CONSUMO Sêneca Sereno a Sêneca

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  • 7/23/2019 CONSUMO Sneca Sereno a Sneca

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    S e r e n o a S e n e c a 1

    I 1. Ob serva ndo -me atentam ente, descob ri em mim, Sneca, certos defeitos to visveisque eu os pod eria tocar com o dedo; outro s que se dissimulam nas regies mais p rofundas; outros,enfim, que no so contnuos, mas que reaparecem somente a intervalos. Eu no hesito em dizerque estes ltimos so os mais desagradveis de todos. Eles lembram aqueles inimigos que nosrodeiam para nos assaltar no momento propcio e com os quais no se sabe nunca se se deve estarem p de guerra, ou se se pode con tar em um perodo de paz.

    2. No entanto, a disposio na qual eu me surpreendo o mais freqentemente (pois, por queno me confessarei a ti, como a um mdico?) de no estar nem francamente liberto de minhas

    crenas e repugnncias de outrora , nem nov amente sob seu domnio. Se o estado no qual estouno o pior que pos sa existir, , em todo caso, o mais lamen tvel e o mais bizarro : no estou nemdoente nem so.

    3. No me digas que todas as virtudes so fracas nos seus incios e que com o tempo elastomam consistncia e fora. Tambm no ignoro que todos os benefcios que visam ao exterior,como o brilho de uma dignidade, a glria da eloqncia e todos aqueles que dependem do favor

    pblico, tm necessid ade de du ra o par a crescere m: as vir tudes precisam de tem po pa ra am ad urecer, e as qualidades q ue nos permitem seduzir graas a um simples verniz esperam que o correrdos anos lhes acentue gradualmen te as cores. M as temo que o hbito que fortalece todas as coisas

    possa co nsol idar em mim est a fraqu eza: tanto no ma l como no bem , um co nt ato pro long ado nosfaz tomar o gosto.

    4. Em que consiste esta enfermidade de uma alma irresoluta, que no se inclina deliberadamente nem virtude nem ao vcio? Eu no saberei diz-lo numa palavra, mas posso explic-lo

    pormeno rizadame nte . Ind icar-te-e i o que sin to: tu acha rs o n om e d a doena.5. Tenho um profundo amor simplicidade, e o confesso: o que amo no nenhum leito

    faustosamente preparado,no so de modo algum roupas que se tiram do fundo de um ba, que

    se torturam debaixo de pesos e de inmeros parafusos, para obrig-las a ficarem com lustro,2mas um costume simples e grosseiro que se conserva sem cuidado e que se usa sem escrpulo.

    6. O que eu amo no uma alimentao que muitos escravos preparam e olham comer, quese encomenda no sei quantos dias antes e que apresentada por no sei quantos braos: so pratos fceis de achar e de preparar, que no tm nad a de requintado , nem de raro; relativamente aosquais se tem certeza de que no faltaro em nenhuma parte, que no pesam nem bolsa nem aoestmago e que no tornam a sair de nenhum modo por onde eles entrarem.3

    7. O que eu amo um servo simplesmente vestido, um pequeno escravo desajeitado, a macia baixela de meu pai, homem rstico, cuja argentaria no trazia nem gravaes, nem mesmo onome do artfice; uma mesa que no deslumbra pelas suas cores marmreas e que no sejaconhecida de toda cidade por ter pertencido sucessivamente a toda uma srie de amadores, masque seja de uso cmodo e diante da qual no se vejam os olhos dos convivas nem arregalarem deprazer nem de cimes.

    1 Sneca imagina que o amigo Aneu Sereno (do qual bem pouco conhecemos: a ele o filsofo dedicou trsobras A Perseverana do Sb io, Da Tra nqilidade da A lm a, O L az er para convert-lo do epicurismo

    ao estoicismo) lhe apresente algumas perguntas. Na verdade, Sneca no responde exatamente s perguntase dvidas do amigo, mas de modo geral estas pginas se colocam entre as mais brilhantes e vivazes do escritor romano.'2 Prensas com manivelas (pre la) para conse rvar as pregas.3 Conforme o bem conhecido costume rom ano: vomitar para comer aind a. . .

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    8. E, quando estou bem acostumado a essa maneira de viver, eis que me deixo fascinar pelapompa de algum paedagog ium, 4 pelo espetculo de escravos mais cuidadosamente vestidos eguarnecidos de ouro que para um desfile pblico, e de um batalho de criados resplandecentes.Igualmente me fascina um a ca sa ond e tudo, at o solo que se pisa, precioso, onde a riqueza to

    prdiga nos me nores recanto s, que mesmo os tetos reluzem, e onde um a mu ltid o de co rte sos seoprime ao redor das fortunas que se desperdiam. E que dizer daquelas guas lmpidas e transparentes, que correm ao redor das salas de festa; e das prprias festas dignas de sua deco rao?

    9. Posso dizer que o luxo, ao sair de uma longa e ingrata temperan a, me envolve de repentecom seu brilho e me rodeia com seu tumulto, e sinto meus o lhares vacilarem: eu o suporto menosfacilmente vista do que no pensam ento; e retorno de l no corrom pido mas desenco rajado: nomais sustento a cabe a alta no meio de meus pobres m veis, sinto pungir-me um a dor secreta eme ponho a duvidar sobre se todas aquelas suntuosidades no valem que as prefiramos. Nada hem tudo isto que mude meus sentimentos, mas no deixa de haver algo suscetvel de abal-los.

    10. Resolvi segnir a varonil energia de nossos preceitos e introduzir-me na vida pblica.Agradam-me as dignidades e os fasces: no certamente que a prpura ou as varas do litor meseduzam, mas para estar na possibilidade de melhor servir meus amigos e meus prximos e todosos meus concidados e finalmente a humanidade inteira: com um ardor de novio, inclino-me aseguir Zeno, Crisipo e Cleanto, 5 nenhum dos quais, para falar a verdade, tomou parte nos negcios pblicos, mas dos quais muitos se tornaram discpulos.

    11. Minha alma, que no est habituada a choques, padece com a menor humilhao; ao sofrer alguma injria (como comum encontrar em toda a existncia humana) ou alguma contrariedade, bagatelas, que me tm tomado mais tempo do que elas valem a pena, volto-me ociosidade

    e, como os animais, por m ais cansados que estejam, acelero o passo ao retorn ar ao lar.12. Decido, ento, encerrar-me em casa: que ningum me roube um dia, pois jamais ele me

    indenizaria de uma tal perda; que minha alma no se incline a no ser para si mesma, que nosonhe a no ser consigo; que no se ocupe de nada que a d istraia, de nada que a submeta ao julgamento de outrem. Apreciemos uma tranq ilidade que seja estranha a todas as preocupaes pblicas ou particulares.

    13. Mas, desde que uma nobre leitura me exaltou o esprito e que grandes exemplos me estimularam, no peo mais nada que saltar no forum para emprestar a um o apoio de minha palavra, a outro o de uma atividade que poder no servir de nada, mas que se esforar, ao menos,

    po r ser til pa ra ab ater em pleno forum o orgu lho de alg uns au dacio sos, que o sucesso tom ainsolentes.

    14. Em literatura, por Hrcules, estou bem advertido de que no se deve ter em vista senoas idias e no se deve falar a no ser para exprimi-las: preciso subordinar a forma ao pensamento, de maneira que este, qualquer caminho que ele tome, veja as palavras seguirem sem esforo. Para que serve compor obras eternas? Por que querer que a posteridade pronuncie teu nome?

    Tu nasceste para morrer: existe menos pretenso em se fazer ocultar em silncio. 6 Escreve, pois,para oc up ar teu tem po, escreve pa ra ter proveito e n o pa ra tua glo rif ica o, num estilo desprovido de brilho: intil esforar-se mais que de ordinrio, quando se trabalha para viver.

    15. Sim, mas desde que meu esprito se eleva para concepes um pouco generosas, eis queele apura seu estilo e aspira dar forma a m esma elevao que ao sentimento, e minha linguagemtenta igualar a nobreza de meu pensamento. Esquec endo, ento, meus princpios e os conselhos deum gosto mais sbrio, lano-me numa sublimidade de estilo e no sou mais eu que falo pelaminha boca.

    16. Para abreviar esta enumerao, eu torno a encontrar sempre em mim esta fraqueza deuma alma cheia de boas intenes, e temo cair nela ou, o que seria mais angustioso, ficar perpetuamente suspenso beira deste abismo; e me pergunto se meu caso no seria por acaso maisgrave do que ele me parece: pois temos os olhos indulgentes quando se trata de nossa pessoa e oamor-prprio obscurece sempre n ossos julgamentos.

    17. Creio que h muitos homens que poderiam ter-se elevado sabedoria se no se tivessemjulga do filhos da fortu na , se no tivessem fingido ignorar alg um as de sua s imperfeies e notivessem tido os olhos fechados diante dos outros; pois no se deve imaginar que nossa prpria

    4 Escola para as pajens, nas casas dos ricos romanos.5 Filsofos gregos: Zeno (325-246 a.C.) fundou a doutrin a do estoicismo, que foi continu ada por seu disc

    pulo Cleanto (331 -233 a.C .) e sis tem ati zada po r C ris ipo (27 8-204 a.C.).6 Ao p da letra: Em se fazer sepultar com funerais sem fausto.

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    adulao nos seja menos funesta que a de outrem. Quem ousa dizer a si mesmo a verdade? Qual o homem que, no meio de uma multido de cortesos que o adulam, no exagera ainda mais aslisonjas que lhe dirigem?

    18. Assim, pois, eu te suplico, se conhec es um remdio capaz de deter as indecises que meagitam, no me julgues indigno de te dever a tranqilidade. Sei que e sta inconstncia da a lma notem nada de muito perigoso e que ela no acarreta nenhuma perturbao profunda; e para empre

    gar uma comp arao que te faa compreender do que me queixo: a tempestade no mais me agita,mas no sinto menos enjo. Liberta-me, pois, deste mal e vem em auxlio de um desventurado queainda sofre vista da terra.

