Conto - A Grande Surra

25
DIARIO ANO 1973 1º de janeiro de 1973 1:15H. Ano novo! Acabo de voltar da casa da Pita, onde participei com sua família e alguns da turma do grupo de jovens da Boa Morte. Foi bom e diferente. Antes estivemos na Missa do Galo. Ouço ainda barulho de pessoas alegres que devem estar voltando da comemoração. Parece que estão atravessando o jardim. Agora o dia 1º já esta para findar. Logo mais será dia 2. são 23 h. vim do Panqueca’s. Nada aconteceu. Será que minha vida vai ser sempre assim. Sem ninguém de novo mais esse ano? Estou chateada...vou rezar um pouco. 07 de janeiro ( domingo ) O ano novo vai indo, vai ficando velho. Ontem passei pela banca de revista do Anésio que fica na Avenida Um. É a melhor banca da cidade. Não compro nada, mas gosto de olhar as capas das revistas. E dono, seu Anésio me deu uma de graça “Ele e Ela”. Estranhei, mas depois começou com umas gracinhas pro meu lado. Dei uma desentendida. Agora lembrando chega a me dar nojo da atitude dele. Tem certos homens que são mesmo nojentos. Veio agora na lembrança que quando ainda era bem mais jovem, acho que devia ter uns 12 anos de idade, menina ainda, a Lourdes, minha prima que morava com a gente, estava dando alfabetização de adultos no Grupo Escolar Cel. Joaquim Salles, costumava ir com ela e ficava na sala de aula. Aconteceu que acabou o giz e ela me pediu para buscar outro com o servente da escola. Inclusive eu o conhecia do tempo que fiz o primário lá. Enquanto nos dirigíamos para o local onde estava as caixas de giz, que era num desvão da escada que subia para as classes do segundo andar, ele coloca a mão no meu ombro e vai mansamente descendo na altura do meu seio, que na época estava acredito começando a despontar .Achei aquilo tão estranho e repulsivo que me afastei de imediato. Lembro que meu coração começou a disparar por não saber ao certo que atitude tomar, nem o que significava aquilo. Mas sabia que não erra correto. Ele de dentro do quartinho insistiu para que fosse pegar o giz. Neguei e

Transcript of Conto - A Grande Surra

Page 1: Conto - A Grande Surra

DIARIO ANO 1973

1º de janeiro de 1973 1:15H.Ano novo! Acabo de voltar da casa da Pita, onde participei com sua família e alguns da turma do

grupo de jovens da Boa Morte. Foi bom e diferente. Antes estivemos na Missa do Galo. Ouço ainda barulho de pessoas alegres que devem estar voltando da comemoração. Parece que estão atravessando o jardim.

Agora o dia 1º já esta para findar. Logo mais será dia 2. são 23 h. vim do Panqueca’s. Nada aconteceu. Será que minha vida vai ser sempre assim. Sem ninguém de novo mais esse ano?

Estou chateada...vou rezar um pouco.

07 de janeiro ( domingo )O ano novo vai indo, vai ficando velho. Ontem passei pela banca de revista do Anésio que fica na Avenida Um. É a melhor banca

da cidade. Não compro nada, mas gosto de olhar as capas das revistas. E dono, seu Anésio me deu uma de graça “Ele e Ela”. Estranhei, mas depois começou com umas gracinhas pro meu lado. Dei uma desentendida.

Agora lembrando chega a me dar nojo da atitude dele. Tem certos homens que são mesmo nojentos. Veio agora na lembrança que quando ainda era bem mais jovem, acho que devia ter uns 12 anos de idade, menina ainda, a Lourdes, minha prima que morava com a gente, estava dando alfabetização de adultos no Grupo Escolar Cel. Joaquim Salles, costumava ir com ela e ficava na sala de aula. Aconteceu que acabou o giz e ela me pediu para buscar outro com o servente da escola. Inclusive eu o conhecia do tempo que fiz o primário lá. Enquanto nos dirigíamos para o local onde estava as caixas de giz, que era num desvão da escada que subia para as classes do segundo andar, ele coloca a mão no meu ombro e vai mansamente descendo na altura do meu seio, que na época estava acredito começando a despontar .Achei aquilo tão estranho e repulsivo que me afastei de imediato. Lembro que meu coração começou a disparar por não saber ao certo que atitude tomar, nem o que significava aquilo. Mas sabia que não erra correto. Ele de dentro do quartinho insistiu para que fosse pegar o giz. Neguei e fiquei firme na porta. Esperando... Engraçado agora comentando sobre isso me vem na memória que nunca contei disse nada para ninguém, nem para Lourdes. Guardei segredo. Aliás, esqueci do fato por todos esses anos.

Teve um caso depois com um amigo do meu tio Miguel, num passeio para a Praia Azul em Americana que fizemos, e minha família junto. Devia ter na época uns 14 anos, mas era boboca ainda. Esse cara dirigia tinha uma lancha a motor e levava quem quisesse para dar uma volta. Só cabia uma pessoa de cada vez alem dele. Fui dar a tal volta...e não é que ele tentava passar a mão em mim, nas minhas pernas. Minha reação de repulsa o levou a desistir da idéia, porque deve ter imaginado que podia gritar ou coisa assim para os que ficaram na paria. Inclusive meu pai. Mas que cara idiota. Agora me veio na memória que também guardei esse segredo. Não entendia o que significava tudo aquilo, mas instintivamente sabia não ser correto. Nunca fui orientada nesse sentido.

Agora sei o que significa... Sem-vergonhice pura...Penso nessa meninas todas que estão por ai, quase que completamente indefesas. Penso nas

meninas do Educandário. Se aconteceu comigo que consegui me safar. E com as meninas mais indefesas e que nem possuem um lar. Tão carentes e inocentes.

Page 2: Conto - A Grande Surra

Mas a revista do Na Anésio eu peguei porque achei agir melhor assim. Caso contrario ele ia saber que eu percebera e dei uma de desentendida.

A revista tem um artigo que gostei. Aconselha as moças antes de iniciar um relacionamento com um rapaz a fazer o teste dos 90 dias, ou seja não confiar em nada do que dizem, não fazer planos, não sonhar, não esperar muita coisa. Só depois de passados o prazo estipulado e que podemos dizer que ele esta interessado realmente. Assim evitamos de sofrer e não damos uma de tonta. Meu caso.

11 de janeiro ( quinta-feira )Hoje fazem 32 anos que meus pais se casaram. Penso que meu pai sempre foi mais

apaixonado pela minha mão do que ela por ele. Nunca os vi abraçado ou fazendo carinho uma para o outro. São de outra geração. Mas eu os admiro muito. Eles deram um lar perfeito para mim e meu irmão. A Lourdes mesmo, minha prima que morou com a gente, disse a mim dia destes que disse daria por satisfeita se conseguisse criar seus filhos como minha mão nos criou.

Acredito que foi necessário muita renuncia, principalmente por parte de minha mãe para que as coisas saíssem como devia ser.

Não consigo entender se o que reina entre os dois é amor.Já pensou se eu conseguir encontrar um amor e viver 32 anos ao seu lado?

