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Web-Revista SOCIODIALETO www.sociodialeto.com.br Bacharelado e Licenciatura em Letras UEMS/Campo Grande Mestrado em Letras UEMS / Campo Grande ISSN: 2178-1486 Volume 4 Número 11 Novembro 2013 116 CONTATO LINGUÍSTICO E ENSINO: A CONTRIBUIÇÃO DE LÍNGUAS INDÍGENAS NA APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS BRASILEIRO José de Ribamar Dias Carneiro (UFRJ/UEMA) 1 [email protected] Maria José Quaresma Vale (UFRJ/UEMA) 2 [email protected] Antônio Luiz Alencar Miranda (UFRJ/UEMA) 3 [email protected] RESUMO: Este artigo discute a possibilidade de articulação entre o ensino de língua portuguesa e o de línguas indígenas em classes de alunos da educação básica regular, objetivando refletir sobre a valorização da integração pedagógica motivada por experiências linguísticas e culturais entre estudantes indígenas e não indígenas com apoio na diversidade cultural e linguística do elemento indígena nacional para, via contato linguístico, interculturalidade e bilinguismo, vivenciar experiências de linguagem entre alunos de etnias distintas. O texto pretende refletir sobre o aproveitamento da história e da cultura do elemento indígena nacional inseridos, oficialmente, no currículo escolar brasileiro pela Lei n. 11.645/2008 e pensar sobre a produção de estratégias de ensino de língua portuguesa a partir da descrição e da comparação entre variedades e usos de línguas indígenas sob bases empíricas e científicas para a adoção, por professores, de ações de pesquisa sociolinguística e elaboração e execução de projetos de ensino de línguas. O percurso teórico-metodológico se dará mediante a exploração de conceitos, abordagens, orientações e diretrizes sobre o ensino de língua materna na educação básica e de educação indígena. Trata ainda de sugestões de trabalho pedagógico pelo professor e seus alunos, envolvendo o contato linguístico e a cultura de indígenas e não indígenas. Para tanto, fez-se pesquisa bibliográfica com apoio em alguns autores como Rodrigues (1993); Thomason (2001); Noll e Dietrich (2010); Santos (2012); Legislação sobre a educação escolar indígena, como a Organização da Educação Indígena (Decreto n. 6.861/2009); Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena (Parecer n. 14/1999), dentre outros textos orientadores da educação indígena e do ensino de língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Línguas indígenas. Cultura. Contato linguístico. Ensino. Língua Portuguesa. ABSTRACT: This paper discusses the possibility of articulation between the teaching of Portuguese language with the indigenous languages in classes of students of the regular basic education, in order to reflect on the development of pedagogical integration due to linguistic and cultural experiences between indigenous and non-indigenous students with support in cultural and linguistic diversity of indigenous element, via national language contact, interculturalism and bilingualism experience language experiences between students of different ethnicities. The text aims to reflect on the use of the history and culture of the national indigenous element inserted, officially, in the brazilian school curriculum and by law nº 11,645/2008 and think about the production of Portuguese language teaching strategies from the description and comparison among varieties and uses in the mother tongue and indigenous language in 1 Doutorando em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected] 2 Doutoranda em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected]. 3 Doutorando em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected]

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CONTATO LINGUÍSTICO E ENSINO: A CONTRIBUIÇÃO DE

LÍNGUAS INDÍGENAS NA APRENDIZAGEM DO PORTUGUÊS

BRASILEIRO

José de Ribamar Dias Carneiro (UFRJ/UEMA)1

[email protected]

Maria José Quaresma Vale (UFRJ/UEMA)2

[email protected]

Antônio Luiz Alencar Miranda (UFRJ/UEMA)3

[email protected]

RESUMO: Este artigo discute a possibilidade de articulação entre o ensino de língua portuguesa e o de

línguas indígenas em classes de alunos da educação básica regular, objetivando refletir sobre a

valorização da integração pedagógica motivada por experiências linguísticas e culturais entre estudantes

indígenas e não indígenas com apoio na diversidade cultural e linguística do elemento indígena nacional

para, via contato linguístico, interculturalidade e bilinguismo, vivenciar experiências de linguagem entre

alunos de etnias distintas. O texto pretende refletir sobre o aproveitamento da história e da cultura do

elemento indígena nacional inseridos, oficialmente, no currículo escolar brasileiro pela Lei n.

11.645/2008 e pensar sobre a produção de estratégias de ensino de língua portuguesa a partir da descrição

e da comparação entre variedades e usos de línguas indígenas sob bases empíricas e científicas para a

adoção, por professores, de ações de pesquisa sociolinguística e elaboração e execução de projetos de

ensino de línguas. O percurso teórico-metodológico se dará mediante a exploração de conceitos,

abordagens, orientações e diretrizes sobre o ensino de língua materna na educação básica e de educação

indígena. Trata ainda de sugestões de trabalho pedagógico pelo professor e seus alunos, envolvendo o

contato linguístico e a cultura de indígenas e não indígenas. Para tanto, fez-se pesquisa bibliográfica com

apoio em alguns autores como Rodrigues (1993); Thomason (2001); Noll e Dietrich (2010); Santos

(2012); Legislação sobre a educação escolar indígena, como a Organização da Educação Indígena

(Decreto n. 6.861/2009); Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena (Parecer n. 14/1999),

dentre outros textos orientadores da educação indígena e do ensino de língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: Línguas indígenas. Cultura. Contato linguístico. Ensino. Língua Portuguesa.

ABSTRACT: This paper discusses the possibility of articulation between the teaching of Portuguese

language with the indigenous languages in classes of students of the regular basic education, in order to

reflect on the development of pedagogical integration due to linguistic and cultural experiences between

indigenous and non-indigenous students with support in cultural and linguistic diversity of indigenous

element, via national language contact, interculturalism and bilingualism experience language

experiences between students of different ethnicities. The text aims to reflect on the use of the history and

culture of the national indigenous element inserted, officially, in the brazilian school curriculum and by

law nº 11,645/2008 and think about the production of Portuguese language teaching strategies from the

description and comparison among varieties and uses in the mother tongue and indigenous language in

1 Doutorando em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected]

2 Doutoranda em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected].

3 Doutorando em Linguística UFRJ/UEMA. E-mail: [email protected]

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scientific and empirical bases for adoption by teachers of research actions sociolinguísticas, preparation

and implementation of projects for language teaching. The methodological-theoretical route will be

through the exploration of concepts, approaches, guidelines and guidelines on mother-tongue teaching in

basic education and indigenous education. This is also suggested pedagogical work by professor and his

students, involving the language contact and the culture of indigenous and non-indigenous. For both,

bibliographic search with support for some authors, Rodrigues (1986); Thomason (2001); Noll and

Dietrich (2010); Santos (2012); Legislation on indigenous education, such as the Organization of

indigenous education (Decree n. 6.861/2009); National guidelines for the functioning of indigenous

schools (Opinion n. 14/1999), among other guiding texts about indigenous education and language

teaching.

KEYWORDS: Indigenous languages. Culture. Language contact. Teaching. Portuguese Language

1 INTRODUÇÃO

O cenário social, cultural e sociolinguístico do elemento indígena brasileiro, em

suas mais distantes tribos e diversificadas línguas pode favorecer, naturalmente, a uma

interação e integração de práticas sociais, culturais e linguísticas com povos não

indígenas. Isso poderá se dar pela diversidade cultural e linguística do elemento

indígena nacional, o que constitui farto material para a produção do conhecimento, de

modo empírico e científico.

As práticas de medicina natural, as danças, a arte, a religiosidade, os tipos de

relacionamentos matrimoniais entre homens e mulheres geraram representações de vida

que a ciência veio (e vem) valorizando. A influência indígena deixou marcas na vida

brasileira. A ciência, felizmente, já vem registrando a contribuição linguística indígena

dada ao português brasileiro (PB).

