos ejemplos  importantes de estos  cam‐bios son la potenciación a largo plazo y el encendido (kindling). Bliss y Lomo (1973) informaron que una estimulación eléctrica breve de alta frecuencia aplicada en el hipocampo producía un  cambio duradero en  la eficacia de  las  sinapsis activadas por  la  estimulación  y denominaron  a  este  fenómeno potenciación  a  largo plazo (PLP) o intensificación a largo plazo (ILP). 

Muchos autores adoptaron esa modificación sináptica como modelo general de la manera en que se podría desarrollar el aprendizaje simple (o, incluso, formas más 

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complejas de aprendizaje), aunque otros  juzgan esta hipótesis con gran escepticis‐mo.  De  todos modos,  la  PLP  sigue  siendo  un  ejemplo  importante  de  plasticidad sináptica;  considerado  ahora  como  característica  de  las  células  de  la  neocorteza cerebral y del hipocampo, y se demostró una correspondencia con diversos cambios moleculares, así como con modificaciones en la morfología de las dendritas. 

El encendido se refiere a la aparición de actividad convulsiva persistente des‐pués de  la exposición repetida a un estímulo  inicialmente subconvulsivante. Este fenómeno fue descrito por primera vez por Graham Goddard, quien describió de manera casual que la estimulación de la amígdala, aunque al comienzo causaba un cambio conductual leve, llevaba luego al desencadenamiento convulsiones epilép‐ticas. 

Al igual que  la PLP, se considera que el encendido activa mecanismos simila‐res a los activados, por lo menos, en algunas clases de aprendizaje. Este mecanis‐mo se puede demostrar en la mayoría de las estructuras prosencefálicas y, al igual que  la PLP, se asocia con una modificación de  la organización sináptica y con una serie de procesos moleculares, como la producción de factores de crecimiento. 

Plasticidad en  la estructura molecular.  Los estudios que emplean mapas de Golgi o técnicas fisiológicas para demostrar los cambios cerebrales en respuesta a la experiencia son fenomenológicos, es decir describen y clasifican hechos pero no los explican. 

Si se desea conocer la razón por la cual el cerebro cambia o la manera en que esto se produce, es preciso evaluar los mecanismos que permiten estas modifica‐ciones sinápticas. En el análisis final se debe considerar la forma en que se produ‐cen las diversas proteínas, y esto, en definitiva, significa determinar los efectos de la experiencia sobre  los genes. El desarrollo de técnicas nuevas para  la detección de genes, como el sistema gene‐chip, permitió a los investigadores tomar fragmen‐tos de tejido cerebral y usarlos para analizar los genes afectados por una experien‐cia en particular. 

Si ciertos genes están presentes en el tejido, reaccionarán con una sustancia en  uno  de  los  sitios  del  chip. Esta  técnica  aporta  gran  cantidad  de  información acerca de los genes que se modifican cuando, por ejemplo, se coloca a un animal en  un  ambiente  complejo  en  lugar  de  un  ambiente  privado  de  estímulos;  sin embargo, todavía no se ha descubierto el significado de estos cambios en reacción con la función cerebral. 

Comprender  la forma en  la cual  los genes son alterados por  las experiencias es un paso importante para determinar la manera en que puede reforzarse (o ate‐nuarse) el desarrollo de  cambios plásticos en el  cerebro, en especial,  los que  se producen después de una lesión. 

A fines de  la década de 1990 se descubrió no sólo que el cerebro adulto era capaz  de  formar  neuronas  y  glía  nuevas,  sino  que  además  la  generación  de  las células se veía afectada por la experiencia. Tanto el bulbo olfatorio como el hipo‐campo de  los mamíferos (incluso el ser humano)  incorporan neuronas nuevas en su circuito. Es conocido el debate acerca de si  las neuronas nuevas se generaban en la corteza cerebral normal no lesionada. En la corteza lesionada sí se producen pequeñas cantidades de neuronas nuevas, y esto hizo pensar que la lesión cortical podría tratarse por medio del  in cremento de  la producción de células corticales. Sin  embargo,  si  la  corteza  cerebral  indemne  puede  producir  neuronas  nuevas, 

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éstas se  forman en un número verdaderamente escaso. Rakic observó que, aun‐que los tumores compuestos por astrocitos (astrocitomas), por ejemplo, se desar‐rollan  con  frecuencia  en  la  edad  adulta,  apenas  aparecen  tumores  neuronales (neuromas),  hecho  que  indica  la  rareza  de  la  producción  de  neuronas  nuevas durante esta etapa de la vida. Sugiere que si se comprendiera la razón por la cual las neuronas no se generan con mayor  frecuencia, podría determinarse  la  forma de detener el crecimiento tumoral de otros tipos de células corporales, entre  los que se hallan los astrocitos. 