    S e n e c a a S e r e n o

    II 1. Eis que faz muito tempo, por Hrcules, que eu me pergunto a mim mesmo semnada dizer, Sereno, com o que pode ria co mp arar uma semelhante disposio de esprito; e o queme parecia assemelhar-lhe mais o estado daquelas pessoas que convalescem de uma longa egrave enfermidade, e sentem ainda de tempos em tempos alguns calafrios e leves indisposies; eque, uma vez livres dos ltimos traos de seu mal, continuam a se inquietar com perturbaesimaginrias, a se fazer, ainda que restabelecidas, tomar o pulso pelo mdico e consideram comofebre a menor impresso de calor. Sua sade, Sereno, no deixa nada mais a desejar, mas aquelas pessoas no esto habituadas novamente sade: assim, ainda se v estremecer e agitar-se a

    superfcie de um mar calmo, qua ndo a tempestade ac abou de se aplacar.2. Assim tambm os procedimentos enrgicos nos quais encontramos auxlio anteriormenteno so mais prprios: tu no precisas mais nem lutar contra ti nem te censurar nem te atormentar. Estamos na etapa final: tem f em ti mesmo e convence-te de que segues o bom caminho, semte deixares desviar pelas inmeras pegad as dos viajantes extraviados direita ou esquerda e dosquais alguns se desgarram nas proximidades da estrada.

    3. O objeto de tuas aspiraes , alis, uma grande e nobre coisa, e bem prxima de ser divina, pois que a ausncia da inquietao. Os gregos chamam este equilbrio da alma de euthy-mia" e existe sobre este assunto uma muito bela obra de Demcrito. Eu o chamo tranqilidade,pois int il ped ir pa lavras em prestadas par a nosso voca bu lrio e im ita r a form a desta s mesmas: a idia que se deve exprimir, por meio de um termo que tenha a significao da palavra grega,sem no entanto reproduzir a forma.

    4. Vamos, pois, procurar como possvel alma caminhar numa conduta sempre igual efirme, sorrindo para si mesma e comprazendo-se com seu prprio espetculo e prolongandoindefinidamente esta agradvel sensao, sem se afas tar jamais de sua calm a, sem se exaltar, nemse deprimir. Isto ser tranqilidade. Procuremos, de um modo geral, como se pode alcan-la: tu

    tomars, como entenderes, tua pa rte do remdio universal.5. Mas ponhamos desde logo o mal em evidncia, em toda a sua diversidade: cada qual nelereconhecer o que lhe diz respeito pessoalmente. Ao mesmo tempo, dar-te-s conta de tudo quanto tens menos a sofrer deste descontentamento de ti, do que aqueles que, estando ligados por umapro fisso de f faus tos a e orna nd o com um nome pomposo a misria que os con some , teimam nopapel q ue esc olh eram , menos po r co nv ico que por qu esto de honra.

    6. Para todos os doentes o caso o mesmo: tanto tratando-se daqueles que se atormentampor uma incons tnc ia de humor , seus desgostos , sua perptua versat ilidade e sem pre am amsomente aquilo que abandonaram, como aqueles que s sabem suspirar e bocejar. Acrescenta-lhesaqueles que se viram e reviram como as pessoas que no conseguem dormir, e experimentamsucessivamente todas as posies at que a fadiga as faa encontrar o repouso: depois de termodificado cem vezes o plano de sua existncia, eles acabam por ficar na posio onde os surpreende n o a impaci nc ia da va ria o ma s a velhice, cu ja ind ol nc ia rejeita as inovaes . Ajunta, ainda, aqueles que no mudam nunca, no por obstinao, mas por preguia, e que vivem nocomo desejam, mas como sempre viveram.

    7. H, enfim, inmeras variedades do mal, mas todas conduzem ao mesmo resultado: o

    descontentamento de si mesmo. Mal-estar que tem por origem uma falta de equilbrio da alma edas aspiraes tmidas ou infelizes, que no se atrevem a tanto quanto desejam, ou que se tentaem vo realizar e pelas quais nos cansamos de esperar. uma inconstncia, uma agitao perptua, inevitvel, que nasce dos caracteres irresolutos. Eles procuram por todos os meios atingir oobjeto de seus votos: preparam-se e constrangem-se a prticas indignas e penosas. E, quando seu

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    esforo no recompensado, sofrem no de ter querido o mal, mas de o ter querido sem sucesso.8. Desde ento, ei-los presos, ao mesmo tempo, do arrependimento de sua conduta passada

    e do temor de nela recair, e pouco a pouco se entregam agitao estril de uma alma que noencontra para suas dificuldades nenhuma sada, porque ela no capaz nem de mandar nem deobedecer s suas paixes: entregam-se aflio de uma vida que no chega a ter expanso, e,enfim, a esta indiferena de uma alma paralisada no meio da runa de seus desejos.

    9. Tudo isto se agrava quando, superada uma to odiosa angstia, nos refugiamos no cio enos estudos solitrios, nos quais no se saber resignar uma alma apaixonada da vida pblica, e

    pac iente de ativ ida de, do tada de um a necessidade na tu ra l de mo vim ento e que no encontr a em simesma quase nenhum consolo. De sorte que, uma vez atrados pelas distraes que as pessoasatarefadas devem mesmo s suas ocupaes, no mais suportamos nossa casa, nosso isolamentoe as paredes de nosso quarto; e nos vemos com am argura abando nados a ns mesmos.

    10. Da este aborrecimento, este desgosto de si, este redemoinho de uma alma que no se fixaem nada, esta sombria impacincia que nos causa nossa prpria inrcia, principalmente quandocoramos ao confessar as razes, e o respeito humano recalca em ns nossa angstia: estreitamente encerradas numa priso sem sada, nossas paixes a se asfixiam. Da a melancolia, a languidez e as mil hesitaes de uma alma indecisa, que a semi-realizao de suas esperanas prolonga na ansiedade e seu malogro na desolao; da esta disposio para amaldioar seu prpriorepouso, para lamentar-se por no ter nada a fazer e para invejar furiosamente todos os sucessosdo prximo (pois nada alimenta a inveja como a preguia desgraada, e se desejaria ver todo omundo m alograr, porque no se soube obter xito).

    11. Depois deste despeito pelos sucessos dos outros e deste desespero de no ser bem sucedi

    do, comea o homem a se irritar contra a sorte, a se queixar do sculo, a se recolher cada vez maisem seu canto e a se abriga sua dor no desnimo e no aborrecimento. A alma h umana , com efeito, por instinto ativa e inclinada ao movimento. Toda ocasio para se despertar e para se afastarde si lhe agradvel, m ais particularmente entre as natureza s deterioradas, que pretendem a coliso das ocupaes. Certas lceras provocam a mo que as irritar e se fazem raspar com prazer:o sarnento deseja o que irrita sua sarna. Pode-se dizer o mesmo destas almas, em que as paixes

    brotam como as lc eras malignas e que consideram um praz er ato rm en tar -se e sofrer.12. No existem igualmente prazeres corporais que se refbram com um a sensao dolorosa,

    como quando uma pessoa se vira sobre o lado que ainda no est fatigado e se agita sem cessarprocurando um a pos i o me lhor? Seme lhante a Aq uiles, de Hom ero, 7 deitando-se or a de bruosora de costas e experimentando sucessivamente todas .as posies possveis. E no isso o naturalda doena, nada suportar por muito tempo e tomar a mudana por um remdio?

    13. Da aquelas viagens que se empreendem sem nenhum intuito, aquelas voltas a esmo aolongo das costas, e esta inconstncia sempre inimiga da situao presente, que alternativamenteexperimenta o mar e a terra: Depressa, vamos a Calbria. Logo se est cansado das douras da

    civilizao. Visitemos as regies selvagens, exploremos o Brtio (Calbria) e as florestas daLucnia. Todavia, nestas solides, suspira-se por qualquer coisa que d descanso aos olhos fatigados pelo rude aspecto de tantos lugares ridos. A caminho de Tarento, com seu porto e seuinverno to doce. e para esta opulenta regio que seria capaz de sustentar sua populao deoutrora!8 Mas no, retornemos a Roma: faz muito tempo que meus ouvidos esto privados dosaplausos e do barulho do circo e tenho desejo de agora ver correr sangue hum ano.

    14. Assim como as viagens se sucedem, um espetculo substitui o outro, e como diz Lucr-cio: Assim cada um foge sempre de si mesmo.9 Mas para que fugir se no nos podemos evitar?Seguimo-nos sempre, sem nos desem baraarm os desta intolervel companhia.

    15. Assim, convenamo-nos bem de que o mal do qual sofremos no vem dos lugares, masde ns mesmos, que no temos fora para nada suportar: trabalho, prazer, ns mesmos; qualquercoisa do mundo nos parece u ma carga. Isto conduziu muitas pessoas ao suicdio: porque suas perptuas varia es as faz iam da r voltas, indefinidam ente, no mesmo crcu lo, e elas consid eravamimpossvel toda novidade. Assim tom aram desgosto pela vida e pelo mundo e sentiram aumen tarem si o clamor furioso dos coraes: Mas como, sempre a mesma coisa?

    7 Homero,Ilada(XXIV): Aquiles ficou inconsolvel pela morte do amigo Ptroclo.8 Fa mos a cidade da Lu cnia. T arento foi floreseentssima colnia grega; mas no tempo de Sneca estavameio deserta.9 Lucrcio,Da Na turez a(III. 1066); na verdade, Sneca acrescentou no verso de Lucrcio o advrbio sem-

    per ( = sempre).

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    O R e m e d i o . D o u t r i n a d e A t e n o d o r o

    III 1. Q ueres saber o que aconselho contra esta melancolia? O melhor seria, na opiniode Atenodoro,10 obrigar-se atividade, tomando parte nos negcios pblicos e procurando para

    si obrigaes sociais. Com efeito, vem-se homens que passam seus dias a expor o corpo aodo sol, a excit-lo e a cuid-lo: os atletas no podem fazer nada de mais til do que exercitardesde manh at a noite seu vigor fsico e seus msculos, aos quais consagram sua existncia. Damesma maneira, para ns, que preparamos nossas almas para as lutas da vida civil, o mais beloemprego que podemos fazer de nosso tempo consagr-lo inteiramente tarefa que escolhemos;

    pois, desde que um a pessoa tem vonta de de se to rn ar ti l a seus conc ida d os e human idade, omeio de nisto se exercitar e aperfeioar ao mesmo tempo lanar-se imediatamente em plena aoe administrar segundo suas aptides os interesses pblicos e particulares.

    2. Mas, acrescenta ele, como no louco combate das ambies, no meio de to maus espritos que caluniam nossas melhores intenes, a retido no est nada segura, pois dever encontrar mais dissabores que satisfaes, nosso dever renunciar ao forum e vida pblica. Mas umaalma elevada encontra mesmo na vida particular abundantes ocasies para desenvolver seu zelo,e se a fria do leo e dos outros animais diminui qu ando so colocados na jaula, no da mesmamaneira com o ardor dos homens, cujas grandes aes se tornam maiores quando realizadas emsegredo.

