Continuum 10 - O Desenho das Idéias

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mai 2008 | itaucultural.org.br 10 ITAÚ CULTURAL O desenho das idéias

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A cadeira em que sentamos, o copo no qual bebemos, o livro que lemos, o prendedor que pendura a roupa. Ao nosso redor, em todos os lugares. O design está em tudo, inclusive no tema dessa edição da revista Continuum Itaú Cultural. Sob o título O desenho das idéias, esta edição discute questões relacionadas à funcionalidade, à estética, à democratização e à desmaterialização do design.

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ITAÚ CULTURAL

O desenho das idéias

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Objetos de desejo e de transformação

Esta edição da Continuum Itaú Cultural nasceu de um dado curioso: 95% dos designers produzem objetos que atingem apenas 10% da população mundial. A informação, publicada na revista do Ontário College of Art & Design, no Canadá, lançada no início deste ano, revela uma distorção e faz pensar que tipo de design é esse, tão exclusivo. Geralmente associado a produtos sofisticados, belos e caros, tão bem denominados pelo historiador britânico Adrian Forty como objetos de desejo, o design em questão poderia ser chamado de alto design.

Mas não foi apenas esse aspecto que motivou a realização desta edição. O mesmo artigo da instituição canadense revela o surgimento de projetos voltados para a produção de objetos que atendam aos 90% que supostamente estariam excluídos do alto design. Surge assim outra forma de pensar o desenho industrial, à primeira vista muito mais democrática. Seguindo essa pista, uma das reportagens deste número se dedicou a saber se essa tendência encontra eco

entre os designers brasileiros.

A matéria que abre a revista mostra como o design está presente nas interações sociais, nas relações de poder e nas escolhas racionais e emocionais que fazemos. Indo um pouco mais além, o historiador Rafael Cardoso Denis, em entrevista especial, acredita que o design tende a se afastar da materialidade. Segundo ele, os designers têm de aprender a projetar situações de uso de objetos. Ou seja, assim

como a arte, o design também é, nas palavras de Leonardo da Vinci, “uma coisa mental”. Inspirada

nessa proposição, a capa da revista é um espaço em branco, para ser preenchido não com objetos, mas com idéias sobre eles.

A Área Livre oferece ao leitor uma peça criada pelo designer gráfico Carlo Giovani. Seguindo o preceito de que bom design une beleza e funcio-

nalidade, o brinquedo é também um porta-canetas. Acompanhe o processo de criação desse objeto na galeria de fotos da

revista on-line, em itaucultural.org.br, que traz ainda atualizações exclusivas.

Tiragem 10 mil – distribuição gratuita Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento [email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

Continuum Itaú Cultural Projeto Gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Thiago Rosenberg Colaboraram nesta edição Alex Sander Alcântara, Carlo Giovani, Cia de Foto, Ethel Leon, Fernanda Castello Branco, Mariana Sgarioni Agradecimentos Alexandre Wollner, Ana Elisa Cunha, Andrés Otero, Apple, Atec Original Design (SP), Cine Odeon (RJ), Cristiano Trindade, Editora Estação Liberdade (SP), Editora Senac (SP), Eduardo Girão, Elisa Cardoso e Kiko Farkas (Máquina Estúdio/SP), Ethel Leon, Fernanda Martins, Felipe Farina, Helio Herbst, Livraria Leonardo da Vinci (RJ), Lumini (SP), Máquina Estúdio (SP), Mariana Lacerda, Manoel Coelho (MCA/PR), Mellone + Associados (SP), Moema Cavalcanti, Nestlé do Brasil, Nódesign (SP), Paulo Scott, PepsiCo (divisão Coqueiro), Romulo Fialdini, Tomaz Vello, Salão Lohan (SP), Sol, Volkswagen do Brasil

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)

A imagem da página 7 está sob licença do Creative Commons Attribution 2.5

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sumário

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Qual é o pente que te penteia?Beleza ou funcionalidade: o que faz o design se tornar parte de nossas vidas

A estética do acessoAs soluções para tornar o design acessível à maior parte da população

Oito “clássicos” do design brasileiroDa lata de sardinha ao carro, Ethel Leon aponta as grandes invenções do design

Una cosa mentaleEm entrevista, Rafael Cardoso fala sobre a desmaterialização do design

Cenas de um casamentoA relação entre design e literatura torna projetos editoriais cada vez mais sofisticados

Continuum on-lineA revista na internet e seus conteúdos exclusivos

Área LivreCarlo Giovani projeta brinquedo para o leitor montar

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Garrafas de Coca-Cola: desenho ergonômico virou marca registrada | imagem: Cia de Foto

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Qual é o pente que te penteia?Os objetos que usamos e que nos rodeiam não apareceram por acaso. O sentido de cada um existir vai muito além de sua simples função prática – é por essas e outras que somos atraídos por milhares de coisas o tempo todo

Por Mariana Sgarioni

“As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender”, bem lembra Paulinho da Viola na canção Coisas do Mundo, Minha Nega. E quantas coisas estão no mundo, você já reparou? É só dar uma olhadinha agora, ao seu redor. Independentemente do lugar, você deve estar perto (ou dentro) de alguma construção. Deve haver mobílias e infinitos objetos que certamente passam despercebidos ao seu olhar diário – como o suporte de lápis em cima da mesa ou o pegador de panelas na cozinha. Pois bem. Procure reparar com calma nos detalhes dos objetos: por exemplo, a maneira como a embalagem de balas foi pensada para que você se sirva com apenas uma das mãos, ou o formato do telefone que cabe direitinho no seu ouvido. Tudo isso foi minimamente elaborado por uma equipe de profissionais que vêm ganhando cada vez mais destaque: os designers. São eles, com seu trabalho minucioso, que fazem sua vida mais prática e mais bonita.

Na verdade, o design surgiu para colocar um pouco mais de beleza na vida da gente. Isso partindo de dois pressupostos: o primeiro é que, não tem jeito, precisamos de muitas coisas ao nosso redor. Ninguém consegue viver no nada, no vazio. “Vivemos em ambientes repletos de objetos que definem a relação que temos com o mundo. A forma como a cadeira do chefe é posicionada, por exemplo, determina a relação que ele mantém com sua equipe: muitas vezes ela é maior, mais confortável e fica com o assento ligeiramente mais alto que as demais. Pronto, a relação hierárquica está estabelecida sem que uma palavra seja pronunciada”, afirma Chico Homem de Melo, professor de programação visual da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Além disso, os objetos são uma forma de interagirmos com o mundo – quando você vai comprar um sofá, certamente pensa também nos amigos que vão se sentar nele, e não só em si mesmo, certo?

reportagem

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O segundo pressuposto é que costumamos escolher nossas coisas muito mais com a emoção do que com a razão, o que quer dizer que gostamos do que é mais bonito. Por mais útil que seja, se o aspirador de pó for horroroso você não vai querer limpar sua casa com ele. De acordo com o psicólogo americano Donald A. Norman, professor da Universidade Northwestern, em Illinois, e autor do livro Emotional Design – Why We Love (or Hate) Everyday Things (design emocional – por que adoramos [ou odiamos] os objetos do dia-a-dia), a explicação é simples: quando deparamos com algo que julgamos atraente, isso nos causa uma sensação de bem-estar. Essa emoção positiva imediatamente é lida por nosso cérebro como a vinda de uma coisa boa. “É por isso que escolhemos sempre aquilo que nos parece mais bonito, e não coisas que são apenas uma utilidade pura e simples. Até porque as coisas bonitas, por causarem uma boa sensação, também nos dão a impressão de funcionarem melhor”, diz Norman. “O funcionalismo não explica o mundo. Não dá para pensar que cadeira só serve para sentar ou texto só serve para ler”, completa Homem de Melo.

Confesse: você não tem a impressão que seu lindo iPod toca muito melhor do que seu aparelho de som? O próprio Steve Jobs, presidente executivo da Apple, costuma dizer que o design é “a alma das criações humanas” – não por acaso, a marca da maçã mordida se consolidou no mercado com produtos esteticamente irresistíveis e disputados a tapa. Literalmente. Em julho do ano passado, quando a Apple anunciou o lançamento do iPhone, uma multidão se acotovelava em frente à loja, em Nova York, antes mesmo de sua abertura. Até a polícia teve de intervir. O primeiro sortudo gabava-se de ter conseguido o seu iPhone em exatos sete minutos depois.

iPod e iPhone (à dir.): aparelhos que seduzem pelo design | imagem: cortesia Apple

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A lei do mais belo

O design, então, é o trabalho de fazer coisas bonitas? Não é bem assim. Para começar, não existe um consenso entre os próprios designers sobre a definição de sua atividade. O dicionário Aurélio, já aportuguesando a pa-lavra, define o design como “concepção de um projeto ou modelo”. O negócio é que esse projeto ou modelo, em tese, não poderia ser apenas bonito e não servir para rigorosamen-te nada. Ele deve ser belo, funcional e mais: deve carregar um significado dentro de si, passar uma mensagem. Esse significado é o que diferencia o design atual daquele que foi feito até algumas décadas atrás.

