Contos e Historias de Proveito e Exemplo

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Edição crítica dessa primeira coletânea de contos do humanismo português.

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Gonçalo Fernandes Trancoso

Contos e histórias de proveito e exemplo

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Gonçalo Fernandes Trancoso

Contos e histórias de proveito e exemplo

Introdução, estabelecimento do texto, glossário e notas por

Fernando Ozorio Rodrigues

Niterói/RJ 2013

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Copyright © 2013 Editora da Universidade Federal FluminenseDireitos dessa edição reservados à Editora da UFF – Editora da Universidade Federal FluminenseRua Miguel de Frias, 9 – Anexo – Sobreloja – Icaraí – Niterói – CEP 24220-900 – RJ – BrasilTel.: (21) 2629-5827 – Fax: (21)2629-5288 – http://www.eduff.uff.br – e-mail: [email protected]

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autorização expressa da Editora.

Edição de texto: Fernando Ozório RodriguesRevisão:Yara Feteschi VieiraCapa e Editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken MartinsSupervisão gráfica: Khátia M. P. Macedo

Dados Internacionais de Catalogação-na-Fonte - CIPT772 Trancoso, Gonçalo Fernandes.

Contos e histórias de proveito e exemplo / Gonçalo Fernandes Trancoso ; introdução, estabelecimento do texto, glossário e notas por Fernando Ozorio Rodrigues. – Niterói : Editora da UFF, 2013. – 352 p. ; 23 cm. – (Coleção Estante Medieval, 9).

Inclui bibliografia.ISBN 978-85-228-0988-2BISAC LCO 000000 LITERARY COLLECTIONS / General

1.Trancoso, Gonçalo Fernandes (1515-1596). 2. Contos portugueses. I. Rodrigues, Fernando Ozorio. II. Título. III. Série.

CDD 869.2

Ficha catalográfica elaborada por Fátima Carvalho Corrêa (CRB 3.961)

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Humberto Fernandes MachadoDiretor da Editora da UFF: Mauro Roberto Leal Passos

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Yara Frateschi Vieira (UNICAMP)

Editora filiada à

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Dedicatória

À minha esposa Valdete e aos meus filhos Leonardo e Giovana,

pela forma resignada como reagiram às muitas horas de convivência

que lhes roubei para concluir esta pesquisa.

Aos professores Evanildo Bechara e Edwaldo Cafezeiro,

pelo constante incentivo e lúcidas orientações, luzes sem as quais não teria encontrado o caminho

para chegar ao ponto final deste trabalho.

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Sumário

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 15

1. Dados biográficos do autor ...................................................................... 162. Trancoso nos anos quinhentos ................................................................. 213. A composição da obra .............................................................................. 274. As fontes .................................................................................................. 325. As edições ................................................................................................ 40

5.1. Edições publicadas no século XVI ................................................ 415.2. Edições publicadas no século XVII .............................................. 425.3. Edições publicadas no século XVIII ............................................. 445.4. Edições publicadas no século XX ................................................. 455.5. Edição publicada no século XXI ................................................... 46

6. As edições de 1575 e de 1595 ................................................................. 466.1. A edição de 1575 ........................................................................... 466.2. A edição de 1595 ........................................................................... 50

7. A língua de Trancoso ............................................................................... 527.1. Fatos relativos ao gênero gramatical ............................................. 53

7.1.1. Em relação aos nomes que designam seres sexuados ..... 537.1.2. Em relação aos nomes que designam seres assexuados .. 53

7.2. Fatos relativos à flexão de número ................................................ 547.3. Fatos relativos aos nomes numerais .............................................. 557.4. Fatos relativos à morfologia pronominal ...................................... 55

7.4.1. Pronomes pessoais e formas de tratamento ..................... 557.4.2. Pronomes demonstrativos e artigos definidos ................. 577.4.3. Pronomes e artigos indefinidos ........................................ 587.4.4. Pronomes relativos e interrogativos ................................ 59

7.5. Fatos relativos à morfologia verbal ............................................... 607.6. Fatos relativos aos advérbios e às locuções adverbiais ................. 63

7.6.1. Advérbios ........................................................................ 637.6.2. Locuções adverbiais ........................................................ 66

7.7. Fatos relativos às palavras conectivas ........................................... 677.7.1. Preposições ...................................................................... 677.7.2. Locuções prepositivas ..................................................... 687.7.3. Conjunções ...................................................................... 697.7.4. Locuções conjuntivas ...................................................... 70

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7.8. Fatos relativos à sintaxe ................................................................ 717.8.1. O termo sujeito ................................................................ 72

7.8.1.1. Construções com o termo sujeito regido por preposição .................................................. 72

7.8.1.2. Construções de oração sem sujeito ................... 727.8.1.3. Construções de sujeito indeterminado .............. 73

7.8.2. Construções passivas ....................................................... 737.8.3. Particularidades na sintaxe de verbos, termos

complementos e adjuntos ................................................ 747.8.4. Particularidades na estruturação de períodos .................. 757.8.5. Construções pleonásticas ................................................. 797.8.6. A oração adjetiva e a sintaxe dos relativos ...................... 817.8.7. As orações reduzidas de gerúndio ................................... 837.8.8. As orações reduzidas de infinitivo ................................... 847.8.9. Sintaxe de regência .......................................................... 85

7.8.9.1. Construções com particularidades de regência verbal ............................................. 85

7.8.9.2. Construções com particularidades de regência nominal .......................................... 89

7.8.10. Sintaxe de colocação ....................................................... 907.8.11. Sintaxe de concordância .................................................. 91

7.8.11.1. Construções com particularidades de concordância verbal .......................................... 91

7.8.11.2. Construções com particularidades de concordância nominal ....................................... 93

7.8.12. Sintaxe das formas verbais .............................................. 938. A ortografia .............................................................................................. 959. O léxico .................................................................................................. 100

9.1. Unidades lexicais com traços de arcaísmo, transcritas na forma como aparecem no texto crítico ....................................... 100

9.2. Unidades lexicais com polimorfismo, também transcritas na forma do texto crítico ................................................................. 101

9.3. Unidades lexicais relacionadas a campos semânticos ................. 1029.3.1. Campo semântico relativo a termos que

designam hábitos de indumentária, tecidos e ornatos para roupas ........................................................ 102

9.3.2. Campo semântico relativo a termos que designam funções e procedimentos na área do judiciário ............. 102

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9.3.3. Campo semântico relativo a termos que designam crenças e práticas religiosas .......................................... 103

10. O projeto de texto crítico ...................................................................... 10311. As normas de transcrição ....................................................................... 106

11.1. A escolha dos textos de base ....................................................... 10611.2. Critérios para a paragrafação ....................................................... 10711.3. Procedimentos relativos ao emprego dos sinais de pontuação .... 10711.4. Procedimentos relativos à forma gráfica dos vocábulos ............. 108

CONTOS E HISTÓRIAS

DE PROVEITO E EXEMPLO

Primeira Parte

PRÓLOGO À RAINHA NOSSA SENHORA ..................................................113

CONTO I .....................................................................................................114CONTO II ....................................................................................................116CONTO III ...................................................................................................117CONTO IV.................................................................................................. 122CONTO V ................................................................................................... 123CONTO VI.................................................................................................. 124CONTO VII ................................................................................................ 125CONTO VIII ............................................................................................... 126CONTO IX ................................................................................................. 128CONTO X ................................................................................................... 129CONTO XI ................................................................................................. 135CONTO XII ................................................................................................ 136CONTO XIII ............................................................................................... 143CONTO XIV ............................................................................................... 144CONTO XV ................................................................................................ 149CONTO XVI ............................................................................................... 151CONTO XVII ............................................................................................. 159CONTO XVIII ............................................................................................ 160CONTO XIX ............................................................................................... 165CONTO XX ................................................................................................ 172

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Segunda Parte

PrÓLOgO À rainHa nOSSa SenHOra ................................................. 175

CONTO I .................................................................................................... 175CONTO II ................................................................................................... 181CONTO III .................................................................................................. 200CONTO IV.................................................................................................. 201CONTO V ................................................................................................... 203CONTO VI.................................................................................................. 214CONTO VII ................................................................................................ 216CONTO VIII ............................................................................................... 226CONTO IX ................................................................................................. 236CONTO X ................................................................................................... 241CONTO XI ................................................................................................. 249

terceira Parte

CONTO I .................................................................................................... 251CONTO II ................................................................................................... 262CONTO III .................................................................................................. 263CONTO IV.................................................................................................. 265CONTO V ................................................................................................... 275CONTO VI.................................................................................................. 283CONTO VII ................................................................................................ 293CONTO VIII ............................................................................................... 296CONTO IX ................................................................................................. 307CONTO X ................................................................................................... 318

gLOSSÁriO ................................................................................................... 323

reFerÊnciaS ............................................................................................... 341

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Apresentação

Em 1569, cerca de 60.000 pessoas foram vítimas da Grande Peste que atingiu Lisboa. Entre os moradores diretamente afetados pela epidemia, estava Gonçalo Fernandes Trancoso, que nela perdeu a mulher, uma filha de 24 anos, um filho estudante e um neto: “Neste tempo de tanto trabalho me tocou o Senhor, alcançando-me tanta parte, que perdi no terrestre naufrágio filha de 24 anos, que em amor e obras me era mãe, filho estudante, neto moço do coro da Sé. E para mais minha lástima perdi a mulher, que por suas virtudes era de mi muito amada, que foi causa de grande tristeza minha”. Bom cristão, Trancoso não deixa de reconhecer no evento a mão de Deus; mas, como a “carne” é fraca e a sua men-te ameaça sossobrar, entregando-se por inteiro à melancolia, lança mão de um recurso para refrear a imaginação, “ao tempo que ela queria fazer chiminés de lamentações”: determina de “escrever contos de aventuras, histórias de proveito e exemplo, com alguns ditos de pessoas prudentes e graves”, com os quais pudesse distrair o espírito atribulado e escapar do desespero.

Trancoso conhecia, certamente, um antecedente ilustre do remédio que se propunha a utilizar em causa própria para não sucumbir ao sofrimento: em 1348, ao ser Florença atingida pela Peste Negra, já se valera Boccaccio do mesmo recurso – a narrativa de histórias aprazíveis e exemplares – para trazer consolo à “brigada” de sete jovens retirados da cidade a fim de escapar à epidemia. Natural-mente, entre um evento e o outro, dois séculos haviam passado; Lisboa, na segun-da metade do século XVI, não é a Florença da pujança mercantil do século XIV; o modelo das narrativas breves postas em circulação por Boccaccio não tivera em Portugal o acolhimento que conhecera na Itália, na França e mesmo na Espanha; já quanto ao número e à organização, os 41 contos de proveito e exemplo de Trancoso acanham-se diante das cem “novelas, ou fábulas ou parábolas ou histó-rias” que se estruturam no Decameron como numa arquitetura gótica, compondo, nas palavras de Vittore Branca, “a epopeia luminosa e humaníssima do outono da Idade Média”. Mas os ecos boccaccianos, transmitidos também, umas vezes, pelos seus numerosos seguidores europeus e peninsulares, outras vezes por meio de fontes tradicionais comuns, ressoam sem dúvida no narrador lusitano, filtra-dos, como era natural, pela herança da literatura de caráter religioso e exemplar, que tanto favor encontrara na Idade Média portuguesa, e pelo contexto tridentino. Por outro lado, ressalte-se que esse “contador de histórias”, perdendo embora em grandiosidade e em capacidade estruturante, ganha pela força expressiva do sofrimento pessoal, pela novidade que sua obra introduz num gênero até então

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APRESENTAÇÃO

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voltado principalmente para os valores místicos e religiosos, pela capacidade de ajustar conteúdos e técnicas narrativas ao variado público a que se dirige, e pelo empenho de trazer ao amplo leque dos eventuais leitores – desde a rainha até a “gente baixa” – o mesmo proveito que recebera daqueles contos e histórias.

Não é de admirar, portanto, que o livro de Trancoso constituísse um su-cesso editorial nos tempos imediatamente subsequentes ao seu aparecimento: desde 1575, data de publicação da primeira edição (que contém as narrativas da primeira e da segunda partes), e 1595 (que inclui também a terceira parte), até o fim do século XVIII, registram-se entre dezesseis a vinte reimpressões, parciais ou completas. O interesse diminui no século XIX, reacendendo-se nos séculos XX e XXI. As edições mais antigas, contudo, são de difícil acesso; nos últimos cinquenta anos, dispomos de uma edição completa de João Palma-Ferrei-ra (1974), baseada na de 1624 – na qual, porém, faltam as três narrativas excluí-das em 1585 pela censura eclesiástica; de uma edição fac-similada da princeps de 1575, realizada também por Palma-Ferreira (1982), que se limita naturalmente à primeira e à segunda partes, uma vez que a terceira só veio à luz na edição de 1595; de algumas edições parciais e de uma outra completa, publicada há poucos anos em Portugal (2003).

O projeto de pôr à disposição do público de língua portuguesa uma edi-ção completa dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo tem ocupado lugar privilegiado na vida acadêmica de Fernando Ozorio Rodrigues. O trajeto ini-ciou-se há mais de trinta anos, na sua dissertação de mestrado, alargando-se em seguida na tese de doutoramento: Trancoso e as histórias de proveito e exemplo: o texto, a língua e o léxico (UFRJ, 2000). Completa-se agora com a realização desta edição, na qual se publicam as 41 narrativas e os dois prólogos da obra, tomando como texto-base para a primeira e a segunda partes a edição princeps de 1575 e para a terceira parte, a de 1595: o texto é restaurado na sua integridade original, desfazendo, por um lado, as supressões promovidas pela censura ecle-siástica e retomando, por outro, as formas primitivas adulteradas pela ação dos editores. Ao lhe dar uma feição moderna quanto à paragrafação, à pontuação e à ortografia, facilita a leitura do texto pelo leitor contemporâneo; ao mesmo tempo, porém, evitando desfigurar a sua feição quinhentista e preservando os elementos necessários à pesquisa filológica, torna-o acessível ao estudioso da língua e da literatura, ao historiador e ao etnógrafo.

Valendo-se dos resultados de ampla investigação, contrabalançada pelo rigor do enfoque sobre um corpus relativamente restrito, Fernando Ozorio ofere-ce-nos não apenas o estabelecimento do texto dos Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, mas também uma substanciosa Introdução, com informações sobre a vida do autor e as circunstâncias da composição da obra, as vicissitudes editoriais

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GONÇALO FERNANDES TRANCOSO – CONTOS E HISTÓRIAS DE PROVEITO E EXEMPLO

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do livro, as fontes que o nutriram e o tornaram possível no seu momento, além de um detalhado estudo dos aspectos morfológicos, sintáticos, lexicais e ortográfi-cos da sua língua, completado pelo Glossário que se segue ao texto.

A Coleção “Estante Medieval” presta, portanto, com esta publicação, um importante serviço ao leitor comum e ao especialista, devolvendo à obra de Gonçalo Fernandes Trancoso a atenção que lhe é devida, não só pelo mérito inegável desse aliciante “contador de histórias”, mas também pelo papel que ele desempenhou, ao registrar, revitalizando-o – no mesmo momento em que Camões transcriava a epopeia clássica – um gênero que já harmonizara, no me-dievo europeu latino e vernáculo, vertentes clássicas e tradicionais: a narrativa breve, nas suas variadas formas.

Yara Frateschi Vieira

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Introdução

A primeira edição dos Contos e histórias de proveito e exemplo, do escritor português Gonçalo Fernandes Trancoso, foi feita em Lisboa, no ano de 1575, por Antônio Gonçalves. Até o século XVIII, a obra teve inúmeras reedições, dado o seu caráter popular, a sua dimensão folclórica e o seu conteúdo ideológico na linha da ética religiosa.

Não obstante esse reconhecimento, o texto dos Contos e histórias de Tran-coso, desde o momento em que veio à luz, sofreu inúmeras intervenções, seja pela ação da censura eclesiástica, seja pela falta de critério dos editores que o alteraram ao sabor de suas conveniências.

Esta edição tem, assim, um objetivo principal: restaurar o texto em sua dimensão mais completa, ou seja, as 41 narrativas hoje conhecidas, distribuídas nas três partes em que o autor originalmente as ordenou: 20 narrativas na Pri-meira Parte; 11, na segunda; e 10, na terceira. Busca-se, com essa restauração, a preservação de um texto que pode ser considerado um monumento cultural da literatura portuguesa, ainda que seu autor não goze, hoje em dia, do prestígio literário dispensado a outros expoentes do século XVI. Mas a matéria do livro e o seu discurso remetem a um extenso universo de interesses para linguistas, filó-logos, etnógrafos, sociólogos, juristas e estudiosos da literatura e da história do cristianismo, compondo um corpus da maior importância para o conhecimento da língua portuguesa dos anos quinhentos e da sociedade portuguesa na segunda metade do século XVI.

Com esta edição, concretiza-se um projeto que teve início com a disser-tação de mestrado intitulada Contribuição para uma edição crítica de Gonçalo Fernandes Trancoso, defendida na Universidade Federal Fluminense, em Nite-rói, no segundo semestre de 1983, sob a orientação do Professor Evanildo Be-chara. Projeto que teve continuidade com a tese de doutorado intitulada Trancoso e as histórias de proveito e exemplo: o texto, a língua e o léxico, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, no primeiro semestre de 2000, sob a orientação do Professor Edwaldo Cafezeiro.

Na idealização e execução deste projeto, teve-se sempre em vista a pro-posição feita pelo filólogo Serafim da Silva Neto – citando Leite de Vasconce-los –, no livro Ensaios de filologia portuguesa, quando deu notícia da descoberta do exemplar único da edição de 1575, exemplar pertencente à Coleção Oliveira Lima, da Biblioteca da Universidade Católica de Washington:

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INTRODUÇÃO

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A obra de Trancoso, já o disse Leite de Vasconcelos, “espera ainda por um benemérito que, aproveitando os materiais que do presente existem, e adicionando outros, nos dê uma edição que satisfaça às exigências da Filologia moderna, e se acompanhe de uma introdução onde borbulhem todas as fontes populares e literárias de Gonçalo Fernandes Trancoso. Como numa edição feita agora a disposição tipográfica, a divisão em parágrafos, a marcação material dos diálogos diferirão muito do que se usa-va dantes, em que narração, discurso direto, períodos, tudo se punha a seguir, sem escolha nem graça, talvez os críticos leiam então mais facilmente os Contos, e não lhes achem desprimores que a imperfeição da imprensa antiga levava sem razão a crer que existissem” (SILVA NETO, 1956, p. 228, e VASCONCE-LOS, 1920, p. 93).

Nesse sentido, nesta introdução, com o propósito de atender as orienta-ções dos dois eminentes filólogos e dar a esta edição dos Contos e histórias de proveito e exemplo a feição recomendada acima, serão apresentadas informações a respeito do autor, do contexto histórico em que ele viveu, da composição da obra, das fontes de que o autor se serviu, das edições que a obra conheceu e dos dados específicos das edições de 1575 (Contos da Primeira e Segunda Partes) e de 1595 (Contos das três partes). Além disso, será feito um levantamento das características gramaticais da língua do autor, considerando-se o fato de ter sido um autor de transição entre a feição arcaica e a moderna da língua portuguesa; das características ortográficas do texto, considerando-se as práticas adotadas pe-los impressores da época; e do léxico do texto, considerando-se a ocorrência de vocábulos arcaicos e populares. Por fim, serão definidos o projeto de texto crítico e os critérios adotados para esta edição.

1. Dados biográficos do autor

São escassas as informações biográficas sobre Gonçalo Fernandes Tran-coso, ainda que a respeito dele existam inúmeras referências em notas e artigos de críticos literários e historiadores da literatura portuguesa. A rigor, os dados mais concretos que se conhecem são fornecidos pelo próprio autor no “Prólogo à Rainha Nossa Senhora”, texto com que introduz a Primeira Parte dos Contos. Nesse “Prólogo”, informa Trancoso que, durante uma epidemia de peste que se abateu sobre Lisboa em 1569, ele perdeu vários integrantes da família: a esposa,

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uma filha de 24 anos, um filho estudante e um neto moço. Informa ainda que resolveu escrever suas histórias para evitar a depressão decorrente dessas perdas.

Ficando eu nesta cidade de Lisboa, o ano de 1569, muito alta e muito poderosa Rainha nossa senhora, a tempo que por causa da peste1 (de que Deus nos guarde) quase todos seus moradores a despovoavam, vi tantas cousas que provocavam os ânimos à tristeza que quem quisera escrevê-las tinha matéria para fazer grande e mui lastimoso livro.

Porque da contagiosa enfermidade víamos cada dia feridos que sa-cramentar, grande multidão de mortos que enterrar e a muitos órfãos chorar. E em todos grandes necessidades que prover, a que o Senhor socorreu com pessoas virtuosas, que por Seu amor o faziam. Isto é, uns por ũa parte sacramentavam, outros medicinavam e davam pola cidade grandes e mui copiosas esmolas, outros enterravam. Que, ainda que havia muitos a que acudir, eram tantos os que nestas obras virtuosas se exercitavam, que não ficou cousa sem se prover. Ainda que nisso morreram muitos (por mercê de Deus), não faltaram outros e outros.

Neste tempo de tanto trabalho me tocou o Senhor, alcançando-me tanta parte, que perdi no terrestre naufrágio filha de 24 anos, que em amor e obras me era mãe, filho estudante, neto moço do coro da Sé.2 E para mais minha lástima perdi a mulher, que por suas virtudes era de mi mui-to amada, que foi causa de grande tristeza minha. Tanto que, ainda que conhecia vir-me (por meus pecados) da mão do Senhor, a carne, que é fraca, com a imaginação se ia cada dia metendo em tristes pensamentos, e tais que me desinquietavam e provocavam a malenconia. Tanto, que temi que o imaginar nos trabalhos presentes me fosse perjudicial ao corpo e alma, se Deus me não tivesse de Sua mão (como por experiên-cia adiante se viu em outros). (TRANCOSO, 1575, “Prólogo”).

A informação relativa à idade da filha falecida (24 anos) e a referência ao neto moço também falecido permitem inferir que em 1569 Trancoso teria aproxi-madamente cinquenta anos de idade, fato que leva à hipótese de que terá nascido entre 1515 e 1520.

1 Em 1569, abateu-se uma peste sobre Lisboa em consequência da qual morreram cerca de 60 mil pessoas.

2 Igreja de Santa Maria Maior, Matriz de Lisboa.

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INTRODUÇÃO

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O seu falecimento ocorreu antes de 1585, pois consta no texto do “Privi-légio” da edição de 1585 a informação de que os direitos concedidos a Trancoso pela publicação do livro seriam transferidos ao filho, Afonso Fernandes Tranco-so, em razão do falecimento do autor.

Eu el Rey faço saber aos que este aluara virem, que auendo respeito ao que diz na petiçam atras escripta Afonso Fernandes Trancoso, morador nesta cidade de Lisboa. Ey por bem & me praz, que por tempo de cinco annos mais alem do tempo que foi concedido a Gregorio Fernandes seu pay já falecido, emprimidor, nem liureiro algum nem outra pessoa de qualquer qualidade que seja nam possa imprimir, nem vender em todos meus Reinos & senhorios, nem trazer de fora delles a primeira, segunda e terceira parte dos Contos que o dito seu pay fez e compos […] João da Costa o fez em Lixboa, a dez de janeiro, de 1585. (TRANCOSO, 1585, “Privilegio”).3

Outro dado concreto sobre a vida de Trancoso é que ele foi o autor da obra intitulada Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaveis, que vem no anno. A obra foi publicada em Lisboa, no ano de 1570, por Francisco Correa. Trata-se de um texto de natureza didática no qual, como o próprio título informa, tem o autor o objetivo de ensinar um modo prático, independente de livros, de se conhecer pelos dedos das mãos o calendário móvel correspondente às festas religiosas do ano, e ainda o dia do mês em que acontece a fase da lua nova.4 Do texto desta obra também podem ser extraídos alguns dados biográficos de Trancoso. No Capítulo XII, está claro que o texto da Regra geral foi escrito no ano de 1565.

E pera mais clareza ponho este exemplo. Estou escreuendo isto em Nouembro, de mil & quinhentos & sessenta & cinco ... (TRANCOSO, 1570, p. 34-35).

No Capítulo IX, Trancoso informa que no ano de 1565 esteve em Santarém, em companhia de um menino de dez anos e meio de idade, o qual é citado como exemplo de alguém que, tendo memorizado o método de reconhecer pela mão as festas religio-sas móveis do ano, pôde corrigir dois padres do convento de Tomar:3 Constata-se uma falha na designação do nome do autor: Gregorio por Gonçalo. Constata-se

também a referência à “primeira, segunda e terceira parte dos Contos”, embora nesta edição tenham sido publicados apenas os contos da primeira e segunda partes.

4 TRANCOSO, G. F. Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas mudaveis que vem no anno. Lisboa: Francisco Correa, 1570.

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E isto decorado vindes em claro conhecimento de muytas duuidas que se offerece, como vereis do que digo este anno de mil & quinhetos & sessenta & cinco, estando em Sãtarẽ cõ dous religiosos do cõuento de Tomar, dixe hũ ao outro, Dia da Ascensam faremos tal cousa, & elles fizeram a conta & disseram que seria aos trinta de mayo, & hũ minino que eu ali tinha comigo que entã era de dez annos e meio, quando os ouuiu, elle per si fez a conta na mão, & dixe, Senhor padre a Ascensam não he senam aos trintehũ de mayo…” (TRANCOSO, 1570, p. 30).

Considerando-se as datas em que se publicaram as suas duas obras co-nhecidas, a Regra geral, em 1570, e os Contos, em 1575, e os acontecimentos relacionados à sua vida pelos quais foi possível chegar-se à hipótese sobre a sua idade na época dessas publicações, depreende-se que Trancoso foi um escritor que escreveu e publicou textos em idade madura e que provavelmente não conhe-ceu nenhuma das reimpressões de suas obras.

É possível afirmar também que Trancoso era um homem do povo, e ele mesmo se considerava uma pessoa de poucas letras, pouco capacitado para escre-ver. Estes dados relativos à sua condição social e intelectual podem ser depreen-didos da leitura do texto que serve de prefácio à Regra geral, sob o título “Ao discreto lector”.

“Charissimo Irmão, & benigno lector, Hum meu amigo a que tenho obrigaçam me pedio que lhe quisesse dar por escrito as regras que ti-nha pera saber tirar pella mão sem liuro as festas mudaueis que vem cada anno, porque tinha pera si que eu sabia algũa cousa desta arte, & verdadeiramete que estiue muitos dias suspensso sem ousar acometer escreuelas parecendome (como he verdade) que com meu fraco enten-dimento, & grosseiro juízo, sem letras, nem abilidade sufficiente, nam podia escreuer cousa que satisfizesse ... (TRANCOSO, 1570, p. 3).

Da mesma forma, também no soneto escrito por Luís Brochado, em louvor aos Contos, texto que antecede ao Conto I, na edição de 1575, podem ser obser-vadas referências ao autor.

Aqui veras, Lector, lendo a diante Hũa obra sotil e dilicada, De exemplos & doctrina fabricada, Por hum estilo grave, & elegante.

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O Rei, o Cortesam, & o Galante, Atê a gente baixa, ou estimada, Daqui podem tirar vida ordenada, A qualquer bom estado importante.

Louvar o Autor della não me cabe, Porque sera tirarlhe sua gloria, Por tantos sapientes concedida.

E pois o Lusitano vulgo o sabe, Não quero aqui narrar sua memoria, Pois tantos conheceram sua vida.

(TRANCOSO, 1575, Soneto de Luis Brochado).

As outras referências a respeito da vida de Trancoso não passam de con-jecturas. Assim, os historiadores que consideram o município de Trancoso, per-tencente ao Distrito da Guarda, como berço natal do escritor o fazem por conta do nome pelo qual ficou conhecido, porque na referida vila não há registro his-tórico do nascimento de Gonçalo Fernandes Trancoso.5 Da mesma forma, com base nos temas que desenvolveu ou nas características de estilo, os historiadores levantaram hipóteses de que ele pudesse ter sido mestre de latim e de humani-dades, ou preceptor de meninos e calígrafo, além de versado na lição da história profana e na ciência da astronomia. Ou ainda que tivesse exercido alguma profis-são secundária na organização da justiça, em razão dos inúmeros contos em que tratou do tema com minúcia, precisão e propriedade dos termos, citando textos de sentenças e de testamentos.6 Não há, entretanto, registros que confirmem essas hipóteses.

Seja como for, viveu Trancoso num momento fertilíssimo da literatura, da cultura e da história portuguesa, e a sua obra também registrou as marcas desse tempo, quando, levado pelos ventos da expansão marítima, Portugal redescobriu o planeta, construiu o Império do Oriente, reordenou os mecanismos do comércio internacional e inscreveu seu nome na galeria dos países que tiveram importante papel nos destinos do homem sobre a face da Terra.

5 Vejam-se VASCONCELOS, 1920, p. 190-193; ou ainda MACHADO, 1747, Tomo II, p. 394.6 CAMPOS, 1923, p. XV-XVI.

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2. Trancoso nos anos quinhentos

A escassez de dados biográficos sobre Gonçalo Fernandes Trancoso obriga a que os estudos a respeito de sua formação humanística tenham de ser depreen-didos exclusivamente da leitura das duas obras que escreveu e publicou. E com uma agravante: as duas obras, ainda que ambas em prosa, são de natureza e ob-jetivos completamente distintos, o que diminui o fornecimento de indícios que permitam chegar-se a conclusões seguras. A Regra geral é uma obra didática, produzida para satisfazer a curiosidade das pessoas a respeito do calendário mó-vel da Igreja e das fases da Lua. Os Contos são uma obra narrativa, um conjunto de contos e histórias produzidos com o propósito de apresentar modelos de proce-dimentos morais, adequados aos costumes vigentes. Esses fatores têm concorrido para gerar uma discussão entre os críticos que, com pontos de vista divergentes, vêm travando uma polêmica ainda longe do consenso.

Pelos dados biográficos seguros, oferecidos pelo próprio autor, e os levan-tados por suposição, depreende-se que Trancoso viveu durante pelo menos seis décadas do século XVI (entre 1520 e 1580), período durante o qual ocorreram grandes transformações políticas, culturais e religiosas em Portugal. Nasceu no final do reinado de D. Manuel, viveu todo o período do reinado de D. João III, conheceu o tempo das regências de D. Catarina e do Cardeal D. Henrique e fa-leceu em época próxima ao desastre de Alcácer-Quibir, por ocasião da perda da autonomia política. Assistiu a boa parte do processo de crescimento econômico decorrente do monopólio do comércio com as Índias e deve ter sentido, no co-tidiano das suas relações, as dificuldades pelas quais passou a sociedade portu-guesa para fazer frente às enormes dívidas contraídas pelo governo em face das novas necessidades que surgiram.7

Conheceu bem de perto, com certeza, os conflitos sociais decorrentes das normas de conversão aplicadas aos judeus. Também, com certeza, deve ter pre-senciado a vários autos de fé, realizados em razão de alguma condenação, ema-nada de processo por crime de apostasia ou de heresia, por parte do Tribunal do Santo Ofício. Acompanhou também as reformas no ensino empreendidas por D. João III e deve ter tido contato com os jesuítas, que passaram a controlar diversas escolas em Portugal. Por outro lado, se Trancoso viveu boa parte de sua exis-tência em Lisboa, deve ter convivido com os expoentes da cultura portuguesa, pois vários deles eram homens públicos (como, por exemplo, João de Barros, que exerceu várias funções públicas, entre elas a de tesoureiro da Casa da Índia),

7 Um exemplo característico dessas dificuldades, que revela o estado de pobreza e a falta de hi-giene em que vivia a maior parte da população, foi a peste que se abateu sobre Lisboa, em 1569, em consequência da qual morreram cerca de 60 mil pessoas.

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INTRODUÇÃO

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conhecendo-lhes as obras e por elas, com certeza, se deixando influenciar. Não se pode esquecer de mencionar que Trancoso foi contemporâneo de Luís de Camões e que as obras de ambos (Os Lusíadas e os Contos) foram publicadas pela pri-meira vez em anos muito próximos (1572 e 1575, respectivamente), pelo mesmo editor, Antônio Gonçalves,8 o que permite supor que um possa ter conhecido a obra do outro.9

O homem Trancoso estava, portanto, inserido no ambiente sociocultural de seu tempo. Resta saber se seu espírito também se impregnou das ideias correntes na época, caracterizadoras do pensamento humanista e revitalizadoras da cultura greco-latina. A resposta só pode ser dada pela análise dos textos que produziu. Com relação à Regra geral, as possibilidades de identificação de características da expressão do espírito humanista são remotas, pois se trata de obra didática produzida com a finalidade de atualizar conhecimentos medievos sobre o calen-dário religioso e o movimento lunar. As informações contidas no opúsculo estão fundamentadas em obras medievais relacionadas à arte de navegar, os portulanos, de que se serviam os navegadores antigos, pois continham as folhas da carta de marear, as regras de cosmografia e do cômputo do calendário, dados tão impor-tantes quanto os contidos nos almanaques náuticos da navegação mais recente. O trabalho de Trancoso consistiu, primeiramente, em aproveitar os dados relativos ao calendário (como, por exemplo, os conceitos de áureo número, de letras do-minicais e os dias de lua nova) e adaptá-los ao calendário móvel da Igreja e, em segundo lugar, em atualizar os textos informativos, facilitando-lhes a compreen-são, inclusive pela utilização de desenhos de mãos (por meio de cujos dedos se determina o calendário móvel) e tábuas de calendário perpétuo. A obra, portanto, carece de princípios científicos que prenunciem a renovação do pensamento, ou que traduzam uma nova metodologia de abordagem, como resultado da observa-ção e da experiência geradoras de novos conhecimentos (como fez, por exemplo, Garcia de Horta sobre as propriedades terapêuticas das plantas medicinais impor-tadas da Índia). Tampouco em todo o texto da obra se observa qualquer indício de expressão da cultura clássica, tendo sido o texto versado em vernáculo, em estilo bem ao gosto popular. O assunto que aborda e a propriedade didática com que o faz remetem às hipóteses de que Trancoso pode ter participado de alguma expe-dição marítima, o que lhe permitiu conhecer os fundamentos náuticos da época, ou então ter exercido alguma atividade relacionada ao ensino, como preceptor.8 João Palma-Ferreira e Cristina Nobre defendem a tese de que terá havido uma edição anterior

dos Contos, datada de 1570 ou 1571, volume constituído apenas pelas narrativas da Primeira Parte. Este assunto será objeto de comentários mais à frente.

9 José Leite de Vasconcelos, na obra citada acima, levanta algumas coincidências entre o discurso de Trancoso e o de Camões, sugerindo alguma proximidade de estilos ou alguma reciprocidade de influência.

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Em relação aos Contos, a obra de Trancoso objeto deste trabalho e a mais importante do autor, as conclusões são em parte diferentes. Primeiro, porque são evidentes os traços de intertextualidade com os novelistas italianos10 e castelha-nos11 da Renascença, assinalando a presença de modelos que renovaram a arte de narrar; segundo, porque as histórias de proveito e exemplo, embora comprome-tidas com os valores religiosos da Igreja da Contrarreforma, estão impregnadas da ideologia da moral burguesa, classe para cuja ascensão estiveram a serviço os grandes escritores humanistas do século XVI. Os dois fatores, entretanto, apesar da evidência como se manifestam nos Contos, têm de ser considerados com as ressalvas características das obras renascentistas no âmbito da cultura portuguesa.

A primeira ressalva diz respeito à forma como as novelas italianas chega-ram à Península Ibérica, principalmente as de autoria de Boccaccio.12 As informa-ções dos bibliógrafos que tratam do assunto dão conta de que a versão peninsular mais antiga do Decameron é uma catalã, anônima, datada de 1429, da qual se extraiu uma versão castelhana, publicada em Sevilha, em 1496.13 Segundo esses mesmos estudiosos, as novelas de Boccaccio entraram na Península transfigu-radas por força de dois fatores de ordem do ambiente cultural: a forte tradição oral e a moral medievalista austera, tomista, teocrática. A rigor, a ascensão do Humanismo, movimento cultural italiano do século XIV, só se realiza como um fenômeno cultural europeu no século XVI, à medida que consegue superar as resistências do teocentrismo radicado na mentalidade dominante. De modo que as novelas boccaccianas, bem como a obra de Petrarca, foram utilizadas durante muito tempo como expressão de preceitos morais, a serviço, portanto, dos dou-tos e moralistas. Até que, já no ocaso dos anos quinhentos, quando na Península cresceram as forças da censura eclesiástica, as obras de Boccaccio e vários outros humanistas italianos entraram para o rol dos livros proibidos.

Relativamente a essa linha de argumentação, merece destaque a conclusão de João Palma-Ferreira:

10 Entre os novelistas italianos são citados como fontes diretas das histórias de Trancoso: Gio-vanni Boccaccio, Matteo Bandello, Giovanni Francesco Straparola, Giraldi Cinthio e Franco Sacchetti (PALMA-FERREIRA, 1974, p. XXVII-XXVIII).

11 Entre os castelhanos são citados Juan Timoneda, Melchor de Santa Cruz e D. Juan Manuel (PALMA-FERREIRA, 1974, p. XXVII-XXVIII; e ainda MENÉNDEZ Y PELAIO, 1943, p. 140-149).

12 Sobre a influência do Decameron na obra de Trancoso, vale mencionar o fato de que ambas apresentam idêntica motivação: Boccaccio faz reunir dez pessoas que, fugindo da peste que as-solou Florença em 1384, resolvem, para melhor fruir o tempo, narrar novelas; Trancoso justifica a produção de suas histórias como uma forma de superar a depressão provocada pela perda de parentes, durante a peste que assolou Lisboa em 1569.

13 PALMA-FERREIRA, 1974, p. XXVI-XXVII.

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Essa lenta alteração vem explicar, nos Contos de Trancoso, o processo como a tradição boccacciana, embora presente, se dilui, por um lado, forçando ainda o caminho da história de exemplo, e, por outro, trans-formando-se numa teoria da sentença cristã (verifique-se o tratamento dado por Trancoso ao tema do naufrágio iminente), enquistada numa nova arte de narrar (PALMA-FERREIRA, 1974, p. XXVI-XXVII).

Portanto, não se pode negar a evidência de intertextualidade entre os Contos e a literatura renascentista italiana, mas é preciso entender essa relação, primeiramente, dando-se conta de que as narrativas de Trancoso estão fortemente vinculadas a uma tradição popular, oral, de origem variada, que remonta a uma época muito antiga e que pode até mesmo ter servido de fonte à literatura culta italiana; e, secundariamente, tendo-se em vista que a mentalidade dominante na sociedade em que viveu o autor determinava que o discurso se dirigisse na direção dos preceitos morais e religiosos vigentes.

Outra ressalva é a que se refere à veiculação da ideologia burguesa nos Contos de Trancoso. Em que pese às qualidades do narrador, pelas diversas estratégias que utiliza para desenvolver suas histórias, numa época em que o gênero mal se esboçava, Trancoso tem sido acusado de veicular o moralismo burguês por meio de uma técnica maniqueísta, sempre na linha da oposição entre o bem e o mal. Essa concepção, segun-do os críticos, reforça-se não só pelo forte tom religioso de seus textos, mas também pela utilização em larga escala de adágios e ditos de autoridade. De fato o remate das histórias faz-se com muita frequência pelo enquadramento num dito grave de algum personagem (autoridade que ministra o exemplo), ou numa expressão popular, que geralmente tem força de uma sentença moral. Esta característica do texto de Trancoso provavelmente foi o mais importante fator para a grande popularidade de que gozou até o século XVIII, por ser uma estratégia narrativo-discursiva de alto poder de con-vencimento, pois facilita a memorização do preceito sublinhado na história. Assim, a vitória do bom sobre o mau, ou do bem sobre o mal, ficava marcada numa sentença que, memorizada e repetida, tendia a criar uma norma de comportamento. A ressalva tem fundamento, pois, na realidade, esta postura limitou o alcance artístico da obra e impediu que se explorassem as contradições da alma humana, na medida em que se focalizou o bom sempre como vencedor, aquele que alcança a riqueza, a nobreza, ou até a realeza; aquele que recebe o justo prêmio por estar afinado com as normas da moral vigente.

Também neste ponto merecem destaque as palavras de João Palma-Ferreira:

O moralismo ainda arcaico de Trancoso impedia-lhe propor uma conjuntura tal em que o “exemplo” surtisse um efeito mais amplo, como no caso de

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Boccaccio. Trancoso aplica-se a um circunstancialismo regional, marcado por uma forte caracterização ambiental, ao passo que Boccaccio universali-za o exemplo, ultrapassando uma época, um lugar e um conceito de oposi-ções e de contradições. Boccaccio extrai o exemplo de uma contradição, ao passo que Trancoso apenas propõe a contradição, sendo incapaz de ir mais além. (PALMA-FERREIRA, 1974, p. LXI-LXII).

Pode-se concluir, portanto, que têm procedência as teses segundo as quais o contista lusitano tinha também o espírito inserido em seu tempo, havendo marcas in-contestáveis, pelas influências que recebeu e pela ideologia que veiculou, do pensa-mento humanista caracterizador dos anos quinhentos. Mas são procedentes também as opiniões que dão conta de que seu humanismo tem características próprias, pois está fortemente marcado por procedimentos narrativos que o prendem à tradição oral, popular, e não apenas à tradição culta; além de que a sua forma de priorizar a dimen-são do homem está subjugada à mentalidade decorrente do moralismo medieval, seja porque esta postura ainda estivesse intensamente arraigada na sociedade lusitana, seja porque era o procedimento intelectualmente adequado para fazer frente ao processo de censura eclesiástica imposto pelo movimento da Contrarreforma em Portugal.

Além dos aspectos até aqui analisados, convém destacar alguns outros que po-dem ser importantes para a compreensão deste traço compósito da obra de Trancoso. Um aspecto é o que diz respeito à formação clássica do autor e, por conseguinte, o seu enquadramento como escritor renascentista. A leitura dos Contos permite fazer o juízo de tratar-se de um criativo contador de histórias que, em linguagem simples, desprovida de aparatos retóricos eruditos, e por meio de provérbios populares, ditos graves e sentenças exemplares, busca atingir seu objetivo que é valorizar o procedi-mento humano fundamentado na justiça, no trabalho, na honestidade, na paciência, na fidelidade, na caridade e em outras virtudes recomendadas pela moral vigente na época. São, assim, escassos os momentos em que se utiliza de citações relativas às obras clássicas ou às entidades mitológicas para adornar o seu discurso, o que permite concluir ser limitado o teor erudito de sua obra, dificultando uma avaliação sobre a sua cultura clássica.14

Outro aspecto interessante, merecedor de destaque, é o que se refere às narrativas cujas tramas se reportam a experiências das grandes navegações e das

14 A rigor, em apenas três passagens há referências explícitas a personagens mitológicas e em um conto utiliza transcrições latinas: no Conto III, Primeira Parte, referência a uma das Parcas, divindades que na mitologia latina presidiam à duração da vida; no Conto VII, Segunda Parte, referência à comédia Anfitrião, de Plauto, a respeito da confusa personagem Sósia; no Conto IX, Terceira Parte, referência ao personagem mitológico Acteão, caçador metamorfoseado em cervo pela deusa Ártemis; e no Con-to V, Segunda Parte, as transcrições “Memorare novissima tua, et noli peccare” e “Initio sapientiae est timor domini”.

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novas terras descobertas, um dos temas dominantes do classicismo português, principalmente nas narrativas de viagens e na epopeia. Trancoso adaptou várias narrativas, originariamente ambientadas em outros países com seus respectivos personagens, ao ambiente português ou a personagens portugueses. Uma delas, o Conto I da Segunda Parte, é a história de um português que embarca numa expedição às Índias ocidentais (no texto designada Índias de Castela) e de lá retorna à pátria em situação financeira bastante favorável, graças aos negócios que realizou com uma peça de artesanato manual – uma beatilha –, vendendo-a a preço muito satisfatório. É bom esclarecer que essa parte da trama funciona como uma introdução para justificar a fortuna do personagem português, intro-dução idealizada por Trancoso, aproveitando-se de uma situação histórica con-juntural (as novas terras descobertas), a par de uma narrativa que, segundo o es-tudioso Manuel Ferro, teria como fonte a Novela 9, Jornada III, do Decameron.15

Nessa linha de raciocínio vale ressaltar as narrativas em que o homem português é posto em contato com indivíduos de raça e religião distintas, no caso com muçulmanos, no Norte da África. São duas narrativas que formam uma sequência: o Conto X da Primeira Parte e o Conto X da Segunda Parte. Ne-las um português é transportado para a terra estranha, dando-se voluntariamen-te como escravo a um rei mouro, mediante certa quantia que seria usada como dote para o casamento da filha, em Portugal. A trama vai elevar o português à categoria do mito, na medida em que, pelo trabalho, pela sabedoria e pela dedicação ao seu senhor, consegue realizar proezas inimagináveis ao homem comum, ganhando, com isso, a liberdade e muita riqueza. As ações e o discurso do personagem estão afinadíssimos com o seu tempo, no sentido da expansão da Fé, buscando convencer o rei mouro e o seu povo a aceitar a religião cristã como única e verdadeira.

Em sentido semelhante ao dessas narrativas, situa-se o enredo do Conto II da Segunda Parte (a história mais extensa da obra), também uma adaptação de Boccaccio (Novela 3, Jornada III, do Decameron). Em ação um jovem portu-guês, de uma família de abastados comerciantes lusos, que, pelo mérito de suas boas ações no trabalho de resgate de uma princesa e de ossadas de dois santos mártires (princesa e ossadas de santos em mãos de muçulmanos no Norte da África), veio a se tornar rei da Inglaterra, depois de suplantar heroicamente, em justas, os cavaleiros mais honrados daquele reino. É o mito da superioridade lusitana, tão cara à literatura portuguesa de Quinhentos, revelado por Trancoso, numa narrativa carregada de densidade épica, em que o homem português, a serviço da honra, do amor e da fé, ganha uma dimensão que o faz superior aos homens de uma das grandes nações europeias da época.15 FERRO, 1988, p. 189-190.

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A escassez de dados biográficos e os poucos estudos sobre as obras de Gonçalo Fernandes Trancoso constituem ainda sérios desafios para um conheci-mento mais apurado dessa marcante personalidade do século XVI, em Portugal. Apesar dos esforços que aqui se fizeram para a ampliação dessas informações, os dados disponíveis até agora mostram-se ainda insuficientes para clarear uma série de aspectos fundamentais para o entendimento mais completo do sentido dos Contos no panorama da cultura portuguesa quinhentista. O importante é que se resgate o prestígio do escritor e que se dê às suas narrativas o valor que lhes é devido como um documento literário e etnográfico dos anos quinhentos.

3. A composição da obra

Os Contos e histórias de proveito e exemplo, como o próprio título já su-gere, constituem uma obra literária do gênero narrativo, dividida em três partes: a Primeira Parte compõe-se de 20 contos; a Segunda, de 11; e a Terceira, de 10.