13 de janeiro ( sábado )Na próxima terça-feira eu vou acompanhar junto com a Sandra e mais a irmã, as meninas

do Educandário para Santos,vamos passar lá uns quinze dias. Estou super animada. Primeiro porque estou com saudades das meninas. Ficaremos juntas novamente. Gosto demais de estar com eles que me preenchem com todas as suas historias. Por vezes alegres e por outras tristes demais.

Terminei de ler “Zorba, o grego”- de Nikos Kazantzakis. Assisti ao filme e sempre tive vontade de ler o livro. Passo uns trechos que me tocaram muito.

“Reparei então, pela primeira vez, que o indicador de sua mão era cortado pela metade. - Que houve com seu dedo, Zorba? – perguntei.- Nada!-respondeu zangado por ter prestado atenção aos defeitos- Foi apanhado por uma maquina?-insisti.- Que maquina o quê? Eu mesmo cortei.- Você mesmo? Por quê?- Você não pode compreender patrão!- disse ele dando de ombros. Já lhe disse que faço

qualquer serviço. Uma vez fui oleiro. Adorava esse trabalho. Sabe o que é apanhar uma bola de lama e transformá-la no que você quiser? Prrrrr! É só fazer girar o torno enquanto a lama gira como uma louca você escolhe: vou fazer uma gamela, vou fazer um prato, vou fazer um pote, vou fazer tudo que eu quiser, com mil demônios! Isso é ser homem: Liberdade!

ela havia esquecido o mar, nem chupava mais o limão. Seus olhos brilhavam de novo. - E então- perguntei – e o dedo?- bem, ele me atrapalhava para girar o torno. Estava sempre se metendo nas coisas para

estragar meus planos. Um belo dia apanhei uma machadinha...- E não doeu?- como não doeu? Eu não sou de pedra, sou homem, é claro que doeu. Mas estou lhe

dizendo, ele me atrapalhava e eu o cortei...”

Page 3: Conto - A Grande Surra

Gostaria de ter uma machadinha e cortar de vez o que me atrapalha de ser feliz. Essa ansiedade de querer encontrar alguém que me faça feliz.

Sabe no que consiste a felicidade e a liberdade segundo Zorba? Parece que é aceitar e viver a vida como ela é.

Mais um trecho que gostei:“Viver sabe o que quer dizer? Desfazer a cintura e procurar encrenca...”Cristo nasceu,

meu arranhador de papel, meu grande sábio. Não se meta a fazer perguntas nem pesquisar muito: ele nasceu ou não nasceu? Meu velho, não seja tolo! Se você pega um lente para olhar a água que bebemos- foi um engenheiro que me disse isso- você Verá que a água é cheia de vermes pequeninos, que voce não consegue ver a olha o nu, E ao vê-los voce não bebera mais água. Não bebera e vai morrer de sede. Quebre a lente, patrão, quebre , a e os pequenos vermes desaparecerão e voce poderá voltar a beber e a se refrescar!”

“ Toda idéia que possui influencia verdadeira possui também uma existência verdadeira. Ela esta presente. Não circula no ar invisível. Tem corpo verdadeiro, olhos, boca, pés, barriga. E homem ou mulher, perseguirão homens ou mulheres. Eis porque diz o evangelho: - O verbo se fez carne.”

“ Pode rir, patrão,mas se nosso negócios andarem bem, isso me parece impossível, enfim!- sabe que loja eu vou abrir? Uma agencia de casamentos. Então, as pobres mulheres que não puderam fisgar um marido, vão chegar: as solteironas, as feias, as cambetas, as vesgas, as mancas, as corcunda,s e eu recebo todas numa salinha com uma porção de retratos de belos rapazes nas paredes e digo a elas: “ Escolham belas senhoras, aquele que agradar, e eu os arranjos para ser tornar seu marido.”. Então pego um gajo qualquer meio parecido, visto como na foto, dou-lhes dinheiro e digo: “ Rua tal, numero tanto, vai correndo procurar a tal e lhe faça a corte. Não banque o difícil, sou eu quem pago. Dorme com ela. Recite todas aquelas doçuras que os homens dizem as mulheres e que a pobre criatura nunca ouviu .Jure que vai casar com ela. De a infortunada um pouco daquele prazer que as cabras conhecem, e também as tartarugas e as mil patas.” E se aparecesse algum dia uma velha cabra no gênero da nossa Bulbulina, que ninguém ia consolar nem por todo ouro do mundo, eu fazia o sinal da cruze me encarregava dela pessoalmente, eu, o diretor da Agencia. Então voce ia ouvir todos os imbecis dizerem:- “ Vejam Só! Que velho debochado! Então não tem olhos para ver, nem nariz para cheirar?”-Sim, bando de desalmados, eu tenho um nariz, mas tenho também um coração e sinto pena dela. E quando se tem um coração a gente pode ter todos os corações e narizes que quiser, eles na valem nada!”. E quando eu estiver completamente impotente por causa das aventuras, e for para o outro mundo, Pedro o guarda-chaves vai abrir a porta do Paraíso: “Entre, pobre Zorba”- dera, “entre , grande mártir zorba, vá se deitar ao lado do seu confrade Zeus. Descanse , meu bravo, voce penou muito na terra, receba minha benção.”

“Patrão- disse Zorba de um jato- como é que se chamava esse velho deus antigo, que não deixava uma só mulher se queixar? Ouvi dizer qualquer coisa a respeito. Parece que ele tingia a barba, tatuava os braços e virava touro, cisne, carneiro, burro. Diga qual é o seu nome!- Acho que voce esta falhando de Zeus.

Page 4: Conto - A Grande Surra

Santos , 16 de janeiro de 1973 -22hOnde estamos é um verdadeiro paraíso. Para se chegar a paria é só atravessar a rua e tomar

cuidado porque são duas pistas e se esta no famoso jardim que acompanha toda a praia de Santos. Que prazer estar alojada em Santos, bem no seu centro.

Descrever o alojamento é difícil pois são tantos os detalhes. Mas, é um prédio de dois andares,em estilo colonial, construção nova e que dá para alojar segundo me disseram 150 crianças de uma vez..tudo aqui esta muito novo e em ordem. Tudo foi criado pela família da Vovó Anita, que dá nome a instituição “Casa da vovó Anita”.

Li o histórico, que esta em um quadro na sala da frente., no hall da entrada. Foram os descendentes da senhora Anita quem construíram a casa, no terreno onde existia uma chácara pertencente a família. Vovó Anita teve 12 filhos e hoje são 120 os descendentes.. Alguns trabalham e dirigem a casa aqui. Quem nos recebeu foi seu, que parece ser uns dos filhos. Ele aparenta ter bastante idade.

Difícil acreditar que existam hoje em dia pessoas assim, um grupo de pessoas que desejam fazer crianças felizes, e desprendida da herança e essas coisas. Podem até dizer que eles são bastante ricos e que isso não é nenhum sacrifício. Discordo plenamente, tomara existissem cada vez mais herdeiros assim dispostos a doar para os menos afortunados.

Parece que a casa começou funcionar no ano passado e até hoje já passaram por aqui cerce de 700 crianças que com certeza se não fosse esta casa nunca teriam visto sequer o mar. Nossa turma são 23 crianças e estamos acomodadas no fundo do prédio, na frente estão 50 meninas que chegaram de Piracicaba.