Tudo come-çou na Alemanha da

década de 1920, com a escola Bauhaus. Fundada pelo alemão Wal-

ter Gropius, a Bauhaus reunia arquitetu-ra, artes plásticas, escultura e desenho, e

foi criada devido à necessidade de fabricar objetos em quantidade industrial. Sob a in-fluência do modernismo da época, tudo era desenhado geometricamente, com poucas cores, e a forma deveria servir à função. Ou seja, a beleza do objeto deveria ser útil para alguma coisa. E ponto final. Tudo o que fos-se ornamento sem sentido prático deveria ser cortado. Após a Segunda Guerra, a es-cola Hochschule für Gestaltung, criada na cidade de Ulm, Alemanha, adaptou a filo-sofia da Bauhaus às exigências da indústria atual. Só que, logo, surgiram outras preo-cupações: seria mesmo possível viver num mundo tão objetivo assim, desprovido de qualquer significado?

Sede da Bauhaus, projetada por seu fundador Walter Gropius, em Dessau, Alemanha | imagem: Creative Commons

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As sobrancelhas também possuem design | imagem: Cia de Foto

A resposta é não. Foi então que chegamos à definição mais próxima do design que é feito hoje em dia: projetar o mundo dos objetos levando em conta seus valores cul-turais, estéticos e funcionais. Esses valores podem se cruzar, ou andar separadamente − com certeza você já deparou com um es-premedor de frutas lindo, que parece um disco voador, mas que vaza todo o suco. Ou ainda um relógio impossível de se ver as horas rapidamente. Nesses casos, é o sig-nificado falando mais alto. Esse significado muitas vezes é construído à revelia do de-signer. Por exemplo: aquele criado-mudo onde sua avó guardava os livros para ler aos netos antes de dormirem tem uma beleza especial só para você. “Quanto mais velhos ficamos, menos neutros ficam os objetos à nossa volta. A gente mede a maturidade de uma pessoa com base na história das suas coisas”, diz Vera Damazio, autora da tese Ar-tefatos de Memória da Vida Cotidiana – Um Olhar sobre as Coisas que Fazem Bem Lem-brar, defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Onde está o design

Então quer dizer que o design está em tudo? Sim, absolutamente tudo. João de Souza Leite, professor da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi) e da Pontifícia Uni-versidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ), define o design da seguinte maneira: “Considero design o ato de projetar e tudo aquilo que for objeto de um projeto”. Dessa maneira, ele pode estar em qualquer lugar. Começando por seu corte de cabelo (hair design), pelo formato da sua sobrancelha esculpida por profissionais intitulados “de-

signers de sobrancelhas”, e até mesmo pelo verdinho-claro apetitoso da al-

face do sanduíche do McDonald’s, denominado pelos america-

nos de “food design”.

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Só que nada vai adian-tar você inventar um design que não tenha identidade própria – nesse caso, sua invenção dará com os burros n’água. É preciso que o design salte aos nossos olhos, chame a atenção, e que se diferencie dos demais. É o caso, por exemplo, da inconfundível garrafinha de Coca-Cola, aquela mais gordinha. Ela apareceu em 1915, quando todas as gar-rafas de refrigerante eram rigorosamente iguais. Seu desenho ergonômico e sedutor ganhou pela diferença e virou marca regis-trada. O mesmo aconteceu com o frasco do perfume Chanel Nº 5, um ícone no mundo da perfumaria – suas linhas retas rompe-ram um universo de frascos curvilíneos, característicos das formas femininas. “O ser humano anseia por individuação. Ninguém quer ser massa. Todo mundo quer garantir sua identidade pessoal, sua marca, sua di-ferença. E assim acontece também com os produtos que escolhemos ter em casa”, diz Souza Leite.

Num mundo em que aparece uma coisa dife-rente a cada fração de segundo, o futuro dos designers, nesse caso, pode estar em xeque. Como criar algo diferente o tempo todo? A saída, segundo Vera Damazio, é a criação de coisas que favoreçam a aproximação entre as pessoas. “O design tem de favorecer as re-lações sociais, proporcionar momentos com os outros, cuidar da sociabilidade. Só assim ele ficará gravado na memória”, diz. É um desafio e tanto, sem dúvida. Como inventar objetos que provoquem relacionamentos? Uma boa idéia, para começo de conversa, seriam guarda-chuvas grandes, prontos a oferecer uma carona em dia de tempestade. Como diz Paulinho da Viola: “coisas do mun-do, minha nega”.

Chanel N° 5: rompimento com os frascos curvilíneos | imagem: Cia de Foto

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A estética do acessoPráticas sustentáveis e associativismo criam um ambiente mais democrático para o design

Por Alex Sander Alcântara

Quando ainda estudava design industrial, as idéias fervilhavam na cabeça do jovem Daniel Beato. Tirou do papel uma que, à época, não foi levada muito a sério. A cadeira de pneus que construiu não despertou o mínimo interesse, crítica ou elogio do professor que avaliou a engenhoca. Não convencido, Beato persistiu no intento. Passou a peregrinar pelas ruas e borracharias de São Paulo à procura de pneus reutilizáveis que se transformariam em cadeiras, espreguiçadeiras, mesas, floreiras, criados-mudos. “Me transformei num borracheiro moderno.” Desde 2003, Daniel Beato é um dos coordenadores do projeto Arte em Pneus Associação Artesanal (arteempneus.com.br), que se tornou oficialmente uma ONG em 2006.

O projeto redefine o conceito de que o pneu é apenas um resíduo sólido. Pelos traçados que faz com a borracha, Daniel e sua equipe transformaram o pneu, um inimigo natural quando descartado no ambiente, num produto artístico, lúdico e, principalmente, acessível. Mas há uma diferença, segundo ele, no método que utiliza: “Com a reciclagem, reprocessa-se material, gasta-se energia, gera-se gás carbônico. No reaproveitamento, economiza-se energia, não se deixa resíduo na natureza e a comunidade é inserida socialmente”.

Pneu que vira mobiliário é apenas uma entre as várias iniciativas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo que reforçam a idéia de que o design é algo possível, sustentável e próximo da realidade das pessoas. Segundo artigo publicado na revista do Ontário College of Art & Design (www.ocad.ca), do Canadá, 95% dos designers em todo o mundo desenvolvem produtos e serviços que atingem apenas 10% da população mais rica. Na contramão dessa tendência, surgem projetos que estimulam o design para os 90% excluídos.

reportagem

Peças de Etel Carmona: responsabilidade socioambiental | imagem: Rômulo Fialdini

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Para a curadora e professora de história do design Adélia Borges, o design que ganha os holofotes da mídia é o que traz mais experimentações de linguagens e ocupa lugar em museus. Ela compara o design com a moda: “O que aparece nos desfiles da Fashion Week são roupas exclusivas, que não são feitas muitas vezes para vender. É difícil a mídia se preocupar com a coleção da C&A, das Pernambucanas ou da Marisa”. Apesar disso, Adélia acredita que o design está se tornando cada vez mais democrá-tico em todos os países, não por bondade dos empresários, mas porque o mercado competitivo e os consumidores exigem isso. “O design surge como um elemento de desempate”, afirma.

Não é o que pensa o designer Flávio Barão Di Sarno, um dos sócios da Nódesign, em-presa paulistana que desenvolve móveis, luminárias, utensílios domésticos e cosmé-ticos desde 2001. Ainda estamos, acredita ele, muito longe do ideal em relação ao acesso. “Ainda não se percebeu que muitas vezes a classe baixa consome produtos de má qualidade por falta de opção. E não por falta de gosto.” Outro ponto que o designer destaca é que existe uma limitação de ma-teriais quando se trabalha com um pro-

duto popular. Mas ressalva: “Hoje, com o avanço tecnológico, isso não quer di-

zer poucas possibilidades. E muito menos má qualidade”.