Já não são recentes trocas entre um e outro idioma. O resultado de intercâmbios

entre o indígena e o não indígena já é visto em várias atividades da pesquisa nacional.

Mas o espaço escolar, as práticas educativas, as trocas de experiências do ensinar e do

aprender as línguas (indígenas e portuguesa) em sua forma integrada e articulada é mais

recente, porque estudos sobre línguas indígenas produzidas por pesquisadores de

grandes universidades brasileiras tornam mais conhecidas e mais acessíveis as línguas e

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os dialetos de povos de várias tribos do país, mas a descrição gramatical das línguas

indígenas ainda é menos acessível a estudantes, a professores e à sala de aula.

Novos estudos que esclareçam sobre a história de contato de algumas tribos com

a língua portuguesa4 devem servir para a descrição gramatical de ambas as línguas e

podem resultar em material pedagógico, porque desse contato linguístico decorre uma

interação entre línguas indígenas e língua portuguesa, cujo resultado deve ser valorizado

para a produção da educação linguística e material didático no ensino do PB e de

línguas indígenas.

Nesse texto, deseja-se refletir sobre elementos da cultura e aspectos linguísticos

das línguas dos aborígenes na elaboração de orientações teórico-metodológicas e

materiais de ensino linguístico como oportunidade de se aliar experiência de vida,

conhecimentos de mundo, valores sociais e culturais, práticas sociais, costumes,

danças, cultos religiosos - e outras diversas formas de representação - na produção do

conhecimento regular em sala de aula e, assim, ter a possibilidade de integração entre

saberes indígenas e não indígenas, especialmente quantos aos conhecimentos

linguístico-gramaticais.

Essa possibilidade decorre de alguns aspectos que minimamente aqui se pode

elencar, mas que são favorecedores para uma integração educativa entre o elemento

indígena e o não indígena, como:

(a) a condição geográfica do território nacional com tribos e povos alocados de

norte a sul do país;

4 Pesquisa sobre a contribuição da língua portuguesa ao léxico das línguas indígenas wapichana e makusi

vem sendo feita por Alessandra de Souza Santos, professora do Curso de Letras da Universidade Estadual

do Roraima (UERR). A pesquisa investiga empréstimos linguísticos do português para as duas línguas

indígenas. O estudo tomou por base o Dicionário Wapichana-Português, de Casimiro Manoel Cadete, e

mais dois dicionários de língua Makuxi: Língua Makuxi Makusi Maimu - guias para aprendizagem e

dicionário da língua makuxi (Amodio e Pira, 1999) e o Dicionário da Língua Makusi (Raposo, no prelo).

Dados obtidos de http://www.roraimaemfoco.com/colunistas/geral-mainmenu-45/4765-pesquisa-aborda-

contribui-do-portugupara-luas-indnas-de-rr.html. Acesso em 20/07/2012.

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(b) a evolução, no Brasil, dos estudos sociolinguísticos sobre as línguas

indígenas, cujas pesquisas há algumas décadas têm produzido livros, revistas, artigos,

criando-se material bibliográfico sobre a constituição, a tipologia, a historiografia e

mesmo os usos variados nas línguas faladas pelas diversas tribos nacionais;

(c) a existência (embora ainda iniciante) de uma política educacional para os

povos indígenas, com a definição de diretrizes nacionais para o funcionamento de

escolas em aldeias e orientações teórico-metodológicas na formação de professores de

educação indígena.

A contribuição das línguas indígenas, via contato linguístico, não está tão

somente na herança que essas línguas deram ao léxico do PB, mas ainda na contribuição

fonético-fonológica, morfológica, semântica e pragmática, como em (1), (2) e (3).

(1) kutuk>cutuca>futuca>catuca (“espetar”)

(2) ka`a = planta + pi`i = delgado, fino = capim (mato delgado, fino)

(3) capiau = (“roceiro”, aquele que cortava o capim)>capiau (“matuto”)

Alterações nos planos fonético-fonológico, semântico e em outros níveis

gramaticais não devem ser desconsideradas no tratamento metodológico e pedagógico

para o ensino de línguas. Pode-se produzir, a partir delas, (novas) orientações e

referenciais que encaminhem,

1. Quanto à própria língua, para (a) a especificação de contribuições de uma língua para

a outra, fazendo-se um inventário dessa mútua contribuição; (b) a identificação nos

planos da gramática (fonético-fonológico; morfológico; sintático; semântico; estilístico)

de variações já consolidadas ou em curso por força do contato de línguas indígenas com

a língua portuguesa falada no Brasil.

2. Quanto aos falantes, para a percepção de suas crenças e atitudes em relação à língua

que fala e à outra língua que fornece material para aquela que recebe a contribuição.

3. Quanto aos estudos linguísticos indígenas, para dar a historiadores das línguas

indígenas, a sociolinguistas, a pesquisadores das línguas naturais em geral, material de

pesquisas.

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O trabalho pedagógico com línguas indígenas no país, como se observa, é

incipiente. Algumas orientações e diretrizes produzidas por instituições oficiais ainda

não contemplam a reflexão gramatical nem a descrição da gramática de línguas

indígenas nem tampouco privilegiam o tratamento integrado de fenômenos linguísticos

que se incorporaram ao português brasileiro via contribuição linguística indígena,

preterindo-se, dos alunos da educação básica, o contato com uma farta contribuição

concretizada em palavras, no léxico, em termos, expressões e costumes linguísticos

indígenas que se incorporaram ao vocabulário, à fonologia, à morfologia, à sintaxe, à

semântica do nosso português e até mesmo ao texto literário.

Essa vasta contribuição linguística indígena para a língua portuguesa falada no

Brasil não é motivação suficiente para dobrar certas resistências de instituições e de

educadores, ao privilegiarem a manutenção de políticas voltadas para o ensino e a

aprendizagem da língua nacional e valorizarem menos as ações de ensino de línguas dos

povos indígenas. Deixa-se de reconhecer o potencial da cultura e da língua dos povos

indígenas e de seus usos linguísticos. Pode-se mesmo pensar que, na verdade, ainda há

um distanciamento de setores que lidam com a educação e a pedagogia em tratar as

línguas indígenas como potencial de ensino.

Contudo, marcas linguísticas indígenas no português brasileiro estão presentes

desde os tempos do Brasil colônia, em nomes de objetos e em expressões linguísticas,

como por exemplo.

(4) Nomes de utensílios domésticos: gamelas (utensílios de madeira); potes e

moringas (utensílios de barro); arapuca, canoa (nomes de redes de dormir).

(5) Nomes ligados ao folclore: cateretê; carimbo; bumba-meu-boi ou boi-

bumbá.

(6) Contribuição ao léxico: Tietê, jabuticaba, Itapemirim, Taubaté, Itapecurú,

Pindaré, maracanã.

(7) Nomes de objetos que servem para brincadeiras infantis: peteca (bola de

gude), peão>pião, pega-pega.

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(8) Expressões linguísticas: do Oiapoque ao Chuí; deixa de nhennhennhém [-

verbos tupis “nhe’eng” (que significa falar) e “nheéng nheéng” (que sugere a ação de

“insistir” ou “teimar”]; cair um toró [tororó é jorro d’água em tupi]; Ir para as cucuias

- entrar em decadência, [cucuia é decadência em tupi]; Velha coroca, que significa

velha resmungona [kuruk é resmungar em tupi] etc.

Essas contribuições evidenciam que, do contato linguístico de línguas indígenas

com a língua portuguesa falada no Brasil, restou um número significativo de palavras e

expressões do léxico indígena para o léxico do PB, contribuição essa que pode ser

conhecida mais concretamente durante a formação linguística básica.