    3. Ser necessrio, todavia, ao se esconder uma pessoa, em qualquer lugar onde se abrigueseu cio, procurar tornar-se til aos indivduos e sociedade, pela sua inteligncia, sua palavra eseus conselhos. Pois no se unicamente til Re pblica lanando candida tos, defendendo acusados, opinando sobre a guerra e a paz; exortar a juventude e, num tempo to pobre de mestresde moral, inspirar aos coraes a virtude, empolgar, deter os extraviados que se lanam aodinheiro e ao vcio e, na falta de melhor, retardar ao menos sua queda: trabalhar, no domnioparticular, pelo bem pblico.

    4. Por que dizer que o pretor, que julga entre estrangeiros e cidados, ou que o pretor urbano, que repete a quantos aparecem a frmula que lhe dita um assistente, fazem obra mais importante que o filsofo, o qual ensina o que justia e o que o dever, o que so a pacincia, a coragem, o desprezo pela morte, o conhecimento dos deuses e, finalmente, como uma boa conscincia um bem que se adquire facilmente?

    5. Por conseguinte, se consagras ao estudo um temp o que roubas vida social, tu no podesser acusado nem de abandonar nem de faltar ao teu dever: o bom soldado no est necessariamente na linha de frente, nem defende necessariamente o flanco direito ou o flanco esquerdo: ele

    pode tam bm vig iar as es tra das, posto que por ser me nos perigoso no c on tud o suprfluo; fazersentinela durante a noite e velar sobre o arsenal: todas funes que no tm nada de mortfero eque todavia fazem parte das obrigaes militares.

    6. Ao te isolares no estudo, tu te livrars de todos os desgostos da vida, no mais desejarsa noite por aborrecimento do dia e no mais sers uma carga para ti mesmo, nem intil aosoutros. Fa rs inmeros amigos e todo homem de bem vir espontaneamente ao teu encontro: pois

    jam ais, po r ma is obscura que seja , a vir tud e vive igno rada ; exis tem sinais que rev elam sua pre sen a, e todo aquele que for digno sempre a descobrir.

    7. Se, com efeito, renunciarmos a toda relao com o prximo e nos afastarmos do gnerohumano para viver unicamente concentrados em ns mesmos, este isolamento, esta indiferenaabsoluta, tero por resultado a mais completa ociosidade: comearemos a construir de um lado ea demolir do outro; a repelir o mar, a desviar as guas lutando contra as dificuldades do terrenoe a desperdiar o tempo, que a naturez a nos d p ara aproveitar.

    8. Assim procedendo, somos ora avarentos, ora generosos: uns, ao gastar, fazem um clculo minucioso de seu emprego e outros nada guardam. Assim, o cmulo que um ancio carregado de anos seja incapaz de provar o quanto tem vivido, a no ser pela invocao da sua prpriaidade.

    10 difcil afirmar se o Atenodoro aqui lembrado o mestre de Au gusto e discpulo do estico grego Posid-nio, ou um outro Atenodoro, igualmente estico, amigo de Cato e cognominado Kordylion (corcunda).

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    D o u t r i n a p e s s o a l d e S e n e c a

    IV 1. Por mim, muito querido Sereno, sou de opinio que Atenod oro se inclina e se retira rapidamente demais diante das circunstncias. No contesto que no haja casos onde se deva

    recuar; mas lentamente, passo a passo, salvando as bandeiras e a honra militar. Pois obtm-se doinimigo muito mais respeito e garantias quando nos rendemos com as armas. 2. Aqui est, segundo minha opinio, o que deve fazer a virtude e aquele que deseja a virtude: se o destino triunfa elhe tira os meios de agir, que ele no se apresse em virar as costas e fugir, largando suas armase tratando de procurar um abrigo, como se existisse um lugar no mundo onde se pudesse escapardo destino: mas que ele imponha somente maior reserva sua atividade e procure com perspiccia algum emprego que lhe permita tornar-se outra vez til cidade.

    3. A carreira militar lhe proibida? Que ele pretenda as magistraturas: est ele reduzido vida particular? Que advogue. O silncio lhe imposto? Que ele d a seus concidados o apoiomudo de sua presena. Mesmo o acesso ao forum lhe perigoso? Que nas residncias particulares, nos espetculos, mesa, ele se mostre companheiro honesto, amigo fiel, conviva moderado.Ele no pode mais cum prir com seus deveres de cidado? Restam-lhe os deveres de homem.

    4. Da o princpio do qual ns, esticos, estamos orgulhosos: o de no nos encerrarmos nasmuralhas de uma cidade s, mas de entrarmos em contato com o mundo inteiro e de professarmosque nossa ptria o universo, a fim de oferecer virtude o mais amplo campo de ao. Excluem-te do tribunal, expulsam-te da tribuna e dos comcios? Volta-te e olha: quanta s extenses imensas,

    quantas naes se abrem para ti! Por mais vasta que seja a parte do mundo que te vedada, aquela que te permitida ser sempre maior.

    5. Mas repara que nem todo mal vem de ti. Pois no queres tomar parte nos negcios pblicos, a no ser como cnsul prtane, cery x ou sufet. 11 No queres tu igualmente fazer a guerracomo general ou como tribuno? Mesmo se no figuras na primeira linha e que a sorte te rebaixaentre os tririos,12 combate de l, por meio de tua voz, de tuas exortaes, de teu exemplo e detua moral: tendo as mos cortadas, ainda podemos servir nosso partido, continuando firmes nonosso posto e animando os outros com nossos gritos. 6. Adota uma ttica anloga: se a sorte teafasta das p rimeiras classes da Re pblica, resiste e ajuda os outros com teus brados ; se te apertama garganta, resiste ainda e auxilia-os por meio de teu silncio. Jamais um bom cidado perde seutrabalho: este ouvido e visto. Sua fisionomia, seus gestos, sua muda obstinao e seu modo deandar, tudo auxilia.

    7. H na medicina substncias que, sem que se tenha necessidade de prov-las ou de toc-las,agem pelo aroma; assim a virtude: sua benfazeja influncia se exerce mesmo a distncia e semque ela seja visvel. Que ela d expanso e seja livre em seus impulsos, ou que ela tenha dificul

    dade em se desfraldar e seja reduzida a recolher suas velas; que ela seja ociosa, muda, estreitamente aprisionada, ou que se abra com facilidade, em toda s as situaes possveis ela til. Acreditas tu que o repouso bem empregado no um exemplo proveitoso? 8. Assim, a melhor regra combinar o repouso com a ao, todas as vezes que a atividade pura nos for perturbada porimpedimentos acidentais ou por condies polticas: pois jamais todos os caminhos nos serointerditados, de modo que no nos reste nenhum meio de pratica r uma ao virtuosa.

    V 1. Onde encon trar uma cidade mais miservel que Atenas, na poca em que era martirizada pelos trinta tiranos? Mil e trezentos cidados, elite da populao, pereceram sob seus gol

    pes e sua crue lda de, que, longe de saciar , se exasperava ca da vez ma is. Num a cid ade que possu ao Arepago, o mais justo dos tribunais, que ao lado de seu Senado possua entre o povo um outroSenado, via-se cada dia reunir-se um sombrio grupo de carrascos e uma sinistra cria estreita demais para tantos tiranos. Que tranqilidade podia conhecer esta cidade que possua tantos tiranos, at para servir de guarda-costas?13 No se podia mesmo conceber a menor esperana deliberdade e nenhum remdio parecia possvel contra uma tal quantidade de desgraas: onde estadesafortunada cidade encontrou tantos Harmdios? 14

    11 Cnsul prtane: supremo magistrado em algumas cidades gregas; nada se sabe acerca do ceryx ;sufet era o supremo magistrado de Cartago.12 Soldados que constituam a terceira linha de um exrcito romano disposto em ordem de batalha.13 Depois da derro ta na guerra co ntra E sparta. A tenas teve um governo de trinta tirano s (404 a.C.), quecometeram abusos pelo que, um ano depois, foram expulsos e restabelecida a democracia. Ao que parece,conforme a frase irnica de Sneca, cada tirano estava cercado por outros tiranos ou satlites.

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    2. Scrates, entretanto, ia e vinha, tranqilizav a os senadores desconsolad os, pregava a coragem queles que perdim a esperana na Repb lica; aos ricos, cuja opulncia os fazia estremecer,censurava este arrependimento tardio de sua funesta cobia; a quem o queria imitar, oferecia ogrande exemplo de um cidado que marcha livre, com trinta dspotas ao seu redor. 3. No obstante, eis que Atenas, ela mesm a, fez morrer este homem num a priso : ele desafiou impunementetodo um bando de tiranos, e um governo livre no pde tolerar sua liberdade. V, pois, que mesmonuma Repblica oprimida o honesto encontra ocasio para mostrar quem ele , e que numa Rep

    blica prspera e feliz reinam ao mesmo tem po a cru eldade , a inv eja e mil ou tro s vciosdissimulados.

    4. Por conseguinte, conforme a situao da Repblica e o que a fortuna nos permitir, lanar-nos-emos a todo pano ou nos recolheremos em ns mesmos; mas, em todos os casos, ns nosmoveremos sem nos deixarmos paralisa r pelo temo r. Aquele que assim proceder, esse ser verdadeiramente homem: porque, sentindo-se envolvido pelos perigos e no o uvindo ao seu redor seno0 fragor das armas e das prises, evitar a destruio de sua virtude nos obstculos, mas tambmno a esconder: pois enterrar-se no conservar-se.

    5. Se no me engano, Crio Dentato dizia que ele preferia estar morto a viver morto: o piordos males no suprimir-se do nmero dos vivos, antes de morrer? Mas faamos assim: se

    pertencemos a um tem po no qu al a vid a po lt ica difci l de ser prat icad a, tornem os mais am plaa parte do cio e do estudo: como o marinheiro nas travessias perigosas, multipliquemos as escalas; e, sem esperar que os afazeres nos abando nem , desprendamo -nos deles espontaneam ente .

    VI 1. A este respeito devemos consid erar primeiramente a ns mesmos, depois as tarefasque queremos empreender, depois os homens para os quais ou com os quais teremos de trabalhar.2. Antes de tudo, indispensvel avaliar-se uma pessoa a si mesma, pois na maioria das vezesexageramos nossas capacidades. Um cair por ter presumido demais de sua eloqncia; outroquer tirar de seu patrim nio mais do que este pode render; um terceiro esgota seu corpo dbil emlabores extenuantes. 3. Alguns tm uma timidez incom patvel com a vida de negcios, que exigeuma fronte intrpida; outros tm uma rigidez que no lograria xito na corte; outros no sabemdominar sua clera e explodem com palavras imprudentes ao menor mau humor; outros, enfim,so incapazes de reprimir sua veia e deixam-se levar contra sua vontade a prazeres perigosos:

    para tod os estes, o rep ouso prefervel atividade . Um ca r ter ardente e in dcil deve evitar tud oque possa instig-lo a um a independncia perigosa.