Uma das figuras mais marcantes do design brasileiro, o francês Michel Arnoult, morto aos 81 anos em 2005, defendia que o design tinha de ser vendido em lojas populares, como as Casas Bahia. Em sua busca pela “democratização do design” acima de qual-quer vaidade criativa, foi o pioneiro no uso de matérias-primas como o eucalipto, de baixo custo e que favorece o desenvolvi-mento sustentável. “Não me interessa essa busca pela novidade”, costumava dizer. Deixou, pouco antes de morrer, a Poltrona Pelicano, feita com eucalipto, leve, elegante, fácil de montar e desmontar: “Como o bico da ave é grande o suficiente para levar seus filhotes, pensei que seria confortável sen-tar dentro dele”, explicou Arnoult em 2003, quando obteve o primeiro lugar na 17ª edi-ção do Prêmio do Museu da Casa Brasileira (MCB), na categoria Móveis.

Arte em pneus, de Daniel Beato | imagem: Felipe Farina

Livreiro, de Etel Carmona | imagem: Eduardo Girão

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Outra grande defensora do design possível foi a arquiteta

e designer italiana radicada no Brasil Lina Bo Bardi. Ela defendia que nossa in-

dústria de objetos deveria ser pautada nas referências culturais brasileiras, tanto no ar-tesanato como na linguagem.

A ascensão do consumo das classes C e D no país demonstra uma tendência que aos pou-cos está sendo percebida. “O design passa a ser o diferencial para essa fatia de mercado, em que inovação e tecnologia são pré-requi-sitos”, reflete Barão. É isso que faz com que um simples ferro de passar ou mesmo um par de sandálias de borracha tragam em si um estilo, além da funcionalidade.

Barão já perdeu a conta dos inúmeros pro-jetos nessa linha que a Nódesign desen-volveu, mas cita o Homem Elástico como exemplo. É um objeto esguio que aproveita a parede como um espaço funcional. Serve para colocar no banheiro, com escova de dentes e xampu, na cozinha ou no quarto. “De baixíssimo custo, usa pouca matéria-prima, resolve o máximo de funcionalidade possível, é lúdico e divertido”, explica. Daqui a alguns meses, o Homem Elástico será ven-dido a um preço estimado em R$ 10,00.

Comunidades criativas

O design pode ser uma importante ferra-menta de transformação social, acredita a designer Paula Dib. “Existe muito mais de-sign num produto que cumpra uma função, que venha a suprir uma necessidade, do que num produto simplesmente estético. É uma forma de olhar.” Recentemente, ela desen-volveu um trabalho de resgate com a tribo indígena fulni-ó, no interior de Pernambuco. “Aplicamos técnicas de pigmentação na-turais, trazendo de volta as sementes que eles sempre utilizaram.” Paula diz que, numa segunda etapa, a tribo desenvolverá alguns produtos. “Mas assegurando-se de que os elementos tradicionais continuem fortes.” Já a designer de móveis Etel Carmona, que há 20 anos trabalha com mobiliário, aplica o conceito de responsabilidade socioambien-tal em seus projetos. Ela desenvolve oficinas em Xapuri, no Acre, e Valinhos, no interior de São Paulo. “Em Xapuri, as comunidades são envolvidas. Lá conseguimos a primeira flo-resta comunitária certificada do país.”

Homem Elástico: funcional e de baixo custo | imagem: Nódesign/divulgação

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O trabalho dos designers em comunidades pode abrir perspectivas de renda e de futuro. A intenção dessas iniciativas, segundo Paula, é fazer um resgate social e cultural, porque elas acabam mudando os padrões de com-portamento, principalmente em cidades mais isoladas, onde as oportunidades demoram a chegar. “É sempre uma postura de troca. Não é uma intervenção de cima pra baixo.” Segun-do ela, os ganhos, subjetivos, são difíceis de mensurar: “Muita gente resolve voltar para a escola, é um pouco o acordar para o poten-cial que está ali adormecido”.

A designer Fernanda Martins concorda com a idéia de que o principal papel do design é colaborar para as mudanças no planeta. Ela acredita que existem inúmeros campos de atuação para um design mais democrático. “O design que cria peças para o consumo do que não é necessário, gerando desejos, está próximo da publicidade”, diz. E alerta: “Essa linha de atuação, ligada à geração de desejos, para gastar mais dinheiro com coi-sas de que não se precisa, é equivocada. O planeta não agüenta”.

Em Belém, Pará, ela coordenou um grupo de vendedoras de ervas, da Associação Erveiras Ver o Peso, na criação de uma identidade, uma marca para os produtos que vendiam, como banhos de cheiro e remédios naturais. Nesse processo também se desenvolveu, segundo ela, um trabalho de auto-estima, de melhoria da qualidade do produto e do serviço. “É um olhar muito moderno para a questão do design. O trabalho é visu-al, mas sempre se pensa o todo.” Novas possibilidades

Projeto encurta a distância entre o design e as pessoas de baixa renda

Do meio acadêmico têm saído projetos pio-neiros como o Design Possível (www.design-possivel.blogspot.com), iniciativa de profes-sores e estudantes brasileiros e italianos sur-gida em 2004. Eles desenvolvem produtos de design comercialmente viáveis, pautados na preservação ambiental, na sustentabilida-de de recursos e na geração de renda para comunidades. Em 2006, o Design Possível lançou o concurso Design para Todos, cujo objetivo foi estimular o desenvolvimento de produtos de até R$10,00. “Eu brinco com os estudantes e alguns profissionais que se sentem um pouco deusign, que acreditam ter o poder de desenvolver qualquer coisa. Eles se esquecem de cooperar, e as soluções propostas não são as melhores por causa disso”, afirma Ivo Pons, professor de design da Universidade Mackenzie, São Paulo, e um dos coordenadores do grupo.

O projeto Design Possível recebeu, em 2006, o Prêmio Planeta Casa com a Polt-Lona, pol-trona feita com lona de banner reciclado. Trata-se do trabalho de conclusão de curso de duas estudantes, realizado simultanea-mente na universidade de Firenze, na Itália, e no Mackenzie, que utilizaram material reci-clado e tecido fabricado por uma ONG.

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Oito “clássicos”do design brasileiroObjetos, móveis, equipamentos urbanos, embalagens de alimentos, um automóvel e um dicionário contam um pouco de nossa história

Por Ethel Leon

Difícil escolher meia dúzia de objetos “clássicos” do design brasileiro. Alguns hoje têm notoriedade, graças a certos estudos ou a exposições em espaços de prestígio, além de suas qualidades intrínsecas. Um deles ganhou uma fama que considero perversa, a Poltrona Mole, de Sérgio Rodrigues, à qual se afixou o epíteto de “expressão do modo brasileiro de sentar”. Como se brasileiros se sentassem malemolengos, meio deitados, bem preguiçosos. Como se fosse possível falar de apenas um sentar brasileiro. Como se um mesmo indivíduo não sentasse diversamente, a depender de suas tarefas. Ou, pior, como se fosse dada a possibilidade de a maioria dos brasileiros sentarem-se relaxados, com a perna no braço daquela poltrona de madeira maciça e couro. Nada contra a Poltrona Mole, ao contrário, lindo exemplo de uma linhagem de assentos que promovem relaxamento, como a Grand Confort, de Le Corbusier e Charlotte Perriand; ou a Lounge Chair, dos Eames, com o charme extra de uma estrutura maciça de jacarandá.

Fisgar alguns objetos é ajudar a construir-lhes uma aura – e que ninguém se espante com o uso desse conceito benjaminiano para falar de uma poltrona, de um logotipo, de uma embalagem ou de um utensílio doméstico. Pois objetos ditos de design são musealizados e ganham feição aurática, próxima daqueles únicos, pré-seriais.

A solução aqui foi escolher – com alto grau de declarado arbítrio e propositada distância temporal – alguns exemplos que, se não se apagaram com o tempo, não mereceram a atenção devida. A eles:

resenha

Croquis da cabine telefônica de Curitiba | imagem: Manoel Coelho

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Cabine telefônica da área central de CuritibaManoel Coelho, 1992

Com base em uma visualidade moderna, racional e de poucos elementos, tem a delicada tarefa de estar na cidade sem perturbá-la, embelezando-a e prestando serviço aos pedestres. Seu jogo de proteção e transparências do vidro garante uma presença sutil, singela, mas sem abdicar de uma força expressiva que a marque para o transeunte.