O contato linguístico entre comunidades indígenas e comunidades não indígenas

- muitas vezes com escolas regulares situadas próximo a aldeias - não pode deixar de

produzir efeitos na formação educativa de crianças e jovens sobre o conhecimento

linguístico e cultural do povo indígena. Não apenas porque se queira reforçar o

reconhecimento da contribuição do elemento indígena à cultura brasileira e ao léxico da

língua portuguesa. Isso já foi feito por filólogos, antropólogos, sociólogos e

historiadores e linguistas. Mas por que se entende que o contato linguístico provoca

arranjos, engenharias, contributos, ofertas, elementos novos e distintos para ambas as

línguas, para ambos os povos. A diversidade linguística e cultural decorrente do contato

linguístico e social precisa ser vista em via de mão dupla – do índio para o não índio e

deste para o elemento indígena. Em exemplos como (9) e (10), veem-se situações que

podem muito bem caracterizar essa possibilidade.

(9) Te mandei um passarinho, / Patuá miri pupé

Pintadinho de amarelo, / Iporanga ne iaué.

(10) Vamos dar a despedida, mandu sarará / Como deu o passarinho, mandu sarará

/ Bateu asa, foi-se embora, mandu sarará / Deixou a pena no ninho, mandu sarará.5

5 Os dois poemas foram citados em artigo de Freire (2009) como exemplos de uma situação de

bilinguismo e antes retirados de material encontrado por Couto Magalhães, em viagem de estudos à

Amazônia, nos anos de 1873-74, com o fim de investigar a demografia e as línguas indígenas dessa

região. Em (1), a tradução é a seguinte: “Mandei-lhe um passarinho, dentro de uma caixa pequena,

pintadinha de amarelo, e tão formoso como você” (MAGALHÃES, 1876, p. 89).

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Em (9), os versos são compostos simultaneamente em duas línguas, com

alternância entre o português e o nheengatu. No poema, há uma unidade poética e

textual pela rima e pela métrica que se alternam também nas duas línguas.

Magalhães (1876, p. 89-90 apud FREIRE, 2009, p. 203) considera que os versos

compostos simultaneamente nas duas línguas foram produzidos numa época em que

ambas (as línguas) eram populares e conviviam em situação de bilinguismo, pois “as

duas línguas entram na composição, com seus vocábulos puros, sem que estes sofram

modificação.

O exemplo em (10) parece indicar não mais uma situação de bilinguismo,

desaparecendo a situação de simetria entre as duas línguas. Magalhães (1876, p. 90 apud

FREIRE, 2009, p. 204), considera que o poema revela outra situação: a de predomínio

de uma língua sobre a outra, em que “pouco a pouco uma língua predomina e só ficam

da outra algumas poucas palavras que, ou não têm correspondente na língua que tende a

absorver a outra, ou são mais suaves para o sistema auditivo da raça que vai

sobrevivendo.”

Mas as línguas indígenas já foram em número bem maior e a situação do contato

social aponta para uma realidade bem diferente da que se observa atualmente. Segundo

sugere Rodrigues (1993), o Brasil possuía em torno de 1.300 línguas quando do início

do contato entre a etnia europeia com o elemento nativo local, mas esse número caiu

para mais ou menos 180 línguas.6

A integração de saberes, experiências e práticas entre pessoas, grupos, etnias e

povos se ajusta à concepção e ao atual modelo de aprendizagem, que, em perspectiva

geral, deve ser um modelo que contemple a formação para o atendimento a necessidades

individuais e coletivas de pessoas que, hoje, pertencem a um mundo integrado via

tecnologia, a um mundo de atividades econômicas e sociais globalizadas.

6 RODRIGUES, A.D. Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas. D.E.L.T.A. 9 (1):83-103.

São Paulo, 1993.

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Por essa condição, a produção do conhecimento deverá naturalmente contemplar

e incluir a integração das experiências sociais e culturais e dos saberes linguísticos dos

povos indígenas com o conhecimento tradicional oficial regularmente oferecido em

instituições oficiais de ensino.

A abordagem que orienta a aprendizagem em tempos atuais é a perspectiva que

define o conhecimento (e a linguagem) como sendo produzidos em atos de interação. É

a perspectiva sociointeracionista da aprendizagem e da linguagem.7

A língua e as práticas sociais de linguagem mantém um estreito relacionamento

com a construção da identidade de um povo. As sociedades humanas usam a língua para

produzir parte do conhecimento que geram e detêm. Essa ocorrência se dá em naturais

processos de interação social, cultural e comunicativa.

O contato linguístico provoca mudanças no sistema linguístico de línguas que

mantiveram (ou mantêm) contato. São mudanças que podem ser vistas nas diversas

áreas em que se realizam as estruturas linguísticas: na fonologia, na morfologia, na

sintaxe e no léxico. A língua portuguesa, no período da colonização do Brasil, por

exemplo, exerceu influência nas línguas que aqui existiam, gerando modificações e

substituições de línguas indígenas pela língua falada pelo colonizador português.

Produzir um trabalho pedagógico e o debate acadêmico sobre a contribuição das

línguas indígenas ao PB, trazendo essa contribuição para a sala de aula é

imprescindível, podendo-se aproximar da perspectiva sociointeracionista da

aprendizagem (e da linguagem) para o conhecimento dos efeitos do contato linguístico

entre as línguas dos nativos e a do elemento estrangeiro. O estudo do contato linguístico

de línguas indígenas com o português brasileiro e deste com estas línguas oferece

campo de pesquisa e matéria prima de investigação (e educação) linguísticas.

7 O Sociointeracionismo, proposto por Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934), é a teoria da

aprendizagem cujo foco está nas interações sociais e condições de vida. Para essa teoria, o

desenvolvimento humano ocorre na relação de trocas entre sujeitos, por meio de processos de interação (o

indivíduo interage com a sua cultura) e mediação (trocas comunicativas, através dos bens materiais e

simbólicos criados pelos membros da comunidade).

Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lev_Vygotsky. Acesso em 22/07/2012.

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Sobre os efeitos do contato linguístico nas línguas que entraram em contato entre

si, Thomason (2001) reconhece que, em comunidades de todas as dimensões, desde as

pequenas comunidades às grandes nações, o contato lingüístico apresenta consequências

sociais que podem trazer consequências favorecedoras e desfavorecedoras.

A contribuição favorecedora do contato linguístico reforça a idéia de que a

presença da cultura indígena, entre nós, é marcante no conhecimento científico, social,

cultural, linguístico e político. No campo político, pode-se, não só perceber essa

contribuição, mas torná-la um elemento de discursos e debates pedagógicos sobre a

presença das línguas indígenas na vida social brasileira.

O reconhecimento da presença das línguas indígenas deve estar nos espaços

escolares e nos demais espaços de aprendizagem, pois isso favorecerá à luta pela

preservação das línguas e culturas indígenas e abrirá a um diálogo também com outras

sociedades indígenas que não mantêm contato entre si.

Pensar o contato linguístico é ver uma relação entre duas ou mais línguas e o que

dessa comunhão resulta na co-realização de uma e de outra línguas, seja na forma de

contato, de bilinguismo e de interferência cultural. O estudo de situações de contato

linguístico, tanto na perspectiva sincrônica quanto diacrônica, produzirá, na ação

didático-pedagógica, conhecimento sobre a situação de contato, o contexto social,

econômico e histórico que influenciou na direção do empréstimo e das alterações

produzidas nos vários níveis gramaticais da língua influenciada. Essas situações

constituem matéria de reflexão e de aprendizagem em ciclos de educação básica e

formação de jovens.

