Consumo Pessoal de Drogas

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7/14/2019 Consumo Pessoal de Drogas http://slidepdf.com/reader/full/consumo-pessoal-de-drogas 1/10 Consumo pessoal de drogas: descriminalização, despenalização ou descarcerização após o advento da Lei n. 11.343/06 Karine Angela Ferrari * Maciel Colli ** Resumo O presente argo visa a analisar as principais alterações e consequências resultantes do advento da Lei n. 11.343/06. Anteriormente à sua entrada em vigor, a Lei n. 6.368/76 previa a aplicação de pena privava de liberdade ao sujeito que incorresse em qualquer das condutas picas elencadas em seu argo 16; entretanto, o argo 28 da Lei n. 11.343/06 excluiu essa possibilidade passando a cominar penas diversas no preceito secundário da norma penal. Destarte, em razão das alterações mencionadas; surge uma polêmica acerca do assunto: parte da doutrina e jurisprudência entende que, em virtude da impossibilidade de aplicação da pena privava de liberdade houve a descrimina- lização da conduta. Também, há entendimentos diversos aduzindo que, embora o tratamento penal dispensado ao usuário seja mais brando, o fato não deixou de ser pico, anjurídico e culpável, im - plicando somente a despenalização da conduta. Outrossim, há ainda quem sustente a ocorrência da descarcerização do argo 28, haja vista a ausência de prisão. Palavras-chave: Drogas. Consumo. Descriminalização. Despenalização. Descarcerização. 1 INTRODUÇÃO  A Lei n. 11.343/06, de 23 de agosto de 2006, desencadeou um novo enfoque dado ao usuário de drogas, constuindo inovação em relação à legislação anterior. O presente estudo será voltado à análise do argo 28 da referida Lei, a qual apresenta alterações im- portantes, como a políca prevenva, a implementação de medidas alternavas e a proibição da aplicação da pena privava de liberdade ao usuário que incorrer nas condutas previstas no mencionado argo. A Lei 6.368/76 cominava à conduta do usuário de drogas pena privava de liberdade, na mo - dalidade detenção, pelo prazo de seis meses a dois anos. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei n. 11.343/06, a penalidade aplicada tornou-se mais branda, haja vista a referida lei desprezar a po- líca proibicionista adotada pelo diploma legal anterior, passando a prever uma políca prevenva em relação ao usuário de drogas.  _________ *  Bacharela em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus de Pinhalzinho; estudante, [email protected] **  Mestre em Ciências Criminais pela Poncia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Especialista em Ciên cias Penais pela Poncia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Advogado criminalista, inscrito na OAB/SC 29.785-B; docente da Graduação de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordenador regional, em Santa Catarina, do Instuto Brasileiro de Direito Processual Penal; membro do grupo de pesquisas Processo Penal e Estado Democráco de Direito: a Instrumentalidade Constucional (Garansta) como Limitação do Poder Punivo, cadastrado no CNPq e vinculado à Poncia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; membro do Instuto Brasileiro de Ciências Criminais; [email protected] Unoesc & Ciência – ACSA, Joaçaba, v. 3, n. 1, p. 7-16, jan./jun. 2012 7

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  • Consumo pessoal de drogas: descriminalizao, despenalizao ou descarcerizao aps o advento da

    Lei n. 11.343/06

    Karine Angela Ferrari*

    Maciel Colli**

    Resumo

    O presente artigo visa a analisar as principais alteraes e consequncias resultantes do advento da Lei n. 11.343/06. Anteriormente sua entrada em vigor, a Lei n. 6.368/76 previa a aplicao de pena privativa de liberdade ao sujeito que incorresse em qualquer das condutas tpicas elencadas em seu artigo 16; entretanto, o artigo 28 da Lei n. 11.343/06 excluiu essa possibilidade passando a cominar penas diversas no preceito secundrio da norma penal. Destarte, em razo das alteraes mencionadas; surge uma polmica acerca do assunto: parte da doutrina e jurisprudncia entende que, em virtude da impossibilidade de aplicao da pena privativa de liberdade houve a descrimina-lizao da conduta. Tambm, h entendimentos diversos aduzindo que, embora o tratamento penal dispensado ao usurio seja mais brando, o fato no deixou de ser tpico, antijurdico e culpvel, im-plicando somente a despenalizao da conduta. Outrossim, h ainda quem sustente a ocorrncia da descarcerizao do artigo 28, haja vista a ausncia de priso. Palavras-chave: Drogas. Consumo. Descriminalizao. Despenalizao. Descarcerizao.