Aproveitando-se o projeto original da obra para efeito de descrição (contos e histórias), as narrativas podem ser reunidas em dois grupos: os contos ou narra-tivas breves, do tipo anedótico, caracterizadas pelo destaque dado aos provérbios e aos ditos sentenciosos; e as histórias ou narrativas extensas, caracterizadas, em sua maior parte, pela intertextualidade com as novelas italianas e castelhanas. Segundo Ettore Finazzi-Agró, considerando-se que as narrativas foram sendo escritas em momentos distintos, pode-se constatar que “a uma inicial preponde-rância dos contos sucede um progressivo interesse pelas histórias, quase como se o autor tivesse compreendido apenas num segundo momento as possibilidades expressivas que a novela oferece”.16

Outro dado de composição que deve ser registrado é que nas prováveis quatro primeiras edições da obra (1575, 1585, 1589 e 1594) só foram publicados os contos relativos às duas primeiras partes, de modo que a obra completa só é dada à luz na provável quinta edição, em 1595. Além disso, é também digno de nota o fato de que da edição de 1575 para a edição de 1585 foram suprimidos, por força da censura eclesiástica, três contos: um da Primeira Parte (o Conto X) e dois da Segunda (os Contos VII e X).17 Registre-se ainda que dois dos contos suprimidos, o Conto X da Primeira Parte e o Conto X da Segunda, formam uma

16 FINAZZI-AGRÓ, 1978, p. 97.17 Sobre a supressão dos três contos na edição de 1585, vale transcrever o texto do censor da obra,

Frey Bartholomeu Ferreira: “Por mandado do Ilustríssimo, e Reverendíssimo Senhor Arcebispo de Lixboa, Inquisidor Geral nestes Reynos, vi e examinei estes Contos de Trancoso, e tirado o conto X da primeira parte, e o conto VII e o X da segunda, não tem outra cousa contra a Fe e bõs costumes, antes bõs exemplos, para bem viver, por onde me parece que se deve de imprimir”. (TRANCOSO, 1585).

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sequência narrativa, sendo que ao final deste último o narrador remete para um conto da Terceira Parte em que estariam envolvidos os mesmos personagens. Este conto também foi suprimido, a trilogia nunca foi publicada, e só por força do acaso seria possível recuperá-lo. De modo que a obra completa, que saiu da pena do autor, seria constituída de pelo menos 42 contos.18

As histórias de Trancoso tiveram enorme aceitação por parte do público leitor. O fenômeno não tem passado despercebido à crítica, sendo objeto de refle-xão não só as inúmeras reedições que a obra conheceu até o século XVIII, como também o fato de Trancoso não ter tido continuadores no âmbito da literatura portuguesa. A explicação para tamanho sucesso está relacionada a uma série de fatores referentes ao projeto narrativo e às estratégias para a sua realização.19

Com relação ao projeto narrativo, fica evidente em todas as narrativas a proposta originária do autor de fazer de seu livro um painel de lições de proveito e exemplo, uma obra comprometida com os valores morais de seu tempo, à luz dos preceitos religiosos tridentinos. Mas também é preciso enfatizar que, sem se desli-gar dos compromissos com a fé, Trancoso trabalha de modo a fazer da premiação imanente, material, terrena – a conquista do poder, da honra, da riqueza, da sabe-doria, da felicidade – o argumento mais forte para justificar o preceito moral que pretende apresentar como proveito ou exemplo. Quer dizer, no seu projeto narrati-vo está implícita a premiação transcendente, que é reservada aos justos ou aos que vivem em comunhão com os ensinamentos da Santa Madre Igreja; mas de fato o que se explicita no destino dos personagens apresentados como bons, por suas ati-tudes guiadas pelos princípios éticos vigentes, é a conquista de um galardão ainda aqui na Terra, argumento extremamente positivo para se criar o exemplo.

O projeto narrativo assim delineado tem um alcance extraordinário no âm-bito da sociedade, envolvendo indivíduos das mais variadas classes: membros da nobreza e do clero, da alta e da baixa burguesia, artesãos, homens do povo e cam-poneses. Ainda a respeito deste alcance são também esclarecedoras as palavras de Ettore Finazzi-Agró:

18 Embora nas prováveis quatro primeiras edições dos Contos só aparecessem as narrativas da Primeira e Segunda Partes, o projeto de dividir a obra em três partes é mencionado no Privilégio da Segunda Parte: “E que o privilegio que lhe tenho concedido para pessoa algũa nam poder empremir, nem vender sem sua licença, o primeiro dos ditos livros se lhe cumpra & guarde no segundo & no terceiro, por ser tudo hũa historia.” (TRANCOSO, 1575).

19 Acerca desse sucesso dos Contos vale mencionar o artigo de Cleonice Berardinelli “Um best-seller do século XVI”, no qual faz referência ao fato de os Contos terem atingido, entre os séculos XVI e XVIII, número de leitores equivalente ao de Os Lusíadas, de Luís da Camões: “Se tal sucesso se explica sobejamente no caso do poema máximo da língua, como justificar tão grande interesse do público leitor pelo despretensioso livro de estórias? Talvez por isso mesmo: por contar estórias despretensiosamente” (BERARDINELLI, 1985, p. 77).

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O escritor português, no seu simplicismo, tenta apresentar modelos de comportamento válidos para todos, porquanto adaptáveis quer à moral popular, baseada na proverbialidade, quer à nobiliárquica e do alto-cle-ro, fundamentada na autoridade, quer ainda à burguesa, dados o con-cretismo e a “remuneratividade” dos seus princípios. O universo ético dos Contos é, por outras palavras, um universo sem gradações; mas é exactamente neste esquematismo que podemos talvez detectar um dos fatores principais de seu êxito e, em certo sentido, também a razão da sua irrepetibilidade (FINAZZI-AGRÓ, Op. cit., p. 103).

É preciso considerar também que, no caso das histórias (em que se vale das fontes cultas italianas e castelhanas), Trancoso as submete ao crivo do seu projeto, primeiramente adaptando-as aos ditames de seus valores morais e de sua linha ideológica e, em seguida, deslocando, na medida das possibilidades inerentes à narrativa, a ambientação estrangeira para o espaço lusitano, tornando assim o exemplo mais familiar ao leitor português e acrescentando-lhe maior validade ética. Entre as narrativas em que fica evidente esta faceta do projeto de Trancoso podem ser citadas as seguintes: a) no Conto II da Segunda Parte, em in-tertextualidade com a Novela 3, Jornada II, do Decameron, Trancoso transforma o jovem italiano, burguês de nascimento e nobre por educação, que, conduzido pelo destino, conhece a filha do rei da Inglaterra, com ela se casa e vem a tor-nar-se rei da Escócia, em um jovem lusitano, também de família burguesa, que, pelos nobres gestos de resgatar uma princesa e as ossadas de dois santos mártires, vem a se tornar rei da Inglaterra, após derrotar em justas os mais valentes cava-leiros daquele reino; b) no Conto IV da Terceira Parte, em intertextualidade com a Novela 8, Jornada X, do Decameron, Trancoso remaneja o ambiente primitivo da narrativa, passada entre as cidades de Roma e Atenas, com os personagens de nomes Tito e Gisippo, para as cidades de Lisboa e Coimbra, alterando os nomes dos personagens para Fabrício e Cornélio e eliminando os aspectos moralmente pouco condizentes do texto de Boccaccio que desserviam ao conteúdo ideológico de seu projeto.20

Por outro lado foram extremamente funcionais as estratégias que Trancoso utilizou para a realização de seu projeto narrativo. A de maior funcionalidade, sem dúvida, é a estratégia que consistiu em se fazer um narrador presente em qua-se todas as narrativas. Não porque se fizesse passar por um personagem narrador, 20 Neste remanejamento de personagens e ambientes, ainda que seja atingido o objetivo relacio-

nado à moralidade implícita nos textos de Trancoso, é possível ler-se um tom de ironia por parte do autor, ao designar o personagem com o nome de Cornélio, justamente aquele que, na narrativa, cedeu a noiva ao amigo Fabrício, na hora do casamento, cessão possibilitada pela semelhança fisionômica entre os dois.

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mas por dirigir-se constantemente ao leitor, como se estivesse em interlocução, no tradicional papel de um contador de histórias. Com isso, cria mais um espaço para insistir no proveito e no exemplo, colocando-se na situação do conselheiro a apontar caminhos retos que levam à premiação. Para exemplificar essa estratégia, dentre os inúmeros que se encontram nas narrativas, tome-se o seguinte:

Aqui devem tomar exemplo príncipes e grandes senhores que são afei-çoados à caça, que o não sejam tão excessivamente que por ela se per-cam, alongando-se dos seus. Que, ainda que seja em seu reino e em sua terra, pode haver maus tredores, imigos de Deus e do Rei, como estes eram, que lhe armem algũa treição. E por isso é bom em todas as cousas da vida seguir um meo arrezoado e fugir dos extremos, não se inclinar tanto à caça, que por ela deixem os negócios da república e arrisquem a pessoa. Nem a leixem por isso de todo, que seu exercício habilita os homens e os faz acomodados ao uso da guerra, que sempre lhes é bom sabê-lo para seu tempo. E a caça é exercício de nobres e que se permite a tempos, e moderando-se, como é rezão. Notem aqui a aflição em que estaria este Rei, vendo-se em tal estado como ouvistes, e a seus imigos que vinham para o levar à galé com as ameaças e injúrias que dissemos (Conto X, Segunda Parte).

Outra estratégia de extrema funcionalidade foi a que consistiu em utilizar--se dos refrães e ditos sentenciosos, expediente que permitia mais facilmente a memorização do exemplo e que dava ao texto uma roupagem confeccionada pela sabedoria popular, aumentando com isso a credibilidade da voz narrativa e favo-recendo o discurso naquilo que se pretende em termos de persuasão.

Entre os muitos rifães utilizados na obra podem ser citados: “Antes que cases olha o que fazes” (Conto II, Primeira Parte); “A moça virtuosa, Deus a es-posa” (Conto III, Primeira Parte); “Sempre é mau ser zombador, e na barca pior” (Conto V, Primeira Parte); “O bem ganhado se perde; mas o mal, ele e seu dono” (Conto XIV, Primeira Parte); “A mulher honrada sempre deve ser calada” (Conto XVII, Primeira Parte); “A sogra boa, da nora é coroa” (Conto I, Segunda Parte).

Como ditos sentenciosos podem extrair-se: “Senhor, não zombo porque o zombar tem reposta” (Conto IV, Primeira Parte); “Se nós não havemos mister o contador, o mancebo há mister o ofício” (Conto VII, Primeira Parte); “Estes que me servem hão de ficar em casa, porque eu os hei mister; e estes que me não ser-vem também ficarão, porque eles me hão mister a mi” (Conto VIII, Primeira Par-te); “Tudo o que Deus faz é por melhor” (Conto III, Segunda Parte); “Ninguém arma trampa que não caia nela” (Conto IV, Segunda Parte); “A boa mulher é joia

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que não tem preço” (Conto V, Segunda parte); “O pai que perdoa ou dissimula os erros dos filhos, esse os mata” (Conto IX, Segunda Parte); “Bento e louvado seja Deus para todo sempre, que me deu paredes em que desse a ira d’el-rei” (Conto XI, Segunda Parte); “Quão miserável cousa é pedir e que não se deve deitar em rosto o que se dá” (Conto II, Terceira Parte).

Uma terceira estratégia observada na arte de narrar em Trancoso é a que se relaciona com a verossimilhança dos fatos relatados. Não são poucas as narrativas em que o autor envereda por uma linha de ficção na qual rompe com o verossímil e penetra num universo descomprometido com o real, combinando os dois espaços com naturalidade e deles extraindo os conteúdos a serem utilizados em seu projeto narrativo. Essa combinação do verossímil com o inverossímil não impede que as suas narrativas sejam vistas como documentos veiculadores de comportamentos humanos presos à ética religiosa cristã; pelo contrário, acrescenta-lhes uma cono-tação lúdica e uma dimensão estética que contribuem para corroborar a ideologia subjacente na obra. Entretanto, por utilizar essa estratégia pagou o autor um preço muito alto, pois foi por este aspecto que a sua obra passou a ser identificada na tra-dição dos contos populares: as “estórias de trancoso” são tidas como inverossímeis, mentirosas, “histórias da carochinha” ou “do arco-da-velha”, e nelas se incluem muitos outros relatos marcados pela inverossimilhança ou pelo exagero.

Para concluir este item, uma palavra sobre o fato de a obra de Trancoso não ter tido continuadores no âmbito da literatura portuguesa. Como explicar o fato de um projeto narrativo de tanto sucesso entre o público leitor não ter formado uma escola, mas, pelo contrário, ter ficado como obra única relativamente à época em que foi produzida?

A resposta não é simples e muitas hipóteses são aventadas. Parece ter mais consistência a que considera o progressivo fortalecimento da Inquisição em Portu-gal, com o consequente rigor de uma censura que vai impondo nos meios intelec-tualizados uma matriz de moralidade religiosa cada vez mais conservadora. Com isso, reduzem-se ainda mais os espaços para a ficção, não havendo sequer consenti-mento para os projetos narrativos que, baseados na moral cristã, idealizem uma pre-miação imanente, terrena. Os espaços só são abertos para as narrativas inteiramente voltadas para as considerações místico-religiosas, aquelas comprometidas com a premiação transcendente. Neste sentido não é difícil entender por que os Contos de Trancoso passam a ser utilizados com propósitos puramente catequéticos e por que os seus continuadores ficam circunscritos à meditação eclesiástica. Esta é a linha de raciocínio defendida por Ettore Finazzi-Agró:

A união ibérica, com tudo o que dela derivou, e o progressivo fortaleci-mento da Inquisição vieram reduzir notavelmente as margens interpre-

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tativas de uma concepção ética que adornava as recompensas e os cas-tigos de roupagens tão acessíveis e humanas; assim como no romance de cavalaria houve necessidade de refugiar-se na utopia, renunciando à funcionalização da matéria lendária, também no campo da literatura moralística deviam avantajar-se as argumentações puramente místico--religiosas que colocavam num plano metafísico as respostas do agir humano, afastando a possibilidade de uma leitura da ética cristã numa óptica terrena (FINAZZI-AGRÓ, Op. cit., p. 103-104).

Seja como for, o registro que a história faz é de que os Contos e histórias de proveito e exemplo constituíram um caso único na literatura portuguesa. A sua linguagem simples, meio arcaizante, desprovida dos ornamentos retóricos clás-sicos e recheada muitas vezes de redundâncias; os seus personagens, membros da nobreza, religiosos, comerciantes, homens e mulheres do povo, transformados em heróis pelo cultivo dos valores éticos mais consagrados; o seu jeito comu-nicativo de narrar, olhos nos olhos com seus interlocutores; os enredos em que se sucedem fatos comezinhos e posturas consagradas pela tradição, transitando entre a verossimilhança e a inverossimilhança; os cenários urbanos e rurais, nas casas simples, nas casas fidalgas, nas ruas, nas praças e nos paços, cenários to-dos familiares à gente portuguesa; a indumentária, a culinária, as mercadorias objeto de comércio, as pendências judiciais, as normas do contrato conjugal, os procedimentos da administração pública e da privada; enfim, todo um universo de elementos de composição faz das narrativas de Trancoso uma obra ímpar, sem similar nos três séculos que decorreram após a sua publicação. Vale transcrever a respeito deste fato o depoimento de Armando Moreno:

Mas sobre os contos de Trancoso vale a pena lançar o olhar atento, por-que marcou, sem dúvida alguma, um lugar ímpar na literatura portugue-sa. Sendo, sem contestação possível, o introdutor do conto em Portugal, não teve quem se elevasse à sua altura nos séculos que se seguiram. Foi, verdadeiramente, um contista para três séculos, durante os quais não perdeu popularidade ( MORENO, 1988, p. 11-12).

4. As fontes

É fato incontestável a dificuldade hoje existente para o levantamento das fontes de autores que, como Trancoso, empreenderam trabalhos escritos baseados em narrativas relacionadas às tradições populares e cujas origens se perdem no

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tempo e no espaço. As tentativas que se fazem esbarram primeiramente na falta de documentação escrita, pois muitas dessas narrativas estão ligadas a tradições orais que remontam à Idade Média ou até à Antiguidade Latina. Além disso, mesmo havendo documentos antigos em que se registram muitas dessas narrativas, proce-dem eles de nacionalidades variadas, sem que se possa com segurança determinar qual a fonte primitiva. Para ter-se uma ideia da extensão dessas dificuldades, basta que seja feito um levantamento da História de Griselda (ou Grisélia), em Tran-coso o Conto V, Terceira Parte. Suas origens remontam à literatura latina, e foi reproduzida oralmente por toda a Idade Média, tendo sido reescrita, em versões variadas, no século XIV, por novelistas franceses e italianos, entre eles Petrarca e Boccaccio, para, finalmente, aparecer na versão espanhola de Juan Timoneda e na versão portuguesa de Trancoso. Tem-se, assim, que a tradição popular ou a popularização de antigas histórias de origem culta vem constituindo forte fator para obstaculizar o levantamento das fontes dos autores de narrativas folclóricas.

Nessa linha de raciocínio, como considerar as fontes dos Contos de Tran-coso? Primeiramente é possível afirmar que o contista lusitano provavelmente não terá inventado nenhuma das narrativas que inseriu em seu livro. Corrobora esse ponto de vista o depoimento do próprio autor, manifesto no Conto I, Primeira Parte:

[...] senão que, com isto que é muito bom, também é necessário que eu corra minha memória, estude e, tomando a pena na mão, escreva o que aprendi, ouvi, ou li. (Conto I, Primeira Parte)

Ora, diz o autor que, para a execução de sua tarefa, foi necessário correr a memória, estudar e escrever o que aprendera, ouvira ou lera, dando a entender, portanto, que recorreu a fontes orais e escritas para produzir as suas narrativas. Mas não entrou em maiores detalhes, não havendo qualquer referência às fontes em que teria estudado ou lido, nem às fontes de onde teria ouvido relatos aos quais em seguida deu forma escrita. Com uma única exceção. No Conto I, Pri-meira Parte, em que insiste na necessidade do trabalho para que as pessoas alcan-cem objetivos na vida, independente das orações dirigidas aos santos, a narrativa em primeira pessoa permite ao autor transferir a responsabilidade da narração a um padre da Companhia de Jesus, que ensinava no Colégio de Santo Antão, em Lisboa, padre que, segundo o autor, lhe teria passado a história do ermitão e do salteador que em seguida é narrada. Se não constituiu um mero artifício narrativo, é o único conto em que a fonte ficou registrada.

Na verdade, são poucos os trabalhos dedicados ao levantamento das fontes de Trancoso e os estudos até hoje realizados não permitem mais que conclusões precárias. Um dos pesquisadores que tratou da questão relativa à origem e às

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fontes das narrativas peninsulares, o espanhol Menéndez y Pelayo, considera que o valor folclórico dos Contos de Trancoso reside no fato de o contista lusitano ter-se servido com muito mais frequência das fontes relacionadas à tradição oral do que das relacionadas à tradição escrita, destacando a utilização dos refrães, com que remata muitas delas, como uma marca da origem popular. Nos seus comentários informa ainda que “algunas de las anécdotas recogidas por Trancoso son meramente dichos agudos y sentenciosos que corrían de boca en boca, y no todos pueden ser calificados de portugueses”.21 São também procedentes da tradi-ção oral, segundo este mesmo estudioso, muitas das narrativas mais extensas, as que se assemelham a pequenas novelas, o que evidencia a importância da versão escrita dada por Trancoso.

As narrativas que têm como fonte a tradição literária são as que estão em intertextualidade com os novelistas italianos e castelhanos acima referidos. Al-gumas delas, segundo os críticos, são quase que transcrições literais das fontes, nelas fazendo o contista lusitano algumas alterações no cenário e nos nomes dos personagens, além de adequá-las do ponto de vista ideológico ao seu projeto nar-rativo. Considerando-se então as fontes presas à tradição popular e as fontes lite-rárias, têm-se a respeito das histórias de Trancoso as informações a seguir.

I) Na Primeira Parte:

• O Conto I, a história do ermitão e do salteador, como já foi referido, teve como fonte o relato feito ao autor pelo jesuíta do Colégio de Santo Antão, em Lisboa, sendo, provavelmente, de origem popular.

• O Conto II, a história da filha desobediente e gulosa, segundo Teófilo Braga, é a anedota popular intitulada Daquelas sete ao dia, semelhante à qual existe uma versão minhota em que a rapariga desobediente prepara uma tigela de sopa de vinho e diz ao mancebo pretendente que iguais àquela devorava sete ao dia.22

• O Conto VI, a história de um rendeiro vítima da cobiça e inveja de um parceiro de rendas, segundo Menéndez y Pelayo, provavelmente tem ori-gem culta, tomada da Fábula 22, de Aviano, embora apareça, em diferen-tes versões, em muitos outros livros de exemplo da época de Trancoso.

• O Conto VIII, a história de um arcebispo e seu veador a respeito de despedir servidores em período de seca, segundo Menéndez y Pelayo,

21 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, tomo III, p. 147-148.22 BRAGA, s.d., p. 17-21.

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parece ser de origem popular, uma antiga anedota que destaca um dito sentencioso do referido religioso, tendo sido aproveitada também pelo toledano Melchor de Santa Cruz, no Capítulo III da obra intitulada Flo-resta Española, obra contemporânea dos Contos e que contém várias anedotas semelhantes às de Trancoso, com ditos sentenciosos de perso-nalidades espanholas.

• O Conto XI, história passada em localidade perto da cidade do Porto, que focaliza um homem pobre cujos filhos se alegravam com o pouco que tinham, segundo Teófilo Braga, é uma variante da tradicional his-tória da bilha de azeite, muito contada na região daquela cidade, onde ainda se ouvia a expressão “Minha mãe, caçotes!”, semelhante à usada por Trancoso: “Ai caçotes, mana!”.

• O Conto XII, a história do mancebo que resolveu desafiar os conselhos do pai, se assemelha à narrativa de Le XIII Piacevoli Notti, de Giovanni Francesco Straparola, embora muito alterada relativamente a essa versão.

• O Conto XIII, a história de um príncipe que fez quebrar todas as peças de uma baixela de vidro cristalino dourado, da qual se quebrara uma peça, para evitar o nojo da perda de cada peça em separado, segundo Menéndez y Pelayo, é uma antiga anedota de tradição popular que tem como fonte remota os Apotegmas de Plutarco, escritor clássico.

• O Conto XIV, a história do camponês pobre que por preferir 1 real bem ganhado a 100 mal ganhados obteve grande riqueza e título de nobreza para a filha, segundo Menéndez y Pelayo, tem como fonte a tradição oral largamente difundida na Península.

• O Conto XV, a história de um senhor que submeteu a um teste três jo-vens filhos de um tabelião para escolher aquele que realmente possuía vocação para o ofício, é uma versão com alguma semelhança da que se encontra no livro de Dom Juan Manuel, o Exemplo XXIV do Conde Lu-canor; todavia é mais provável que Trancoso se tenha valido da tradição oral, pois que a obra de Dom Juan Manuel só foi publicada na Espanha em 1575, quando Trancoso já tinha escrito a sua narrativa.

• O Conto XVI, a história de dois irmãos envolvidos numa pendência judicial, segundo Menéndez y Pelayo, pertence ao ciclo das narrativas relacionadas ao tema do “justo juiz”, numa vasta tradição popular, com versões russas, tibetanas, hindus e germânicas.

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• O Conto XVII, a história de uma mulher que sofreu uma afronta por ter debochado de três homens, segundo João Palma-Ferreira, é uma narra-tiva tipicamente popular, de motivo castelhano, baseado no adágio “A mulher honrada sempre deve ser calada”, ainda hoje habitualmente ou-vido entre as pessoas mais simples.23

• O Conto XVIII, a história das três perguntas formuladas por um rei ao seu comendador, tinha, segundo Teófilo Braga, uma versão popular, o conto intitulado Frei João sem cuidados, e duas versões cultas: uma, mais antiga, nas Novelle, de Franco Saccheti; outra, contemporânea de Trancoso, de autoria de Juan Timoneda, a Patraña Catorcena do Pa-trañuelo; segundo Menéndez y Pelayo, entretanto, Trancoso teria rece-bido esta narrativa da tradição oral, a “história do Rei João e o abade de Cantorbery”.

• O Conto XIX, a história de um mancebo que tomou três conselhos de sá-bios, colocou-os em prática e obteve grandes sucessos, segundo Menéndez y Pelayo, tem origem na tradição oral com variadas versões, sendo que a adotada por Trancoso está ligada a raízes orientais, parecendo-se com uma lenda em que se narra a história de um pajem da Rainha Santa Isabel.

II) Na Segunda Parte:

• O Conto I, a história da boa sogra que consegue reatar os laços conju-gais da nora com o próprio filho, tem uma versão parecida na Novela 9, Jornada III, do Decameron, mas, segundo Menéndez y Pelayo, a versão de Trancoso está presa à tradição oral, apenas coincidindo com a de Boccaccio, mas não o imitando.

• O Conto II, a história do jovem lusitano que por sua bravura e boas ações no resgate de uma princesa e de ossadas de dois santos mártires foi coroado rei da Inglaterra, guarda semelhanças com a Novela 3, Jornada II, do Decameron, embora Menéndez y Pelayo veja nele reminiscências dos livros de cavalaria, como uma nova versão do tema relacionado ao “morto agradecido”.

• O Conto III, a história de um médico que se resignava diante do infortú-nio dizendo “O que Deus faz é por melhor”, é uma versão bem próxima da que aparece no Exemplo XVIII do Conde de Lucanor, de Dom Juan

23 PALMA-FERREIRA, 1974, p. 81, nota 18.

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Manuel, mas aqui também é mais provável que Trancoso tenha se valido da tradição oral, pela razão acima exposta.

• O Conto VIII, a história da rainha virtuosa que foi traída pelas duas irmãs invejosas, segundo Menéndez y Pelayo, tem inumeráveis paradig-mas na literatura oral de vários países, inclusive em Portugal.

• O Conto IX, a história de um jovem em conflito com um empregado de seu pai por causa de um testamento, segundo Menéndez y Pelayo, tem origem também na tradição oral amplamente divulgada entre o povo.

• O Conto XI, um dito do Marquês de Pliego quando sobre ele desabou a ira do rei D. Fernando de Castela, segundo Menéndez y Pelayo, é de ori-gem popular, com uma versão semelhante na obra de Melchor de Santa Cruz acima referida.

III) Na Terceira Parte:

• O Conto I, a história de um mancebo fidalgo que, após se indispor com o príncipe herdeiro numa briga, conseguiu provar ser ele o verdadeiro príncipe e o outro um impostor, segundo Menéndez y Pelayo, tem ori-gens genuinamente populares, sendo folclóricos todos os seus elemen-tos: a força e a valentia do príncipe verdadeiro e a covardia do impostor, a abnegação do herói diante do sacrifício da própria vida para encontrar a verdade, o casamento do herói com a princesa que permanece encan-tada durante certo tempo na forma de uma velha decrépita etc.

• O Conto IV, a história de uma profunda amizade entre dois jovens, a ponto de um conceder que o outro se casasse com a noiva que lhe es-tava prometida e esse outro se fazer passar por assassino para livrar o primeiro de uma condenação, é de origem culta, uma tradução quase literal da Patraña XXII, do Patrañuelo, de Juan Timoneda, guardando também muita semelhança com a Novela 8, Jornada X, do Decameron, de Boccaccio.

• O Conto V, a história de Grisélia, a camponesa pobre cuja constância e fidelidade a fizeram marquesa, ainda que tivesse muitas versões popu-lares e outras versões escritas popularizadas, é também uma tradução quase literal da Patraña II, do Patrañuelo, de Juan Timoneda, guardando também muita semelhança com a Novela 10, Jornada X, do Decameron, de Boccaccio.

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• O Conto VI, a história de uma mulher pobre, mas virtuosa, que por de-fender a sua honra veio a tornar-se grande senhora, guarda muita seme-lhança com a Novela 14, Parte I, das Novelle, de Matteo Bandello.

• O Conto VII, a história de um gesto de grandeza que o Duque de Flo-rença, Alexandre de Médicis, teve com uma pobre viúva em razão do achado de uma bolsa, é provavelmente de origem popular, embora o tema tenha sido tratado, em diferentes versões, por vários novelistas, entre eles Matteo Bandello, na Novela 15, Parte II, das Novelle, Juan Timoneda, na Patraña VI, e Giraldi Cinthio, na Novela 4, Década I, de Gli Hecatommithi.

• O Conto VIII, a história de uma rainha que, estando cercada em seu reino, aceitou a ajuda de seu maior inimigo, é de origem culta, tirada da Novela 1, Década II, de Gli Hecatommithi, de Giraldi Cinthio.

• O Conto IX, a história de um homem que, para defender a honra da famí-lia, comete um homicídio e sofre inúmeros reveses na vida, é de fonte cul-ta, tirada da Novela 5, Década I, de Gli Hecatommithi, de Giraldi Cinthio.

O levantamento acima, ainda que precário, dá conta de aproximadamente sessenta por cento das fontes das narrativas de Trancoso. Do restante quarenta por cento, ficam por serem apuradas, entre as narrativas breves, as fontes de seis da Primeira Parte (Contos III, IV, V, VII, IX e XX) e duas da Segunda Parte (Con-tos IV e VI). E entre as narrativas extensas, as fontes de uma da Primeira Parte (Conto X), três da Segunda Parte (Contos V, VII e X) e uma da Terceira Parte (Conto III). Como se observou de modo preponderante entre as narrativas cujas fontes estão apuradas ou com fortes indicadores para a apuração, o mais provável é que a maior parte dessas narrativas tenha chegado a Trancoso pela via popular. O exame de cada uma delas pode facilitar esta conclusão.

I) Na Primeira Parte:

• O Conto III, a história da donzela que, por saber guardar sua honra, veio a tornar-se esposa de nobre fidalgo, tem um remate marcado pelo antigo provérbio: “A moça virtuosa, Deus a esposa”.

• O Conto IV, uma anedota sobre a prática da zombaria na corte de D. João III, também está marcado por um dito sentencioso, “Não zombo porque o zombar tem reposta”, e por uma lição da sabedoria popular, “Não te rias de quem passa”.

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• O Conto V, igualmente uma anedota sobre uma zombaria, mas passada numa barca que ia à feira de Beja, tem também o remate em forma de rifão “Sempre é mau ser zombador e na barca pior”.

• O Conto VII, narrativa que focaliza a ação generosa de um rei na con-cessão de um almoxarifado, destaca o dito sentencioso do rei, “Se nós não havemos mister o contador, o mancebo há mister o ofício”.

• O Conto IX, uma anedota de realismo mais cru, que mostra o ódio que dois homens nutriam um pelo outro, é um texto de exemplo encami-nhado, no sentido negativo, daquilo que não se deve fazer, destacando o extremo a que pode chegar o ódio entre os homens, forma de propor exemplo também de característica popular.

• O Conto X, a história do português que, num gesto extremo para poder casar a filha, se fez escravo de um rei mouro, com certeza, por sua gran-deza épica, está presa à tradição relacionada aos seculares confrontos entre cristãos e muçulmanos na Península.

• O Conto XX, uma carta do autor a uma senhora que lhe pedira um ABC para poder aprender a ler, fecha a Primeira Parte dos Contos com um ABC de preceitos morais dirigidos às mulheres, sugerindo atitudes de vida fundamentadas na simplicidade e nas virtudes.

II) Na Segunda Parte:

• O Conto IV, com duas anedotas em que se recomenda evitar armadilhas contra os outros para que não se caia nelas, tem dupla ambientação, uma no campo e outra na cidade, mas ambas caracterizadas pela linha popular do exemplo.

• O Conto V, a história de três jovens que partiram de sua aldeia para ganhar o mundo e o sucesso de cada um, com destaque para aquele que procurou no casamento a realização de sua vida, é uma narrativa extensa da qual, mesmo que Trancoso a tenha recebido por via oral, deve haver alguma versão escrita, pois o enredo tem uma estrutura mais elaborada, semelhante ao de uma novela.

• O Conto VI é uma anedota bem popular, passada no rio Tejo, num mo-mento de aflição provocado por uma tempestade repentina, sobre um dito confiado de um arrais: “Pesar de meu pai, deixai ir o barco e não temais que boa fiança tenho dada na Câmara”.

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• O Conto VII, também uma narrativa extensa, a história de um rei que nunca se ria, ainda que possa ter alguma versão escrita, foi produzido numa linha de ensinamento popular e caracteriza-se por um trânsito per-manente entre a verossimilhança e a inverossimilhança; provavelmente foi censurada pela Inquisição pelo tom de esoterismo implícito.

• O Conto X, narrativa em sequência com o Conto X, Primeira Parte, enquadra-se na mesma linha épica da anterior, presa aos seculares con-frontos entre cristãos e muçulmanos.

III) Na Terceira Parte:

• O Conto III, a história do barbeiro que se atreveu a pedir a mão da princesa em casamento por estar pisando num solo sob o qual havia um tesouro, tem todos os ingredientes de uma anedota tradicional, provavel-mente contada em várias versões, inclusive escritas.

• O Conto X, a anedota de um português artesão e suas negociações com o Duque de Florença, certamente foi adaptada por Trancoso de alguma narrativa tradicional de origem italiana.

Infelizmente, as limitações do espaço de pesquisa impedem um caminhar mais profundo que permita suplantar as dificuldades e encontrar soluções para o problema das fontes de Trancoso. Mas é extremamente interessante ver como Trancoso, pelo menos naquela instância em que é possível se determinar com alguma segurança, utiliza as fontes, opera as transposições, elabora o trabalho de reescrita e faz a intervenção nas narrativas, fatos que destacam o seu talento de contista e a enorme contribuição que deixou para a literatura portuguesa.

5. As edições

Já ficou registrado o interesse que despertou entre os leitores a publica-ção dos Contos de Trancoso. De fato, o sucesso da obra projetou-se nos dois séculos seguintes, visto que do ano da primeira publicação até o final do século XVIII contam-se, entre as edições completas e as parciais, de dezesseis a vinte reimpressões. O levantamento das edições dos Contos constitui outro problema, pois não há uniformidade de informações da parte dos pesquisadores que tratam do assunto, com divergências relativas inclusive à data de publicação da edição “princeps”. Da mesma forma, são confusas as referências à existência de exem-plares das edições mais antigas. A rigor, apenas em relação às edições realizadas

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no século XX e XXI é que podem ser feitas afirmações seguras. Com os dados de que foi possível dispor, abaixo são relacionadas as edições, pelos séculos e pelos anos em que a obra foi impressa.

5.1. Edições publicadas no século XVI

• 1575, por Antônio Gonçalves, em Lisboa. É considerada até agora a edição “princeps” e compreende as duas primeiras partes. Só existe dela um exemplar conhecido, o que pertence à Coleção Oliveira Lima, da Biblioteca da Universidade Católica de Washington. Deste exemplar foi feita uma edição fac-similada pela Biblioteca Nacional de Lisboa, em 1982.24

• 1585, por Marcos Borges, em Lisboa. Compreende também as duas primeiras partes, mas com a supressão dos três contos feita pela cen-sura eclesiástica: o Conto X da Primeira Parte e os Contos VII e X da Segunda. Desta edição há notícia da existência de três exemplares: na Biblioteca do Paço Ducal em Vila Viçosa, na Biblioteca Apostólica do Vaticano e na Biblioteca Nacional de Paris.25

• 1589, por João Álvares, em Lisboa, compreendendo também apenas as duas primeiras partes. É mencionada por Diogo Barbosa Machado26 e Inocêncio Francisco da Silva,27 sem informações sobre a existência de exemplar. Antônio Joaquim Anselmo colocou em dúvida a existência desta edição, argumentando que o editor João Álvares havia falecido em 1587, não podendo ter sido responsável por uma edição dois anos após a morte.28

• 1594, por Antônio Álvares, compreendendo também as duas primeiras partes. A respeito desta edição fazem referência João Palma-Ferreira29 e

24 Segundo Anabela Mimoso, há um Privilégio na Chancelaria de D. Sebastião, autorizando a publicação das três partes dos Contos, datado de 9 de agosto de 1581, fato que levou a referida pesquisadora a admitir que terá havido uma edição dos Contos nesse ano, edição cujos exem-plares foram recolhidos pela censura eclesiástica, da mesma forma como foram recolhidos os exemplares da edição de 1575. (MIMOSO, 1998, p. 270-271).

25 A informação sobre a existência desses três exemplares é dada por João Palma-Ferreira, na “Introdução” da edição fac-similada, de 1982, feita pela Biblioteca Nacional de Lisboa. Para efeito da presente edição foi consultado o exemplar da Biblioteca Nacional de Paris.

26 MACHADO, 1747, p. 394.27 SILVA, 1890, Tomo III, p. 155-156.28 ANSELMO, 1977, p. 28-29.29 PALMA-FERREIRA, 1982, p. XI.

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Serafim da Silva Neto.30 Há um exemplar desta edição na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos da América.

• 1595, por Simão Lopes, em Lisboa. É a primeira impressão completa da obra, compreendendo as três partes, menos os contos que já tinham sido suprimidos. Existe desta edição um exemplar na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.31

• 1600, por Thomé Carvalho, em Coimbra. A referência a esta edição é feita por Menéndez y Pelayo, dizendo que colheu a informação em Ino-cêncio Francisco da Silva, sem referir-se à existência de exemplar.32

5.2. Edições publicadas no século XVII

• 1608, por Antônio Álvares, em Lisboa. Sobre esta edição Agostinho de Campos dá uma informação, colhida em Inocêncio Francisco da Silva, segundo a qual este teria feito minuciosa descrição de um exemplar, destacando a sua correção, em relação à edição de 1722, num cotejo que teve oportunidade de fazer33. Também dá notícia desta edição José Leite de Vasconcelos, dizendo ter adquirido um exemplar bastante truncado,34 bem como Menéndez y Pelayo, que faz minuciosa descrição do exem-plar que diz ter encontrado na Biblioteca Nacional de Madrid.35 Segundo Anabela Mimoso, consta também exemplar no Generale Catalogues of Printend Books, do British Museum.36

• 1624, por Jorge Rodrigues, em Lisboa. Desta edição existe um exemplar na Biblioteca Nacional de Lisboa.37 Menéndez y Pelayo também infor-ma que há exemplar na Biblioteca Nacional de Madrid.38

30 SILVA NETO, 1956, p. 226.31 Os bibliógrafos consultados dão esta edição como datada de 1596. A cópia que se obteve junto

à Biblioteca de Évora permitiu a retificação da data para 1595.32 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 145.33 CAMPOS, 1923, p. LI.34 VASCONCELOS, 1910, p. 378-390.35 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 143-144.36 MIMOSO, 1998, p. 33.37 Foi obtido um fac-símile deste exemplar junto à Biblioteca Nacional de Lisboa, em excelente

estado de conservação.38 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 144.

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• 1633, também por Jorge Rodrigues, em Lisboa. É citada, entre outros, por Menéndez y Pelayo, com a informação de que existe exemplar na Biblioteca Nacional de Madrid.39

• 1646, por Antônio Álvares, em Lisboa. É citada também, entre outros, por Menéndez y Pelayo, que diz ter examinado exemplar existente na Biblioteca Nacional de Madrid.40 A partir desta edição acrescentou-se às narrativas de Trancoso um texto de conteúdo religioso intitulado Breve Recopilaçam da Doutrina dos Misterios mais importãtes de nossa Sãcta Fé, a qual todo Christão he obrigado saber, & crer com Fé explicita, quero dizer conhecimento distincto de cada hum, feito pelo padre Anto-nio Rebello, irmão professo da 3ª Ordem de Nossa Senhora do Carmo, e ainda uma oração do papa Clemente VIII.41

• 1660, por Tomé Carvalho, em Coimbra. Agostinho de Campos, citando Francisco Marques de Sousa Viterbo, diz existir um exemplar desta edi-ção na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.42

• 1671, por Antônio Craesbeeck de Melo, em Lisboa. Esta edição é men-cionada, entre outros, por Agostinho de Campos que diz ter colhido a in-formação em Inocêncio Francisco da Silva, sem referir-se, entretanto, à existência de exemplar.43 Anabela Mimoso diz ter consultado exemplar na Biblioteca Nacional de Madrid.44

• 1681, por Domingos Carneiro, em Lisboa. Desta edição, segundo Me-néndez y Pelayo, há um exemplar na Biblioteca Nacional de Lisboa e outro na Biblioteca Nacional de Madrid.45 A partir desta edição o livro de Trancoso passou a ser intitulado Histórias Proveitozas que contem contos de proveito e exemplo para boa educaçam da vida humana, além de ter sido acrescentado ao livro outro texto de conteúdo religioso inti-tulado Polícia e urbanidade cristã, composto por padres da Companhia de Jesus.46

39 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 144.40 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 144.41 MIMOSO, 1998, p. 297-298.42 CAMPOS, 1923, p. LIII.43 CAMPOS, 1923, p. LIII.44 MIMOSO, 1998, p. 298.45 MENÉNDEZ Y PELAYO, 1943, p. 144-145.46 MIMOSO, 1998, p. 298-299.

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5.3. Edições publicadas no século XVIII

• 1710, ano em que parece ter havido duas edições dos Contos: uma feita por Felipe de Sousa Vilela, em Lisboa, da qual existem exemplares na Biblioteca Nacional de Lisboa e, segundo Agostinho de Campos, citan-do Francisco Marques de Sousa Viterbo, na Biblioteca Pública Munici-pal do Porto;47 e outra feita por Bernardo da Costa, também em Lisboa, que é citada por vários bibliógrafos e da qual existem dois exemplares na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

• 1722, por Filipe de Sousa Vilela, em Lisboa. Desta edição existe exem-plar na Biblioteca Nacional de Lisboa. Agostinho de Campos cita Ino-cêncio Francisco da Silva, informando que este bibliógrafo possuía um exemplar, comprado por 480 réis. Diz ainda, citando Francisco Marques de Sousa Viterbo, que há outro exemplar na Biblioteca da Universidade de Coimbra.48

• 1734, por Manuel Fernandes da Costa, em Lisboa. A edição é mencio-nada por vários estudiosos, entre eles José Leite de Vasconcelos, que diz ter possuído um exemplar.49

• 1744, da qual José Leite de Vasconcelos diz ter possuído um exemplar, sem outras indicações, a não ser sobre o estado do livro e as condições como o obteve.50

• 1764, por Domingos Gonçalves, em Lisboa. Desta edição existe exem-plar fotocopiado na Biblioteca Nacional de Lisboa. Agostinho de Cam-pos, citando Francisco Marques de Sousa Viterbo, diz haver exemplares na Biblioteca Municipal do Porto e na Biblioteca da Ajuda.51 Também José Leite de Vasconcelos52 diz ter possuído um exemplar.53

47 CAMPOS, 1923, p. LIII.48 CAMPOS, 1923, p. LIII-LIV.49 VASCONCELOS, 1910, p. 378-390.50 VASCONCELOS, 1910, p. 378-390.51 CAMPOS, 1923, p. LIV.52 VASCONCELOS, 1910, p. 390.53 Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro há uma ficha contendo informação sobre uma edição

de 1861, que seria uma reimpressão da edição de 1710, feita por Bernardo da Costa. Na verda-de, ou se trata de um erro do fichário da Biblioteca, ou o exemplar foi retirado da Biblioteca, pois no acervo não existe exemplar de edição desse ano.

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5.4. Edições publicadas no século XX54

• 1921, edição parcial preparada por Agostinho de Campos, com vinte e duas narrativas, publicada como um dos volumes da Antologia Portu-guesa pelas Livrarias Aillaud e Bertrand (Paris e Lisboa). A edição con-tém amplo estudo crítico sobre o autor e sobre a obra, sendo considerada uma das fontes mais importantes para o estudo de Trancoso. Aqui no Brasil, há exemplares na Biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa do Rio de Janeiro e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

• 1974, preparada por João Palma-Ferreira, conforme a edição de 1624. Também contém substancioso estudo crítico sobre o autor e sobre a obra, além de um glossário elucidativo de termos arcaicos. A edição foi feita pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, em Lisboa.

• 1982, também por iniciativa de João Palma-Ferreira, consistindo num fac-símile da edição de 1575 e contendo, portanto, apenas as duas pri-meiras partes da obra. A edição foi feita às expensas da Biblioteca Na-cional de Lisboa, e dela foram tirados mil exemplares. Constitui o mais acessível e mais seguro texto para quem tenha interesse de ler os Contos de Trancoso no original.

• 1983, edição parcial preparada por Franco de Barros. Contém 23 narra-tivas e foi publicada pela Editora Cátedra em convênio com o Instituto Nacional do Livro, no Rio de Janeiro.

• 1983, edição parcial, preparada por Fernando Ozorio Rodrigues, em que se publicaram 9 narrativas da Primeira Parte e os 3 contos censurados desde a edição de 1575, desenvolvida no projeto de Dissertação de Mes-trado, defendida na Universidade Federal Fluminense, em Niterói.

• 1988, edição parcial preparada por Armando Moreno, em que coteja textos de Gonçalo Fernandes Trancoso com textos de Francisco Soares Toscano, Francisco Saraiva de Sousa, Diogo Paiva de Andrade, Padre Manuel Bernardes, Pedro Supico de Morais, Manuel Guilherme e Ma-nuel Consciência. Constituída de 13 narrativas, foi publicada em Lisboa pela Editora Passado Presente.

54 A respeito de edições publicadas no século XIX, podem ser dadas duas informações: 1) Teófilo Braga no livro Contos Tradicionaes do Povo Portuguez, publicou 20 narrativas de Trancoso, da página 62 a 128, mas o fez com várias alterações determinadas pelo seu parecer de crítico da obra (BRAGA, s.d.); 2) Cristina Nobre refere-se a três edições recenseadas durante o século XIX: 1861, 1864 e 1883, as quais não chegaram aos dias de hoje, em razão do desinteresse pela obra nesse século (NOBRE, 2003, p. 6).

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• 1989, edição parcial preparada por Santos Costa e que compõe o núme-ro 5 dos Cadernos de Trancoso, publicação da Câmara Municipal de Trancoso, em Portugal.

• 2000, edição preparada por Fernando Ozorio Rodrigues, em que se publi-caram as 41 narrativas das três partes, desenvolvida no projeto de Tese de Doutorado, defendida na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

5.5. Edição publicada no século XXI

• 2003, edição completa preparada por Cristina Nobre, em que se trans-creveram as 41 narrativas das três partes, publicada pela Editora Magno, em Leiria.

6. As edições de 1575 e de 1595

6.1. A edição de 1575

Considerada a edição “princeps” dos Contos, a edição de 1575 apresenta uma série de intrigantes elementos que estão a desafiar os estudiosos que vêm buscando esclarecer-lhe alguns pontos obscuros, para ampliar o conhecimento sobre a obra. O primeiro aspecto diz respeito à existência do exemplar único conhecido, pertencente hoje à Coleção Oliveira Lima, da Biblioteca da Univer-sidade Católica de Washington. O exemplar compunha o acervo de cinquenta mil livros da biblioteca particular do diplomata brasileiro doados à Biblioteca de Washington em 1928, por ocasião de seu falecimento. Antes de ser adquirido por Oliveira Lima e levado para os Estados Unidos, o exemplar fazia parte da livraria pertencente ao espólio da Condessa Azambuja, constando de um catálogo que foi organizado pela Editora de Francisco Artur da Silva, com o objetivo de informar sobre os livros a serem levados a leilão, em Lisboa, no ano de 1919. A descrição do anotador do Catálogo Azambuja foi feita nos seguintes termos:

919 Fernandes Trancoso (Gonçalo) – Primeira parte dos contos & histórias de proveito & exemplo. Dirigido à rainha nossa senhora. – Deve notar-se que falta a folha de rosto, e que este título é formado com os dizeres do frontispício da Segunda parte que vai em seguida, aonde não se menciona o nome do autor. Na face da folha seguinte. – Prólo-go à Rainha nossa senhora. – No verso da folha seguinte. – Soneto

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de Luís Brochado em Louvor deste livro. Começa a obra na folha 1 numerada e termina a primeira parte na folha 54, tendo a começar no meio da face da última, e no verso. – Tavoada do que se contém nesta primeira parte. – No fim em itálico. – Acaba a primeira parte das histórias, & contos de proveito & exemplo. Impressa em Lisboa em casa de António Gonçalves, aos XI dias de mês de Mayo de 1575. E começa a segunda parte. Frontispício. – Segunda parte dos contos & histórias de proveito & exemplo. Dirigido à Rainha nossa senho-ra. – Em seguida, uma oitava em itálico. – Se a parte primeira muy sabio lector / Vistes e lestes, da obra presente / Lede a Segunda, que muy humilmente / Aqui vos presenta agora o Autor / etc. Subscri-ção. – Impresso em Lixboa, em casa de António Gonçalves impres-sor. – Em itálico. – Com licença & autoridade dos ilustríssimos & reverendíssimos Senhores do conselho da sancta & geral Inquisi-çam. – Com Privilégio Real. – Está taxado em 50 réis. – Segue uma assinatura manuscrita de – Gonçalo Fernandes Trancoso – e por baixo 1570; será autógrafo? – No verso do frontispício. – Privilégio da pri-meira parte – Lisboa, a XX de abril de M.D.L.XXI Rey. – Privilégio & taxa desta Segunda parte – Almeirim, a XXVI de Novembro de 1576 – Rey .·. – Na face da 2a folha preliminar – Tavoada do que se contém nesta segunda parte. – No verso da mesma folha, em itálico – Prólogo à Rainha nossa senhora. Segue a obra na folha 1 numerada, até à folha 54, terminando no verso da mesma – Louvores a Deos. In – 4o de 11 – 54; 11 – 54 folhas. Falta o frontisp. (sendo o que existe ms.) e a folha 5 da Primeira parte – Abrange a 1ª parte 20 contos e a 2ª onze. Edição que não achamos indicada nas bibliografias e que nos parece Raríssima. (PALMA-FERREIRA, 1982, p. VII-VIII).