Nossa , são muitas crianças sem lar...Infelizmente esta chovendo uma chuvinha chata miudinha e fazendo um pouco de frio. Não

pudemos ir á praia. Mas aqui há diversões para as crianças, tem um salão que fica no 3º andar é que e cheio de brinquedos e jogos de passa tempo. Alem da televisão, é claro.

Escrevo no banheiro, para não atrapalhar quem já esta dormindo. Tomara que amanhã faça sl para elas poderem ir a praia.

17 de janeiro ( quarta-feira )As mais novas vieram para dormir, as outras continuam na televisão. Estou no banheiro que

é contíguo ao quarto. Tento escrever, mas a todo momento elas me interrompem. A Fátima e a Cidinha vieram fazer xixi ficaram conversando comigo contando do como estão gostando. Voltaram para o quarto, mas daqui ouço o barulho delas. Coloquei a Fátima que é a maior delas tomando conta para que elas não saiam mais da cama e durmam. Mas ela a todo momento vem ao banheiro dar o relatório do que elas estão aprontando, Inclusive ela, também esta tão elétrica como as outras.

Ontem estava tão tranqüilo todas a essas horas estavam dormindo e eu podia escrever a vontade. Agora sou a todo momento interrompida..

A Cleidinha veio me ver agora, com a desculpa de me trazer uma revista para eu ler. Ela passou a me chamar de madrinha pois vai fazer crisma e quer que eu seja sua madrinha. Atrás dela entraram a Georgina, as fêmeas, a Ziza, todas fazendo queixa de Isa, a menorzinha de todas que esta com 3 anos de idade, contaram que ela estava arrastando o lençol pelo chão. Achei que ia ser fácil escrever como ontem, mas as meninas estão elétricas. Resolvi ver pessoalmente o que estava havendo para tamanho desassossego delas Mas era tamanha a alegria que me deu vontade de entrar na farra.

Page 5: Conto - A Grande Surra

A Nilza que é uma das gêmeas,e estava de pé na cama, assim que me viu, gritou com sua falinha enrolada de criança pequena:

- Olha eu, olha eu, Benilde, vou vilar tambota...O que é proibido fica mais gostoso e divertido. Elas me fizeram recordar o do tempo em

que era menina e íamos no Caritá, todos os primos ficavam na hora de dormir brincando de cambalhota na cama, de cabana de índio, que era as cobertas amarradas na cabeceira da cama. Tão gostoso e sabíamos que devíamos deitar debaixo das cobertas e dormir. É isso que elas estão sentindo nesse momento, uma euforia só. Finjo que estou zangada para dar mais emoção a brincadeira delas.

Só acomodaram quando as meninas maiores chegaram. Agora estão se acomodando.Estou sem sono. Paro de escrever e vou ler gibi. Nossa, tem tanto por aqui.

9 de janeiro ( sexta-feira)Ontem na escrevi sobre as novidade porque preferi ficar lendo gibis que são da casa

com a Maura.Só conseguimos pegar praia hoje pela manhã. A chuva parou. Que alegria das

meninas. Só felicidade!Depois do almoço eu e a Sandra saímos. Só nos duas. Pegamos o ônibus e fomos

para o cntro da cidade onde tem mais comercio.Sandra comprou presente para sua irmã e par o irmão. Eu comprei uma blusa para

mim. Com isso já gastamos quase a metade do dinheiro que trouxemos. Demos muita risada. A Sandra só de lembrar do meu medo de subir a escada rolante

começa a rir. Não subo mesmo. Ela sem saber desse fato direto para a escada e querendo me vê parada, ficava me chamado...chamando.... E eu parada só ameaçando subir...Por fim ela teve que descer novamente.

Sandra foi dormir logo porque estava com o estomago meio embrulhado. A Eliana , irmã da Maura também não passou bem do estomago. Acontece que a carne moída do almoço veio com muito oleo. E agora na janta, na sopa a cozinheira deve ter colocado a carne que sobrou e o oleo ficou boiando por cima do caldo. A Vanda nem quis a sopa, a Fátima acabou destripando o mico. Em compensação tem algumas das meninas que repetiram até por três vezes o prato de sopa. Comigo não aconteceu nada. Meu estomago é forte.

20 de janeiro ( sábado )Pela manhã, depois do café vamos todas na praia, das 8:30h às 10:30h o Almoço é

sempre servido as 11:30h. Depois do almoço uma soneca para todas recuperarem as forças. Às 15h é servido o lanche. Tem em frente ao prédio, um local no calçadão que acompanha a orla da praia,onde há quatro gangorras, quatro balanças e um escorregador. Lá as meninas ficam brincando e podem chegar até a praia, mas não entrar no mar. Ela gostam de procurar por conchinhas. Voltamos antes das 18h, que é o horário da janta. As meninas ficam pó ali, saem para dar uma voltinha por perto, esperando o horário da novela das 20 h.m “ Selva de Pedra”. Eu e mais umas poucas assistimos também as da 19h “ Uma rosa com amor”. Sou apaixonada por essa novela. A historia até que se parece com a minha. A moça não tem quem a ame.

Essa tem sido nossa rotina. Fora um dia que fomos no Aquário.

22 de janeiro ( segunda- feira)Nossa que horror. Ainda estou chocada!

Page 6: Conto - A Grande Surra

Conhecemos hoje uma tal de Irmã Rosa,que segundo me dissera, foi diretora do Educandário em Rio Claro por dois anos. Sua fama é de ter sido muito má. Duvidei um pouco, mas hoje tive a confirmação. Que mulher má e como pode uma freira que deve ser só amor ser assim tão odiosa. Um peste de mulher, ruim de doer. Parece encarnação do Hither e se diz toda conhecedora de psicologia

Ela saiu de Rio Claro e veio para Santos para ficar como organizadora da Casa de Estar, que é o local que todas nós fomos hoje conhecer.È um local onde o juizado de menor daqui encaminha as crianças abandonadas ou sem a família ter condição de ficar com elas são enviadas, para uma espécie de triagem e depois um futuro encaminhamento para outros locais. Ficam aqui pouco tempo, ainda bem.

As crianças que lá estavam dava tristeza de ver. Todas pareciam muito amedrontadas. Todas com os cabelos quase que raspados,pensamos de inicio que eram só meninos , mas havia meninas no meio Todos com um uniforme feio. Nossa parecia um campo de concentração nazista. Vai ser difícil apagar da minha memória a imagem daquelas 70 crianças,com idade todas abaixo de 10 anos. Olhando para nós, quietas, com os olhos arregalados. Imagino o que se passava na cabecinha delas. Que tristeza tudo aquilo. Algumas das nossas meninas, as mais velhas conviveram no Educandário com a tal irmã Rosa, mas nem quiseram muita prosa. Acho que não viam a hora de deixar aquele lugar deprimente. Depois já fora dali elas comentaram como a irmã, gostava de castigar quem desobedecia e todos tinham muito medo dela. Ainda tem.

Nossa quero esquecer esse passeio. Deprimente...A irmã que toma conta hoje é diferente. È difícil a gente até entende, mas ela é mais irmã mesmo. Tem bom coração, e trata melhor as crianças.