    1 INTRODUO

    A Lei n. 11.343/06, de 23 de agosto de 2006, desencadeou um novo enfoque dado ao usurio

    de drogas, constituindo inovao em relao legislao anterior.

    O presente estudo ser voltado anlise do artigo 28 da referida Lei, a qual apresenta alteraes im-

    portantes, como a poltica preventiva, a implementao de medidas alternativas e a proibio da aplicao

    da pena privativa de liberdade ao usurio que incorrer nas condutas previstas no mencionado artigo.

    A Lei 6.368/76 cominava conduta do usurio de drogas pena privativa de liberdade, na mo-

    dalidade deteno, pelo prazo de seis meses a dois anos. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei

    n. 11.343/06, a penalidade aplicada tornou-se mais branda, haja vista a referida lei desprezar a po-

    ltica proibicionista adotada pelo diploma legal anterior, passando a prever uma poltica preventiva

    em relao ao usurio de drogas._________* Bacharela em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus de Pinhalzinho; estudante, [email protected]** Mestre em Cincias Criminais pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul; Especialista em Cin cias Penais pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul; Advogado criminalista, inscrito na OAB/SC 29.785-B; docente da Graduao de Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina; Coordenador regional, em Santa Catarina, do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal; membro do grupo de pesquisas Processo Penal e Estado Democrtico de Direito: a Instrumentalidade Constitucional (Garantista) como Limitao do Poder Punitivo, cadastrado no CNPq e vinculado Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul; membro do Instituto Brasileiro de Cincias Criminais; [email protected]

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    Nesse diapaso, a Lei ora em vigor trouxe importantes inovaes e suscitou discusses na dou-

    trina e jurisprudncia, especialmente em relao ao tratamento dispensado ao usurio. Infere-se

    que o artigo 28 da referida Lei alterou ainda de forma substancial as penas cominadas s condutas

    incriminadas, abolindo a pena privativa de liberdade, na modalidade deteno, passando a cominar

    pena de advertncia e prestao de servios comunidade e medida de comparecimento a progra-

    ma ou curso educativo.

    2 NOTAS INTRODUTRIAS LEI 11.343/06

    A Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, originria do projeto de lei n. 115 de 2002, do Senado

    Federal, foi elaborada com o intuito de sanar a confuso legislativa ocasionada pela vigncia concomi-

    tante das Leis n. 6.368, de 21 de outubro de 1976 e n. 10.409, de 11 de janeiro de 2002 (JESUS, 2009).

    Antes da entrada em vigor da Lei n. 11.343/11, a legislao bsica acerca do tema se encon-

    trava disciplinada pelos diplomas supracitados. O Congresso Nacional elaborou a Lei n. 10.409/02,

    a fim de substituir a Lei n. 6.368/76, entretanto, referido projeto estava inquinado de tantos vcios

    de inconstitucionalidade e deficincias tcnicas, que resultou no veto de sua parte penal, somente

    sendo aprovada sua parte processual (CAPEZ, 2009).

    Desse modo, a legislao anterior antitxicos se transformara em uma verdadeira colcha de

    retalhos, haja vista a parte penal continuar sendo disciplinada pela Lei n. de 1976, enquanto a parte

    processual se regia pela Lei de 2002.

    Com o escopo de sanar as dificuldades que at ento ambas as legislaes apresentavam,

    adveio a Lei n. 11.343, revogando expressamente as Leis n. 6.368/76, n. 10.409/02 e passando a

    vigorar como diploma legislativo de carter nacional.

    2.1 ANLISE DO ARTIGO 28 DA LEI 11.343/06 VERSUS ARTIGO 16 DA LEI N. 6.368/76

    Inicialmente, cumpre traar um comparativo entre o artigo 16 da Lei n. 6.368/76 e o artigo 28

    da Lei vigente.