A distribuição do tema por tópicos nesse artigo contemplará na primeira parte a

noção de ensino e aprendizagem de línguas, com reflexão sobre o que é aprender e o

que é ensinar uma língua; para que se ensina e se aprende uma língua e como se

aprendem línguas. Essa noção acompanha a visão atual dos estudos linguísticos e

sociolinguísticos e das pesquisas sobre usos e variações linguísticas no PB que

focalizam para a abertura de gramáticas da fala na sala de aula. Na sequência, apresenta-

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se uma reflexão sobre a educação linguística e o ensino de língua materna, refletindo-se

sobre a possibilidade do ensino de língua pelo contato linguístico e por prática

pedagógica intercultural. Na sequência, indicam-se possibilidades de trabalho com

projetos de ensino para envolver alunos e professores da educação básica na reflexão,

comparação e descrição linguísticas do português brasileiro e de línguas indígenas.

2 CONCEPÇÕES DE ENSINO E APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS

Na perspectiva pedagógica, ensino e aprendizagem dizem respeito à produção de

conhecimentos entre sujeitos que interagem mutuamente em espaços diversificados,

com materiais produzidos para tal fim, apoiados em uma metodologia específica e

mediante um plano de ação.

Nesse sentido, os pressupostos teórico-metodológicos que embasam o ensino e a

aprendizagem de uma língua são os que compreendem a linguagem como forma ou

processo de interação. (GERALDI, 1984). A linguagem é uma forma de inter-ação.

Através dela o sujeito que fala pratica ações que não conseguiria praticar a não ser

falando. Com ela, o falante age sobre o ouvinte, constituindo compromissos e vínculos

que não pré-existem antes da fala.

O ensino de línguas, no Brasil, depois de muitas décadas começa a deixar de

privilegiar uma metodologia tradicional, dirigida para o ensino da teoria gramatical

descontextualizada e já apresenta sinais de mudança (ANTUNES, 2003). É possível

identificar algumas ações que têm sido empreendidas, em instituições oficiais, em todos

os níveis, a favor de um ensino de língua formador e eficiente. É possível ver algumas

mudanças e perspectivas novas na escola e no trabalho com a língua e a linguagem.

Avanços com novas concepções teórico-metodológicas para o ensino de língua;

novos instrumentos pedagógicos de avaliação do desempenho de estudantes da

educação básica e superior brasileira; novo papel do professor de língua; livros didáticos

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integrando o PNLD; nova dimensão curricular para a formação básica; diretrizes

nacionais para a educação básica, dentre outros avanços na educação linguística já se

sente desde a última década no Brasil.

Assim foi que o ensino e a aprendizagem de línguas passaram a estar mais

relacionados com os usos que se faz da língua. A oralidade e a escrita tem sido quase

sempre as duas modalidades tomadas para o ensino linguístico. O universo de uma

língua, em sua dinâmica de funcionamento, tem sido a matéria-prima de que vem

lançando mão a escola e o professor para refletir e descrever o material linguístico em

análise.

Essa matéria prima deve ser o objeto de estudo na educação linguística. E é com

esse objeto em mãos que alunos e professores devem procurar descrever a gramática da

língua estudada – usos orais e escritos nessa língua - passando a conhecer o

funcionamento desta: os sistemas fonético-fonológico, morfológico, sintático,

semântico e o léxico, centrados no texto pela integração das três práticas de linguagem:

leitura, produção textual e análise linguística (SANTOS et all, 2012, p. 11).

Para integrar essas três práticas de linguagem, o ensino da língua, nos níveis

fundamental e médio, deve ser feito em textos orais e escritos, fazendo-se uma interação

entre os momentos de leitura, de escrita e de análise linguística.

Tomando-se o texto como unidade de ensino (SANTOS et all, 2012), pode-se

fazer um trabalho que congregue,

(a) prática de leitura de textos orais/escritos;

(b) prática de produção de textos orais e escritos;

(c) prática de análise linguística.

Também Marcuschi (1996) parte de quatro premissas para argumentar a favor do

trabalho com a língua em uso (a língua falada) na sala de aula. Afirma que a língua é

heterogênea e variável. Para ele, (a) o sentido é efeito das condições de uso da língua;

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(b) os usuários têm a ver com textos e discursos quando interagem entre si (e não com

estruturas gramaticais) e (c) o foco do ensino é deslocado do código lingüístico para o

uso da língua, ou para a análise de textos e discursos.

O importante, no trabalho pedagógico, é tomar a língua em seu “aspecto

pragmático e interacional, centrada no uso do código e não no código em si [...]”

(OLIVEIRA et all, 2009, p. 235).8

2.1 Por que ensinar as línguas e a cultura indígenas (a alunos de língua

portuguesa)?

A cultura indígena influenciou a cultura brasileira e criou tradições no país. A

escola está em permanente contato com as tradições, com a arte e com a cultura. Mas

até então a cultura indígena só aparece em livros didáticos como referência histórica

comemorativa. O Dia do Índio (19 de abril) é rotineiramente “festejado” em escolas,

quando as crianças são pintadas e usam vestimentas parecidas com as dos indígenas.

Passada essa data, a lembrança aos costumes dos índios desaparece como conhecimento

escolar e social. As línguas e a cultura indígenas não são conteúdos em estudo nas

escolas.

Em 2009, contudo, foi sancionada a Lei n. 11.645/2008, que prevê a inserção no

currículo escolar dos elementos da história e da cultura indígena na educação básica. As

escolas são obrigadas a incluir em seus currículos os sistemas normativos das culturas

afro-brasileira e indígena no Ensino Fundamental e Médio.

Essa é uma iniciativa que propicia aos alunos dos sistemas escolares tradicionais

uma integração do presente e do passado, criando-se oportunidade para a escola (e todos

os alunos) interagir e

8 OLIVEIRA, Mariângela R. de; WILSON, Victoria. Linguística e ensino. In MARTELOTTA, M. (org).

Manual de Linguística. São Paulo: Contexto, 2009.

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(a) Conhecer a origem e a história do país e a atuação dos seus primeiros habitantes

na construção do país.

(b) Compreender a história dos povos indígenas em todos os tempos - do passado ao

presente.

(c) Compreender os aspectos positivos da população indígena em relação à cultura

nacional.

(d) Favorecer à formação dos alunos, o que vai trazer abordagens inovadoras em

relação ao elemento indígena, tornando o currículo escolar mais dinâmico e mais

motivador.

(e) Favorecer, do ponto de vista pedagógico, a que os alunos reconheçam que as

matrizes curriculares contemplavam a contribuição européia, em desprestígio do

pepel histórico das sociedades sul-americanas e africanas.

(f) Favorecer a que os alunos estejam em contato com as tradições de seu país para

valorizá-las, promovê-las e preservá-las.

Na perspectiva dos povos indígenas, a presença de elementos da cultura desse

povo, no currículo escolar do ensino fundamental e médio, favorece a índios, a não

índios e à sociedade em geral e contribuirá para que

(a) desmistifiquem-se visões que se tem do índio como pessoa preguiçosa,

improdutiva e oportunista.

(b) diminuam-se as imagens estereotipadas do indígena tão presentes nos livros

didáticos.

(c) veja-se o indígena de forma concreta e real.

(d) revitalizem-se as línguas indígenas.

(e) aumente-se a autoestima da população indígena em geral ao se sentir

valorizada e tratada de maneira concreta e real.

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Orientações e diretrizes curriculares para a educação indígena9 definem a

diferença entre educação indígena e educação escolar indígena. Pela primeira, entende-

se o aprendizado de processos e valores que formam cada tribo, em suas múltiplas

formas de relacionamento social exercidas no relacionamento cotidiano dos índios com

suas comunidades. (PARECER CNE/CEB n. 14/99).10

A educação indígena caracteriza a maneira como os membros das sociedades

indígenas socializam às novas gerações seus valores e instituições consideradas

essenciais à continuidade da comunidade.