Se considera que las neuronas nuevas que se producen en el bulbo olfatorio y en el hipocampo cumplen cierta función. Es probable que las neuronas nuevas sus‐tituyan a otras viejas; sin embargo,  la supervivencia de estas neuronas nuevas no es un hecho seguro y puede verse afectada por muchos tipos de experiencias. 

En especial destaca que cuando  los animales activan el hipocampo para resol‐ver algún problema neuropsicológico, la supervivencia de las células granulares nue‐vas aumenta. Cabe especular que la supervivencia celular se relaciona con el desar‐rollo  eficaz  de  una  tarea.  Si  esto  es  así  implica  que  el  aprendizaje  podría  verse influenciado si  la proliferación o  la supervivencia celular son alteradas. También se hay señalar que el estrés produce una disminución de la proliferación y de la super‐vivencia de  las células presentes en el hipocampo, hecho  interesante a  la  luz de  la evidencia de que el estrés reduce la eficiencia mental y, en especial, puede deterio‐rar algunas formas de memoria. Tal vez sea incluso más importante mencionar que el estrés crónico se relaciona con depresión y que los antidepresivos que estimulan la producción de serotonina  (o sea,  los  inhibidores selectivos de  la  recaptación de serotonina o  ISRS, como  la fluoxetina) también  incrementan  la producción de neu‐ronas en el hipocampo. Estas observaciones sugieren que la actividad terapéutica de los antidepresivos puede relacionarse con su capacidad de estimular la neurogénesis que, a su tiempo es susceptible de modificar la actividad mental. 

La neurogénesis es una forma selectiva de plasticidad que podría ser  impor‐tante  en  las  conductas  relacionadas  con  el  bulbo  olfatorio  y  con  el  hipocampo, aunque la función exacta de la producción y la supervivencia de las células hasta el momento es, en gran medida, un tema especulativo. 

Es conocido que es posible cierta recuperación de la función después de una lesión  del  sistema  nervioso,  pero  todavía  no  se  conoce  bien  la  naturaleza  y  los mecanismos relacionados con estos procesos. Un problema importante es la falta de una definición de que se entiende por recuperación. Este término podría signi‐ficar un retorno completo de la función, una mejoría observable de la misma o, en realidad, cualquier grado de progreso. 

Otro  problema  es  la  falta  de  conocimientos  relacionados  con  los  cambios plásticos que podrían producirse en el  sistema nervioso después de  la  lesión. La naturaleza de estos cambios influirá sobre la manera de conceptualizar los proce‐sos relacionados con la recuperación. 

Muchos  autores  sostienen que,  en  realidad,  lo que  se produce después de una  lesión cerebral es que  los pacientes no recuperan  las conductas o  las capaci‐dades perdidas,  sino que desarrollan una nueva  forma de  funcionamiento  com‐pensador.  Pero  no  todos  los  progresos  logrados  después  de  la  lesión  cerebral representan una compensación, parte de estos adelantos son el resultado de una recuperación funcional. 

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Está claro que en el cerebro del  lactante es posible cierta recuperación  fun‐cional, y el mejor ejemplo de ello es  la  recuperación parcial de  las  funciones del lenguaje después de  la hemisferectomía  izquierda. Pero,  incluso esta  “recupera‐ción” no es completa e  implica un mecanismo de compensación en el sentido de que el hemisferio derecho toma el control del habla, función que se desarrolla en detrimento de algunas de las tareas habituales de ese hemisferio. 