A notícia da existência deste exemplar no acervo da Biblioteca de Washington foi dada por Serafim da Silva Neto em seus Ensaios de filologia portuguesa:

Tive a boa sorte de encontrar um espécime (exemplar único!) da edição de 1575. Está na coleção Oliveira Lima, da Biblioteca da Universidade Católica de Washington (SILVA NETO, 1956, p. 228).

Fazendo-se um rol dos elementos acima transcritos, podem-se destacar os seguintes: a) o exemplar não tem a folha de rosto da impressão original, sendo que a existente é posterior, manuscrita, com os dizeres tirados, com certeza, do frontispício da Segunda Parte e do colofão da Primeira Parte onde consta a data

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de 11 de maio de 1575; b) há dois “Prólogos” dirigidos à rainha, um corres-pondente à Primeira Parte e outro à Segunda; c) a tavoada da Primeira Parte encontra-se no final, depois das narrativas, e a da Segunda, no início, antes das narrativas; d) os “Privilégios e taxas” de ambas as partes estão numa mesma folha impressa, no início da Segunda Parte, e ao final de cada texto é indicada uma data: no “Privilégio” da Primeira Parte, 20 de abril de 1571 (o ano em romanos), e no da Segunda, 26 de novembro de 1576 (o ano em arábicos), data que não confere com o que está impresso, pois o que consta é o ano de 1570; e) junto à assinatura no frontispício da Segunda Parte, que de fato parece ser um autógrafo do autor, consta a data de 1570.

Outros elementos não constantes da descrição do anotador podem ser arro-lados, principalmente os que dizem respeito a datas, por serem importantes para a discussão que aqui será travada: a) no desfecho da última narrativa da Primeira Parte (Conto XX), o autor usou a data de 3 de abril de 1570; b) no texto da última narrativa da Segunda Parte (Conto XI), exprimiu-se o autor da seguinte maneira: “Assi, a exemplo deste Marquês, todos os que este ano de 1569, nesta peste, per-demos mulheres, filhos e fazenda...”, dando a entender que este conto foi escrito antes do último da Primeira Parte; c) no texto do “Prólogo” da Primeira Parte, lê-se esta passagem: “...e a pus a escrever contos de aventuras, histórias de pro-veito e exemplo, com alguns ditos de pessoas prudentes e graves, do qual esta é a primeira parte...”; e logo a seguir: “E logo acabarei de imprimir a segunda parte.”; d) no texto do “Prólogo” da Segunda Parte, lê-se a seguinte passagem: “Vendo eu, muito alta e muito poderosa Rainha e senhora nossa, como Vossa Alteza me fez mercê de receber a Primeira Parte deste tratado e me mandou dar parte do que custou o papel da impressão: sempre trabalhei quanto me foi possível por tirar à luz esta Segunda, que lhe estava prometida.”; e) no “Privilégio” da Primeira Par-te, o escrivão faz referência apenas a um primeiro livro, ao passo que, no “Privi-légio” da Segunda, refere-se a três livros mencionados na petição do requerente, complementando que o privilégio que concedera para a impressão do primeiro livro se estendesse para o segundo e o terceiro, por ser tudo uma história.55

Como se pode constatar, esse conjunto de elementos relativos às datas e às informações contidas no corpo da obra é confuso e desencontrado, problemati-zando ainda mais a questão das edições dos Contos. O primeiro fato gerador de perplexidade está no desencontro das datas referentes ao término da Primeira e da Segunda Partes. Se no Conto XX, Primeira Parte, consta a data de 3 de abril de 1570, como no corpo do Conto XI, Segunda Parte, pode constar o curso do ano de 1569? A não ser que o pronome este aí empregado esteja esvaziado de seu

55 Para maiores informações a respeito das características paleográficas da edição de 1575, veja-se DUARTE, 2008.

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sentido dêitico, o ano correspondente ao momento da enunciação do discurso, e pudesse estar o autor em outro ano, havendo aí uma mera referência ao período de tempo em que aconteceu a epidemia de peste em Lisboa. É uma hipótese pouco provável, em vista do rigor semântico com que Trancoso usou tais pronomes em várias passagens de seu discurso.

Outra possibilidade que pode ser aventada é a hipótese de o autor ter escrito vários contos para em seguida distribuí-los pelas duas primeiras partes, o que po-deria permitir supor que o último conto da Segunda Parte tivesse sido produzido antes do último da Primeira. É uma hipótese que tem como contra-argumentação os textos dos dois “Prólogos” e dos dois “Privilégios”. No primeiro prólogo, fica claro que estava pronta a Primeira Parte e o autor promete para breve imprimir a Segunda; no segundo prólogo, está explícita a referência apenas à Segunda Parte, o que demonstra ter havido algum lapso entre o momento da redação dos contos da Primeira Parte em relação ao momento da redação dos contos da Segunda. No privilégio da Primeira Parte, é textual a referência apenas ao primeiro livro; ao passo que no da Segunda a referência é feita aos três livros, estando claro também que já tinha sido concedida a licença para a venda do primeiro livro e que, da mesma forma, se concedia a licença para a venda do segundo e do terceiro. Com os dados hoje disponíveis não há como resolver este problema.

Um segundo fato gerador de perplexidade diz respeito às datas constantes nos diversos textos que compõem a edição. Com certeza o que levou o autor do frontispício manuscrito da edição a inserir a data de 1575, o local de publicação, Lisboa, e o nome do impressor, Antônio Gonçalves, foi o texto do colofão da Primeira Parte, onde esses dados estão explicitados. O texto do colofão remete também para o início da Segunda Parte, o que permite depreender que a edição, de fato, se compunha das duas partes, não tendo havido mera colagem de duas edições em anos diferentes. Entretanto a data de 1570, que aparece no frontis-pício da Segunda Parte, junto ao autógrafo de Trancoso, e a data de 1570 (e não de 1576, como está no Catálogo Azambuja), que aparece no “Privilégio” da Segunda Parte, produzem enorme confusão de datas, gerando uma situação de quase impossibilidade para a determinação do exato ano desta publicação. João Palma-Ferreira trabalha com a hipótese de gralha na data do segundo privilégio, admitindo que a data correta seja mesmo 1576.56 Mesmo aceitando-se esta hipó-tese, como explicar o fato de um texto publicado em 1575 conter um documento datado de 1576? E como Trancoso autografaria com data de 1570 uma publicação de 1575? Problemas ainda sem solução.

Um terceiro ponto de discussão, em razão das confusas datas e informa-ções, é o que se relaciona à possibilidade de ter havido uma edição anterior à de 56 PALMA-FERREIRA, 1982, p. X.

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1575. A hipótese também é levantada por Palma-Ferreira, considerando as datas de 1570, expressa no Conto XX, e de 1571, no “Privilégio”, ambos da Primeira Parte. Supõe o pesquisador que, tendo terminado a Primeira Parte em abril de 1570, Trancoso ter-lhe-ia providenciado a publicação, redigindo o “Prólogo à Rai nha”, e foi autorizado pelo “Privilégio”, datado de 20 de abril de 1571. Con-clui, por conseguinte, que neste mesmo ano teria havido uma primeira publicação da obra, apenas com os contos da Primeira Parte.57 O argumento de Palma-Fer-reira pode ser fortalecido com os textos dos dois prólogos e dos dois privilégios, acima já referidos, pelos quais fica evidente uma atitude inicial de impressão da Primeira Parte, para posterior impressão não só da Segunda como também da Terceira.58 O grande problema para resolver é a existência dessa publicação. Em nenhum dos bibliógrafos consultados há qualquer alusão. Se existiu tal edição, pode ter sido recolhida pela censura eclesiástica, da mesma forma como a cen-sura deve ter agido sobre a edição de 1575, na qual, estranhamente, não consta o parecer da Inquisição. Na edição de 1585, em que consta o parecer, está clara a referência à supressão dos três contos já mencionados. Além disso, segundo o de-poimento de Serafim da Silva Neto, na edição de 1594 consta este parecer do Frei Bartolomeu Ferreira: “E a meu parecer, os impressos antes da era de 85 não se devem imprimir outra vez”.59 O problema está posto, e apenas com a descoberta de exemplar terá solução.

Seja como for, neste momento a edição de 1575 é a mais antiga de que se dispõe e, em relação às duas primeiras partes, a mais completa que se conhece. Em face disso, será tomada como texto de base nesta edição, relativamente à Pri-meira e à Segunda Parte dos Contos.

6.2. A edição de 1595

Como já se referiu acima, desta edição, em que pela primeira vez aparecem impressos os contos das três partes da obra, existe um exemplar na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora. Nela foram publicados apenas 38 contos, por força da censura eclesiástica. Durante muitos anos, os bibliógrafos a men-cionavam como tendo sido publicada em 1596, data que se pôde corrigir com a consulta ao exemplar da Biblioteca de Évora.

No frontispício do livro estão impressos: 1) o título – “Primeira, Segun-da e Terceira Partes dos Contos & histórias de proveito e exemplo. Dirigidos a

57 PALMA-FERREIRA, 1982, p. X.58 Como foi referido na nota 8, Cristina Nobre também defende esta tese de que houve uma edição

anterior dos Contos, entre 1569 e 1571 (NOBRE, 2003, p. 2-5).59 SILVA NETO, 1956, p. 228.

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Rainha Nossa Senhora”; 2) as informações de autoria e características do texto, expressas em versos: “Diversas histórias, e contos preciosos, / Que Gonçalo Fer-nandes Trancoso ajuntou, / De cousas que ouviu, aprendeu, e notou, / Ditos e feitos, prudentes, graciosos, / Os quais com exemplos bons, virtuosos, / Ficam em partes mui bem esmaltados: / Prudente lector, lidos, notados, / Creo achareis que são proveitosos”; 3) a referência à licença inquisitorial: “Com licença da Sancta Inquisição, e Ordinário, e de Sua Majestade”; 4) o nome do editor e a data da edição: “Em casa de Simão Lopez, 1595. Com Privilégio Real por dez anos”.

Na página seguinte, estão os pareceres dos censores do Santo Ofício: 1) “Por mandado de S.A. vi a Primeira, Segunda, e Terceira parte dos contos de Trancoso, e emendado como vai, não tem cousa, contra a fé, e bons costumes, e contém bons avisos, e proveitosos, nem tem cousa, porque se não deva de im-primir. Fr. Bartolomeu Ferreira”;60 2) “Vista a informação pode-se imprimir este livro e depois de impresso torne para se conferir e se lhe dar licença para correr. Em Lisboa, 11 de maio de 93. Diego de Sousa – Marcos Teixeira”; 3) “Pode-se imprimir vista a licença dos deputados do Sancto Ofício e por ser visto na mesa. Em Lisboa, a 17 de setembro de 94. P. D. Daguiar – Diego Lameira”; 4) “Pode-se imprimir a 29 de octubro de 93. João de Lucena Homem”.61

Na página a seguir, está impresso o Privilégio concedido por el rei, resguardan-do os direitos do impressor Simão Lopez, do qual se transcreve a seguinte passagem:

Eu el Rei faço saber aos que este Alvara virem, que avendo respeito ao que na petição atras escrita diz Simão Lopez livreiro morador nesta cidade de Lixboa, & visto o que alega, & a licença que tem do Sancto Officio da Inquisição pera imprimir o livro das historias de Gonçalo Fernandez Trancoso, a primeira, segunda, & terceira parte de que na dita petição faz menção, ey por bem & me praz q por tempo de dez Annos imprimidor nem livreiro algum nem outra pessoa de qualquer qualidade q seja não possa imprimir nẽ vender em todos estes Rei-nos, & Senhorios de Portugal, nem trazer de fora deles o dito livro... (TRANCOSO, 1595)

Na quarta página tem início a impressão da Primeira, Segunda e Terceira Partes dos Contos. A edição de 1595 será tomada como texto de base nesta edi-ção, relativamente à Terceira Parte dos Contos.60 Frei Bartolomeu Ferreira, que foi o primeiro censor de Os Lusíadas (veja-se VITERBO, F. M.,

1891), foi também o censor de três edições dos Contos, das mais antigas: 1585, 1594 e 1595.61 Constata-se aqui também outra incongruência de datas, pelo que está expresso no item 3 (se-

tembro de 94) e no item 4 (outubro de 93), considerando-se as ordens dos censores numa pers-pectiva cronológica.

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INTRODUÇÃO

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7. A língua de Trancoso

Trancoso é um escritor da segunda metade do século XVI, período de tran-sição entre a feição medieval e a feição moderna do idioma português. Como ensina Segismundo Spina:

A partir de meados do século XVI a língua portuguesa passa por gran-des transformações, enriquecendo seu acervo lexical, disciplinando as suas estruturas, competindo com a língua irmã, o espanhol, e expandin-do-se para fora de seu domínio continental (SPINA, 1987, p. 8).

Esse processo de transformação, de cunho renascentista, foi marcado prin-cipalmente por dois fatores: pela latinização da língua, em razão da imitação dos modelos clássicos greco-latinos, e pela disciplina gramatical. Na língua literária, foram muitas as formas reintroduzidas na língua a partir do modelo latino, no léxico e na gramática, principalmente na sintaxe.

Não obstante, era notório que, mesmo entre os escritores renascentistas, esse processo de modernização coexistiu, até o século XVII, com as velhas es-truturas que vinham dos fins da Idade Média. Comentando sobre a expressão “português arcaico médio”, utilizada por Epifânio da Silva Dias, na obra Sintaxe histórica portuguesa, afirma Segismundo Spina:

É bem possível que a denominação “arcaico médio” não constituísse propriamente uma fase, mas um longo período paralelo ao português clássico, do século XVI ao século XVII, em que certos termos e cer-tas estruturas linguisticas do português antigo se mantiveram vivos ( SPINA, 1987, p. 9).

Serafim da Silva Neto, em sua História da língua portuguesa, ao tratar do século XVI, após discorrer sobre as características literárias e estilísticas dos principais poetas e prosadores da língua naquele século, passa a relacionar os fatos da linguagem quinhentista. Nessa relação, com base em trabalhos feitos com as obras de Sá de Miranda e Luís de Camões, o eminente filólogo destaca vocábulos, formas de expressão, particularidades de flexão e particularidades sin-táticas, considerando não só os traços de linguagem erudita, mas principalmente os traços de linguagem arcaizante ou de linguagem popular, deixando clara essa característica de coexistência entre o moderno e o arcaico.62

62 SILVA NETO, 1979, p. 504-511.

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Assim, portanto, pode ser caracterizada a língua de Trancoso: uma língua de feição moderna, mas fortemente impregnada de termos e estruturas do portu-guês antigo, arcaicos e populares. Pelas características relacionadas à forma de utilização da língua por parte de dois expoentes do século XVI, Gil Vicente e Luís de Camões, pode-se afirmar que a língua de Trancoso se caracteriza como um estrato intermediário entre os dois grandes escritores.

Para efeito da descrição abaixo, serão considerados os fatos relativos à morfologia nominal, pronominal e verbal, aos advérbios e locuções adverbiais, às palavras conectivas e à sintaxe, sempre apresentados pelos traços de arcaísmo ou de linguagem popular, ou ainda por alguma característica que os diferencia dos procedimentos comuns à feição moderna do idioma.

7.1. Fatos relativos ao gênero gramatical63

7.1.1. Em relação aos nomes que designam seres sexuados

• O nome borlador está empregado como comum de dois gêneros, no trecho “era na arte a melhor borlador que se achava na terra” (2, II).

• O nome infante e sua variante ifante aparecem empregados como co-muns de dois gêneros: “sendo já o infante desmamado” (3, V), “e a outra mulher a ifante” (2, VIII).

7.1.2. Em relação aos nomes que designam seres assexuados

• O nome árvore e sua variante árbores ocorrem no feminino e no mas-culino: a) no feminino: “metendo-o no tronco de hũa árvore” (1, III); b) no masculino: “A folha do árvore” (2, V), “de um árvore queimado” (2, X), “vendo os árbores” (3, I).

• O nome linguagem, a par de várias ocorrências no gênero feminino, aparece empregado no gênero masculino: “o mancebo disse no nosso linguagem a cantiga seguinte” (2, II).

• O nome viagem e sua forma variante viage ocorrem no masculino e no feminino: a) no masculino: “e o trabalhoso viagem que levava” (1,

63 Os fatos de língua exemplificados com trechos das narrativas estão com indicação, entre parên-teses, da Parte (1, 2 e 3) e do Conto (I, II, III etc., ou Pr – Prólogo).

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INTRODUÇÃO

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XVI), “e não para segurança do viage” (2, VI); b) no feminino: “previ-são para a viagem” (2, II), “que passara na viagem” (2, VII).

• O nome linhagem e sua variante linagem ocorrem seis vezes no texto: a) duas ocorrências no feminino: “que de tão boa linagem desejamos” (3, V), “E vendo eles a baixeza de vossa linhagem” (3, V); b) três ocor-rências em gênero não definido: “não quisesse sujar a nobreza e grande linhagem donde vinha” (1, III), “não menos nobre em virtude que em linhagem”, (3, V), “assi em linagem como em riqueza” (3, VI); c) e uma no masculino: “tanto pola nobreza de seu linagem” (3, VIII).

• O nome fim tem vinte e nove ocorrências, das quais uma se fez no gêne-ro feminino: “o que persevera em bõas obras até a fim” (2, VII).

• O nome prol tem uma única ocorrência, e no gênero feminino: “quem tanto e com tal pressa madruga a comer pouca prol pode fazer” (1, II).

• O nome composto guarda-roupa tem uma única ocorrência, e no gêne-ro feminino: “já que saía fora da câmara pera a guarda-roupa” (3, I).

• Ocorre o registro da forma pouca, como nome substantivo: “lançou-lhe ũa pouca de terra em cima” (1, X).

7.2. Fatos relativos à flexão de número

• Nos nomes terminados em –al, o plural se fazia com a vogal temáti-ca em sua forma – e, antes da desinência – s: perjudiciaes, mortaes, igoaes etc.

• O nome benção, articulado como oxítono, de acordo com o étimo latino benedictione, tem o plural benções.

• O nome real, designando moeda, aparece com duas formas distintas de plural, réis e reales, as quais, pelo contexto, parecem designar moedas de valores diferentes: “E quando se acabou o jogo, ficou devendo os di-tos cinco mil réis, e ele levava consigo dezoito ou vinte reales de prata, que era isto o ano de 1544” (2, IV).

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7.3. Fatos relativos aos nomes numerais

• O cardinal correspondente a dez dezenas tem duas ocorrências com a forma cem e doze com a forma cento.

• O cardinal correspondente a cinco dezenas tem todas as suas onze ocor-rências na forma cincoenta.

• O ordinal décimo quarto tem apenas uma ocorrência e na forma varian-te quatorzeno.

• O ordinal dezesseis tem apenas uma ocorrência, e na forma da variante dezasseis.

• O numeral ambos aparece empregado em expressão de dualidade: am-bas de duas: “estávamos ambas de duas chorando” (3, IX).

7.4. Fatos relativos à morfologia pronominal

7.4.1. Pronomes pessoais e formas de tratamento

• O pronome pessoal oblíquo tônico de primeira pessoa do singular ocorre sessenta e duas vezes com a forma mi, escrito sem a marca da nasalida-de da vogal, e cinquenta e nove vezes com a forma mim.

• O pronome pessoal de segunda pessoa do singular, na forma oblíqua ti, ocorre empregado numa sequência de sujeito composto: “Entremos eu e ti e tua filha dentro em tua casa” (3, V).

• Há vários registros dos pronomes pessoais de primeira e de segunda pessoa do plural nós e vós reforçados do pronome indefinido outros e do numeral ambos: a) nós outros e nós outras: “pera que qualquer de nós outros em particular” (3, V), “e a compaixão que nós outras” (3, IX), “vos rogo que tenhais piedade de nós outras” (3, IX); b) vós outros e vós outras: “que a verdadeira amizade de vós outros” (3, IV), “que a mulher que eu escolher, seja quem for, que vós outros a sirvais” (3, V), “e que de minha eleição nenhum de vós outros se aqueixe” (3, V), “a qual val mais que vós outros todos juntos!” (3, VI), “o prêmio...se dê

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a vós outras.” (3, IX); c) nós ambos: “e acabem-se de ũa vez em nós ambos” (3, IX).

• Registram-se as combinações de pronomes oblíquos átonos: mo, ma, lho, lhos, lha, lhas, no-lo, vo-lo e vo-la.

• Há inúmeras ocorrências do pronome pessoal oblíquo átono na forma lhe, mas empregado com valor de plural: “com o que querem que os santos lhe alcancem.” (1, I), “eles de sua parte haviam de trabalhar no estudo por aprender, para lhe aproveitar o que ele ensinava” (1, I), “Que os pobres não desesperem nas demandas que lhe armam tiranos.” (1, XVI).

• Os pronomes pessoais oblíquos átonos o, a, os, as aparecem combina-dos com as preposições per e por, nas formas pelo, polo e flexões: a) com pelos: “E o mancebo esteve pelos aceitar.” (2, IX) “e lhes disse que faria seu poder pelos servir.” (2, II); b) com polo, pola, polos e polas: “e polo nam trazer” (1, IX), “trabalhava polo matar” (1, X).

• Registra-se ocorrência do pronome de terceira pessoa ela em referência à pessoa com quem se fala, combinado com forma de tratamento: “Se-nhora, agora me deram um recado de parte de Vossa Mercê, em que me pedia lhe mandasse um ABC feito de minha mão, que queria aprender a ler, porque se acha triste quando vê senhoras de sua calidade que na igreja rezam, e ela não” (1, XX).

• Registra-se o emprego da forma de tratamento Vossa Mercê, nas re-lações familiares e em outras relações de semiformalidade: “Se Vossa Mercê a quer, tome-a, que eu folgarei muito disso” (1, XIV), “Eu tenho já escoleito os leterados, e Vossa Mercê é o primeiro” (1, XIX).

• Há duas ocorrências do vocábulo dono como forma de tratamento cor-respondente a senhor: “Entrai, dono.” (2, V), “Senhora mulher, antes de todas as cousas vos rogo que busqueis um pão e do vinho, que almorce este dono” (2, V).

• A forma de tratamento Vossa Alteza era usada para reis, rainhas, prín-cipes e princesas: “achei que não há na terra outro senão Vossa Real Alteza” (1, Pr), “o qual comprou com licença de Vossa Alteza” (1, VII).

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7.4.2. Pronomes demonstrativos e artigos definidos

• Há ocorrências de demonstrativos combinados com indefinidos: a) es-toutro: “com que ele estava rico e estoutro pobre.” (1, VI), “e depois deixa-me dar a estoutro dous tanto” (1, IX); b) essoutro e flexões: “Mas virai vós o rosto para essoutra banda” (1, V), “que assi como vos con-fesso isso, vos confessara essoutro” (1, VI).

• Registra-se o emprego dos demonstrativos este e aquele, regidos das preposições a e em, sem a contração ou a crase: “que lhe pareceu a aquele mau homem” (1, X) “ainda que a todos pesou acontecer aquilo a aquele homem” (1, XII), “Aconteceu que em este tempo passou por aquele lugar” (1, XIV), “E conveo-lhe ficar ali ũa noite em aquela al-dea” (1, XIV), “que Ele vos proverá em esta.” (1, XVIII), “vindo el-rei a aquela terra” (1, XIX), “Em este livro escrevei tudo” (2, IX).

• Aparecem as preposições per e por contraídas com o demonstrativo o: “pelo que tinham concertado” (1, II),”pelo que eu conheço ficar-vos aquém.” (1, III), “e pagava polo que o outro tinha roubado” (1, VI),”vos ficarão em obrigação pelo que lhes perdoastes.” (1, XIX), “Pelo que o mestre-sala” (1, XIX).

• Determinando o substantivo rei, ocorre a forma el, na construção el-rei: “Neste reino, em tempo d’el-rei Dom João, o Terceiro” (1, IV).

• Aparecem sem artigo nomes próprios de continentes e países que no português do Brasil se empregam com artigo: África, Espanha, Fran-ça, Inglaterra e Itália: “na cidade de África” (1, X), “havidas daquele Rei de África” (1, X), “e atravessando toda Espanha e França” (2, II), “chegaram à corte daquele reino de Inglaterra.” (2, II), “Na mui no-meada cidade de Florença, que está em Itália” (3, VI).

• São comuns as contrações de artigos com a preposição por: polo e fle-xões: “fiou a velha aquele serão quase até meia-noite e, pola manhã” (1, II), “polas casas a dentro” (1, III), “pola parte da nogueira” (1, III), “E depois, indo polo caminho” (1, V), “se saiu a passear pola horta” (1, XVIII).

• Ocorre a preposição por regendo constituinte nominal com determina-ção de artigo definido, sem a devida contração: “cada dia mais obrigado

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por as mostras que via nesta lavradora” (3, VI), “E tornando com gran-de pressa por o caminho” (3, VII).

• Registram-se ocorrências da coalescência da preposição a mais artigo o, os, na forma ó, como em galego: “Oh, dou ó demo a canalha” (1, XI), “Provia ó doudo do esprital o que lhe ficou de vida.” (2, V), “dera o principado do reino a cujo não era, tirando-o ós herdeiros de Vossa Alteza” (3, I), “logo escreveu suas cartas a Lisboa, ós pais de Fabrício” (3, IV), “Mas, resoluta finalmente a antepor ó antigo ódio a justiça, e o benefício à injúria” (3, VIII), “e o presentassem ós senadores” (3, IX), “que por ela merecia ficar em aborrecimento à terra e ó céu” (3, IX).

• Em fenômeno de fonética sintática, constata-se a ocorrência do artigo os com a forma los, na expressão de Trá-los-Montes: “meu pai é contador em um almoxarifado de Trá-los-Montes” (1, VII).

• Ocorrência de artigo em construção distributiva: “e fez da renda cinco partes, das quais as duas bastavam para ele e toda sua família comer e beber, vestir e calçar, e pagar servidores. E as outras duas gastava com os pobres que havia naquela comarca, dando-lhes ordinariamente tudo o que lhes era necessário. E a ũa quinta parte andava sempre de sobressalente para mercês extraordinárias.” (1, XVIII).

7.4.3. Pronomes e artigos indefinidos

• Encontram-se no texto original as formas femininas uma, alguma e ne-nhuma e suas variantes ũa, algũa e nenhũa.

• Registram-se as variantes nhum e nhũa por nenhum e nenhũa: “que nhum deles sabe cousa alguma” (3ª Parte, Conto IV), “e nisto não hai dúvida nhũa” (3, IV), “não se achava em seu pensamento nhum modo de deleite” (3, V).

• Registra-se a ocorrência do pronome indefinido al: “E pera me satisfa-zer, não posso em al, senão na paga” (3, X).

• Observa-se também o registro das formas flexionadas nenhuns e ne-nhũas: “sem nenhuns aparelhos para navegar” (2, VII), “E o príncipe a esse tempo não tinha consigo nenhũas armas?” (3, I).

• Encontra-se o indefinido um empregado no sentido de “mesmo” “igual”: “como ambos eram de um ofício” (3, II).

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• O indefenido ũa aparece empregado em contexto de valor distributivo: “As quais cousas lhe dobravam a pena: a ũa, por ver que não podia...a outra...” (3, IX).

• Registram-se os indefinidos nenhum e nenhũa empregados por algum e algũa: “é tanto que temo de dar-vos nenhum desgosto que ... que dar ocasião de nenhũa tristeza” (3, IX), “mas é o maior porco montês que se criou em nenhũa montanheira” (1, X).

• Registra-se a forma assaz, usada como pronome indefinido: “Certo, se-nhor, assaz paga era pera mim o gosto que tenho” (3, X).

• Encontram-se as locuções pronominais indefinidas: a) quem quer que: “e defendessem o veado de quem quer que o seguisse.” (2, X); b) qual-quer que: “e pormeteram dous mil cruzados a qualquer que, vivo, o entregasse” (3, IX).

7.4.4. Pronomes relativos e interrogativos

• O pronome o qual e flexões aparece em função regida pela preposição em, sem a contração da preposição: em o qual, em a qual etc.: “até lhe prometer a metade da fazenda do homem em a qual pela sentença era condenado.” (1, XII), “se saiu a passear pola horta daquela sua casa em a qual estava por hortelão” (1, XVIII), “nosso caminhar é toda a vida, em a qual imos caminho da morte.” (1, XIX).

• O relativo donde ocorre em neutralização com onde: “e assi foi até che-gar ao pé do muro do jardim donde estava ũa nogueira” (1, III), “E dali veo à corte, donde achou sua mulher.” (1, XIV).

• O relativo donde aparece em neutralização com aonde: “iria ao castelo donde dizia que queria ir dormir.” (1, XIX), “do que vira e achara lá donde foi.” (2, VII).

• O relativo adonde aparece em neutralização com onde: “foi levado à câmara adonde estava a princesa” (2, VII), “foi pera aquela parte adonde o rumor parecia.” (3, I).

• O relativo onde aparece empregado com redundância da preposição de: de donde: “estava armada ũa rica tenda de donde saiu um velho” (2, X).

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• O relativo de que aparece empregado por o de que: “como a princesa estava afeiçoada, de que deu motivo a alguns principais da corte toma-rem isso muito mal” (3, VIII).

• O relativo o qual aparece empregado por o que, quem: “É este infante vosso filho, é o qual por diversas vezes cuidastes ter perdido no monte.” (3, V).

• No texto original o interrogativo que sempre ocorre grafado junto com a preposição por que o rege, na forma porque.

• Registra-se a ocorrência da locução pronominal indefinida que é o que: “pergunto: que é o que vós me quereis dar” (2, IX).

7.5. Fatos relativos à morfologia verbal

• Na flexão do presente do subjuntivo do verbo estar, registram-se as for-mas arcaicas estê, esteis e estém: “E assi estê em vossa casa” (1, II), “que esteis à obediência do que os juízes julgarem” (2, II), “que quer que todos os lugares de sua cidade estém seguros” (3, IX).

• Observa-se o emprego do verbo tirar, flexionado no imperativo afir-mativo, com pronome enclítico, sem a vogal temática: “Tir-te diante de mim” (3, VII).

• O verbo morrer aparece flexionado no presente do subjuntivo na forma moura, mouram: “e fora dos cárregos mouram com tristeza” (1, VIII), “para minha consolação, antes que moura” (1, XII).

• O verbo valer é flexionado na terceira pessoa do presente do indicativo sem a vogal temática – e: “polo muito que val o real bem ganhado” (1, XIV), “considerando quanto val a lealdade do servo” (1, XIX).

• Há ocorrência da forma dispondes, sem o s final, com pronome vos enclítico: “Não choreis, amada esposa, nem vós, querida filha, se não disponde-vos a cumprir” (3, IX).

• Registra-se a ocorrência do verbo ser, na segunda pessoa do singular do presente do indicativo, na forma eres: “Logo maior imigo teu eres tu que os outros te são” (1, XVI), “que não mereces que a princesa seja tua esposa, nem eres dino de ser meu rei” (3, VIII).

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• Há uma ocorrência do verbo ser, na terceira pessoa do singular do preté-rito perfeito, na forma fou, mantida no texto crítico, ainda que etimolo-gicamente não se justifique: “fou-lhe forçado, de pura necessidade, com um pau na mão, pedir por amor de Deus esmola” (3, IV).

• Encontram-se formas do verbo trazer, flexionadas no tema do pretérito perfeito, sem a ditongação, mantidas no texto crítico, ainda que etimo-logicamente não se justifiquem: troxe, troxesse: “troxe algum tempo a Aurélia tão afeiçoada” (3, VIII), “o piadoso intento que a Venesa troxe a meu amado esposo” (3, IX), “com quem lhe troxesse a cabeça do ho-micida.” (3, VIII).

• Em relação ao verbo dizer, a par das formas disse, dissesse e disseram, registram-se no texto as formas arcaicas dixe, dixesse e dixeram: “E postos ante ele lhe dixeram” (3, I), “e sossegado no esprito, dixe” (3, I), “que dixesse tudo o que naquele caso sabia” (3, IV).

• Registra-se a ocorrência do verbo fazer, no futuro do presente, em cons-trução com o pronome vos, mesoclítico, na forma fazeremos: “Se sabeis algũa cousa deste mister e quereis ir conosco, fazer-vos-emos parte no ganho.” (2, II).

• Encontra-se o verbo ver empregado na forma do particípio presente: ventes: “e os fizeram ventes aos que tinham razão de os ver” (2, VIII).

• Registra-se o emprego do verbo haver, impessoal, no presente do indi-cativo, na forma hai: “Saberá Vossa Alteza que não hai na vida cousa” (3, III), “Agora vejo que não hai males” (3, IV).

• Na flexão do presente do indicativo do verbo ir ocorre a forma anômala imos por vamos; e, no imperativo, a forma i por ide: “em a qual imos caminho da morte” (1, XIX), “I mandar fazer a carta” (1, VII), “I-vos de diante de mi!” (1, XII).

• Os verbos impedir e despedir, na flexão do presente do indicativo e do subjuntivo, têm as formas do radical em alternância vocálica: impid – e despid-: “e nem impidas fazer-se execução” (1, XII), “Rogo-vos que não impidais fazer-se nele justiça” (1, XII), “Eu a vi e, querendo-a tomar, este mo impide” (1, XIV), “Faça com ele que os despida e gaste aquela renda” (1, XVIII).

• O verbo concluir tem formas de primeira pessoa do presente do indi-cativo e formas do presente do subjuntivo ditongadas pela epêntese de

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semivogal desfazendo o hiato próprio da flexão atual: “A qual, ainda que concluia e venha a parar” (1, XII), “E portanto concluio que a boa mulher” (2, V).

• O verbo vir, na terceira pessoa do singular do pretérito perfeito do indi-cativo ocorre noventa e cinco vezes, sendo cinco vezes na forma veio, e noventa vezes na forma veo: “Tantas vezes fez isto, que ũa veio determi-nado para matar o padre” (1, 1), “que per inculcas veo à própria casa donde o fato era” (1, III).

• Em algumas construções da correlação futuro do presente do indicativo com o futuro do subjuntivo, e ainda de orações subordinadas temporais com conjunção quando, registram-se as formas de futuro de subjuntivo, na primeira pessoa do plural, com a desinência – re-, em vez da desinên-cia – r-: “Que o demônio mente quando nos diz que se nos matáremos sairemos de pressa, porque os que se matam entram de novo em pres-sas maiores.” (1, XVI), “E se quiséremos cuidar um pouco neles, sem trabalho lhe acharemos” (1, XIX), “E não seja às escuras, na noite dos pecados, para que, quando chegáremos ao cabo da jornada, não nos achemos em trevas (1, XIX), “e depois que passáremos da vida presen-te, nos dará a Glória.” (1, XIX).

• Nas formas dos verbos ter e haver, empregados como auxiliares da conjugação composta, foram observados os seguintes fatos: a) o auxi-liar ter empregado no pretérito perfeito: “O qual, tanto que teve ouvido missa, mandou que” (3, VI); b) o auxiliar haver empregado na primeira pessoa do singular do presente: “Hei sabido que perto daqui” (3, VI).

• São frequentes no texto os particípios dos tempos compostos concordan-do com o termo em função de objeto direto: “da cisa que ambos, como parceiros, tinham paga.” (1, VI), “E mais tinha selados outros quatro ca-valos” (1, X), “e nos tem mortas muitas de nossas aves.” (1, XII), “porque aquele senhor lhe tinha feitos grandes bens e mercês.” (1, XII).

• Há ocorrência de particípios em – o, em conjugação composta, situação em que a norma atual recomenda o particípio em – d-; assim como há ocorrência de particípio em – d-, em construção passiva, ou com valor de adjetivo, situação em que a norma atual recomenda o particípio em -o/-a: “e nos tem mortas muitas de nossas aves.” (1, XII), “havendo respeito que o real era gastado em obra de caridade” (1, XIV), “de sua parte eram os ministros desta obra tão providos e pagados, que nunca”

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(1, XVIII), “se lho não davam a ele, parecia-lhe que era mal gastado” (1, XVIII), “E aceitada a pousada do preto e a cea” (1, XIX).

• Ocorrem alguns particípios regulares, hoje em desuso: a) pagado: “que me hei por bem pagado em ver-te em cima de tal peça” (1, X); b) ga-nhado e ganhados: “que quis antes um real bem ganhado que cento mal ganhados” (1, XIV), “E o mordomo leal e verdadeiro ficou no paço com sua bem ganhada honra” (1, XIX); c) incorridos: “era toda a fazenda perdida e estavam incorridos em outras penas corporais” (2, I); d) afli-gido: “Sua Alteza, ainda que o achasse afligido” (2, III).

• Registra-se o particípio irregular do verbo voltar, na forma volta: “Mas, deitado na cama, virando-se pera a dianteira, e ela da outra parte volta para a parede” (3, I).

• Verifica-se o particípio do verbo dormir com valor adjetivo: “adonde ficou logo dormida” (3, V).

• Há ainda o registro de verbo da segunda conjugação com o particípio em – udo: “E foram logo reteúdos, e acharam por bem de pagar” (1, XVI).

7.6. Fatos relativos aos advérbios e às locuções adverbiais

7.6.1. Advérbios

• O advérbio de afirmação aparece na forma si, do latim sic, ainda não nasalada.

• Ocorrem formas adjetivas neutras adverbializadas: a) alto: “disse alto que ambos o entenderam” (2, VII); b) claro: “que vemos claro que dar esmolas não empobrece” (1, XVIII), “como se prova claro ser assi” (2, V); c) contino: “sempre a Deus graças, que nos fez contino tantas mer-cês” (2, VIII); d) manso: “subiu manso” (1, II); e) primeiro: “e mandou primeiro o mais velho” (1, XV); f) rijo: “antes de dar o golpe, bradou rijo, dizendo” (2, VI).

• A forma prestes, usada com o sentido de “rapidamente”: “e porque se esfriassem prestes” (1, II), “E feito prestes um galeão para isto” (2, II), “que prestes o perderam de vista.” (2, VII).

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INTRODUÇÃO

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• A forma somente, usada com o sentido de “exceto”, “a não ser”, ou como reforço de negativa: “que o não erguia somente para ver o irmão” (1, III), “que nem tão somente lhe deixaram com que se cobrir.” (3, IV).

• A forma certo, usada como expressão de probabilidade: “que certo não me acho capaz para tanto bem” (1, III), “que certo tudo te será neces-sário” (1, XII).

• A forma intensificadora menos empregada com sentido negativo: “era achada menos do irmão” (1, III).

• A forma melhor empregada com o sentido de “menos”: “um por um sofre-se melhor, que na praça, ou na barca” (1, V).

• A forma defronte, com o sentido de “em frente”: “E falando com o mancebo que estava defronte, disse” (1, VII).

• A forma intensificadora assaz: “E mostrou-lhe o rol muito bem escrito e assaz curioso.” (1, VIII), “que uns e outros levaram assaz em esses dias” (2, V).

• A forma segundariamente, com o sentido de “em segundo lugar”: “Se-gundariamente, nunca, sem o Duque to pedir” (1, XII).

• A forma justamente, com o sentido de “com justiça”: “e não é a senten-ça dada justamente.” (1, XII).

• A forma entrementes, no sentido de “enquanto isso”: “Entrementes, vede que laranjas estão ali” (1, XV).

• A forma acinte, no sentido de “acintosamente”, “de propósito”: “dizen-do que acinte lhe arrancara o rabo” (1, XVI).

• A forma direitamente, no sentido de “diretamente”, “exatamente”: “O qual veo direitamente a dar sobre o desditoso velho” (1, XVI).

• A forma arcaica bõamente, ainda com o registro da articulação nasala-da: “que nos contentemos com o que bõamente podemos” (1, XVI).

• A forma até, no sentido de “aproximadamente”: “concertando-se este bom homem com um mancebo de até 35 anos” (1, X).

• A forma popular e arcaica entonce e sua variante entonces: “Entonce disse o velho” (2, V), “Entonces, os cavaleiros, com os chapéus nas mãos (3, V).

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• A forma arcaica asinha: “e como ia em um bom cavalo, asinha a alcan-çou.” (2, VIII).

• A forma como, no sentido de “aproximadamente”: “Respondeu Pedro que lhe daria como cinco mil cruzados” (2, IX), “se a este tempo não estiveram ali como oitenta homens com chuças” (2, X).

• A forma i, por aí: “porque vos afirmo que não há i cousa nenhũa” (3, V), “Que cousa hai i no mundo” (3, VI), “se é verdade que em verdadeiro amor há i agradecimento” (3, VIII).

• A forma aí usada por ali: “perguntando pelo menino a algũas mulheres e escudeiros que aí estavam” (3, V).

• Há uma ocorrência de uma forma mal, atribuída a substantivo, que pare-ce corresponder à forma adjetiva anterior mala, feminino de malu, com apócope do –a, pois não se trata de advérbio: “E a esta causa, tarde e com mal ordem, animando-os el-rei” (3, VIII).

• A forma ultimamente, empregada com o sentido de “por último”, “como conselho final”: “e aconselharam-lhe ultimamente que, assi como o di-zia, assi o fizesse.” (3, IX).

• A forma donde empregada por onde: “E o parceiro foi condenado e preso em ferros, donde esteve muito tempo” (1, VI), “perguntando-lhe donde houvera aquele cavalo”(1, X).

• As formas redundantes de donde e adonde: “o qual era tão desviado de donde ele estava” (1, III), “e lhe perguntou de donde era e adonde ia.” (1, XIV), “sou de mea légua de donde estamos” (1, XIV), “querendo--lhes perguntar que terra era aquela e adonde iam.” (2, VII).

• A forma embora no sentido primeiro de “em boa hora”, ou de “contu-do”, “todavia”: “e se as vazar e encher tantas vezes, sejam embora de vossa farinha e não já da minha” (1, II), “assi como vos confesso isso, também vos confessara essoutro. Tomai o vosso embora” (1, VI), “que fossem ao paço embora, que sempre seriam bem-vindos” (2, II), “Se isto ofende vossos ouvidos e escandaliza vossa pessoa pera daqui me resul-tar maiores trabalhos, seja embora” (3, VI).

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INTRODUÇÃO

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7.6.2. Locuções adverbiais

• Com a preposição a: a) à primeira face / logo à primeira face: “Eles, à primeira face, parecendo-lhes bem” (1, IX), “E a mulher logo à primei-ra face teve desgosto” (1, XIV); b) a vezes: “que tirando a vezes polos pés e mãos” (1, XVI), “que a vezes parecia que chegava ao céu” (2, VII); c) ao caminho (como variante de a caminho): “mas só, se pôs ao caminho” (1, XVI); d) ao diante: “como Sua Excelência, pola obra ao diante, veria.” (3, VI); e) a derredor e ao derredor: “andando todo o cavouco a derredor” (2, IV), “porém com uma letra ao derredor” (2, V); f) à desora e a desoras: “Porém a este tempo, à desora, sem ser visto por onde” (2, X), “estando no berço a desoras” (3, I).

• Com a preposição de: a) de todo: “e tendo-o de todo acabado” (1, Pr), “acabando-as de todo com contentamento” (1, XVI), “até que de todo apanhou os que lhe bastaram” (1, XIX); b) de súpito: “se subiu pela escada acima e, de súpito, deu com a mãe” (1, III); c) de primeiro: “que logo tornavam como de primeiro.” (1, IX); d) de destro: “três para levar de destro a el-rei” (1, X); e) de feito (por de fato): “Como de feito deu.” (1, XIV); f) de serviço (no sentido de “como resultado do serviço”): “levando os figos de serviço” (1, XIX); g) de diante: “quando punham de diante que os cento” (1, XIV); h) de um acordo: “quiseram ambos de um acordo um real bem ganhado” (1, XIV); i) dali avan-te: “lho pagou com grande ventagem, e dali avante lhe faziam muitas honras” (1, XIV); j) de novo (no sentido de “como novidade”, “pela primeira vez”): “vieram de novo àquela corte dous mancebos irmãos forasteiros” (2, VII).

• Com a preposição em: a) em efeito: “O casamento veo em efeito” (2, V); b) em redondo: “fazendo-lho atravessar em redondo” (2, X), “E dando-lhe de chão nos focinhos, o fez virar em redondo” (2, X); c) o uso constante da locução em extremo, referida a verbo e a adjetivo: “Dali a poucos dias pariu ũa filha em extremo fermosa” (3, V), “e de quem ele se fiava em extremo” (3, V); d) no instante: “E logo no instante mandou chamar o pai da donzela” (3, VI).

• Com as preposições per e por: a) per si só (correspondendo à expressão latina “de per si”): “era tão virtuosa que per si só merecia todo bem” (1, X); b) per derradeiro: “e, per derradeiro, veo a morrer descabeçado” (1, XII), “façamos conta que são perecedeiras e que, per derradeiro, hão de ter fim” (1, XIII), “Ó miseráveis de nós, sapos da terra, que, per

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derradeiro, tudo há cá de ficar” (1, XIV); c) per direito: “com que per direito o pudesse favorecer” (1, XVI); d) per certeza: “e não sei per certeza se é vivo ou morto” (2, IX); e) por entanto: “e desse as graças ao marido, por entanto, que ela buscava mais que lhe dar” (2, I), “dizen-do-lhe sempre que tomasse aquilo por entanto” (2, I).

• Com a preposição sem: sem tempo (no sentido de “fora de hora”, “exa-geradamente”): “Trata de hũa que falou sem tempo e da reposta que lhe deram” (1, XVII).

• Locução adverbial constituída por advérbios reiterados: logo logo: “e se partisse logo logo de Veneza” (3, IX).

7.7. Fatos relativos às palavras conectivas

7.7.1. Preposições:

• ante: “e ante si” (1, IX), “chamou ante si um só filho” (1, XII).

• antre: “disse antre si” (1, II), “que tinha seis crianças, antre filhos e filhas” (1, XI).

• co: “assentai co um mercador” (2, V).

• des: “Porém des então lhe ficou” (1, I).

• desne: “E desne logo trabalhou com o marido tudo o que pôde” (2, I), “Porque ela desne logo ficou agasalhada” (2, V).

• diante: “não consentindo tão feo pecado diante Sua Majestade” (1, III), “E como quer que o não acha diante os homens” (3, I).

• per: “e dele e da mãe buscada per todas as partes” (1, III), “e o que ela dizia per escrito disse ele per palavra” (1, VII).

• pera: “ou, pera melhor dizer, sempre as trazem forjadas” (1, III), “saía alguns dias... pera ver se achava” (3, I).

• sobre: em três sentidos: a) “em seguida a”, “após”: “E tendo-os a todos derredor de si um serão, sobre cea de boroa e castanha” (1, XI), “E sobre mesa lhe disse como” (1, XIX); b) “durante”, “no transcurso de”: “Em ũa aldea perto desta cidade de Lisboa se ajuntaram três mancebos, filhos de vizinhos dali e, sobre prática, disse um:” (2, V); c) “sob”: “não

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INTRODUÇÃO

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foi isto cuidado, quando foi sentido e mandado polos senadores, sobre graves penas, que ela nem os filhos se saíssem da cidade.” (3, IX).