    5. Devemos examinar se nossas disposies naturais nos tomam mais aptos ao ou aostrabalhos sedentrios e contemplao pura; e inclinar-nos do lado para o qual nosso gnio nosconduz. Iscrates arrancou com viva fora foro do forum, quando se convenceu de que este eramais indicado para escrever histria.15 Jamais um talento que se fora produz o que se esperava;e forar a natureza sempre intil.

    6. Em seguida, devemos avaliar nossas prp rias empresas e colocar na balan a nossas forase nossos projetos. Com efeito, devemos sentir-nos sempre superiores tarefa que realizamos: umfardo desproporcionado s pode esmagar quem o carrega. De outro lado, h ocupaes que, semterem muita importncia, esto cheias de mil complicaes: deve-se evit-las por causa dos apuros sem fim, aos quais elas daro origem. No nos aventuremos jamais a um negcio em que

    poder am os co rre r o risco de fic ar sem sada: ace itemos aqueles no s qu ais es tamos seg uros, ouque pelo menos temos esperanas de terminar: deixemos aqueles que se complicam quanto maisse trabalha e que no podem ser interrompid os quan do se quer.

    7. Deve-se finalmente escolher com cuid ado os hom ens: ver se eles merecem que lhes consagremos uma parte de nossa existncia e se so gratos ao sacrifcio de tempo que lhes fazemos;

    pois h os que chega m a co ns id erar os servios que lhes pres tam os como um benefc io par a nsmesmos.

    8. Atenodoro declarava que ele no iria cear mesmo com algum que no lhe devesse nenhuma obrigao. Tu podes crer, quanto menos ele havia de ir, com os que pagam os servios de seusamigos por meio de um jantar e que consideram cada prato de sua mesa como uma nova generosi-

    ' 4 Hpias, filho de Pisstrato, reinou em Atenas com bran dura; m as, depois do assassinato do irmo Hipar-co, tornou-se cruel e foi morto po r Harmd io e Aristogito (514 a.C.).15 A obra de Iscrates, famoso orad or grego (436-338 a.C.), exerceu grande influncia sobre Ccero. Quanto a foro, pouco ou nada se sabe; foi discpulo de Iscrates e escreveu uma vasta obra de histria, que nochegou at ns.

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    dade: como se eles honrassem as pessoas comendo em excesso. Suprime estes testemunhos eespectadores, pois um banquete a portas cerradas no ter mais nenhum prazer para eles.16

    VII 1. Mas nada agrada tanto alma como uma amizade fiel e doce. Que felicidade ade encontrar coraes aos quais se possa sem temor confiar quaisquer segredos; conscincias, quenos temem menos do que a nossa; companheiros, cuja palavra acalma nossas inquietaes, cujosconselhos guiam nossas decises, cuja alegria dissipa nossa tristeza e cuja vista seja para ns um

    pr azer ! Natu ralm en te, escolh-los-emos tam bm isento s de paixes, o quan to for poss vel , pois oo vcio contagioso: ele se apodera de ns desde que nos aproximamos e seu contato funesto.2. D urante um a epidemia deve-se evitar demora r junto de pessoas j contaminad as e que

    so vtimas do flagelo; pois contrairemos seu mal e s seu hlito j nos contaminar. Do mesmomodo, quando se tratar de escolher nossos amigos, apliquemo-nos para no nos ligarmos a noser com homens o menos possvel corrompidos: querer propagar o mal colocar indivduos sosem contato com enfermos. Fora disso, no exijo que o prudente seja o nico objeto de tuas simpatias ou de teus primeiros passos: e onde enco ntrarias tu este mortal sem igual, que j procuramosdurante tantos sculos? O melhor o menos mau.

    3. Ape nas serias tu favorecido na tua esc olha, se escolhesses amigo s virtuosos entre os Pla-tes, os Xenofontes e em toda aquela fecunda linhagem dos sucessores de Scrates, ou se pudessester a contribuio do sculo de Cato, que produziu tantas personagens dignas de serem contem

    porneas de um C ato . (Produziu tam bm mu itos malv ados, que tram ar am crim es pio res que osde qualquer outra poca: que uns e outros eram igualmente necessrios para valorizar Cato;so-lhe necessrias pessoas de bem para comparar seu mrito, e ms, para seu valor.) Mas hojeem dia, com to grande penria de pessoas honestas, deve-se ser menos exigente na escolha.

    4. Evitemos, porm, o ma is possvel as naturez as tristes e queixosa s, que no deixam escapar nenhum a ocasio pa ra se lam en tar . Po r ma is fiel, por mais dedicado que possa ser, umcompanheiro de humor inconstante e que se queixa a cada momento inimigo de nossatranqilidade.

    M a u s e f e i t o s d a r i q u e z a

    VIII 1. Passemos ao domnio das riquezas, principal fonte das misrias dos homens:pois, compa rando-se tod os os nosso s ou tro s perigos, pra zeres, doenas, tem ores, desgos tos , sofr imentos e preocupaes de tod a espcie, com os m ales que nascem do dinheiro, ser deste lado quemuito claramente pender a balana.

    2. Figuremo-nos como se suporta mais facilmente no possuir do que perder; e perceberemos que a pobreza tem muito menos tormentos a temer e muito menos riscos a correr. Pois

    um erro pensar que os ricos aceitam mais corajosamente suas penas: que o corpo seja grande oupequeno, as fer idas lhe so igualm ente do lorosas . 3. Bon disse com fineza: No porque se temmais cabelos sobre a cabea que menos desagradvel sentir arranc-los . 17 No diferente nocaso do pobre e do rico, e seu sofrimento o mesmo: o dinheiro se apega to intimamente alma,que no se pode arranc-lo sem dor. E, alis, eu o repito, mais suportvel e mais simples nadaadquirir do que perder alguma coisa: da vem que se v um ar mais alegre nas pessoas que a fortuna jamais visitou do que naque las que ela traiu.

    4. E o que Dig enes 18 compreendeu na sua sublime sabedoria; e disps-se de tal modo quenada lhe pudesse ser tirado. Chama isto pobreza, necessidade ou misria; d a esta confiana noimporta que nome afrontoso: eu-cessarei de julgar Digenes feliz, quando tu me a chares um outrohomem que no tenha nada para perder. Ou eu me engano, ou ser rei viver cercado de pessoasrapaces, de trapaceiros, de bandidos, de ladres e ser o nico no mundo que est ao abrigo de seuscrimes. 5. Se se duvida da felicidade de Digenes, que se duvide tambm da situao dos deusesimortais, e que se pergunte se eles no so infelizes por no possurem nem propriedades, nem jardins, nem terras valorizadas pelos braos de mercenrios, nem capitais colocados com grandes

    16 Aqui deve haver uma vasta lacu na no texto.1 7 Bon foi poeta satrico e filsofo cnico grego (sc. III a.C.). A trad uo da frase, ao p da letra: No menos penoso para o cabeludo do que para um calvo sentir arrancarem-lhe os cabelos.18 O cnico Digenes, contemporneo de Alexandre M agno, pregou a volta do homem ao estado denatureza.

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    juros na praa do comrcio. No uma ve rgon ha es tar fas cinado pela riq ueza? Vam os ! Volta- tepara o cu : a ve rs deu ses de spojados , da nd o tudo ou na da cons erv an do par a si. , pois, pobre ,no teu parecer, ou semelhante aos deuses imortais o homem que se despoja de todos os bens quedependem da fortuna?

    6. Ch amas tu feliz a Dem trio, o alforriado de Po m peu ,19 que teve a aud cia de eclipsar aopulncia de seu patro? Cada dia era-lhe apresentada a lista de seus escravos, como a um general o efetivo de suas tropas: ele, que devia considerar-se rico com dois subalternos20 e uma cela

    pouco es pa osa ! 7. Mas Digenes n o tinh a seno um escra vo que se evadiu: indicaram -lh e ondeele estava, mas o filsofo no se dignou repreend-lo: vergonhoso, disse ele, que Mans

    possa pa ssar sem Digenes e no Digenes sem Mans . Par a mim como se ele tivesse dito:Fortuna, vai ver outro lugar: Digenes no possui mais nada sobre o que tu ainda tenhas direitos.Meu escravo fugiu? Mas no, sou eu que estou livre.

    8. Um num eroso pessoal exige que o habilitem, que o alimentem; deve-se prover ao apetitede tantos animais devoradores, preciso comprar-lhes roupas, preciso tirar partido das criaturasque no obedecem a no ser com lgrimas e maldies. Quanto mais feliz aquele que no devenada a ningum, a no ser a algum p ara quem fcil recusar: isto , a si mesmo.

    9. Mas, visto que no temos um a semelhante energia de alma, limitemos ao menos a extenso de nossos bens, a fim de estarmos menos expostos s injrias da fortuna. Os homens de talhemedocre, que podem abaixar-se atrs de seus escudos, saem mais facilmente do perigo do queaqueles que os excedem e cuja vigorosa corpulncia se oferece de todos os lados aos golpes. Parao dinheiro, a verdadeira medida consiste em no cair na pobreza, mas aproximar-se dela o maispossvel.

    IX 1. Logo, esta limitao nos ser puram ente agradvel, se tom armos previamente o

    gosto pela economia, sem o qual as maiores fortunas so ainda insuficientes e mesmo as maismodestas se prestaro ao desperdcio; tanto mais que o remdio est ao nosso alcance e que apob reza me sma, sec un dada po r gosto s simples, pod e-se tran sformar em riq ueza. 2. Ha bituemo-nos a ter o luxo distncia e a fazer uso da utilidade dos objetos e no de sua seduo exterior.Comamos para matar a fome, bebamos para apagar a sede e reduzamos ao necessrio a satisfao de nossos desejos. Aprendamos a andar com nossas pernas, a regular nosso vesturio e nossaalimentao, no sobre a moda do dia, mas sobre o exemplo dos antigos. Aprendamos a cultivarem ns a sobriedade e a moderar nosso amor ao fausto; a reprimir nossa vaidade, a dominar nossas cleras, a considerar a pobreza com um olhar calmo, a considerar a frugalidade, apesar detodos aqueles que acharo aviltante satisfazer to modestamente a seus desejos naturais; a no ternas mos, por assim dizer, as ambies desenfreadas de uma alma sempre inclinada para o diaseguinte e a esperar a riqueza menos da sorte do que de ns mesmos.