Algunos autores consideran que  la verdadera recuperación solo es posible si se reemplaza y se estimula al cerebro  lesionado para que funcione como el cere‐bro original, pero esta hipótesis no parece representar una opción para el cerebro adulto en un futuro cercano. En consecuencia, un objetivo para quienes estudian la  rehabilitación  es  encontrar maneras  de  estimular  el  desarrollo  de  respuestas plásticas en el cerebro para  lograr  la mejor compensación posible. Pocas veces  la recuperación de la función es súbita. El examen de los estadios de la recuperación funcional y de  las conductas asociadas, con frecuencia revela  la reaparición  lenta de  las  funciones  recuperadas en  forma  similar a  la  secuencia de  los estadios de desarrollo observados en los lactantes. 

La lesión produce alteraciones funcionales que son la consecuencia de la des‐trucción del tejido cerebral. Solo en algunos casos  la  lesión conlleva efectos  irre‐versibles, en la mayoría de los casos la actividad del sistema puede ser rehabilitada y se produce la reorganización funcional. Si el daño sobre los sistemas neuronales es  irreversible,  la rehabilitación solo es posible creando un nuevo sistema funcio‐nal sobre la base de las funciones que se mantienen indemnes. Para ello se utilizan varias estrategias,  fundamentalmente se basan en dos mecanismos:  intrasistémi‐cos e intrasistémicos. Los intrasistémicos se basan en el entrenamiento del sujeto para  realizar  las  tareas utilizando niveles más básicos o más elevados dentro del mismo  sistema  funcional.  La  intersistémica  se  basa  en  el  entrenamiento  del paciente para que utilice otros sistemas cerebrales. 

Se potencia  la capacidad del sujeto para reorganizar  las funciones cognitivas para minimizar o salvar una determinada incapacidad. En ocasiones es una recupe‐ración espontánea y ocurre sin la participación explícita del paciente, pero en otros casos es necesaria la participación de expertos en rehabilitación cognitiva para que se produzca la recuperación funcional. 

En otros casos es  la construcción de un método nuevo de  respuesta el que reemplaza el daño producido por la lesión cerebral. Se habla entonces de Sustitu‐ción. Por medio de  la  intervención  se busca el aprendizaje de un nuevo  tipo de respuestas, búsqueda de nuevas formas o vías para resolver un problema, sobre la base de  las funciones que se mantienen  indemnes. La reorganización no es siem‐pre beneficiosa  a  veces  las  conexiones  nerviosas que  se  reorganizan no  son  las adecuadas. La Plasticidad en estos casos no se produce de forma pertinente. 

De la misma manera que se puede investigar la plasticidad en el cerebro normal en sus diferentes niveles, es posible evaluarla en el cerebro lesionado. Hasta ahora, la mayor parte de la investigación se ha centrado en los cambios observados mediante estudios, diagnósticos por imágenes funcionales o de estimulación cerebral. 

Los cambios  funcionales después de un accidente cerebro vascular constitu‐yen una excelente ventana hacia  la plasticidad cerebral. Si  los pacientes pueden recuperarse después del accidente a pesar de haber perdido áreas significativas de la corteza cerebral, podemos  llegar a  la conclusión de que se ha producido algún tipo de cambio en las partes remanentes del cerebro. 

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Las técnicas diagnósticas por imágenes funcionales, en especial la tomografía por  emisión  de  positrones  (PET),  la  resonancia magnética  funcional  (RMf)  y  la estimulación magnética transcraneal (EMT), se usan muchas veces durante sema‐nas y meses posteriores al accidente vascular para documentar  los cambios en  la activación cerebral que podrían correlacionarse con los progresos funcionales. 

De las investigaciones realizadas se derivan las siguientes conclusiones: 

1. Si  la  corteza  sensitivomotora  sobrevive al accidente vascular es probable que se produzca cierto grado de mejoría funcional con el paso del tiempo, incluso aunque se desarrolle hemiparesia inmediatamente después del accidente. 

2. La activación de las áreas motoras durante los movimientos de las extremi‐dades  recluta áreas  corticales a  lo  largo del margen de  la  lesión. Además, áreas grandes de la corteza motora son a menudo activadas por movimientos concretos. Por ejemplo, los movimientos de las manos o de las extremidades activan con fre‐cuencia  regiones  de  la  cara,  posiblemente,  porque  fibras  piramidales  indemnes abandonan esta área. 