• so (variante de sob): “é mandado que ninguém me pergunte so pena de morte” (2, VII).

• té (variante de até): “com muita quietação e sossego, té que acabe de todo o que quero dizer” (3, I).

7.7.2. Locuções prepositivas:

• acerca de: “vou desgostoso desta miserável vida acerca de ti” (1, XII).

• à custa de: “ainda que fosse à custa de por isso o ver destruído” (1, IX).

• a fim de: “e mandava-os calar, tudo a fim de lhe apagar o nome.” (1, XII).

• ao través de: “saiu ao través de como ele ia” (2, X).

• após de: “E temendo não viesse após de tantas desaventuras a sua in-fâmia” (3, IX).

• ao propósito de / a propósito de: “Ao propósito do passado” (1, V), “A propósito do dito grave que fica atrás” (1, V).

• conforme a: “fazendo de sua parte conforme ao que pedem” (1, I), “Porque, conforme a como cada um usar, segundo sua qualidade, acer-ca dos pobres” (1, VIII).

• derredor de / ao derredor de / a derredor de / per derredor de: “que logo chegou derredor de si.” (1, II), “E tendo-os a todos derredor de si um serão, sobre cea de boroa e castanha, derredor do lume” (1, XI), “não pôs os olhos nos muitos filhos que tinha derredor de si” (1, XVI), “se assentou derredor do lume” (1, XVI), “que lançar ao derredor da azêmela” (1, XVI), “começou a fazer rodas ao derredor do moinho.” (3, VI), “logo começou a fazer rodas a derredor do moinho” (3, VI), “e a cavalo ir per derredor dela ao paço” (2, II).

• detrás de / por detrás de: “E andando por esta parte, que era detrás das casas” (1, III), “se foram detrás dele” (3, IX) “saindo do monte às estradas e encruzilhadas dos caminhos, por detrás de alguns valados” (1, XII).

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• de diante de: “I-vos de diante de mi!” (1, XII), “folgaria de ir de diante de vós” (2, V), “I-vos de diante de mim, infames” (3, VI).

• diante a: “para o levar assi diante ao Senado.” (3, IX).

• demais de: “E demais de sua fermosura e de ser donzela” (2, I).

• dentro em: “E não parecia, porque caiu dentro na quintã deste man-cebo” (1, XII), “expirou dentro no ventre da mãe” (1, XVI), “E quando entenderam como passara, dentro em sua casa” (1, XVII).

• de parte de: “me deram um recado de parte de Vossa Mercê” (1, XX).

• junto de: “Em ũa quintã, junto da cidade de Ferrara” (1, XII).

• no cabo de / a cabo de: “No cabo do tempo perderam na renda” (1, VI), “E desta maneira, a cabo de tantos trabalhos” (3, IX).

• per virtude de: “per púbrico tabalião, per virtude da qual” (1, XVI), “per falecimento de seu pai, per virtude da qual” (1, XVI).

• por ante: “E tanto que por ante testemunhas foram jurados” (3, I).

• por caso de: “ficas foreiro, tributário para adiante, por caso do que tu deste” (1, XII).

7.7.3. Conjunções:

• Como, no sentido de: a) tempo: “E como a viu passar, a poucos passos que a seguiu, conheceu que ia errada” (1, III), “E como a teve bem den-tro, fez cerrar a porta e mostrou-se-lhe” (1, III); b) integrante: “Neste tempo o senhor Maurício e seus companheiros tinham sabido como o Duque andava naquela parte.” (3, VI), “deram ordem como se celebras-sem as bodas” (3, VIII), “Posto que havia dado ordem como ela e eles se saíssem da cidade de Veneza” (3, IX).

• Pois: a) em sentido conclusivo, em início de oração: “Vós não quereis rogar a Deus por mi, pois hei-vos de matar.” (1, I); b) com valor mera-mente relacional: “Boa mulher, pois quis Deus que achastes essa bolsa” (3, VII); c) em sentido causal, substituindo como: “pois eu del vos livrei, tendes mais obrigação de amá-los” (3, IX).

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INTRODUÇÃO

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• Porque, no sentido de finalidade: “assi trabalhava o padre ermitão por-que não se erguesse” (1, I), “determinou dar tudo o que a pobre velha tinha, porque casasse com a filha” (1, II).

• Que: a) no sentido de finalidade: “Este conto se escreveu para exemplo das filhas, que sejam obedientes a suas mães e virtuosas.” (1, II); b) no sentido concessivo: “E que saísse, já não havia de alcançar” (2, V), “e que não dormisse, queria que o deixassem assi.” (2, X); c) no sentido de tempo: “aconteceu que ũa menhã, que o marido era ao mato pelo feixe de lenha” (2, V); d) como equivalente a de modo que: “e depois deu-lhe outra vez nas ancas, de que o cavalo, espantado, lançou a correr o me-lhor que pôde” (2, X).

• Qual, em sentido comparativo, equivalente a “como”, “tal qual”: “Ela...se vestiu mui ricamente... qual convinha a seu estado” (3, V).

• Há ainda o registro do vocábulo donde empregado com valor relacional, com o sentido de “em conseqüência de”: “E assi, com muita tristeza e dor, se tornaram a embarcar e, picando o remo, se foram, donde não conta esta história mais deles.” (2, X).

7.7.4. Locuções conjuntivas:

• De valor temporal: a tempo que / ao tempo que: “a tempo que por causa da peste” (1, Pr), “E assi se achou na rua a tempo que já havia muito” (1, III), “pude tanto que, ao tempo que ela queria fazer” (1, Pr), “pois me acabaste a obra a meu gosto e ao tempo que ma prometestes dar acabada” (3, X); des que: “El-rei, des que ouviu isto, aceitou o es-cravo” (1, X), “E des que viu que ele não podia pagar” (2, V); primeiro que: “pagou tudo o que devia, até o derradeiro real, primeiro que saís-se” (1, VI); que há que: “descontem-se nos alugueres do tempo que há que o possui” (1, XVI); em mentes que: “E em mentes que se enxuga-va” (2, V); acabado que: “Acabado que a marquesa ouviu isto” (3, V); entretanto que: “Entretanto que este nosso fingido francês aguardava a reposta” (3, VIII).

• De valor consecutivo: assi que: “Assi que todos seis se cobriam com fato que para bem não bastava a um” (1, XI); de maneira que: “e quan-to, e por que cousa, de maneira que, se na parceria tratavam verdade, ganhavam muito na renda” (1, VI), “de maneira que nunca mais teve a necessidade passada” (1, XIV); posto que: “Posto que vos rogo ... que

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não seja parte nenhũa cousa das que aqui disser pera que vosso nobre peito se escandalize” (3, IX).

• De valor condicional: com condição que: “E a princesa aceitou isto, com condição que ela havia de ser presente” (2, II); sendo caso que: “lhe prometeu de fazer o que Sua Excelência mandava, sendo caso que achasse a bolsa do mercador” (3, VII).

• De valor causal: como quer que: “Mas, como quer que a barca de meu engenho é pequena e muito fracos os remos” (2, Pr), “Como quer que todas vossas cousas, manhas e costumes sejam de tanto valor” (3, V); à causa que: “Mas é à causa que ...a fazem tão tarde e tão mal” (3, X).

• De valor conformativo: conforme a como: “Porque, conforme a como cada um usar, segundo sua qualidade, acerca dos pobres” (1, VIII).

• De valor concessivo: inda que: “inda que fosse cavar à enxada” (2, V), “Que inda que nos vejamos em grandes estados” (3, V); por...que: “era tão desviado de donde ele estava que, por prestes que desceu e foi lá” (1, III), “e conheceu que o bradar não servia por altas vozes que desse” (1, III), “se brandia tanto que, por pouco que lhe carregassem, desarma-va.” (2, IV); prossuposto que: “Isso que trazes, prossuposto que é o que dizes” (2, II); em que lhe pes: “E este mordomo...veo a contentar-se, em que lhe pes, com a décima parte” (2, IX); dado caso que: “porque, dado caso que ele não as vendia” (2, II), “E este homem será rei deste reino, que não é pequeno, dado caso que agora não parece tal” (2, VII), “E dado caso que esta obrigação seja do príncipe” (3, I).

7.8. Fatos relativos à sintaxe

No estudo da sintaxe serão consideradas as seguintes particularidades: a) a construção do termo sujeito, das orações sem sujeito e de sujeito indeterminado; b) as construções passivas e a expressão do agente da passiva; c) a sintaxe dos verbos, dos termos complementos e adjuntos; d) a estruturação de períodos complexos; e) as variadas formas de construções pleonásticas; f) a oração adjetiva e a sintaxe do pronome relativo; g) as orações reduzidas de infinitivo e de gerúndio; h) a sintaxe de concordância, de regência e de colocação; i) a sintaxe das formas verbais.

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INTRODUÇÃO

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7.8.1. O termo sujeito

7.8.1.1. Construções com o termo sujeito regido por preposição

• Com o verbo pesar: “E os que têm a cárrego o cárrego de suas fazendas não lhes pese do bem que fazem, porque não venham a cair em sua des-graça” (1, VIII), “Olhem os reis e senhores como passam estes alvarás, e que sejam tais que não lhes pese de os cumprir” (1, XII).

• Com o verbo aprazer: “E me apraz de vos dar tudo o que souberdes pedir de meu reino, que eu tenha, com esta condição” (1, IX).

• Em orações infinitivas: “E chegando-se perto, lançou mão do cavalo d’Espanha e fez cavalgar a el-rei em um dos que para ele trazia” (1, X), “E assi acabaram de fazer cavalgar ao mouro, em que lhe pês” (1, X).

• Com o verbo ser: “tão encarniçados em matar-se, sem repousar, que era mágoa de os ver” (1, XIV), “que os brados que dava era lastimosa cousa de os ouvir” (2, III).

• Com o verbo parecer: “Filho, que vos parece da donzela que vos acom-panhou esta noite?” (2, I).

• Com o verbo lembrar: “Senhor, bem vos lembra do lapidairo” (2, X), “declare a verdade do que lhe lembra neste caso” (3, I).

• Com verbos auxiliares causativos: “fez ao velho que se chegasse a ele” (2, V).

• Com sujeito na forma do pronome oblíquo átono de terceira pessoa lhe, pronome que substitui termo preposicionado: “lhe fez el-rei que disses-se” (2, VIII).

7.8.1.2. Construções de oração sem sujeito

• Em sua grande maioria, as orações sem sujeito ocorrem com o empre-go impessoal do verbo haver, no sentido de “existir” ou no sentido de “tempo decorrido”: “porque o dia seguinte havia de haver justas como o passado” (2, II), “Em corte de um poderoso Rei havia um médico” (2, III).

• Na frase a seguir há pleonasmo do adjunto adverbial que está regido por preposição apenas no pronome redundante, dando falsa noção de

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pessoalidade do verbo: “Porque este vício e pecado da carne há grande valentia nele” (2, VII).

• Observa-se também a ocorrência do verbo fazer, indicando tempo de-corrido: “e i-lo-emos a despertar de seu sono e repouso enquanto se faz horas de comer” (3, VI).

• Construção impessoal em que se usou o verbo ter por haver: “em ũa pequena ermida que ali tinha” (2, V).

7.8.1.3. Construções de sujeito indeterminado

• Com o verbo na terceira pessoa do plural: “E o médico esteve mais de seis meses em ũa cama, que cuidaram morresse daquilo” (2, III), “não achava per donde lhe vieram a tomar a sua carne” (2, IV).

• Com o pronome se, indeterminador do sujeito: “donde se estuda e apren-de” (2, V), “Vivendo ambos os amantes neste felice estado, começou-se entender na corte como a princesa estava afeiçoada” (3, VIII).

• Em construções de auxiliar causativo, estando indeterminado o sujeito do infinitivo: “mas mandou-o ter preso a recado” (3, I).

7.8.2. Construções passivas

• Passiva analítica com agente regido pela preposição por: “Foi curado por donas de sua casa” (2, III), “E muitas vezes era achada pelo pai” (2, V).

• Passiva analítica com o agente regido pela preposição de: “que por suas virtudes era de mi muito amada” (1, Pr), “Mas ela foi dele muito bem vista” (1, II).

• Passiva analítica com o agente regido pela preposição com: “E entrou o capitão acompanhado com seus homens” (3, IX).

• Construções na voz passiva pronominal: “por honra do qual se fizeram daí por diante muitas festas, justas e torneos” (2, C II), “e descobriu-se--lhe tudo o que passava.” (2, IV).

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INTRODUÇÃO

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• Passiva pronominal com agente da passiva: “e os que traziam algum or-gulho de o haver feito bem levavam o gosto de se ouvir louvar daquelas senhoras” (2, II).

• Passiva pronominal com o sujeito na forma de pronome objetivo: “Assi, por estar duvidosa o que nisto faria, se a achava de contino malenconi-zada e triste” (3, IX).

• Construção de verbo auxiliar causativo mais infinitivo em forma ativa, mas de sentido passivo e regido de agente da passiva: “a fez tomar por dous homens” (2, VIII), “E fazendo-a cobrir de rama pelos homens que nela vinham” (2, X).

7.8.3. Particularidades na sintaxe de verbos, termos complementos e adjuntos

• Construções com verbos intransitivos em sentido de movimento, em-pregados de forma pronominal: “E despedido d’el-rei se foi a seus com-panheiros que o esperavam e, com a majestade que entrou, se saiu da praça e se foi a sua pousada” (2, II,), “E acabado o jantar, se saiu ao mirador” (2, II).

• Construções com objeto direto preposicionado: “Também o ermitão lhe louvou a este seu propósito” (2, V), “Estes doze velhos receberam com grande contentamento a este esforçado cavaleiro” (2, VII), “viu a el-rei e que ele vira a ela” (2, VIII).

• Constituintes em função de adjunto adverbial de tempo sem regência de preposição: “cada um se foi repousar, porque o dia seguinte havia de haver justas” (2, II), “E jogaram aquela tarde e a noite toda” (2, IV).

• Constituinte estruturado com núcleo possessivo, regido da preposição de, com o sentido de “posse”, “propriedade”: “lhe perguntou que mu-lher era e se tinha algũa fazenda de seu e de que vivia.” (3, VII), “Não tenho, senhor, outra cousa de meu senão o que eu e ũa filha donzela” (3, VII).

• Constituinte objeto direto estruturado com núcleo possessivo, em rela-ção de valor anafórico não transparente no texto: “se deve tratar sempre a verdade e dar o seu a seu dono” (1, VI), “Vendo estes invejosos que por este caminho não podiam levar a sua adiante” (3, VII).

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• Construção com objeto direto interno: “E porque nem assi pareceu, tor-nou a mandar apregoar que quem o encobrisse perdesse a fazenda e morresse morte natural” (1, XII), “empeçou no capuz e caiu pola esca-da tão grande queda” (2, III).

• Construção de verbo auxiliar sensitivo mais infinitivo, com combinação de pronomes átonos em função de sujeito e objeto do infinitivo: “como lho vi erguer do chão” (2, VIII), “E o juiz lho fez escrever e assinar” (2, IX), “fazendo-lho atravessar em redondo” (2, X).

• Constituinte de valor adverbial, com a preposição para regendo o in-definido pouco: “Como isto foi dito a grandes brados e na praça, por para pouco se teve o que mais tardou em dizê-lo ao Duque, temendo” (1, XII), “E bem qual é o homem tão para pouco que se deixe sujeitar a ũa mulher que não conhece?” (2, VII).

• Construções com os verbos erguer-se e levantar-se, acompanhados da ex-pressão “em pé”: “Que, ouvindo-o, logo se ergueu em pé e disse alto que todos o ouviram” (1, XII), “E erguendo-se em pé, foi dous passos adiante” (2, II), “Porém um velho se levantou em pé e disse a el-rei” (2, IX).

7.8.4. Particularidades na estruturação de períodos

• Períodos de complexos encadeamentos subordinativos: “E assi eu, ain-da que tenho desejo de escrever este mês trinta histórias ou ditos, para desenfadamento dos que gostarem de os ouvir, trabalhando de noite, ou para recreação dos que os contarem, caminhando de dia, não basta desejá-lo eu, nem pedir ao glorioso apóstolo São Pedro, cujo freguês sou ( a que peço que ele me alcance do Senhor graça para que tudo o que fizer seja bom, e que para Seu serviço e louvor venha esta obra à luz); senão que, com isto que é muito bom, também é necessário que corra minha memória, estude e, tomando a pena na mão, escreva o que aprendi, ouvi, ou li.” (1, I), “Que lhes fazia saber que, se lhe viera a filha a qual havia muito que ele tinha por morta, e ora estava tal que em lugar de alegrar-se com sua vista se entristecia muito com sua doença, e que lhe renovava a chaga da perda de sua mulher, que com nojo da perda dela morrera, que fossem ao paço embora, que sempre seriam bem-vindos.” (2, II), “Que para princípio de meu livramento, com toda a humildade e reverência que devo, digo que, havendo quatro anos ou

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pouco mais que Vossa Alteza era casado com a rainha, minha senhora (que Deus tem), vendo ela que não paria e que pelo caso Vossa Alteza, desejoso de ter filhos, era afeiçoado a mulheres e a ela não mostrava tanto amor como no princípio, por lhe ganhar a vontade, aconselhada de outras mulheres, se fingiu prenhe, de que Vossa Alteza teve muito gosto.” (3, I).

• Períodos de complexo encadeamento e reiteração da conjunção integran-te na mesma subordinada substantiva: “E desde agora vos fico que nunca haverei outra mulher senão a vós, a que peço que, agora que vedes tal e tão justo oferecimento, que com a condição que digo aceiteis fazer-me mercê de me receber por vosso, que me não apartarei de o ser em toda a vida.” (1, III). “E um dia disse ao senhor que lhe pedia, por mercê, que olhasse que gastava sua fazenda mal e que, se podia dizer por ele, que tirava o pão aos filhos e os dava aos cães, porque não olhava por ele que era um homem honrado, que havia doze anos que o servia e não tinha para si mais de quarenta mil réis por ano e um vestido.” (1, XVIII).

• Períodos estruturados com orações concessivas, em que o sentido opo-sitivo está reiterado em correlação com conjunção coordenativa adver-sativa: “Em princípio desta obra me pareceu bem dizer que, ainda que é muito bom, como o é, rogar aos santos que roguem por nós e nos sejam avogados diante de Nosso Senhor, para nos alcançar o que de-sejamos, todavia é necessário nós de nossa parte fazer o que podemos, para haver o que queremos, porque, se nós fazemos o contrairo do que rogamos, nunca o haveremos.” (1, I), “Foi dita com tanta suavidade e primor que, ainda que alguns, por não entender a linguagem, careciam da letra, todavia todos que a ouviram conheceram que o mancebo era mui sábio na arte da música, e lhes contentou, principalmente à prince-sa que a entendeu e conheceu na fala quem era o que cantava.” (2, II) “E, posto que o achasse certo, com tudo isso, revirando pera a mulher que o havia achado, lhe disse:” (3, VII).

• Períodos estruturados em duas partes e marcados pelo sentido de oposi-ção, sentido determinado pelo emprego da correlação entre não e senão: “E ainda que a ama lhes disse o que vira, disseram eles que não era possível, senão que alguma cousa má lhe levara a filha e deixara algum demônio, tal lhe pareci eu então.” (3, I), “E o rico escolheu o melhor quinhão e quisera levar a mostra da peça, mas o pobre, que também tinha pago sua parte como ele, não quis, senão que a parte da amostra

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se partisse e o pano se fizesse em partes iguais, e lançassem sortes pera cada um haver o quinhão que lhe coubesse.” (3, II).

• Estruturações sintáticas em anacoluto: “E assi eu, ainda que ... não bas-ta desejá-lo eu, nem pedir” (1, I), “E os pais que as deixam de casar, po-dendo, também acontece perder o que tinham para casá-las e as vidas.” (1, X), “E não parecia, porque caiu dentro na quintã deste mancebo que estava perto da cidade, a qual, como era muito grande e ele achasse ali muitas aves, andou muitos dias sem se saber dele.” (1, XII), “assi foi que esta mulher prenhe, ainda que estava à mesa com o marido e hóspede onde tinham bem que cear e recebiam gosto de lhe dar o que ela pedira porque não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que ali havia” (1, XVI), “E o mordomo, atentando por ele, pareceu-lhe que já o vira” (1, XIX).

• Períodos com emprego reiterado da copulativa e, enfatizando a sequen-ciação ou caracterizando o polissíndeto: “Senhor, este ano começa mui estéril e com grandes secas ameaça a todos. E já não se acha trigo nas praças a vender, e pouco pão amassado para comprar. Vossa Senhoria tem em casa muita gente que manter, e algũa dela desnecessária e que a podia bem despedir, porque é escusada. E eu, como veador e que desejo o proveito de vossa fazenda, vendo que a mi toca o cuidado de prover nisto, fiz um rol de todos os que estão em casa, ordenado em duas colunas: em ũa pus os que servem, e Vossa Senhoria os há mister; e na outra os que não servem, e pode mandar despedir.” (1, VIII), “E mos-trou-lhe o rol muito bem escrito e assaz curioso. O arcebispo o tomou e o leu, e disse:” (1, VIII), “Senhor, conhecido é o engano. Tu o pagarás a peso d’ouro como o compraste e cumprirás tua palavra, e teu tesouro te ficará inteiro e o vendedor irá pobre e escarnido, como ele te queria deixar.” (1, X).

• Períodos com a particularidade que consiste em confusão no plano da terceira pessoa, numa mudança na forma de enfoque do referente, como se correspondesse a outra pessoa e não àquela do fato narrado. “A mãe, como mãe desejosa de seu bem e de a dar a marido antes que aqueles viços a levassem a torpe pecado, determinou dar a um mancebo tudo o que a pobre velha tinha, porque” (1, II), “E nem por isso achou seu pai naquele tempo quem a quisesse aceitar por mulher, para a tratar con-forme a seu merecimento, se não lhe dessem três mil cruzados em dote com ela.” (1, X), “E (o velho juiz) abriu um livro branco que o velho

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juiz trazia na mão” (2, IX), “Deu-lhes Deus filhos e filhas virtuosos, tementes a Deus.” (2, V).

• Períodos com a mesma particularidade do item anterior, mas com a con-fusão provocada pela reiteração do pronome de terceira pessoa referido a seres distintos: “E ele (o mouro), sua mulher e filhos foram com ele (o jovem português) e com a donzela até o navio. (2, II), “Para prova do qual faze a ele mesmo (o traidor) que torne a cavalgar nele (o cavalo) e passe esta ribeira que está ante nós, e verás maravilhas” (1, X), “e lhe deu muito por extenso conta como ele (Fabrício) estava, havia dias, perdido d’amores da fermosa Lucrécia com quem ele (Cornélio) estava concertado para casar.” (3, IV), “com o qual lhe mandou dizer que lhe (o calceteiro rico) pedia lhe (o calceteiro pobre) mandasse emprestar um pão” (3, II).

• Períodos com particularidade semelhante às duas anteriores, mas com a confusão entre o plano da segunda pessoa e o da terceira: “que um de vós há de pedir à sua vontade tudo o que ele quiser, com que fique contente” (1, IX), “Agora me deram um recado de parte de Vossa Mercê em que me pedia lhe mandasse um ABC feito de minha mão, que queria apren-der a ler, porque se acha triste quando vê senhoras de sua calidade que na igreja rezam por livros, e ela não.” (1, XX), “E neste tempo estava neste paço, Vossa Alteza...de que ele mesmo (Vossa Alteza) pode ser boa testemunha.” (2, VIII), “Saberá Vossa Alteza que...pelo qual mandou os que com ele (Vossa Alteza) iam...até que ele (Vossa Alteza) tornasse...e ele (Vossa Alteza) a meteu na casa do pomareiro...e lhe descobriu que ele (Vossa Alteza) era el-rei” (3, I).

• Período em cuja construção o narrador insere elemento formal que mar-ca a presença do ouvinte (ou leitor) no cenário do fato narrado: “E ao quatorzeno, antes que viesse o velho a que tocava acompanhar o cava-leiro, vedes entra pola porta do aposento outro velho da mesma idade e parecer do que o havia de acompanhar aquele dia” (2, VII).

• Construções com alteração na forma de tratamento do interlocutor, no contexto de uma mesma fala de personagem: “Senhor, não sei com que possa pagar as mercês e grandes honras que me tendes feitas. Peço-vos que vos queirais servir de mi e me mandeis tudo o que for vosso gosto...” / “Senhor, eu não sou mercador, nem nunca o fui, pelo qual não sei nada da arte. Peço-lhe por mercê (pois ma faz de seu favor e ajuda) que com

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conselho de mercadores ou com o seu somente, me empregue três mil cruzados” (2, II).

• Construções em que a passagem do discurso indireto para o direto é feito sem as devidas indicações de praxe, ou que apresentem certa con-fusão na construção das duas formas de discurso: “E o mancebo dese-joso de chegar ao cabo com tudo, ũa tarde, entrando pela porta, sobre ‘Porque não está a mesa posta? Que fazeis à janela?’, cousa que nunca ele perguntava, nem nisso entendia” (1, XII), “E tanto que sentiu estava vestido, lhe mandou recado que estava ali para lhe dar a reposta do que Sua Alteza perguntara ontem.” (1, XVIII).

• Construções caracterizadas por elipse de termo: a) elipse de verbo e pre-posição: “O qual, ouvindo (comentar sobre) a morte de seu pai e a gros-síssima fazenda que deixou” (2, IX); b) elipse de preposição acidental: “cuja cortesia de me haver dado a vida hoje se vos oferece (como) ma-téria pera que acabeis de espantar todo o mundo com vossa clemência.” (3, IX); c) elipse de preposição essencial: “não podia crer senão que era algum anjo vindo do céu (para) ajudá-la.” (3, VIII).

• Construção de duas negativas com sentido afirmativo: “E se eu não for fora e quiser ficar em casa, não se passará o dia sem na ver, e estarei mais livre e seguro dela.” (2, VII).

• Períodos nos quais a palavra que é empregada como mero elemento discursivo, sem qualquer valor, seja relacional ou semântico: “Que para princípio de meu livramento, com toda a humildade e reverência que devo, lhe digo que” (3, I), “E socorrendo-se em suas necessidades ao pai de Lucrécia, que sempre o encontrou cuidando que ele e o morto pai foram no engano do casamento.” (3, IV), “É certo que cuideis que as leis de meu reino que se hão de quebrantar por terdes estado e privança em minha casa.” (3, VI), “lhe veo à memória, que por qualquer via que fosse, de estrovar a Pompeio” (3, VIII).

• Construção comparativa com o segundo termo regido por de, e não por que: “este tão alto favor é muito maior de meu merecimento.” (3, V).

7.8.5. Construções pleonásticas

• Redundância de termos cognatos: “Querendo a velha dizer as rocadas da roca.” (1, II), “Aqui se nota a bondade do rei e seu maravilhoso dito,

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quando disse” (1, VII), “E é um dito que disse um homem prove a seus filhos.” (1, XI), “ou dizia algum dito ou feito de sua pessoa” (1, XII), “até o estado em que estava.” (1, XII), “dando-se de punhadas e de ca-beçadas, ensanguentadas as bocas de sangue que lhes saía dos beiços e das gengibas” (1, XIV).

• Redundância do termo sujeito: “Trata de um que armou ũa trampa para tomar a outro, e caiu ele mesmo nela.” (2, IV), “E assi o que armou a trampa do engano, emprestando o dinheiro por enganar o outro, esse ficou enganado” (2, IV), “o pai que perdoa ou dissimula os erros dos filhos, esse os mata.” (2, IX).

• Redundância de termos complementos: “Que me presta a mi rogar a Deus por ti” (1, I), “e ganhá-lo a ele por servidor” (1, III), “A verdade, deixe-ma Deus dizer.” (1, VI).

• Redundância de termos adjuntos para desfazer ambiguidade: “E de meu trabalho e do de seu marido desta mulher” (2, VIII), “e que seu pai, de João, o fizera em seu inteiro juízo.” (2, IX), “daremos ordem a que se diga a seu pai dela e ao nosso” (3, IV), “pois as vidas deles não pen-diam senão da conservação da sua dela” (3, VIII).

• Termo redundante que esvazia a função do pronome relativo: “Tirava--lhe polas mãos que ma desse, ao qual nem assi o pude mover para ouvir o que lhe dizia” (2, V), “e lhe dei a memória que vistes, que ele, enquanto aprendia, a guardou bem” (2, V), “que pode ser pessoa que (a quem) eu lhe diga o que me pergunta” (2, VIII).

• Construção com redundância de pronome relativo: “que não haverá cousa que me peçais que, ainda que seja ũa grande parte de meu reino, que vos não conceda.” (3, III).

• Redundância de pronome demonstrativo anafórico com o antecedente: “que vos escolhi por o mais honrado da vizinhança...E digo agora que menti na escolha que fiz, porque o não sois. Porque, se o fôreis honrado como eu cuidava” (3, II).

• Reiteração de termos iguais em funções sintáticas distintas, podendo estar o segundo subordinado ao primeiro. “E os que têm a cárrego o cárrego de suas fazendas não lhes pese do bem que fazem” (1, VIII), “El-rei, des que ouviu isto, aceitou o escravo pelo preço, não por medo dos medos que lhe fazia” (1, X), “Não seja o demo que vos faça fazer

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algum desmancho.” (1, XIV), “senão a perda de todo seu bem e, no fim, seu fim desastrado?” (2, II).

7.8.6. A oração adjetiva e a sintaxe dos relativos

• Oração adjetiva em que o antecedente do relativo se encontra distante no contexto, sendo recuperado pelo emprego de o qual e flexões: “houves-se por bem de a socorrer e livrar ... A qual então disse ao fidalgo:” (1, III), “e isto fazia por saber quem era aquela donzela. O qual a boa dona fez com tanta sagacidade” (1, III).

• Oração adjetiva em que a relação anafórica do relativo não se expressa por antecedente explícito, mas é indicada pelo contexto: “dentro em sua casa discretamente lhe pôs as mãos e não teve dever com os que passa-vam seu caminho. Polo qual afirmo que é bom o rifão” (1, XVII), “que lho busquem com os olhos no chão quando se forem, porque o achado é bom par’ela. O qual fazem porque as moças não falem” (1, XVII), “e por elas soube como trazia ũa donzela cristã de que ao velho pesou muito.” (2, II).

• Oração adjetiva com pronome relativo cujo e flexões, empregado como predicativo e como adjunto de termo predicativo: “nem pedir ao glo-rioso apóstolo São Pedro, cujo freguês sou” (1, I), “E como não sabia quem era, nem cuja filha” (1 III), “E cada dia este senhor sabia novas do homem cuja fora” (1, XIV), “que ela encobria sem querer dizer cuja filha era” (2, II).

• Estruturação que consiste em repetir-se o antecedente logo após o relati-vo, quando existe uma intercalação maior de termos entre o relativo e o antecedente: “E sem lho pedir, o mesmo Duque deu ao mancebo um seu alvará de lembrança, feito per sua mão, em que lhe prometia dar qual-quer cousa que lhe pedisse, donde, como e quando ele quisesse, ainda que importasse a metade de seu senhorio, o qual alvará o mancebo tomou e guardou.” (1, XII), “E ficando na câmara, como foi manhã, lhe mandou dizer com um homem de casa que viesse ali, que queria que ele desse as esmolas aos pobres, porque se queria ir a el-rei, o qual homem foi e o chamou.” (1, XVIII).

• Construções com o pronome relativo sem função sintática: “E agora se vê neste mancebo que, havendo cinco ou seis anos que servia com dá-

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divas e presentes grandíssimos, tendo-lhe dado aquele alvará sem lho pedir, se anojou o Duque tanto contra ele, quando lhe pediu um homem a quem rogou dessem a vida.” (1, XII), “deixando de acabar ũas casas suntuosas que tinha começadas no melhor da cidade, as quais estavam já galgadas as paredes para lhes lançar o primeiro sobrado.” (1, XVI), “como se pode ver em ũa bola redonda, a qual donde lhe puserem o dedo é o meo dela.” (1, XVIII).

• Relativos empregados sem preposição em funções sintáticas que a exi-gem: “em satisfação de lhe tirar do cativeiro que (em que) estava.” (2, II), “Dai convosco em Castela que (onde, em que) há muitas cidades populosas e grandes” (2, V), “Neste tempo que (em que) a rainha era fora do paço” (2, VIII).

• Relativo regido de preposição, empregado na função de objeto direto: “pôs tanta diligência em aquentar o amoroso fogo em que havia acendi-do, que cada hora” (3, VIII).

• Construções com elipse do pronome relativo: “era tão grande amizade e amor (que) el-rei tinha ao marquês que detreminou” (3, V), “foi livrada por um cavaleiro de quem ela em extremo era inimiga, e (que) ao fim veo a casar com ela.” (3, VIII).

• Emprego de onde como pronome relativo de tempo: “diante d’el-rei e da rainha, príncipe e ifantes, em serão, onde todos com muito gosto riam” (1, IV), “foi caminhando até horas de véspera onde, de cansaço, se assentou ao pé de um monte” (3, IV), “que inda o havia de trazer a tempo, onde todos com muito descanso vivessem té a morte” (3, IX).

• Emprego de onde, regido da preposição por, como relativo de causa: “suspeitou que ali podia aquele cavaleiro ter a donzela que ele perten-dia descobrir. Por onde, virado pera ele, lhe disse:” (3, VI), “E mais também o caseiro que tem as chaves dele é ido hoje à cidade, por onde haja Vossa Excelência, por seu serviço, passar adiante.” (3, VI), “Por onde vos peço, como a príncipe e senhor, que me façais justiça.” (3, VI), “que esta somente era suficiente razão por onde devia de a conservar.” (3, VIII).

• Construção em que o antecedente sucede o relativo: “E para solenizar com mor festa esta vingança, tinha mandados chamar todos seus pa-rentes e amigos, que viessem ter com ele d’hoje a trinta dias, que para

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então cuidava fazer-lhes esta festa com vossa morte. O qual tudo quis Deus que eu alcançasse saber” (2, X).

• Construções com relativos regidos pelas preposições pera e de, com valor causal: “que era cousa pera que Aurélia andasse ordinariamente triste” (3, VIII), “as bodas, das quais não tão somente em Toledo, mas em toda Espanha, houve grandes festas e alegrias.” (3, VIII).

• Construção com o relativo cujo, regido pela preposição a, anteposto ao termo antecedente e empregado com o sentido de causa: “menos obri-gação tinham de amar a ele que a seu pai, o qual estava desterrado não somente da cidade de Veneza senão de todo o estado da Senhoria, a cuja causa (causa por que) queriam livrá-lo do desterro que tinha” (3, IX).

7.8.7. As orações reduzidas de gerúndio

As orações de gerúndio são bastante numerosas, em construções as mais variadas e correspondendo às diversas funções sintáticas. Como ilustração do que se afirmou, pode-se citar a construção com o verbo ver no gerúndio, com 131 ocorrências no texto. Em razão da particularidade na construção, destacamos as seguintes orações de gerúndio:

• Com valor de causa, sem relação com termo sujeito, equivalente à ex-pressão “por causa de uma zombaria”: “Trata do que aconteceu em ũa barca, zombando, e ũa reposta sutil.” (1, V).

• Com valor de condição: “E os pais que as deixam de casar, podendo, também acontece perder o que tinham para casá-las e as vidas.” (1, X).

• Construções com gerúndios em sequência: “Até que o mancebo foi um dia à quintã, andando, passeando dentro, achou o nebri.” (1, XII), “E andando assi, passeando, foi vista sua tristeza” (1, XVIII).

• Construções com o verbo auxiliar estar, no gerúndio, mais verbo princi-pal também no gerúndio, equivalente ao infinitivo regido de preposição a: “E estando notando algũas particularidades” (2, II), “E estando con-templando comigo” (2, VIII), “Senhor, estando agora na sala grande jogando a péla” (3, I), “mande Vossa Alteza abrir a terra aonde esse homem punha os pés, quando, estando barbeando” (3, III), “E estando--o olhando, veo a justiça”(3, IV).

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• Construções em que o gerúndio tem valor adjetivo: “A propósito do dito grave que fica atrás, me lembrou um caso que aconteceu na barca d’Al-cácere, indo à feira de Beja.” (1, V), “não podia crer senão que era algum anjo vindo do céu ajudá-la” (3, VIII).

7.8.8. As orações reduzidas de infinitivo

• Com infinitivo pessoal não flexionado, com sujeito claro, anteposto ou posposto: “todavia é necessário nós de nossa parte fazer o que pode-mos, para haver o que queremos” (1, I), “Que as donzelas obedientes, devotas e virtuosas, que por guardar sua honra” (1, III), “Cousa que todas as mães devem notar e não deixar ir suas filhas sem elas” (1, III), “E é melhor ser os homens moderados” (1, IV).

• Com infinitivo pessoal flexionado: “Porque entendia bem que, para ca-sarem ambos” (1, III), “houvéreis-me de falar antes que seu pai morre-ra, ou despois, para saberdes minha tenção” (1, VII), “E para haverdes o que desejais” (2, V), “Por isso não peçais a fazenda, que será não terdes nada dela.” (2, IX).

• Construções de reduzidas com infinitivo flexionado e não flexionado: “E isto se fez até irem à igreja receber as benções e celebrar suas vodas” (1, III), “e isto basta para lhe terdes muito amor e consentir que ela receba agravo.” (3, I).

• Reduzidas de infinitivo em função adverbial temporal, empregadas sem preposição: “Porém o nosso português de que tratamos, ver isto e ver-se assim tão pobre e falto de todas as cousas, que para semelhante auto pertenciam, desesperado de poder entrar nas justas, andava tão triste que parecia que sua derradeira hora era chegada.” (2, II).

• Locução verbal de dois infinitivos, ambos flexionados: “não me pude sofrer ver quererem estes homens roubarem-me a honra” (3, IV).

• Construções com o infinitivo substantivado: “E tenho para mi que o vencer a carne é o fugir dela” (2, VII), “e cessou o derrubar por então” (2, XI), “se vossa saúde consiste no enjeitar eu este casamento” (3, IV), “Baste que vos conceda o casar-me” (3, V).

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7.8.9. Sintaxe de regência

7.8.9.1. Construções com particularidades de regência verbal

• Construções com verbo transitivo direto e indireto em que ocorrem: a) dois complementos verbais: o direto preposicionado e o indireto: “E alguns avisaram ao bom homem do engano que lhe tinha feito seu parceiro” (1, VI). “avisaram ao Marquês da ameaça” (2, XI); b) dois complementos verbais ambos não preposicionados: “o persuadia que se tornasse cristão” (2, X).

• Construção com dois objetos indiretos oracionais coordenados entre si, com deslocamento da preposição que rege o segundo objeto indireto: “não sabia a que pusesse nem que atribuísse a um despropósito daquela calidade.” (3, III).

• Construção em que o artigo está contraído com a preposição, preceden-do o sujeito de oração infinitiva: “Depois das solenes bodas estarem acabadas” (3, VIII).

• Construção com cruzamento sintático: “Mas a mãe, que qualquer outra cousa imaginara e não ao que seu marido vinha detreminado” (3, IX).

• Particularidades na regência dos seguintes verbos:

• Acabar, empregado em sintagma único, no sentido de “morrer”, “termi-nar a vida”: “E o velho com isto acabou a vida contente, parecendo-lhe que seu filho cumpriria o dito” (1, XII).

• Achar, empregado como transitivo direto, no sentido de “ter”, “possuir”: “a qual como era muito grande e ele achasse ali muitas aves” (1, XII).

• Ajudar, empregado com o pronome complemento indireto lhe: “que os perlados socorram com suas esmolas a seus súditos e os oficiais de sua casa lhe ajudem.” (1, VIII).

• Antepor, empregado no sentido “pôr antes”, “fazer preceder”, “prefe-rir”, fazendo do objeto indireto a coisa preferida e objeto direto a coisa preterida: “Mas como este cavaleiro trouxesse mais o intento na pre-tensão de seus amores que na privança de seu príncipe, antepôs a seu desejo todo o interesse e honra que dali lhe podia seguir.” (3, VI).

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INTRODUÇÃO

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• Assegurar-se, empregado com preposição em, em construção sintática cruzada com suspeitar: “acabou de se assegurar em o que dantes havia suspeitado.” (3, VI).

• Assinar, empregado com preposição de, no sentido de “firmar com o nome”, “rubricar”: “E ao assinar dela, el-rei deu vinte cruzados em ouro ao mancebo para o caminho.” (1, VII).

• Comunicar, empregado no sentido de “transmitir”, “compartilhar”, como transitivo direto e indireto, regido pela preposição com: “que nas-ce do desejo de comunicar com todos o prêmio do meu trabalho” (1, Pr), “E comunicaram o caso com sua filha” (2, V).

• Confiar: a) no sentido de “ter fé”, “ter confiança em”, empregado com as preposições em e de, no mesmo período: “que ele confiava em Deus e de si que lho compraria” (1, X); “confio em Deus e de mi que me não acharão culpado” (1, XIX), “E não confie ninguém de si mesmo, nem na fiança que deu” (2, VI); b) em construção com cruzamento de “confiar em” e “confiar que”: “confiava em Deus o livraria do acessório.” (3, I), “E assi eu confio em Ele, que é benigno Senhor, que, ... ficarei descul-pado” (3, I).

• Contentar-se, empregado como transitivo direto, com complemento oracional: “E o lapidairo se contentava que trouxessem prata. (1, X).

• Costumar, empregado como transitivo direto, com complemento não oracional: “E costumando isto” (2, VIII).

• Crer, empregado a) na voz passiva: “quando dissesse que dera o real por ela, fosse crido.” (1, XIV); b) como transitivo direto: “senão que, afeiçoados à sua mui fermosa vista (que tal era ela), criam suas pala-vras” (2, VII).

• Dar, empregado como a) transitivo direto seguido de predicativo, no sentido de “tornar”, “fazer”: “e pera o em tudo honrar como merecia, o deu por companheiro de um seu filho” (3, IV); b) transitivo indireto seguido de predicativo, em sentido próximo ao item anterior: “E nisto dou a Deus e ao tempo por testemunha.” (3, IV); c) transitivo direto e in-direto, mas fazendo, da coisa, objeto indireto e, da pessoa, objeto direto: “ele era o que havia dado à morte aquele homem.” (3, IV).

• Desobedecer, empregado como transitivo direto: “e em algũa cousa for contra seu testamento o desobedece” (2, IX).

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• Duvidar, empregado como transitivo direto e indireto, regendo a varia-ção pronominal lho: “Senhor, que isso seja assi em todos os lugares não lho duvido.” (2, VII).

• Entender, empregado no sentido de “ter conhecimento”, “compreen-der”, regendo as preposição sobre e em: “E crede que aos que entende-rem sobre os pobres, socorrendo-os, no dia mau os livrará o Senhor.” (1, VIII); “cousa que nunca ele perguntava nem nisso entendia” (1, XII); “alguns fidalgos da terra entenderam nisso” (2, II). “E não cuideis que esta nobre senhora somente entendesse nos exercícios e governo de sua casa” (3, V).

• Entrar, empregado como transitivo direto, no sentido de “ir de fora para dentro”: “E chamando a justiça da terra,...lhe entraram o navio e tomaram por el-rei toda a fazenda.” (2, I).

• Escapar, empregado como transitivo indireto, não pronominal, no sen-tido de “livrar (da morte)”: “Mas Deus, que sabe minha inocência, me escapou.” (1, XIX).

• Estar, empregado em sentido locativo, regendo a preposição a: “estan-do el-rei a ũa varanda que saía ao campo” (1, X).

• Falar, empregado no sentido de “tratar”, “discorrer”, “conversar”, regido pela preposição em: “Chamai-o, que digo que me fale logo nisso.” (1, VII); “Não falei a Vossa Alteza naquele mancebo de trá-los-montes” (1, VII).

• Fazer: a) empregado sem preposição na expressão “fazer conta que”: “quando se acabar qualquer cousa destas, façamos conta que são pere-cedeiras” (1, XIII), “E o mancebo lhe pedia que fizesse conta que eram irmãos” (2, IX); b) empregado ainda nas variantes “fazer com que” e “fazer como”: “que lhe fez com que não possa casar senão com o ho-mem que neste barco vier” (2, VII), “lhes faz como peçam à princesa certa cousa que” (2, VII).

• Favorecer, regendo a preposição a no objeto indireto: “a o ajudarem e favorecerem a tudo o que fosse de seu serviço” (3, VI).

• Ficar, empregado no sentido de “desprezar, abandonar”: “A meu gosto devíeis dar com esse velho em terra e dar-lhe muito couce, fique para quem é” (2, VII).

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INTRODUÇÃO

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• Julgar, empregado na passiva analítica e acompanhado de objeto in-direto, no sentido de “sair como sentença ou resultado de julgamento”: “Assi foi a propriedade julgada ao pobre.” (1, XVI).

• Lembrar: a) empregado na forma em que “a coisa lembrada” funciona como sujeito da oração: “A propósito do dito grave que fica atrás, me lembrou um caso que aconteceu na barca d’Alcácere, indo à feira de Beja.” (1, V); “Senhor, lembra-vos o que me prometestes por este vosso alvará?” (1, XII); “Porém não lhe lembravam (os cinco mil cruzados) em respeito da senhora” (2, II); b) empregado de forma pronominal, com elipse da preposição de: “Lembrou-se el-rei que aquele escravo lhe prometeu de lhe salvar fazenda de ouro que valesse mais de trinta mil cruzados” (1, X), “E que se lembrasse que, conforme ao pregão que mandou dar” (1, XII) “lembrou-se que ele dera aquelas joias” (3, I).

• Mandar, empregado no sentido de “aquilo que se pretende haver”, com complemento regido pela preposição per: “Que Sua Senhoria mandasse pelo nebri à quintã” (1, XII).

• Morar, no sentido de “residir”, empregado com a preposição a: “com-prou ũas casas na praça, melhorou-as, fê-las grandes e vistosas e foi-se morar a elas, com sua mulher e família (1, XII).

• Obedecer, empregado na voz passiva: “e que sem dúvida seria obede-cido em tudo” (1, X).

• Pedir, empregado sem preposição, ou com preposição a, no sentido de “implorar assistência, favor, perdão”: “a que seu pai encomendou muito que nunca pedisse malfeitor nem cousa contra justiça” (1, XII), “nem pedir-lhe ao malfeitor fora polo anojar” (1, XII).

• Perdoar, empregado com objeto direto de pessoa. “e que andava nisto tão encarniçado que não perdoava pessoa nenhũa, grande nem peque-na” (1, XII), “o velho, perseverando em sua contumácia, não quis per-doar o filho” (1, XV), “Perdoei o escravo, soltei-o” (1, XIX).

• Pertencer, regendo a preposição para, no sentido de “ser próprio de”: “ver isto e ver-se assim tão pobre e falto de todas as cousas, que para semelhante auto pertenciam” (2, II), “que não pertencia senão para pes-soa de estado” (2, I).

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• Pretender, no sentido de “querer”, “desejar”, seguido de infinitivo, em-pregado com preposição de: “pretendeu o pai da fermosa Lucrécia de lhe falar” (3, IV), “pertendia de livrar a filha” (3, VI).

• Prometer, empregado na regência antiga, com a preposição de: “Lem-brou-se el-rei que aquele escravo lhe prometeu de lhe salvar fazenda de ouro que valesse mais de trinta mil cruzados.” (1, X), “Que assi este mancebo, prometendo ao derradeiro sábio de guardar os conselhos de todos três” (1, XIX), “prometeu-lhe de fazer por ela tudo” (3, I).

• Socorrer, empregado na regência antiga, como transitivo indireto: “A propósito do passado, que os perlados socorram com suas esmolas a seus súditos e oficiais de sua casa lhe ajudem.” (1, VIII), “se Nosso Se-nhor, por Sua misericórdia, não lhe socorrera da maneira que vereis.” (1, XIX).

• Temer, empregado de forma pronominal, regendo oração objetiva dire-ta: “E porque me temi que me buscasse no paço” (2, VIII).