Os materiais são escolhidos por sua durabilidade – aço inox, chapa de ferro, vidro, e o desenho resultante remete à estética racionalista, ao projeto moderno, sem qualquer ardor minimalista. A proteção acústica é razoável, a transparência inibe depredações e a forma conversa com a Estação Tubo, de quem é, muitas vezes, vizinha.

Em vez de arrogar-se como proposta original e excessiva, pecado de tantos móveis urbanos (a começar pelos abrigos de ônibus de São Paulo), responde à hierarquia do projeto da cidade, onde a forma cilíndrica da Estação Tubo tem papel fundamental.

imagem: MCA/divulgação

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Poltrona Ouro PretoMichel Arnoult, meados dos anos 1960

Enquanto vários arquitetos modernos abriam suas manufaturas de móveis no Rio de Janeiro e em São Paulo, nos anos 1960, o francês Michel Arnoult começou uma espécie de perseguição à idéia do móvel bem desenhado e barato. Nada de grandes estruturas maciças e matéria-prima que exigisse exímio trato artesanal. Com essa visão foram pensadas as primeiras linhas de móveis da Mobília Contemporânea, que, nos idos de 1960, eram vendidos para jovens da classe média urbana brasileira. Eram peças que se adequavam a espaços residenciais e comerciais, modulares, simples e elegantes, de acabamento impecável. A grande sacada foi vendê-los desmontados, como faria, alguns anos depois, a loja Habitat, de Terence Conran, na Inglaterra.

Um desses móveis foi a Poltrona Ouro Preto, delicada peça de pés torneados e braços compridos, inicialmente fabricada com percintas de borracha que sustentavam um estofado fino e discreto. Trata-se de poltrona de conversar, mas não de esparramar-se. Previa um comportamento sóbrio, um apelo às idéias fluidas, mas não preguiçosas. Como se do ato de sentar semi-ereto dependesse um pensamento rigoroso e vivo.

Bem, a fabricante das percintas interrompeu a produção – coisa muito comum no Brasil – e Arnoult não se perturbou. Sua formação de designer industrial previa soluções engenhosas e rápidas para novos problemas e foi assim com a substituição das percintas: elas foram garbosamente trocadas por banais fios de náilon, que não fizeram perder em nada as poltronas. O estofado do assento e do encosto, duas almofadas com as mesmas dimensões, pouco volumosas, quase secas, de espuma revestida de tecidos com padrões modernos, se sustentavam perfeitamente nos fios. A nova Ouro Preto ganhou essa resolução estrutural e, mais tarde, no início dos anos 1970, recebeu versão em que os braços eram também torneados e o conjunto de madeira era laqueado de branco. A poltrona era vendida em caixas finas e montada pelos próprios compradores, em casa.

Anos depois, Arnoult desistiria das madeiras maciças de alta densidade e qualidade e partiria para a matéria-prima de reflorestamento, eucalipto ou teca, demonstrando uma atualização com os temas que hoje são moda, o aproveitamento frugal dos materiais em razão da agenda ambiental.

imagem: Cia de Foto/cortesia Atec Original Design (SP)

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Bombom PrestígioNestlé/Antonio Muniz Simas, 1961

Era 1961, e Brasília era a forte presença no imaginário brasileiro. Muitos projetos gráficos eram pautados pelo rigor construtivo. Letras sem serifas, formas geométricas puras, algumas ilusões de movimento, algumas experiências de percepção visual, poucas cores.

Pois nesse ano, a companhia de alimentos Nestlé, em franca expansão no Brasil, decidiu lançar um produto, o bombom Prestígio, arretadamente baiano, chocolate por fora e coco por dentro. Era preciso informar esse novo sabor de bombom recheado, com sabor de pecado, muito distante dos bombons licorosos ou dos tabletes secos de chocolate vendidos nos carrinhos da Kibon. Prestígio, o nome está dizendo, deveria concorrer com similares de indústrias de chocolates, deveria ser vendido individualmente, em embalagem sugestiva, com acabamento em formato de papillotte, aquele retorcido que, hoje, tem sabor de antigamente.

Quem desenvolveu a embalagem foi Antonio Muniz Simas, publicitário que abriu o primeiro escritório de embalagens do Brasil, a DIL (Desenho Industrial Limitada). Ele não teve receio de ousar, propondo um fundo vermelho e uma padronagem de círculos preenchidos de branco e discretíssima auréola dourada, cuja função era ressaltar o branco. O vermelho rugia e as bolotas brancas, repetidas em diversos tamanhos, aludiam ao coco, mas também às estampas de bolinhas muito utilizadas pelas mulheres na época. A marca Nestlé foi aplicada em fundo branco e letras vermelhas, contrastando com o padrão da embalagem.

Foi criado, nesse momento, aquilo que os especialistas de embalagem chamam de equities, propriedades que caracterizam tão bem um produto que se tornam reconhecíveis sem que seu nome seja sequer mencionado. O Prestígio, com suas bolinhas brancas sobre fundo vermelho, tornou-se um clássico do design brasileiro de embalagens e, mais tarde, o padrão foi replicado em outros produtos. Ou seja, o padrão tornou-se marca, transformando-se em linha de itens de chocolate com coco, de biscoitos a picolé, e não apenas o bombom.

imagem: Nestlé/divulgação

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Automóvel BrasíliaVolkswagen/Márcio Piancastelli, 1973

Este clássico já foi digno de menção em canção popular (a Brasília amarela da música Pelados em Santos, dos Mamonas Assassinas) e não foi à toa. Ele representa o design que ganha características autônomas, mesmo se realizado dentro de uma multinacional. Foi desenhado sobre a plataforma do fusca, mas com carroceria radicalmente transformada. O redondo monobloco do Beetle tornou-se um carro em dois blocos, quadrado, com enormes melhorias. De pronto, a área de vidro cresceu enormemente – melhorando, portanto, as condições de direção e também de segurança –, assim como o espaço interno, que acomodava cinco pessoas.

O automóvel foi pensado como veículo de muitas funções – servia de carro de passeio, mas também de trabalho, uma espécie de utilitário compacto, que até hoje, apesar de retirado da produção há mais de 20 anos, ganha a preferência de mestres de obra, encanadores, pintores e marceneiros.

Seu desenho foi liderado por Márcio Piancastelli, que, de certa forma, fez continuar a idéia do volkswagen, o carro do povo, acessível a muitos.

imagem: Cia de Foto

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Balde de gelo EvaJorge Zalszupin, Oswaldo Mellone e Paulo Jorge Pedreira, começo dos anos 1970

Nos anos 1970, os designers brasileiros viveram um período de crescente incorporação de sua atividade às nossas metrópoles e aos planos estratégicos do país. Foi nesse período, também, que um grupo empresarial comprou a fábrica de móveis L’Atelier, tornando seu antigo proprietário, Jorge Zalszupin, o novo diretor de desenvolvimento de produtos. O grupo tinha uma fábrica de utensílios plásticos, a Hevea, que produzia itens de baixa qualidade formal. Zalszupin e os jovens designers Oswaldo Mellone e Paulo Jorge Pedreira desenharam muitas peças, requalificando o plástico injetado e propondo uma marca, Eva, para essa nova linha.

Um dos itens chama a atenção até hoje. É um balde de gelo, todo branco, sem alças ou qualquer saliência e volume que atrapalhe sua apreensão formal. Chamá-lo de balde é até maldade, pois sua forma cilíndrica pura nos faz percebê-lo mais como escultura moderna e utilitária do que como banal acessório de uso. Apenas o logotipo em letra cursiva Eva e a maçãzinha vermelha quebram sua alvura, que remete ao universo da neve e do gelo. Belíssimo desenho, já trazia um atributo de qualidades das quais muito se fala e pouco se faz: guardava a pinça de pegar gelo – acessório indispensável do balde – num encaixe interno de sua tampa, favorecendo o uso (hoje alguns falam em “usabilidade”!) e resolvendo um problema: onde colocar a pinça molhada. O desenho, simples, claro, de lindas proporções, chega a um daqueles resultados notáveis, em que o traço ganha do material, a inteligência da natureza, bem ao gosto moderno.

imagem: Tomaz Vello

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Dicionário HouaissVictor Burton, 2001

Existe livro mais importante do que o dicionário de uma língua? Embora, como diz Umberto Eco, os dicionários tendam a se tornar serviços digitais, ao contrário dos romances ou dos livros de estudos, o projeto da forma tridimensional do Houaiss, de autoria de Victor Burton, é um grande marco no design editorial de língua portuguesa.