A educação indígena é voltada para a manutenção da sociedade indígena – uma

sociedade igualitária, sem estratificação social e sem estratificação nas relações de

trabalho. Essa educação visa manter a forma de organização do trabalho, sem

detentores dos meios de produção e sem possuidores da força de trabalho. O objetivo da

educação indígena é, também, reproduzir para as novas gerações, que a posse da terra

deve ser coletiva e que os recursos nela são de todos, são comuns. Pela educação

indígena, os membros de uma tribo saberão que a organização do trabalho é feita a

partir da divisão do trabalho por sexo e idade, com regras, compromissos e obrigações

bem definidas e todos devem dar e receber (bens e serviços) de uns para outros.

9 A Educação Indígena no Brasil vem sendo disciplinada pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de

Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei n. 9394/1996. As Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação Escolar Indígena foram normatizadas pelo Parecer CNE/CEB nº 14/99 e Resolução

CNE/CEB nº 3/99); para a Educação Básica Indígena pelo Parecer CNE/CEB nº 7/2010 e Resolução

CNE/CEB nº 4/2010; para a Educação Infantil, pelo Parecer CNE/CEB nº 20/2009 e Resolução

CNE/CEB nº 5/2009); para o Ensino Fundamental pelo Parecer CNE/CEB nº 11/2010 e Resolução

CNE/CEB nº 7/2010) e, para o Ensino Médio, pelo Parecer CNE/CEB nº 5/2011 e Resolução CNE/CEB

nº 2/2012, além de outras normas legais que tratam da especificidade das temáticas da Educação Escolar

Indígena e das modalidades que compõem a Educação Básica. As determinações do Decreto nº

6.861/2009 dispõem sobre a Educação Escolar Indígena e definem sua organização em territórios

etnoeducacionais.

10Disponível em

http://portalsme.prefeitura.sp.gov.br/Documentos/BibliPed/TextosLegais/LegislacaoEducacional/Parecer

_CNE_CEB_14_99_DiretrizesNacionaisFuncionamentoEscolasIndigenas.pdf. Acesso em 20/07/2012.

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Já a educação escolar indígena, organizada pela União e pela cooperação de

estados e municípios, deve envolver os traços culturais e étnicos das comunidades

indígenas brasileiras.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Lei n. 9394/96), em

seu art. 78, define que a educação escolar indígena deve ser intercultural e bilingue entre

os indígenas para a “reafirmação de suas identidades étnicas, recuperação de suas

memórias históricas, valorização de suas línguas e ciências, além de possibilitar o

acesso às informações e conhecimentos valorizados pela sociedade nacional” (SILVA,

2012, p. 36)11

A educação intercultural deverá “fortalecer as práticas sócio-culturais e a língua

materna [...], desenvolver currículos e programas específicos, neles incluídos conteúdos

culturais correspondentes às respectivas comunidades [...].” (SILVA, 2012, p. 36). 12

3 EDUCAÇÃO LINGUÍSTICA INDÍGENA E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA.

COMO ISSO É POSSÍVEL?

Inicialmente, o que se propõe nesse texto é uma reflexão entre professores e

alunos de licenciaturas do país sobre a inserção do elemento indígena nos currículos

escolares e em sala de aula da educação básica. O objetivo é descrever situações de

aprendizagem que possam servir de começo para uma prática pedagógica que

implemente a interculturalidade e o bilinguismo na parte que se refere aos elementos

não indígenas, ou seja, fazer o ensino de língua pela comparação e descrição do PB com

línguas indígenas. É evidente que essa reflexão importa em uma orientação

metodológica que ocorrerá pela elaboração da escola e dos professores, conjuntamente.

11

SILVA, Dr. Ezequiel II Sales e. Nova LDB comentada: atualizada. São Paulo: Arte Editorial, 2012. 12

Id. Ibidem.

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A Linguística13

já integra o conjunto de disciplinas acadêmicas que constituirão

a base e o objeto da interculturalidade e do bilinguismo em sala de aula de alunos

indígenas. E é com esse suporte que professores de alunos não indígenas produzirão

atividades de aprendizagem nas duas línguas (materna e indígena).

Em relação aos conteúdos, o professor poderá trabalhar com a arte indígena,

literatura, poesia, história e línguas indígenas, com os etno saberes. Por isso, a ideia do

contato das culturas indígenas com a cultura não indígena deve ser trabalhada nas

escolas com uma perspectiva integrada.

Estratégias de ensino da língua portuguesa pela comparação da gramática de

línguas indígenas com a gramática da língua materna devem considerar, no tratamento

aos conteúdos, na metodologia e nos materiais, os sujeitos envolvidos nesse processo de

ensino e aprendizagem:

(a) Os alunos não indígenas, que estarão conhecendo, de maneira concreta, o

elemento indígena em seus costumes e usos linguísticos mais diretamente,

inclusive conhecendo o léxico da língua (os empréstimos ao português),

aspectos da fonologia, da morfologia, da sintaxe, da semântica e, especialmente,

aspectos pragmáticos. Para isso, o professor poderá iniciar o trabalho

pedagógico a partir da competência pragmática e do conhecimento das

condições de uso das línguas pelos indígenas.

(b) Os alunos indígenas, que serão sujeitos de observação e poderão interagir com

não índios, de cuja situação de interação resultarão trocas enriquecedoras,

podendo-se conhecer o contexto extralinguístico, os fatores socioeconômicos,

culturais e afetivos envolvidos na comunicação produzida pelo indígena ao usar

sua língua. Será uma oportunidade de índios e não índios conhecerem o modo

como estabelecem a interação e o contexto em que se dá essa interação.

(c) O professor de língua portuguesa, cuja experiência linguística refletirá em seu

desempenho pedagógico diário (a pesquisa, o contato com outra língua, a

13

Outras disciplinas acadêmicas são a Antropologia e a Etno-História.

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descoberta de nova (s) gramática (s), de novos arranjos linguísticos produzirão

nele motivação para seguir em mais descobertas e pesquisas sobre as línguas

naturais).

(d) A escola, que, além do currículo tradicional que já oferece, incorporará ao

desempenho dos seus alunos conhecimentos de antropologia, de etno-história, de

linguística, de ciências, criando situações de aprendizagem que extrapolem o

ambiente da sala de aula e ampliem capacidades de seus alunos quanto ao ser e

ao conviver, oferecendo para a sociedade pessoas mais humanizadas, mais

solidárias, mais sensíveis e mais éticas.

Na perspectiva do professor, a organização de um curso para iniciar docentes no

contato com uma língua indígena e posterior descrição e comparação com a língua

materna, no trabalho diário de sala de aula, deve começar com atividades de

conhecimento linguístico:

(a) Fonético, para a prática em ouvir e transcrever o contínuo sonoro da língua

estudada.

(b) Morfológico, para refletir sobre o conceito de palavra; as partes constitutivas;

estrutura; categorias lexicais; flexão e derivação.

(c) Da frase como unidade sintática, para perceber a estrutura; os tipos de frase;

elementos constitutivos.

(d) De relações gramaticais entre sintaxe e fonologia.

(e) Do texto como unidade de ensino, com análise de elementos de semântica e da

pragmática; quantificadores, pessoa, tempo-aspecto, conectores.

Dois aspectos na experiência de língua indígena e língua materna serão

privilegiados no trabalho pedagógico com a linguagem e com o texto: as experiências

decorrentes do contato linguístico e a interculturalidade. Um outro elemento na

composição do trabalho linguístico com línguas indígenas e materna será a educação

bilíngue.

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3.1 É possível o ensino de línguas pelo contato linguístico

Te mandei um passarinho, / Patuá miri pupé /

Pintadinho de amarelo, / Iporanga ne iaué.

