Consumidoras e heroinas genero na telenovela

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Revista Estudos Feministas Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] ISSN (Versión impresa): 0104-026X BRASIL 2007 Heloisa Buarque de Almeida CONSUMIDORAS E HEROÍNAS: GÊNERO NA TELENOVELA Revista Estudos Feministas, janeiro-abril, año/vol. 15, número 001 Universidade Federal de Santa Catarina Rio de Janeiro, Brasil pp. 177-192 Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal Universidad Autónoma del Estado de México http://redalyc.uaemex.mx

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Revista Estudos Feministas Universidade Federal de Santa [email protected] ISSN (Versión impresa): 0104-026XBRASIL

2007 Heloisa Buarque de Almeida

CONSUMIDORAS E HEROÍNAS: GÊNERO NA TELENOVELA Revista Estudos Feministas, janeiro-abril, año/vol. 15, número 001

Universidade Federal de Santa Catarina Rio de Janeiro, Brasil

pp. 177-192

Red de Revistas Científicas de América Latina y el Caribe, España y Portugal

Universidad Autónoma del Estado de México

http://redalyc.uaemex.mx

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RRRRResumoesumoesumoesumoesumo: Este trabalho explora as correlações entre telenovela, consumo e gênero, buscandocompreender como a mídia está articulada à promoção de bens e da cultura do consumo, ecomo gênero é um eixo importante em tal articulação. A pesquisa foi feita a partir de um estudoetnográfico de recepção de novelas, e se desdobra na análise da relação entre televisão epublicidade, discutindo a feminilização do consumo e a construção de certa imagem femininahegemônica nas novelas e nos anúncios comerciais.PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: televisão; gênero; consumo; telenovelas.

Copyright 2007 by RevistaEstudos Feministas.

Heloisa Buarque de AlmeidaNúcleo de Estudos de Gênero – Pagu, UNICAMP

Este trabalho explora as correlações entretelenovela, consumo e gênero, buscando compreendercomo a mídia está articulada com a promoção de bens ede uma cultura do consumo, e como gênero é um eixoque atravessa esses campos. Trata-se de um artigo quebusca articular referências teóricas a uma pesquisaempírica etnográfica e propõe uma abordagem queanalisa a mídia, tanto em sua estruturação como na esferade seu consumo, com atenção à questão do gênero.1

A pesquisa iniciou-se com uma etnografia derecepção da novela O rei do gado (exibida pela RedeGlobo entre junho de 1996 e fevereiro de 1997) feita juntoa homens e mulheres de camadas médias e populares nacidade de Montes Claros, MG. A novela era vista nocontexto domiciliar, mas a convivência com essas pessoascom quem acompanhei a novela permitiu uma etnografiada vida cotidiana de algumas delas. Nesse trabalho decampo, tentei entender como as pessoas interagiam noseu cotidiano com a novela, e como interpretavam ospersonagens e a narrativa. Pude perceber o quanto anovela é um bem cultural de grande penetração em todasas classes sociais, que trata essencialmente de histórias deamor e família, das relações de intimidade (mesmo que

1 Este texto foi inicialmentepreparado para o I SimpósioBrasileiro de Gênero & Mídia, emCuritiba, 2005. Agradeço àsorganizadoras do evento e aos/às pareceristas anônimos/as daRevista Estudos Feministas. Oartigo retoma alguns pontos deminha tese de doutorado,defendida em 2001 na UNICAMP,sob orientação de Guita GrinDebert, tendo contado com bolsaFapesp (ALMEIDA, 2001).

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2 Sobre essas formas deinterpretação das audiências, cf.Stuart HALL, 2003, e DavidMORLEY, 1989. A perspectiva deentender como se dá interaçãoentre mídias e audiências geroutambém muitos trabalhos queusam a metodologia etnográfica,como em Patrick MURPHY eMarwan KRAIDY, 2003, e tambémno estudo antropológico damídia exemplificado na coletâ-nea de Faye GINSBURG, Lila ABU-LUGHOD e Brian LARKIN, 2002.Mantive, assim, o termo “etnogra-fia de recepção”, embora recep-ção seja um termo problemático,como Stuart Hall debate em seuartigo sobre as formas de leiturasda mídia (“Codificação/Decodi-ficação”), para demonstrar aimportância do trabalho etnográ-fico no estudo do consumo debens culturais, na intera-ção dasaudiências com tais bens e ascategorias culturais que a mídiapromove em seus conteúdos.3 DE LAURETIS, 1994.4 Como discutiu Eunice DURHAM,1977, mas buscando ir alémdessa constatação para refletirde quais referências sócio-culturais se alimentam osprodutores de TV – é importantelembrar qual o lugar social dessesintermediários culturais queproduzem a TV e aheterogeneidade dos lugaressociais e referências culturais dasaudiências, que por vezesassistem à mesma novela. Nesseponto são bastante inspiradoresos trabalhos de RaymondWILLIAMS, 1977, 1992 e 2003;Stuart HALL, 2003; e DavidMORLEY, 1989 e 1993.5 Christine GLEDHILL, 1988.

possa discutir, no mesmo texto, questões de ordem política,como o movimento dos sem-terra e a questão agrária).