Dá gosto tê-lo e manuseá-lo, apesar das facilidades do serviço on-line do dicionário. Nada ali foi irrefletido. Da escolha do papel, fundamental para reduzir o peso do livro, uma das principais características que nos afastam dos dicionários e enciclopédias de forma geral; ao acabamento solidamente costurado, que evita o vexame de tantos dicionários, cujas lombadas se soltam, deixando o volume mambembe; à paginação e à maneira de dispor as informações cifradas que todo dicionário tem; à facilidade da consulta e à excelente legibilidade proporcionada pelo alfabeto, especialmente desenhado pelo tipógrafo Rodolfo Capeto e que foi batizado de Houaiss.

Luminária SerpenteLívio Levi, 1970

Digamos que ela conversa com as criações tubulares de Mart Stam, Marcel Breuer, Mies Van der Rohe e Le Corbusier/Charlotte Perriand. É criação bem posterior e é uma luminária. Responde ao anseio de reduzir, reduzir, reduzir, mantendo a graça, o molejo e o desenho.

Não estamos diante de uma peça que pratica o discurso da estrutura, mas, sim, de uma escultura baseada na linha sinuosa ascendente, com uma solda mirabolantemente escondida, uma lâmpada que não apare-ce e um nome perfeito, Serpente. Foi projetada por Lívio Levi, designer ainda pouco conhecido e que viveu apenas 40 anos, de 1933 a 1973. Em 2003, foi reeditada pelo sobrinho do autor, Fernando Freidenson, e há pouco tempo voltou a pertencer ao catálogo da empresa Lumini, que projeta e produz itens de alta qualidade formal e técnica.

imagem: Andrés Otero/cortesia Lumini (SP)

imagem: André Seiti/Itaú Cultural

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Embalagem das sardinhas CoqueiroAlexandre Wollner, 1958

Ela consiste na aplicação da marca, um coqueiro geométrico, inserido em desenho geometrizado de um peixe, formado por duas figuras, um triângulo para o rabo e uma forma tetraédrica para o corpo da sardinha. Estilização absoluta do pescado, sem deixar de representá-lo “idealmente”. As diversas possibilidades das sardinhas – com molho de tomates, ao óleo ou ao molho de limão – eram comunicadas por código cromático, de imediata associação: vermelho, amarelo e verde.

A embalagem freqüentou prateleiras de supermercados por mais de 40 anos. Suas modificações posteriores só a empobreceram, com fotos e desenhos naturalistas, como se os consumidores não decifrassem de primeira o conteúdo das latinhas. E o melhor é que, na época, a propaganda foi feita pelo escritório forminform, com a participação de Décio Pignatari no texto:

“Sabor com sardinhassaúde com sardinhassucesso com sardinhas.”

Ethel Leon é jornalista e pesquisadora de história do design brasileiro.

imagem: arquivo Alexandre Wollner

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entrevistaUna cosa mentale

Por Marco Aurélio Fiochi

O design do futuro vai ter de aprender a se desmaterializar. Essa é a opinião do historiador Rafael Cardoso Denis, autor de Uma Introdução à História do Design (Editora Edgard Blücher, 2000), livro referencial para o estudo dessa ciência no Brasil. Para ele, o futuro do desenho industrial, ao contrário do que o senso comum apregoa, vai além do formato digital. “O design tende a se afastar da materialidade e caminhar em direção à experiência, ao uso e à emoção. Cada vez mais os objetos de design serão imateriais.” Parafraseando Leonardo da Vinci, pode-se dizer que o design caminha para algo muito próximo à sua clássica definição da arte: una cosa mentale. Sociólogo pela Universidade Johns Hopkins, Estados Unidos, e doutor em história da arte pela Universidade de Londres, Denis é professor do Departamento de Artes e Design da PUC/RJ e, nas horas vagas, escritor de ficção – lançou no ano passado o romance Entre as Mulheres pela Record. Também organizou a alentada reunião de ensaios sobre a produção gráfica nacional, que deu origem a O Design Brasileiro Antes do Design (CosacNaify, 2005). Nessa entrevista, ele retoma personagens e fatos relatados nesse livro e aponta a importância das práticas sustentáveis para a criação de objetos. Sobre a importância do design, Denis não titubeia: “Sem ele, o mundo entra em colapso”.

Denis: “O design tende a se afastar da materialidade” | imagem: Cia de Foto

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O que pode e o que não pode ser consi-derado design?

Sou contra esse tipo de categorização, o que é e o que não é. As coisas podem ser alguma coisa em um momento e não ser em outro. O design não é diferente da literatura ou da música, por exemplo. O que define o obje-to de design é muito mais seu uso do que o próprio objeto. Este pode estar em uma situação em que sua dimensão projetiva é evidenciada ou não. Há objetos que são ca-tegorizados pelo senso comum como tipica-mente de design, mas quando estão dentro de um museu, ou atrás de uma vitrine, mu-dam sua função. Eles passam a ter um uso que é muito mais próximo do da obra de arte num museu. Tudo depende do contexto.

Quais elementos você associa ou identi-fica como design brasileiro?

A história do design é uma história da mo-dernidade, surgida no século XIX. O design é fruto da industrialização e nasce em um mundo já – para usar um termo atual – glo-balizado. É um mundo em que as trocas internacionais definem quase todas as rela-ções. Então, é muito difícil falar em design brasileiro de uma forma purista, autócto-ne. Qualquer design, de qualquer lugar do mundo, estabelece trocas, tem influências, ainda mais no Brasil, que sempre vivenciou a experiência de importar o que vem de fora e reinventar sua realidade. Quando pu-bliquei o livro Uma Introdução à História do Design, algumas pessoas me cobraram por eu não ter feito uma introdução à história do design no Brasil. Respondi que era impossí-vel escrever esse tópico, mesmo no nível

introdutório, sem levar em consideração o resto do mundo, as influências que ti-

vemos, as trocas ocorridas... O que é o design brasileiro? A resposta

simples é: não sei.

É difícil identificar elementos brasileiros porque tudo está antropofagicamente mesclado, misturado, reprocessado...

Há certos objetos e situações que podemos entender como específicos do contexto brasileiro. São exemplares de respostas ca-racteristicamente brasileiras a um desafio maior, global, que é o design na moderni-dade, e atualmente na pós-modernidade. Mas essas respostas tipicamente brasileiras são mais exceção do que regra. Poderíamos dizer: um objeto emblemático do design brasileiro, pelo senso comum, é a Poltrona Mole, do Sérgio Rodrigues. Todos a citam, porque o próprio Sérgio, na época em que a projetou, estava pensando nas questões de identidade nacional. Era o fim da década de 1950, o Brasil tornara-se campeão do mun-do de futebol, havia a bossa nova, Brasília estava sendo construída, muitas pessoas es-tavam repensando o que era ser brasileiro. E aí a Poltrona Mole surge como manifestação de identidade brasileira, pensada especifica-mente com esse intuito. Mas, ironicamente, esse é um dos objetos do design brasileiro mais bem aceitos à linguagem modernista internacional. Foi premiadíssimo na Itália.

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E era um momento em que o design de cer-ta forma vinha em decorrência da arquite-tura. Hoje há uma separação maior, os cam-pos estão mais bem delimitados?

Você organizou o livro O Design Brasilei-ro Antes do Design, em que há um amplo levantamento da produção gráfica bra-sileira. Poderia contar um pouco mais sobre essa história?