• Tornar-se, empregado com regência da preposição em, no sentido de “retornar”: “Porém convinha tornar-se no navio” (2, II).

• Trabalhar, regido pela preposição de, no sentido de “esforçar-se”, “em-penhar-se”: “trabalhemos todos de ser leais” (1, XIX).

7.8.9.2. Construções com particularidades de regência nominal

• Construção com elipse da preposição da regência nominal: “Esta sogra deu ocasião que o filho e nora vivessem” (2, I), “com intenção que” (2, VIII), “Mas será com condição que” (3, VI).

• Foram observadas particularidades na regência dos seguintes nomes:

• Contrairo, regendo a preposição de: “porque a inquietação e ociosida-de nelas comumente as leva a mui perigosos pensamentos, contrairos da virtude, boa fama e honesta vida.” (1, II).

• Conversação, regendo a preposição de: “E o velho também passou seu tempo em conversação da filha, genro e neto, com grande alegria” (1, X).

• Menencório, regendo a preposição de: “E o Duque, muito agastado por isso e menencório do mancebo, porque lhe pediu cousa tão fea.” (1, XII).

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INTRODUÇÃO

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• Mister, empregado na expressão “haver mister” sem regência da prepo-sição de, inclusive com o complemento em forma de pronome átono ob-jeto direto: “E portanto, não há Vossa Alteza mister este contador, que já é provido o ofício” (1, VII), “em ũa pus os que servem, e Vossa Senhoria os há mister” (1, VIII), “em comprar as mercaderias que haviam mister e aviar-se de todo.” (2, II), “Porque o ano da fome, havendo vós mister um pão emprestado” (3, II).

• Respeito: regendo a preposição de: “em ela havia outros preços muito maiores, que era o respeito de sua honestidade” (3, VI).

• Vitória, regendo a preposição de para o complemento nominal: “fican-do-te contentamento grande, que não tenha preço, com vitória de teu adversário e grande imigo.” (1, X).

7.8.10. Sintaxe de colocação

• Construção com termo predicativo intercalado aos determinantes do objeto direto: “E não julgue a temerária minha ousadia que nasce do desejo de comunicar com todos o prêmio de meu trabalho” (1, Pr).

• Construções com posposição do sujeito: “Foi para todos aqueles cava-leiros e damas ũa mui grande alegria esta reconciliação da marquesa Grisélia” (3, V), “por ver que não podia dar a sua pessoa nenhum au-mento de honra aquele enfado importuno” (3, IX), “Fizeram estas pia-dosas palavras no coração da donzela tanta impressão, que se cobriu o rosto de empacho e vergonha” (3, IX), “permitais ao menos que por esta vez vença o rigor da justiça, que a tão cruel fim nos ameaça, o valor de vossa clemência, em que consiste o bem de nossa esperança.” (3, IX), “Sobre o qual, entrando todos em consulta, temperou de sorte em seus nobres ânimos este piadoso ato o rigor da justiça” (3, IX).

• Construção de sintagma nominal com os termos determinante e determi-nado invertidos e consequente alteração de funções: “Passados alguns dias, quase como um ano, veo a el-rei um homem mancebo, muito ver-melho da barba, ao parecer levantisco lapidairo.” (1, X), “O pecador do pobre não podia sair pola Rengina” (1, XVI), “veo pela mesma rua um velho branco da barba” (2, V), “e que poder dar de esmola aos pobres dos frades.” (2, VI), “antes temos já casa de nosso em que moramos” (2, VIII), “E assi ia guiando a el-rei pelo mais fragoso do monte” (2, X).

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• Inversão na construção do auxiliar modal e o infinitivo que o acompa-nha: “e não tendes nela mais que dar-vos eu o que eu quiser.” (2, IX).

• Construção com o pronome átono a proclítico ao pronome pessoal ela, estabelecendo certa complexidade para a leitura, por possível confusão com a preposição a: “lhes faz como peçam à princesa certa cousa que, se a ela der (se ela a der), tanto que a dá, o homem se torna a ir e não é mais visto.” (2, VII), “ordenando que houvesse causa para a ele apartar (ele a apartar) de si.” (2, VIII).

• – Inversão entre o sujeito do infinitivo e o sujeito do auxiliar: “o fez o velho pôr a cavalo” (2, X).

• Sujeito composto intercalado entre o verbo auxiliar e o principal de um tempo composto: “que pera isso já têm vosso pai e o seu havida licen-ça.” (3, IV).

• Inversão entre o verbo auxiliar e o principal de um tempo composto: “pera que soubessem quão acertado tinham no casamento que estava feito.” (3, IV), “que pouco há menos de dez anos tanto desejado haveis” (3, VIII).

• Inversão com o sujeito da oração subordinada inserido na oração prin-cipal: “não pôde resistir as lágrimas que não fossem testemunhas de sua fé” (3, IV), “de que ele, vendo-a tal, por dar lugar aquele primeiro acidente que fizesse termo, a deixou” (3, VI).

• Construção com sintagma em que o determinante certa, com o sentido de “exata”, está anteposto ao termo determinado: “e com elas a certa promessa de tão rico prêmio” (3, VIII).

7.8.11. Sintaxe de concordância

7.8.11.1. Construções com particularidades de concordância verbal

• Construções de sujeito composto, com núcleos em sinonímia e o verbo no singular: “Que oferecendo-se nos desgostos ou perda, o sentimento e nojo seja conforme à causa, concluindo com ele.” (1, XIII), “Que todo tabalião e pessoa que dá fé em juízo deve atentar como a dá.” (1, XV), “e que sua honra e virtude lhe basta.” (1, XVII), “Pelo qual, aquela dor

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ou trabalho, tomada como cousa dada por Deus e crendo que tudo o que Deus faz é por melhor, não se sentiria tanto.” (2, III).

• Construções com concordância verbal ideológica: “Ora, eu que o es-crevi peço a quem o ler e ouvir que pela alma deste rei tão benigno rezem um Pater-Noster e Ave Maria com devação” (1, VII), “e mandou muita gente por diversos lugares daquela comarca que lho buscassem e prendessem” (1, XII), “A qual, ainda que concluia e venha a parar em dar-lhe por derradeiro a morte, quando é com tormentos disformes e graves, faz terror no povo, pondo espanto, e escarmentam alguns (se os há na terra) mal inclinados.” (1, XII), “E esta gente foi com tanta dili-gência e deram-se tal manha que, ainda que custou muito, o trouxeram preso diante do Duque.” (1, XII).

• Construções de concordância verbal atrativa, com sujeito posposto ao verbo: “E assi se buscou outro e outros.” (1, XII), “para que por ele lhe viesse bem e riqueza.” (1, XIV), “E assi tirou as laranjas fora e viu ele e eles que eram as quatorze metades e as quatro inteiras.” (1, XV), “estava el-rei e a princesa com muitas donas” (2, II).

• Construção de sujeito composto, com os núcleos ligados por ou e com o verbo no singular, concordando com o núcleo mais próximo: “Mas quanto os amos ou vossa pessoa for em mais crescimento de valor” (1, XIX).

• Construção com verbo no singular, antepondo-se a sujeito composto, que apresenta os núcleos no plural: “E parece-vos muito dous vinténs que dou a cada pobre homem para ele, e trinta réis para cada mulher, e vinte para cada filho ou filha.” (1, XVIII).

• Construções com verbo no plural anteposto a sujeito no singular: “e jun-tava dous, porque se lessem de ambas as bandas ũa mesma cousa.” (2, II), “E passados os dous dias, viessem dos velhos cada dia um” (2, VII), “ia em tempo de inverno um pequeno regato de água das chuvas, que por ali se iam meter no mar.” (2, X), “era que sobre ele pareciam multi-dão de corpos negros e feos” (2, X), “declarasse onde estavam a cópia das peças” (3, IV), “com algum gado que, com a indústria e sagacidade de Grisélia, eram governados e regados grandemente.” (3, V).

• Construções de sujeito no plural ou composto com verbo no singular: “Porém as letras e o que elas diziam era na sua linguagem” (2, II), “em que houve tantos e tão grandes encontros que...bastava para fazer um

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grande volume” (2, II), “Lembra-vos os ossos que resgatastes de terra de mouros?” (2 II).

• Construções com a expressão “eu sou quem” seguida de verbo em con-cordância com o pronome pessoal: “Eu sou quem na Berberia / Comprei a garça real” (2, II).

7.8.11.2. Construções com particularidades de concordância nominal

• Construções caracterizadas pela gramaticalização do verbo no particí-pio, sem a concordância com o termo a que se refere: “E el-rei, visto os grandes serviços que dele recebeu” (1, X), “E dizendo isto, posto a mão na sua espada” (3, IX).

• Construções com termo particípio em discordância com termo subs-tantivo sujeito, havendo entre eles inversão na ordem de colocação ou constituintes intercalados: “chegou à porta e, porque foi conhecido dos de dentro, lhe foi logo aberto.” (1, XIX), “afirmando-lhe que ali estava prometido muita honra e proveito.” (2, II), “E como teve acabado sua fala” (2, II).

• Construção em concordância ideológica de gênero: “e se chegava algũa pessoa que não soubesse qual caminho havia de tomar, o encaminhava” (2, V).

• Construções com advérbio variado em concordância com adjetivo: “ũa caixa pequena outavada, vazia e meia quebrada” (3, IV), “com quanta mais razão estamos ambas” (3, VIII), “Estava a coitada de Eugênia tão traspassada e temerosa de ver ali seu marido, que toda tremendo lhe dizia” (3, IX).

7.8.12. Sintaxe das formas verbais

• Formas do modo indicativo empregadas pelo modo subjuntivo, princi-palmente em orações subordinadas concessivas: “me pareceu bem dizer que, ainda que é muito bom, como é, rogar aos santos” (1, I), “que, ain-da que eu ergo da minha parte” (1, I), “E assi eu, ainda que tenho desejo de escrever” (1, I), “ainda que o mancebo o importunava” (1, VII).

• Formas do pretérito mais que perfeito do indicativo empregadas pelo pretérito imperfeito do subjuntivo, ou pelo futuro do pretérito do indi-

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cativo: “a quem a não conhecera, parecia” (1, II), “que se esqueceu do cuidado que devera ter na guarda da irmã” (1, III), “e que a achara, já não lhe aproveitara nada” (1, III), “e houvera de morrer se não dera conta do caso” (1, III).

• Forma de pretérito perfeito usada pelo pretérito mais que perfeito: “Lem-brou-se el-rei que aquele escravo lhe prometeu” (1, X).

• Construção caracterizada pela assimetria entre as formas verbais das orações subordinadas que estão coordenadas entre si, com uma forma verbal no subjuntivo e outra no imperativo: “Portanto, Eugênia, é mi-nha vontade que logo vades ao Senado e pedi a esses senhores o que segundo o seu pregão se deve” (3, IX).

• Relativamente à sintaxe do verbo ser, foram registradas as seguintes particularidades: a) ser por estar: “mas como já eram perto” (1, III), “quando lhe trouxeram novas que seu pai era morto” (1, VII), “era fa-zendo justiça.” (1, XII), “quando o mestre-sala era ausente.” (1, XIX), “Eu vou a este castelo. Serei aqui” (1, XIX); b) ser por existir, haver: “Nestes reinos foi um católico e virtuoso rei” (1, VII), “eu vo-lo acaba-rei de pagar quanto em mi for.” (1, XIV), “Foi um tabalião do púbrico e judicial” (1, XV), “ali foi a grita” (1, XVI), “Foi um rei mancebo, de idade de 22 anos” (2, VIII) “Foi um homem muito rico, mercador fa-moso” (2, IX); c) ser no sentido de “acontecer”, “ter por consequência”: “Os filhos do velho, visto que podia ser, deitando-se do muro, errar o golpe” (1, XVI), “E porque isto era passando pelo meo” (1, XIX); d) ser no sentido de “ter idade”: “E neste estado durou até que seria já de 24 ou 25 anos de idade” (1, XIX); e) ser por ter, haver, na conjugação composta: “foram ambos ao pé da varanda, donde já el-rei era chega-do.” (1, X), “o caseiro que tem as chaves dele é ido hoje à cidade” (3, VI), “E não seria entrado nela, quando” (3, IX); f) ser por ficar: “As senhoras foram contentes do que eu disse que fizera” (2, VIII).

• Relativamente à sintaxe do verbo haver foram registradas as seguintes particularidades: a) haver por ter: “não permitais haver ajuntamento comigo” (1, III), “E com desejo de a ver e saber quem era e havê-la por mulher” (1, III), “E desde agora vos fico que nunca haverei outra mu-lher” (1, III); b) haver por reaver, recuperar: “E o Duque houve o ne-bri” (1, XII); c) haver no sentido de “faça o favor” “haja a mercê”: “por onde haja Vossa Excelência, por seu serviço, passar adiante.” (3, VI).

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8. A ortografia

Como se sabe, a ortografia portuguesa usada no século XVI tinha uma feição etimológica, em razão da intensa influência latino-clássica que tem início com o Renascimento. Com isso, na grafia de muitos vocábulos retomaram-se as letras usadas na grafia latina, desprezando-se as alterações fonéticas que já tinham ocorrido nos vocábulos. Este período da ortografia foi chamado de pseudoetimo-lógico e prolongou-se até o início do século XX, quando, com o desenvolvimento dos estudos fonéticos realizados em Portugal por Gonçalves Viana, foi proposto o sistema ortográfico simplificado, atualmente em vigor. Uma prática, por exem-plo, que denunciava a transposição para a grafia em português de aspectos gráfi-cos próprios da língua latina era o expediente de se usarem letras dobradas para consoantes simples, como na grafia de peccado, officio, elle, anno etc.

Por outro lado, pelos dados hoje existentes, pode-se observar que no século XVI, século em que se disseminaram os textos impressos em Portugal, é possível afirmar que a forma escrita dada às palavras no texto de Trancoso tem alguma responsabilidade do autor, na medida em que quem escreve procura acompanhar os hábitos ortográficos vigentes em sua época, mas, com certeza, terá enorme responsabilidade do tipógrafo.

A respeito deste ponto de vista é interessante o depoimento de Maria Leo-nor Buescu sobre o poder que os impressores exerceram na fixação da ortografia nos primórdios das atividades tipográficas:

Efetivamente, numerosas vezes os autores se queixam da intervenção desfigurante do tipógrafo – ou dos tipógrafos, já que a técnica da im-pressão exigia, geralmente, a intervenção de dois. [...] O impressor é, portanto, aquele que detém a técnica e, com ela, o poder de ditar a lei ortográfica (BUESCU, 1986, p. 199).

No conjunto de suas explanações, afirma a pesquisadora que na própria Gramática de João de Barros as normas ortográficas recomendadas nem sempre são seguidas pelo impressor, dando a seguinte informação:

[...] este (o impressor) serve-se de um sistema imposto para uso tipográ-fico o qual nem sempre respeita a doutrina contida no próprio discurso. Mais: serve-se dum sistema internacional o qual dá cobertura não a uma língua, mas a uma civilização ou a uma cultura e paradoxalmente arti-cula o impressor com o seu predecessor: o copista, o escriba, o notário (BUESCU, 1986, p. 199).

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No mesmo sentido estão as palavras de Paul Teyssier em seu trabalho so-bre a pronúncia das vogais portuguesas no século XVI. Explicando o método es-tatístico que empregará para as conclusões sobre a pronúncia das vogais, informa o citado mestre:

[...] dans la pratique, en effet, les signes diacritiques imaginés par João de Barros sont employés d’une façon qui est loin d’être regulière. Les compositeurs d’imprimerie sont sans doute responsables d’une bonne partie de ces incohérences, qui sont ajoutées aux inadvertances qui l’auteur lui-même n’a pu manquer de commettre (TEYSSIER, 1966, p. 138).

Para efeito de descrição, serão relacionadas abaixo situações em que os procedimentos ortográficos diferem dos adotados pelas normas atualmente em vigor, seja os que correspondem à transposição para o português da tradição lati-na, seja os que apresentam alguma oscilação, principalmente no emprego da letra h e no emprego das notações léxicas.

• A grafia da consoante fricativa labiodental sonora fazia-se com as letras v (no início dos vocábulos) e u (no meio dos vocábulos): vemos, vida, mas leuasse, escrauo, confiaua etc.

• Eram frequentes as formas abreviadas, principalmente q (que e quem), porq (porque), ql (qual), e a abreviatura do latinismo scilicet, com a forma s..

• Grafavam-se com letras dobradas algumas consoantes, seguindo a tradi-ção latina, idioma no qual as letras dobradas representavam consoantes geminadas: a) com dois cc: occupaua, peccado, occasião; b) com dois ff: officio, affincadamente, effeito, affronta, iffantes, offerecese, sof-freo; c) com dois ll: elle, aquelle, cauallo, escudellas, fallaram, don-zella, esmollas, celleiro, valler: d) com dois nn: anno etc.

• Grafavam-se o pronome lo e flexões ora com letra dobrada, ora com le-tra simples, quando em ênclise a verbo no infinitivo: erguela, desejalo, acabala, mas erguella, fella, vella etc.

• Não se usava o hífen para separar os pronomes enclíticos e mesoclíticos dos verbos a que se prendiam foneticamente: semealaemos, desejalo, vioo etc.

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• Havia vocábulos grafados com letras vogais dobradas para assinalar a tonicidade do fonema vocálico, seja oral ou nasal: laa, daa, see, vee, pees, cree, fee, provee, estee (subjuntivo arcaico de estar), soo, yrmaã, manhaã, menhaã, quintaã, vaãgloria (tônica do primeiro elemento do composto), cortesaã, coimbraã, xpaã etc.

• Há registros de grafias latinizadas com inserção de letra h, em procedi-mento gráfico erudito nem sempre com correspondência etimológica: choro, anichilam, Christo, christão, catholico, reprehendeo, cha-ridade, charidosa, thesouro, desherdado, parrochia, amphitriam, philosopho etc.

• Registravam-se ainda grafias latinizadas, com consoantes mudas, tam-bém denunciando eruditismo gráfico, bem como grafias sem essas con-soantes, denunciando a adoção de termos correntes populares: sancto, delicto, fructo, occiosidade, subditos, sciencia, accessorias, victoria, defuncto, sumptuosas, mas auogado, amiração, indinou etc.

• Encontravam-se grafias com a letra h, no início ou no meio de vocábulo, sem correspondência etimológica, ou em situações onde não mais se usa: hũa, hum, hia, he, hera (por era, imperfeito do verbo ser), hi (de aí), hi (de ir), hião, hira, hido, ahi, sahio, cahi, authorizado, dahi, hombro, desherdado, ferrehuelo, deshonra etc.

• Por outro lado, encontravam-se formas grafadas sem a letra h em rela-ção às quais existe a correspondência etimológica: auer, auia, ouue, aja, eiuos, abilidades, ospedaria, ospede, orta, ortelão, abito, erdeiro etc.

• Era bastante extensa a grafia com a letra y, principalmente na represen-tação da semivogal anterior: muy, mãy, foy, determiney, achey, rey, veyo, acabey, meya, dartey, joya, reyno, viray, olhay, pay, cayão, cearey, mayor, oyto; mas também na grafia da vogal anterior alta: my, sayrá, yrmão, yr, juyzo, yrosas, ysopo, soya (de soer), arroydo, tyra-nos etc.

• As vogais nasais, em procedimento de muita oscilação, eram grafadas: a) com til: cõtas, algũs, homẽs, mandamẽtos, cõselho, mõtes, seruẽ, tambẽ, fiquẽ, cũprir, avẽtejado, cõprirás, cõ, nẽ, ẽ, parẽta, bẽ, fiãdo, cõmumẽte, cõde, bõ; b) com m: algum, homem, nem, bem; c) com n: donzella, amen, sobreuieranlhe, vezinhança, alguns etc.

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• Grafavam-se os ditongos nasais tônicos dos substantivos e advérbios também em procedimento de bastante oscilação: a) com ão: não, yr-mão, serão (substantivo), nação, opinião, sotrancão, pão, ração, co-ração, occasião, chão, ermitão, tabalião, ortelão; b) com am: nam, senam, imaginaçam, liçam, tam, yrmam, incrinaçam, rifam, inqie-taçam, perdiçam, tençam, alteraçam, entam, razam, confissam, res-tituiçam, petiçam, concrusam, devaçam, invençam, galardam, ve-neraçam, estimaçam, condiçam, admiraçam, sojeiçam, consolaçam, paixam, tabaliam, administraçam, sopricaçam, lamaram, enforma-çam, ortelam; c) com ã: nã, salvaçã etc.

• Também, com enorme oscilação, grafavam-se os ditongos nasais das formas verbais de terceira pessoa, átonos e tônicos: a) com ão: erão, ro-gão, auião, estão, folgárão, sairão (passado), deuião, chamão, acha-rão (passado), achavão, viuerão (passado), rião, ficarão (passado), sabião, vião, hão, hião, pagárão, comão, virão (de ver), tornauão, aceitárão, cairão (passado), honrão, valião, cayão, deixão, trouxe-rão, forão, chegarão (passado), amão, comerão (passado), tomarião, costumão, armão, matão; b) com am: diram, fiam, sejam, sam, fol-garam, eram, estam, zombauam, tirauam, dam, seram, perderam, ficaram (passado), ficaram (futuro), sabiam, ham, agradeceram, ti-nham, ficam, trouxeram, traziam, disseram, honram, acabaram, alegraram, andauam, entram, confessaram (futuro), alcançaram (futuro); c) com ã: hã, alimparã etc.

• Da mesma forma, com bastante oscilação, grafavam-se as vogais an-teriores e posteriores átonas, fossem pré-tônicas ou pós-tônicas, bem como as semivogais: teuer, mintiroso, enfirmidade, filice, quasi, po-ser, descubrir, molher, Deos, lingoas, legoas, agoa, pertenceo, socor-reo, mao etc;

• Na grafia do numeral correspondente a um, em algarismo romano, usa-va-se a letra I ou a letra j para o último numeral de uma sequência: XXIIIj, mas IIII etc.

• Registra-se grafia com a letra i pela letra j: Ia (na locução conjuntiva Já que, em início de período).

• Há registros de grafia com a letra x da consoante fricativa pós-vocálica, no nome próprio Lixboa, bem como a grafia com a letra s em situação em que hoje se grafa com a letra x: esperiencia, esprimentara, espirar etc.

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• Encontravam-se grafados com a letra g vocábulos com a consoante frica-tiva palatal sonora em situações onde hoje a grafia faz-se com j: ageaza-do, engeitais, grangear, lagea, page, pagem, sogeiçam, trage etc. Em lisonga, a grafia contradiz a tradição ortográfica pelo uso da letra g antes de vogal central baixa, caracterizando a pronúncia de outro fonema.

• Observava-se oscilação de grafias com as letras s e z de vocábulos com a consoante fricativa alveolar sonora: a) com s em situações onde hoje a grafia se faz apenas com z: vasa, vasou (do verbo vazar); b) com z em situações onde hoje se grafa com s: quizer, quizerdes, tizouro, pizas-se; c) com ss no lugar de s: pussesse (do verbo pôr), casso, pressumir, dissigual etc.

• Na grafia de vocábulos com a consoante fricativa alveolar surda, cons-tatava-se: a) a grafia com c e ç em situações onde hoje se grafa s ou ss: concelho (por conselho), çujar, poça (de poder), çapo, çafate, pre-ça, promeças, pretenção, cançasse, escolhece; b) a grafia ss onde hoje se grafa com c e ç: asseitou, assoute, acontesseu, cousse, sossobrar, pessa (do verbo pedir), converçassão; c) a grafia com c onde hoje se grafa com ss: grocissima; d) a grafia com s onde hoje se grafa com c: sertifico, sertas, serca, siencias, giromansia, siúmes; e) a grafia com s onde hoje se escreve com ss: asinalada, acesorio, sobresalto, offerece-se, ysopo, lançase, sobresalente etc.

• Registravam-se grafias com r em situações de vibrante múltipla: erei (por errei), arugou (por arrugou).

• Encontrava-se ainda certa oscilação na grafia das consoantes oclusivas velares, surda e sonora: a) grafia com qu por c: riqua, sequa, qua (por cá), cinquo; b) grafia com gu por g: diguo, consiguo, antigua, ensan-guoentou, gualantarias, neguara, obriguado, fidalguo, foguo, pa-guasse, roguava; c) grafia com g por gu: aluger, entregei etc.

• Ocorriam ainda diferenças na grafia de certas formas que hoje se escre-vem com os elementos juntos, e no texto original aparecem separados, bem como de outras que hoje se escrevem com os elementos separados, e no original aparecem juntos: a) com elementos separados: sobre avi-so, por tãto, a diante, de pressa, a manhaã, a menhaã, mao feitor, mal feitor, bem quisto, a caso, seis centos, com tudo, de vagar, a baixo, em quanto, a tras, a pesar, com nosco etc.; b) com os elementos juntos: defeito (= de fato), encima, mestresala, denoite etc.

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INTRODUÇÃO

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9. O léxico

Trata-se de um léxico bem característico da fase de transição da língua portuguesa, correspondente ao século XVI: a passagem da feição arcaica para a feição moderna do idioma. A maioria dos itens lexicais apresenta-se na forma correspondente à fase moderna da língua. Uma parte dos itens, entretanto, apre-senta-se no registro que tiveram na fase arcaica da língua. Constatam-se também formas correspondentes ao registro popular, de acordo com algumas variações diatópicas referidas pelos lexicógrafos. Verifica-se ainda a ocorrência de unida-des lexicais com intenso polimorfismo, as quais ora se apresentam na feição mo-derna, ora na feição arcaica, conforme será descrito abaixo.64

9.1. Unidades lexicais com traços de arcaísmo, transcritas na forma como aparecem no texto crítico:

acupáreis (flexão de ocupar), agardeceu (flexão de agradecer), ageolharam, airado, alagoa, aldea, alevantamentos, alevantar, alheo, aliceces, alimpar, almorçar, almorço, aluguer, amancipado, amea, amenhã, aministrar, amira-ção, amirar, amoestar, antemenhã, antigua, aqueixar, aquirido, area (areia), arrecear, arrezoado, assessego, assumpçam, atambores, atromentar, aventa-gem, avertida, aversa, avogados, avondança, avondar, bautismo, bautizar, benção, bõamente, boroa, boticairos, cadea, cariciar, cavaleria, cea, chimi-nés, cheo, cólora, comprendido, Córdova, correição, cossairos, demostração, derradores, derribar, desaventura, desaventurada, desemburlhei, (flexão de desembrulhar), desemparar, desprepósito, devação, direitamente, disformi-dade, doudice, doudo, efeituar, emparadas, empiorar, entonce(s), escabu-la (flexão de escapulir), escândolo, esparecer, esprital, estuta, exprimentar, fantesia, felice, feo, fermoso, fermosura, fernético, filosomia, Frandes, freo gengibas, geolhos, homicido, humilmente, infelice, ingresa, inominosa, in-ventairo, isentidão, jubão, lapidairo, lavrandeira, levantisco, lógea, malen-conizada, mana (flexão de emanar), mancipar, masto, meã, meneos, meo-dia, mônstruo, mor, moreira, mudamento, paracismo, parecer (infinitivo de apa-recer), parróquia, passeos, peleijando, perdimento, perjudicial, pernunciar, piadoso, polvorejar, porfundíssima, porproção, prefeição, prefilhasse (flexão

64 Na tese de doutorado que deu origem à presente publicação, o leitor poderá consultar o léxico com-pleto dos Contos e histórias de proveito e exemplo, com todos os vocábulos usados por Trancoso e suas respectivas localizações no texto. Dessa tese há exemplares na Biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

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de perfilhar), presentar, presseguidor, profia, psalteiro, pubricamente, pusi-lânimo, recream (flexão de recrear), repairo, repairar, reposta (de resposta), répricas, resplandor, rezoado, rigoridade, rodea, (flexão de rodear), Rolação, sabrosa, segundariamente, sembrante, Setúval, simprez, sobreveo (flexão de sobrevir), somana, someter, supitamente, súpito, supricar, tabalião, távoa, terríbel, torneos, trépicas, usso, valerosamente, valeroso, viço.

9.2. Unidades lexicais com polimorfismo, também transcritas na forma do texto crítico:

aborrecimento e abarrecimento; abundância e avondança; açafate e safa-te; administrar e aministrar; admirar e amirar; adquirir e aquirir; adver-tir e avertir; advir e avir; agradecido, agardecido, gradecido e ogardecido; amizade e amizidade; amparar e emparar; aposento e apousento; arrancar e arrincar; árvore e árbore; assim e assi; atrever e estrever; aventajado e aventejado; boceta e boeta; boa e bõa; boda e voda; bons e bos; cargo e cár-rego; companhia e companha; conclusão e concrusão; contrário e contrairo; constância e costância; contínuo e contino; corcovado e corcobado; cuidar e cudar; desastrado e desestrado; emancipado e amancipado; debaixo e deba-xo; deixar e leixar; depois e despois; desapercebido e desaprecebidos; despida e despedida; determinação e detreminação; determinar e detreminar; digno e dino; discrição e discirição; emburilhar e emburlhar; escoleito e escolhei-to; espírito e esprito; estorvar e estrovar; excelente e encelente; excepção e encepção; executar e enxecutar; fruto, fruita e fruitos; garavim e gravim; instrumento, estormentos e estromento; inclinação e incrinação; inclinado e incrinado; indignar e indinar; indigno e indino; infante e ifante; inimigo e imigo; instante e istante; lembrar e alembrar; letrado e leterado; linhagem e linagem; mãe e mai; magnificência e manificência; manhã e menhã; malenco-lia, malenconia, manencoria e menencoria; manencório e menencório; meio e meo; mercadoria e mercaderia; oferecer e ofrecer; particular e patricular; perguntar e preguntar; permitir e premitir; perigoso e perigroso; perseguir e presseguir; pertencer e pretencer; piedade e piadade; pobre e prove; pobreza e probreza; pompeo e pompeio; porfiar e perfiar; possuir e pessuir; prática e pártica; prelado e perlado; pressuposto e prossuposto; pretender e perten-der; procurar e precurar; prometer e pormeter; propor e prepor; propósito e prepósito; propriedade e propiedade; publicar e pubricar; público e púbrico; qualidade e calidade, quase e case; quinta e quintã; rancor e rencor; razão e rezão; recolhida e recolheita; repreender e reprender; república e repúbri-

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INTRODUÇÃO

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ca; resistir e registir; responder e reponder; revolver e rebolver; soluços e saluços; sossegado e sessegada; sossego e sessego; taxada e taixada; torcer e trocer; traição e treição; traidor e tredor; veio e veo (flexão de vir); ventage e ventagem; viagem e viage; vício e viço.

9.3. Unidades lexicais relacionadas a campos semânticos

Outro aspecto que também pode ser objeto de análise no léxico de Tran-coso é o que se relaciona aos campos semânticos designativos de diversos itens culturais. Há interessante material para etnógrafos que queiram conhecer, por exemplo, termos que designam hábitos de indumentária, tecidos e ornatos para roupas; os que designam procedimentos na área do judiciário; e os que designam crenças e práticas religiosas, entre outros. Como amostras dessas possibilidades de levantamento, são apresentadas as relações abaixo.

9.3.1. Campo semântico relativo a termos que designam hábitos de indumentária, tecidos e ornatos para roupas:

alambéis, alcatifa, alfaiate, alfinete, almexia, atavio, atorçalada, barrado (or-nado com barras), bastidor, beatilha, bedéis (ou bedéns), borlador, caçote, calça, calceteiro, camisa, capelo, capuz, cetim, coifa, cordovão, desbarretar, fato, fiandeira, ferreruelo, fileles, forrar, fralda, gorra, lavor, linhaça, linho, manta, mantilha, pano, pelote, roupeta, saia, saio, seda etc.

9.3.2. Campo semântico relativo a termos que designam funções e procedimentos na área do judiciário:

achádego, acredor, agravo, alçada, arras, arrezoado, auto, avença, avogado, benfeitoria, citar, comarca, contratos, corregedor, culpado, defesa, delito, demanda, desembargador, despejo, devassa, escrivão, fiador, fiança, heran-ça, herdade, homicida, inocência, instância, judicial, juiz, juízo, julgador, julgar, justiça, legítima, lei, libelo, licitamente, pena, penhora, petição, pro-cessado, procurador, prova, regedor, répricas, requerer, Rolação, sentença, supricação, trépicas etc.

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9.3.3. Campo semântico relativo a termos que designam crenças e práticas religiosas:

abençoada, ageolhar, altar, amém, angélica, anjo, arcebispo, assunção, Ave--Maria, bautismo, Belial, bento, bispado, capela, católico, confessor, coro, cura, demônio, Deus, devoto, dilúvio, dízimo, ermida, ermitão, espiritual, Espírito Santo, frade, frontal, Glória, hissopo, Igreja, inferno, infinita, je-juns, Lúcifer, misericórdia, missa, mosteiro, Madre, oração, padre, Pai, par-róquia, Pater-Noster, Páscoa, pecado, penitência, pregador, prelado, procis-são, relíquias, ressuscitar, rezar, sacramento, santo, santíssimo, sermão etc.65

10. O projeto de texto crítico

O projeto desta edição está fundamentado nas diretrizes do plano geral que se pretende executar: a restauração do texto dos Contos e histórias de proveito e exemplo em sua dimensão mais completa, ou seja, os dois prólogos dirigidos à Rainha Dona Catarina, bem como as 41 narrativas hoje conhecidas, distribuídas nas três partes em que o autor originalmente as ordenou: 20 narrativas na Primei-ra Parte; 11, na Segunda; e 10, na Terceira.

Para a definição dessas diretrizes, é preciso considerar uma série de aspec-tos característicos do texto, objeto desta edição. Assim, conforme já se expôs, os Contos e histórias constituem uma obra impressa, e não manuscrita, fato deter-minante de uma primeira diretriz do plano geral, aquela que se relaciona com o procedimento de busca das edições mais antigas que possam servir como textos de base. Passando-se ao segundo momento, depara-se com outro aspecto característi-co, qual seja, a edição considerada “princeps”, datada de 1575, contém apenas 31 narrativas, sendo que as 10 narrativas da Terceira Parte só aparecem na edição de 1595. Além disso, apesar dos escassos dados biográficos sobre o autor, é possível inferir que já teria falecido quando da publicação da segunda edição conhecida, no ano de 1585, e que provavelmente não acompanhou nenhuma das reimpressões de sua obra. No mesmo sentido, é preciso considerar o fato de que a partir da segunda edição, por exigência da censura eclesiástica, três contos da edição de 1575 foram suprimidos e não mais impressos nas inúmeras edições da obra até o século XX. E ainda que, a partir das edições de 1646 e 1681, foram acrescentados ao fim do livro textos de conteúdo religioso de autoria de membros do clero.

65 Para maiores informações sobre os fatos relacionados à grafia, fonética, pontuação e acentuação gráfica da edição de 1575, veja-se DUARTE, 2008.

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INTRODUÇÃO

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Essa série de aspectos concorre para a conclusão de que a realização de uma edição crítica dos Contos e histórias, fazendo-se a colação das inúmeras edições, seria uma tarefa de difícil realização e pouco produtiva para o projeto do presente trabalho. Primeiro porque há edições antigas das quais não se tem infor-mação da existência de exemplar; depois porque a colação seria sempre incom-pleta em razão da supressão dos três contos que só foram publicados na edição de 1575; e por último prejudicaria a colação o fato de a obra estar acrescida de textos alheios, de conteúdo catequético.

Em decorrência desses fatos, para atender ao projeto da presente edição, a segunda diretriz do plano geral aponta para o trabalho de estabelecimento do texto crítico dos Contos e histórias, tomando-se como textos de base a edição de 1575, para a transcrição dos contos da Primeira e Segunda Partes, e da edição de 1595, para a transcrição dos contos da Terceira Parte, transcrições em que, aten-dendo às exigências filológicas, sejam resguardadas as características originais da obra, como texto quinhentista.

Outro aspecto a ser considerado é o que se relaciona com o campo biblio-gráfico em que o texto dos Contos está inserido. Este conceito, proposto por Ivo Castro e Maria Ana Ramos, procura dar conta das edições existentes de uma obra, considerando-se aquelas a que o público leitor pode ter acesso em razão de algum processo de difusão e estabelecendo-se as características que nortearam a publicação:

Campo bibliográfico é a designação que propomos para um conjunto estruturado de unidades bibliográficas (livros impressos), organizadas em torno de um determinado texto: o campo de um texto é o grupo formado pelas edições existentes desse texto. [...] O campo bibliográ-fico ideal é aquele em que, de um texto, existem no mercado, ou são facilmente acessíveis, exemplares de todos os tipos de edição capazes de satisfazer as necessidades de todos os tipos de leitor potencial (CAS-TRO & RAMOS, 1986, p. 112).

Neste sentido, podem ser consideradas fora do campo bibliográfico dos Contos as edições antigas, publicadas até o início do século XX, cujos exempla-res, raríssimos, estão fora do espaço de difusão. Das edições mais recentes, a rea-lizada por Franco de Barros (1983), a de Armando Moreno (1988) e a de Santos Costa (1989) preenchem precariamente espaços do campo bibliográfico porque são edições parciais, incompletas: a primeira feita com o intuito de mera divulga-ção das “Histórias de Trancoso”; a segunda com propósitos literários de confron-tar textos de Trancoso com os de outros prosadores dos séculos XVII e XVIII; e a

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terceira como divulgação do autor pela Câmara Municipal de Trancoso. De modo que o campo bibliográfico dos Contos está reduzido a três publicações: duas de iniciativa de João Palma-Ferreira, e uma de iniciativa de Cristina Nobre.

Das duas publicações de iniciativa de Palma-Ferreira, a primeira, de 1974, que teve como texto de base a impressão feita em Lisboa em 1624, é uma edição à qual podem ser feitas duas restrições: 1) o texto de base de que se serviu estava prejudicado pela ação da censura eclesiástica, constando dela apenas 38 narrati-vas, além de várias outras pequenas supressões e alterações da forma original; 2) preocupado com o texto enquanto um documento literário, o editor modernizou-o e nele produziu alterações a ponto de desfigurá-lo como um documento da língua do século XVI, quase que o inviabilizando para trabalhos de pesquisa filológica. A outra edição, a de 1982, é um fac-símile da edição de 1575, contendo, pois, a forma original e completa das duas primeiras partes da obra, mas em estado bruto, fato que, se por um lado favorece a pesquisa filológica, por outro torna a obra quase que inacessível ao estudioso de literatura e ao leitor comum (leitor pouco acostumado à forma de impressão dos textos antigos). Além do que, é uma publicação de apenas 31 narrativas.

A edição de Cristina Nobre, de 2003, tem como mérito maior a publica-ção das 41 narrativas das três partes da obra, preenchendo de forma satisfatória o campo bibliográfico dos Contos. Do ponto de vista filológico, porém, o mo-delo de transcrição adotado pela autora, modelo que ela designa como edição diplomática, deixa a desejar. Interessada em facilitar a leitura das narrativas para os leitores do século XXI, pouco familiarizados com os textos antigos, Cristina Nobre modernizou o texto e o alterou em vários pontos, modificando em várias passagens o sentido original e também desfigurando-o como documento da lín-gua do século XVI. São dela as palavras:

Pretende devolver-se aos leitores do século XXI o texto integral das três Partes de Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, actualizado através de uma edição de divulgação fidedigna, capaz de voltar a servir um público mais alargado, uma vez que o erudito encontra nas edições ci-tadas da responsabilidade de Palma-Ferreira (1974; 1982a), bem como no ensaio referido de Cristina Nobre sobre os CHPE (1999), elementos preparatórios conducentes à organização de uma edição crítica. Assim sendo, optou-se por uma edição diplomática de ortografia modernizada e algumas alterações da pontuação original, seguindo a ed. de 1575 (a primeira recenseada até ao momento) para a Primeira e Segunda Partes (com excepção do já referido fólio 5, cuja falha foi colmatada com o texto da ed. de 1595), e a ed. de 1595 (a primeira recenseada a incluir,

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além da 1ª e 2ª Partes, também a 3ª) para a Terceira Parte (NOBRE, 2003, p. 22).

Assim, como mais uma diretriz para o plano geral desta edição, fica defini-do que o texto tem de preencher espaços ainda abertos do campo bibliográfico da obra. De modo que este projeto de texto crítico terá como objetivos: 1) realizar a publicação das 41 narrativas e dos dois prólogos da obra; 2) restaurar a com-pletude do texto, desfazendo as supressões promovidas pela censura eclesiástica e retomando as formas primitivas adulteradas pela ação dos editores; 3) dar ao texto uma feição moderna, quanto à paragrafação, à pontuação e à ortografia, facilitando a leitura e tornando-o acessível ao estudioso da literatura, ao historia-dor, ao etnógrafo e ao leitor comum, sem, entretanto, desfigurá-lo de sua feição quinhentista; 4) preservar os elementos necessários à pesquisa filológica. Com isso, espera-se que o texto dos Contos de Trancoso passe a figurar entre os docu-mentos da cultura em língua portuguesa com uma feição que corresponda tanto quanto possível à primitiva vontade do autor e que esteja em conformidade com as formas da língua de seu tempo, resguardado das seculares adulterações de que foi vítima.

11. As normas de transcrição

Definidos os objetivos deste projeto de texto crítico, serão tratadas as ques-tões práticas relativas às normas de transcrição. Assim, conforme as diretrizes do plano geral, procurar-se-á determinar: a) os textos de base a serem tomados para esta edição; b) os critérios a serem adotados para a paragrafação do texto; c) os procedimentos relativos ao emprego dos sinais de pontuação; d) os procedimen-tos relativos à forma gráfica dos vocábulos.

11.1. A escolha dos textos de base

Como um dos objetivos desta edição é recuperar a completude do texto dos Contos em suas 41 narrativas, além dos dois prólogos escritos pelo autor, é indispensável tomar-se como texto de base, para o estabelecimento do texto crí-tico da Primeira Parte e da Segunda Parte, a edição de 1575, a única, conhecida, em que foram publicadas as 31 narrativas dessas duas partes. Foram utilizadas duas cópias fac-similadas da edição de 1575: uma obtida junto à Biblioteca da Universidade Católica de Washington; a outra, um exemplar da edição de 1982 organizada por João Palma-Ferreira e feita às expensas da Biblioteca Nacional de Lisboa. Para o estabelecimento das narrativas constantes da Terceira Parte,

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tomar-se-á o texto da edição de 1595, a primeira em que as três partes foram publicadas. Desta foi obtida uma cópia fac-similada junto à Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.

11.2. Critérios para a paragrafação

Os textos de base acima referidos, impressos no século XVI, caracterizam--se pela ausência de marcas de parágrafos que possam nortear procedimentos. Assim, a paragrafação a ser realizada estará fundamentada em um critério obje-tivo, e em outro com algum grau de subjetividade. O critério objetivo é o que se relaciona à paragrafação do discurso indireto e do discurso direto, separando-se falas do narrador e falas dos personagens. Nos parágrafos de discurso direto, será usado o travessão. Em alguns contos, verificar-se-ão alguns parágrafos bem extensos, em que personagens assumem boa parte da narração. O outro crité-rio, com algum grau de subjetividade, está relacionado à leitura feita pelo editor, considerando-se as unidades de sentido que compõem o texto de cada narrativa. Neste caso, é evidente que algumas unidades de sentido podem ser facilmente depreendidas, havendo margem mínima de subjetividade; mas há unidades em relação às quais a possibilidade de mais de um procedimento de paragrafação também é evidente, assumindo o editor a responsabilidade pela divisão em pará-grafos adotada.

11.3. Procedimentos relativos ao emprego dos sinais de pontuação

Os sinais que o autor e os impressores utilizaram para a pontuação dos textos de base foram a vírgula, os dois-pontos e o ponto-final, e ainda, ocasional-mente, o ponto de interrogação e o ponto e vírgula (este com duas ocorrências). Fizeram-no condicionados por normas em vigor nos anos quinhentos, ainda hoje mal compreendidas,66 porém bem distintas das que vigoram para os textos atual-mente impressos.67 Assim, para atender aos hábitos a que está condicionado o leitor contemporâneo, o emprego dos sinais de pontuação será feito de acordo com as normas atualmente em vigor.

66 ELIA, 1981, p. 42.67 Segundo Carla Cristina Duarte, “Embora os gramáticos mais próximos do ano de impressão dos

Contos tenham distinguido as várias formas de pontuar um texto, o facto é que nem sempre Tran-coso terá feito uso desses pontos da forma descrita por aqueles”. (DUARTE, 2008, p. 105-106).

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INTRODUÇÃO

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11.4. Procedimentos relativos à forma gráfica dos vocábulos

A forma gráfica dada às palavras estará de acordo com as normas do Voca-bulário Ortográfico da Língua Portuguesa, publicado pela Academia Brasileira de Letras em 2009. O editor entendeu, todavia, ser importante, do ponto de vista filológico, a manutenção das formas originais, arcaicas e populares, quando es-tas não mais coincidem com suas variantes diacrônicas usadas no estágio atual da língua, para que seja mantida a feição quinhentista do texto. Para atender ao critério acima adotado (com a ressalva referente à manutenção das variantes qui-nhentistas), foram realizadas as seguintes alterações nos textos de base:

• As letras u e i quando usadas com valor consonântico foram substituídas pelas letras v e j, respectivamente: levasse por leuasse, já que por ia que;

• As formas abreviadas foram escritas por extenso: que por q., qual por ql.;

• As letras consoantes dobradas foram simplificadas: ofício por officio, ocupava por occupaua etc.;

• Os acentos gráficos foram usados de acordo com as normas atuais: atrás por a tras, até por ate;68

• O hífen foi usado nas formas verbais com pronomes enclíticos e meso-clíticos: erguê-la por erguela, semeá-la-emos por semealaemos etc.;

• As letras vogais dobradas utilizadas para marcar a sílaba tônica ou sub-tônica foram simplificadas: lá por laa, sé por see, manhã por manhaã, vanglória por vaãgloria etc.;

• A letra h teve seu emprego regularizado, tendo sido usada nos vocábu-los nos quais a norma em vigor o determina e tendo sido eliminada nos vocábulos nos quais não mais se determina: haver por aver, coro por choro, aniquilam por anichilam, repreendeu por reprehendeo, um por hum etc.;

• As consoantes etimológicas em finais de sílaba quando “mudas” foram eliminadas por constituírem eruditismo gráfico: santo por sancto, fruto

68 Segundo a mesma autora, “Fica assim a ideia de que a escrita, no que concerne aos acentos, era demasiado caótica, pelo menos graficamente. Quando pensamos que o mesmo acento servia para distinguir os tempos verbais do pretérito-mais-que-perfeito, do pretérito perfeito ou do fu-turo imperfeito do indicativo, sem que tal acontecesse na prática, temos a prova evidente dessa falta de clareza”. (DUARTE, 2008, p. 107-108).

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por fructo etc.; as formas sem consoantes “mudas”, em que moderna-mente estas ocorrem, foram mantidas por serem formas correntes popu-lares: auogado, amiração, indinou etc.