Em termos de perspectiva teórica dos estudos sobremídia, parti do pressuposto de que as audiências re-interpretavam o que poderia ser definido como “asmensagens” e liam a novela de acordo com seu contextosocial, cultural, seu momento na vida familiar e afetiva. Há,assim, tanto leituras ‘dominantes’ e mais comuns – muitasvezes de acordo com mensagens que pareciam ser asmais recorrentes na indústria cultural, ou mesmo construídasde modo repetitivo pelas convenções narrativas das novelas–, como variações e formas de interpretar diferentes, quedemonstram como a heterogeneidade dos espectadoresem termos de suas posições sociais afeta e permite leiturasdistintas de um mesmo texto.2

Porém, ainda que buscasse entender como se dá oprocesso de leitura e interação cotidiana, pude ver comohá de modo concomitante a essas releituras formas depoder bastante visíveis na TV comercial. Um dos aspectosdo poder da mídia relaciona-se ao seu papel econômico,cultural e comercial de promover o consumo, o desejo porbens, e de ser parte central da sociedade e da cultura deconsumo. Foi a partir da percepção dessa temática napesquisa empírica que me voltei ao consumo e construíuma segunda etapa de pesquisa de campo, em São Paulo,buscando entender a relação entre o campo publicitárioe as novelas da Globo. Cabe lembrar que as novelasconstituem o tipo de produto mais rentável e lucrativo daemissora, atraindo grandes anunciantes do país desde adécada de 1970.

Por outro lado, meu pressuposto em termos da teoriade gênero é que a mídia é uma esfera social poderosa naconstrução de sentidos simbólicos – ou seja, a mídia é umatecnologia do gênero, nos termos de Teresa de Lauretis.3

Os bens culturais industrializados e distribuídos pela mídiaeletrônica têm a capacidade de produzir certasconstruções simbólicas, apropriando-se de elementos quejá circulam na cultura4 que produz tais bens, mas osreforçam e ‘normalizam’, constituindo um discursohegemônico sobre o gênero. Os produtores dessa indústriapesquisam e buscam elementos culturais que imaginamser aceitos ou até consensuais no seu público, e se utilizamdessas imagens que consideram parte da cultura dospúblicos-alvo que visam atingir, mas ao fazer issoselecionam e reforçam determinados tipos de construção.Não obstante, há no próprio texto da novela e no processoda sua produção uma negociação de sentidos:5 uma buscade sentidos mais ou menos bem aceitos, mas que podepermitir outros sentidos trazidos pela forma complexa de

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produção industrializada, inclusive em termos de tendênciaspor vezes dissonantes entre os autores, diretores, atores,produtores, anunciantes e outros agentes que atuam naprodução.6 A mídia não é capaz de ‘captar’ todas astendências sociais; ela fala de um lugar social determinado,que tem relação com o contexto social e cultural dos seusprodutores – estes certamente estão imersos em seus habituse disposições, para usar os termos de Pierre Bourdieu. Poroutro lado, esses profissionais necessitam, ao mesmo tempo,agradar a públicos variados7 e, pressionados pelos índicesdo Ibope, por vezes privilegiam o que consideram ser“consensual” para camadas médias e populares, quecompõem a maior faixa da audiência.

A pesquisa empírica que se encontra por trás dessasreflexões foi feita em várias etapas, em lugares distintos(Montes Claros e São Paulo). Houve 1) a etnografia compessoas de camadas médias e populares na interaçãocotidiana com a novela O rei do gado; 2) uma observaçãoe análise do conteúdo dessa narrativa, de como sãovendidos e inseridos espaços publicitários e como o textopromove uma cultura do consumo; e 3) uma análise daestruturação comercial da TV, com atenção à interaçãocom a publicidade (e com os saberes do marketing e dapesquisa de mercado). Gênero atravessa e articula todasessas esferas.

TV como TV como TV como TV como TV como veículoveículoveículoveículoveículo: a interação com a: a interação com a: a interação com a: a interação com a: a interação com apublicidadepublicidadepublicidadepublicidadepublicidade

É... alucinadamente muito mais para a televisão [quevai a verba dos anunciantes]. [...] Porque a característicado país é assim, se você quer construir um padrão decomportamento tem que ser a televisão, não tem outrojeito. [...] eu acho que em primeiríssimo lugar peloalcance mesmo, tecnicamente. E em segundo lugarporque é uma linguagem mais fácil de ser absorvida,é a linguagem do brasileiro, assim de uma formadefinitiva, consegue falar mais com ele (profissional depesquisa de mercado, itálicos meus).

A televisão é vista pelo meio profissional de marketinge publicidade como parte integrante do desenvolvimentodo país, transformando a população em mercadoconsumidor ativo,8 criando uma disposição ao consumo –nos termos dos próprios profissionais do meio publicitárioou televisivo. Pode-se afirmar que se trata de constituir osespectadores em consumidores, e é para a complexidadedesse processo e para o papel ativo da novela naconstituição de seus receptores em consumidores quequero chamar a atenção.

6 Como analisado por JulieD’ACCI, 1994.

7 Como bem nota Ien ANG, 1991,no livro em que se refere a comoa televisão comercial estásempre “desesperadamentebuscando a audiência”.