Na história do design gráfico há alguns marcos pouco conhecidos, que datam da segunda metade do século XIX. Nesse pe-ríodo, há o começo de uma produção que chamo de indústria gráfica. Surgem figuras ímpares na imprensa, nos jornais e também nos livros, como Henrique Fróes, Ângelo Agostini, Julião Machado, que são normal-mente reputados na historiografia da arte brasileira como caricaturistas. As publica-ções passam a ter todo um planejamento gráfico. Esses são os primórdios do que se pode chamar de design gráfico no Brasil. Mas o design gráfico de fato surge no início do século XX, nas décadas de 1910 e 1920. O J. Carlos [chargista, ilustrador e designer gráfico carioca] é um excelente exemplo. Ele dirigia cinco revistas ao mesmo tempo e fazia o projeto gráfico de cada uma delas, segmentando-as de acordo com o perfil do público leitor. Ele era diretor de arte do grupo Pimenta de Melo, um dos primeiros grandes conglomerados de imprensa do país. Da mesma geração de J. Carlos há figu-ras emblemáticas como Fernando Correia Dias, um dos primeiros grandes designers de livro do Brasil. Ele pensou a estrutura do livro, a paginação, a diagramação e, eviden-temente, as capas ilustradas, que eram seu forte. Também surgem profissionais em São Paulo, como Antonio Paim Vieira, que fazia a revista Garoa. Ele foi um dos grandes capis-tas de livros da década de 1920. Na década de 1930, Tomás Santa Rosa torna-se o pai do design de livros no Brasil. Ele trabalhou quase exclusivamente para o [editor paulis-ta] José Olympio durante um período mui-to longo, produzindo centenas de livros, projetos interessantíssimos. Não gosto da palavra “pioneiros”, mas é um período de pioneirismo, as pessoas experimen-taram coisas e buscaram fórmulas para atender um novo públi-co de massa.

Creio que a delimi-tação de campos é uma coisa

do passado. Vejo certas discussões sobre o que é design, o que é arquite-

tura, o que é engenharia, o que é artes plásticas... Elas me parecem corporativis-

tas. São pessoas que querem defender seu território profissional e impedir que os ou-tros exerçam suas ocupações. Na verdade, o design, por nascer na modernidade, sem-pre foi uma área não só internacional, mas também híbrida em termos de interdiscipli-naridade. Nunca houve um design puro, o design sempre foi troca. Mas num determi-nado momento da história do design, que descrevemos de forma simplificada como modernismo ou período modernista, o de-sign foi seqüestrado por um grupo, o qual o tomou para si e determinou: “isso é design, aquilo não é design”, “isso é arquitetura” ou “aqui termina a arquitetura e começa o de-sign”. Na verdade, hoje, na pós-modernidade, já distante daquele período, consegue-se ver que nunca houve essa pureza. Nem naquela época, quando esses limites eram estabeleci-dos de uma forma mais rígida. Tratava-se mais de um discurso do que de uma prática. Hoje, percebo uma diferença: alguns dos melhores arquitetos são também designers, e vice-ver-sa. E há uma fertilização entre esses dois cam-pos que é histórica e tende a continuar.

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É o estabelecimento, de certa forma, da indústria cultural no país...

Acho que seria anacrônico chamar de indús-tria cultural o que ocorreu naquele período, mas com certeza já havia muita coisa em comum com o que se vê hoje. O Monteiro Lobato é outro grande exemplo. Ele é uma figura fundamental para a história do livro no Brasil. Além de escritor, era um empresá-rio que soube pensar mercadologicamente o produto livro. Esses casos mostram que o design gráfico no Brasil começou a se tornar naquele período uma questão de indústria e de parques gráficos. E essa para mim é a verdadeira história do design gráfico. Ele nasce mundialmente nas oficinas, nas fábri-cas, nos parques gráficos. Depois, passa por uma segunda geração, a dos profissionais liberais. Com eles, têm-se os contornos mais visíveis do que entendemos por design. Na confecção de cartazes, na década de 1930, surgem figuras como Ary Fagundes, Geraldo Orthof, Henrique Mirgalowsky. To-dos pensam que o design gráfico no Bra-sil começa na década de 1950 com a arte concreta, com Antônio Maluf, Alexandre Wollner, Geraldo Barros. Diria que isso não é um começo, é um recomeço. Como já di-zia o nome do grupo: Ruptura. Isso foi uma ruptura. Para romper, é preciso haver algo preexistente. É senso comum dizer que o design gráfico no Brasil foi inventado nas

décadas de 1950, 1960. Isso é absoluta-mente inaceitável do ponto de vista

histórico. Há, pelo menos, cem anos de indústria gráfica

antes disso.

O que muda para o design na era digital?

O design tende a se afastar da materialidade e ca-minhar em direção à experiência, ao uso e à emoção. Cada vez mais os objetos de design serão imateriais. O designer terá de aprender a projetar interações. Não basta projetar uma xíca-ra, por exemplo. Daqui para a frente será necessário projetar uma situação de con-sumo de bebidas quentes. É uma experi-ência de uso, de sociabilidade, de troca de informações. Nigel Whiteley [professor do Lancaster Institute for Contemporary Arts, no Reino Unido] em seu livro Design for Society [design para a sociedade] (Reaktion Books,1993) reflete sobre o que representou para o cinema o surgimento da televisão, e conclui que o erro dos grandes estúdios de Hollywood foi achar que o produto deles era a película, a sala de cinema, a cadeira, a pipoca, a tela... Isso não é o produto do ci-nema. Na verdade, o produto do cinema é o entretenimento. Quem estava envolvido com televisão entendeu isso, percebeu que televisão e cinema eram o mesmo produto em duas mídias, com estruturas e públicos diferentes. Eles tiveram uma visão de futu-ro, de que a parte imaterial do que faziam, a parte simbólica, emocional, era muito mais importante do que produzir películas. Isso não é apenas uma questão psicológica. Por exemplo, grande parte do que se faz atual-mente em design de experiência, como é chamado esse tipo de abordagem, deriva da ergonomia. É uma questão de usabilida-de, de economia, um conjunto de fatores.

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O aquecimento global impôs uma nova questão ao design, a sustentabilidade. Esse fenômeno representa um desafio ao setor, por meio da criação de produtos, metodologias e processos industriais?

Ao contrário de outras áreas, em que a sus-tentabilidade e o impacto ambiental são discussões recentes, no design são temas bem antigos. É uma preocupação que vem desde a década de 1960, com o início do movimento ambiental nos moldes que se conhece hoje. Naquele momento, as so-ciedades de desenho industrial declararam que o meio ambiente era uma questão cen-tral para o planejamento do design mundial. Em 1971, foi publicado um livro que influen-ciou toda uma geração de profissionais: De-sign for the Real World: Human Ecology and Social Change [design para o mundo real: ecologia humana e mudança social], do de-signer Victor Papanek. Esse autor se tornou um profeta, um guru dos jovens designers, e seu livro é, provavelmente, um dos únicos best-sellers dessa área em todos os tempos. Nele, Papanek fala da necessidade de levar a baixa tecnologia para o terceiro mundo. Ele foi muito criticado, mas também incen-sado, ao propor, por exemplo, um televisor de 10 dólares, do tipo faça-você-mesmo. As contribuições tanto de Papanek quanto do filósofo e designer Buckminster Fuller, outro pensador importantíssimo da década de 1960, com seu livro Manual de Operação da Espaçonave Terra (Editora da UnB, 1985), são enormes. O mérito de Fuller foi transmitir seus conceitos de design de forma acessível ao público em geral. Todas essas referências começaram a ser uma carga grande para os designers naquele período, como se eles ti-vessem de salvar o mundo! Essa idéia era re-corrente: o designer tinha de pensar o tem-po todo que o resto da humanidade estava destruindo o mundo e ele era responsável por assegurar o que hoje se chama de sus-tentabilidade. Essa carga paralisava o aluno ou o jovem designer, que queria equacionar todos os problemas ambientais. Mas isso

é algo muito pesado para um profissio-nal de 20 e poucos anos. Trata-se de

um problema global, de todos os campos de conhecimento.

Pelo que se pode acompanhar, o design está contribuindo bem para essa questão...

Sim. Acho que seria muito mais proveitoso se os jovens designers pensassem menos em fazer um produto que vai revolucionar alguma atividade e se concentrassem mais em como esse objeto integra um processo e qual é o seu impacto ambiental. É mais importante gerar menos lixo na prática pro-fissional, desperdiçar menos energia. Não adianta criar produtos ecofriendly se isso for feito de uma forma destrutiva, com um im-pacto ambiental negativo. Ter uma atuação responsável, que contribua para a susten-tabilidade, às vezes é muito mais impor-tante ou mais produtivo do que ficar tentando bolar o produto que vai salvar a humanidade.

Quando se fala em design, sempre se pen-sa, como aliás em toda história, no design vencedor, aquele que logrou sucesso, tor-nou-se clássico, um padrão a ser seguido, uma referência. E quanto ao design, di-gamos assim, “perdedor”, aquele que por problemas diversos não consta da histo-riografia do design; esses materiais não poderiam render uma outra história do design, um pouco mais democrática?