    A Lei n. 6.368/76 somente incriminava as condutas do usurio consistentes em adquirir,

    guardar ou trazer consigo substncia entorpecente ou capaz de causar dependncia fsica ou psqui-

    ca para uso prprio. Veja-se o diploma revogado:

    Art. 16. Adquirir, guardar ou trazer consigo, para o uso prprio, substncia entorpecente ou que determine dependncia fsica ou psquica, sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar:Pena deteno, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e o pagamento de 20 (vinte) a 50 (cin-quenta) dias-multa.

    Com o advento da Lei n. 11.343, houve substanciais mudanas no rol das condutas punidas e

    nas formas de punio, conforme se infere do disposto em seu artigo 28, in verbis:

    Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depsito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorizao ou em desacordo com determinao legal ou regulamentar ser submetido s seguintes penas:

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    I - advertncia sobre os efeitos das drogas;II - prestao de servios comunidade;III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. 1o s mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas preparao de pequena quantidade de substncia ou produto capaz de causar dependncia fsica ou psquica.

    Portanto, depreende-se que o artigo 28 da Lei n. 11.343/06 ampliou as hipteses de incidncia

    tpica do usurio ao criar novas figuras tpicas, substituiu da expresso substncia entorpecente ou de

    que determine dependncia fsica ou psquica pela expresso drogas contidas no caput do artigo,

    extinguiu a possibilidade de aplicao de pena privativa de liberdade e incriminou a conduta daquele

    que, para consumo pessoal, semeia, cultiva e colhe plantas destinadas preparao de pequena quan-

    tidade de substncia ou produto capaz de causar dependncia fsica ou psquica (CAPEZ, 2009).

    3 ARTIGO 28 DA LEI N. 11.343/06: DESCRIMINALIZAO, DESPENALIZAO OU DESCARCERIZAO

    DAS CONDUTAS DESCRITAS NO REFERIDO ARTIGO

    Aps a explanao dos aspectos gerais relevantes acerca das inovaes trazidas pela nova Lei

    de drogas e diante da controvrsia gerada pelo assunto, abordar-se- a polmica envolvendo o arti-

    go 28 da Lei n. 11.343/06, elencando os posicionamentos divergentes a respeito do assunto.

    Inicialmente, cumpre tecer um breve conceito a respeito de cada instituto a fim de melhor

    compreender os fundamentos arguidos por cada corrente.

    Descriminalizar significa que a conduta, apesar de ilcita, deixa de ser tipificada como crime

    (GOMES et al., 2006).

    Despenalizar, por sua vez, no significa retirar o carter ilcito de uma conduta, mas apenas

    abrandar o tratamento penal dispensado para tanto, suavizando o uso da pena de priso. Conduto,

    apesar do abrandamento no tratamento dispensado ao sujeito ativo, o fato no perde o carter de

    infrao penal (GOMES et al., 2006).

    A descarcerizao, de acordo com Sampaio (2006), indica a permanncia da figura tpica e a

    incidncia do preceito secundrio. Entretanto, face mnima necessidade da interveno por parte

    do Estado, objetiva afastar a incidncia da pena privativa de liberdade.

    3.1 ENTENDIMENTO DOUTRINRIO DESCRIMINALIZADOR

    O primeiro posicionamento a ser apreciado defende a descriminalizao da posse de drogas

    para o consumo pessoal. A base para a sustentao do entendimento reside principalmente no arti-

    go 1 da Lei de introduo ao cdigo penal (Decreto-Lei n. 3.914/41), que assim dispe:

    Art. 1. Considera-se crime a infrao penal a qual a lei comina pena de recluso ou de deteno, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contraveno, a infrao penal a que a lei comina, isoladamente, pena de priso simples ou multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

    Para os adeptos dessa corrente, considerando a redao dada ao artigo supracitado, somente

    ser crime a conduta que a Lei cominar pena privativa de liberdade, na modalidade recluso ou

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    deteno. Verifica-se que a Lei no prev essa espcie de pena no preceito secundrio do artigo 28

    da Lei de drogas, no admitindo nem mesmo a sua converso em caso de descumprimento. Desse

    modo, em virtude dessa vedao, o texto no se enquadra no conceito de crime fornecido pelo

    artigo 1 da Lei de Introduo ao Cdigo Penal. Dada a peculiaridade da conduta, o referido artigo

    passou a configurar uma infrao sui generis, isto , configura uma terceira categoria, que no se

    confunde nem como o crime nem com a contraveno penal (GOMES et al., 2006).