3.  Los movimientos  de  los  pacientes  activan  zonas  corticales mucho más grandes, en especial de las áreas parietal y premotora, en comparación con movi‐mientos  similares  en  individuos  del  grupo  control.  Estas  regiones  activadas  se extienden tanto a las funciones del lenguaje como a las motoras. 

4. La reorganización no se limita a un hemisferio, sino que se producen cam‐bios  similares bilateralmente. Por  lo  tanto,  aunque, en  condiciones normales,  la ejecución de una tarea motora sólo activa  la corteza contralateral, el cerebro del paciente que ha sufrido un ictus muestra un aumento notable de la activación bila‐teral. La activación incrementada en el hemisferio contralateral es más acentuada en pacientes con  trastornos del  lenguaje, en quienes  las  regiones opuestas a  las áreas del lenguaje (denominadas áreas homólogas) muestran activación. 

5. La capacidad de reorganización disminuye con el aumento de la extensión del ictus y con el avance de la edad. Es probable que la relación con el tamaño de la  lesión  se deba a que  la presencia de  regiones dañadas parcialmente, como el área de Wernicke, constituye un factor de buen pronóstico de la mejora funcional. Debe recordarse que, en  la afasia,  la gravedad de  la deficiencia  inicial se correla‐ciona  con  la  evolución  posterior.  Probablemente,  la magnitud  del  déficit  inicial esté relacionada con la extensión de la lesión. 

6. Hay una variabilidad considerable entre los pacientes con ictus. Esta varia‐bilidad se relaciona con las diferencias en el grado de activación antes del acciden‐te  y  es,  sobre  todo, manifiesta  en  lo  que  refiere  al  lenguaje  Los  pacientes  con mayor activación bilateral de  las  funciones  relacionadas con el  lenguaje después del ictus podrían ser los que ya presentaban cierta activación bilateral antes de la lesión como ocurre en los zurdos. 

Programas de rehabilitación neuropsicológica 

En los años 80 se incrementa el desarrollo de los programas multidisciplinares de rehabilitación neuropsicológica. 

Los programas de rehabilitación son procedimientos, que consisten en tera‐pias  conductuales y psicológicas diversas. Parecería  lógico que  los pacientes  con lesiones cerebrales deban someterse a algún tipo de programa de rehabilitación. 

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Sin embargo, los neurocientíficos tienen tan información con respecto a la eficacia de las diferentes tipos de Programas de Rehabilitación, del momento óptimo para iniciarlos o, incluso, de la duración óptima del tratamiento. Un programa de reha‐bilitación debe partir de modelos teóricos de referencia. Es necesario adoptar una perspectiva interdisciplinar y no olvidar a la persona y su contexto. 

Hay que establecer un orden de prioridades en el proceso de rehabilitación, llevando a cabo una planificación de las funciones cognitivas y problemas emocio‐nales sobre  los que se va a trabajar y el orden de dicha  intervención. Ej: trabajar primero problemas atencionales o el control de pautas de comportamiento (agre‐sividad).  Hay  que  comenzar  la  intervención  de  forma  precoz.  Los  avances más espectaculares se producen en  los dos primeros meses y  luego  los procesos tien‐den a estabilizarse. Pero años después de la lesión el paciente puede adquirir nue‐vas pautas de conducta más adaptativos. 

Hay que emplear el tiempo suficiente de tratamiento. A veces  fracasa  la RN por un número insuficiente de sesiones para establecer nuevas estrategias, conso‐lidar las habilidades entrenadas y generalizar su empleo en situaciones cotidianas. 

La rehabilitación debe estar centrada en la discapacidad. Es preciso ayudar a mejorar  la calidad de vida, autocuidado, independencia,  integración social y  labo‐ral mas que alcanzar mejor puntuación en los test o programas. A veces es necesa‐ria  la RN en su entorno natural donde se manifiestan  los problemas con  toda su intensidad. 

Por otra parte las habilidades conservadas deben ser la base del tratamiento y cuando no es posible restituir o reparar la función dañada habrá que plantearse la sustitución o la compensación de la misma. 