Com certeza! É essa história do design que tento fazer e que encorajo outras pessoas a fazerem. Isso não é só uma questão de ideo-logia. Poderia aqui invocar Walter Benjamim e falar sobre a necessidade de a história olhar nas entrelinhas, para as coisas perdi-das, as coisas que poderiam ter sido e não foram. Poderia fazer um discurso histórico, ideológico, romântico sobre a necessidade de fazer justiça aos que foram vencidos. Mas não preciso fazer um discurso tão idealiza-do assim, posso falar uma coisa muito mais prática: a história não é evolutiva. Quando se constroem narrativas históricas evolutivas, li-neares, em que uma coisa vence a outra, na verdade se está emburrecendo, se está per-dendo biodiversidade histórica. A importân-cia de estudar essa história esquecida é que

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se descobrem soluções que em determina-do momento não alcançaram sucesso ou não foram bem-recebidas, mas que podem vir a ter sua importância. Quando organizei O Design Brasileiro Antes do Design, percebi que havia muitas soluções de design gráfico brasileiro, nas décadas de 1890 a 1920, que não vingaram em sua época. Colocá-las em um livro é uma forma de resgate histórico. O livro foi lançado em 2005 e de lá para cá uma série de linguagens, soluções formais, esquemas gráficos que estavam na publica-ção começou a pipocar no design gráfico.

Os cursos universitários de design dialo-gam com o mercado?

O ensino do design está muito pautado em idéias de um período em que se achava que essa profissão era muito fácil de explicar e enquadrar. Então continuamos forman-do designers para atuar em coisas que não existem mais, e não formando profissionais para lidar com o que realmente existe, que são situações extremamente complexas impostas pela contemporaneidade. Cada vez mais o design se diversifica, se pulveriza, se fragmenta. Eu acho que o mercado está mais próximo dessa realidade, pois constrói os profissionais que ele precisa. Atualmente, há designers especializados nas coisas mais diversas. É uma segmentação que ocorre no mercado. Infelizmente, a universidade não atende totalmente à necessidade do merca-do, porque os designers se profissionalizam, de um modo geral, com uma formação in-suficiente. Creio que os currículos têm de ser repensados, flexibilizados, para atender às necessidades de um mundo em que as coisas estão mudando constantemente. O design é uma área que se abre para muitas frentes, é um dos pilares da “pensamentação” do mundo atual. É uma das profissões mais importantes e essenciais da pós-modernida-de. Sem o design, o mundo entra em colap-so. Como uma área com essa abrangência

mantém sua unidade? Como promover uma formação profissional que não

seja dispersiva? É muito difícil.

Gostaria de propor um exercício criati-vo, livre e bem-humorado, em que você apontasse qual produto ainda falta ser criado e dissesse por que, em sua opi-nião, ele ainda não o foi. Você gostaria de criá-lo, se possível?

Há um produto que me faz muita falta, que está sendo prometido pela ficção científica há muitas décadas: a teleportação. Acho-a um negócio fantástico! Desde o filme A Mos-ca (David Cronenberg, 1986) se tem uma idéia visual de teleportação, mas ela ainda não aconteceu. No dia em que teleportar-se for possível, vou passar a acreditar na tecnologia. Até lá, creio que ela está em dívida conosco. A evolução tecnológica dos últimos 200 anos se demonstra insuficiente para resolver os problemas que ela mesma criou. O filósofo Vilém Flusser fala sobre o design como a cria-ção de obstáculos. Toda vez que você resolve um problema, cria outro. Toda solução é, na verdade, um obstáculo. Claro que não estou negando o avanço tecnológico, mas, parafra-seando Marx, ele está “sucumbindo em suas próprias contradições”. O avanço tecnológi-co é incontrolável e ao mesmo tempo não é um processo sustentável. A teleportação é o grande desafio justamente por isso. Não é necessário materializar, mas, sim, desmateria-lizar. Esse parece ser o caminho. Não tenho a menor competência para inventar nada, mas quando se cria arte – e eu sou também um escritor – se criam idéias. As idéias são imate-rialidade limpa e sustentável, são capazes de transformar o mundo sem deixar um rastro de destruição. Às vezes deixam, mas a des-truição também é necessária. Os designers tendem a valorizar pouco a criação. Recen-temente assisti a um debate em que as pessoas negavam que a criação fosse parte do processo de design. Isso me pareceu um pensamento não só louco, mas perigoso.

Na revista virtual, assista ao vídeo produzido durante a entrevista.

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Cenas de um casamentoAutores, ilustradores, capistas e designers tornam projetos editoriais cada vez mais coletivos

Por Fernanda Castello Branco

Um flerte, um namoro ou um casamento? Qual é, afinal, a relação do design com a literatura? Seja qual for a intensidade da relação, não é de hoje que a arte gráfica se funde com a escrita. Na Idade Média, as iluminuras eram os desenhos decorativos que ilustravam alguns livros, especialmente aqueles produzidos em conventos e abadias. “As palavras dão sentido ao design e vice-versa. A relação é integral e essa unidade é a qualidade essencial do design. A forma do livro, o papel, a tipografia, a mancha de texto, os espaços, o uso de imagens, todas essas escolhas são responsáveis pela expressão do todo”, afirma Elisa Cardoso, designer e capista do Máquina Estúdio, São Paulo. Para Victor Burton, um dos mais premiados designers brasileiros, “o design não pode ser mais um simples veículo de comunicação e sim o assunto em si. A forma é o conteúdo. O design fala dele mesmo: o design é a mensagem”.

Tentar determinar quem é mais importante nessa relação cheia de nuances gera polêmica. “Os grandes revolucionários dessa relação entre literatura e design foram os poetas e alguns escritores, muito mais do que os designers”, afirma Cláudio Ferlauto, autor de livros sobre design, entre eles O Livro da Gráfica (Rosari, 2001) e O Tipo da Gráfica (Rosari, 2002), crítico da revista Abigraf e professor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap) e das universidades Anhembi Morumbi e Belas Artes, em São Paulo. “Os revolucionários foram os autores que sacaram que essa relação era necessária, os pós-simbolistas franceses, como Apollinaire”, completa.

Mais recentemente, no Brasil, o encontro de poetas com artistas visuais, no fim dos anos 1950, fez nascer a poesia concreta. Ela foi fundamental para criar outra sintaxe para o texto, com elementos poéticos e visuais, o que pode ser visto nos livros-objeto de Augusto de Campos, entre eles Poemóbiles (com Julio Plaza, edição dos autores, 1974). O neoconcretismo radicalizou essa relação e fez da forma um tipo de narrativa, o que foi redescoberto, mais tarde, pela poesia digital dos anos 1990. O artista multimídia e professor do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) Gilbertto Prado acredita que, na poesia, não é possível haver conflito entre palavra e imagem. “A poesia digital é híbrida por natureza, pela própria proposição, então não vejo conflito”, afirma.

reportagem

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Quando se fala de poesia, aliás, é possível ir além e dizer que ela em si é uma forma de design. “Dependendo do tipo de poesia que se tem em mente, pode-se dizer que ela anda lado a lado com o design”, afirma o escritor Paulo Scott. “O universo literário é imensa-mente mais conservador e inseguro do que o do design. A literatura vive do que já foi tes-tado e consagrado nas outras áreas, vive das experiências das outras artes”, justifica.

Enlace moderno

E nos dias de hoje as novas tecnologias mu-daram essa relação? “A minha geração as-sistiu, às vezes de forma traumática, a uma revolução na forma de trabalhar, com o ad-vento do computador”, conta Burton. “Todo um conjunto de aptidões técnicas ficou obsoleto, enquanto outros conhecimentos se tornaram vitais. Tal revolução só é com-parável à passagem da tipografia para a fo-tocomposição”, conclui.

Para a designer gráfica e capista Moema Cavalcanti, com três décadas de profissão e mais de 2 mil projetos gráficos publicados, as mudanças também são evidentes. “A mudan-ça da capa feita artesanalmente para aquela feita no computador foi difícil para mim”, re-lembra. “Hoje estou totalmente informatiza-da, mas não dispenso certos hábitos antigos. Sempre que posso, faço a mão colagens, rasgos, ‘rabiscos’, que ficariam muito duros se fossem feitos no computador. Procuro fazer um trabalho mais autoral”, completa.

Mas a busca pelo artesanal não tira o prazer de criar com as novas tecnologias. “O com-putador é uma ferramenta incrível. Com ele temos infinitas possibilidades de somar ti-pografia, desenho, recortes, colagens, pin-tura”, afirma Elisa, do Máquina Estúdio. “A

internet é maravilhosa para pesquisar, para agilizar os processos de aprova-

ção e finalização. A tecnologia per-mite que o processo seja mais

fácil e prazeroso”, diz.