    3. impossvel ao homem preservar-se suficientemente contra tod os os capricho s e todas asinjustias do destino, para no sofrer freqentes tormentas, quando se est com as armadas nomar. Deve-se reduzir o espao que se ocupa, se se quer que as setas da fortuna caiam no vcuo:

    da resulta que o exlio e a desgraa so por vezes de um efeito salutar e que as desgraas medocres curam por vezes outras mais graves. Quando uma alma. surda aos bons conselhos, se esquivados tratamentos mais suaves, no querr seu bem submet-la pobreza, ao descrdito pblicoe proscrio? Um mal combate o outro. Tomemos, pois, o hbito de nos abstermos de espectadores quando ceamos, de no nos sujeitarmos a no ser a um pequeno nmero de escravos, de notermos roupas a no ser para o uso que as criou e de nos alojarmos modestamente. No s nascorridas e nos torneios do circo, tambm na aren a da vida qu e preciso saber curvar-se.

    4. As despesas de ordem literria, as m ais justa s de todas , no so estas mesmas razoveis,a no ser que sejam moderadas. Para que servem inmeros livros e bibliotecas, se o proprietrioencontra apenas o tempo em sua vida para ler as etiquetas? Uma profuso de leituras sobrecarrega o esprito, mas no o ilustra; e melhor seria aplicar-se muito a um pequeno nmero de autores do que vagar no meio de muitos. 5. Quare nta mil volumes foram queim ados em Ale xan dria.21Quantos outros exaltam este esplndido monumento da magnificncia real, como Tito Lvio, queo chama a obra-prima do gosto e da solicitude dos reis. Eu no vejo l nem gosto nem solicitude,mas orgia da literatura; e quando digo da literatura minto, pois o cuidado pelas letras l no era

    19 Demtrio ficou famoso pela sua riqueza, prodigalidade e arrog ncia (Plutarco, Po mp eu ,XL, 1-3).20 Subalternos (vicarii): escravos de categoria inferior, subordinados a outro escravo.21 Em 49 a.C. um incndio destruiu grande parte da biblioteca de Alexandria, cria da pelos ptolomeus,descendentes de um general de Alexandre Magno.

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    cultivado: aquelas belas colees s eram constitudas para amostra. Quantas pessoas desprovidas da mais elementar cultura tm tambm livros, que no so de modo algum instrumentos deestudo, mas que adornam suas salas de refeies! Compremos os livros dos quais temos necessidade, no os compremos para ostentao.

    6. mais moral, dizes tu, assim gastar seu dinheiro, em lugar de o desperdiar em vasos deCorinto e em quadros. H vcio desde que haja excesso. Por que esta indulgncia para um homemque coleciona armrios de cidreira22 e de marfim, que compra obras completas de autores desco

    nhecidos ou medocres, para bocejar no meio de tantos milhares de volumes, no aproveitando deseus livros a no ser as encadernaes e os ttulos? 7. Eis como vers em casa dos mais insignespreguiosos toda a coleo de orad ores e de histo riadores e esta ntes par a livr os co nstru das at oteto: pois hoje em dia, ao lado dos banhos nas termas, a biblioteca tornou-se um ornamento obrigatrio de toda casa que se preza. Eu perdoaria perfeitamente esta mania, se ela nascesse de umexcesso de amor ao trabalho; mas estas obras sagradas, dos mais raros gnios da humanidade,com as esttuas de seus autores, que assinalam sua classificao, so adquiridas pa ra serem vistase para decorarem as paredes.

    C o m o s e p o r t a r n a i n f e l i c i d a d e

    X 1. Toda via, eis que tombaste em qualquer situao difcil, sem que hajas feito nadapa ra isso: a adversidade pbli ca ou par tic ular passo u-te um lao pelo pesco o, l ao que no podesmais nem desapertar nem arrebentar. Lembra-te de que os desventurados que so peados23 come

    am por se revoltar contra os pesos e as cadeias de suas pernas; e que, desde que eles comeama se resignar, em lugar de se revoltar, a necessidade lhes ensina a suportar sua sorte com corageme o hbito torna-a suportvel. Encontrars em qualquer situao divertimentos, descansos e pra-zeres, se te esforares para julgar teus males leves, antes de consider-los intolerveis. 2. O melhorttulo da natureza ao nosso reconhecimento que, conhecendo todos os sofrimentos para os quaisestvamos destinados na vida, para abrandar nossos padecimentos ela criou o hbito que nosfamiliariza em pouco tempo com os mais rudes tormentos. Pessoa alguma resistiria, se, ao continuar, a adversidade conservasse a mesm a violncia que tem na prim eira desgraa.

    3. Estamos todos ligados fortun a:2 4 para uns a cadeia de ouro e frouxa, para outros apertada e grosseira; mas que importa? Todos os homens participam do mesmo cativeiro, e aqueles que encadeiam os outros no so menos algemados; pois tu no afirmars, suponho eu, que osferros so menos pesados quando levados no brao esquerdo. As honras prendem este, a riquezaaquele outro; este leva o peso de sua nobreza, aquele o de sua obsc uridade; um curva a cabe a soba tirania de outrem, outro sob a prpria tirania; a este sua permanncia num lugar imposta peloexlio, quele outro pelo sacerdcio. Tod a a v ida uma escravido. 4. preciso, pois, acostumar-

    se sua condio, queixando-se o menos possvel e no deixando esca par nenhum a das vantagensque ela possa oferecer: nenhum destino to insuportvel que uma alma razovel no encontrequalquer coisa para consolo. V-se freqentemente um terreno diminuto prestar-se, graas aotalento do arquiteto, s mais diversas e incrveis aplicaes, e um arranjo hbil torna habitvel omenor canto. Para vencer os obstculos, apela razo: vers abrandar-se o que resistia, alargar-se o que era apertado e os fardos tornarem-se m ais leves sobre os ombros que sabero suport-los.

    5. No descortinemos, de outro lado, um campo vasto demais aos nossos desejos: limitemoso vo aos objetos mais prximos, visto que no podemos pensar em reprimi-los inteiramente.Renunciando ao que impossvel ou difcil demais para realizar, apeguemo-nos ao que, estandomais prximo, anima nossa esperana; mas sem esquecer que todas as coisas so igualmente frvolas e que, se as aparncias diferem, sempre no interior a mesma futilidade. No invejemos assituaes elevadas: pois o que julgamos ser o cume no mais do que a beira de um abismo. 6.Em compensao, aqueles que a sorte prfida colocou sobre estes perigosos picos diminuiro osriscos que correm, se se despojarem do orgulho natural e reduzirem sua fortuna na medida do

    possvel, e a um nvel ma is mode sto .H, sem dvida, muitos homens que no tm o direito de abandonar o cimo onde esto colo

    22 Madeira precio sa da frica (chamad a tambm tuia), que servia para fab ricar mveis de hixo.23 Escravos que tinham as pernas ligadas por peias.24 De um costume militar tirada esta m etfora: a cu stodia milita ris consistia em ligar o brao direitodo condenado ao brao esquerdo do seu guarda.

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    cados e de onde no podem descer a no ser ao preo de uma queda: hom ens que consideram suamais pesada obrigao, precisamente, o serem obrigados a pesar sobre os outros, sobre os quaisno esto elevados, mas sim amarrados. Que por sua justia, sua doura, sua clemncia e suagenerosa bondade, eles preparem foras para a sorte que os espera e cuja esperana lhes suavizeos perigos da inconstncia. 7. Todavia, nada nos preservar melhor das inquietudes deste gnerodo que fixarmos sempre um limite para nossas ambies, sem esperar que a fortuna nos interrompa, como seu costum e; e suspendermos nosso progresso muito tempo antes do instante fatal.

    Do destino ainda sentiremos a picada de muitos desejos; mas estes sero desejos acanhados, queno nos podero lanar em interminveis aventuras.

    S u p e r i o r i d a d e e d e s p r e n d i m e n t o d o s b i o

    X I 1. aos espritos imperf eitos, medocres e insensato s que convm as considera esque precedem: no ao sbio. O sbio no precisa dar um passo tmido ou vacilante: sua f em simesmo to grande que ele no hesita em se dirigir ao encontro d a fortuna, diante da qual jamaisceder. No h nenhuma razo para tem-la, porquanto no so somente seus escravos, suas

    propriedades , sua situao, ma s seu co rpo me smo, seus olh os , suas mos e tudo o que o prende vida; porque sua pessoa, numa palavra, que conta no nmero dos bens revogveis, visto queele vive com a idia de que seu ser lhe somente emprestado e est pronto para devolv-lo de boavontade, primeira requisio. 2. No que ele se sinta diminudo por saber que no pode dispor

    de si: ao contrrio, ele se conduzir em todas as coisas com o mesmo escrpulo e a mesma prudncia com que um homem consciencioso e leal exerce a guarda de um depsito. 3. E no dia emque ele for convidado a restituir, longe de revoltar-se contra o destino, ele lhe dir: D ou-te graas

    pelos bens que colocaste e deixa ste em meu poder. Sua conserva o tor nou-se ca ra pa ra mim ;mas, como tu ordenas, eu os abandono e os restituo com o corao reconhecido e obediente. Seainda me queres deixar qualquer coisa do que te pertence, eu a guard arei; se decides diversarpente,eis minha prataria, meu dinheiro, minha casa e meus escravos: devolvo, restituo tudo. Que anatureza, que nossa primeira credora, nos reclame sua dvida; a ela tambm diremos: Retomaesta alma, melhor do que ma deste. No procuro nem evasivas nem subterfgios: de bom gradodeponho em tuas mos o que recebi de ti, sem perceber; tom a-o .

    4. Retorna r para o lugar de onde se vem: que h de cruel nisto? Quem n o souber morrerbem ter vivido mal. E pre ciso, pois, comear po r despojar a exist ncia de seu prestg io e porcoloc-la entre as coisas sem valor. Somos hostis aos gladiadores, diz Ccero,2 6 quando eles querem, custe o que custar, obter a vida livre; nossa simpatia granjeada quando se torne evidenteque eles a desprezam. Nossa situao a mesma, pois quantas vezes morremos, vtimas do nossomedo de morre r!