Es  imprescindible  considerar  las  variables  emocionales  ya  que  pueden  ser consecuencia del  impacto psicológico que  la  lesión provoca en el paciente  (reac‐ción catastrófica ante el déficit), o pueden deberse a la consecuencia directa de la lesión de estructuras cerebrales y de las alteraciones neuroquímicas asociadas. 

Los problemas más  importantes a  los que se enfrentan muchos pacientes con lesiones cerebrales no son estrictamente sensitivos o motores, sino que correspon‐den a trastornos cognitivos más complejos, como diferentes modalidades de altera‐ciones de la memoria o de desorientación espacial. En estos casos es necesaria algu‐na  forma  de  rehabilitación  cognitiva.  Sin  embargo,  un  aspecto más  amplio  es  la dificultad de adaptarse a las deficiencias cognitivas residuales fuera de la clínica. De hecho, un paciente con desorientación espacial podría beneficiarse en cierto modo con la práctica de diversas tareas con lápiz y papel, pero finalmente, deberá enfren‐tarse a los problemas del mundo real para encontrar el camino a su casa. Los siste‐mas de sustitución pueden ser eficaces en algunos pacientes. Por ejemplo, es posible registrar información visual con una cámara de vídeo y transformarla en un mensaje táctil  como  sustituto parcial de  la  visión. Pueden utilizarse diversos dispositivos o aparatos, en especial ordenadores, para realizar tareas específicas. 

Muchos  programas  de  rehabilitación  usan  la  tecnología  informática,  por  lo que  conviene  revisar  algunos  aspectos  sobre  rehabilitación  virtual.  La  historia temprana del reentrenamiento cognitivo por ordenador es paralela a  la prolifera‐ción de video‐juegos y de computadoras personales. Los clínicos en Nueva York, Indianapolis, Richmond,  Fountain Valley, California  y Palo Alto,  estuvieron  entre los primeros en usar el hasta entonces  revolucionario  “computador de  casa”  (el primer termino genérico para describir un pequeño PC de escritorio, especialmen‐

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te  aquéllos  construidos  con  un  procesador  8086  y  sistema  operativo  de  disco Microsoft o con plataforma MS‐DOS) para el tratamiento del daño cerebral trau‐mático  (DCT). Después,  con  la  introducción del Macintosh PC en  la mitad de  los años ochenta, Chute, Conn, DiPasquale y Hoag (1988) demostraron las ventajas de la  velocidad  de  esta máquina  y  la  interfase  gráfica del usuario  en  el diseño del software de rehabilitación. 

El Software para el re‐entrenamiento cognitivo basado en el ordenador tiene su origen en los juegos de video comerciales, en el software educativo, y especial‐mente en los programas escritos de rehabilitación cognoscitiva (Lynch, 1986a). 

Lynch  (1982)  fue el primero en describir el uso de  los video‐juegos como el Atari en la rehabilitación cognitiva como en el escenario del enfermo ambulatorio. La versión original de  juegos como Pong, Breakout, Pac‐man y  los Space  Invaders estuvieron entre los programas seleccionados para el uso del re‐entrenamiento de pacientes  que  exhibieron  problemas  de  atención,  concentración,  seguimiento  o rastreo  visual  y de procesamiento  simultáneo.  Estos  juegos  exigían que  el  juga‐dor/paciente manipulara un dispositivo de entrada para controlar el movimiento, posiciones y velocidad de los elementos en la pantalla. Todos los juegos requerían de un tiempo de reacción rápido, puesta en marcha de tareas de atención sosteni‐da, de atención dividida, empleo fe estrategias de rastreo visual, capacidad de fijar un blanco y anticipar los efectos de las respuestas. Estos requisitos son a menudo las mismas habilidades comprometidas en el daño cerebral traumático, por lo cual, parecía apropiado utilizar  los video‐juegos  como alternativa al  re‐entrenamiento cognitivo tradicional. 