    Ademias, explica Gomes (2006) que a descriminalizao da posse de drogas para consumo

    pessoal coloca nossa legislao em consonncia com as novas tendncias do direito penal mnimo,

    o qual impe restries severas ao modelo puramente repressivo. Fica evidente que o direto penal

    repressor se tornou absolutamente ineficaz na problemtica das drogas, motivo pelo qual deve dei-

    xar espao para os demais ramos do direito e instncias de controle social.

    Alis, a criminalizao da posse de drogas para consumo pessoal afronta o princpio da transcen-

    dncia ou alteridade, pois a conduta no transcende a esfera individual. Portanto, retiraria do indivduo a

    prerrogativa de gerir sua prpria vida da maneira que entenda adequado, lesando o direito liberdade,

    inviolabilidade da vida privada e da intimidade, bem como o direito ao respeito e igualdade, corolrios

    do princpio da dignidade da pessoa humana, norteador do ordenamento jurdico (GALVO, 2010).

    Outrossim, a nomenclatura atribuda ao Ttulo III, Captulo III da Lei 11.343/06 Dos crimes e das

    penas no confere, por si s, a natureza de crime, uma vez que igualmente em outras oportunidades

    o legislador, sem apreo tcnico, denominou crime o que caracterizava uma infrao poltico-adminis-

    trativa, como, na Lei n. 1.079, a qual versa sobre crimes de responsabilidade, que no so crimes.

    Ainda, disciplina o artigo 48, pargrafo 2 da Lei ora em vigor, a impossibilidade da priso em

    flagrante, determinado o encaminhamento ao juzo competente do usurio que for surpreendido

    cometendo alguma das condutas descritas no artigo 28, restando claramente demonstrado se tratar

    de um sujeito com tratamento diferenciado e mais brando.

    Aduzem, ainda, que o fato de Constituio Federal prever em seu artigo 5, inciso XLVI, outras

    penas que no a de recluso ou deteno, as quais podem ser substitutivas ou principais, como o

    caso do artigo em comento, no conflita com a referida tese, ao contrrio, refora a ideia de que o

    artigo 28 da Lei uma infrao sui generis, pois conta com penas alternativas distintas da pena de

    recluso, deteno ou priso simples.

    De acordo com Thums e Pacheco (2010), apesar de a Constituio Federal disciplinar no in-

    ciso supracitado a aplicao de penas de prestao social alternativa, suspenso ou interdio de

    direitos, no pe fim discusso, uma vez que o artigo 43 do Cdigo Penal confere ntido carter de

    alternatividade s penas restritivas de direitos. Portanto, no so penas principais, ou sero penas

    cumulativas s de privao de liberdade ou substitutivas, nos termos do artigo 44 do Cdigo Penal.

    Ainda, entendem os autores que ao prever a sano, utilizando-se o termo pena, houve um

    equvoco. Na verdade, no se trata de pena, mas de medidas educativas que deveriam ser substitu-

    tivas privativa de liberdade ou alternativas para transao penal.

    Sustentam a impossibilidade de reconhecer a advertncia sobre o efeito das drogas como uma

    espcie de pena, at mesmo porque nosso sistema legal brasileiro no a considera como pena restri-

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    tiva de direitos, tampouco o comparecimento a programa ou curso educativo pode ser classificado

    como pena. Desse modo, inegvel tratar-se de medida educativa sem cunho penal.

    Destarte, a medida educativa de prestao de servio comunidade a nica que poderia

    ser tratada como pena, entretanto, o artigo 44 do Cdigo Penal disciplina-a como alternativa, isto ,

    substitutiva pena privativa de liberdade. Assim, se no h pena privativa de liberdade para substi-

    tuir/aplicar de forma autnoma e diretam a pena alternativa de prestao de servio comunidade,

    consiste em despenalizar a conduta descrita no tipo penal, em virtude da impossibilidade de impor

    pena privativa de liberdade (THUMS; PACHECO, 2010).

    Nesse diapaso, lecionam que as medidas estabelecidas no artigo 28 no traduzem sano

    prpria do direito penal, haja vista no atender finalidade de preveno geral e especial, de retri-

    buio e tampouco sua funo social educativa, considerando a ausncia de fora coercitiva.