• A letra y foi substituída pela letra i ou pela letra e, conforme determina a norma em vigor: mui por muy, mãe por mãy, irosas por yrosas etc.;

• A grafia das vogais nasais, isoladas ou em ditongos, foi feita de acor-do com as normas atuais: contas por cõtas, aventejado por avĕtejado, amém por amen, tenção por tençam, salvação por salvaçã, haviam por auião, estão por estam etc.;

• A grafia das vogais átonas e semivogais anteriores e posteriores seguiu os padrões vigentes: tiver por teuer, mentiroso por mintiroso, enfer-midade por enfirmidade, felice por filice, quase por quasi, mortais por mortaes, puser por poser, mulher por molher, descobrir por des-cubrir, Deus por Deos, mau por mao, línguas por lingoas, léguas por legoas, água por agoa etc;

• O símbolo & foi substituído pela letra e;

• Os numerais grafados em romanos foram substituídos por arábicos, ex-ceto na numeração das narrativas: 17 por XVIj, Conto I, Conto II etc.;

• A grafia das consoantes fricativas alveolares surda e sonora, pré e pós--vocálicas, foi feita de acordo com as normas atuais: Lisboa por Lix–boa, experiência por esperiencia, vazou por vasou, quiser por quizer, pusesse por pussesse, sujar por çujar, aceitou por asseitou, cerca por serca, desceu por deceo;

• A grafia da consoante fricativa palatal sonora foi feita de acordo com as normas em vigor: granjear por grangear, lisonja por lisonga;

• A grafia das consoantes velares surda e sonora foi feita pelas normas em vigor: rica por riqua, digo por diguo, ensanguentou por ensanguoen-tou, aluguer por aluger etc.;

• A grafia da consoante fricativa alveolar sonora foi feita pelas normas em vigor, em situações em que havia oscilação entre as letras s e z, e ainda ss: vaza por vasa, (do verbo vazar); quiser por quizer, quiser-des por quizerdes, tesouro por tizouro, pisasse por pizasse; pusesse por pussesse (do verbo pôr), caso por casso, presumir por pressumir, desigual por dissigual etc.;

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INTRODUÇÃO

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• A grafia da consoante fricativa alveolar surda foi feita pelas normas em vigor, em situações em que havia oscilação entre as letras c e ç, ss, s: concelho por conselho, sujar por çujar, possa por poça (do verbo po-der), sapo por çapo, safate por çafate, pressa por preça, promessas por promeças, pretensão por pretenção, cansasse por cançasse, acei-tou por asseitou, aconteceu por acontesseo, couce por cousse, peça por pessa (do verbo pedir), grossíssima por grocissima; certifico por sertifico, certas por sertas, assinalada por asinalada, acessório por acesorio etc.;

• A grafia da consoante vibrante múltipla foi diferenciada da vibrante sim-ples: errei por erei;

• Foram separados os elementos dos vocábulos que aparecem juntos e ajuntados os que aparecem separados, de acordo com a norma vigente: de noite por denoite, conosco por com nosco;

• O acento grave foi usado para indicar as situações de crase não marca-das no original: Prólogo à Rainha por Prologo a Rainha;

• Letras maiúsculas e minúsculas no início dos vocábulos foram usadas nas situações em que as normas atuais o determinam: santos por Sanctos, ermitão por Ermitão, Apóstolo São Pedro por Apostolo sam Pedro;

• O nome Deus, o tratamento Senhor, bem como os pronomes pessoais e possessivos a eles referidos, foram grafados com letra maiúscula;

• O vocábulo spiritu e a abreviatura s., do latim scilicet, originariamente impressos em latim, foram aportuguesados, respectivamente, para espí-rito e isto é.

• A flexão do verbo dar na terceira pessoa do plural do presente do sub-juntivo foi feita pela norma atual: deem por dem.

Em notas de rodapé serão dadas informações sobre erros de impressão (dos quais foram feitas as devidas correções), sobre personagens e fatos históricos, sobre instituições e locais citados no texto, e ainda sobre alguns aspectos consi-derados relevantes para a leitura.

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CONTOS E HISTÓRIAS DE PROVEITO E EXEMPLO

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Primeira Parte

PRÓLOGO À RAINHA NOSSA SENHORA69

Ficando eu nesta cidade de Lisboa, o ano de 1569, muito alta e muito po-derosa Rainha nossa senhora, a tempo que por causa da peste70 (de que Deus nos guarde) quase todos seus moradores a despovoavam, vi tantas cousas que provo-cavam os ânimos à tristeza que quem quisera escrevê-las tinha matéria para fazer grande e mui lastimoso livro.

Porque da contagiosa enfermidade víamos cada dia feridos que sacramen-tar, grande multidão de mortos que enterrar e a muitos órfãos chorar. E em todos grandes necessidades que prover, a que o Senhor socorreu com pessoas virtuosas, que por Seu amor o faziam. Isto é, uns por ũa parte sacramentavam, outros me-dicinavam e davam pola cidade grandes e mui copiosas esmolas, outros enterra-vam. Que, ainda que havia muitos a que acudir, eram tantos os que nestas obras virtuosas se exercitavam, que não ficou cousa sem se prover. Ainda que nisso morreram muitos (por mercê de Deus), não faltaram outros e outros.

Neste tempo de tanto trabalho me tocou o Senhor, alcançando-me tanta parte, que perdi no terrestre naufrágio filha de 24 anos, que em amor e obras me era mãe, filho estudante, neto moço do coro da Sé.71 E para mais minha lástima perdi a mulher, que por suas virtudes era de mi muito amada, que foi causa de grande tristeza minha. Tanto que, ainda que conhecia vir-me (por meus pecados) da mão do Senhor, a carne, que é fraca, com a imaginação se ia cada dia metendo em tristes pensamentos, e tais que me desinquietavam e provocavam a malenco-nia. Tanto, que temi que o imaginar nos trabalhos presentes me fosse perjudicial ao corpo e alma, se Deus me não tivesse de Sua mão (como por experiência adiante se viu em outros).

E com este temor por fugir daquelas tristezas, determinei prender a imagi-nação em ferros. E com ajuda de Deus pude tanto, que ao tempo que ela queria fa-zer chiminés de lamentações, a tirei delas, e a pus a escrever contos de aventuras, histórias de proveito e exemplo, com alguns ditos de pessoas prudentes e graves, do qual esta é a primeira parte.

69 A Rainha a quem Trancoso se dirige neste Prólogo é Dona Catarina (1507–1578), irmã do Im-perador Carlos V e esposa do Rei D. João III, avó e tutora de D. Sebastião e regente do Reino de Portugal de 1557 a 1562.

70 Em 1569, abateu-se uma peste sobre Lisboa em consequência da qual morreram cerca de 60 mil pessoas.

71 Igreja de Santa Maria Maior, Matriz de Lisboa.

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PRIMEIRA PARTE

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E tendo-o de todo acabado, por ser já tempo de saúde, e eu me achar desa-livado das imaginações que foram causa de o escrever, quisera contentar-me com isso, e guardar o livro. Mas vendo que assi ficava o proveito da obra para mi só, e entendendo que nenhum bem é perfeito, se não é comunicado, determinei impri-mi-lo, porque todos gozassem destes contos, os quais, dando gosto aos ouvintes, não carecem de lição.

Mas porém, considerando como sempre (por nossos pecados) há entre nós murmuradores, que não tendo mãos para escrever, têm línguas para danar e den-tes para roer; receando que por minhas faltas me espedaçassem a obra, pois sem elas espedaçam e aniquilam obras de doctos varões, perfeitas e boas; buscando--lhe valhacouto firme, em que o livro estivesse seguro destes combates, achei que não há na terra outro senão Vossa Real Alteza, a que peço que, usando de sua grandeza e costumada liberalidade, que é sempre fazer mercês, ma faça de aceitar este tratado, porque debaixo de seu favor ande seguro, ainda que indigno de tão grande mercê.

E não julgue a temerária minha ousadia, que nasce do desejo de comunicar com todos o prêmio de meu trabalho, esperando em Deus que sairá dele fruto virtuoso. E logo acabarei de imprimir a segunda parte, rogando a Nosso Senhor prospere vida e estado de Vossa Real Alteza por longos anos, com muita felici-dade. Amém.

CONTO I

Que diz que todos aqueles que rogam aos santos que roguem por eles, têm necessidade de fazer de sua parte por conformar-se com o que querem que os santos lhe alcancem. Trata-se ũa história de um ermitão e um salteador de caminhos.

Em princípio desta obra me pareceu bem dizer que, ainda que é muito bom, como o é, rogar aos santos que roguem por nós e nos sejam avogados diante de Nosso Senhor, para nos alcançar o que desejamos; todavia é necessário nós de nossa parte fazer o que podemos, para haver o que queremos, porque se nós faze-mos o contrairo do que rogamos, nunca o haveremos. E quadrou-me um exemplo que disse um padre da Companhia,72 que ensinava no Colégio de Santo Antão em Lisboa, que é:

Em um ermo morava um virtuoso ermitão ao qual se chegou um salteador de caminhos, dizendo-lhe:

72 Trata-se da Companhia de Jesus, ordem dos padres jesuítas, fundada por Santo Inácio de Loyo-la em 1540. Os jesuítas mantiveram-se à frente da educação da sociedade portuguesa até 1759, quando foram expulsos do Reino por iniciativa do Marquês de Pombal.

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– Vós rogais a Deus por todos. Rogai-lhe que me tire deste mau ofício que trago, senão hei-vos de matar.

E ido dali tornava a fazer o mesmo que dantes. E outra vez tornava a vir ao padre, dizendo:

– Vós não quereis rogar a Deus por mi. Pois hei-vos de matar.Tantas vezes fez isto, que ũa veio determinado para matar o padre, o qual

lhe pediu e disse:– Já que me queres matar, tiremos primeiro ambos ũa lájea que tenho sobre

minha sepultura, e morto, lançar-me-ás dentro sem muito trabalho.Ele o aceitou, e assi foram ambos a erguer a lájea. Porém como o salteador

trabalhava quanto podia por erguê-la, assi trabalhava o padre ermitão porque não se erguesse, e desta maneira ambos não faziam mudança na lájea. Atentou o sal-teador no caso e disse assi:

– E se vós não ajudais, como posso eu só erguê-la? Que ainda que eu ergo da minha parte, vós fazeis da vossa com que não aproveite o que faço.

Antes que passasse adiante lhe disse o padre ermitão:– Vês aí, irmão, o que te eu digo. Que me presta a mi rogar a Deus por ti,

pedindo-Lhe que te tire do pecado e mau ofício que trazes, se tu não te queres tirar e estás mui de propósito perseverando nele?

Quis o sábio mestre com isto dizer a seus discípulos que, além das lições e ensino que ele lhes dava, eles de sua parte haviam de trabalhar no estudo por aprender para lhe aproveitar o que ele ensinava.

E assi eu, ainda que tenho desejo de escrever este mês trinta histórias ou ditos, para desenfadamento dos que gostarem de os ouvir, trabalhando de noite, ou para recreação dos que os contarem, caminhando de dia, não basta desejá-lo eu, nem pedir ao glorioso apóstolo São Pedro, cujo freguês sou (a que peço que ele me alcance do Senhor graça para que tudo o que fizer seja bom, e que para Seu serviço e louvor venha esta obra à luz); senão que, com isto que é muito bom, também é necessário que eu corra minha memória, estude, e tomando a pena na mão escreva o que aprendi, ouvi, ou li. E trabalhando eu por minha pessoa, pon-do-me a isto, ajudar-me-ão os rogos do Santo, e por eles me dará o Senhor graça com que esta obra venha a efeito.

E assi todos os que quiserem dos santos que lhes alcancem de Deus Nosso Senhor algũa cousa peçam-lha, fazendo de sua parte conforme ao que pedem, que Deus lho concederá, se for Seu serviço; e não lho concedendo será para seu maior merecimento. Que eu com esta confiança comecei esta obra, e espero em Deus acabá-la em Seu louvor, e para Seu santo serviço.

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PRIMEIRA PARTE

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CONTO II

Que as filhas devem tomar o conselho de sua boa mãe, e fazer seus manda-mentos. Trata de ũa que o não fez, e a morte desastrada que houve.

Ũa virtuosa dona de boa vida tinha ũa filha de tão má incrinação, que não queria tomar os nobres conselhos da mãe, nem aprendia seus louvados costumes. Mas em tudo seguia seu próprio parecer, sem obediência de pessoa algũa, nem correição de vizinha nem parenta, porque era preguiçosa, gulosa, andeja, muito faladeira, e de outras feas manhas.

A mãe como mãe desejosa de seu bem, e de a dar a marido antes que aque-les viços a levassem a torpe pecado, determinou dar a um mancebo tudo o que a pobre velha tinha, porque casasse com a filha, tendo para si que o marido lhe faria fazer com castigo o que ela não podia com ensino, repreensões e exemplos.

E concertada com ele no dote, quis o mancebo que não dessem conta à moça até que ele a fosse ver o dia seguinte, seguindo o conselho do rifão, que diz: “Antes que cases olha o que fazes”.

Foi a velha contente e disse que assi o faria. Porém porque a filha estivesse sobreaviso e não caísse em algũa fraqueza a tal tempo, crendo que para casar to-maria seu conselho, lhe descobriu aquela noite tudo o que passava, dizendo-lhe:

– Filha, toda tua vida seguiste tua opinião, sem querer entender meus con-selhos. Agora te rogo que este dia me ouças e aceites o que te disser.

E com discretas palavras lhe amoestou que o dia seguinte não se erguesse de um lugar, e que sempre estivesse calada fiando ou ao menos com a roca na cinta, porque pois o futuro marido a queria ver, a achasse quieta e ocupada em virtuoso exercício, cousa que as moças sempre deviam de fazer, porque a in-quietação e ociosidade nelas comumente as leva a mui perigosos pensamentos, contrairos da virtude, boa fama e honesta vida. E para mais ajuda fiou a velha aquele serão quase até meia-noite, e pola manhã pôs-lhe à filha ũa grande rocada na cinta, e deixou-lhe as maçarocas que fiara no regaço. Fê-la assentar, tal que à vista dos olhos a quem a não conhecera parecia ũa diligente fiandeira, quase ũa das parcas que fiam a vida.

Porém como aquele não era seu costume, tanto que a mãe desceu à porta (porque havia de esperar ali ao mancebo), a moça deixou a roca, e com diligência fez lume e nele ũa honesta tigelada de papas. E porque se esfriassem prestes, as lan-çou em cinco ou seis escudelas, que logo chegou derredor de si. E soprando e sor-vendo estava a pobre moça mui apressada por acabar sua obra antes de ser sentida.

A este tempo chegou o mancebo à porta, e ainda que viu a velha, e ela a ele, pelo que tinham concertado não se falaram; mas ele subiu manso, por ver em que se ocupava a que ele queria receber por mulher. E a velha o deixou ir, tendo para

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si acharia a filha ao menos com a roca na cinta como a deixara. Mas ainda que ele subiu dez ou doze degraus da escada, ela de ocupada não no sentiu; nem posto que meteu a cabeça em casa o não viu. Mas ela foi dele muito bem vista, e notan-do o ofício em que estava, disse antre si: “Nunca nós faremos boa matalotagem, porque quem tanto e com tal pressa madruga a comer, pouca prol pode fazer: não é esta a que me arma”. E sem lhe falar se desceu.

E a velha vendo-o vir tão prestes lhe perguntou:– Que vos parece, filho, que cuidado de moça?E querendo-lha gabar, porque imaginava que estaria fiando, e mais com a

rocada chea, lhe disse:– Vistes a pressa que tinha e a habilidade de suas mãos, e o que já tinha

despachado? Pois eu vos prometo que daquelas enche e vaza sete no dia.Querendo a velha dizer as rocadas da roca. Mas o mancebo sem descobrir

o que lhe vira fazer, respondeu:– Senhora, não me arma, que se ela é tal não na posso sustentar, e assi estê

em vossa casa. E se as vazar e encher tantas vezes, sejam embora de vossa fari-nha, e não já da minha.

E foi-se. A mãe ouvindo isto foi ver o porquê o dissera, e achou a filha como contamos. E disse-lhe:

– Sem açúcar, filha. Espera, espera, dar-t’-ei um pequeno.E com grande fúria sem atentar o que fazia, que era grande pecado, tentada

do demônio, tirou de ũa boceta um pouco de solimão e polvorejou-lho por cima, que a moça comeu, crendo que era açúcar, tão cega estava. Mas antes de muito, com o ardor e angústias mortais deu o espírito antes de dar fim à sua obra.

Este conto se escreveu para exemplo das filhas, que sejam obedientes a suas mães e virtuosas.

CONTO III

Que as donzelas obedientes, devotas e virtuosas, que por guardar sua hon-ra se aventuram a perigo da vida, chamando por Deus, Ele lhes acode. Trata de ũa donzela tal que é digno de ser lido.

Em ũa populosa vila havia ũa dona honrada, que tinha ũa filha virtuosa, si-suda, recolhida, obediente a sua mãe, temente de Deus, e muito devota da Virgem Nossa Senhora. Grande lavrandeira e alfaiata, tão amiga de seu trabalho, que por ele alcançava com que honesta e meãmente se mantinham ambas das portas a dentro, limpamente tratadas, porque eram as cousas de sua mão tão perfeitas que lhe davam a ela mor preço pelo que fazia que a outrem.

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Que isto têm as semelhantes, que lhes rogam que façam, e per suas virtudes lhes pagam demasiado. E outras, ainda que façam a cousa por menos, não acham quem com elas queira ter conta. E as virtudes semelhantes que esta tinha fazem a quem as tem tal que, ainda que imigos lhe queiram com torpes palavras sobres-semear as danadas tenções do diabo, persuadindo-as a qualquer viço, elas lançam isto tão fora de si, que ficam sempre as mesmas que dantes, e algũas horas mais acendradas, resplandecendo sua virtuosa fama, como aconteceu a esta.

Que fazendo-se ũa voda de ũa sua parenta, e rogada para ir a ela, não quis, ainda que o parentesco o permitia. Porque moças nas vodas muitas vezes são notadas de algũa pequena falta, ainda que a não tenham; e poucas louvadas de virtudes, inda que nelas as haja. E assi se passaram mais de quatro meses em recados, até que a noiva lhe veio a casa rogar que se fosse um dia a sua, o que a moça aceitou mais por comprazer a parenta, que por ela levar nisso gosto.

E chegando a noite, por ser menos vista, com um seu irmão mancebo que àquele tempo viera de fora da terra, saiu de sua casa para casa da parenta. E na rua do próprio caminho estava ũa escola de dançar, a que o mancebo era incrinado, e a estas horas dançavam. E ao passar pola porta da escola fez ũa pequena detença, notando ũa mudança que se fazia. Mas a donzela que não tinha sua imaginação senão no caminho que levava, indo por diante, andava pela rua tão baixo o rosto que o não erguia somente para ver o irmão, que, havendo de ir com ela, lhe ficava à porta da escola de dançar, tão embebido na dança, que se esqueceu do cuidado que devera ter na guarda da irmã que consigo levava. Cousa que todas as mães devem notar, e não deixar ir suas filhas sem elas se não for com pessoa de muito recado.

A donzela que ia andando foi vista de um nobre mancebo, fidalgo de títu-lo, que à porta da escola estava embuçado, por não ser conhecido. E como a viu passar, a poucos passos que a seguiu, conheceu que ia errada e pôs-se-lhe diante fingindo ser seu escudeiro. Encaminhou-a para sua casa, e ela, quando ergueu o rosto, crendo ser seu irmão, lhe disse:

– Iesu, tão longe é isto!E ele, ainda que entendeu, não lhe respondeu nada; mas, como já eram

perto, dissimulando se meteu em sua própria casa, dizendo:– Aqui é.E como a teve bem dentro fez cerrar a porta, e mostrou-se-lhe, e descobriu-

-se a ela quem ele era, pedindo-lhe houvesse por bem haver perdido o paje que trazia e ganhá-lo a ele por servidor, que sempre a teria por senhora, com muitas e grandes promessas que lhe fazia, e ricas joias que lhe dava, com palavras amo-rosas e meigas, que os mancebos discretos a tal tempo acham. Ou, pera melhor dizer, sempre as trazem forjadas para engano de quem as crê e perdição delas, e deles que as dizem. As quais palavras, promessas e dádivas, ainda que ricas, nes-

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ta casta e honesta73 donzela, não fizeram mossa nem nenhum abalo. Antes, com discretas razões lhe pedia não quisesse sujar a nobreza e grande linhagem donde vinha, querendo de ũa fraca e pobre donzela, contra sua vontade, aquilo em que ele não ganhava nada, e ela perdia muito. Porque entendia bem que para casarem ambos, eram mui desiguais, por a pobreza dela e grande fidalguia dele. E doutra maneira, antes lhe deixaria a vida, que deixar a honra e ofender a Deus.

Ele que a viu tão determinada, determinou haver dela por mal o que ela de seu grado não queria consentir. E metendo-a polas casas a dentro, que eram muito grandes, a levou a um jardim, lugar onde, ainda que bradassem, não pudesse ser ouvida. E indo pelas casas, lhe ia tirando das roupas que levava vestidas. E no jardim, querendo efeituar sua tenção, ela que o viu e conheceu que o bradar não servia, por altas vozes que desse, começou consigo interiormente, bradando com o coração, sem expedir voz, a chamar fortemente pela gloriosa Virgem Nossa Senhora, Madre de Deus, de quem sempre foi muito devota, e por Seu precioso Filho, Nosso Senhor Iesu Cristo, pedindo-lhe que, naquele tão trabalhoso trance, em que lhe ia a vida e honra, houvesse por bem de a socorrer e livrar, não consen-tindo tão feo pecado diante Sua Majestade, o qual como sempre socorre aos que de coração O chamam, logo lhe representou sua salvação e lhe pôs na boca e no entendimento o que havia de dizer e fazer. A qual então disse ao fidalgo:

– Senhor, já que caí em vosso poder, em tal tempo e lugar que me não posso defender nem vós me quereis deixar, peço-vos que ao menos não permitais haver ajuntamento comigo, sem me dar lugar que me alimpe de imundícias que, com a pressa do tempo em que me veio, me vieram. E dai-me um pouco d’espaço, em que desviada de vossa presença me possa alimpar, que, já que assi é, aqui me tendes.

E ele que a este tempo se tinha por assegurado dela, crendo que não se po-dia ir pola escuridão da noite, e o lugar em que estava, e mais porque ele a tinha já despedida, sem lhe ficar senão a camisa, quis fazer-lhe a vontade naquilo, por lhe ganhar a sua no mais, e largou-a de si um pequeno espaço, ficando-lhe, porém, o cabo do trançado na mão.

E a donzela, tanto que se viu fora de suas mãos, tirou com diligência o garavim da cabeça, e metendo-o no tronco de ũa árvore, se meteu ela por baixo d’outros e assi foi até chegar ao pé do muro do jardim donde estava ũa nogueira, cujas ramas subindo por cima da parede lançavam muito fora. E com grande âni-mo, nascido do desejo de salvar a honra, trepou na nogueira, e subindo na parede, sem temer a queda, se deixou ir abaixo, em camisa e em cabelo. E assi se achou na rua a tempo que já havia muito que era achada menos do irmão, e dele e da

73 O trecho que se inicia no vocábulo donzela, neste parágrafo, até o vocábulo ou, na expressão “o golpe da queda, ou”, no parágrafo 15, foi transcrito da edição de 1595, pois corresponde a uma página da edição de 1575 que foi arrancada do exemplar.

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mãe buscada per todas as partes que lhes parecia, para a poderem achar. E isto sem preguntar por ela, nem descobrir a perda, por encobrir a honra.

E andando por esta parte, que era detrás das casas daquele fidalgo, sentiram o golpe da queda, ou verdadeiro salto que a moça deu. E acudindo ali, a acharam quase morta da afronta em que se viu e do trabalho passado. E quando sua mãe a viu, e ela viu a sua mãe, parecia que ambas ressuscitaram. E logo quietamente coberta com a capa e sombreiro do irmão se foram para casa, e lá lhes contou o passado, de que a mãe ficou maravilhada. E todos tiveram o caso tão secreto, que da parenta, nem d’outra pessoa algũa nunca foi sabido.

O fidalgo, tanto que lhe pareceu que tardava, ainda que tinha o trançado na mão, porque não lhe respondia chamando-a, foi para ela cuidando que lançava mão de sua pessoa, achou-se abraçado com o tronco da árvore onde o gravim es-tava posto. E sentindo o engano, foi-se para o pé do muro, porém não pola parte da nogueira, que lhe pareceu mais a propósito outro lugar, onde estava ũa morei-ra, que já lhe servira daquele mister, e subiu-se por ela. Mas quando chegou ao alto do muro, sentiu o baque que a donzela deu no chão, o qual era tão desviado de donde ele estava, que por prestes que desceu e foi lá, já quando chegou não achou ninguém.

E como não sabia quem era, nem cuja filha, não soube para que rua iria. E assi, ainda que a buscou, não na achou; e que a achara, já então não lhe aprovei-tara nada, que ela estava recolhida e pouco temerosa dele. O qual se recolheu em sua casa, triste, não porque perdera de gozar a fermosura desta donzela; mas agas-tado por não saber quem era, porque então lhe estava mais afeiçoado que dantes. E imaginando consigo dizia: “Quem menosprezou minha pessoa com as grandes riquezas que lhe ofereci e dava, e me deixou, e quis aventurar a vida, saltando o muro do meu jardim, por salvar a honra de sua pessoa, mais é do que parece, mais fermosura tem dentro da alma, que a muita que tem na presença do rosto”.

E com desejo de a ver e saber quem era, e havê-la por mulher, caiu em cama doente de imaginação. E tanto esteve assi que se secava, e houvera de mor-rer, se não dera conta do caso a ũa discreta dona que o criara. A qual, entendido tudo o que passara, tomou o vestido que foi tirado da moça e foi-se pela vila, dizendo que o achara, que o queria vender, para dar a pobres, pois que lhe não achava dono. E porém que, se algũa pessoa o conhecesse e mostrasse como era seu, lho daria. E isto fazia por saber quem era aquela donzela.

O qual a boa dona fez com tanta sagacidade, que per inculcas veo à própria casa donde o fato era. E visto pela mãe da donzela, parecendo-lhe que por ali podia vir algum dano a sua filha, disse que não conhecia aquelas roupas. E ainda que isto dizia, na alteração do rosto não podia encobrir o sobressalto do coração.

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Mas a donzela, porque suas roupas não andassem pola vila dando ocasião de algũa suspeita, lhe disse:

– Senhora, se quereis vender esse vestido eu o comprarei.A sábia dona a entendeu e lho veo a dar muito barato, e lho fez vestir, como

logo o vestiu, e ficou com ele contente. E a dona foi dizer ao fidalgo a casa e a pessoa que era quem lhe deixou o vestido, porque, como ela andou com aquelas roupas a mor parte da vila, achou o alfaiate que as fez e outros sinais verdadeiros, verdadeira prova que aquele vestido era daquela donzela. E disse ao fidalgo que não era nada o que ele lhe gabara da fermosura e graças da moça, em respeito do que ela lhe vira, que certo por si só merecia ser grande senhora.

E ele, visto e ouvido o que dizia daquela que já tinha feito senhora de si na vontade, folgou muito e aguardou tempo em que soube que estava vestida com o próprio vestido. E então para melhor se afirmar se era ela, se subiu pela escada acima, e de súpito deu com a mãe e com ela e seu irmão, que estavam juntos descuidados de tal vinda. E o fidalgo, tanto que a viu, logo conheceu ser aquela a por quem ele passava os trabalhos que passou desde que ficou sem ela no jardim. E com muita cortesia lhe disse:

– Senhora, ainda que da qualidade de meus pais e avós, por bem de seu título, haja tanta diferença aos vossos, como a há, e esta era razão que a houvera de mi a vossa mercê; todavia pode tanto vossa grande virtude e a constância nela, de que Deus vos dotou, que o pouco que eu podia ter-vos de ventagem em qua-lidade, e muito mais me sobrepujais vós em nobrezas, virtudes grandes e muitas, pelo que eu conheço ficar-vos aquém. E certo que pode comigo tanto ver como vi a diligência que pusestes, em mui licitamente como virtuosa guardar vossa hon-ra, que ainda que dali fiquei escarnido, e pelo caso devera, se fora outro desejar fazer-vos outro escárnio, ou desamar-vos; eu, por quem sou, pelo próprio caso vos amo e vos estimo em muito. E juro e prometo de vos fazer senhora de mi e de todo meu estado, e me pesa porque não é um grande reino. E desde agora vos fico que nunca haverei outra mulher senão a vós, a que peço que agora que vedes tal e tão justo oferecimento, que com a condição que digo, aceiteis fazer-me mercê de me receber por vosso, que me não apartarei de o ser em toda a vida.

A donzela, vergonhosa de o ouvir, e ver que a este tempo se desbarretou e queria pedir-lho em geolhos, se lhe humilhou muito, e tomando-o polas mãos o fez erguer, dizendo-lhe:

– Senhor, são tão grandes as mercês que ora me ofereceis, e eu não mereço, que certo não me acho capaz para tanto bem como de tal ajuntamento me vem. Porém, já que por sua grandeza, sem meus méritos, quer suprir minhas faltas, pode mandar-me como a menor de sua casa, ainda que tenho para mi acertara mais tomando por mulher senhora de casta que lhe fora quase igual.

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Mas ele, que esta pequena detença lhe parecia grande tardança, com ho-mens que para isso trazia, mandou chamar o bispo da terra, que então estava na vila, e em suas mãos jurou de nunca receber outra mulher senão aquela; e ela de o receber a ele por marido. E isto se fez até irem à igreja receber as benções e ce-lebrar suas vodas, como foram depois que se correram os banhos que a Igreja Ca-tólica ordena. E com muito contentamento de ambos viveram sempre, honrando a mãe e o irmão. E a seu tempo houveram filhos de benção, que foram descanso a eles e honra de seus descendentes.

Que assi paga o Senhor àqueles e àquelas que, a respeito de conservar a honra e guardar Seus mandamentos, chamam por Ele e por Sua gloriosa Madre, e por não pecar, aventuram a vida, como esta fez. A qual acabou com seu marido em tal estado, que se presume que por mercê de Deus alcançaria na outra a glória, a que Deus nos leve. Amém.

E por esta donzela se disse o rifão que diz: “A moça virtuosa, Deus a esposa”.

CONTO IV

Que diz que as zombarias são perjudiciais e que é bom não usar delas. Conclui-se autorizado com um dito grave.

Neste reino, em tempo d’el-rei Dom João, o Terceiro,74 que Deus tem, ha-via na corte um senhor de título, conde nobre, virtuoso, muito aceito à pessoa d’el-rei; e ele per si prudente e grave, que sempre teve cárregos honrosos da fazenda. Era ele tão calado, amigo de sessego e quietação, que nem zombando queria ver a outros anojados. E muitas vezes, diante d’el-rei e da rainha, príncipe e ifantes, em serão, onde todos com muito gosto riam e zombavam, e uns tiravam palha com os outros, ele sempre estava calado, e quase que por isso era notado de sotrancão e pesado.

E um dia de muita festa, porque o viu calado, outro senhor grande do reino lhe disse:

– Senhor Conde, pois todos estamos rindo e folgando, e é tempo de festa, aqui diante d’el-rei nosso senhor que leva disso gosto, por que Vossa Senhoria não zomba?

Ao qual respondeu ele mui inteiro:– Senhor, não zombo, porque o zombar tem reposta.Foi este dito então mui notado, e a meu entendimento deve ser encomen-

dado à memória, para não zombar com ninguém, que de necessidade, na hora

74 D. João III (1502-1557), décimo quinto rei de Portugal, filho de D. Manuel I e de D. Maria de Castela, reinou de 1521 a 1557.

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que vos pondes a zombar com um, vos dispondes a sofrer o que ele vos disser. Portanto diz bem a regra de viver em paz: “Não te rias de quem passa etc.”.

E os que zombam dos feitos alheos dão ocasião que lhes descubram os seus. Porque é manha d’açougue que quem mal fala mal ouve; e às vezes de pequena zombaria nasce grande briga. E é melhor ser os homens moderados, quietos, que zombadores, os quais sempre parece que buscam arruídos, e os pacíficos serão chamados filhos de Deus, o qual por Sua piedade nos leve à Sua glória. Amém.

CONTO V

Ao propósito do passado, e é que, já que as zombarias são más, na praça ou na barca são piores. Trata do que aconteceu em ũa barca zombando, e ũa reposta sutil.

A propósito do dito grave que fica atrás, me lembrou um caso que aconte-ceu na barca d’Alcácere,75 indo à feira de Beja.76 E é que, levando vento a popa, ia muita gente assentada no bordo da barca, e da banda da vela estava um homem de Viana77 quebrado, que tinha ũa grande corcova nas costas. E como sempre acontece, indo com bom tempo pendia a barca um pouco à banda da vela. E no outro bordo estava um mancebo de Beja que ia para sua casa, o qual, querendo zombar do corcovado, lhe disse:

– Gentil homem, virai o rosto para o mar, que com o peso da corcova que tendes para fora fazeis pender a barca para lá.

O corcovado picou-se, e levantando os olhos para ele, viu-lhe grande nariz: pareceu-lhe cristão novo. E respondendo lhe disse:

– Mas virai vós o rosto para essoutra banda, que o peso do vosso nariz fará ir a barca direita. E não deixeis de o fazer com pavor da água, que já o dilúvio dela passou, e o que há de vir não há de ser senão de fogo, de que Deus vos guarde.

Este dito em reposta pareceu então a todos os que iam na barca tão agudo que houve entre eles grande risada. E assi o que começou a zombaria sofreu afronta e ficou injuriado. E depois, indo polo caminho, fez outra pior que por se vingar desta. Com outros, saltou com o doente e o espancou, pelo qual foi preso e houvera de ser bem castigado. Mas sobrevieram-lhe ũas febres na cadea de Beja, de que morreu, que parece causar-se sua morte, porque quis tomar gosto e zombar à custa alhea.

Assi que, ainda que é mau zombar, como temos declarado, um por um so-fre-se melhor, que na praça, ou na barca donde estão muitos, porque tanto é maior

75 Referência ao transporte fluvial feito pelo rio Sado, no Alentejo. Este transporte, partindo de Setúbal, passava por Alcácer do Sal: era a rota para Beja.

76 Importante núcleo urbano português do Alentejo.77 Viana do Alentejo, em Portugal.

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a injúria quantos mais são os que a viram fazer. Portanto diz bem o rifão: “Sempre é mau ser zombador, e na barca pior.”

CONTO VI

Que em toda parceria se deve tratar verdade, porque o engano há-se de descobrir, e deixa envergonhado seu mestre. Trata de dous rendeiros.

Em ũa aldea houve dous rendeiros, que tinham a sisa do lugar. E um deles era refolhado, malicioso, e presumindo de prático e verdadeiro, costumava, para assentar sua razão, dizer no cabo do que ele queria afirmar: “A verdade, deixe-ma Deus dizer.” Que a quem notara bem este dito, logo lhe parecera que a não dizia.

Este, por mais sabedor, fazia os partidos, contratos e avenças com as par-tes. E com todos trabalhava por haver algũa cousa na mão, que sem isto era escusado concerto com ele. E tudo o que assi lhe davam tomava para si, sem dar nada ao parceiro.

No cabo do tempo perderam na renda, e foram ambos penhorados, e paga-ram igualmente, tanto um como o outro. De que os vizinhos do lugar (que sabiam o engano) ficaram escandalizados e tristes, porque viam vender a fazenda do que não tomou ceitil, e pagava polo que o outro tinha roubado e comprara herdades. E alguns avisaram ao bom homem rendeiro do engano que lhe tinha feito seu par-ceiro, dizendo-lhe quem lhe dera o dinheiro de fora, e quanto, e por que cousa, de maneira que, se na parceria trataram verdade, ganhavam muito na renda.

O pobre homem fez rol de tudo e citou o parceiro, pedindo-lhe a metade do que levara na mão, da sisa, que ambos como parceiros tinham paga. E em juízo, ainda que pelo rol lhe nomeava pessoa por pessoa, de quem e quanto recebera – o que tudo era verdade –, aquele mau homem tudo negava e dizia não ter nada recebido, dizendo:

– Olhai cá, compadre, se isso fora verdade eu o dissera, que a verdade deixe-ma Deus dizer.

Tanto negou que o pobre homem se via desesperado, e lhe disse:– Vinde cá. Como dizeis que nunca tomastes dinheiro? Pois eu vos vi con-

certar com Genebra, a mulata tripeira que vende o verde, e além da avença vos deu oito réis.

Ele então lhe disse:– Ah, ah, é verdade, compadre, isso si, isso si, que a verdade, compadre,

deixe-ma Deus dizer. Vedes aqui vossos quatro réis que vos pertencem, que assi como vos confesso isso, também vos confessara essoutro. Tomai o vosso embora.

E dava-lhe quatro réis, e negava-lhe vinte, trinta e quarenta cruzados, e mais e menos que tinha levados, de muitas partes com que ele estava rico e es-

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toutro pobre. Mas o bom homem se esforçou, confiando em Deus e na verdade que pedia, pôs libelo contra ele, e provou-lhe tudo o que dizia. E o parceiro foi condenado e preso em ferros, donde esteve muito tempo. E dali pagou tudo o que devia, até o derradeiro real, primeiro que saísse, ficando com tristeza e grande vergonha, porque todos souberam sua maldade.

Por este exemplo, nos negócios e parcerias, se deve sempre tratar verdade, e dar o seu a seu dono. E olhe cada um por si, não o dê depois envergonhado. E nós roguemos a Nosso Senhor que nos dê graça com que não neguemos a ver-dade, que é Ele mesmo Deus. E para que fazendo verdadeira confissão de todos nossos pecados, façamos verdadeira restituição do alheo, em fama e fazenda. Isto porque o não paguemos despois da cadea do inferno, de que Deus nos guarde, e leve à Sua santa glória. Amém.

CONTO VII78

Que aos príncipes convém olhar por seus vassalos, para lhes fazer mercê. E os despachadores sempre devem folgar disso, e não impedir o bom despacho das partes. Trata um dito gravíssimo de um rei, que Deus tem.

Nestes reinos foi um católico e virtuoso rei, que com razão se podia chamar pai da pátria. Diante do qual chegou um mancebo com ũa petição, e o que ela dizia per escrito disse ele per palavra, cuja substância era:

– Senhor, meu pai é contador em um almoxarifado de Trá-los-Montes,79 em tal lugar, o qual comprou com licença de Vossa Alteza. E ele ora está enfermo à morte, tem duas filhas e a mi, e não tem outra fazenda que nos deixe, porque o que tinha deu por este ofício. Pede a Vossa Alteza que, havendo respeito, que há menos de um ano que o comprou, lhe faça mercê dele para mi, porque morrendo possa manter minhas irmãs, ou para casamento de ũa delas, posto que são peque-nas, no que receberá mercê.

Ao que el-rei com bom rosto respondeu:– Fale-me fuão! – que era um senhor de título, veador da fazenda, a que

pertencia prover no caso.E parece ser que por muitas ocupações de seu cárrego e outros impedimen-

tos, ou porque quis dar o ofício a outrem, ainda que o mancebo o importunava, se passou muito tempo que ele não chegou a falar a el-rei no caso, nem o despa-chava. E o pobre mancebo já não tinha que comer na corte, nem vestido com que parecer quando lhe trouxeram novas que seu pai era morto, e o ofício tomado a

78 No texto-base, com erro de numeração, impresso como “Conto VIII”.79 Trá-los-Montes, ou Trás-os-Montes, região situada no Norte de Portugal, na divisa com a Espanha.

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suas irmãs, e dado a outro contador. Pelo qual muito triste e choroso, pola morte do pai, foi dar conta a el-rei, que lhe respondeu:

– Já vos disse que me falasse fuão. Chamai-o, que digo eu que me fale logo nisso.

O mancebo o fez assi. E posto o dito senhor ante el-ei, lhe disse:– Não falei a Vossa Alteza naquele mancebo de Trá-los-Montes, porque o

ofício que foi de seu pai é já dado a outro contador que havia naquela comarca, que eram dous, e este o serve sem mais mantimento que os percalços, porque se contenta com o mantimento que tem de seu ofício. E, portanto, não há Vossa Alteza mister este contador, que já é provido o ofício.

El-rei que o ouviu, com mostras irosas respondeu:– Não faz ao caso: houvéreis-me de falar antes que seu pai morrera, ou

despois, para saberdes minha tenção, já que vos mandei dizer que me falásseis.E repreendeu tanto que ele se envergonhou. E por concrusão disse el-rei:– Que,80 se nós não havemos mister o contador, o mancebo há mister o

ofício.E falando com o mancebo que estava defronte disse:– I mandar fazer a carta, que eu vos faço mercê do ofício. E dizei que ma

tragam logo a assinar.O qual se cumpriu. E ao assinar dela, el-rei deu vinte cruzados em ouro ao

mancebo para o caminho, e lhe mandou que se fosse logo, e que lhe escrevesse da terra como chegara e que tais achara suas irmãs. Aqui se nota a bondade do rei e seu maravilhoso dito, quando disse: “Se nós não havemos mister o contador, o mancebo há mister o ofício”. E a repreensão que deu ao senhor, que o devera pro-ver com tempo, pela tardança do despacho; e a liberalidade que usou dando-lhe pessoalmente, para o gasto que havia de fazer no caminho, para que aprendam os senhores a fazer mercês, e despachadores a aviar as partes.

Ora, eu que o escrevi peço a quem o ler e ouvir que pela alma deste rei tão benigno rezem um Pater-Noster e Ave-Maria, com devação, que Deus lhe perdoe seus pecados. Amém.

CONTO VIII

A propósito do passado. Que os perlados socorram com suas esmolas a seus súditos, e os oficiais de sua casa lhe ajudem. Trata de um arcebispo e seu veador.

Na cidade de Toledo, um ano de muita esterilidade, aconteceu que o veador do arcebispo, mostrando-se muito seu servidor, veo a ele e lhe disse:

80 No texto-base, com erro de impressão: Quee.

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– Senhor, este ano começa mui estéril, e com grandes secas ameaça a todos. E já não se acha trigo nas praças a vender, e pouco pão amassado para comprar. Vossa Senhoria tem em casa muita gente que manter e algũa dela desnecessária, e que a podia bem despedir, porque é escusada. E eu como veador, e que desejo o proveito de vossa fazenda, vendo que a mi toca o cuidado de prover nisto, fiz um rol de todos os que estão em casa, ordenado em duas colunas: em ũa pus os que servem, e Vossa Senhoria os há mister; e na outra os que não servem, e pode mandar despedir. Trago-lho aqui para que o veja.

E mostrou-lhe o rol muito bem escrito e assaz curioso. O arcebispo o to-mou e o leu, e disse:

– Veador, este cuidado foi sobejo, porque vos faço saber que estes que me servem hão de ficar em casa, porque eu os hei mister; e estes que me não servem também ficarão, porque eles me hão mister a mi. E assi uns e outros fiquem todos que Deus proverá. E em cousa de tirar ração ou esmola não me faleis, que não me deu Deus a renda para a guardar. Antes vos mando que saibais pelas fregue-sias da cidade donde estão necessitados e pobres, e a todos se socorra, a cada um segundo sua qualidade, e os filhos e famílias que tiver, dando-lhe do meu celeiro trigo em abastança que comam, que para este ano tal o quero. E crede que aos que entenderem sobre os pobres, socorrendo-os, no dia mau os livrará o Senhor.

Este veador, vendo que lhe não aceitou o arcebispo o conselho que ele de muitos dias trazia estudado por bom e esperava por ele honra e mercê, vendo--se reprendido, envergonhou-se tanto, que pouco a pouco imaginando, caiu em doença, e não conhecendo seu erro, e que o bom era fazer-se como o arcebispo mandava, saltou-lhe fernesis, e cresceu-lhe tanto a enfermidade, que morreu dela fora da casa e do ofício.

Porém o que lhe sucedeu no cárrego de veador do arcebispo sempre fez com diligência buscar os pobres e a todos socorreu em abastança, conforme à vontade do Senhor. E prouve a Deus que a esterilidade não foi tanto avante como se temia, mas Nosso Senhor proveu com bonança e bos temporais. E muitos da terra tiveram para si que a morte arrebatada do veador lhe sobreveo da invenção que buscara contra os necessitados; e que a fartura e bom tempo mandara Deus por orações, jejuns e esmolas do arcebispo.

O qual, a meu parecer, é grande exemplo para perlados, os quais devem ter tanto cuidado dos súditos, em tempo de sua necessidade, para lhes acudir, como no tempo da bonança, para deles se servir. E os que têm a cárrego o cárrego de suas fazendas não lhes pese do bem que fazem, porque não venham a cair em sua desgraça, e fora dos cárregos, mouram com tristeza, como este fez. Porque, conforme a como cada um usar (segundo sua qualidade, acerca dos pobres), assi receberá o galardão de Deus Nosso Senhor.

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CONTO IX

Que há um gênero de ódios tão endurecido, que parece enxerido pelo de-mônio. Trata de dous vizinhos invejosos um do outro.

Viviam em um lugar pequeno dous homens que se queriam mal. E os vi-zinhos e seu prelado haviam feito o que neles era polos fazer amigos. Os quais, ainda que em algum tempo se falavam, como o ódio era de coração, não durava neles a amizade, feita por cumprir com quem lho rogava, ou lho mandava, que logo tornavam como de primeiro.

Durou neles este ódio tanto, que vindo por ali el-rei lhe deram conta disto alguns homens da terra, e el-rei os mandou chamar a ambos. E ante si, per eles e per outros inquiriu o melhor que pôde qual seria a causa, porque sabida, atalhan-do-lhe os princípios se faria a paz. E achou que era pura inveja, que cada um tinha dos bens e fazenda do outro, porque nisto eram quase iguais e abastadamente ri-cos. Porém cada um desejava ver-se aventejado do outro, ainda que fosse à custa de por isso o ver destruído e perdido de todo. E o mal que um queria ao outro, esse mesmo lhe queria o outro a ele. El-rei, desejoso de os contentar a ambos fartando-os de fazenda, porque perdessem a inveja lhes disse:

– Sede amigos, e eu quero que seja à minha custa. E me apraz de vos dar tudo o que souberdes pedir de meu reino, que eu tenha, com esta condição: que um de vós há de pedir à sua vontade tudo o que ele quiser, com que fique conten-te, para não haver inveja do outro, e eu desde agora lho dou; e ao outro que não pedir hei de dar o dobro sem míngua algũa.

Eles, à primeira face, parecendo-lhes bem, o aceitaram e agradeceram, crendo cada um que ficaria aventajado do outro. Porém, quando caíram na conta que, ainda que um pedisse muito, haviam de dar dobrado ao outro, nenhum queria pedir, por não ficar menos que seu vizinho. El-rei entendendo-os, mandou lançar sortes, e ao que coubesse pedir pedisse por força, dizendo-lhe:

– Tu, que queres mais do que souberes pedir? Pede à tua vontade, farta-te, e depois deixa-me dar a estoutro dous tanto, que tu não perdes nada nisso.

Nenhum deles tinha paciência, e per derradeiro lançaram sortes. E aquele a quem lhe coube pedir ficou por isso mui triste. E depois de bem imaginar no que pediria, veio ledo a el-rei e disse-lhe:

– Senhor, já sei o que hei de pedir. E se mo deres, cumprindo tua palavra, ficarei contente e amigo de meu vizinho, dando-lhe a ele o dobro.

E el-rei lho prometeu sem falta. Ele se pôs em geolhos e lhe beijou a mão pela mercê. E logo lhe pediu:

– Dê-me Vossa Alteza um destes meus olhos aqui posto na minha mão.El-rei, maravilhado do que pedia, lhe disse:

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– Iesu! E por quê?E o homem tornou a dizer:– Porque, conforme à promessa de Vossa Alteza, se me tirarem um olho a

mi, hão-lhe de tirar dous olhos a ele. E assi vendo-lhe eu este dano me contento, e quero que me arrinquem um olho a mi, por lhe ver arrincar dous a ele.

Foi muito de espantar a crueldade deste, e ver o endurecido ódio que am-bos se tinham. Queira Deus por Sua piedade e misericórdia que não haja entre nós tal, senão que todos em caridade nos amemos uns a outros, por amor de Nosso Senhor Iesu Cristo, que com o Padre e Espírito Santo vive e reina por sempre sem fim. Amém.

CONTO X81

Que diz que as filhas notem quanto devem a seus pais, para os ter em muita veneração e prover em suas necessidades. Trata de um pai que, por casar sua filha, se fez vender a um rei mouro por escravo.

Um homem sabedor, grande leterado, veio à pobreza, tendo ũa filha para casar donzela, que passava de 24 anos. Filha de tal pai, ainda que criada sem mãe, era tão virtuosa que per si só merecia todo bem. E nem com isto achou seu pai naquele tempo quem a quisesse aceitar por mulher, para a tratar conforme a seu merecimento, se não lhe dessem três mil cruzados em dote com ela.