Te mandei um passarinho. / dentro de um

cestinho, / pintadinho de amarelo, / e bonito

como você.

Contato linguístico é o uso de mais de uma língua no mesmo espaço e ao mesmo

tempo (THOMASON, 2001). Os falantes não precisam falar fluentemente as línguas

existentes naquele espaço, mas é necessário que haja alguma espécie de comunicação

entre eles e pelo menos algumas pessoas, naquele meio, devem usar mais de um idioma.

Ao se observar indivíduos, falantes de uma mesma comunidade, em situações de

contato face a face, é possível se perceber variações de uso.

Em comunidades consideradas pequenas, como povoados e vilas, ou maiores,

como municípios, estados ou países, o contato linguístico, resultado de uma história

social, tem consequências sociais benígnas e vantajosas para os indivíduos.

(THOMASON, op.cit).

Segundo Dubois et al (1973), o contato linguístico, através de empréstimos,

acontece no momento em que um falante de uma língua “A” usa e acaba por agregar

uma unidade ou um traço linguístico que existia precedentemente no falar de uma

língua “B” e que a língua “A” não possuía.

No Brasil, os falantes de línguas indígenas estão em contato direto com a língua

portuguesa. A inclusão, na educação básica, de estudos de línguas indígenas, a serem

feitos em práticas orais e escritas, poderão ser associados a estudos em língua

portuguesa e, dessa associação, alunos não indígenas também se beneficiarão, por que

desenvolverão capacidades de usos da sua língua e da língua dos indígenas.

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O professor pode tornar perceptível, aos alunos da educação básica de escolas

regulares, as distinções entre o português brasileiro e as línguas indígenas, fazendo

descrições e comparações e focalizando nos aspectos universais das duas línguas, nos

fenômenos de variação, nos eventos comunicativos e no contexto em que eles ocorrem.

E, em se tratando de variedades linguísticas em uma mesma comunidade, nas

interações entre falante e ouvinte, na elaboração de frases, sentenças e textos, na

elaboração dos sentidos, no léxico, na morfologia, na sintaxe. O conhecimento para

alunos não indígenas sobre as línguas indígenas poderá chegar por meio de pesquisas no

espaço escolar ou mesmo em aldeias e tribos, hoje já bem mais acessíveis.

Variações linguísticas no PB, decorrentes de termos e palavras derivadas de

línguas indígenas aparecem, bem pouco, no ensino de português. É possível que se

encontrem livros didáticos que chamem atenção para a presença de sufixos, prefixos e

outros elementos que entram em processos de formação e derivação de palavras no

português brasileiro e ainda alguma contribuição ao léxico português com nomes de

lugares (palavras toponímicas), nomes de animais, de plantas, de alimentos.

Podem-se citar palavras tão comuns na vida de todos como a palavra

“macaxeira”, raiz que serve para fabricação de massa para bolos e mingaus e que recebe

esse nome no nordeste. Mas no sul e sudeste essa raiz é conhecida como “aipim” ou

“mandioca mansa”. Já “mandioca”, no nordeste, é uma raiz que só é comestível após ser

transformada em farinha, pois, se usada como a macaxeira ou aipim, ela pode provocar

envenenamento, por isso é denominada de “mandioca braba/brava” no sul e sudeste.

Contudo, a escola ainda não trata a influência e a farta contribuição das línguas

indígenas no léxico do PB com o valor que pode (e deve) tratar. A maioria dos alunos

em etapa escolar desconhece a história da relação da língua materna com as línguas que

se falava antes da colonização. O que existe em livros didáticos é insignificante em

relação ao que pode ser pesquisado, divulgado e aprendido.

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A educação básica nacional já incluiu o elemento indígena (povos, cultura e

línguas) no currículo (Lei n. 11.645/2008). Agora é a vez de professores e escolas

contemplarem em seus trabalhos pedagógicos de sala de aula essa temática e adotá-la

como conhecimento que integra a formação de crianças e jovens, indígenas e não

indígenas.

3.2 A interculturalidade como conhecimento para a aprendizagem de línguas

(indígenas e portuguesa)

A interculturalidade, na perspectiva que ora se quer falar, é a que envolve

processos de ensino e aprendizagem e considera contextos de educação escolar de

língua portuguesa e de línguas indígenas.

A perspectiva intercultural de ensino de língua portuguesa, envolvendo sujeitos

indígenas e não indígenas, remete previamente para algumas indagações, como por

exemplo,

Qual o português e qual a gramática que é ensinada aos povos indígenas? A

língua portuguesa que é ensinada dentro dos territórios indígenas é a mesma que

é ensinada fora deles? Se não o é, qual a variedade que é adotada para alfabetizar

crianças indígenas em segunda língua?

Na escrita, há diferenças entre o português ensinado e os usos linguísticos

escritos dos alunos de territórios indígenas?

Como está sendo problematizada e tratada a tensão entre o português-acadêmico

ensinado aos índios e o português-indígena por eles produzidos?

É possível ensinar o português-acadêmico sem que isso signifique o desprestígio

ao português-indígena?

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Como os indígenas veem o ensino de português, considerando que esta é a

língua do colonizador (sujeito que representou a violência física contra homens e

mulheres nativos e a morte de muitas línguas indígenas)?

Como o indígena se sente em relação à necessidade de aprender a língua

portuguesa para ter acesso à escrita oficial e, de posse desse conhecimento,

poder lutar pelos seus direitos?

Como o indígena manifesta a importância de aprender português, sabendo que é

nessa língua que lhe chegam referenciais culturais como a linguagem da TV,

livros, jornais, revistas, bens de consumo, atos da vida civil, como documentos

que tratam de políticas indígenas, dentre outros?

Na perspectiva do ensino de português para os indígenas, o tratamento

intercultural aos conteúdos dessa língua farão mais sentido. A produção dos

conhecimentos nessa língua será mais aproximada do plano acadêmico (ou culto), muito

embora se saiba que marcas da L1 continuem presentes na escrita de indivíduos

indígenas. Também o ensino do português na educação básica regular para alunos não

indígenas poderá se valer da interculturalidade.

A perspectiva intercultural poderá gerar diálogos entre o ensino e a

aprendizagem em língua portuguesa, associando-se a investigação, a descrição e a

comparação entre essa língua e línguas indígenas. No ensino do PB em classes de não

indígenas, o professor pode (e deve) considerar a sala de aula como espaço da interação,

da manifestação e do diálogo. A oralidade produzida em sala de aula é a matéria-prima

de análise e de descrição linguísticas. Ao passar para o plano da escrita, a gramática da

língua escrita também será objeto de reflexão e de nova produção. Os alunos de

português de escolas não indígenas têm a possibilidade de se envolver com projetos

escolares, não apenas para conhecimento de tribos e suas línguas, mas em ações

pedagógicas que provoquem o convívio e a reflexão entre ambos (alunos indígenas e

não indígenas) e possibilitem a troca de experiências, a negociação de diferenças, a

identificação de conflitos e a criação de solução para possíveis problemas gerados pelas

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diferenças culturais das distintas etnias. E seguramente se desenvolverá a perspectiva

intercultural no ensino das duas línguas.

A alfabetização intercultural – que envolve a oralidade, a escrita e a educação

bilingue – é a prática pedagógica que caracteriza a educação escolar indígena

atualmente e “deriva do termo Educação intercultural bilingue, utilizado pela UNESCO

para designar uma importante característica da educação escolar indígena.”.14

A

alfabetização intercultural privilegia a aquisição do saber em função das relações entre

indígenas e não indígenas. A escola atual (Lei n. 9394/96) pretende integrar as

populações étnicas à sociedade nacional e como a língua é o meio que permite a

integração e o diálogo entre as duas etnias, a educação escolar indígena ensinará aos

alunos da aldeia a falar, ler e escrever em português. Falar, ler e escrever passaram a ser

conhecimentos relevantes na alfabetização intercultural.