    3.2 ENTENDIMENTO DOUTRINRIO E JURISPRUDENCIAL DESPENALIZADOR

    A segunda corrente a ser analisada adota o entendimento de que o artigo 28 da Lei n. 11.343/06

    no deixou de ser crime, tambm no perdeu seu carter ilcito. O que houve foi apenas uma suavi-

    zao na resposta penal ao sujeito que incorrer nas condutas descritas no artigo 28, posto que, de

    acordo com a nova Lei, no h qualquer possibilidade de imposio de pena privativa de liberdade

    para o sujeito que adquire, guarda, traz consigo, transporta ou tem em depsito droga para consumo

    pessoal ou para aquele que pratica conduta equiparada, passando a adotar medidas alternativas.

    Por conseguinte, no houve a descriminalizao, mas to somente a despenalizao da conduta.

    Segundo Capez (2009), o fato continua a ter natureza de crime medida que a prpria Lei

    disciplinou o artigo 28 no captulo relativo aos crimes e s penas, alm do que as sanes somente

    podem ser aplicadas por um juiz criminal, mediante o devido processo legal.

    Com efeito, sustentam a inadequao do artigo 1 da Lei de introduo ao Cdigo Penal para determi-

    nar o conceito de crime sob o fundamento de que a definio contida no mencionado artigo se encontra de-

    fasada e, portanto, no pode ditar os parmetros para a nova tipificao legal do sculo XXI (CAPEZ, 2009).

    Rechaando a tese anterior, afirmam que a Constituio Federal permite a existncia de crime

    sem estabelecer pena privativa de liberdade, consoante se depreende do artigo 5, inciso XLVI, do

    mencionado diploma legal, estabelecendo que a Lei regular a individualizao da pena e adotar,

    entre outras, a pena privativa ou restritiva de liberdade, a perda de bens, cominao de multa, pres-

    tao social alternativa e suspenso ou interdio de direitos.

    Os juristas que seguem o caminho da despenalizao fundamentam sua tese principalmente

    nos artigos 32 e 43 do Cdigo Penal. Referido diploma traz em seu artigo 32 as espcies de penas

    possveis no ordenamento jurdico brasileiro, quais sejam, privativas de liberdade, restritivas de di-

    reitos e de multa, enquanto o artigo 43 elenca suas espcies.

    Entre as penas cominadas ao artigo 28 da Lei n. 11.343/06, encontra-se a pena restritiva de di-

    reitos que consiste em prestao de servio comunidade, o que demonstra a existncia de punio

    para aquele que incorrer nas condutas incriminadas.

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    Portanto, verifica-se que no houve a descriminalizao, posto que apesar de a nova Lei retirar a

    possibilidade de aplicao de pena privativa de liberdade, existem outros meios alternativos de sanes.

    Ademais, o argumento de que no se trata de infrao penal em razo de as penas cominadas

    no admitirem sua converso em priso no convence, posto que a impossibilidade de converter

    penas criminais em priso j existe em nosso direito penal desde o advento da Lei n. 9.268/96, a

    qual modificou o regime jurdico da pena de multa, impedindo sua converso em pena privativa de

    liberdade, nos termos do artigo 51 do Cdigo Penal (JESUS, 2009).

    Sob o aspecto material, [...] a subsistncia do carter criminoso da conduta justifica-se pela

    leso ao bem jurdico tutelado pela norma, qual seja, a sade pblica. (JESUS, 2009, p. 40). Com

    efeito, a Lei no pune o consumo de droga, pois se assim o fizesse estaria violando o princpio da

    alteridade e, consequentemente, conduziria inconstitucionalidade do tipo. Incrimina-se a conduta

    de adquirir, guardar, ter em depsito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, sem

    autorizao ou em desacordo com determinao legal, posto que nessas circunstncias o comporta-

    mento do agente ofende o bem tutelado na norma incriminadora (JESUS, 2009).