8 Uso em itálico termos êmicos, nocaso deste trecho do artigo,termos usados por profissionais dapublicidade, pesquisa de mer-cado, marketing, administraçãode empresas e das emissoras.

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As relações entre TV aberta e promoção do consumosão bastante evidentes no modelo de emissora comercialque predomina no Brasil. Os canais de TV aberta sãoempresas privadas (exceto no caso das emissoras públicas)e o que vendem é a audiência, medida pelos índices daspesquisas de audiência, atualmente centralizadas noIbope. Nessa estruturação comercial, no contato entre asemissoras e seus clientes – que são os anunciantes,intermediados pelas agências de publicidade –, a TV é vistacomo um veículo para a publicidade. Por esse motivo, paraatrair seus clientes, as emissoras abertas buscam atingir umpúblico amplo, com altos índices de audiência, e aomesmo tempo um público com bom potencial de consumo.

No meio publicitário, considera-se que a televisão éa maior mídia do Brasil e capaz de vender uma amplagama de produtos. Ao se espalhar pelo país em quasetoda sua extensão e pela sua penetração nos laresbrasileiros, torna-se a mídia mais usada pela publicidade.A revista Mercado Global – produzida pelo setor decomercialização da Rede Globo, distribuída gratuitamentepara anunciantes e publicitários desde 1974 – associa aurbanização do país à capacidade ‘educativa’ datelevisão, que pode preparar “um novo mercado detrabalho e consumo, favorecendo o abandono dos velhoshábitos e a integração cultural”.9 Educar aqui significaensinar a consumir, ou seja, mudar os hábitos cotidianosde modo que o consumidor incorpore uma série deprodutos industrializados.10 No meio publicitário é sensocomum que a televisão facilita a criação de “novoscomportamentos”, ou seja, novas atitudes que incorporammais bens de consumo no cotidiano.11

A visão da audiência enquanto mercadoconsumidor determina uma série de categorias culturaisque estão em jogo no saber publicitário e de marketing eque são usadas na produção da TV. O caso da Rede Globoé paradigmático como empresa que funciona bem nessesistema, pois consegue atingir amplos setores dessemercado consumidor nacional que tem foco nos grandescentros urbanos, nos maiores mercados do Sudeste, Sul enordeste, e nas camadas de maior potencial de consumo,as chamadas classes A, B e C.

Note-se que a forma de classificar e subdividir aaudiência é um fator muito relevante na constituição dessemercado. Ele é dividido em cinco classes, numacategorização baseada em alguns critérios que levam emconta a posse de bens de consumo, o número de banheirosdo domicílio, a existência ou não de empregada domésticamensalista e o nível educacional do chefe do domicílio.Os profissionais do meio e as revistas especializadas tratam

9 Citado em Maria Rita KEHL, 1986,p. 194, fazendo referência a essarevista em 1977.

10 Outros autores destacam odesenvolvimento da TV brasileiracomo a formação de umaindústria cultural nacional, nosentido mais estrito do termo, cf.Renato ORTIZ, 1988; e em muitoscasos criticando a perversidadedesse sistema que exclui parte dapopulação e impõe um estilo devida e valores consumistas, cf.Sergio MICELI, 2005; Luiz MILANESI,1978; Sérgio CAPARELLI, 1982; eKEHL, 1986.11 O processo civilizatório dapublicidade na mudança dospadrões de vida cotidianos deforma que os consumidoresincorporem em suas vidas cadavez mais bens de consumo foianalisado por Stuart EWEN, 1976.

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esse mercado com foco evidente nas camadas de maiorpoder aquisitivo. A revista Mercado Global demonstra essaênfase, porém, a alia a uma capacidade genérica e demassa da TV que a faz o veículo que mais atinge apopulação urbana do país – ou seja, definida em muitosartigos como a mídia de massa por excelência do Brasil.12

Outras categorias são centrais nesse desenho domercado consumidor, como a dona-de-casa, ou seja, apessoa do domicílio vista como responsável pelas compraspara toda a família e para o espaço doméstico. Nesse meio,reforçam-se algumas associações tradicionais, comoaquela que vê o consumo como algo da esfera dofeminino, por um lado e, por outro, que considera o próprioespaço doméstico e a família como feminilizados e deresponsabilidade das mulheres. Embora os profissionaisentrevistados tenham insistido em dizer que dona-de-casanos índices do Ibope e da pesquisa de mercado não temsexo, mas constitui apenas aquela pessoa que faz ascompras, eles também revelam que a mulher é vista comoa compradora de uma ampla gama de produtos, comoprodutos de limpeza, alimentícios, eletrodomésticos,vestuário, de higiene e uso pessoal. Adicionam, inclusive,que mesmo produtos antes masculinos são cada vez maiscomprados por pessoas do sexo feminino – como serviçosbancários e automóveis. Assim, tanto pelo uso do termodona-de-casa, como pela percepção de que as mulherestornam-se cada vez mais compradoras, o consumo éfeminilizado.13

A discussão sobre o termo dona-de-casa, tãoreiterado nas pesquisas de mercado e que demarca umdos perfis de destaque nos relatórios sobre a audiência deTV do Ibope, leva os publicitários entrevistados a refletir sobrea oposição entre dois papéis femininos. O primeiro,considerado tradicional (e de certa forma visto comoanterior e mais atrasado), daquela pessoa que cuida dacasa e da família, e o segundo, denominado comomoderno, referindo-se a mulheres que também assumemoutras tarefas, como o trabalho fora de casa. No imagináriodesses profissionais e na pesquisa de mercado sereconhece que as donas de casa de maior potencial deconsumo dividem tais funções de compra (e evidentementede cuidado com a casa, roupas, alimentação) com aempregada doméstica. Ademais, o uso de termos comodona-de-casa e chefe do domicílio para definir papéis noâmbito doméstico pela pesquisa de mercado e deaudiência revela inevitavelmente alguns pressupostos degênero, e ainda promove na pesquisa de mercado umadefinição a priori de papéis.