Comentei com a Sandra, que eu havia lido de Adelaide Carraro, “Eu Mataria o Presidente” e que ver a tal Casa de Estar me fez lembrar Do livro.

23 de janeiro ( terça-feira )Faz uma semana que estamos em Santos. Estou com saudades de casa. Nunca fiquei

tanto tempo fora assim. Hoje estivemos na parte da tarde no Golfinho. Um espetáculo super interessante. Não sei se golfinho é peixe, se for mais fantástico ainda porque nunca imaginei que se pudesse domesticar peixe. Depois fomos ao Orquidário Municipal. Lindo! Me lembrou um jardim antigo, com flores e pássaros espalhados por ele.

Quase perdemos a hora do jantar. Assim que colocamos os pés na entrada escutamos a sineta tocando. Foi aquela correria divertida.

25 de janeiro ( quinta-feira )Saudades de casa. Fico observando as meninas sem um lar para voltar, a não ser o

Educandário, me dá uma tristeza por elas. Saber que na casa da gente, tem pessoas que querem bem a gente. Saber que temos um lar para voltar. E aquelas 70 crianças que se encontram no momento na Casa de Estar, sem saber para onde vão, e nas mãos daquela megera. Mas que raiva que peguei dela.

27 de janeiro comer pizza e depois ao cinema, levamos só as duas meninas mais velhas, que já estão quase mocinhas, a Bete e a Fátima. Nossa na volta viemos correndo desesperadas, porque o portão fecha às 22h e já passava das 22:30h quando chegamos. O guarda foi legal com a gente, deixando entrar, mas deu uma bronquinha que merecíamos. Regras são regras.

Page 7: Conto - A Grande Surra

Estava um movimento rápido na rua. Quanto transito! Quanta gente! Todos saindo para se divertir tarde da noite assim. Fiquei com vontade de ficar na rua também e participar da vida noturna, dessa boemia gostosa.

Esta linda a cidade. Colocaram uma iluminação forte que clareia a calçada toda e até um certo pedaço da praia. Ai que vontade de estar com alguém que me ame. Eu proporia ficarmos por ali passeando até chegar a manhã seguinte. Ver o dia amanhecer....

Mas cá estou eu a escrever nesse diário, sonhando acordada, com a bunda doendo de estar sentada no chão frio do banheiro.

Ontem tive sonhei que estava na Grécia. Porque? Mistérios da mente. Só sei que acordei feliz. Tão rela foi o sonho. Logo mais vou dormir. Que eu tenha outro sonho com viagens européias.

28 de janeiro ( domingo )Ando sentindo vontade de ler um romance. Aqui só vejo gibis. Gostaria de não

precisar escrever no banheiro, mas não posso ascender a luz do quarto por causa das meninas que já dormem. Só eu que fico meio sonâmbula.

Hoje juntaram as nossas meninas com as crianças de Piracicaba e apresentamos um show de despedida da casa. Foi tudo meio improvisado, mas ficou até bonito. Houve atrapalhadas das crianças mas foi tudo feito com muito carinho. Apresentamos para os responsáveis do locla, como forma de agradecimento pela acolhida.

30 de janeiro 9 terça-feira) Estou no meu lar,doce lar. Deitada de bruço na cama escrevendo e apreciando o

meu querido quarto que foi pintado por meu pai durante minha ausência. Agora vou ver se pinto a cômoda de amarelinha cor da estante que foi do meu tio Narciso quando jovem.Segundo minha mãe ele gostava de ler e comprar livros e mandou fazer essa estante para eles. Agora se usa pintar de tinta a óleo branca de preferência os moveis antigo quando o verniz já esta velho e feio...

Nossa, agora que reparei meu pai pintou as venezianas do quarto também de amarelo. Deve ter sobrado tinta. Será que o velho Giovani , meu pai não vai encrencar por eu pintar os móveis?

Nossa que saudade senti de tudo aqui. Minha mãe disse que é incrível a falta que eu faço. Que a Iara disse a ela que estava sentindo a falta da minha cara de malandra aparecendo na cozinha dela na hora do aloco, com o prato na mão perguntando se havia feijão cozido. Acontece que gosto do feijão que ela faz. Amo a minha família. Que bom ter uma família.

Não foi só os meus familiares que sentiram minha falta. Minha mãe contou que a Vânia todo dia pela manhã passava por aqui quando ia ao serviço e perguntava se eu já tinha chegado. E hoje apareceu a Graça logo cedo também querendo saber se ia voltar hoje mesmo.

Em Santos escrevi uma carta para meus pais. Peguei na copa, v ou passá-la:

Santos 17/01 /1973Oi mãe...oi pai...Tudo bem por ai?Aqui esta uma delicia,nem põem imaginar. Estamos sendo muito bm tratadas.

Parecemos verdadeiras rainhas. Só horários são rigorosos.

Page 8: Conto - A Grande Surra

Como vai a pintura da casa? Bem encaminhada? E esta bom vocês sozinhos ai, sem mim?

Mãe aqui dá para pegar a novela “ Serafina”, mas a “ Quero viver” não, porque as meninas assistem a “ Selva de Pedra” . O proprietário daqui que é uma amor de pessoa, é um senhor velhinho já, parece que é um dos filhos da Vovô Anita, disse que uma assiste “Quero viver”, só que é na casa dele.

Quem fundou essa instituição foram os filhos da Vovó Anita, em sua homenagem. Aqui foi uma chácara dela. Os descendentes dela parece que chegam hoje a 120 pessoas. E todos ajudam a manter a instituição, que é para dar oportunidade a crianças carentes passarem as férias aqui e conhecerem Santos, o mar.

Tudo aqui é muito limpo e trás a marca da Casa da Vovó., lençóis, fronha, toalha de banho, os pratos e as talheres, imagine que até o guardanapo tem o desenhinho. Estou enviando um junto com a carta para vocês verem que lindinho.

Envio também um cartão postal que aparece a Serra de Santos. Lembrei de você mãe com a sua mania de comentar dos bandeirantes que foram os pioneiro a aventurarem nos séculos XVI e XVII por esses caminhos. E quando um passamos por esta serra quando fomos para Praia Grande, comentou olhando as montanhas que disse que devia ter sido um deles em uma outra vida. È lindo mesmo.

Manda um abraço para minhas amigas se você as ver. Que gostaria que elas estivessem comigo. E você também mãe, gostaria que estivesse comigo curtindo toda essa vida boa e vendo coisas tão bonitas.

Fala pro pai que ainda não tive oportunidade de gasta nenhum tostão, mas que vou gastar ainda. Sinto saudades de vocês dois, que são tão bacanas. Mesmo o pai com sua cara brava ce Giovani da novela. Faz ele assistir e mostra como ele é igualzinho. Viu pai?

Se o Oscar e a Iara chegarem antes de mim, dêem-lhe um abraço meu e um especial para minha sobrinha Flavia ( há,há,há – minha risada.) Nem sabemos ainda se será menina. Mas já escolhi o nome.