    3.3 ENTENDIMENTO DOUTRINRIO E JURISPRUDENCIAL DESCARCERIZADOR

    Existe outro entendimento acerca da conduta do usurio de drogas previsto no artigo 28 da Lei

    n. 11.343/06. Sob a gide da mencionada lei, h quem entenda que no houve a descriminalizao

    da posse de drogas para consumo prprio, uma vez que a conduta no perdera seu carter crimino-

    so. Igualmente, no houve a despenalizao, haja vista a possibilidade de incidncia da sano pe-

    nal. O que houve, portanto, foi a descarcerizao, pois apesar de ser punvel, no cabe, em nenhuma

    hiptese, pena privativa de liberdade.

    Cumpre destacar que em sede doutrinria despenalizar significa evitar a aplicao de uma

    penalidade determinada conduta incriminada pelo ordenamento jurdico penal. Conforme explica

    Silveira (2011), o significado da despenalizao no consiste apenas na retirada da pena privativa

    de liberdade, conforme afirmado pela corrente anterior. Despenalizar significa que a conduta no

    mais punida, nem com o crcere nem com qualquer outra medida. Assim, no h que se falar na

    ocorrncia da despenalizao, posto que a conduta continua sendo penalizada.

    A descarcerizao, por sua vez, no retira o carter criminoso, tampouco a incidncia de san-

    o penal. Visa apenas ao afastamento da aplicao da pena privativa de liberdade em virtude da

    reduzida necessidade de interveno por parte do Estado (SAMPAIO, 2006).

    Na concepo dos adeptos teoria, o fato de a nova Lei no mais prever a pena privativa de

    liberdade como resposta penal ao sujeito que incorrer nas condutas tipificadas no artigo 28, evi-

    dencia a ocorrncia da descarcerizao em virtude de se aproximar de uma mnima interveno do

    Estado em relao liberdade do indivduo.

    Criticam o argumento que embasa a tese acerca da ocorrncia da descriminalizao fundada no

    artigo 1 da Lei de Introduo ao Cdigo Penal. Do mesmo modo que a tese arguida anteriormente,

    acreditam no ser adequada a interpretao do mencionado artigo, pois na poca a interveno cor-

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    poral era a regra face ao modelo inquisitrio que se evidenciava. Assim, a inovao da Lei merece inter-

    pretao sistemtica, no podendo se prender a texto editado em poca ditatorial (SAMPAIO, 2006).

    Importante frisar que no mbito de um Estado Democrtico de Direito, o direito penal e pro-

    cessual penal, bem como o sistema de segurana pblica e justia criminal, constituem mecanismos

    normativos e institucionais cujo objetivo consiste em minimizar e controlar o poder punitivo do Es-

    tado. Ao direito penal e processual penal atribuda a tarefa de estabelecer limites aptos a atenuar

    os riscos inerentes ao desequilbrio de poderes existentes entre Estado e cidado (AZEVEDO, 2011).

    Repise-se que, no que se refere ao controle penal institucionalizado, evidencia-se uma cres-

    cente cobrana no sentido de uma maior eficcia, tendo como paradigma as polticas de tolerncia

    zero, haja vista esta partir do pressuposto da ineficcia das estratgias mais brandas de controle

    social. O conceito de referida poltica de segurana pblica consiste em minimizar a tolerncia para

    o delito, instigando o uso de medidas punitivas mais drsticas e severas ao sujeito que cometer um

    crime. Assim, aponta o crcere como melhor instrumento para alcanar o pretendido efeito dissua-

    sivo, propondo altos investimentos em instituies carcerrias como soluo para os problemas de

    violncia e criminalidade (AZEVEDO, 2011).

    Destarte, como leciona Azevedo (2011), notrio que o sistema carcerrio brasileiro est lon-

    ge de ser um meio de conteno da criminalidade, ao contrrio, pode ser visto como um dos grandes

    propulsores da violncia. Consoante se depreende de estudos e pesquisas, as prises tm contribu-

    do para o aumento do ndice de criminalidade e, por conseguinte, no atendem ao fim ao qual se

    destinam a reinsero social. O encarceramento de rus primrios que buscam no delito um meio

    de sobrevivncia contribui para o surgimento e desenvolvimento de organizaes internas, faces

    prisionais e grupos que dominam o espao em que esto inseridos, bem como estendem suas ati-

    vidades para fora dos estabelecimentos prisionais. Em vez de reinserir o indivduo no meio social, o

    crcere somente aumenta a taxa de criminalidade e reincidncia.