12 A despeito do fato de que, atérecentemente, a mídia realmentemais popular e de maiorpenetração era o rádio, e não aTV. É apenas no último censo doIBGE que a TV passa a cobrir maisdomicílios do que o rádio.

13 Na bibliografia sobre afeminilização do consumo, cf.EWEN, 1976; Kenon BREAZEALE,1994; Andrew WERNICK, 1991; eColin CAMPBELL, 2001.

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A novela atinge dois aspectos fundamentais paraatrair o anunciante: popularidade, gerada pela grandepenetração; e qualificação dessa audiência, ou seja,público consumidor com maior potencial de consumo.Soma-se a tais características o fato de que atrai audiênciasfemininas que são consideradas as grandes compradorasde uma ampla gama de produtos. Por esses motivos, atraidiversos tipos de anunciante, particularmente grandesempresas, quando se considera o alto preço de inserçõesno horário nobre.14

Ademais, a Globo tem também uma produçãoconsiderada no meio publicitário como de boa qualidaderelativa no meio da TV aberta nacional e, portanto, osanunciantes consideram eficiente associar suas marcas aessa qualidade e a bens culturais que valorizam. Programascomo as novelas, Jornal Nacional ou Fantástico nãoapenas são assistidos pela maioria da população, ou seja,têm uma penetração eficiente e alta, mas também sãoencarados por anunciantes e publicitários como tendo umaimagem positiva e uma qualidade que agregam valor aoproduto ali anunciado.

Como mencionei, a novela é pensada pelo meioindustrial e publicitário como um produto feminino. Alémde favorecer a manutenção do espectador ao longo dassemanas e meses de cada narrativa, sua feminilização foiparte de uma fórmula de sucesso, que facilitou a atraçãodos anunciantes. No encarte Mídia e Mercado da revistavoltada para agências e anunciantes, Meio & Mensagem,de 1996, a novela é considerada um dos melhores espaçosde mídia, pela sua cobertura e audiência. A matéria informaque um terço do faturamento da emissora vem dacomercialização no horário das novelas – trata-se doproduto mais rentável da Rede Globo, a sua maior fontede lucros.15 Ademais, vendem (muito bem) suas trilhassonoras e outros subprodutos, como o licenciamento daprópria marca-título de cada novela.

Novela como vitrine vivaNovela como vitrine vivaNovela como vitrine vivaNovela como vitrine vivaNovela como vitrine viva

As novelas da Globo são narrativas melodramáticasseriadas que, exibidas de segunda a sábado ao longo deum período de 6 a 9 meses, conseguem manter um públicobastante grande. Sua estrutura narrativa, advinda deformatos como folhetim e rádio-novela, é especificamentedirigida ao público feminino, mas capaz de atrair ao mesmotempo algo definido genericamente como “a família toda”.A chamada “novela das oito”, exibida de fato no horáriodas 21 horas, tem aproximadamente 60% de seu públicodo sexo feminino, e aquelas exibidas por volta das 18 e 19

14 No entanto, esse preço éconsiderado bom e eficiente, emesmo barato, quando se levaem conta o custo por mil, ou seja,o tamanho dos públicos-alvoatingidos.

15 “Novela: a grande dama datelevisão brasileira”. Mídia eMercado, ago./set. 1996, p. 8.

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horas têm ainda maior proporção feminina.16 As históriastratam sempre de dramas amorosos e de família; seu focosão casos de amor e da intimidade, da afetividade – temasconsiderados ainda hoje femininos.17

Há uma estrutura narrativa cheia de repetições quese pode visualizar nas novelas – alguns paradigmasnarrativos românticos que se repetem, como trajetórias dotipo Romeu e Julieta ou Cinderela, que já fazem parte dorepertório cultural comum e foram atualizados emodernizados pelas próprias novelas, assim como pelasnarrativas da indústria cultural.18 As histórias são centradasem personagens femininos, heroínas que lutam contradiversos tipos de dificuldade até o final feliz do encontroamoroso definitivo e desimpedido dos empecilhos queconstituíram por meses a longa trama narrativa.