    5. Estes so caprichos que a fortuna se permite: P or que , diz ela, poupar-te, criatu ra dbile trmula? Tu sers trespassada e sers crivada de golpes, justamente porque no sabes oferecero pescoo. E tu, tua vida ser prolongada e ters uma morte mais rpida, porque em lugar de desviares a cabea ou de te cobrires com as mos, esperas o ferro com coragem. 6. Aquele quetemer a morte no far jam ais obra de homem; m as aquele que disser a si mesmo que, desde o instante em que foi concebido, sua sorte foi decidida, governar sua vida em conformidade com estadeciso; e por prmio ter a vantagem, graas a este mesmo vigor da alma, de jamais se deixarsurpreender por qualquer acontecimento que surja. Considerando antecipadamente tudo o que

    pode acontec er , com o o que ir rea lm ente acon tec er , ele am or tece r o choque de tod os os males :pois , pa ra quem est prep arad o e a esp era , a vio lncia de toda s as de sgraa s se ab ra nd a; e s omente acham seus golpes terrveis os que se julgavam em segurana e que no tinham diante de siseno perspe ctivas felizes.

    7. Eis a doena, a escravido, minha casa que desm orona e se incendeia: nada de tudo isto inesperado para mim. Eu sabia no meio de que caos a natureza me condenava a viver. Quantasvezes ouvi na minha vizinhana prorromper a voz das carpideiras; quantas vezes vi passarem

    diante da minha porta os archotes e as tochas que precedem os funerais prematuros!2 6 Freqen-

    2 5 Ccero, Pro M ilone, 92.2 6 Perto do leito fnebre as carpideiras e os parentes entoavam a conclam atio funeb ris. O rito primitivodas tochas e archotes era conservado nos funerais das crianas.

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    temente ressoou ao meu lado o fragor de uma construo que desmoronava; muitas pessoas squais o forum, a cria ou uma conversao acabavam de me reunir, foram arrebatadas durante anoite. De quantas mos, fraternalmente unidas, a morte rompeu de repente o aperto! Por que meadm irar, quando eu me vir, um belo dia, colhido pelos perigos que jam ais cessaram de me rodear?

    8. A grande maio ria dos home ns, ao com ear a navegar, esquece-se da tempestade. Jamaiseu me envergonharia de citar um mau autor, por uma boa intfeno: Publlio Siro, poeta maisvigoroso do que os trgicos e os cmicos, quando renuncia aos gracejos vulgares do mimo e s

    pa lav ras fei tas pa ra o pbli co das ga leria s, no meio de tantos ou tro s verso s cujo tom se eleva nos acima do estilo trgico, mas tambm do cmico, escreveu: Aquilo que pode ferir um podeferir todos os outros. Se nos convencermos profundamente desta mxima e se, ao assistirmos sinmeras desgraas que cada dia caem sobre nosso prximo, pensarmos que elas podiam muitofacilmente cair sobre ns, seremos pessoas armadas muito tempo antes do ataque. No h maistempo para nos fortificarmos, quando o perigo j nos alcana. 9. Eu no imaginava que isto meaconteceria! Jamais se acreditara que isto seria possvel! E por que no? Onde est, pois, ariqueza, que a misria, a fome e a mendicidade no podem alcanar. Onde est a magistratura,cuja pretexta, o basto augu rai e o calado nob re no so acompanh ados de acusaes humilhantes, da crtica do censor, de mil infmias e do supremo desprezo da multido? Onde est a onipotncia, que no ameaada pela destruio e pelo esmagamento das violncias de um senhor oude um carrasco? E um longo intervalo de modo algum necessrio: no espao de uma hora passa-se do trono aos ps do vencedor.

    10. Persuade-te, pois, de que toda situao est sujeita a mudanas e de que tudo o que caisobre os outros pode igualmente cair sobre ti. s rico; por acaso s mais que Pompeu? QuandoCaio Calgula, usando para com este velho parente um novo gnero de hospitalidade, abriu-lhe acasa dos Csares , a fim de fechar a sua, achou-se aquele sem po e sem gua. Ele, que possua nosei quantos rios, tendo nos seus domnios sua nascente e sua foz, mendigava o que vazava dasgoteiras; e morreu de inanio e de sede no palcio de seu parente, enquanto seu herdeiro, que oesfomeava, lhe fazia prep arar exquias p blicas .2 7

    11. Tu exerceste as mais altas funes: foram estas to grandes, to inesperadas, to ilimitadas com o aquelas de Sejano? 28 Pois no dia em qu e o Senado lhe serviu de cortejo o povo o deixouem farrapos. Deste privilegiado, que os deuses e os homens cumularam de todos os favores possveis, no restou na da p ara o dente do algoz.

    12. s rei: no te enviarei a Creso , que entrou na fogueira por ordem de seu vencedor e viuextinguir-se a chama, sobrevivendo assim no somente sua realeza mas tambm sua prpriamorte; nem a Jugurta, que, no mesmo ano em que aterrorizou o povo romano, foi-lhe oferecidoem espetculo. No vimos o rei da frica, Ptolomeu, e o rei da Armnia, Mitridates, detidos pelosguardas de Calgula? Um deles teve de partir para o exlio e o outro preferiu sofrer um exliomenos desleal.29 Na presena deste perptuo vaivm de elevaes e de quedas, se no considerares tudo o que te pode acontecer, como o que dever com efeito acontecer, dars adversidade

    foras contra ti; ao contrrio, desarm-la-s, quando fores tu que a esperares chegar.

    F u g i r a a g i t a a o e s t r i l

    XII 1. Em seguida, a primeira coisa a evitar desperdiar nosso esforo ou em objetosinteis ou de maneira intil: quero dizer, imaginar ambies irrealizveis ou reparar um poucotarde, uma vez satisfeitos nossos desejos, que nos esforamos sem proveito. Em outras palavras,evitemos de um lado os esforos estreis e sem resultado, e de outro lado os resultados desproporcionados ao esforo. Pois quase certo que nosso humor se entristea, seja depois de um insucesso, seja depois de um sucesso do qual nos temos de envergonhar.

    2 7 Quem foi este Pompeu? impossvel identific-lo: talvez um p arente de Calgula, que foi por este deixado morrer.de fome para tirar-lhe a riqueza.28 Ministro e favorito do imperador Tib rio; procurou apoderar-se do trono, mas foi denunciado, preso eestrangulado.29 Creso foi o ltimo rei da Ldia (sc. VI a.C.), vencido por Ciro. Jug urta, rei da Num dia (sc. II a.C.),corrompeu o Senado romano na defesa de seus interesses; mas, vencido, tomou parte como prisioneiro notriunfo de Caio Mrio. Ptolomeu e Mitridates foram convidados a ir a Roma por Calgula e cumulados deatenes; mas excitaram a inveja do imperador, que mandou matar o primeiro e exilar o segundo. Snecano est aqui inteirafriente de acordo com os historiadores nos pormenores desse episdio.

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    2. preciso privar-se da agitao desregrada, qual se entrega a maioria dos homens, quevemos precipitarem-se alternativam ente nas casas particulares, nos te atros e nos lugares pblicos:sua mania dc se intrometer nos negcios dos outros lhes d um ar de grande atividade. Perguntaa algum deles, quando sai de casa: "Aonde vais? Qual teu destino?" Ele responder: "Por Hrcules! No sei nada, mas eu verei gente e encontrarei qualquer coisa para fazer. 3. Eles vagamassim ao acaso, mendigando ocupaes; e que fazem? No o que resolveram fazer, mas o que asorte dos encontros lhes oferecer. Suas sadas absurd as e inteis lembram as idas e vindas das for

    migas ao longo das rvores, quando elas sobem at o alto do tronco e tomam a descer at embaixo, para nada. Quantas pessoas levam uma existncia semelhante, que se chamaria muito justamente preguia agitada. 4. Eis que correm como a um incndio: ter-se-ia pena deles, ao v-losatropelarem os transeuntes, precipitarem-se e precipitarem os outros; entretanto, para onde correm eles? Vo saudar qualquer personagem, que no lhes responder ao cumprimento, acompanhar o squito fnebre de algum que nem conheciam, assistir ao processo de qualquer profissional das npcias30, ou escoltar uma liteira, que por vezes eles mesmos carregam. Quando emseguida voltam para casa modos por uma fadiga intil, protestam que nem eles mesmos sabiam

    por que tin ham sado, nem pa ra onde tinh am ido ; e no dia seguin te rec om earo a mesma sriede march as desordenadas.

    5. Que todo esforo tenha, pois, um alvo preciso e seja aprop riado para um resultado. No uma atividade verdadeira, mas sim quimeras, que animam os inquietos e loucos. Pois estes nose moveriam sem uma certa esperana; e eles se iludem com as aparncias, porque seu espritoalucinado no lhes permite distinguir a realidade. 6. D-se o mesmo com ca da um destes infelizesque no saem a no ser para aumentar a turba: fteis e quimricas razes fazem-nos girar pela

    cidade, ainda que eles no tenham nada absolutamente para fazer; a aurora os expulsa de casa e,depois de terem sido esmagados inutilmente diante de um nmero considervel de portas e deterem saudado muitos nomencladores,31 sem terem sido recebidos em nenhuma parte, dentretodos, os mais difceis de serem en contrados em casa so eles mesmos.

    7. A esta doen a se prend e um vcio horrve l: este, de se info rmar de tudo , de esta r espreitade todas as novidades, tanto secretas como pblicas, e de possuir uma quantidade de histrias

    perigosas pa ra co ntar e ig ua lmente p erigo sas par a ouvir .XIII 1. Este bem o pensamen to de Dem crito, quando ele comea nestes term os:32

    Quem quiser viver com a alma tranqila no deve ter muitas ocupaes: nem de ordem particular nem de ordem pblica. Trata-se aqui naturalmente de ocupaes inteis, pois, desde que elasso necessrias, devemos, tanto particulares como pblicas, ter no somente muitas, mas inmeras; ao contrrio, quando nenhum dever imperioso nos ordena, devemos saber reprimir nossa atividade: 2. pois quem multiplica suas aes se expe a cada instante sorte. Ora, o mais certo provoc-la o menos possvel, mas pensar nela sem ces sar , sem ja m ais conf iar na sua cons tn cia .Eu viajarei, se nada me impedir. Serei pretor, se nada se opuser. Terei xito neste negcio,se nada vier em co ntrrio.

    3. Eis que isto nos leva a dizer que nada acontece ao sbio contra sua expectativa: no osubtramos das desgraas humanas, mas sim dos vcios humanos; e todas as coisas lhe sucedemno conforme seus desejos, mas conforme suas previses. Ora, o que ele prev, antes de tudo, que os obstculos podem sempre opor-se aos seus projetos. No , pois, evidente que o pesar causado por um a decepo bem menos sensvel quando n o se prometeu an tecipadam ente o sucessocom segurana?