Para o qual o bom velho, que àquele tempo seria de quarenta e oito anos, não tinha outra cousa senão sua pessoa e alguns livros que, para justa estimação, em venda, não valiam duzentos cruzados, ainda que na arte e ciência de que trata-vam eram de tanto preço que o não tinham, para quem os entendesse.

Este homem, confiado primeiramente em Deus, de que mana todo o bem, e depois em sua prudência e sabedoria, determinou pôr-se a toda afronta e traba-lho por casar sua filha. E isto porque deixar de as casar a tempo que sua idade o requere, se os pais podem, é ocasião que algũas vezes elas caiam em fraquezas e erros a que depois se não pode acudir; e outras vezes em tais infâmias e pecados que juntamente perdem corpo e alma. E os pais que as deixam de casar, podendo, também acontece perder o que tinham para casá-las e as vidas. E elas ficam vir-tuosas e sem remédio, tal qual lhes é necessário, como vemos muitas.

Pelo que, concertando-se este bom homem com um discreto mancebo de até trinta e cinco anos, com quem lhe pareceu que estaria sua filha honrosamente casada, lhe prometeu os três mil cruzados que ele pedia, com esta condição: que

81 Este é o primeiro dos três contos censurados pelo censor do Tribunal do Santo Ofício, os quais só aparecem na edição de 1575.

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fossem ambos da banda d’além do mar, na cidade de África,82 e o genro levasse ao sogro em nome de escravo e o oferecesse a el-rei por peça de grande preço, que ele confiava em Deus e de si que lho compraria; que lhe pedisse os três mil cruzados e mais despesa para tornar a estas partes, com os quais se tornaria a fa-zer vida com sua mulher, perdendo o cuidado dele, que se saberia dar tal manha que cedo tornasse a vê-los. Isto, ainda que foi refusado muitas vezes do genro e da filha, a qual dizia:

– Antes não quero casar em meus dias que perder por isso a presença de meu pai, e tê-lo em cativeiro.

O bom homem, por ver a filha casada, perfiou tanto com ela e com o genro que, confiados em Deus e no saber e astúcia do velho, o vieram a aceitar e cele-braram o matrimônio. E antes de se consumar, o genro levou ao sogro por escravo a África. E presentado diante d’el-rei lhe disse que aquele escravo era peça de preço, que lho comprasse, porque a ele só pertencia. El-rei lhe perguntou que habilidades tinha, e o cativo disse de si:

– Senhor, sou bom pensador de cavalos e conheço-os todos bem; sou lapi-dairo, conheço a pedraria e o justo preço dela; e dos homens conheço muito, que na vista, se os vejo falar com algum senhor, sei se trazem dobrez nas palavras, se são tredores, ou vêm com engano. Estas três cousas tenho por principais, sem outras muitas acessórias de grande importância. Que te afirmo que, se me com-prares, antes de três anos, se eu os viver, com ajuda de Deus, te hei de ser tão bom, que te farei salvar fazenda de ouro que valha mais de trinta mil cruzados. E além disto livrarás tua pessoa e reino de grande afronta, ficando-te contentamento grande, que não tenha preço, com vitória de teu adversário e grande imigo.

El-rei, des que ouviu isto, aceitou o escravo pelo preço, não por medo dos medos que lhe fazia; mas era homem mancebo, liberal e curioso, quis dar tudo o que lhe pediram por ver a habilidade daquele que em tanto se estimou. Mandou o pagar.

E o genro tomou o dinheiro e tornou-se para Portugal a celebrar suas vodas, como fez, ainda que com muita tristeza de sua mulher pola ausência do pai, a qual lhe durou até que o viu tornar com contentamento, como se verá nesta história.

Ora, inda que não passássemos adiante, aqui temos exemplo maravilhoso do muito que as filhas devem aos pais, por isto que este fez por sua filha. Pois, por ela, pola casar e dotar, se ausentou de sua terra, se fez cativo de gente de bárbara nação e fora de nossa fé católica, ficando, como ficou, na estrebaria daquele rei, tendo-lhe cárrego de mandar prover e limpar os cavalos que eram muitos. E para que o fizessem a seu modo, muitas vezes o fazia ele em pessoa. E tinha nisto tanta

82 Antiga e populosa cidade da costa africana, que os gregos chamavam Aphrodisium, os romanos Fanun Veneris e os árabes Melchedia, em homenagem ao califa Melchedi.

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graça e sabia mandá-lo fazer por tal ordem, que todos folgavam de servir e fazer o que ele mandava per sua indústria e regra, que era tão acertada que, à vista dos olhos, engordavam os cavalos e eram ensinados a boas manhas, assi para em tempo de paz como de guerra.

E visto isto por el-rei, o fazia tratar a ele não como escravo, mas como a senhor dos escravos da estrebaria.

Passados alguns dias, quase como um ano, veo a el-rei um homem man-cebo, muito vermelho da barba, ao parecer levantisco lapidairo. O qual, entre muitas joias que mostrou a el-rei, lhe disse se lhe queria comprar um anel com ũa pedra, olho de gato,83 que logo lhe pôs na mão – e era limpa, perfeito o olho de grandíssimo lustro, muito fermosa, e o anel curiosamente acabado –, e que lho daria a peso d’ouro somente. Mas que soubesse que pesava muito, porque depois, arrependendo-se, não se chamasse ao engano.

El-rei teve o anel na mão, viu a pedra – contentou-lhe – e disse:– Que pode este pesar? Eu o quero e pese o que quiser.E logo trouxeram balança e cruzados. E posto o anel de ũa parte, ainda que

da outra puseram tantos cruzados, que parecia haver neles trinta vezes o que o anel podia pesar, nem por isso a balança fez mudamento. De maneira que trouxe-ram maior balança, tanto que levava arrobas. E chea de moeda e peças de ouro, não fazia mudança nenhũa no anel, mas parecia que a concha em que ele estava posto estava pregada no chão.

Fez isto grande admiração a el-rei e a todos os que o viram, e esteve muitas vezes por dizer que não queria o anel. Mas como era homem mui liberal, por não ser notado de avaro e que, por não dar dinheiro, deixava de cumprir sua palavra; e mais, havendo-lhe dito primeiro que pesava muito, deixava trazer ouro, porque como curioso queria ver o cabo daquela aventura. E assi trouxeram tanto, até que os próprios que o traziam se agastaram e, polo não trazer, disseram que não havia mais. E o lapidairo se contentava que trouxessem prata.

Estando a cousa nestes termos, el-rei se lembrou do escravo, que comprara por três mil cruzados e estava na estrebaria, o qual lhe havia dito que era lapidai-ro. Mandou por ele, contou-lhe o caso, mostrou-lhe o anel, o qual o tomou na mão e, tanto que o viu, disse:

– Senhor, conhecido é o engano. Tu o pagarás a peso d’ouro como o com-praste, e cumprirás tua palavra, e teu tesouro te ficará inteiro, e o vendedor irá po-bre e escarnido, como ele te queria deixar. Que sabe que isto não é pedra olho de gato, mas é verdadeiro olho de homem artificialmente composto, que, ainda que está fora do casco da cabeça que o trazia, tem sua vista perfeita, e sua inclinação, que não se contenta nem farta com cousa algũa do mundo, porque tudo o que nele 83 “Pedra preciosa de cores cintilantes, como as dos olhos dos gatos” (SILVA, 1922, tomo II, p. 363.)

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há é pouco para a cobiça do homem, que com nada daqui está contente e farto, senão com Deus, a cuja imagem e semelhança é feito. Este tredor que trouxe este anel cuidou deixar-te perdido e pobre, levando-te teus tesouros, porque quanto este olho vira, tanto havia de pesar. E para prova espera.

E então cuspindo no olho do anel, lançou-lhe ũa pouca de terra em cima e disse:– Agora está este olho cego. Pesa-o e paga-lhe como concertaste e ele con-

certou contigo.Foi feito isto com tanta presteza, que o vendedor, ainda que quisera, o não

pôde estrovar. E o anel com a terra no olho se pesou em ũa pequena balança e pesou oito ou dez cruzados, aquilo que na verdade tinha de peso natural. E assi o pagou el-rei, de que o lapidairo foi mal contente. E dizendo entre si que ele se vingaria, não ousou esperar por não ser conhecido e descoberto, que logo lhe pareceu que quem conhecera o anel o podia conhecer a ele, se atentasse nisso.

E ido o lapidairo, el-rei fez avaliar o ouro, peças e dinheiro, que estavam ali para dar polo anel, e foi posto em mais de quarenta mil cruzados. Lembrou-se el-rei que aquele escravo lhe prometeu de lhe salvar fazenda de ouro, que valesse mais de trinta mil cruzados. Teve-o por verdadeiro e pareceu-lhe que assi o seria no mais que também lhe prometera fazer. E dali por diante foi melhor tratado que dantes, mandando el-rei que o servissem e honrassem. Andava a cavalo, onde e como ele queria, tão livre e tão servido, como se fora o principal senhor da terra, depois da pessoa d’el-rei.

Que isto têm e alcançam os verdadeiros e leais servidores, que, quando eles são tais e fazem o que devem, os senhores os tratam e honram como é rezão. E como este rei fez: que de escravo cativo, por seu bom serviço, o tinha já feito senhor; e pelas boas manhas que tinha, o fez livre e grande seu amigo.

Estando isto assi, daí a dous anos, ou quase tempo que lhe pareceu àquele mau homem que não se lembravam dele, ou seria morto o que conheceu o anel, estando el-rei a ũa varanda que saía ao campo, viu vir um homem de meã idade, a barba quase branca, comprida: parecia mouro da terra, vestido à sua guisa, em um cavalo castanho, fermoso, bem ageazado, à gineta. E ele de si e sua postura dava muita graça e ar.

El-rei, tanto que o viu, o chamou, perguntando-lhe donde houvera aquele cavalo, a que o mouro com muita cortesia respondeu:

– Senhor, em Fez84 o comprei a um judeu, que me disse o comprara em Arzila,85 de um castelhano que o criou em Xerez,86 e vendeu-lho ao judeu cuidan-do que era cristão, e que o queria para bem da terra (que então era d’el-rei Dom

84 Importante cidade do Marrocos, grande centro comercial nos séculos XV e XVI.85 Cidade do Marrocos fundada pelos fenícios.86 O mesmo que Jerez de la Frontera, cidade espanhola da região da Andaluzia.

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Afonso, o Quinto destes reinos87). E o judeu, tanto que o houve, buscou maneira para fugir, o qual pôde bem fazer em cima dele por sua grande ligeireza. E assi o trouxe a Fez donde, como digo, lho comprei, dando-lhe por ele grande preço.

– Vende-mo – disse el-rei –, que eu to mandarei pagar como tu quiseres. Porque me parece fermoso, levarei gosto de o ter na minha estrebaria.

E o mouro, humilhando-se, lhe disse:– Senhor, eu para mi o quisera; porém, já que levas gosto nisso como dizes,

hei por bem fazer-te serviço. E para que vejas que é melhor nas manhas do que te parece fermoso nas feições e cor, cavalga nele e, contentando-te, como me parece contentará, eu te faço serviço dele, que me hei por bem pagado em ver-te em cima de tal peça como esta.

El-rei, desejoso de lhe comprar o cavalo, disse que esperasse que logo des-cia. E fez saber ao seu estribeiro onde e a que queria ir: que viesse logo ali. E o estribeiro mandou chamar o cristão cativo, que já mais que livre se podia chamar, que assi andava na terra. E na verdade não era necessário chamá-lo, que ele sabia já tudo, porque viu o mouro a cavalo e ouviu as razões que passara el-rei com ele. E estava prestes com que entendia fazer, porque conheceu ao mouro e cavalo.

E assi, quando lhe chegou o recado, estava em cima de um cavalo murzelo muito grande, e tinha alguns sinais que pareceu aos que o viram não ter visto aquele cavalo na estrebaria d’el-rei até então, nem ali sabiam donde viera. E mais tinha selados outros quatro cavalos, isto é, três para levar de destro a el-rei e um em que fosse o estribeiro. Com este aparato chegou e, o estribeiro a cavalo, foram ambos ao pé da varanda, donde já el-rei era chegado.

E tanto que o mouro do grande cavalo de Espanha viu el-rei, antes de ver ao estribeiro que vinha com os cavalos e companha que ouvistes, lhe disse:

– Senhor, cavalga e verás que tal é, que eu não quero outra paga senão o gosto de te fazer este serviço, e de te ver em cima dele, pois me foi pedido por ti, que era o que eu desejava.

El-rei, agradecendo-lhe os oferecimentos e prometendo-lhe a paga dobrada do que merecesse, desceu e, querendo cavalgar, o mandou apear. Mas ao tempo que punha a mão no arção dianteiro, antes de pôr o pé na estribeira, chegaram o seu estribeiro e o cristão, como dissemos que vinham. E tanto que viu a el-rei naquela postura, o cristão, dando grandes brados, disse:

– Tá, tá, Senhor, não cavalgues!

87 Referência a um rei, D. Afonso V, que tanto pode ser o de Portugal, chamado o Africano (que reinou de 1438 a 1481), como o de Aragão e da Sicília, chamado o Magnânimo (que reinou de 1416 a 1458). Seja como for, esta referência remete a narrativa a momento bem anterior ao de vida do autor.

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E chegando-se perto, lançou mão do cavalo d’Espanha e fez cavalgar a el-rei em um dos que para ele trazia. E disse-lhe:

– Senhor, antes de te dizer o que quero, faze estar preso este mouro e, a re-cado, não se me escabula a pé, escondendo-se, que a cavalo eu estou assegurado.

E o mouro foi preso. E procedendo o cristão na fala, disse:– Este é o lapidairo que, cuidando de te enganar, te trouxe o anel com o

olho de gato fingido pelo qual te levava tanto tesouro, se eu não te descobrira o engano. E agora, por se vingar da perda que então recebeu, quisera-te fazer subir neste cavalo, o qual verdadeiramente não no é, mas é o maior porco montês que se criou em nenhũa montanheira, e artificiosamente está parecendo cavalo, para perdição dos que cavalgarem nele, se se não souberem guardar da água. Que te faço saber que o desejo deste porco é meter-se em algũa ribeira, ou alagoa, para nela se espojar, e assi sair da sujeição em que ora está. E tanto que chegar a ela, o há de fazer e ali afogará a quem se achar em cima. E se ele trabalhar por fugir da água, a couces, ou com grandes colmilhos que tem, e ora não se parecem, lhe dará a morte, que este tredor te ordenava. Para prova do qual faze a ele mesmo que torne a cavalgar nele e passe esta ribeira que está ante nós, e verás maravilhas. E não temas que por estar a cavalo possa fugir, que para isso trago eu suficiente remédio.

E el-rei mandou que se fizesse tudo como o cristão dizia: e o mouro foi posto a cavalo. Mas a este tempo tirou o cristão o freo ao cavalo em que ele ia, saltando dele fora. Subiu em um dos d’el-rei, e viram todos claro que o cavalo do cristão era um grande sabujo ou cão de filhar. E disse:

– Este trago para o tomar feito porco se me quiser fugir.E assi acabaram de fazer cavalgar ao mouro, em que lhe pês. E subiu no

cavalo de Espanha que, como de sua inclinação desejava ir à ribeira, sem lho ro-gar encaminhou para ela. De que o mouro, ainda que quis e o cometeu, não pôde fugir, por estar ali quem lho impedisse. E assi foi o cavalo à água. E tanto que molhou os pés, se espojou todo. E o mouro quisera depressa sair fora da água, mas antes que o fizesse, tornando-se o cavalo porco montês, como era, trabalhava polo matar. E fizera-o facilmente, se a este tempo el-rei o não socorrera, mandan-do soltar o sabujo, que logo tomou o porco, e pola gente de pé que ali estava foi morto, e o tredor preso. E confessando que fazia aquelas treições a este rei a rogo de outro que lho pagava, foi cruelmente morto por justiça.

E para agradecer ao cristão o que por ele fizera, lhe rogou muito que acei-tasse ser rei igualmente com ele, que o queria por irmão e amigo, e que sem dúvida seria obedecido em tudo, como sua pessoa própria, o que o cristão não quis aceitar. Mas deu-lhe conta da filha e genro que tinha, e como pela casar se fizera escravo, sendo livre. Pediu-lhe que lhe desse licença para a visitar. E el-rei,

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visto os grandes serviços que dele recebeu, lhe deu liberdade, ricas joias para a filha e grande tesouro que levasse para si. E lhe rogou que se lembrasse dele e o visitasse. E o cristão lho prometeu e o cumpriu, visitando-o e socorrendo-o em ũa grande necessidade que teve, em que tinha a pessoa a ponto de morte, com perdição de seu reino, como se verá na segunda parte destes exemplos, em um conto que fala deste rei.

E despedido o cristão da corte, com muita riqueza, veo a este Reino, donde achou seu genro e filha bos, prósperos e ricos, e de saúde. E tinham já um filho, que depois foi grande homem em riquezas, per indústria de seu avô, havidas daquele rei de África. Uns e outros se alegraram de se ver, que a filha perdeu a tristeza que tinha, vendo a presença de seu nobre pai e o grande tesouro que tra-zia. E tornou-se-lhe toda em muitos contentamentos e gostos, que tais os dá Deus às filhas que amam e honram aos pais. E o velho também passou seu tempo em conversação da filha, genro e neto, com grande alegria, que assi a dá sempre o Senhor a quem, fazendo o que deve, serve lealmente e trabalha por amparar suas filhas, como este fez. E elas, sendo virtuosas, não desesperem da misericórdia de Deus, que Ele tem cuidado de lhes chegar a boa ventura, quando Ele é servido. Que por serviços e honras feitas pelas filhas a seu pai lhe dá Deus aqui vida, e no outro mundo a glória.

CONTO XI

Que nos mostra como os pobres com pouca cousa se alegram. E é um dito que disse um homem prove a seus filhos.

Perto da cidade do Porto, onde chamam Paço de Sousa, havia um pobre homem que tinha seis crianças, antre filhos e filhas, de que alguns eram de 17 ou dezoito anos, e dali para baixo. E tendo-os a todos derredor de si, um serão, sobre cea de boroa e castanha, derredor do lume contentes, olhou para eles e viu-os tais que o melhor arroupado, se tinha camisa, não tinha pelote; se pelote, sem man-gas; e se mangas, sem fralda. E todos descalços e sem barrete, nem coifa. Assi que todos seis se cobriam com fato, que para bem não bastava a um, e esse muito velho e mui esfarrapado, que quase não prestava. E vendo-os tais, disse à mulher:

– Ouvis? Lembre-vos amanhã (se Deus quiser) que peçais a minha comadre Briolanja de Paiva ũa quarta de linhaça emprestada; semeá-la-emos, e com ajuda de Deus haveremos linho, de que façamos no verão caçotes para estes cachopos.

Os filhos, tanto que o ouviram, saltando no ar, com muito prazer, diziam uns para os outros, rindo:

– Ai caçotes, mana, ai caçotes!Tanto riram e folgaram, estando ainda nus, que o pai disse:

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– Oh! dou ó demo a canalha, que como se sentem vestidos não há quem possa com eles.

CONTO XII

Do que acontece a quem quebranta os mandamentos de seu pai, e o pro-veito que vem de dar esmola, e o dano que sucede aos ingratos. Trata de um velho e seu filho.

Em ũa quintã, junto da cidade de Ferrara, vivia um nobre cavaleiro, virtuo-so e muito rico. O qual, chegando por velhice à última hora da vida, chamou ante si um só filho que tinha, ao qual disse:

– Amado filho, ainda que te deixo muita fazenda, vou desgostoso desta miserável vida acerca de ti, porque me parece que não ficas bem advertido de tudo o que te cumpre fazer, para te saber valer neste mundo com os homens e para com Deus Nosso Senhor. Pelo qual te rogo que, para minha consolação, antes que moura, me prometas de fazer o que te deixar por conselho, que certo tudo te será necessário e proveitoso; e que depois de meus dias o cumpras como agora to pedir.

O filho lhe prometeu tudo o que o velho lhe pedia, dizendo-lhe:– Dizei, senhor pai, o que quiserdes, que eu o cumprirei.E o velho, esforçando-se um pouco, disse:– O primeiro é que te contentes de morar nesta quintã, como eu ora moro e

sempre morei, a qual é ũa boa e grande herdade, e não queiras ir morar na praça da cidade, que é lugar dos mercadores. Segundariamente, nunca, sem o duque to pedir, lhe faças presente de cousa algũa, que acontece, por lhe fazer presente ũa vez de cousa que se ofereceu acaso, querer ele dali por diante, em outro tal dia ou tal tempo, outro tal presente quase de foro. E quando assi é, ficas foreiro, tribu-tário para adiante, por caso do que tu deste sem to pedirem. Seja o terceiro que, assi como não lhe dás, não lhe peças, principalmente cousa contra o que for jus-tiça; nem sejas contra os ministros e oficiais dela; nem impidas fazer-se execução no castigo daquele que for púbrico malfeitor, homicida, salteador, testemunha falsa; nem rogues por estes tais, nem por outros semelhantes. Mas deixa fazer deles o que por seus desméritos a justiça permitir, ainda que lhes possas valer. E o quarto e último que te encomendo é que segredo que relevar honra ou vida não no descubras a ninguém, porque se tu não guardas o que tanto te releva a ti próprio, como esperas que to guardará outra pessoa algũa? E nisto do segredo te guarda, principalmente de tua mulher, porque todas no geral são mudáveis, e por pouca cousa que lhe faças se pode anojar contra ti, e descobrir-te o segredo que te releva. Ainda que o melhor para guardar o segredo é em tudo o que fizeres tem

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a Deus diante dos olhos, cuida que Ele vê o que fazes, e assi não farás cousa que hajas mister encobrir, porque todas serão boas.

Isto tudo o filho ouviu e o entendeu, e aceitou de cumprir como o pai lhe pedia, prometendo-lhe sem falta. E o velho com isto acabou a vida contente, parecendo-lhe que seu filho cumpriria o dito e que, cumprindo-o, haveria bom sucesso em todas as cousas da vida presente, e que para a outra haveria a glória.

Morto o pai, logo naquele primeiro dia o mancebo determinou de fazer o contrairo do que seu pai lhe rogara. E isto não com tenção determinada de ser contra Deus Nosso Senhor, nem contra Seus mandamentos; mas para ver que dano lhe podia vir de morar na praça, ou de fazer presente ao senhor da terra, ou de rogar pelo malfeitor88 e fazê-lo perdoar se pudesse, que todas estas três cousas lhe pareciam a ele mais virtuosas, boas e honra sua que o contrairo. E quanto ao descobrir do segredo, logo propôs de descobrir algum que fosse fingido haver feito o que não fizesse, para que, se se descobrisse, não fosse verdade e pudesse mostrar o contrairo. E em recompensa deste agravo que fazia a seu pai, junta-mente com isto, propôs de dar tantas esmolas e fazer tanto bem a todos os que o houvessem mister, por amor de Deus e pola alma de seu pai, que ninguém lhe pedisse cousa que, podendo-a dar, a negasse.

E com esta determinação, começando a ser contra os conselhos do pai, comprou ũas casas na praça, melhorou-as, fê-las grandes e vistosas e foi-se morar a elas, com sua mulher e família, deixando a quinta, que era a melhor da terra. E o primeiro ano que morou na cidade fez presente ao duque de dous potros de pouca idade, de grandes e bem proporcionados membros, fermosas cores (os quais lhe nasceram de suas éguas na sua herdade), que o duque recebeu e estimou em mui-to. E para lhos pagar o mandou chamar. E porque o mancebo não quis paga, lhos agradeceu com palavras meigas, mostradoras de grande amor.

E sem lho pedir, o mesmo duque deu ao mancebo um seu alvará de lem-brança, feito per sua mão, em que lhe prometia dar qualquer cousa que lhe pe-disse, donde, como e quando ele quisesse, ainda que importasse a metade de seu senhorio, o qual alvará o mancebo tomou e guardou. E assi ficaram as cousas deste mancebo em grande reputação com o duque que lhe tinha muito amor por suas boas condições, graças e habilidades, e pelas boas manhas que tinha em to-dos os exercícios de homens.

E por outra parte, com todo o povo estava muito melhor, se melhor se pode dizer. Porque, como disse, desd’o primeiro dia que veo a morar na cidade, sempre deu tantas esmolas a todos, que não havia pessoa em toda a terra que padecesse necessida-de a que ele não provesse logo, e em muita abastança. E porque todos sabiam isto dele,

88 No original mao feitor, a par de cinco outras ocorrências do termo neste mesmo conto, nas formas malfeitor (uma ocorrência) e mal feitor (quatro ocorrências).

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todos lhe pediam, isto é, os pobres para si e os ricos para outros envergonhados que, por não se mostrar pobres, o não queriam pedir, e passavam trabalho.

Isto foi tanto e de tal maneira, que em toda a cidade e alguns derradores não havia pessoa que (dentro em quatro anos) não lhe houvesse pedido algũa cousa, que ele nunca negou a nenhum, ainda que fosse grande e de importância. E a alguns dava sem lho eles pedirem, não esperando que se envergonhassem nisto. E ao duque principalmente, a que sempre servia com algũa cousa da sua quinta, com que conservava a grande amizade e afeição que lhe tinha. O que tudo ele podia bem fazer, pelas grandes riquezas que lhe ficaram do pai e a muita renda da sua herdade.

Neste tempo vieram novas ao duque, que ũa jornada da cidade andava um famoso salteador que, saindo do monte às estradas e encruzilhadas de caminhos, por detrás de alguns valados, à besta ou à espingarda matava aos caminhantes, e saía a eles e os roubava de tudo o que traziam; e que andava nisto tão encarniçado que não perdoava pessoa nenhũa, grande nem pequena, ainda que fosse do sexo feminil ou mostrasse no hábito muita pobreza, porque de tudo lançava mão. E era tão destro e manhoso no resguardo de sua pessoa que, havendo muito tempo que isto usava, não podia ser achado em parte que o pudessem prender.

Do qual o duque tomou grande desprazer e mandou muita gente por diver-sos lugares daquela comarca que lho buscassem e prendessem, aos quais avisou que o não matassem, porque o queria vivo, para pubricamente se fazer dele a jus-tiça, que os tais merecem. A qual, ainda que concluia e venha a parar em dar-lhe por derradeiro a morte, quando é com tormentos disformes e graves, faz terror no povo, pondo espanto, e escarmentam alguns (se os há na terra) mal inclinados.

E esta gente foi com tanta diligência e deram-se tal manha que, ainda que custou muito, o trouxeram preso diante do Duque. O qual, com os do seu con-selho ou desembargadores de sua casa, mandou que fosse arrastado pelas ruas púbricas e praças de toda a cidade, e que ao pé do pelourinho lhe cortassem am-bas as mãos, fosse enforcado e esquartejado, e os quartos postos pelas estradas e caminhos, lugares de seu delito.

E tirando-o da cadea para se executar nele a justiça, aquele mancebo, a que seu pai encomendou tanto que nunca pedisse malfeitor, nem cousa contra justiça, vendo aparelho para quebrar aquele conselho do pai, se foi logo ao duque. Levan-do consigo o alvará de lembrança que lhe dera, lhe disse:

– Senhor, lembra-vos o que me prometestes por este vosso alvará? Agora vos peço que mo cumprais. E quero que me deis aquele homem que levam a pa-decer, solto e livre e sem aleijão, e tal como se nunca fizera delito, nem outro mal, e que possa morar e estar em esta terra, ou onde ele quiser.

Tanto que o duque isto ouviu, pesou-lhe muito e, respondendo-lhe, disse:

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– Ele não vos é divido nem parente. E que o fora, bastava ser tão mau ho-mem como é para mo não pedirdes, nem eu vo-lo dar. Rogo-vos que não impidais fazer-se nele justiça, que recebo nisso gosto, e faço o que devo e sou obrigado. Lá virá tempo que eu cumpra o que vos prometi e vos dê cousa que a vós vos aproveite, e eu leve contentamento de a dar, que vos devo muito e vos farei mercê melhor do que vo-la prometi.

Por estas, nem por outras razões que o duque lhe dava, nunca o mancebo quis desistir do que pedia. Mas com grande instância o importunou que lhe cum-prisse sua palavra. E sem lhe dar nisto nenhum tempo nem lugar, lhe deu tanta guerra que o duque, irado, lhe disse:

– Deem-vo-lo. I-vos de diante de mi!E rompendo o alvará, lhe mandou entregar o homem como pediu. E porém

que o próprio mancebo não lhe parecesse mais diante, nem entrasse em sua casa. E assi se fez, e o malfeitor ficou sem castigo e solto. E o duque muito agastado por isso e menencório do mancebo, porque lhe pediu cousa tão fea. E desde aque-la hora converteu o duque em ódio toda a afeição que lhe tinha.

Oh, como é isto do mundo! E quão certo com os privados dos reis e senho-res! Que ũa hora de desgosto faz perder serviço e privança de muitos anos, como se vê cada dia entre nós. E se viu no condestabre de Castela, Dom Álvaro de Luna, que privou com el-rei Dom João, o Segundo,89 36 anos, que quase governava o reino e o rei, e per derradeiro veo a morrer descabeçado em púbrico cadafalso.

E agora se vê neste mancebo que, havendo cinco ou seis anos que servia com dádivas e presentes grandíssimos, tendo-lhe dado aquele alvará sem lho pe-dir, se anojou o duque tanto contra ele, quando lhe pediu um homem a que rogou dessem a vida. Olhem os reis e senhores como passam estes alvarás, e que sejam tais que não lhes pese de os cumprir. E os privados não confiem em sua privança, que tudo acaba, senão amar a Deus.

Olhem que este era no Ducado de Ferrara a segunda pessoa depois do duque, per próprios méritos, e ficou em tanta desgraça com o duque, que o não queria ver nem ouvir falar dele. E se por ser benquisto de todos, como era, alguém diante do duque lhe louvava algũa manha, que as tinha todas boas, ou dizia algum dito ou feito de sua pessoa, que os havia nele famosos, pesava-lhe de o ouvir e mandava-os calar, tudo a fim de lhe apagar o nome; e com desejo, se se oferecesse em quê, de lhe acabar a vida.

Portanto, os que privam, por mais que privem, não peçam aos reis e senho-res cousa contra justiça que se não pode sofrer, e mais quando é seu gosto fazê-la. Antes se sofre negar-lhe o que querem, quando o que pedem não é justo, que

89 Referência a Dom João II, décimo terceiro rei de Portugal, que reinou de 1481 a 1493, chamado o Príncipe Perfeito.

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então, dado caso que à primeira instância fiquem menencórios, per derradeiro, caindo na conta, agradecem e pagam, fazendo mercê a quem não lhe consentiu fazer cousa injusta.

E o duque, pelo desgosto que tinha deste mancebo, desejava com justiça poder-se vingar dele, que sem ela, por mais menencório e anojado que estivesse, não no ofenderia em nada, tal era este duque. E este seu desejo se cumpriu assi.

Andando um dia o duque à caça, transmontou-se-lhe um nebri que ele pre-zava muito. E tornando sem ele à cidade, fez apregoar que daria grande achadego a quem lho desse. E porque nem assi pareceu, tornou a mandar apregoar que quem o encobrisse perdesse a fazenda e morresse morte natural; e a quem lho descobrisse e fizesse vir à mão do duque, perdoava qualquer delito que tivesse, ainda que fosse de morte. E nem assi o nebri pareceu, de que toda a terra estava espantada.

E não parecia, porque caiu dentro na quintã deste mancebo que estava per-to da cidade, a qual, como era muito grande e ele achasse ali muitas aves, andou muitos dias sem se saber dele. Até que o mancebo foi um dia à quintã, andando passeando dentro, achou o nebri. E como sabia muito daquele mister, o chamou e fez vir a si, e o levou a ũa câmara das casas da quintã em que havia todo apa-relho para a criação daquelas aves, e que não pudessem fugir. Deixando-o a bom recado, guardou consigo a chave da casa, que era muito grande. E ele e outros pássaros que ali estavam tinham bem de que se manter, porque a casa era artifi-cialmente feita para isso e estava bem provida do necessário.

E deixando o nebri a recado, matou o mancebo um grande pavão, de mui-tos que ali se criavam. E cortados os pés, rabo e cabeça, o depenou e levou para sua casa. E tanto que chegou, disse a sua mulher:

– Senhora, o nebri do duque foi ter à nossa quintã e nos tem mortas muitas de nossas aves. E em satisfação disso eu o matei a ele, e o trago aqui depenado para que o ceemos vós e eu.

Ela, tanto que o ouviu, se agastou muito e disse:– Pesa-me muito disso, que melhor fora trazer-lho vivo ao duque, que com

ele pudera ser que perdera a menencoria que tem contra vós, ou ao menos parte dela. Daqui vos digo que me fizestes pesar, e eu não cearei dele, nem à mesa em que se comer.

E assi, ainda que o marido a chamou e lhe mostrava o pavão, gabando-o, dizendo-lhe: “Senhora, olhai como estava gordo este nebri, vinde comer dele, que é tal como um gordo pavão”, ela o não quis ver, nem aquela noite ceou com o marido nem sem ele, tanto se entristeceu.

Porém, passada esta noite, dali por diante, quando falava com o marido, parecia que era com uma isentidão sobeja, menos recolheita, e mais despejada que dantes, menos cortês e humilde do que soía, e quase por cima do ombro, no

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que tudo o marido atentou, tendo para si que já ela cuidava que lhe tinha o pé no pescoço, em lhe saber o segredo do nebri, que na verdade estava vivo e ele o visitava cada dia, para lhe prover o que fosse necessário. E a mulher cuidava que o pavão que o marido ceou, como ouvistes, era verdadeiramente o nebri, como ele disse. E o mancebo, desejoso de chegar ao cabo com tudo, ũa tarde, entrando pela porta, sobre “Por que não está a mesa posta? Que fazeis à janela?”, cousa que nunca ele perguntava, nem nisso entendia, ela lhe respondeu isenta: “Que quereis vós agora para isso?”, com um menosprezo no marido e gravidade nela que ele não quis sofrer, e ali lhe deu ũa grande bofetada. Pelo qual ela, posta em cabelo, gritando muito rijo, disse:

– Isso mereço eu, falso tredor? Porque há mais de seis dias que calo e en-cubro tua maldade, que mataste o nebri do senhor duque e o comeste por lhe dar desgosto, e não porque te faltavam a ti aves prezadas que comer.

Como isto foi dito a grandes brados e na praça, por para pouco se teve o que mais tardou em dizê-lo ao duque, temendo que, se o não descobrisse, cairia em sua desgraça, ainda que a todos pesou acontecer aquilo àquele homem que era mui benquisto de todos.

O duque, tanto que o soube, o mandou prender, e que o caso se pusesse em justiça, sem nunca querer ouvir aos que por ele falavam, que eram todos os prin-cipais da terra. E sem nenhũa misericórdia, visto o testemunho da mulher e dos servidores e gente de sua casa, que todos afirmaram ver-lhe trazer o nebri morto e mandá-lo assar, e que o ceara ũa noite, foi per sentença mandado degolar na praça da cidade e que perdesse sua direita parte dos bens que tinha para a coroa, conforme ao que estava apregoado.

E tirando-o da cadea para se executar nele a justiça, o algoz que era obri-gado a fazê-la, tanto que o conheceu, disse que o não degolaria, ainda que por isso perdesse a vida, porque aquele senhor lhe tinha feitos grandes bens e mercês. E assi se buscou outro e outros. E ainda que com pregão prometeram cinquenta, cento, duzentos cruzados e mais a quem o degolasse, até lhe prometer a metade da fazenda do homem, em a qual pela sentença era condenado, nem por isso se achou quem quisesse ser o ministro da justiça, tanto poder tiveram aqui as muitas e grandes esmolas que este homem tinha feitas naquela terra. E assi, sem se exe-cutar nele a justiça, esteve grande parte do dia ao pé do pelourinho.

Soube-se em toda a terra o caso, e a todos pesava de sua morte. E ninguém queria degolá-lo, ainda que por isso lhe davam toda a fazenda que lhe pertencia ao duque pela sentença. Antes cada um dos vizinhos dera a metade da que tinha por podê-lo livrar da morte.

A esta hora chegou à praça aquele mau homem salteador a quem este havia livrado de o arrastarem e cortarem as mãos, como fica dito, o qual vinha dizendo

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entre si: “Se eu o degolo hoje, não no hei de ver amanhã, nem nunca, para haver vergonha dele. Quero-o degolar e serei rico para sempre. Quem me mete com mais?” E logo disse alto e de praça:

– Deem-me a mi o que prometem que eu o degolarei logo.E chegando-se ao pé do pelourinho, arremangou os braços, dando mostras

que o vinha a degolar.90

A este tempo tinha o mancebo junto consigo um virtuoso padre religioso a quem acabava de dizer seus pecados e lhe tinha dado conta do caso todo como passava, assi como a história tem contado. Que, ouvindo-o, logo se ergueu em pé e disse alto que todos o ouviram:

– Este homem é julgado por falsa informação, e não é a sentença dada jus-tamente. Esperai que eu irei falar ao duque e será d’outra maneira.

E assi foi e contou a Sua Senhoria toda a história passada, do primeiro rogo do velho pai deste mancebo, feito a seu filho, até o estado em que estava. E fez entender ao duque (como era verdade) que nem dar-lhe os potros com as outras cousas que lhe presentou fora polo servir; nem pedir-lhe ao malfeitor fora polo anojar; nem morar na praça por se recrear; senão por vir ao estado que chegou, por ver o segredo que sua mulher lhe tinha, no que fingidamente lhe dissera, para a provar. Que Sua Senhoria mandasse pelo nebri à quintã, que ele lhe descobria que era vivo e estava ali. E para mais certeza, que tomasse aquela chave que o re-ligioso lhe trouxe e logo deu, e o mandasse tirar. E que se lembrasse que, confor-me ao pregão que mandou dar, por este feito de lhe descobrir o nebri e fazer-lho haver, era perdoado. Porém que ele o não pedia, senão que, se todavia o quisesse mandar matar, que dissesse o pregão que morria por não ser obediente a seu pai, nem tomar seu conselho e guardar seus mandamentos. Porque os preceitos do pai, nem zombando não se hão de quebrar. E mais sendo cousa encomendada no artigo da morte, como a ele mandou seu pai.

E o duque, visto isto e entendendo a verdade do caso, ainda que desejava vingar-se do nojo passado, era fazendo justiça. E porque aqui já parecia não a ha-ver de sua parte, mandou que fosse solto e perdoado da culpa que teve; e que logo se fosse viver à sua quintã, como seu pai lhe dissera; e que sofresse o desgosto de ter sempre sua mulher consigo, sem nunca polo passado lhe dar remoque, nem fazer agravo, porque, visto o que sucedera, estava arrependida do que fizera; e que em tudo dali por diante guardasse os conselhos de seu pai, assi como lhos prometeu guardar.90 Este trecho é utilizado por Moraes, na segunda edição de seu dicionário, para abonar um dos

sentidos do verbo arremangar. É preciso, no entanto, retificar a citação da fonte: trata-se do Conto XII, e não Conto II, Primeira Parte. Moraes não cita a edição de que se utilizou, mas, se não cometeu engano de transcrição, o texto já apresentava pequena alteração: “arremangou os braços, dando mostras que o vinha degolar”.

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E logo mandou o duque prender ao salteador de caminhos que se propuse-ra91 a degolar a quem lhe a ele tinha dado a vida. E mandou executar a sentença que contra ele fora dada, porém não por aqueles delitos que já eram perdoados; porém que dissesse o pregão que morria daquela maneira por ingrato, desconhe-cido do benefício recebido, e que por dinheiro queria matar a quem deu muito e aventurou a vida por livrá-lo a ele da morte, o que tudo se cumpriu. E o duque houve o nebri e o malfeitor pagou suas maldades; e o bom com esmolas satisfez as fraquezas passadas.

Fica daqui que sejamos agradecidos dos bens que recebemos cada dia de Deus Nosso Senhor e de qualquer pessoa que nos fizer bem. E que façamos os mandamentos de nossos pais, e tomemos seus conselhos, e não descubramos os segredos a ninguém, em especial a mulheres que não são capazes de os guardar. O que não entendo aqui dizer das nobres e virtuosas, que há tais que podiam ser exemplo a muitos varões. E fazendo isto e dando esmola por amor de Deus, haveremos nesta vida muita honra e proveito, e no fim a glória, a que Deus nos leve. Amém.

CONTO XIII

Que oferecendo-se nos desgostos, ou perda, o sentimento e nojo seja con-forme à causa, concluindo com ele. Trata um dito de um rei que mandou quebrar ũa baixela.

Um veneziano, mercador poderoso, fez presente a um príncipe, rei das Espanhas, e deu-lhe com outras cousas ũa baixela de vidro cristalino dourada, de muitas e mui ricas peças, tão sutilmente lavradas todas, com tanta curiosidade e de tal feitio que se não podia mais desejar.

E vista pelo príncipe, a estimou em muito, e agradecendo-lha e pagando--lha bem, fez que o servissem com ela nos dias de maior festa, menosprezando então outras baixelas de prata dourada, e ricas peças de ouro, fermosas e de gran-de preço.

Assi aconteceu que, tendo ũa suntuosa cea com uns embaixadores de ou-tros reinos, servindo-se com esta copa ou baixela, como costumava em tais tem-pos por maior grandeza, caiu um bacio das mãos a um paje que o levava, de que o príncipe tomou muito pesar e nojo. Porém, no mesmo instante disse:

91 No original, provavelmente em erro de impressão, está “que se oposera”, pois o salteador foi o único que tinha aceitado a incumbência de executar o mancebo. A forma oposera repete-se nas edições posteriores.

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– Não há por que o nojo dure, que isto é vidro, e como tal há-se de quebrar peça a peça. Porém, por poupar o nojo que pode vir, quando se quebrar outra, agora, com esta consideração, mando que se quebre toda.

E assi se fez, que se quebrou a baixela por poupar os nojos que daria adian-te, quebrando-se em muitas vezes. E ele ficou fora de paixão, para concluir com gosto o banquete em que estava.

Assi nós, pois entendemos que a fazenda, filhos, privança e honras da terra não hão de durar para sempre, e são quebradiças como vidro, quando se acabar qualquer cousa destas, façamos conta que são perecedeiras, e que per derradeiro hão de ter fim. Não tomemos por cada ũa mais nojo do que é razão; mas, confor-mes com Deus por tudo, Lhe demos graças, porque Ele, vendo nossa paciência nas adversidades, e que sabemos fazer bom rosto aos nojos e perdas que nos vêm, nos dará graça com que aqui soframos nossos trabalhos em penitência de nossos pecados. E por ela e Sua misericórdia nos dará a glória.

CONTO XIV

Que os que buscam a Deus sempre O acham. Trata de um ermitão e um pobre lavrador que quis antes um real bem ganhado que cento mal ganhados.

Em um ermo, por servir a Deus, vivia um virtuoso ermitão, agasalhando--se em ũa pobre ermida, em que dizia missa os dias que acudia ali gente que lhe pudesse ajudar a ela, que ele estava só.

Aconteceu que um domingo, depois de missa, estando à porta da ermida, viu atravessar polo campo um pobre lavrador carregado de redes e armadilhas que, a seu parecer, ia a armar aos pássaros.

O ermitão chegou a ele e lhe perguntou de donde era, e adonde ia, o qual respondeu:

– Sou de mea légua de donde estamos. E entendi hoje na estação que fez o cura que o Espírito Santo desceu ao mundo em figura de pomba. E eu, desejoso de O ver e achar, tomei estas redes emprestadas e venho-as armar. E se O posso haver nelas, Lhe hei de pedir que haja misericórdia comigo, dando-me mantença para cada dia, que eu e minha mulher com pão e água da fonte nos contentamos; ou me administre em que possa trabalhar, para que o ganhe, não nos percamos à míngua, porque hoje nem comemos, nem temos um ceitil, nem um pão de que comer.

O bom ermitão, visto isto, levou aquele pobre lavrador à ermida e deu-lhe quase todas as ofertas que aquele dia havia recebido, que o sustentavam toda a somana, não temendo que lhe faltaria a ele. Mas, confiado que Deus o proveria, lhe disse:

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– Irmão, tomai isto, comei vós e vossa mulher. E se quiserdes dinheiro, eu vo-lo darei. Mas é necessário que me digais qual quereis mais: um real bem ganhado, ou cento mal ganhados?

O pobre homem tomou o pão e, com alegria, se foi a sua casa, dizendo ao er-mitão que haveria conselho com sua mulher qual era melhor, e tornaria a dizer-lho.

E chegando a casa, comeram contentes e deram graças a Deus que lho deparou. E depois de fartos, lhe sobejou, que tiveram para alguns dias. Que isto tem o dado de Deus, que farta e sobeja; e o dado do mundo nem sobeja nem farta, mas dá mor sede de adquirir e ajuntar, um sobre outro, bem ou mal havido: não há quem seja farto nem contente. Ó miseráveis de nós, sapos da terra, que, per derradeiro, tudo há cá de ficar. Tomemos exemplo nestes que com este pão, sem outros legumes nem iguarias, ficaram fartos e contentes.

E depois de dar graças a Deus, houveram conselho qual tomariam (do er-mitão que lho dava): um real bem ganhado, ou cento mal ganhados. E ainda que viram que um é tão pouco como é, e a muita ventagem que lhe fazem cento, quan-do punham de diante que os cento haviam de ser mal ganhados, conhecendo que todos os refrães são quase sentenças, por amor daquele que diz: “O bem ganhado se perde; mas o mal, ele e seu dono”, quiseram ambos de um acordo um real bem ganhado antes que cento mal ganhados.

E com isto tornou o pobre homem ao ermitão a dizer-lho para que lho des-se, o qual, com muito contentamento, por ver que soube escolher, lhe deu um real em dous meos, como ora se costumam, dizendo-lhe:

– Este é bem ganhado. Com ele vos fará Deus mercê.E assi se tornou o lavrador para casa, contente.Porém, no caminho, antes de chegar a ela, achou dous cachopos, filhos de

dous vizinhos que, pegados um no outro, em grande briga andavam, dando-se de punhadas e de cabeçadas, ensanguentadas as bocas de sangue que lhes saía dos beiços e das gengibas, tão encarniçados em matar-se, sem repousar, que era má-goa de os ver. E assi o pobre homem, quando os viu, havendo dó de os ver tratar de tal sorte no campo donde, se ele não passara, não podiam ser socorridos, dese-joso de os meter em paz, com caridade se meteu no meo a apartá-los, perguntando a causa da briga. E ainda que deixaram de se ferir, nem por isso nenhum queria desapegar do outro. Mas estando assi pegados, disse um:

– Vedes ali? Naquele chão jaz aquela pederneira, que é para ferir lume. Eu a vi e, querendo-a tomar, este mo impide e qué-la ele tomar.

O outro respondeu:– Não é assi. Mas eu a vi primeiro e quero-a tomar; e tu queres-mo tolher

e tomá-la para ti.Esta era a causa por que se feriam.

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O pobre homem, vendo que entre eles não havia maneira de paz, porque cada um queria a pedra, e ela não era tão grande que bastasse para a partir e dar a ambos (porque seria como ũa noz a qual, ainda para boa, parecia pequena), e por vê-los ambos em paz, lhe disse:

– Filhos, rogo-vos que cesse vossa briga. Tomai de mi este real que tenho, cada um leve seu meo real. Deixai ora esta pedra. Não seja o demo que vos faça fazer algum desmancho.

Os moços, visto o real e o rogo do bom homem, aceitaram a paz e cada um tomou seu meo real. Deixando a pedra ao lavrador, se foram contentes. E ele a tomou, não por lhe parecer que teria valia, senão para testemunha, que, quando dissesse que dera o real por ela, fosse crido. E assi a levou. Todavia, parecendo--lhe lustrosa e galante, ia para casa ledo.