Se a Lourdes aparecer com as crianças, diga q eles que vou trazer conchinhas do mar para os dois. Explique pro Charles se ele entender o que é conchinha. Penso muito neles quando vou a praia e vejo as crianças na idade dele brincando no mar e na praia. Se eles estivessem aqui ia ser bem divertido.

Até daqui há 12 dias.Sua filhaNil

A Iara me contou que eles estavam reunidos a mesa para almoçar, quando o Oscarzinho leu em voz alta a carta e no pedaço que falo do velho Giovani, ele me defendeu:

- Esta vendo pai como você é chato, citada da Nil. Agora a noticia triste, a Iara abortou o nenê. Quando leram minha carta ela já estava

sem a Flavia na barriga. Peninha. Fiquei chateada, até chorei um pouco. Ia ser tão bom ter uma criança aqui em casa.

31 de janeiro ( quarta-feira )Nenhuma noticia do Alaor. Pensei muito nele em Santos. Até pedi para Iemanjá.

Uma vez estava dentro do mar e um besourinho pousou no meu braço, ele estava molhado

Page 9: Conto - A Grande Surra

e não podia voar e ia se afogar no mar. Então eu o levei para um lugar seco na praia e pedi para ele que me trouxesse o Alaor , assim como faço com a borboletinha.

As meninas me viram salvar o besouro, vieram me rodear para ver o bichinho. Depois elas lembraram e comentaram do escarcéu que eu fiz por causa do filhotinho de pardal que a Guida e a Elizabete haviam pego na fazenda e o colocaram até numa gaiola que arrumaram com o caseiro. Por ser noite escura não levaram de volta ao pé de goiaba onde o encontraram, mas assim que amanheceu o dia eu pulei da cama e antes mesmo do café fui com as duas levar o pardalzinho de volta para sua mãe. Por incrível que pareça a mãe pardal estava por lá. Elas colocaram o bichinho num galho da arvore, mas ele escorregou e caiu no chão e instante depois mesmo com a gente por perto aparece a mãe sobrevoando o chão e foi direto perto do filhote. Fiz com que voltássemos para eles se ajeitarem como sabem. Penso que a mãe pardal passou a noite toda esperando a volta do pardal bebê.

Os peixes que elas pescaram na fazenda e inventaram de deixar alguns vivos dentro d um vasilha para levar ao Educandário,não sei para que. Coisas de, corri peguei a vasilha e devolvi os peixinhos para o lago. Elas nem perceberam. Ia esquecer eles dentro do vasilhame e provavelmente eles acabariam morrendo por falta de oxigênio e alimentos. Pode até ser que alguns deles já tenham sido fisgado e ido para a frigideira. Mas alguns devem estar por lá já ainda e quem sabe já até procriaram. Até no reino animal tem uns com mais sorte que os outros.

A Eliana quis saber porque eu salvara o besouro:- Ah! Eliana a vidinha dele é tão curtinha...e depois pode ser que o besourinho ainda

nem tivera tempo de arrumar uma namorada e já ia morrer. Coitadinho.As meninas menores me escutavam atentas como se estivessem ouvindo uma

historia de fadas. As mais velhas me observavam como se não estivessem entendendo muito vem da coisa.

Acontece que eu gosto de salvar esses pequenos seres indefesos desde que era menina. Gostava de salvar minhocas, quando estas por algum motivo escapavam do canteiro e ainda com vida são devoradas pelas formiga. Que dó!

03 de fevereiro ( sábado )Li ou assisti num filme em que uma moça encontra o seu amor, mas tiveram que se

separar e ela diz:- Não se pode ser feliz de um momento para o outro. A felicidade tem que ser

conquistada aos poucos, assim como o diamante que sofre violentos golpes até transformar-se em pedra preciosa.

Bem , é o meu caso como posso querer que tudo de certinho em relação ao Alaor. Primeiro o sofrer...É assim que funciona. Apesar de achar que já tomei golpes e mais golpes mais que suficientes, Já esta na hora de eu ter alguém sincero ao meu lado. Quero um namorado.

Necas de Alaor no Panqueca’s.

05 de fevereiro ( segunda-feira)recebi uma cartinha da Vera do Educandário. Num trecho ela diz:“Nil eu gosto de você como gostei da minha mamãe”Triste não. Como são carentes essas meninas. Não estive mais com elas depois que

voltei de Santos. Comecei a trabalhar para meu irmã no deposito e ao tenho mais tempo. É

Page 10: Conto - A Grande Surra

um tal de encher vidrinho e tampar vidrinho e colar rotulo que já estou até tendo pesadelos. E os barulhos que fazem os vidrinhos, um batendo no outro. Esta na minha cabeça direto. Até agora escrevendo e longe dos vidrinho escuto-os como sem fossem verdadeiros. Hoje depois do almoço resolvi dar uma cochilada e acabei sonhado com os tais vidrinhos que assim que acabava de fechar eles viravam uma cartolina. Cada coisa! Por que cartolina. Ah” no sonho o vidrinho erra de perfume.

Estou trabalhando porque estou precisando de dinheiro para pagar o Conservatório Musical. Já fiz a matricula. Essa semana vou ter minha primeira aula. Seu Múzio parou de me dar aulas e me apresentou lá no Conservatório Meu pai deu uma Giovani e disse:

- Ou bem Faculdade ou bem conservatório. Os dois juntos não posso pagar. Mas em casa esta uma gozação por causa do meu novo emprego. Logo no 1º dia

machuquei quase todos os dedos da mão e coloquei uma porção de esparadrapo neles. Eu pai dizia que eu era boba que podia aproveitar e tirar férias por acidente de trabalho, minha mãe que eutéria que comprar um rolo de esparadrapo porque acabei com o outro.

06 de fevereiro ( quarta-feira )Fui a cidade de Campinas com a Lourdes e as crianças visitar uma cunhada dela que

teve nenê. Gostei demais do passeio. Fomos de trem e almoçamos no seu restaurante. O Laércio marido da Lourdes é sócio com o irmão dele no restaurante que pertenceu ao pai deles, o Seu Raul. Nosso almoço foi de graça.

Voltamos com o trem das 1830 horas eu e a Lourdes conversamos bastante, as crianças haviam pego no sono. Ela me contou sobre suas aventuras quando lecionava e Adamantina, no inicio da sua carreira de professora. Assim que se formou ela e uma amiga foram para aquela cidade, pois só lá havia lugar para lecionar. O local era tão selvagem que sua amiga embarcou de voltando dia seguinte. Mas ela permaneceu no local por todo um ano, lecionando numa fazenda.

Depois o papo passou para questões de amor. Que adoro.Quem fomos visitar, estudou com a Lourdes. Ela tem uma irmã chamada Inês que

mora em Rezende estava de passagem em Capinas com o marido e seus quatro filhos. Me lembro das irmãs quando ainda moravam em Rio Claro, na Rua 10 . Por sinal seus pais ainda moram lá. O marido da Inês é um suíço que veio para o Brasil ainda menino e estudou no Ginásio Koelher. A Inês namorou anos um rapaz chamado João. Brigaram, desistiram do namoro e depois de algum tempo ela conheceu o Fred e se casou. O João por sua vez desgostoso casou com um mulher da vida, no entanto o fez feliz, e lhe deu dois filhos. Depois veio a falecer de câncer. Um triste fim para uma historia de amor.