Incorporando inclusive alguns ideais feministasquanto às possibilidades da vida das mulheres, o contextode referência da vida afetiva, a moral sexual e as relaçõesfamiliares dos personagens referem-se de modo bastanteevidente a padrões de camadas médias e altas dosgrandes centros urbanos, particularmente o Rio de Janeiro,onde é produzida a novela e de onde advém a maioriados profissionais que a escreve e produz. Por esse motivo,tais heroínas são mulheres que têm sua profissão, sãoeconomicamente ativas e independentes, têm vida sexualativa e feliz, relacionam amor a prazer e realização sexual,como o tipo moderno definido pelos publicitários. Mas paranão se tornarem incômodas ou ousadas demais aos setoresmais conservadores da população (e a todo o interior dopaís, suas cidades médias e mais provincianas), quetambém constituem parte do mercado consumidorbuscado, mantêm também coerência com valores ditostradicionais como ser boa mãe e dedicar-se à família. Énesse sentido que Gledhill19 fala de uma negociação desentidos nos textos da indústria cultural, que pode ser vistano âmbito das construções culturais acerca dospersonagens femininos, e que relaciono ao contexto devida dos intermediários culturais, por um lado, e à imagemque estes profissionais têm das audiências e seus valores,por outro.

No entanto, esse tipo feminino de várias novelascostuma ser uma mulher de classe média ou alta, que nomais das vezes dá conta do recado de ser boa mãe eprofissional porque resolveu o dilema típico do feminismode classe média – conciliar trabalho e maternidade. Muitas,como no exemplo das Helenas das narrativas escritas porManoel Carlos, o resolvem porque têm uma empregadadoméstica maravilhosa, que, além de cuidar da casa,cozinhar bem, é afetiva e sempre participa do cuidados

16 Os trabalhos de Tirza Aidar, daUNICAMP, a partir do acervo doIbope, são minha fonte paraessas afirmações. Agradeço a elaa divulgação antecipada dessastabulações especiais, no relatórioparcial vinculado ao projeto“Caracterização do perfil socio-demográfico da audiência detelevisão na região metropolitanade São Paulo”, CEM/Cebrap, ECA-USP e NEPO-UNICAMP.17 Discuti mais longamente afeminilização da telenovela emALMEIDA, 2002. Sobre outros bensculturais femininos, cf. TaniaMODLESKI, 1986.18 Sobre os paradigmas narrativosdas telenovelas, cf. CristianeCOSTA, 2000. Sobre folhetim emelodrama, cf. ainda MarlyseMEYER, 1996; Peter BROOKS, 1976;e Ismail XAVIER, 2000.

19 GLEDHILL, 1988.

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com os filhos ou os netos da patroa (a heroína). Não maisuma “mãe preta” para os filhos da patroa querida (comonas afinidades femininas entre senhora e escrava emnovelas de época), mas sempre em relações afetuosas egentis, as empregadas negras ou nordestinas, charmosasou engraçadas, são também amigas.

Grande parte dos personagens centrais é semprede classe média ou alta, e certamente esses personagenssão parte de camadas sociais de maior poder aquisitivodo que a maioria da audiência, concentrada nas classesC e D. Tal fato é percebido pelas audiências pelo queconsideram chique e luxuoso nos personagens das novelase em suas casas, sempre tão arrumadas e sofisticadas. Talcontexto favorece a colocação em cena de uma série debens.

As novelas garantem o público para os intervaloscomerciais e ainda permitem a inserção de ações demerchandising – produtos que são usados pelospersonagens em seu cotidiano, cuja marca é mostradacom destaque evidente, e que constituem uma das formasmais caras e eficientes de publicidade. “Merchandising émaravilhoso para fazer comportamento”, diz umapublicitária – colocar de modo “natural” um produto nomeio da narrativa promove e cria novos comportamentose atitudes de compra no consumidor.

No início da produção de cada novela, por voltade seis meses antes de começar a ser exibida, a RedeGlobo distribui para anunciantes e publicitários umapublicação que revela elementos da narrativa e apontaas possibilidades de inserção de merchandising, as marcasque podem ser licenciadas associadas ao contexto danovela, de sua história ou personagens, explicitando aindaos públicos-alvo que essa produção deve atingir. Ou seja,junto com sua produção em termos de narrativa, vem suaprodução comercial e sua sustentação.

Os roteiristas revelam que, para que a novelafuncione e atraia de fato “a família toda”, é preciso terpersonagens de diversas faixas etárias e estilos de vidanuma mesma narrativa.20 Se possível, o texto deveapresentar pares românticos adolescentes, jovens, de meiaidade e mesmo idosos para garantir essa capacidade deinteressar a todas as faixas etárias, assim como de diversasclasses sociais, como suas audiências. Mas as possibilidadesda narrativa vão além. Ao construir várias histórias compersonagens que se entrecruzam, ela apresenta toda umagama de relações sociais e de diferenciações entrepersonagens através dos bens de consumo que usam ecom os quais eles convivem nos cenários. Os personagens,para se diferenciar e permitir essa longa narrativa, são

20 De acordo com entrevista como autor Carlos Lombardi e aindaRenata PALLOTTINI, 1998.

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também mostrados em seus cotidianos, em casas repletasde bens de consumo ultra-modernos, e se diferenciam porestilos, modas, jeitos de vestir, carros que possuem, lugaresde lazer que freqüentam. Ou seja, o próprio texto da novela,mesmo que não tenha um merchandising, mostra uma sériede produtos, como usá-los e como as pessoas sediferenciam e se distinguem numa sociedade de consumoatravés desses bens.