    N o S E O B S T I N A R C O N T R A A S C I R C U N S T A N C I A S

    XIV 1. Devemos igualmente mo strar docilidade e no ser escravos demais das resolues que tomamos; ceder de boa vontade presso das circunstncias e no temer mudar, seja deresoluo, seja de atitude, contanto que no caiamos na versatilidade, que de todos os caprichoso mais prejudicial nossa tranqilidade. Porque se a obstinao inevitavelmente inquieta e

    30 Sneca confirm a (De Beneficiis,III, 16, 2) que muitas mulheres se divorciavam e se casavam novamente,repetidas vezes.

    ' No menclator era o escravo encarregado de dar ao seu senhor o nome das pessoas que o procuraramou cumprimentaram.32 Demcr ito, filsofo grego do atomism o (sc. V a.C.). Ass im comea a sua obra Ac rca do Prazer.

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    deplorvel, visto que a fortuna lhe arranca a todo momento qualquer coisa, a leviandade aindamuito mais penosa, porque ela no se fixa em nada. Estes dois excessos so funestos tranqilidade da alma: recusar-se a toda alterao e nada suportar.

    2. preciso, finalmente, que nossa alma, renunciando a todos os benefcios exteriores, serecolha inteiramente em si mesma: que ela s confie em si e s se alegre consigo, que ela s aprecie seus prprios bens, que ela se afaste o mais possvel dos estranhos e se consagre exclusivamente a si mesma, que os prejuzos materiais a deixem insensvel e que ela chegue mesmo a

    encontrar um lado bom nas suas desgraas.3. Quando lhe foi anunciado o naufrgio no qual tudo o que possua foi tragado pelo mar,

    nosso Zeno disse: A fortuna quer que eu filosofe mais desembaraadamente. Um tirano ameaava o filso foTeo doro33 de mandar mat-lo e mesmo de priv-lo da sepultura: Tu podes, disse-lhe este, dar-te este prazer: existem a 2,7 decilitros de sangue, sobre os quais tens todos osdireitos; quanto sepultura, s estranhamente ingnuo, se crs que me aflijo por apodrecer sobreou debaixo da terra*.

    4. Jlio Cano,34 um dos maiores homens que j existiram e cuja glria nada sofreu, nemmesmo por ter nascido neste sculo, teve uma longa discusso com Caio Caligula. Como ele seretirasse, o novo Falride3 5 lhe disse: Para que no te iludas nem ao menos com uma v esperana, ordenei que te executem. Agradeo-te, excelente prncipe, respondeu Cano. 5. No seiqual era seu pensamento, porque essas palavras podem bem ter vrios sentidos: queria ele ultrajaro prncipe e mostrar toda a crueldade de uma tirania sob a qual a morte era um benefcio? Oucensurava-lhe o absurdo de obrigar todos os dias a agradecerem-lhe aqueles cujos filhos ele matara, assim como aqueles de quem confiscara a fortuna? Ou, enfim, via ele na morte uma libertao,

    que aceitava com prazer? Qualquer que seja a resposta, ela provm de uma grande alma.6. Dir-se-ia: Caio Caligula podia, depois disto, orden ar que o deixassem viver. Mas Cano

    no tinha este receio: sabia-se que, desde que ele dera semelhantes ordens, Caligula manteria suapalavra. Acre di ta rias tu que os dez dias que de co rre ram at seu suplcio , Can o os passou semnenhum a inquietude? Na verdade, no parece verossmil o que este grande homem disse, o que feze a tranqilidade que manteve. 7. Ele jogava o jogo dos ladres,3 6 quando o centurio, passando com um grupo de condenados, convidou-o a se levantar e a segui-lo; ento ele contou seus

    po ntos e disse a seu ad ve rsr io : Aten o ! De po is de minha mor te, no dig as que gan has te !Depois, fazendo um sinal ao centurio: Tu sers testemunha, disse-lhe, de que eu tenho a vantagem de um ponto. Crs tu que Cano dava tanta importncia ao seu jogo? Ele zombava do carrasco. 8. Seus amigos estavam consternados em perder um tal homem. Por que esta tristeza?,disse-lhes. Vs vos perguntais se a alma imortal; eu irei sab-lo agora mesmo. E at o ltimoinstante ele no cessou de procurar a verdade e de perguntar sua prpria morte a soluo dogrande problema. 9. Seu filsofo3 7 o acompanhava; j o aproximavam do tmulo, onde cada diaeram oferecidos sacrifcios a Csar, nosso deus: Em que pensas neste momento. Cano?, pergun-tou-lhe o filsofo; em que disposio de esprito te encontras? Tenho, respondeu Cano, ainteno de observar neste instante to breve se vou sentir minha alma elevar-se. E ele prometeu,caso descobrisse alguma coisa, tornar a voltar, a fim de instruir seus amigos sobre a sorte dasalmas.

    10. Eis a tranqilidad e no meio da tem pes tad e! No digno da imortalida de este homem queproc ur a na sua prp ria morte um a prov a da ve rdad e; que nos ltim os mo mentos de vid a inter rogasua alma exalante, e que, no satisfeito de instruir-se at a morte, quer que a morte mesma lhe ensine alguma coisa? Pessoa alguma jamais filosofou por to longo tempo. No abandonemosdepressa demais este grande homem, do qual no se pode falar a no ser com venerao: sim, nstransmitiremos teu nome at a posteridade mais afastada, ilustre vtima, cuja morte ocupa um togrande lugar entre os crimes de C aligu la!

    XV 1. Mas no ad ianta nad a ter eliminado as causas da tristeza pessoal, pois algumas

    33 Teodoro de Cirene foi contem porneo de Scrates (scs. V-IV a.C.); e o tirano foi Lismaco, um dosgenerais de Alexandre Magno e mais tarde rei da Trcia.3 4 Persona gem desc onhe cida: s Sneca lembrou-se dele nesta passag em.

    3 5 Falride : tirano de Agrigento (Siclia), famoso pela sua crueldade.3 6 Uma espcie de jogo de damas: era ch amado tambm jogo dos pequenos soldados .3 7 Era costume das grandes person agens da poca ter sempre a companh ia de uma espcie de diretor espiritual, chamado filsofo. Ver. a este respeito, a obra de Sneca Consolao a Mrcia(IV, 2).

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    vezes acontece que um desgosto pelo gnero hum ano se apossa de ns, quando percebemos quogrande a quantidad e de crimes felizes; quando refletimos at que pon to rara a retido e desconhecidas a inocncia e a sinceridade, desde que ela no conve nha; quand o notam os os lucros e asdissipaes da paixo desregrada, igualmente odiados, e a ambio que vai alm de seus prprioslimites, a ponto de procurar seu esplendor atravs da baixeza. Ento mergulha o esprito em noiteescura; e destas virtudes assim transformadas, que em ningum se espera ver, nem so de utilidadealguma para quem as tem, originam-se densas trevas. 2. Assim devemos aplicar-nos a no consi

    derar odiosos, mas ridculos, os vcios dos homens e a imitar Demcrito antes que Herclito: esteno podia aparecer em pblico sem chorar, o outro sem rir, um no via a no ser a misria emtodas as aes dos homens, o outro s tolices. Aceitemos, pois, todas as coisas superficialmentee suportemo-las com boni humor: pois est mais em conformidade com a natureza humana rir-seda existncia do que lamentar-se dela.

    3. Acrescentemos que se presta melhor servio ao gnero humano ao se rir dele do que aolament-lo: o g racejador nos deixa algum a esperana de me lhora, o outro se aflige estupidamentecom os males que desesperadamente procura remediar. Enfim, para quem julga as coisas de um

    pon to de vis ta ma is super ior , um a alm a mostra -se mais forte ab an dona ndo-se ao riso do quecedendo s lgrimas; visto que no se deixa pe rturbar a no ser por uma emoo m uito superficiale que no v nada de importante, nada de srio, nem mesmo de deplorvel em toda a comdiahumana.

    4. Observemos os motivos de cada uma de nossas alegrias e de nossas tristezas e compreenderemos a preciso deste pensamento de Bon: A vida dos homens se assemelha a uma srie deexperincias: ela no tem nem mais valor nem mais importncia do que aquela de umembrio. 38 5. Vale mais ac eitar tranqilamente os costumes comuns e os vcios da humanidade,

    sem se deixar levar nem ao riso nem s lgrimas: pois atormentar-se com os males dos outros tomar-se perpetuamente infeliz, e alegrar-se com eles adotar um prazer desumano. 6. Assim mostrar uma sensibilidade intil c horar porque o vizinho en terra seu filho e tomar um ar de tristeza: igualmente, nas nossas desventuras pessoais, jamais nos devemos entregar dor a no ser oquanto exige a natureza e no o que reclama o costume. Quantas pessoas no vertem lgrimasunicamente para que estas sejam vistas, e cujos olhos secam no mesmo instante em que ningummais as observa! Mas elas julgariam vergonhoso no chorar quando todo mundo o faz: o hbitode se sujeitar opinio de outrem um mal to inveterado que o mais espontneo de todos ossentimentos, a dor, tem tambm sua afetao.

    XV I 1. Vem em seguida uma considerao que muitas vezes, e no sem motivo, entristece nosso esprito e o mergulha na maior inquietude: quando vemos pessoas de bem acabaremmal Scrates constrangido a morrer prisioneiro; Rutlio a viver no exlio; Pompeu e Ccero ase entregarem aos seus clientes; e Cato, este Cato, enfim, viva imagem da virtude, reduzido atestemunhar publicamente, atirando-se contra sua espada, que a Repblica perecia ao mesmotempo que ele. Como no se afligir com a idia de que a fortuna paga to injustamente os mritos

    dos homens? E que esperar para si mesmo, quando os melhores dentre eles so os maismaltratados?2. Mas, que se deve, ento, fazer? Observa como cada um destes grandes homens suportou

    seu destino; e se eles mostraram coragem, ambiciona a mesma firmeza de alma. Se foram fracose covardes diante da morte, sua perda indiferente: ou eles so dignos de que os admiremos porsua bravura, ou sua covardia os torna indignos de pena. No ser vergonhoso se a morte hericadestes homens de coragem fizesse de ns apenas covardes? 3. Glorifiquemos um heri digno detanta glria e digamos: 0 bra vo ! 0 afortunado h om em ! Eis que tu escapas a todas as misrias, inveja, morte; eis-te a sair da priso. Longe de te julgarem digno de uma m sorte, os deusesestimaram que mereceste estar para o futuro ao abrigo da tirania da fortuna. Quanto queles quequerem salvar-se e que no limiar da morte se voltam p ara a vida, preciso empurr-los com vivafora para seu carrasco.