    Todavia, no basta apenas investir nas prises e garantir condies de encarceramento. Mais

    que isso, preciso adotar polticas descarcerizantes, respostas penais eficientes e capazes de atingir

    a finalidade primordial da pena, despendendo maior ateno e investimentos em programas de

    execuo e acompanhamento das penas alternativas.

    Em relao eficcia das medidas punitivas adotadas, resta demonstrado que o regime car-

    cerrio piora a situao dos usurios de drogas, motivo pelo qual a Lei n. 11.343/06 implementou

    medidas menos agressivas, adotando uma poltica preventiva, pois a finalidade da pena reeducar

    o infrator, e no isso que, na prtica, nosso sistema prisional oferece.

    Portanto, afirmam os juristas adeptos a esse entendimento que o artigo 28 da Lei supracitada

    no acarretou a descriminalizao e tampouco a despenalizao da conduta. O que ocorreu foi um

    abrandamento da pena e descarcerizao do crime, posto que ainda possvel a cominao de

    pena, porm no pena privativa de liberdade.

  • Karine Angela Ferrari, Maciel Colli

    Unoesc & Cincia ACSA, Joaaba, v. 3, n. 1, p. 7-16, jan./jun. 201214

    4 CONCLUSO

    A Lei 11.343/06 apresentou significativos avanos especialmente em relao posse de drogas

    para consumo prprio ao visualizar o usurio/dependente de drogas como um sujeito que necessita

    de auxlio e amparo e no mais como um delinquente merecedor de pena privativa de liberdade.

    Inovou ao vedar a possibilidade de aplicao da pena privativa de liberdade passando a cominar

    outras medidas punitivas para o sujeito que incorrer nas condutas previstas em seu artigo 28.

    Consoante se depreende do presente artigo, o advento da Lei de drogas ora em vigor susci-

    tou divergncias em sede doutrinria e jurisprudencial envolvendo as condutas tipificadas em seu

    artigo 28, em virtude da excluso da pena privativa de liberdade prevista anteriormente pelo artigo

    16 da Lei n. 6.368/76. Por tais razes, surgiram trs posicionamentos divergentes: parte da doutrina

    e jurisprudncia sustentam a ocorrncia da descriminalizao da posse de drogas para consumo

    prprio; outros afirmam que ocorreu a despenalizao e, por fim, tambm h quem defenda o posi-

    cionamento acerca da descarcerizao.

    A corrente que sustenta a hiptese da descriminalizao alicera seu posicionamento especial-

    mente no disposto no artigo 1 da Lei de Introduo ao Cdigo Penal, segundo o qual se considera

    crime a infrao penal que a Lei cominar pena de recluso ou deteno, isolada ou alternativamente

    com a pena de multa. Desse modo, em virtude de o artigo 28 no prever pena privativa de liberdade

    em seu preceito secundrio, entendem que o mencionado tipo penal teria sido descriminalizado,

    passando a configurar uma infrao penal sui generis.

    Entretanto, os juristas que seguem o caminho da despenalizao afirmam que o fato continua

    sendo crime, porm, com um abrandamento no tratamento penal dispensado. O principal argu-

    mento reside, em suma, no artigo 5, inciso XLVI da Constituio Federal, e nos artigos 32 e 43 do

    Cdigo Penal. O primeiro dispositivo legal trz um rol de penas, no taxativo, elencando que outras

    penas alm das previstas podero ser aplicadas. J o artigo 32 do Cdigo Penal preconiza as espcies

    de penas existentes no ordenamento jurdico, enquanto o artigo 42 dispe acerca das espcies de

    penas restritivas de direitos.

    Por fim, a ltima corrente analisada defende o entendimento a respeito da descarcerizao, a

    qual deve ser entendida como a excluso da cominao da pena privativa de liberdade. De acordo com

    esta corrente, no h que se falar em descriminalizao, posto que a conduta no perdera seu carter

    criminoso. Igualmente, no houve a despenalizao, haja vista a possibilidade de incidncia da sano

    penal, pois a conduta continua sendo penalizada, no com o crcere, mas com medidas alternativas.

    REFERNCIAS

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  • Consumo pessoal de drogas: descriminalizao, despenalizao ...

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