É interessante que, tanto no merchandising comona narrativa em geral, a novela demonstra o efeito e o usodos produtos, como usá-los, e ainda associa aos produtosdeterminados estilos de vida. São exatamente as técnicasde publicidade: narrativas como “problema e solução deproblema” através do produto, ou seu “efeitodemonstração”, e principalmente a associação simbólicaentre produtos e estilos de pessoas. A narrativa permite amesma identificação que o anúncio tenta criar entre usuáriodo produto e pessoa com a qual o consumidor pode seidentificar, sentindo-se valorizado e projetado no produto.21

A personalidade ou estilo do usuário ajuda a construir aimagem de marca do produto e, por outro lado, o uso decertos produtos é parte da composição do personagem.Aliás, é por favorecer-se dessas associações simbólicas quemuitos atores e atrizes estrelam anúncios de diversosprodutos.

Por fim, há também aquilo que é bastantereconhecido no Brasil, como o papel das novelas depromover e difundir a moda. Numa sociedade de consumo,o estilo do que é usado e vestido costuma ser associado auma marca de individualidade, de distinção e autonomia.Embora a cultura de consumo, como denomina MikeFeatherstone,22 seja uma forma de classificar o mundo socialem categorias de pessoas, promovendo marcas visíveis dedistinção e prestígio (a referência a Bourdieu éfundamental), ela ao mesmo tempo usa imagens e símbolosque sugerem ao consumidor que é ele que escolhe o quequer consumir de acordo com seus desejos e sonhos maisíntimos, como uma realização de si mesmo. Por esse motivo,as roupas são um dos sinais mais fortes na tentativa dedistinguir-se e assumir um estilo individual. A novela promoveestilos específicos associados a determinadas narrativas epersonagens, ou promove uma moda mais geral, aquelaque se vê nas vitrines dos shoppings de classe alta no inícioda narrativa e que ao longo dos meses de exibição danovela se populariza. Porém, acima de tudo, a novelapromove uma certa lógica e cultura do consumo – paraalém de objetivos comerciais estrito senso.

21 Como desenvolvido porWERNICK, 1991, e JudithWILLIAMSON, 1978.

22 FEATHERSTONE, 1995.

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Consumo e sentimentosConsumo e sentimentosConsumo e sentimentosConsumo e sentimentosConsumo e sentimentos

Hoje a televisão faz a cabeça da sociedade. Na moda,no estilo de vida, na maneira de se vestir, de falar, dese relacionar com os outros... A televisão influencia muitonisso. [...] Mas a vida real, ela é muito mais dura, certo?A novela é um luxo danado (Sebastião, 45 anos, classetrabalhadora, três filhos, itálico meu).

Esta é uma critica comum da audiência da TV, aidéia de que a TV ‘faz a cabeça’ das pessoas, muitas vezesusada para se falar de política, seja pelas audiências maiseducadas, seja pela bibliografia que reflete sobre TV nopaís. A citação acima aponta também para outra críticacomum, quer seja na audiência, quer seja nos textos dasciências sociais sobre indústria cultural, aquela que se refereao consumo (ou consumismo). Sebastião era operárioespecializado, pai de três filhos adolescentes, líder sindical,católico, que tinha educação formal e um universo dereferências advindas de outras fontes (como o sindicalismoe a vertente mais à esquerda da Igreja Católica que elefreqüentava). Assim como ele, outros espectadores usavamseu repertório de referências e capital cultural para refletirsobre a TV. A crítica sobre o consumismo promovido pelaTV, muitas vezes com ênfase em programas infantis, advinhacom mais freqüência dos grupos sociais com maior capitalcultural. Todos que mencionavam esse tipo de “efeito”sempre se referiam a “outras” pessoas consideradas maisinfluenciáveis, como as crianças, os jovens, ou as pessoas“mais simples” ou “sem educação” (referindo-se àquelassem escolaridade formal, sem acesso à escola, ouanalfabetas).

Além dessa crítica consciente, dessa falaexpressamente referida a uma influência da TV em “outraspessoas”, na esfera da interação cotidiana das audiênciascom a TV pode-se ainda observar vários tipos de formas depromoção do consumo relacionadas às novelas. Primeiro,de modo mais evidente, porque a própria novela é umbem cultural que é consumido e há certas formas social ehistoricamente construídas de consumir as narrativas. Arelação da novela com o dia-a-dia é evidente; trata-se deuma narrativa marcada pela cotidianidade. As pessoasassistem às novelas em meio a seu cotidiano; muitosassistem à novela das seis ou das sete ao passo quepreparam o jantar, arrumam a casa ou fazem os afazeresdomésticos. O público feminino, na média, tem maiorenvolvimento.23

O interesse em assistir às novelas está ligado, por umlado, a um prazer em determinado tipo de repetição da

23 Sobre a interação entre narra-tivas da mídia e cotidiano domés-tico feminino, cf. Tania MODLESKI,1983, e Dorothy HOBSON, 1980.Também MORLEY, 1993, mostra adistinção de sentidos da TV e deseus programas para homens emulheres.