Capas projetadas por Moema Cavalcanti | imagens: Editora Estação Liberdade e Editora Senac São Paulo/divulgação

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Mesmo que alguns pro-fissionais mantenham essa liga-ção saudável com o passado, na ver-dade a maioria admite que o ofício mu-dou com as novas tecnologias. “O processo virou outra coisa. Em 20 anos, tornou-se outra profissão”, afirma Ferlauto. “Você leva algumas coisas para a nova profissão, mas não tem nada a ver com o que era antes. As novas tecnologias não influenciaram na criatividade, mas hoje se faz 20 leiautes em dois minutos. Isso não é criatividade, é a ferramenta o ajudando a testar mais coisas”, diz.

O que poderia se esperar de uma ferramenta mais ágil e eficaz? Obviamente que ela, cada vez mais, se assuma como parte da engrena-gem da indústria do livro. “O livro hoje tem de ser pensado como um objeto íntegro, que tem forma, volume, peso, textura, narrativa etc. Res-tringir as possibilidades de invenção contidas em um livro a um retângulo bidimensional chamado capa é muito redutor”, teoriza Elaine Ramos, diretora de arte da Editora CosacNaify. “Nosso grande diferencial é não trabalhar com capistas. A capa é um dos elementos e todos eles são importantes, desde o tipo da letra até a textura do papel. É isso que seduz o consumi-dor”, afirma.

Não é à toa que, graças a esse pensamento, Elaine criou vários projetos gráficos inova-dores. Um dos destaques é o que assinou para a edição de 2005 do livro Bartleby, o Escrivão – Uma História de Wall Street, de Herman Melville, que conta a história de um jovem que trabalha como escrivão e copista em um escritório de advocacia. Ao concluir que suas tarefas estão abaixo da sua competência, Bartleby decide parar de trabalhar e apenas responde a tudo o que o mandam fazer com a seguinte frase: “Acho melhor não”.

O ousado projeto criado por Elaine é inspi-rado no personagem e, segundo ela, “incor-pora a negatividade de Bartleby”. O livro é costurado e o leitor se vê obrigado a puxar a linha que mantém a capa vedada. “Depois disso, se depara surpreendentemente com um novo obstáculo: a opacidade e a opres-são de uma parede cega repetida em todas as páginas, sem nada escrito. Para acessar o texto é necessário cortar (com o marcador encartado) página por página”, explica a di-retora de arte.

Capas de livros produzidos pelo Máquina Estúdio

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Discutindo a relação

Muitas outras relações giram em torno des-se “casamento” que une design e literatura. Provavelmente, a mais desgastada e com-plicada delas envolve autor e capista, e, em alguns casos, autor e ilustrador.

“A relação ideal seria aquela em que as pesso-as tivessem noção da dimensão de cada uma das linguagens. De quando o desenho, que é silencioso, precisa da palavra. E de quando a palavra precisa do silêncio do desenho”, de-fine o ilustrador Odilon Moraes. “Às vezes o escritor resolve comigo uma questão que eu não consigo solucionar. A parceria é um aju-dar o outro, é isso que eu acho que faz com que a obra seja bacana”, completa.

Para Ricardo Azevedo, autor de mais de cem livros para crianças e adolescentes, o “confli-to” é menos desgastante, já que ele escreve e ilustra seus livros. “Quando estou escreven-do, penso em imagens, mas quase sempre elas são muito fracas por ainda estarem presas ao texto. Só depois que considero o texto concluído, de certa forma me livro dele e consigo entrar no plano das interferências. Parece até que sou duas pessoas: uma que escreve e outra que desenha”, explica.

Mas não é todo autor de livros infantis que pode se dar ao luxo de ilustrar suas obras. E o meio serve de cenário para briga de gente grande. “Essa questão só a práxis e o coti-diano podem solucionar. Mas a relação do design com a literatura infantil é dramática e extraordinária”, afirma o poeta, ensaísta e tradutor Marco Lucchesi.

Muitas vezes, o conflito é maior na literatu-ra infantil porque alguns autores têm uma marca registrada muito forte. “Em um livro de Ana Maria Machado, por exemplo, o tex-to se fecha. A ilustração vem depois, não participa efetivamente do livro. O ilustrador nem entra como autor, é quase um tradutor que vai buscar coisas no texto, vai abrir bu-racos para a ilustração participar de alguma maneira”, argumenta Moraes.

Para fazer desse casamento uma relação saudável, o segredo é apostar em uma obra autoral mais coletiva. “Temos de compreen-der o livro de forma autoral, mas sem ser cen-tralizado em uma pessoa”, analisa Lucchesi. Tudo para que, como afirma o escritor, no

fim dessa história não exista viúva. “Não chego ao extremo de dizer que o autor

está morto. Mas acho que é impor-tante recuperar a idéia sinfônica

da produção do livro.”

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O desenho das suas idéias

A capa desta Continuum Itaú Cultural é o seu espaço de criação. Ela está aberta para receber os contornos, as cores, as texturas, as costuras, as fotos, os cortes, os rasgos – o design, enfim – das suas idéias. Interfira da maneira que quiser e com as ferramentas que julgar necessárias e envie a sua capa para nós. O convite é dirigido a todos, designers ou não, e os trabalhos recebidos serão publicados na versão on-line da revista. E mais: dois deles, escolhidos pelo conselho editorial, comporão a Área Livre da publicação impressa de junho.

Os trabalhos podem ser enviados até o dia 20 de maio por correio (Continuum Itaú Cultural – Avenida Paulista, 149, 5º andar – CEP 01311-000 – São Paulo/SP) ou por e-mail ([email protected]). Disponibilizamos, na revista virtual, aos participantes que desejarem realizar interferências digitais na capa, um arquivo com a imagem para download.

Os seguintes pontos devem ser observados:- todas as imagens enviadas precisam ser criações próprias. O participante é responsável por danos ocorridos a terceiros e assume toda e qualquer responsabilidade civil e penal. Caso isso ocorra, o participante responderá isoladamente, ficando o Itaú Cultural isento de qualquer responsabilidade;- os elementos já dispostos na capa (os logotipos, o título e o número da edição) devem ser mantidos no trabalho final;- as imagens enviadas ao Itaú Cultural têm de ser inéditas, ou seja, não poderão ter sido publicadas anteriormente em outro veículo;- o participante deve concordar com a difusão de seu trabalho nas versões impressa e virtual da revista Continuum Itaú Cultural;- não haverá qualquer tipo de retribuição financeira, apenas menção da autoria da imagem;- o participante deve indicar, na carta ou no e-mail, os seguintes dados: nome civil, nome artístico (quando houver), e-mail e telefone.

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imagem: detalhe de Control Z, site criado por Max Chanan para o Salvation Army

Na internet, em www.itaucultural.org.br/revista, a Continuum soma conteúdo audiovisual às matérias da publicação impressa e apresenta mais questões ligadas ao tema deste mês. Poeta, músico e artista visual/sonoro, Ricardo Aleixo explora, no ensaio Uma Poética da Escuta, o universo do design sonoro – atividade que visa à elaboração de projetos acústicos para os mais diversos meios: do cinema aos espetáculos de dança e de teatro; de mostras de artes plásticas a games de computador.

O design da world wide web também é representado na revista on-line. Em matéria realizada pelo jornalista Alexandre Inagaki, criador do blog Pensar Enlouquece (www.pensarenlouquece.com), diferentes profissionais comentam o atual cenário do webdesign. Dão suas opiniões nomes como Luli Radfahrer – doutor em comunicação digital pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de, entre outros, Design/Web/Design – e Max Chanan – da agência Muse, de Amsterdã, Holanda.

Saiba como foi produzido o toy do designer gráfico e ilustrador Carlo Giovani, Área Livre desta edição da revista impressa. Acompanhe, em galeria de fotos, desde a elaboração do projeto, no estúdio do designer, até a confecção, na gráfica, do produto final.

Colabore com a Continuum. Você pode enviar matérias sobre design pelo canal leitor-autor da revista virtual. Os textos são avaliados pela redação e, posteriormente, publicados no site.

www.itaucultural.org.br/revista

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.36itaú cultural avenida paulista 149 são paulo sp [estação brigadeiro do metrô] fone 11 2168 1700 [email protected] www.itaucultural.org.br