O conceito de alfabetização intercultural poderá se estender para a educação em

língua portuguesa com alunos não indígenas em práticas de linguagens recíprocas entre

a educação indígena e a não indígena.

3.3 A educação linguística bilingue

A educação linguística bilíngue ainda não é um tema que se possa abordar com

tanta segurança ou que se pense que já esteja profundamente discutido entre educadores

e linguistas que atuam na produção de textos e matérias para a educação linguística em

geral. As reflexões sobre o bilinguismo nesse texto pretendem pensar o contexto

cultural bilíngue dos povos indígenas apenas para refletir sobre o modo pedagógico

como esse contexto pode estar presente em atividades e projetos de ensino de língua

portuguesa a alunos não indígenas e a alunos indígenas.

14 NEVES, Josélia Gomes. Alfabetização intercultural: oralidade, escrita e bilinguismo em sociedades

indígenas. Revista Espaço Acadêmico n. 85, junho de 2008, Ano VIII, ISBN 1519.6186. Disponível em

http://www.espacoacademico.com.br/085/85neves.htm. Acesso em 20/07/2012.

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O cenário das aldeias é bilíngue. As etnias usam normalmente suas línguas

étnicas em graus diferenciados com seus interlocutores. Mas a escola quase sempre

mascara o contexto bilíngue e atua mais dirigida à manutenção de uma língua sobre a

outra. O aprendizado escolar parece que vai, ao longo das séries, fortalecendo a língua

portuguesa e enfraquecendo as línguas indígenas.15

As aulas de língua portuguesa em classes regulares da educação básica poderão

ser oportunidades de discussão sobre a condição bilingue dos alunos indígenas. Os

alunos não indígenas poderão ser sensibilizados a perceber se

(a) o tratamento escolar na educação bilingue apresenta diferenças para com uma

língua e para com a outra;

(b) há modelos que descentralizem a língua étnica dos alunos;

(c) as habilidades de leitura e escrita são desenvolvidas nas duas línguas;

(d) a língua indígena tem o status de língua plena e está no cenário escolar nas

mesmas condições que a língua portuguesa;

(e) a língua indígena como primeira língua é objeto de reflexão e estudo no nível

oral e no nível escrito.

A reflexão sobre o bilinguismo na educação indígena pode servir para a

educação não indígena, oportunizando-se a alunos não indígenas o contato com as

língua étnicas. Ambos os alunos ganharão com o bilinguismo. Indígenas convivem nas

aldeias com a linguagem da TV e do rádio. Por outro lado, na interlocução face a face

usam a língua indígena.

4 POSSIBILIDADES DE USO DE LÍNGUAS INDÍGENAS EM CLASSES DE

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA POR ALUNOS NÃO INDÍGENAS

15

PEREIRA, Maria Ceres. Escolhas linguísticas para o ensino em escola da aldeia indígena em

Dourados/MS-Brasil. Disponível em http://www.mceres.net/ebooks/0227_PEREIRA_M_C_.pdf.

Acesso em 27/07/2012.

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A metodologia de projetos pedagógicos para o ensino de línguas é fartamente

utilizada durante a educação básica. A reflexão de alunos da educação básica de escolas

não indígenas sobre a gramática e o léxico do PB poderá ser feita por práticas de

projetos de ensino, no fundamental e no médio. O contexto provocador de situações de

aprendizagem, a metodologia, os materiais, os recursos, as estratégias e a avaliação da

aprendizagem deverão atender à necessidade, à intenção da escola e à do professor de

língua portuguesa para não indígenas e para indígenas.

A formação de alunos para o uso da língua em quaisquer situações

comunicativas passa por ações de usos, reflexão e novos usos, o que implica em

envolver os alunos no exercício pleno da linguagem, envolvendo-o em experências de

observar a língua em uso, analisar e julgar usos observados e produzir a linguagem, oral

e escrita, ou seja, ler textos, analisar, produzir, corrigir e julgar textos produzidos, na

perspectiva da escrita. Na perspectiva da oralidade, atividades de escuta de textos e de

fala ampliarão as capacidades de linguagem quanto ao ato de ouvir e falar.

Da associação entre as experiências linguísticas de não indígenas com indígenas,

de trocas culturais e pela convivência social que ações escolares provocarão entre esses

sujeitos, haverá ampliação dos conhecimentos linguísticos e de mundo das duas partes

envolvidas.

Um amplo campo para experiências e um farto material de estudo e pesquisa

para professores e alunos permitirá que se explore, por meio de ações pedagógicas, as

línguas em uso e se faça a ampliação das competências linguísticas de um e de outro

sujeitos.

Exemplos de ações, para esse objetivo, podem realizar-se em formato de:

(a) projetos de ensino;

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(b) sequências didáticas para tratamento específico de questões linguísticas,

como estudar, por exemplo a fonética ou a sintaxe da uma língua indígena e

compará-la com a da língua portuguesa;

(c) atividades de pesquisa em sala de aula para comparação entre as línguas

estudadas e identificação da mútua influência resultante do contato

linguístico;

(d) elaboração de materiais para uso em situações de bilinguismo;

(e) atividades de tradução com uso de narrativas orais que circulem nas

diversas línguas indígenas para tornar acessível a alunos não indígenas os

etno saberes que circulam na memória oral indígena.

(f) sessões de estudos comparativos para identificação de elementos

simbólicos e representativos dos povos indígenas;

(g) contato e convivência com indígenas diretamente em aldeias para registro

de eventos festivos, rituais, celebrações e identificação de elementos de

representações simbólicas indígenas;

(h) produção de vídeos tendo pessoas das aldeias como protagonistas da sua

história e da sua cultura;

(i) visita a aldeias para conversa direta com indígenas e gravação de

entrevistas;

(j) feiras pedagógicas com exposição de materiais escritos produzidos por

alunos não indígenas e indígenas.

O trabalho pode ser planejado em diferentes grupos de ações de ensino e

aprendizagem, como os projetos pedagógicos ou projetos de ensino, que favorecem à

transversalidade e, por serem coletivos, simplificam as ações dos professores que

estarão fortalecidos na ação coletiva e na superação de problemas.

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Sugerimos que o professor de língua portuguesa consulte o Referencial

Curricular Nacional para a Educação Indígena16

e compreenda que a proposta de

educação intercultural e bilíngue, defendida pelo Ministério da Educação para povos

indígenas, inclui a divulgação, para a sociedade nacional, da temática indígena em sua

plenitude, cabendo, nesse contexto a realização de:

(a) ações integradas que valorizem a diversidade socio-cultural do país;

(b) reflexão sobre a riqueza que a diversidade étnica propicia;

(c) exploração da diferença étnica entre indígenas e não indígenas

(d) trocas culturais para o aprendizado recíproco entre os diversos segmentos

que compõem o país.

(e) estudo com os seis temas transversais propostos para a educação escolar

indígena: autosustentação, ética indígena, pluralidade cultural; direitos,

lutas e movimentos; terra e preservação da bio-diversidade e educação

preventiva para a saúde. (BRASIL,1999).

Elencamos abaixo algumas ações para o trabalho integrado de língua portuguesa

com línguas indígenas:

Grupo 1 – ENSINO POR PROJETOS PEDAGÓGICOS

Projeto 1: Língua Portuguesa e Línguas Indígenas: quem é quem no português

brasileiro?

Projeto 2: Cultura e vernáculo: influências do português em línguas indígenas

brasileiras.

Projeto 3: Toponímia: a contribuição indígena para nomes de cidades e seus

significados.