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estrutura narrativa, certa previsibilidade – que no entantodeve estar também acrescida de pequenas e constantesinovações. As histórias e os paradigmas narrativos sãoconhecidos, e há poucas surpresas, pois a própriapublicidade da novela anuncia o que vai acontecer. Mesmoassim, os espectadores se interessam e sentem prazer aoreconhecer ali fatos que consideram realistas. Não se tratatanto dos personagens e nem de seus contextos, vistos pelaspessoas de camadas médias e populares como exagerados,luxuosos demais e que não correspondem à vida real damaioria das pessoas (como na fala de Sebastião). Osespectadores que realmente se envolvem com a narrativa(e nem todos o fazem) vêem ali sentimentos e relaçõesafetivas que consideram, estes sim, realistas ou verdadeiros– era o que dizia Maria, esposa de Sebastião.24 Diversamentedo que supõem os roteiristas, nem sempre os espectadoresse identificam apenas com os personagens que seassemelham em termos de sexo e faixa etária, mas tambémse identificam com situações e dilemas de personagens.Para citar outro exemplo, Fátima, uma mãe de classe média,identificava-se com o rei do gado na medida em que eletinha uma relação difícil com seus filhos adolescentes, e erapor esse aspecto que ela discutia sobre sua vida,comparando-a com a situação do personagem. É por essetipo de aproximação que as pessoas falam dos personagense suas situações como se fossem pessoas conhecidas, comose existissem “na vida real”.

Muitas vezes, nessas aproximações as pessoasrefletem sobre suas vidas, suas escolhas, revêem seuspontos de vista. A novela fornece um panorama quepermite ao espectador um relativo “processo reflexivo doeu”25 a partir das formas de viver e de lidar com os afetos,com as relações amorosas e familiares que vêrepresentadas na narrativa, e a partir das quais discute erepensa as suas experiências no campo dessas mesmasrelações. Não porque assimile passivamente seusconteúdos, e nem porque tem uma grande liberdadeinterpretativa e formas de leitura muito distintas do que opróprio texto permite. Assiste à telenovela de formaparcialmente crítica, principalmente se ela entra emchoque com os valores hegemônicos de seu contexto sociale cultural, assim como percebe viéses de ordem política emesmo a promoção do consumo que está em jogo.

Em termos de choque entre “culturas locais” umpouco distintas, a linguagem urbana e a atitude dospersonagens era um exemplo: em Montes Claros, muitosfaziam uma crítica em termos de moral sexual, poisconsideravam que os personagens femininos tinham umaliberdade sexual exagerada que não condizia com a moral

25 Anthony GIDDENS, 1993.

24 Sobre o realismo sentimental eas identificações das audiências,cf. ANG, 1985.

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religiosa predominante para parte dos espectadores(especialmente para aqueles que tinham filhos ou netosadolescentes).26 Para esse grupo social, essa era umainfluência considerada perigosa da TV sobre as jovens dasua região, onde tudo seria diferente da vida dos jovensno Rio de Janeiro (ou São Paulo) supostamente retratadosnas novelas.

Entretanto, ao conviver com certos conteúdos, quesão muitas vezes diversos de seu contexto, há também umaespécie de “educação de sentimentos”, nos termos deClifford Geertz,27 que é mais incorporada no caso dasgerações mais novas, que convivem com a televisão desdea infância, mas que também parece atingir, ao longo dosanos e da repetição, os jovens e adultos.28 O diálogo comos personagens, tratados de maneira muito próxima comose fossem pessoas reais que vivem ali do lado, vizinhos,conhecidos, amigos ou parentes, permite a comparaçãoconstante com suas experiências individuais.

As narrativas de grande penetração no cotidiano,em sua repetição de estruturas narrativas e de construçõessimbólicas, vividas com proximidade durante anos a fio,acabam por constituir parte das categorias culturais comas quais esses espectadores convivem, particularmenteaqueles conteúdos que são mais comuns e repetitivos,como certa construção da heroína. É possível notar comoo modelo ideal de feminilidade, na voz de muitas mulherese homens no trabalho de campo em Montes Claros,assemelhava-se a certo tipo de heroína melodramáticaurbana e independente: uma mulher que trabalha fora,tem seu emprego e salário, que busca completude no amor,tem vida sexual associada ao amor, mas também é umamãe dedicada, e por fim ainda soma-se a esse tipo idealtodo o glamour da mídia, tratando-se portanto de umamulher linda, elegante, bem cuidada, que se veste comroupas da moda. Parece-me que esse foi um dosestereótipos, não o único, que ao longo das últimas duasdécadas foram bastante reiterados nas novelas(principalmente das oito).

É nesse sentido que a mídia pode ser vista comouma tecnologia do gênero, pois constrói concepções demasculino e feminino que se tornam, ao longo dos anosde convivência com essas histórias, construçõeshegemônicas.

Conclusões: imagens femininas e seusConclusões: imagens femininas e seusConclusões: imagens femininas e seusConclusões: imagens femininas e seusConclusões: imagens femininas e seuspúblicospúblicospúblicospúblicospúblicos

Esse tipo feminino admirado por diversas pessoasem minha pesquisa de campo é o mesmo tipo que agrega

26 Essa crítica em termos de moralsexual já havia sido notada naspesquisas etnográficas deRosane PRADO, 1987, e OndinaLEAL, 1986.