La  investigación  inicial de  la efectividad de  los video‐juegos era anecdótica o usaba muestras pequeñas con un diseño pre‐post simple. A pesar del optimismo temprano  y  los  éxitos,  los  problemas  de  generalización  y  validez  ecológica  de entrenamiento  con  video‐juegos nunca  fueron  satisfactorios.  Las  investigaciones demostrarón que la mejoría en los puntajes de los juegos y frecuentemente en los puntajes de las evaluaciones pre y post neurocognitivas, no se transfería a conduc‐tas adaptativas o a actividades de la vida diaria. Permanecía un fracaso significati‐vo en estos aspectos.  

El software escrito especialmente para la rehabilitación cognitiva por ordena‐dor fue desarrollado por varios clínicos independientemente a finales de la década 1970s e inicios de la década de 1980s. (Bracy, 1983; Sbordone, 1986). El contenido de estos esfuerzos  iniciales estuvo principalmente dirigido a  re‐entrenar  la aten‐ción,  la memoria  (verbal  y  grafica–visual),  y  las  habilidades  perceptivo‐motoras. Debido a que el hardware y el  lenguaje de programación mejoraron y  los escrito‐res de software para  la rehabilitación cognitiva ganaron más experiencia,  los pro‐gramas se volvieron más detallados, desafiantes, flexibles, y pertinentes a los pro‐blemas  del  mundo  real  de  los  pacientes  dañados  cognitivamente  (McKittrick, Friedman, Rearman y Yesavage, 1997). 

Los diferentes estudios sobre la utilización de la realidad virtual en la rehabili‐tación cognitiva sugieren su uso en esta área. Sin embargo, según otros autores, la efectividad de  la  rehabilitación  cognitiva por ordenador, generalmente no  se ha mostrado  superior al  re‐entrenamiento  tradicional  (sin  computador)  (Middleton, Lambert y Seggar, 1991). Se recomiendan también para la valoración de funciones cognitivas en personas con daños cerebrales adquiridos. En esta área,  los  instru‐mentos de valoración usando  realidad virtual son efectivos y  tienen buenas pro‐

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piedades psicométricas, un ejemplo de ello es el ARCANA, que usa el Wisconsin Card Sorting Test  (WCST) como modelo de valoración neuropsicologica  (Broeren, Bjorkdahl,  Pascher  y  Rydmark,  2002;  Piron,  Cenni,  Tonin  y  Dam,  2001;  Zhang, Abreu, Mases, Scheibel, Christiansen, Huddleston et al., 2001).  

Se ha sugerido que  las computadoras pueden ser dispositivos que sirvan de prótesis cognitivas a los pacientes y que puedan no sólo usarse para presentar un contenido terapéutico a los pacientes dañados cognitivamente, sino también para compensar  directamente  sus  habilidades  (Kirsch,  Levine,  Fallon‐Krueger  y  Jaros, 1987; Cole, 1999). La definición general de prótesis cognitiva es cualquier sistema basado en una computadora que ha sido diseñado para que un individuo concreto logre una o más tareas designadas, relacionadas con las actividades de la vida dia‐ria, incluyendo el trabajo. 

Para minimizar  las alteraciones neuropsicológicas y dotar al paciente con  los recursos necesarios para un funcionamiento óptimo en la vida cotidiana, la rehabi‐litación neuropsicológica se centra en: 

– El entrenamiento de  los déficits cognitivos para minimizar  la discapacidad que estos producen. 

– La modificación de las alteraciones conductuales. 

– La readaptación de los roles familiares a las capacidades del sujeto. 

– La reinserción laboral u ocupacional. 

 

A diferencia de los modelos clásicos de rehabilitación, centrados en la estimula‐ción  de  las  distintas  funciones  de manera  aislada,  actualmente  se  aboga  por  un modelo holístico de rehabilitación neuropsicológica, en el que se integran aspectos de diferentes modelos  teóricos en un enfoque  transdisciplinar, con una actuación que requiere un alto grado de coordinación de los diferentes profesionales implicados. 

Los programas de rehabilitación neuropsicológica se sirven de las habilidades y  capacidades  preservadas,  así  como  de  estrategias  externas  de  compensación (libro de memoria, alarmas de aviso) para apoyar y fortalecer el proceso de restau‐ración de las funciones que se han visto afectadas tras el daño cerebral. 