    4. Eu no chorarei nem por quem se alegra nem por quem chora: o primeiro seca minhas lgrimas antecipadamente e o outro torna-se por suas lgrimas indigno das dos outros. Vou eu chorar por Hrcules queimado vivo; por Rgulo crivado com mil pontas ou por Cato, que suportoucom coragem tantos golpes? Todos estes heris, pelo sacrifcio de uma insignificante parte de sua

    existncia, souberam tornar-se eternos e a m orte foi para eles o caminho da imo rtalidade.

    38 Bon: ver nota 17.

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    P r a t i c a r a s i m p l i c i d a d e

    XVII 1. Um outro gnero de inquietude, que no merece menos ateno, nasce do cuidado que o homem emprega em fingir e em jamais se deixar ver tal como : o caso de muitas

    pessoas, cu ja vida s hip oc ris ia e com dia . Qu e tor mento, es ta perm anen te vig ilncia sob re simesmo, este terror de ser surpreendido num papel diferente do que aquele que se escolheu ! E esta

    preocupao no nos deixa mais, desde o ins tan te em que nos persu ad imos de que som os julgadosa cada olhar que nos lanam. Com efeito, aparecem mil incidentes, que nos revelam contra nossavontade; e quando logramos nos observar sem desfalecimento, que satisfao ! Mas que seguranapode oferecer um a exist ncia in tei ra pa ssad a sob um a msca ra?

    2. Que encanto, ao contrrio, na espontnea simplicidade de um carter, que desconhece osornamentos artificiais e que despreza disfarar-se! verdade que corremos o risco de perder aconsiderao, abrindo-nos ingenuamente demais a todos: pois no faltam pessoas para menos

    pre zar o que se lhes to rn a acessvel. Mas a v irtu de no pode ser de modo algum desprezada , q ua ndo oferecida a todos os olhares; e no melhor ser menosprezado por sua franqueza do queimpor-se o suplcio de uma dissimulao perptua? Todavia, no excedamos medida: pois hmuita diferena entre a sinceridade e a falta de modstia.

    A l t e r n a r o r e c o l h i m e n t o e a v i d a s o c i a l

    3. preciso freqentemente recolhermo-nos em ns mesmos: pois a relao com pessoasdiferentes demais de ns pe rturba nosso equilbrio, desperta nossas paixes, irrita nossas restantesfraquezas e nossas chagas ainda no completamente curadas. Misturemos, todavia, as duas coisas: alternemos a solido e o riundo. A solido nos far desejar a sociedade e esta nos reconduzir novamente a ns mesmos; elas sero antdotas, uma outra: a solido, curando nosso horror multido, e a multido, curando nossa averso solido.

    A l t e r n a r o t r a b a l h o e o d i v e r t i m e n t o

    4. Nem mesmo bom ter sempre o esprito igualme nte ocu pad o: preciso saber distra-locom divertimentos. Scrates no se envergonhava de se divertir com crianas pequenas, Catobebia par a de scan sar das fad igas da vid a pblica, Cipio exerc itava seu corpo de tr iun fador e deguerreiro no compasso da dana: no com estas atitudes moles que hoje em dia esto na moda e

    que do ao movimento mesmo uma languidez mais que feminina, mas do mesmo modo que nossos grandes antepassados, que sabiam nos dias de jbilo e de festa danar varonilmente sem queseu prestgio se arriscasse a sofrer, mesmo que eles tivessem por testemunhas seus inimigos. 5.

    preciso sab er recrea r o esp rito: ele se mos tra r , depois de um repouso, mais resolu to e m ais vivo.Do mesmo modo que no se deve fazer um solo frtil (pois uma fecundidade sempre ativa brevemente se esgotaria), assim um trabalho ininterrupto diminuir o ardor do esprito: um instante derepouso e de distrao lhe devolver sua energia. Q uando o esforo se prolonga demais, ele acarreta inteligncia uma espcie de enfraquecimento e de abatimento. 6. Alis, os homens no seinclinariam tan to aos divertimentos e aos jogos, se o prazer que sentem no satisfizesse a um dese

    jo . To da via , ab usa ndo deles, o esp rito pe rder sua elas tic ida de e seu vigor: o sono tam bm necessrio para restaurar nossas foras; mas se ele continua dia e noite, a morte. Suspenso esupresso no so absolutame nte sinnimos.

    7. Os legisladores instituram dias de festa nos quais nos reunimo s par a nos divertirm os emcomum, porque consideraram necessrio que o trabalho fosse de tempos em tempos interrompido

    por des canso s: vem -se, ass im, grandes homens tomarem regularmente de permeio diverso s diasde frias. Outrs, ainda, dividiam cada dia entre o repouso e os afazeres. Lembro-me. por exemplo, de que o gra nde orad or Asnio Po lio jam ai s se oc upou de qualq uer co isa depois de quatrohoras da tarde: passado este momento, nem mesmo lia suas cartas, a fim de evitar qualquer preocupao nova; e ele se reservava duas horas durante as quais esquecia todo o af do dia. Outros,

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    depois de ter feito uma pausa no fim da manh, reservavam a tarde para tarefas de menor importncia. N ossos pais, no impediam eles de se iniciar depois das qu atro h oras da tarde um novo de

    bate no Senado? Os solda dos reparte m entre si a viglia ; e os homens que voltam da expedioesto livres do servio durante a noite.

    8. preciso governar nosso esprito e conceder-lhe de tempos em tempos um descanso quefar sobre ele o efeito de um alimento restaurador. preciso, igualmente, ir passear em plenocampo, pois o cu aberto e o ar puro estimulam e avivam a inteligncia; algumas vezes uma alte

    rao, uma viagem, uma mudana de horizontes, assim como uma boa refeio com um poucomais de bebida do que de costume, lhe daro um novo vigor. Pode-se mesmo, por vezes, chegarat a embriaguez: no, de modo algum, para nela mergulhar, mas para nela encontrar a calma,

    pois ela dis sip a as inqu ieta es, mo dif ica totalmen te o es tad o da alma e af as ta a triste za, ass imcomo cura certas doenas. 0 inventor do vinho no foi chama do L iber 39 porque ele solta a lngua, mas sim porque liberta a alma das inquietaes que a escravizam; e a reanima e fortalece ea dispe para toda s as audcias.

    9. Mas o vinho, assim como a liberdade, no salutar a no ser tomado com medida. Afir-ma-se que Slon e Arcesilau tinham um gosto acentuado pelo vinho; censurou-se a Cato suaembriaguez: 40 bom meio de reabilitar este vcio em vez de rebaixar Cato. Mas no se deve recorrer a ele muito freqentemente, a fim de no adquirir este detestvel hbito; preciso, todavia, porum instante afrouxar as rdeas exuberncia e liberdade e fazer uma interrupo momentnea sobriedade austera demais. 10. Porque, se acreditamos no poeta grego, doce algumas vezes

    perder a ra z o ; ou em Plat o : em vo que o home m de sangue-frio ba te po rta das M usas ;e Aristteles: N o se v jam ais um gnio que no te nha seu grau de lo ucu ra . 41 11. Somente alinguagem de uma alma exaltada pode atingir o majestoso e o grandioso. Que ela desdenhe ossentimentos vulgares e batidos; que um entusiasmo sagrado a anime e a arreb ate: somente depoisela pronunciar palavras divinas pela boca de um mortal. impossvel alcanar o sublime e oinacessvel, enquanto a alma pertencer a si mesma: preciso que ela se desvie de seu caminhohabitual, se liberte; e que, mordendo o freio, arrebate seu cavaleiro e o faa subir a alturas onde

    jamai s ele se a rr isc ar ia por si m esmo.12. Eis, mui querido Sereno, os meios de conservar a tranqilidade da alma ou de tornar a

    encontr-la quando perdida, e de no sucumbir prfida insinuao dos vcios. Todavia, dize a timesmo que nenhum destes meios suficientemente poderoso para salvaguardar um bem to frgil, se no cercarmos com a mais ativa e a mais zelosa vigilncia nossa alma, sempre pronta a sedeixar desviar.

    39 Lber: um dos nomes de Baco, deus do vinho.40 Slon: legislador e poeta grego (sc. IV a.C.); Arcesilau foi filsofo da escola de Plato, iniciador do

    pro babilismo. A e mbriaguez de Cato lemb rad a pelo his toriador Plutarco (Cato, o Moo,IV).41 O poeta grego aqui lembrado Men andro (fragmento 321 da edio Koch): o provrbio antigo e popular (Semel in anno licet insanire) e ocorre tambm em Horcio: Dulce est desipere in loco (OdeIV, 12,28). O mesmo SneCa, num dilogo deA Super stio (que no chegou at ns, mas do qual Santo Agostinhono A Cidade de Deu s, VI, 10, citou este fragmento), tinha afirmado, tratando das festas anuais egpcias emhonra de Osris: Huic tamen furori certus tempus est. Tolerabile est semel anno insanire. E o provrbiocontinuou atravs dos sculos, entre o povo e nas obras dos escritores (Roman de Renart, VI, 485; LaRochefoucauld, Heine, etc.). A frase de Plato encontra-se noFedro (22, 245); e a de Aristteles nos Pro-blemas (30,1).

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    Ttulos originais:Texto de Lucrcio:De Rerum Na tura

    Texto de Ccero:De Republica

    Textos de Sneca:A d Helvia m Ma trem de Conso latione A d Serenum de Tranquillitate A ni mi

    MedeaDivi Claudi Apok olok in tosis

    0 0 1 2 6 8 0 0 1 0 7 3

    Copyright desta edio, Editora N ova Cultural Ltda.,So Paulo, 1988.

    Av. Brig. Faria Lima, 2000 - CEP 01452 So Paulo, SP.

    Tradues publicadas sob licena de Editora G lobo S.A .,Porto Alegre (Antologia de Textos de Epicuro, Da Natureza);D. Giosa Indstrias Grficas S.A., So P aulo (Da Repblica,

    Consolao a Minha Me Hlvia, Da Tranquilidade da Alma, Media,

    Ap ocolo qu intose do Div ino C/udio).

    Direitos exclusivos sobre EPIC UR O, LUC RC IO, CCE RO, S NECA -VIDA E OBR A , Editora Nova Cultural Ltda., So Paulo.