27 GEERTZ, 1989.

28 O problema de como asnarrativas da mídia podem atuarem certas formas de constituiçãoda subjetividade foi maisexplorado em minha tese, etambém discutido no artigo deLila ABU-LUGHOD, 2003, que citaainda o trabalho seminal deWILLIAMS, 2003, para essareflexão. Essa problemática emsua referência a gênero foitambém tratada por ANG, 1996.

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características consideradas pelos publicitários comotradicionais (a boa dona-de-casa, mãe e esposadedicada) junto com aspectos que consideram modernos(mulher que trabalha fora, independente, elegante esensual) e que é também muito explorado pelos anúnciospublicitários, de forma a agradar vários tipos de público,tanto o “tradicional”, como o “moderno”, sem incomodare nem bater de frente com valores que consideram serimportantes e quase imutáveis nos seus públicos-alvo.29

Nota-se que ao buscar atingir um público heterogêneo,reconhecendo essa diversidade na audiência de TV, ebuscando reunir aspectos simbólicos aparentementedistintos, surge e promove-se na mídia (tanto na novelacomo nos anúncios) uma imagem de super-mulher-ideal.

É nessa soma de sentidos aparentementecontraditórios numa só produção de Hollywood que Gledhillchama a atenção para destacar a concepção denegociação de sentidos que existe na produção, no textoe na recepção dos bens culturais.30 O que orienta certasconstruções de feminino na mídia comercial é anecessidade de agradar ao público mais vasto possível,por um lado, e por outro condizer com os valores de umasociedade de consumo, promovendo bens e serviços. Asuper-mãe moderna que trabalha fora é um tipo comumnos anúncios do horário nobre, e condiz com as imagensde muitas heroínas de novela. Após o final dos anos 70, e oadvento e sucesso de Malu mulher, as heroínasmelodramáticas, sofredoras e ingênuas, tornaram-semulheres “batalhadoras”, mas, ao mesmo tempo queincorporaram alguns valores do meio urbano e cosmopolita,continuam reforçando aspectos que os produtores denovela consideram “profundamente arraigados” na culturabrasileira, como a figura da mãe que cuida e ama muitoseus filhos, acima de tudo. Os finais felizes ainda são repletosde casamentos e encontros amorosos, e a completude dosfilhos ou da gravidez, ou seja, da procriação, ainda ébastante naturalizada como simbologia do amor e da uniãoa longo prazo.

Em termos comerciais, a justaposição de imagenstambém é produtiva. Tal tipo feminino permite promoveruma infinidade de bens e serviços que ‘facilitam’ a vida damulher que trabalha fora, mas que nunca deixa de ser boamãe, esposa e dona-de-casa (ou seja, a responsável pelafamília e pelo espaço doméstico), além de ser bela e secuidar, consumindo também uma infinidade de bens eserviços para o cuidado e embelezamento de seu corpo.Assim, para entender as construções de gênero maiscomuns que circulam na mídia, é preciso atentar para aestrutura comercial que a sustenta, pois ela em muito

30 Semelhante ao que Stuart HALL,2003, revela em sua revisão dosconceitos de encode/decode,ao supor uma predominância daleitura negociada (e não neces-sariamente apenas oposicional),até porque ele não consideraque a “mensagem” tenha umsentido unívoco. No entanto,Gledhill considera que os aspec-tos patriarcais das imagens docinema advêm das estruturasnarrativas, como o melodrama, eos aspectos relativamente femi-nistas viriam de uma necessidadeda indústria de ser também“realista” e tratar da realidadecotidiana das mulheres quecompõem o público.

29 Sobre as formas que a RedeGlobo e alguns autores de nove-las imaginam suas audiências, esobre essa oposição entre tradi-cional e moderno nas novelas dosanos 70 e 80, cf. o trabalho deEsther HAMBURGER, 2005.

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explica os limites e as possibilidades simbólicas da indústriacultural.

Tendo essa relação em mente, ainda é precisoanalisar outros tipos de imagens femininas e masculinas,de juventude, velhice ou infância, de cores e etnias.Certamente que há outros tipos e apelos femininos, nasmesmas novelas e em outros anúncios. Há anúncios comapelos muito mais marcados em termos de sexualizaçãode imagens femininas, assim como aqueles voltados paragrupos jovens que reforçam ideais de liberdade, prazer,juventude, ou mesmo natureza. Mas esse tipo que destacoaqui se tornou uma forte e muito presente convençãonarrativa de alguns dos autores de novelas, convenção jáincorporada e esperada pelas audiências.

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[Recebido em julho de 2006e aceito para publicação em dezembro de 2006]

Consumers and Heroines: Gender in Soap OperasConsumers and Heroines: Gender in Soap OperasConsumers and Heroines: Gender in Soap OperasConsumers and Heroines: Gender in Soap OperasConsumers and Heroines: Gender in Soap OperasAbstractAbstractAbstractAbstractAbstract: This article explores the relationship between television soap operas, consumption andgender, in order to understand how media is articulated to the promotion of goods and of consumerculture, and how gender is a very important axis of such articulation. The research has originallystarted from a soap opera reception ethnography, but unfolded in the analysis of the relationshipbetween television and advertising, discussing the feminilization of consumption and theconstruction of a certain hegemonic female image both in soap operas and in advertising.Key WKey WKey WKey WKey Wordsordsordsordsords: Television; Gender; Consumption; Brazilian Soap Operas.