Si bien el programa de tratamiento debe ser individualizado y enfocado a las necesidades  específicas  de  la  persona  afectada,  no  debemos  descartar  sesiones grupales de rehabilitación para trabajar habilidades tales como la comunicación o la  asertividad  y poner  en práctica  las  estrategias  trabajadas de  forma  individual (atención dividida, manejo de impulsividad, solución de problemas). 

Así mismo, el tratamiento no sólo deberá llevarse a cabo en un contexto clíni‐co, sino que requiere de la participación de todas las personas que tienen contacto con  el  paciente  para  favorecer  la  generalización  del  aprendizaje  a  una  amplia variedad de contextos y situaciones. 

Finalmente,  los  objetivos  de  tratamiento  se  formulan  de  forma  concreta  y operativa. Están enfocados al desempeño de actividades reales de cada paciente (contextualizados), son  revisados de  forma periódica y adaptados a  las necesida‐des cambiantes del individuo para fomentar la mejor recuperación 

De  forma  resumida en  cuanto a  la  rehabilitación neuropsicológica,  conside‐ramos  las diferentes orientaciones que asumen diferentes principios en  relación con los mecanismos neurales que subyacen a los cambios cognitivos. 

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1 – Restauración de la función dañada. 

2 – Compensación de la función perdida. 

3 – Optimización de las funciones residuales. 

 

1  –  La  restauración  de  la  función  dañada  parte  de  los  procesos  cognitivos deteriorados  que  pueden  ser  restaurados  a  través  de  la  estimulación.  Tareas  y ejercicios de modo repetitivo para conseguir de nuevo la activación de los circuitos cerebrales y recuperar las funciones cognitivas afectadas por la lesión. 

2 – La compensación de  la función perdida parte de procesos cognitivos que apenas  pueden  ser  recuperados.  Se  utilizan  estrategias  alternativas  o  ayudas externas que reducen o eliminan la necesidad de requisitos cognitivos. Es muy útil en daño  cerebral extenso o deterioro  cognitivo  importante. Ej.: Sistemas de voz asistida por ordenador. Agendas, alarmas. 

3 – La optimización de  las funciones residuales parte de  la teoria de que  los procesos  cognitivos  no  suelen  eliminarse  por  completo  tras  la  lesión,  sino  que quedan reducidos en su eficiencia, por lo que conviene desarrollar otras estructu‐ras o circuitos cerebrales no afectados para garantizar la función (sustitución intra‐sistémica  e  intersistémica).  El  objetivo  de  la  rehabilitación  es mejorar  el  rendi‐miento de  la función alterada a través de  la utilización de otros SFC conservados (sustitución intersistémica) y no tanto mediante ayudas o dispositivos externos. 

 

Un tema muy debatido por todos  los autores que trabajan en rehabilitación cognitiva es la capacidad del sujeto para generalizar lo aprendido. Es decir el nivel de  competencia  que  el  sujeto  adquiere  para  aplicar  los  principios  y  habilidades aprendidas  en  las  sesiones  de  rehabilitación  a  situaciones  de  la  vida  diaria.  La generalización puede referirse a otros sujetos, es decir a la aplicación de los princi‐pios aprendidos en el entrenamiento de habilidades  sociales; a otros  comporta‐mientos,  aplicando  una  estrategia  aprendida  para  remediar  un  problema,  para resolver  otro,  o  generalizarse  a  otros  ambientes,  implicando  la  capacidad  para desarrollar una estrategia ensayada en un contexto, en otros distintos. 

Podemos describir tres niveles de generalización de la intervención neuropsi‐cológica.  En  el  nivel  1,  la  rehabilitación  debe  demostrar  que  se mantienen  los resultados del entrenamiento de una sesión a otra empleando  los mismos mate‐riales  y  situaciones  (la  observación  y  el  registro  de  la  conducta  constituyen  los mejores procedimientos para valorar  los  logros obtenidos). En el nivel 2,  los pro‐gresos conseguidos se han de ver reflejados en tareas similares a las que han sido adiestradas, pero que  requieren  la puesta en marcha de  las mismas habilidades. Esto demostraría una transferencia cercana o próxima de los efectos de la rehabili‐tación  (aplicar pruebas de evaluación neuropsicológica). En el nivel 3,  la  transfe‐rencia de  las habilidades adquiridas en  las  sesiones de entrenamiento al  funcio‐namiento en las actividades diarias (aplicar pruebas de evaluación funcional). 