Lourdes me contou também a história da Cristina, uma das filhas da dona Nair e do seu Augusto, vizinhos de casa. Cristina, foi lecionar em São Paulo e conheceu um senhor, mais velho que ela no trem, na época ele estava trabalhando em Campinas, embora morasse em Santos. Eles se conheceram no trem. Ele sempre telefonava no seu serviço. Saíram algumas vezes juntos. Um dia ele disse que não iria mais procurá-la porque não a queria fazer infeliz, pois estava com uma doença grave. Separaram-se, mas ele depois de uns tempos tornou a procurá-la e acaba contando a verdadeira historia. Que era casado, pai de três filhos, que não fora feliz no casamento, pois casara muito jovem e sua esposa era muito ciumenta e agora estava condenada por uma grave doença, estava com câncer e ele não sabia o que fazer. Cristina resolve se afastar definitivamente por ele ser casado. Passou um bom tempo e ele novamente a procura, desta vez viúvo. Agora estão casados e ela deu uma

Page 11: Conto - A Grande Surra

boa mãe para as crianças, que são dois meninos e uma menina, e teve um filho com ele também.

Resumi a historia desse amor impossível , mas fiquei sabendo que ela sofreu muito com toda a situação, e sua única amiga com quem desabafava era a Lourdes. Lembro de como as duas conversavam em segredo aqui em casa. Na época elas eram solteiras, e a Lourdes morava em casa.

Eu sempre gostei da Cristina, quando era criança, meus pais iam ao Centro Espírita À noite e quem tomava conta de mim era a Cristina. Ficávamos na copar ela o tempo todo desenhando e pintando cantoneiras no seu caderno de desenho. Eu ficava olhando...achava lindo. Na época ela estava estudando o Normal. Minha mãe deixava algo para comermos e tinha a incumbência de servi-la.E a todo momento perguntava se ela não queria comer. Teve uma vez que quem veio ficar comigo foi a Lina sua irmã, mas eu não gostei, me impliquei por ela só ria. A Lina, foi uma das primeiras amigas da Lourdes que se casou e teve duas filha a Denise e a Adriana.

Tem uma outra amiga da Lourdes que essa é mais velha de todas, mora na mesma rua nossa, só que no outro quarteirão. È filha do seu Ló. Parece que agora esta noiva de um homem de São Paulo.

Cada uma tem uma historia...de amor.

13 de fevereiro ( terça-feira)Fui fazer matricula da Faculdade. Agora ela vai funcionar no prédio do Colégio da

Ordem dos Franciscanos. Simplesmente divino. Adorei o prédio. A sensação que se tem é de mistérios. Tem escadas por todo lado e corredores aos montes. Tem um corredor onde você vê ao fundo em tamanho natural a pintura de São Francisco, parece que ele esta caminhando ao seu encontro. Uma verdadeira obra de arte. Mas não se pode chegar a ele porque o fim do corredor da antes para o corrimão das escadas que descem em espirale você subindo ou descendo avista a São Francisco te acompanhando. Essa escada vai dar par o jardim. Todas nós ficamos impressionadas. A Madalena contou que assim que avistou a imagem, acreditou que era um frei e pensou consigo que daria um jeito de conversar com ele.

17 de fevereiro ( sábado ) amanhã vãos para Campinas de trem, Eu, Roberto e dona Iolanda para visitar dona

Paulina que esta morando agora com uma de suas sobrinhas. Lembra dela?

18 de fevereiro ( domingo )Amei o passeio e mais ainda a companhia do Roberto. Como ele é bacana, com seu

jeito que parece desligado. Acabaram de sair de casa, vieram me acompanhar até aqui por ser tarde da noite. Chagamos de Campinas as 20:30, mas passamos na casa deles e dona Iolanda preparou uma janta para nós. É que estava tão gostoso estarmos juntos que a gente não queria se separar. Daqui a pouco vai ser meia-noite.

Sabe o que descobri no Roberto que ele gosta das coisas que eu gosto. Agora aqui em casa ficamos ouvindo musicas, ele se encantou com as revistas francesas que ganhei do meu tio Narciso e que datam do ano de 1900. ele consegue ler quase que perfeitamente em francês. Que pena termos que nos separar. Se pudéssemos passaríamos a madrugada estudando aquelas revistas.

Page 12: Conto - A Grande Surra

Foram tantas as impressões desse dia. Dona Paulina ficou feliz em ver a gente, não sabia o que fazer para agradar a gente.

23 de fevereiro (sexta-feira)J.G.de Araújo Jorge escreveu para dona Edith: “A Edith, a admiradora importante” rebatendo o que ela escrevera antes: “Uma

admiradora não importante.”Mas não se referiu as gravações dela tocando piano que enviara. Mas eu disse que ele ainda iria comentar sobre isso. Que estava pressentindo.Vânia que estava junto comentou com dona Edith sobre esses meus repentes. Que

sempre fusionam e que tem gente que até me chama de bruxinha. Ela acabou ficando esperançosa.

03 de março ( sexta-feira )Desde que comecei a trabalhar para meu irmão, não tenho mais tempo de ficar de

papa pro ar, ler, escrever, pintar, inventar moda, é só vidrinho na minha frente. Tarefa interminável. Fico tão cansada que a noite caio na cama e durmo de fio a pavio. Ando com dor nas costas, de tanto ficar sentada. Sem contar minha barriga que parece até que esta crescendo. Os ombros vão caindo e vou acabar ficando corcunda. Quando lembro dou um arribada, e aprumo os ombros, mas depois vou me ajeitando no relaxo novamente.

O gostoso desse emprego é que se dá muita risada.Hoje a noite sai um pouco para ver a chegada do rei Momo e acabei levando uma

bronca meio na brincadeira do meu irmão patrão quando cheguei da rua.- Como é precisa trabalhar mais, hoje produziu muito pouco e eu já lhe dei 50

contos adiantado. Precisa fazer jus ao que ganha.Respondi;- Mas o dia ainda não terminou. Vou trabalhar no período noturno.E fui direto para o deposito. Tinha vidrinhos e mais vidrinhos para colocar os

rótulos. Ainda bem que apareceu meu pai para ajudar. Caso contrario ainda estaria lá.

Meu segredo:

Roberto, filho da dona Iolanda, tem 22anos, como eu. Só pensa em estudar e nunca namorou ninguém até hoje. Isso parece preocupar a dona Iolanda que outro dia comentou com minha mãe que sabia que seus parentes por parte do seu Euclides acham que ele é meio fresco e que isso a deixa bastante aborrecida.

Minha amizade com o Roberto começou a cerca de um ano atrás, quando dona Iolanda me levou a casa da dona Paulina quando esta morava ainda em Rio Claro, e me apresentou como sendo noiva do Roberto. Ele sempre ia visitar ela porque gostava de conversar e aprende a língua alemã com ela, que viera da Alemanha quando jovem. Depois comecei a ir visitar ela com dona Iolanda ou as vezes sozinha e ela me dizia que soubera escolher meu noivo, que o Roberto era um excelente rapaz, que eu não devia forçá-lo a se casar, que era melhor ele se formar primeiro, e essas coisas. E para o Roberto quando ia também dava conselhos e falava bem de mim. Mas as vezes ela fazia perguntas para nos que caiamos em contradição. Perguntou para ele qual era mesmo o meu nome e ele não sabia, só me conhecia por Nil. Ela disse então a ele que achava muito estranho um noivo não saber como era o nome correto da noiva. E a gente nunca desmentiu.