Projeto 4: Língua portuguesa e línguas indígenas: ortografia e escrita das palavras.

16 O Referencial Curricular Nacional para a Educação Indígena está disponível no portal do

MEC, nos seguintes sites: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_acao/pcnacao_alf.pdf e

http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/prog.pdf

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Projeto 5: O léxico indígena e a sua contribuição à cultural brasileira.

GRUPO II – APRENDIZAGEM LINGUÍSTICA POR PRODUÇÕES ESCRITAS DE

ALUNOS INDÍGENAS.

Nesse grupo de ações, apresentamos o trabalho da Professora Maria Gorete

Neto, da Universidade Federal de Minas Gerais,17

em sua ação docente em licenciaturas

indígenas naquela universidade.

Produção 1: Carta destinada ao presidente da República, produzida por aluna da 7a.

série da Aldeia Tapirapé.

Exmo. Sr.

Fernando Henrique Cardoso

Presidente da República

Aldeia Tapi’itãwa, 16.08.01

Eu sou (...) Tapirapé, estudo na 7ª série.

Olha, meu amigo Fernando Henrique eu estou escrevendo para você organizar a área

indígena. Por isso que nós estamos escrevendo para você. Para você tirar posseiros da

área indígena. É isso que nós queremos saber com você. Para saber sua opinião. Aqui

na área indígena esta ivadindo o posseiro. Está cortando pau-Brasil. Também estão

acanbando com a mata. A funai está falando com ele e ele não quer parar de cortar

pau-brasil porque ele está acostumado no área Tapirapé por isso que posseiro não

quer parar. Fernando Henrique você tem que tirar posseiro da nossa área para nós

ficar alegre. Nossa terra está estragando por causa do posseiro. Por isso nos estamos

fazendo carta para você Fernando Henrique para você saber como está funcionando no

nossa área. Por hoje é só. Autora: (...) Tapirapé.

17 Produção escrita retirada do texto Português-indígena versus português-acadêmico: tensões,

desafios e possibilidades para as licenciaturas indígenas, de autoria da Professora Maria Gorete Neto, da

UFMG. E-mail: [email protected]. Disponível em

http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/pt/arquivos/sielp2012/1040.pdf.Acesso em 27/07/2012.

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A professora Maria Gorete Neto analisa a produção escrita e chama a atenção

para a competência pragmática da aluna ao processar o texto.

A carta acima começa com o cabeçalho proposto pela professora “Exmo.

Sr./Fernando Henrique Cardoso/Presidente da República”. Logo após, a

aluna se apresenta e diz porque está escrevendo, conforme o costume

Tapirapé de contextualizar todas as informações: “Olha meu amigo

Fernando Henrique eu estou escrevendo para você organizar o área

indígena. Por isso que nós estamos escrevendo para você”. Ao escrever ao

presidente a aluna não evita marcas, como o uso de ‘olha meu amigo’ e

‘você’ como pronome de tratamento para a autoridade máxima do país, que

poderiam ser tachadas por não-índios de “informais”. No contexto Tapirapé

estas marcas não são informais, pois, não há diferenciação de tratamento

entre as autoridades Tapirapé e os demais membros da aldeia (vide Wagley,

1988, p. 130). O uso da construção “Olha meu amigo...” é uma estratégia

Tapirapé de chamar o interlocutor para mais perto e conferir um grau mais

íntimo à conversa. Estabelecida a intimidade fica mais fácil fazer um pedido

e, por conseqüência, aumenta a probabilidade de que o mesmo seja satisfeito.

Isto remete ao hábito da partilha, característica muito expressiva da

cosmologia Tapirapé, pelo qual costumam dividir os produtos da roça, das

caçadas, das pescarias e das coletas na mata. É um procedimento a que subjaz

troca e reciprocidade. Tal partilha configura-se como uma estratégia de

sobrevivência posto que nem sempre as caças são fartas e nem as roças são

produtivas igualmente para todos. A troca de alimento supõe troca de

gentileza e cuidado que, em algum momento, será retribuída ao ofertante.

Além disso, os Tapirapé raramente negam entre si pedidos. A autora espera

assim, inconscientemente, que a autoridade também não negue o seu pedido.

Por outro lado, observe-se que ela diz duas vezes que é para ‘ele’ que ela está

escrevendo. É recorrente nos textos orais em língua Tapirapé este recurso da

circularidade, da repetição e o português-tapirapé escrito apresenta também

esta característica. Por sua vez, na frase “Aqui no área indígena está

ivadindo o posseiro”, aparece o sujeito ‘o posseiro’ depois do verbo, como

permitido na estrutura da língua Tapirapé. Finalizando a carta, a aluna

aproxima-se novamente da autoridade através do pronome “você” e explica

de novo o motivo da carta: “Por isso nós estamos fazendo carta para você

Fernando Henrique para você saber como está funcionando no nossa área”.

Examinando as características do texto apresentado, pode-se enumerar

sucintamente alguns aspectos do português-tapirapé: mobilidade sintática

flexível com alternâncias na ordem sujeito, verbo, objeto, sem

comprometimento da compreensão textual; circularidade, ou seja, o texto

apresenta idas e vindas ao mesmo tópico o que poderia erroneamente dar

ideia de repetição ou redundância. Trata-se assim de uma estratégia

discursiva indígena, muito comum na oralidade, para não deixar dúvidas

quanto ao que está sendo dito. Além destas características lingüísticas a carta

revela atitudes e comportamentos que fazem parte da vida deste povo e que

apontam para a cosmologia Tapirapé, associados, sobretudo, à relação de

troca e reciprocidade. (NETO, 2012).18

18 NETO, Maria Gorete. Português-indígena versus português-acadêmico: tensões, desafios e

possibilidades para as licenciaturas indígenas. Disponível em

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Os aspectos linguístico-textuais destacados pela pesquisadora tornam relevantes

o trabalho pedagógico integrado entre língua portuguesa e línguas indígenas.

Na competência pragmática da língua Tapirapé foram destacados os seguintes

aspectos:

o costume de contextualizar as informações.

o tratamento informal à autoridade (entre as autoridades Tapirapé não há

diferenciação de tratamento).

Na competência textual da aluna indígena, no português-tapirapé, foram

destacados, no texto da aluna, os seguintes aspectos:

o recurso de circularidade, de repetição (o português-tapirapé apresenta essa

característica), com idas e vindas ao mesmo tópico, sem caracterizar repetição.

a ordem VS - “invadindo o posseiro” - o sujeito aparece depois do verbo,

posição típica na construção oracional da língua tapirapé, revelando

flexibilidade na estruturação da frase e sem comprometer os sentidos.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prática didática de línguas requer orientação teórico-metodológica produtiva e

que faça sentido para os alunos e professores. Ambos já têm a língua em si

internalizada. O ensino deve ser para ampliar as competências já presentes em cada um

dos estudantes. Estratégias de aprendizagem na perspectiva intercultural e bilingue

enriquecerão os saberes linguísticos dos sujeitos envolvidos no processo de ensino.

http://www.ileel.ufu.br/anaisdosielp/pt/arquivos/sielp2012/1040.pdf.Acesso em 27/07/2012.

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Defende-se a ideia da articulação de saberes convencionais aos etno saberes pela

interface oralidade e escrita em línguas portuguesa e indígenas como caminho que se

mostra capaz de envolver pessoas de vida e experiências distintas e, como tal,

reveladores de uma pluralidade cultural que bem caracteriza todo o território brasileiro e

que se torna mais admirável à proporção que o conhecimento e a ciência descobrem e

revelam práticas sociais, culturais e linguísticas novas da gente brasileira.

A motivação para o trabalho com o português brasileiro e as línguas indígenas

está dentro de cada um dos educadores desse país. Vamos descobrir! Vamos realizar!

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