Los  programas  de  rehabilitación  deben  incluir  en  el  diseño  de  tratamiento tareas encaminadas a favorecer la generalización. Deben identificar los reforzado‐res en el ambiente natural y emplear en el  tratamiento materiales y  situaciones similares  a  las  utilizadas  en  el  contexto  real.  Deben  hacer  uso  de  un  número importante de ejemplos durante el entrenamiento de la habilidad y acudir a medi‐das de seguimiento que valoren los tres niveles de generalización (evaluación neu‐ropsicológica y funcional). 

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Sin embargo hemos de considerar que es poco habitual que  la generalización de una habilidad se dé de forma espontánea, por lo que es necesario planificar des‐de las fases iniciales del tratamiento actividades que favorezcan la generalización. Es imprescindible valorar el apoyo de otros profesionales o familiares y cuidadores, que puedan implementar en el entorno natural, las habilidades aprendidas. 

Una habilidad nueva o reaprendida rara vez se mantiene en el ambiente natu‐ral si no es suficientemente reforzada, por ello es necesario identificar los posibles reforzadores en el contexto habitual, para que la nueva destreza se consolide. 

El éxito real de la rehabilitación, se consigue solo cuando es posible generali‐zar lo entrenado a situaciones similares de la vida diaria. En la mayoría de los casos no es posible  llevar a cabo el entrenamiento en el entorno natural, o bien no es deseable, porque pueden aparecer situaciones de mayor complejidad o poco pre‐decibles  que  sobrepasan  los  recursos  cognitivos  actuales  del  paciente.  Aún  en estos  casos deben utilizarse materiales y  situaciones  semejantes a  las de  la vida cotidiana. El fracaso de la generalización del aprendizaje puede estar en el desco‐nocimiento de  la  importancia de  los procesos que se entrenan; en el desconoci‐miento de las situaciones en que pueden emplearse las habilidades adquiridas; en un número insuficiente de sesiones o en la falta de práctica. 

Las  técnicas de  rehabilitación se aplican preferentemente mediante diseños de tratamiento de caso único de forma individual. Esta forma de actuación permite analizar de forma detallada los errores y conocer las estrategias utilizadas y las no utilizadas. 

La intervención en grupo es muy útil en personas con daño cerebral, cuando el objetivo del tratamiento se centra en conductas sociales. La propia situación de gru‐po es una  situación  real, que  favorece el aprendizaje y  facilita  la  reproducción de situaciones sociales ficticias role‐playing. El profesional puede y debe evaluar el ren‐dimiento  en  ambientes  grupales,  semejantes  a  contextos  sociales  o  laborales.  La presencia de otras personas con dificultades similares ayuda a los pacientes a adqui‐rir una perspectiva mas real sobre sus problemas (conciencia de enfermedad). 

La observación de otros compañeros puede motivar y estimular las expectati‐vas de mejora “refuerzo social”. Las personas con dificultades pueden estar más predispuestas a imitar el comportamiento de otros compañeros con menos dificul‐tades, que el del terapeuta que dirige el grupo. La intervención en grupo permite trabajar la necesidad emocional de entender y compartir problemas con otras per‐sonas que atraviesan circunstancias similares. Por otra parte el  trabajo en grupo permite un importante ahorro de tiempo, atención simultanea a varios pacientes, y es más económico. 

Sin embargo la intervención en grupo plantea algunos inconvenientes. Así hay que  tener especial precaución en pacientes  con  trastornos atencionales, pues  la dinámica de  grupo  favorece  las distracciones.  Los pacientes  con  conductas pro‐blemáticas, escasa tolerancia a  la frustración,  irritabilidad o deshinibición pueden no beneficiarse del trabajo en grupo. Además estos pacientes pueden perturbar o interferir en el  rendimiento de otros compañeros. Es necesario valorar  la  idonei‐dad de  la persona con daño cerebral para participar en programas de  rehabilita‐ción en grupo. 

 

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