Page 13: Conto - A Grande Surra

Agora quando estivemos em Campinas para visitá-la , quando nos dirigíamos a sala de refeição para almoçar, ela por ter dificuldade de andar o Roberto ofereceu o seu braço para que nele se ampararasse e ela muito faceira disse para mim:

- Posso pegar no braço do seu noivo, você não vai ficar com ciúmes, vai?É divertido e gostoso essa brincadeira de noivos com dona Paulina, que é uma

fofura de senhora. E se quer saber comecei a me entusiasmar com o Roberto, agora que tive mais oportunidade de conhecê-lo. O sonho da dona Iolanda é eu a gente namore. Vive dizendo isso nas entrelinhas e forçando até para nos encontrarmos. Sempre diz que somos parecidos, combinamos em tudo. Esta sempre repedindo frases como essas:

- Se um dia esses dois, o Roberto e a Nil se casarem a casa deles vai ser uma bagunça completa, porque um é por que o outro. Vocês vão precisar ganhar muito dinheiro porque vai ser preciso contratar uma empregada, porque caso contrario via ser impossível entrar na casa de vocês.

- Se vocês quiserem namorar por mim, até podem, eu não vou ligar,não.-Nuca vi dois para se combinarem, O Roberto é igualzinho a Nil. Em tudo.Até o domingo em que fomos a Campinas não dava muito valor para o que ela

falava a nosso respeito, mas depois de passar o dia todo ao lado dele. Nossa, comecei a vê-lo de modo diferente. Com mais interesse. Mas não quero estragar uma amizade por algo que para ele possa significar um bobagem e afastar-se de mim por causa disso. Por isso fico na minha dando uma de desentendia e ...

As impressões que o Roberto me passa são as melhores possíveis. De fresco não tem nada. Ele não é como os outros rapazes que só pensam em mulheres e tirar proveito essas coisas. Tem muito, mas muito mais profundidade na suas atitudes, é mesmo superior q todos esse bobos que estão por ai. Tem uma cabeça superior. Tem outros interesses. Meu segredo é que se ele quiser eu junto os trapos, me caso com ele. Realmente temos muita coisa em comum. Sua mãe não deixa de ter razão.

04 de março (sábado)Encontrei o Roberto na Avenida Um, meu coração disparou um pouco. Fomos até

sua casa e acabei almoçando lá. Dona Iolanda tem sua parcela de culpa, faz de tudo para que fiquemos juntos. Mostrou-me suas pinturas, tocamos flauta doce que eu havia lhe dado. Depois viemos até minha casa estudar álbum do Folk Americano onde tem musicas facilitadas e da para tocar flauta lendo as notas musicais. Ficamos a tarde toda nisso, eu dedilhando no piano e o Roberto tocando a flauta. Um pouco desafinado e descompassado mas, valeu a pena. Depois, ele traduzia a letra das musicas que estavam são escritas em inglês. Nossa, como ele sabe as coisas. Traduziu Clementina, Olhos Negros, Não brinco no seu quintal, Velho Negro Jack ...

Estamos cada vez mais ficando unidos, as horas passam rápidas demais quando estamos juntos. Da parte dele é só amizade mesmo.

Sábado de carnaval. Chove. Acho que nem vai ter corso na rua. Uma pena...

Fiquei em casa mesmo e adiantei desenho que pretendo depois pintar. Trata-se de uma ilustração para a historia que segue. È um garoto de cor fumando tendo ao fundo uma favela, com seus barracos. A historia me tocou muito. Vou passá-la aqui:

Page 14: Conto - A Grande Surra

“A Grande Surra” – um conto de Vylma S. Pires

O cigarro foi levado à boca chupado fortemente e ainda nos dedos grossos da Inácia veio pousar sobre a tabua de passar roupa, ali ficando indeciso, cai, não cai,e, quando a negra virou –se para pegar mais uma camisa de uma montanha interminável delas, ele foi ao chão como um pardal ferido. O menino, que acompanhava o gesto a distancia, fascinado e tenso, correu apanhá-lo. Desajeitadamente tentou a primeira baforada. Quando a negra viu, ah! Plantou-lhe o maior tapa no pé do ouvido. Outro na carapinha. Doeu!

- Passe daí, moleque, já!...Neco saltou de lado, rodopiou, quis chorar, mas, durão, guardou para mais tarde.

Inácia apanhou o toco e o atirou para a janela, aproveitando para dar uma sonora cusparada. Voltou-se ajeitando o pano na cabeça.

- T’esconjuro, peste!O menino tremeu o beiço, foi se enfezando, o odiozinho fermentando na caixa. Por

que não podia fumar? Por quê? E ela não fumava feito uma locomotiva?...arriscou o olho, achou-a imensa, muito gorda, a silhueta enorme contra a luz da tarde que entrava pela janela aberta.

Aos poucos, Inácia foi se acalmando. Agora estendera uma camisa azul sobre a tabua, cantarolava baixinho. Esquecera-se dele. As tantas, meteu a mão no bolso do avental e tirou mais “um” do maço ali guardado. Neco, percebendo, prestou atenção. Mania. Gostava de ver o fósforo ser riscado com força na caixa que tinha um girassol em cima, depois a chama nascendo, fffffffffffuuuuuu, rolinho aceso, ô fumaça cheirosa!... Inácia puxou, tragou, soltou pelo nariz, dando inveja, parecia ruindade para provocá-lo. Preparou o bico para assobiar, pendurando o rolinho na beira da janela. Neco sabia que agora podia voltar ao ataque. Ela estava doce.

- Mãeeeeeee- a voz veio assim bem baixinha, de mel.- Mãe!- Fala desgraçado!- Me dá um cigarro?Inácia nem ligou. Neco só podia estar brincando. Molhou os punhos da camisa,

retomou o ferro, continuou cantando. O outro insistiu:- Mãe, tá surda?-Vai-te embora menino!...- Me dá um cigarro!Epa, já era uma ordem. Inácia transformou-se. Os olhos se acenderam no escuro

rosto. Brandiu o ferro em brasa em sua direção.- Pêra ai, nego, que eu já acabo com tua raça, já, já...deixa eu acabar as camisas.Neco teve medo. Era bom ficar mais perto da porta por via das duvidas. Sentiu o

frio na barriga lembrando da ultima surra que levara por causa desse gosto. Tinha comprado um “mata-rato” com o dinheiro do lanche da escola. Na volta da escola andou fumando pelo caminho, chegou tonto, vomitou. Inácia, desconfiada, foi olhar no bolso, lá estava o maço de Aretusa que ele não tivera tempo de esconder. E foi aquele pega! Não correu muito, correu errado, quase caiu no poço do quintal e a nega também. Mas, quando dobrou o pe de fraqueza, não prestou mais. Inácia ganhou, deu-lhe de tabua,cinto e chinelo. Esquentou-lhe o coco ao melhor que pode. Quase iam os dois para o cemitério se Vicente não tivesse chagado...

Page 15: Conto - A Grande Surra

Por uns tempos, Neco “deixou” de fumar. Parecia outro, nem falava no assunto. Mas agora fizera sete anos na semana passada! A tentação voltara para ficar. O “Foguinho”, um menino ruim e amarelo que trabalhava no açougue do Elias era o culpado disso. Vivia de cigarro na boca em pose de homem. Vinha mostrar-se fazendo desenhos incríveis com a fumaça que soltava pelo nariz, pela boca, e as vezes até pelo ouvido. Agora Neco se distraia com um caninho de plástico, de vez em quando olhava para acolá, que Inácia doida bem podia cumprir a palavra e vir atrás dele. cadÊ, já estava terminando a roupa? Que nada, a pilha ia até o anoitecer.

...Tentou novamente:-Ô mãe, mas a s senhora não fuma?Silêncio. Por resposta só mesmo o vaivém do ferro na roupa.- O tio Nei não fuma?Só o vai e vem do ferro.- A Rosa não fuma?- Só o ferro.- Deixa eu fumar só um unzinho?- Cala a boca, assombração!Diabo não tinha jeito mesmo. Quando o Vicente chegasse, ia pedir dinheiro e

comprar um maço só para ele, tá , nem que apanhasse de ficar aleijado. Nisso o Vicente apareceu na soleira da porta. Caíra do céu certamente. Inácia ficava mais mansa na presença dele, era o “ nego” dela; estavam de casamento marcado. Vicente, um partidão, Oficial de Justiça, usava óculos, gravata e sempre dava dinheiro ao menino para ir comprar balas. Foi entrando risonho e muito suado, de paletó no braço, pasta na mão. Há tempos não aparecia.

- Ô calor danado! Muita camisa nega?O rosto da Inácia clareou, até sorriu deixando o ferro de Aldo. O menino investiu

como quem pede esmola.- Vicente, me dá um cigarro, pelo amor de Deus!Trabalho perdido. O outro riu, passou-lhe a mão na carapinha. Sabia da historia,

não dava. Mas deu dinheiro.- Toma vá comprar chocolate.Agarrou a nota sem hesitar. Um Cabral! Correu para fora. Ainda ouviu o grito da

mãe:- Neco!Dando a volta na casa, desceu correndo a ruazinha de barracos em direção a

avenida. Ia enganar a nega direitinho. Foguinho tinha falado de um cigarro assim, assim,no armazém do seu Pereira. Estava ali o dinheiro. Um Cabral! Atravessou correndo a avenida, sem olhar para os lados. Era um pouco longe. Chegou esbaforido, botando a alma pela boca:

- Me dá um Navegante.Nem conferiu o troco. Saiu bobo, olhando o maço que tinha como ilustração um

navio “ indo embora”.Na esquina viu o Foguinho em frente ao açougue. De longe mostrou-lhe o maço,

vitorioso e correu antes que o outro viesse pedir emprestado. Voando fez o caminho de volta. Ia enganar a negra...Queria ver... no subir da ladeira diminuiu a marcha. Tirou um cigarro, bateu no dedo, levou-o a boca fugindo ascender. Ô fumaça cheirosa! Mas a

Page 16: Conto - A Grande Surra

lembrança dos tapas no pé do ouvido endureceu-lhe o rosto. Agora por vingança ia dar um susto danado nela. Retomou o caminho ansioso.

Antes de entrar em casa espiou pela janela. Vicente já tinha ido embora, a negra dobrava camisas em silencio. Ficou parado olhando, quieto, quase desistiu. Mas, de repente, veio o grito.

- Mãe! -surgiu à porta e, de ruindade, mostrou o que havia comprado._ Olhe o que eu comprei.

Inácia olhou, franziu a testa sem acreditar, a vista embaralhada. Esfregou os olhos para ver melhor. Era mesmo. Largou tudo, tomada pelo demônio, passou a mão numa tabua e correu para ele.

- Venha cá, seu fio de uma égua!Neco não era besta, já estava correndo no quintal, em volta do poço. A negra,

muito gorda tinha dificuldade em pegá-lo. Rodeavam os dois. O menino segurava com força os cigarros na mão esquerda e mostrava com provocação. Na verdade queria explicar alguma coisa, mas chorava muito, de medo, desmanchado as palavras na boca, e ela doida, não ouvia nada, só rosnava. A tabua tinha um prego na ponta- ele tinha visto-,não agüentaria muito tempo rodando em volta do poço. Era melhor se entregar, pedir sua benção...Melhor do que isso, arranjou as ultimas forças, e deu um pulo por cima e caiu do outro lado. Podia emendar a carreira, descer para a avenida ( nunca mais voltar! ), mas um menino da vizinha , puxa-saco do inferno, agarrou-o a tempo. Esperneou, sem entretanto largar o que era sue. Inácia aterrisou pertinho, segurou-o pela orelha, levando-o para dentro aos empurrões.

- Me dá a mão!- Neco não tinha coragem 9 a tabua tinha um prego ). Mas deu, não tinha outro

jeito.- Joga fora! Hesitou, tentou escapar ( melhor morrer ), por fim jogou. A mão se abriu, fechou –

se e abriu-se de novo para receber o castigo. Inácia, por uma graça de Deus, desistiu da taboa. Preferiu o chinelo. E bateu um milhão de vezes na mãozinha que ardia como fogueira. Bateu numa e depois noutra. Quando cansou, a negra o empurrou para o quarto. Ficaria no escuro. Nem poderia fugir, que quarto de pobre não tem janela. Ele chorou muito tempo, de raiva. As mãos ardiam, latejavam, estavam horríveis. Finalmente foi-se aclamando embalado pelos próprios soluços.

Do lado de cá, Inácia não sofria menos. Jogou-se numa cadeira, exausta da luta. Permaneceu um tempo de cabeça baixa, sozinha, tomando fôlego. A molecada fugira com medo da figura. De súbito, por força do costume, lembrou-se de fumar um pouco e procurou com os olhos o maço que o menino tinha largado por ali, perto do fogão. Quando o encontrou, no chão, a vista melhor, sentiu uma coisa ruim do lado esquerdo, o coração doeu ante uma suspeita medonha. Levantou-se depressa e veio ver de perto para conferir a suspeita: os cigarros eram de chocolate!... como não tinha reparado antes? Aquele navio chegando, o colorido alegre, cigarro de menino, mesmo...Ficou boba, tremendo, infeliz, remorso maior ainda por ter” desmanchado” o pestinha sem necessidade nenhuma. Arrastando-se de dor, num arrependimento inútil, foi ver o inocente. Abriu a porta devagar, com medo de que ele tivesse morrido.

- Neco, tu perdoa tua mãe?Ele não respondeu, chupou o nariz, encolheu-se mais.- Eu não sabia, filho, eu não sabia...tu me enganou safado.

Page 17: Conto - A Grande Surra

Ajoelhou-se, passou a mão tremula no “santinho”. Neco teve até pena, nunca tinha visto Inácia chorando assim, rosto gordo molhado, a barriga balançando, Tão triste...