E chegando, achou sua mulher à porta que o esperava, desejosa de ver o real bem ganhado que o marido havia de trazer, já imaginando a parte que dele daria domingo à oferta, e o mais de que se compraria que aproveitasse. E nisto ele que chega, e mostrou-lhe a pedra que trazia. E disse-lhe o caso que acontecera e como os dous moços se matavam sobre ela, como já ouvistes. E a mulher logo à primeira face teve desgosto, por não ver com seus olhos o real. E tomando a pedra da mão ao marido, arremessando-a rijo para dentro da casa, disse:

– Ah, que nem este real nos veo ter à mão! Louvado seja Deus, contudo.E assi ficou um pouco agastada, porém não lhe durou, que no mesmo ins-

tante, como era boa mulher, ainda que a pedra era tão pequena que para ferir lume lhe pareceu que não prestava, havendo respeito que o real era gastado em obra de caridade e em fazer paz entre dous filhos de vizinhos, mostrou levar disso gosto e conformou-se com o marido que o havia feito, dizendo-lhe:

– Todavia vós fizestes bem. Hajam os moços paz e saúde, que o real Deus no-lo dará por outra parte.

Como de feito deu. Porque os pais dos moços que os viram escalavrados e souberam deles a briga, e donde, e sobre que fora, e quem fizera a paz, e como lhes dera um real, que eles sabiam que o pobre homem não tinha de seu, ambos juntos lho agradeceram muito. E cada um deles per si lho pagou com grande ventagem, e dali avante lhe faziam muitas honras conhecidas que mostravam ser feitas pelo amor com que lhes tirou os filhos do arruído e peleja que tinham. Por esta obra de caridade foi este homem começado a estimar por bom homem e de virtude. E entre os vizinhos lhe davam em que trabalhasse, de maneira que nunca mais teve a necessidade passada.

Notemos aqui que isto têm consigo as obras virtuosas que, ainda que sejam feitas na charneca, quando se fazem por amor de Deus, sem intenção de vangló-ria, elas per si são trombeta que as anda apregoando na praça. E Deus permite que

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se manifestem e descubram, para que seja remunerado o que as faz. E o que se faz na praça, se é feito com desejo de que lho vejam fazer, ali perde quem no faz prata e feitio, porque permite Deus que não seja visto. E se alguém o vê, é para murmurar, dizendo: “Ah, fez aquilo porque lho vissem fazer”. E assi fica tudo em vão e sem merecimento, e o Senhor não no aceita. O que não aconteceu a este que, por isto que fez no campo, sem ele o dizer a ninguém, foi afamado na aldea, e de quantos moravam nela benquisto. E já ganhava, e tinha casa como seus vizi-nhos, ajuntando por mercê de Deus e de seu trabalho, com o qual vivia contente.

Aconteceu que, em este tempo, passou por aquele lugar um fidalgo que, por mandado d’el-rei, ia a outro reino por embaixador, e levava consigo dez ou doze homens. E conveo-lhe ficar ali ũa noite em aquela aldea, esperando certo recado da corte. E ainda que para seu aposento lhe deram as melhores casas que havia no lugar, não lhe bastaram, e foi necessário agasalhar alguns dos seus em outras casas. E agasalhando-se pela aldea, coube a este bom homem um deles, o qual, vista e conhecida a virtude dos hóspedes e a pobreza da casa, a proveu também para aquela noite, que dos sobejos dali ficou para muitos dias adiante.

Este homem, criado do embaixador, despois de lançado na cama, sendo passada ũa grande parte da noite, acordou e viu que, a seu parecer, havia resplan-dor na casa, que a tal hora da noite, conforme ao tempo, não se permitia. E admi-rado, foi posto em confusão donde aquilo podia proceder. E por saber o que era, se ergueu como sisudo, e quietamente se foi para onde via a claridade. E pouco a pouco indo para ela, chegou donde estava a pedra que dissemos, sobre que os moços pelejavam que, quando o bom homem a trouxe, sua mulher a arremessou em um canto da casa, como já ouvistes. E dela saía o resplandor de que este ho-mem estava maravilhado. Tanto que chegou a ela e a viu, a tomou e a guardou, até que, vindo o dia, a viu melhor. E parecendo-lhe de grande preço, se foi ao senhor embaixador com quem ele vinha. E mostrando-lha, lha deu e disse donde a achara. E o senhor, vista a pedra, a estimou em muito e mandou logo chamar o homem em cuja casa se achara. E perguntou-lhe donde a houvera e de que lhe servia. E o bom homem lhe disse:

– Senhor, não serve de nada. Se Vossa Mercê a quer, tome-a, que eu folga-rei muito disso, que um real me custou.

E contou-lhe como e de que maneira, assi como a história até agora o con-tou. Do qual o fidalgo se maravilhou e teve para si que, polo muito que val o real bem ganhado, permitiu Deus que se lhe deparasse aquela pedra àquele homem em que o empregasse, para que por ele lhe viesse bem e riqueza. E des então se afeiçoou a ele, para lhe fazer o bem que pudesse, de ũa afeição amorosa, desenga-nada, que nunca mais a perdeu. E era assi justo, porque este homem lavrador era

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tão singelo, desenganado a todos, que o estava merecendo. E o embaixador meteu a mão em ũa boeta em que levava dinheiro para sua despesa, dizendo:

– Este enjeitou riqueza mal havida, quando quis antes um bem ganhado que cento mal ganhados. Ora, se por isto Deus Nosso Senhor o quis enriquecer, dando-lhe esta pedra preciosa, nunca Ele permita que eu lha tire.

E tomando um punhado de moedas de ouro, em que haveria duzentos mil réis, lhos deu, dizendo-lhe.

– Irmão, esta pedra, já que ma dais, eu a quero. Porém agora vou para fora do reino, não posso pagar-vos tudo o que val. Tomai isto, e se Deus me trouxer, eu vo-la acabarei de pagar, quanto em mi for.

O pobre homem não queria tanto dinheiro e, à importunação do nobre fi-dalgo, o tomou e se foi para sua casa com muita alegria a dar conta a sua mulher. E ambos conformes como bos lavradores do campo, assentaram que se desse o dízimo a Deus daquilo que lhe dera.

Tomem exemplo lavradores, pessoas poderosas e nobres, que têm rendas e comendas. Que pode ser que haja algum (que Deus não mande) que, tendo na sua comenda, de seiscentos mil réis de renda, ũa igreja, hão por mal em dez anos comprar-lhe um frontal para o altar, ou ũa vestimenta; nem um hissopo, se podem escusá-lo, por não desfraldar o quartel que lhe há de vir, senão que lho tragam inteiro e bem acrescentado.

Mas estes pobres logo foram ao ermitão que lhe deu o real e, dando-lhe conta do sucesso dele, lhe ofereceram a décima parte do dinheiro que tinham, o qual lhe mandou que o tornassem a levar para casa e que repartissem com pobres. E eles se tornaram à aldea e, dando grandes esmolas, chamaram os pais dos mo-ços que pelejavam pola pedra, aos quais deram conta como o fidalgo a levara e lhe dera muito dinheiro por ela. E partiram com eles tão liberalmente, que ambos foram contentes.

Do que ficou ao pobre homem comprou herdades em as quais lhe deu Nos-so Senhor sempre grande avondança de fruitos, de que ele partiu com os pobres, moradores da aldea, de maneira que nunca mais ali houve pessoa necessitada. E a ele Deus lho acrescentava, e lhe deu filhos e filhas, das quais a primeira que lhe nasceu foi muito virtuosa, amiga de Deus, caridosa com todos, e tal que, por esta, era a casa deste homem hospedaria de pobres passageiros, e donde todos acha-vam socorro para suas necessidades. E Deus lho acrescentou tanto que chegou a ser chamado o rico homem, e ele o era.

Passados treze anos tornou por ali o embaixador que vinha do reino estra-nho, donde estivera até então, o qual trazia muita honra e grandes riquezas. Viu o homem que lhe dera a pedra, soube a fama e obras de sua pessoa e filha, que era como ouvistes, de que folgou muito. E dali veo à corte, donde achou sua mulher

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e casa bons de saúde, e um filho que deixou de cinco ou seis anos já homenzinho, e ele contente com saúde e riqueza.

Deu conta a el-rei do que fizera, que tudo esteve bem. Mostrou-lhe um dia a pedra e deu-lha, dizendo-lhe donde e como a houvera. El-rei folgou muito com ela, admirado do caso, do real bem ganhado, a fez mostrar a pessoas entendidas, que a avaliassem para a pagar, os quais a puseram em grandíssimo preço, de que el-rei mandou dar ũa boa parte ao fidalgo, e títulos e honras para ele e seus descen-dentes, que certo foi muito. Porém ainda não era a justa estimação da pedra, e o fidalgo, querendo agradecer a Deus as mercês e pagá-las a quem fora causa delas, acrescentou a muito estado o criado que lha deu, tanto que ele se houve por bem pagado. E cada dia este senhor sabia novas do homem cuja fora, e eram grandes amigos, e lhe mandava joias e presentes de grande preço para ele e para a filha.

Tanto cresceu a afeição entre eles, que o fidalgo pediu por mercê a el-rei lhe desse licença para casar seu filho morgado com a filha daquele lavrador virtuoso, que ela era tal que desejava ele havê-la por nora, e que ela e seu filho gozassem as mercês que Sua Alteza lhe fizera pela pedra, pois em sua casa se achara. El-rei o houve por bem e lhe deu título de muita nobreza para os noivos, que foi justa-mente feito e bem merecido, pela singeleza e bondade de coração com que, no princípio, o bom homem buscou a Deus; e o amor e caridade com que deu o real, que era então toda sua fazenda, por fazer paz por amor de Deus; e a perseverança que marido, mulher e filha tiveram na virtude; e as grandes e contínuas esmolas que faziam, com as mais obras virtuosas que sempre trazem consigo o galardão.

O mancebo fidalgo e sua esposa tomaram consigo os cachopos que tiveram a briga sobre a pedra, que já a este tempo eram homens e honrados, porque os pais e eles haviam crescido em fazenda e honra. E servindo-se deles algum tempo, lhes deram depois a cada um honrosos ofícios da corte, havidos d’el-rei para eles. E de sua casa, quando casaram, lhes deram joias e peças. E uns e outros tiveram muito contentamento nesta vida e fizeram nela tais obras que esperamos que ha-veriam na outra a glória, a que Deus nos leve. Amém.

CONTO XV

Que todo tabalião e pessoa que dá sua fé em juízo deve atentar bem como a dá. Trata ũa experiência que fez um senhor para dar um ofício de tabalião.

Foi um tabalião do púbrico e judicial, em um lugar de senhorio. E chegan-do a idade que não podia servir o ofício, pediu ao senhor da terra que lhe fizesse mercê dele para um filho, que tinha três já homens, e que cada um deles era sufi-ciente para o servir.

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E o senhor, por lhe fazer mercê, disse que lhe aprazia, porém que queria ver os mancebos um por um, para ver em qual seria melhor empregado, e que a esse o daria.

O velho folgou disso e mandou primeiro o mais velho que, apresentan-do-se ante o senhor, lhe disse que ele era o filho do tabalião a que Sua Senhoria mandara vir ante si, para lhe fazer mercê do ofício de seu pai, se lhe parecesse, para o servir nele.

A este tempo, o senhor tinha na sala ũa bacia grande chea de água, e esta-vam nela laranjas, a saber, quatro inteiras e sete partidas pelo meo, com o agro para baixo e o pé ou olho para cima, que, ao parecer de quem não no atentara bem, pareciam todas inteiras.

E tanto que o mancebo deu o recado, lhe respondeu o senhor que logo o aviaria, quase fingindo esperava por outra pessoa. E como que não fosse aquilo do caso próprio, lhe disse:

– Entrementes, vede que laranjas estão ali fora naquela bacia.O mancebo o olhou e, vendo as quatorze metades – que cuidou eram intei-

ras – e as quatro inteiras, tudo em lançando-lhe os olhos somente, disse:– Senhor, são dúzia e mea de laranjas.Que na verdade, como estavam sobre a água, assi o pareciam. E o senhor

disse:– Dizei a vosso pai que mande cá outro filho.O qual veo, e aconteceu-lhe da mesma maneira que ao primeiro, que tam-

bém disse que as laranjas eram dezoito, como o pareciam.E o senhor mandou vir o terceiro, o qual vinha desgostoso, porque já sabia

a pergunta e não sabia que responder. E todavia, chegando ante o senhor, lhe man-dou que visse as laranjas que estavam naquela bacia, como dissera aos outros. E ele saindo fora, chamou dous homens de casa que andavam passeando na sala e disse-lhes:

– Senhores, o Duque manda saber as laranjas que estão nesta bacia. Sede presentes, porque sejais testemunhas do que achar.

E assi tirou as laranjas fora e viu ele e eles que eram as quatorze metades, e as quatro inteiras. E meteu a mão n’água e viu que não havia lá outra cousa. E assi fez que o vissem aqueles dous homens que ali estavam.

E visto isto, tirou papel e escrivaninha que levava consigo e fez auto do que ali se achou, e nomeou nele os dous homens que foram testemunhas e o assi-naram. E com isto tornou ao senhor que, visto, lhe pareceu bem a diligência que fizera. E disse-lhe:

– Vós o fizestes como oficial, e não como os outros que, sem ver o que era, disseram o que lhes pareceu.

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E logo mandou que mandasse fazer a carta do ofício que lhe fazia mercê dele, porque escreveu o que viu e apalpou, que assi é necessário fazer-se, para dar fé verdadeira, que a fé do escrivão importa muito para a justiça das partes.

Pede o autor a todos os senhores oficiais e pessoas a que toca que olhem como dão sua fé, para que no cabo da jornada se achem sempre com ela constan-tes e firmes na Verdade, que é Deus, diante do qual não há aceitação de pessoas; para que Ele, vendo-lhe sua firmeza e perfeição de obras, os haja por perfeitos e bons. Amém.

CONTO XVI

Que os pobres não desesperem nas demandas que lhe armam tiranos. Tra-ta de dous irmãos que competiam em demanda um com outro, e outras pessoas.

Um velho rico tinha dous filhos. E porque o maior que tinha o cárrego da administração da fazenda se casou sem sua licença, o lançou fora de casa, tiran-do-lhe a posse e mando que nela tinha. E além disto lhe cobrou ódio mortal, com desejo de o empecer. E para o poder fazer, ao menos na fazenda, imaginava sem-pre como per sua morte o deixasse deserdado e desse tudo ao outro filho menor. E achou que o faria, deixando de acabar ũas casas suntuosas que tinha começadas no melhor da cidade, as quais estavam já galgadas as paredes para lhe lançar o primeiro sobrado. E isto porque o que havia de gastar nelas ficasse em dinheiro na mão do filho menor, quando ele lho quisesse dar. E por isso cessou a obra que com grande gosto e muita despesa fora começada, ficando, porém, principiada, de maneira que logo parecia obra de rico.

E passados anos, o velho, perseverando em sua contumácia, não quis per-doar o filho, ainda que foi rogado por bons homens e virtuosos religiosos, nem lhe quis mais ver o rosto. E com este rencor morreu, e deixou grande fazenda em dinheiro, ouro e prata ao segundo filho, dando-lho na mão, porque não desse dali parte ao outro, ao qual ele deserdara de todo se pudera.

E por morte do velho se fizeram partilhas entre ambos os irmãos do que pareceu púbrico. Porém, como da fazenda estava sonegado o melhor, e do que pareceu tiraram os legados e terça que o velho apartou para o menor, coube ao maior tão pouco que não houve bem para se vestir de dó ele e seus filhos e mulher, que, como havia dias que era casado, tinha quatro ou cinco crianças. E assi ficou pobre, cercado de trabalhos e muita necessidade. De maneira que o que soía ter criados a quem mandar e, em casa de seu pai, fazenda que granjear, ficou abatido e tão pouco estimado que nem para trabalhador nas fazendas alheas o queriam. E assi padecia grande míngua, sem que ninguém o socorresse. E o outro irmão me-

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nor ficou com muita riqueza de dinheiro, joias e peças que sonegou no inventairo, e posto no prazo dos foros que tinha por cabeça de casal e a terça, próspero e rico.

Aqui notem filhos e filhas quanto lhe convém estar à obediência dos pais, e não aceitar casamento sem seu conselho e benção, porque não caiam em sua desgraça e, miseráveis, venham a seus irmãos pedir socorro, como este fez. Que, vendo-se o mais velho em tanta miséria, foi ao irmão e, com lágrimas, lhe disse:

– Irmão, bem sabes e vês minha necessidade e pobreza. Rogo-te que me dês estes princípios de casas que meu pai deixou de acabar, porque, alimpadas com meu trabalho e de minha mulher e filhos, as possa cobrir de trouxa e agasa-lhar-me dentro, que elas a ti não te aproveitam, nem as estimas, e estão em ester-queira do concelho feitas pardieiro. Elas estão galgadas de maneira que, sem lhe acrescentar parede, ali as cobrirei do que puder. E nisto me farás grande esmola.

O irmão menor, vendo a necessidade de seu irmão (e como dizem, porque o sangue não se roga), aceitou-lhe levemente as casas, e fez-lhe delas sua carta de doação, livre e desembargada, per púbrico tabalião, per virtude da qual o pobre tomou a posse. E ele e sua mulher e filhos as alimparam pouco a pouco, fez-lhe portas e, com seu trabalho e dádivas de pessoas virtuosas, as cobriu. Porque, como era obra de rico, ele achou debaixo do esterco muitas achegas que lhe servi-ram. E o pobre homem, ainda que devagar, fez para si um bom gasalhado e muitas casas que alugou a outros pobres como ele. E não pagando aluguer e recebendo-o, surdia por diante, e passava os trabalhos da vida sem tanta necessidade.

Passados anos o irmão menor veo a casar, e – porque a quem tem muito dão-lhe mais – deram-lhe grande dote, com ũa mulher tão cobiçosa de fazenda que o muito que tinha lhe parecia nada, e o pouco alheo cuidava que era muito, e o queria e cobiçava para si. E desta maneira, indo um dia a visitar a mulher do cunhado, irmão de seu marido, que estava parida, tanto que lhe entrou em casa, não pôs os olhos nos muitos filhos que tinha derredor de si, e como estavam es-farrapados e rotos, e a pobreza da cama que era de mantas sobre esteiras de tabua, que ela devera olhar para a prover, pois podia; mas viu o princípio e entrada da casa, e o portal de pedraria que mostrava demandar mais água que ser logo em cima coberta de trouxa como estava.

E cobiçosa de haver aquele assento e fazer nele casas para sua morada, cus-tosas e ricas, como elas prometiam no seu princípio, sem fazer ali muita tardança, veo ao marido e disse-lhe que comprasse aquele assento a seu irmão, dando-lhe por ele com que pudesse haver casas para si em outra parte, e que lhe sobejasse dinheiro. E ele lhe respondeu que o não faria, porque ele lho dera feito pardieiro, que não era razão pedir-lho agora que o tinha limpo, ainda que fosse por com-pra. Quando ela isto ouviu, ali foi a grita, que em toda a vizinhança se ouvia seu brado, dizendo ela que folgava muito de saber que ele lho tinha dado, porque já

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agora não dizia ela por dinheiro, mas sem ele lho havia de dar; e, se não fosse em paz e por bem, seria por justiça e em que lhe pesasse, sem lhe dar nada por ele. E dava logo esta razão:

– Se vós lho destes sendo solteiro, éreis menor e a dada não é valiosa, por-que o menor, ainda que dê, sempre tem restituição. E se lho destes em casado, a dada não val, que eu não consinto, polo qual vos digo que já o não quero por com-pra, senão sem ela: que mo dê livremente, que justamente é meu. E as benfeitorias que fez descontem-se nos alugueres do tempo que há que o pessui.

E isto dizia tão menencória e pelejando, que o marido não tinha mesa nem cama sem arruído. E assi fez tanto que, por ter paz, o marido citou a seu irmão, pedindo-lhe as casas que lhe dera, pola razão que ouvistes que dava a mulher, com a qual fundou o libelo. E foi polo irmão respondido suficientemente, e processado feito que, correndo seus termos ordinários, saiu por sentença: “Visto como o doa-dor, antes que fizesse a doação, se mancipou, para haver posse e administração da fazenda que lhe pertencia per falecimento de seu pai, per virtude da qual lhe foi entregue, o hão por maior e a doação por bõa, e o condenam nas custas”.

E assi foi a propriedade julgada ao pobre. Porém a mulher do rico, mal con-tente, fez agravar da sentença e seguir o feito até mor alçada. E assi foi à Suprica-ção que então estava na cidade de Évora. E partindo de Lisboa, o rico ia a cavalo e com grande cevadeira que a mulher lhe fizera, porque à sua importunação dela se seguia a demanda; e o pobre a pé, com dous pães e quatro cebolas no capelo. E assi caminharam para ver final sentença no feito.

Consideremos agora como, por fazer a vontade à sua mulher, este homem rico persegue a seu irmão pobre. Ó mundo! Ambos são filhos de um pai e de ũa mãe, e um vai tão abatido, e o outro tão exalçado. E o pior é que o mais velho a pé e o mancebo na sela, de maneira que por interesse contendem, levando o rico ao pobre quase a rasto. Não há amor, não há irmandade, nem quem os ponha em paz, que o marido não ousa ir contra o apetite da mulher. E ela, com cobiça desor-denada dos pedaços de parede que o pobre tem, mete o marido na afronta de ser contra seu irmão mais velho, que ele devera ter por pai. E não se contenta a tirana invejosa com seus ricos estrados alcatifados, camilhas, tapetes, baixelas, ricos ornamentos e joias, senão que ainda quer e procura haver para si o que o outro tem de justo título. Pois tudo há de acabar e nós com ele. Por amor de Nosso Se-nhor, que nos contentemos com o que bõamente podemos, não abaixe ninguém o pobre, ainda que para isso tenha algũa razão, mormente sem ela, como esta fazia.

Indo assi caminhando para Évora, foram pousar ũa noite na Landeira,92 em casa de um vendeiro que havia dezoito anos que era casado e nunca tivera filho nem filha, e estava rico e contente, porque a este tempo tinha a mulher prenhe, 92 Localidade situada na freguesia do Concelho de Vendas Novas, distrito de Évora, no Alentejo.

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quase em dias de parir. E por ser muito conhecente do rico, o agasalhou e pôs grande mesa, dando-lhe de cear o melhor que ele pôde e tinha. E o rico tirou de sua cevadeira ũa galinha cozida recheada, um pedaço de presunto e outras cousas que levava de Lisboa. E assi se puseram a cear, o vendeiro e ele, com grande festa, fazendo assentar à mesa a mulher do vendeiro, para que, como prenhe, to-masse de cada cousa um bocado. E o pobre homem, sem dizer que era irmão do rico, se assentou derredor do lume e pôs no borralho a assar ũa cebola para sua cea, que, assada, a ceou com seu pão e água.

Porém, como o que Deus permite que seja ninguém o pode estorvar, assi foi que esta mulher prenhe, ainda que estava à mesa com o marido e hóspede, onde tinham bem que cear e recebiam gosto de lhe dar o que ela pedira, porque não perigasse, não lhe pareceu bem nada do que ali havia, nem lhe prestava cousa que comesse. Cheirando-lhe a cebola que se assava, morria por ir comer dela e, com vergonha do hóspede, não se erguia da mesa. E com muita tristeza e dor se reteve tanto, até que o pobre acabou de cear e se foi lançar a dormir em ũa esteira. E parece ser que a boa mulher tinha os olhos nele e, como o viu ir, perdeu a espe-rança de haver a cebola que lhe cheirava: tomou-lhe tal desmaio que caiu no chão. E como a criança era já grande e queria do que cheirou e não lho deram, expirou dentro no ventre da mãe. E assi, a boa mulher com grande trabalho moveu93 aque-la noite antes de muitas horas, com muito pesar e dor do marido, que o sentiu a par da morte. O qual, inquirindo da mulher se desejara algũa cousa, tanto que ela lhe disse que da cebola assada que aquele homem ceara, se foi a ele que o queria matar a punhadas. E o fizera, se o irmão o não defendera e escusara, dizendo:

– Eu vou com ele em demanda à Corte. Se vos parece que vos tem culpa e é caso de o matar como quereis, i comigo e acusai-o, e lá vos farão justiça.

E não lhe valia ao pobre homem a este tempo dizer que por amor de Deus o deixasse, que ela não lha pedira, jurando que, se lha pedira ou ele soubera que a de-sejava, da alma e do coração lha dera. Mas que, como ela estava à mesa donde tinha cousas melhores, não imaginou pudesse querer cebola. Porém que ela a pudera pedir e ele dar-lha, e levemente assar outra. Tudo isto não lhe prestava, nem lhe prestou ali, porque, tanto que veo a manhã, determinou o vendeiro ir acusá-lo à Corte.

E assi, como o rico se pôs a cavalo, subiu ele em um rocim que tinha, e par-tiram ambos para a cidade de Évora, donde o vendeiro pretendia fazer enforcar aquele pobre homem, dizendo que, por morte da criança que morrera no ventre de sua mãe, o merecia, pois fora por lhe não dar da cebola que comia. E assi ca-minharam os dous a cavalo, e o pobre a pé. Chovia e havia chovido toda a noite passada, de maneira que o caminho tinha a lugares lamas e atoleiros, porque era

93 Moveu no sentido de abortou.

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tempo de inverno. O pecador do pobre não podia sair pola Rengina94 e, lamen-tando sua mofina e o trabalhoso viagem que levava, chamava a Deus e a Virgem gloriosa, sua Madre, que o socorressem.

A esta conjunção achou no próprio caminho um homem que com ũa azê-mela estava metido no olho de um grande lamarão de barro, tão pesado que não podia sair, nem valer-se a si nem à azêmela. E ainda que bradou pelos que pas-saram a cavalo, nenhum quis acudir, até que chegou este pobre homem que ca-minhava a pé, e com mais trabalho que todos. O qual, vendo as mágoas com que pedia socorro aquele homem da azêmela, o quis ajudar e de feito ajudou, com vontade de o livrar daquela afronta. E fez de maneira com que tirando o homem da pressa de sua pessoa, buscaram ambos mato que lançar ao derredor da azêmela para poder chegar a ela sem atolar. Trabalhou tanto o pobre homem nisto, tirando ele e o dono por ela, que tirando a vezes pelos pés e mãos e outras pelo cabresto e rabo, como melhor podiam para a tirar fora, tirando o homem pobre polo cabo, a tempo que a azêmela já arrancava para sair, com a força que ela pôs em se sair e ele em tirar por ela, se lhe ordenou que lhe ficaram nas mãos tantas sedas do cabo da azêmela, que lhe davam grande fealdade. Mas, a respeito de se ver fora daquela pressa, não devera o dono de o sentir. Porém, ele tanto que viu o defeito na azêmela, veo a grandes brados com o pobre, dizendo que acinte lhe arrancara o rabo por se vingar do trabalho que ali passara, e que lhe havia de pagar por justiça tudo o que julgassem tinha de defeito sua azêmela, e que sobre isso iria à Corte.

E assi, indo após ele, alcançou os outros que iam diante na primeira venda donde estavam pousados, e lhes fez queixume do pobre que vinha a pé, muito triste de se ver com tantos desastres como lhe aconteciam, sem ele ter culpa. E por não dar ocasião que acontecessem mais, não quis pousar naquela venda, nem acompanhar mais com eles; mas só, se pôs ao caminho e chegou a Évora a tempo que eles já lá estavam.

E considerando o pobre como havia de parecer com três demandas diante do Regedor, temendo a desonra de ser julgado por mau antes de ser ouvido, quisera mais a morte que ver-se naquela vergonha. E assentou consigo (por obra do demô-nio) que era melhor matar-se ele mesmo a si, que ver-se em poder de seus imigos.

Consideremos aqui que cegueira é a que o diabo põe aos que faz desesperar. Perguntemos-lhe: “Homem, os imigos que te podem fazer? Ao mais é matar-te o corpo? Pois, e tu queres matar-te primeiro. Logo maior imigo teu eres tu que os outros te são. Que eles, como digo, te matariam o corpo somente, e tu mataste cor-94 No original, este topônimo aparece grafado com letra minúscula inicial. Pelos dados apresen-

tados neste ponto da narrativa e comparando-se esses dados com os que se apresentam mais à frente (página 111, nota 97), esta localidade também se situava na área que hoje compreende a freguesia do Concelho de Vendas Novas, distrito de Évora, no Alentejo, embora o nome desta localidade não mais apareça entre as freguesias deste Concelho.

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po e alma para sempre, condenando-te à pena perpétua. Mas saibamos que te diz o demônio para te cegar o entendimento e persuadir que te mates? Diz-te que, ma-tando-te, ficarás livre da afronta e trabalho em que te achas, de que ele nem pode, nem quer livrar-te; mas busca como te meter na afronta do inferno para sempre”.

Confiemos todos no Senhor, que é verdadeiro remédio de todas as afrontas e trabalhos. Esperemos Nele que remediará as nossas. Que o demônio mente quando nos diz que se nos matáremos sairemos de pressa, porque os que se ma-tam entram de novo em pressas maiores. Mas ele, que é pai da mentira, nunca soube dizer verdade para proveito do homem. Ainda que seja comprido, quero chegar com isto ao cabo. Quando o Senhor permitisse que viéssemos a mãos de nossos imigos e nos matassem, ali podíamos merecer, tendo paciência e pedindo ao Senhor perdão de nossos pecados, perdoando a nossos matadores. E com esta morte tal sairíamos de pressa com esperança da glória.

E tornando à história – que há muito que a deixei –, este homem, por não se ver na presença do Regedor com três acusadores, como digo, assentou consigo que era melhor matar-se, e logo o pôs por obra desta maneira. Que subindo pela escada do muro da cidade, foi acima até chegar às ameas da torre que está sobre a porta. E deixou-se cair da torre abaixo para a banda de fora, com intenção que assi se mataria.

Ora notai os mistérios do Senhor. Que aquela manhã, que depois de tanta chuva havia amanhecido o dia bom e muito fermoso, um velho que estava entre-vado, doente, e morava ali perto da porta da cidade, por gozar do sol deste dia, se fez levar ao soalheiro, ao pé do muro, por ali aquecer95 e ter refrigério de ver e falar com alguns conhecentes que passavam. E assi, pouco depois dele assen-tado em ũa cadeira – vedes? – vem de cima do muro pelos ares aquele homem que, desesperado por se ver com tanta demanda, se lançou desejoso de receber a morte. O qual veo direitamente a dar sobre o desditoso velho, que estava muito doente, e se mandara assentar ali para esparecer. E como o homem vinha de alto, foi o golpe tão grande (e o velho estava tão fraco) que, em acabando de lhe dar, o triste velho morreu, que parece que tinha ali a sua derradeira hora. E o pobre homem que desejava morrer não recebeu nenhum dano da queda, que foi toda em cheo sobre o velho.

Ao qual logo acudiram dous filhos que tinha e, achando-o morto, lançaram mão do matador, e preso o levaram ante o Regedor. E outros filhos e netos leva-vam também o morto, e iam na companhia, pedindo justiça sobre aquele homem que lhes matara seu pai. E assi levaram ao pecador do homem pobre tão afadiga-

95 No original aquécer, com acento agudo sobre a vogal átona do radical, provavelmente para marcar possível crase de uma forma arcaica aqueecer, posterior à forma acaecer, do latim calescĕre.

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do, que nem ia em si, nem sabia como ia, que a esta hora quisera ele mais ser o morto que o matador, tal estava.

Porém atravessando com ele pola praça, foi visto do irmão e dos outros dous contrairos que o estavam aguardando, que acudiram para ver o que era. E entendendo o caso, tomou o irmão a dianteira e assi, ao tempo que os filhos do velho pediam ao Regedor justiça sobre aquele homem que lhes matara seu pai, que ali traziam morto, disse o irmão:

– Senhor, antes que este caso acontecesse, este homem tem comigo e com outros dous demandas a que somos vindos a esta Corte. Pedimos a Vossa Senho-ria que nos ouça primeiro, porque, se este caso for de morte, fique determinado o da fazenda, para que a haja quem for direito.

E o vendeiro também queria dizer seu queixume, e o da azêmela o mesmo, de maneira que cada um se atravessava por falar, não deixando dizer ao outro. Tanta briga tiveram entre si, que o Regedor olhou nisso e logo naquele instante propôs em si que se achasse da parte do pobre algũa cousa com que per direito o pudesse favorecer, que o faria de bõa vontade. E mandou calar e disse que as pes-soas que tinham que dizer contra aquele homem dissessem um a um, começando primeiro quem primeiro teve a diferença, e assi cada um per sua ordem.

Pelo qual o irmão foi o primeiro, que lhe pediu as casas, fundando-se nas duas razões já ditas, ou seja: “Se as dei solteiro, era menor; se casado, não outorga minha mulher”. Ao qual respondeu o pobre com a verdade do caso como passava e como já fora julgado: que, pois era amancipado, a doação era válida. E logo ali houve quem os conheceu que eram irmãos e descobriu ao Regedor como aquele pobre em vida de seu pai casara; e como, por ser sem sua licença, lhe tirou a he-rança, como fica dito. O que tudo o Regedor folgou de saber e disse:

– Eu mando que este fique com as casas como estão julgadas e que vós, que sabeis que lhas pedis mal e com malícia insistis nisso, lhe pagueis a ele duzentos mil réis.

Que em tanto avaliaram os homens bons que ali estavam a fazenda que aquele sonegou e pertencia ao pobre. E logo foi por eles preso e não foi solto até pagar, que se cumpriu na mesma hora, porque achou quem pagasse por ele.

Concluído com este, veo o vendeiro, dizendo que lhe fizera mover a mulher, com que havia tanto tempo que era casado, e que esta era a primeira emprenhidão, acusando-o de malícia, e que lhe não quisera dar do que comia. Ao qual respon-deu o pobre com a verdade, contando como passara, da maneira que o ouvistes. E o Regedor, visto o caso, julgou ao pobre por sem culpa. E que, se o vendeiro fosse contente, o pobre homem fosse obrigado a lhe ter sua mulher em casa tanto

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tempo, até que lha tornasse a dar prenhe, mantendo-a à sua custa;96 e senão que, pola afronta em que o pusera e em emenda do dano que lhe fez em sua casa, dando nele como ouvistes, lhe pagasse cinquenta cruzados, que logo o vendeiro disse que pagaria, antes que dar a mulher ao outro. E os pagou e se foi em paz.

E logo veo o da azêmela, pedindo que, maliciosamente pegara no cabo da-quela alimária e lho arrancara, o qual era muito defeito e grande fealdade, que lhe mandasse pagar o que fosse avaliado que merecia, pola disformidade que tinha. Ao que foi respondido polo pobre, dizendo como o ajudara a sair do atoleiro e o mais que fica contado. Que, ouvido polo Regedor e vista a ingratidão do benefí-cio recebido, foi julgado por ele que a azêmela ficasse em poder do pobre, tanto tempo até que lhe nascesse o rabo, e se servisse dela. E se o dono apelasse disso, pagasse cinquenta cruzados. E ele, que os não tinha, quis antes perder a azêmela que ver-se preso. E assi se foi e a deixou para o pobre.

Isto concluído, os filhos do velho que estava morto alçaram as vozes, pe-dindo justiça e dizendo:

– Senhor, este matou. Aqui temos o morto e o matador. Moura por isso, que assi é justo.

O Regedor quis saber o caso miudamente, e ouviu ao pobre como e por que se lançara do muro abaixo. E também soube dos vizinhos daquele bairro que o velho morto havia muito tempo que estava entrevado e tão morto que, sem o gol-pe que lhe deu, per natureza e enfermidade estava já expirando. O que tudo visto, mandou que aquele homem acusado fosse assentado na cadeira em que estava o velho quando morreu e o acusador se subisse no muro e se lançasse dele abaixo, como o outro fez, e assi caísse sobre ele e o matasse, que desta maneira o matador pagaria como pecou. E se não quisessem aceitar isto, que pagassem ao pobre pola afronta em que o puseram cinquenta cruzados. Os filhos do velho, visto que podia ser, deitando-se do muro, errar o golpe e não fazer-lhe dano, e o que se lançasse corria muito risco de perigar, davam brados, dizendo:

– Senhor, e se não fizer nada do golpe, ficará sem castigo?O que visto, lançaram mão deles, dizendo:– Pois quereis vós que matem agora um mancebo de trinta anos, por um

velho que há outros trinta que, per natureza, é já morto, ainda que agora acabou de expirar, e mais, per um caso desestrado? Que, se vos parece malícia, matai-o vós a ele, como está julgado, ou pagai.

E foram logo reteúdos, e houveram por bem de pagar os cinquenta cruza-dos, antes que aventurar a vida. E de feito os pagaram.

96 Neste parágrafo, o trecho que vai de “E que, se o vendeiro ... mantendo-a à sua custa” foi supri-mido nas edições censuradas, já não constando da edição de 1595.

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E assi o homem acusado ficou livre e com muito dinheiro, com que se tornou para Lisboa na azêmela que lhe julgaram. E este descobriu o caminho de Bombel,97 por não ver a Rengina nem a Landeira, onde tinha seus competidores. E deste modo o livrou Deus das demandas e trabalhos que tinha, e lhe deu dinhei-ro e cavalgadura, com que tornasse a suas casas e as fizesse, acabando-as de todo com contentamento, deixando tristes seus adversários.

Pelo qual fica entendido que, ainda que tiranos poderosos avexem e mal-tratem ilicitamente aos pobres, nenhum desespere da mercê de Deus e de Sua misericórdia, que Ele livra e há de livrar sempre a Seus servos de todas as pressas e trabalhos em que estiverem, se com verdade nas causas muito de coração devo-tamente chamarem por Ele.

Ora nós todos juntos, em um amor e caridade com Cristo Nosso Senhor, chamemos a Ele que nos acuda nas necessidades que temos presentes, que tenho por sem dúvida que Ele nos acudirá como Pai de misericórdia que é.

CONTO XVII

Que as mulheres honradas e virtuosas devem ser caladas. Trata de ũa que falou sem tempo e da reposta que lhe deram.

A mulher honrada, ainda que o seja, lhe é necessário ser calada. E todas as discretas o confessarão. E se algũa tem por gentileza ser muito cortesã e zomba-deira, eu não lho gabo, e creo que lhe nasce de confiada de si mesma, e que sua honra e virtude lhe basta.

Digo que se engana e dou de conselho às que o quiserem aceitar que fol-guem de ser caladas e não falem muito, ainda que sejam discretas, galantes e saibam bem assentar sua razão. E quem não quiser este conselho – as portas de sua boca lhe ficam abertas – fale o que lhe parecer, que assi faço eu: que lhe digo o que me não pregunta, e por ventura lhe pesará de o ouvir. Porém lembro-lhe que o néscio calado por sábio é contado. E é dito de um filósofo que não há néscio que saiba calar.

E se estivera calada ũa mulher que eu vi, não me dera ocasião a contar o que ouvi e encomendei-o à memória, por me parecer reposta breve e graciosa, ainda que dali ficou a senhora corrida. É o caso.

Iam dous mancebos passeando pelas ruas de Lherena (que é ũa vila em Castela)98 por partes desviadas da praça, donde, por ser dia de festa, estavam mu-

97 Localidade situada igualmente na freguesia do Concelho de Vendas Novas, distrito de Évora, no Alentejo. De acordo com a narrativa, o personagem tomou um caminho alternativo em seu retorno a Lisboa, para evitar confronto com seus competidores.

98 Cidade espanhola, da província de Badajoz.

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lheres assentadas às portas, folgando. E eles foram vistos delas de longe. E parece que ũas com as outras, já entre si, zombavam deles, porque, quando chegaram em direito delas, ũa disse alto contra as outras:

– Vós vedes que narizes que têm? Certo que estes chegaram ao repartir.99

Porém, em ela acabando de pernunciar a última palavra, disse um deles contra ela:

– E vós não chegastes quando davam a vergonha, porque, se a tivéreis, estivéreis calada.

Disto se injuriou ela muito. E entrando-se em casa onde estava o marido, lhe fez grande queixume, dizendo que aquele lhe chamara desavergonhada. O qual quis saber a verdade, que as vizinhas lhe disseram. E quando entendeu como passara, dentro em sua casa, discretamente, lhe pôs as mãos, e não teve dever com os que passavam seu caminho. Polo qual afirmo que é bom o rifão que diz: “A mulher honrada sempre deve ser calada”.

E algũas mestras de moças que são discretas usam de manha polas ensinar bem, a saber, dando-lhe búzios fermosos que levem na boca quando se vão para casa, dizendo-lhe que lhes faz os dentes alvos e cheirar bem o bafo, que os não tirem da boca até casa. E às vezes lhes dizem que qual lhe achar um alfinete na rua que lhe dará três novos por ele; que lho busquem com os olhos no chão quando se forem, porque o achado é bom par’ela. O qual fazem, porque as moças não falem, nem alcem os olhos do chão quando forem pela rua, e se ensinem a não tomar brio de ver e ser vistas, que a mi me parece muito bem.

CONTO XVIII

Como castiga Deus acusadores e livra os inocentes. Trata de um comenda-dor que foi com falsidade acusado diante d’el-rei.

Um príncipe poderoso deu ũa comenda grande de muita renda a um fidalgo nobre que, além de a ter ganhada em África, segundo costume, ele a merecia per sua virtuosa condição e bons costumes.

Este comendador, tanto que tomou posse da comenda, recolheu-se a viver no mesmo lugar donde a tinha, que era ũa boa vila, e fez da renda cinco partes, das quais as duas bastavam para ele e toda sua família comer e beber, vestir e cal-çar, e pagar servidores. E as outras duas gastava com os pobres que havia naquela comarca, dando-lhes ordinariamente tudo o que lhes era necessário. E a ũa quinta parte andava sempre de sobressalente para mercês extraordinárias, hóspedes, ou fábrica de algũa propriedade.

99 No momento em que se distribuíram os narizes entre as pessoas.

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E trazia isto tão redondo e bem repartido que a todos tinha providos do que lhe cumpria, e a casa sempre aparelhada para as necessidades que podiam suceder. E acerca do dar das esmolas, levava tanto gosto que se fizessem bem, e temia-se tanto de maus servidores as não darem como ele queria, que tinha por exercício ũa vez na somana fazer ele per sua mão o que mandava que se fizesse cada dia, que era repartir com os pobres o que já tinha determinado que se ha-via de dar a cada pessoa. E no dia que ele o dava perguntava se nos dias atrás haviam desfraldado algũa cousa. E achando nisto falta, estranhava-lho muito a quem tinha a culpa e, se o caso o requeria, castigava-o bem. Porque de sua parte eram os ministros desta obra tão providos e pagados que nunca, com necessidade, viessem a fazer vileza.

E ainda que para este efeito tinha homens mui virtuosos, entre eles acertou haver um de tão ruim condição que tudo o que davam, ainda que fosse de esmola, se lho não davam a ele, parecia-lhe que era mal gastado; e tudo o que ele tinha e podia haver cuidava que era pouco. E um dia disse ao senhor que lhe pedia, por mercê, que olhasse que gastava sua fazenda mal e que, se podia dizer por ele, que tirava o pão aos filhos e o dava aos cães, porque não olhava por ele que era um homem honrado, que havia doze anos que o servia e não tinha para si mais de quarenta mil réis por ano e um vestido. Que lhe pedia que deixasse de gastar um mês com aquela caiçalha que mantinha, que lhe gastavam cada dia muito, e que lhe fizesse mercê daquilo, por seu serviço, que bem lho tinha merecido. E não quisesse ter ali tanto soloio, gente ruim, que vinham esgalgados, maridos, e mulheres, e filhos, que lhe comiam tanto que ele nem os seus não podiam forrar ao cabo do ano sequer cinquenta cruzados, porque aqueles sumiam tudo.

Disto riu o senhor e disse-lhe:– Vós cuidais que tendes pouco de mi, tendo mais de um tostão para cada

dia. E dou-vos vestido e casa, e calo-me ao que vejo que aproveitais para vós. E parece-vos muito dous vinténs que dou a cada pobre homem para ele, e trinta réis para cada mulher, e vinte para cada filho ou filha. E quereis que lhes tire isto e que a vós, que tendes mais de cem reais, vos acrescente, estando em minha casa das portas a dentro. Desengano-vos, que o não hei de fazer. Contentai-vos, se quiserdes; e, se não, i-vos embora e pagar-vos-ei o serviço que alegais, que por doze anos que há que servis, dando-vos eu de comer e beber, vestir e calçar. Por justiça bem vos pagaria outrem com quarenta mil réis, ũa vez pagos em dinheiro. Ora eu dou-vo-los de tença cada ano, e visto-vos, que me pedis. Não peçais o sobejo que parece mal.

Desta reposta ficou este homem agastado, e foi-se a el-rei, que o conhecia por familiar, criado daquele comendador, e disse-lhe:

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– Senhor, eu sou do comendador Dom Simão, criei-me em sua casa doze anos há e não posso sofrer tal desmancho, que parece que o que trabalhou por haver toda sua vida trabalha agora por gastar em um ano. Eu lho reprendi, não dá nada por mi. Parece razão que Vossa Alteza atente nisso, porque ele mantém ũa caiçalha que são mais de duzentas cabeças. Faça com ele que os despida e gaste aquela renda com os seus; e, se não, tire-lha, antes que deixar-lhe esperdiçar tanto dinheiro.

Pareceu-lhe a el-rei que este dizia verdade, e que Dom Simão era caçador e tinha muitos galgos e outros cães, e que, por isso, o reprendia do gasto demasiado e sem necessidade. E quando ouviu dizer duzentos cães, pasmou. E sem atentar o que fazia, se indinou tanto contra o fidalgo, que determinou destruí-lo ou matá-lo. E assi, com súpita manencoria, fez fazer prestes e cavalgou aforrado, e em cinco dias foi ter à comenda, donde o bom comendador estava, bem fora de cuidar a manencoria que el-rei trazia contra ele.

E tanto que el-rei chegou, foi o comendador para lhe beijar a mão. Mas el-rei lhe mostrou no rosto a má vontade que lhe trazia e o apartou logo. E disse-lhe:

– Eu tenho informação dos males que fazeis os quais determino castigar, e há de ser em todo caso amenhã. Salvo se, em amanhecendo, me responderdes a três cousas que agora vos quero preguntar. E acertando em todas, terei para mi que acertais no que fazeis; e, se não, sois condenado à morte.

Muito lhe pesou ao comendador em ouvir isto e quisera saber as culpas que lhe punham e desculpar-se delas. Porém el-rei o não quis escutar, mas disse-lhe:

– Pela menhã cedo vinde-me aqui dizer em que lugar do mundo é o meo dele; e quanto há de altura da terra até o céu; e que cousa está imaginando o meu coração naquele momento que me vós responderdes. E sem estas repostas, e cer-tas, não pareçais ante mi, nem me faleis.

E sem o querer ouvir se recolheu a ũa câmara a cear e dormir. E o comen-dador ficou agastado, imaginando no caso, sem saber por que estava el-rei manen-cório dele, nem entendia o que havia de responder a suas preguntas. E quando lhe representava a imaginação que se fosse, em tal caso tinha mor pena pela esmola que os pobres perdiam dele que, por padecer seu desterro, se deixasse a comenda.

E com isto se saiu a passear pola horta daquela sua casa em a qual estava por hortelão um virtuoso homem que, na idade, filosomia do rosto e fala, parecia muito ao comendador, e diferençava no traje somente. Que algũas vezes, queren-do por passatempo fazer festa, se se vestia o hortelão roupas do senhor, levemente se enganavam os criados de casa. E andando assi, passeando, foi vista sua tristeza pelo hortelão, que era virtuoso e de bõa criação. E foi-se ao senhor ao qual afinca-damente pediu por mercê que lhe desse conta de sua paixão, que poderia ser que, por seu meo, lhe daria Deus algum remédio. E quando não fosse assi, ao menos em pubricá-la desabafaria, e ficaria mais leve dela.

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O senhor, que sabia que este hortelão era homem de muita habilidade e saber, lhe contou o caso todo como passava com el-rei. E mais, além disto, dis-se-lhe de si:

– O que aqui mais sinto é que amenhã havia eu de partir a esmola com os pobres, segundo costumo. E com esta vinda d’el-rei convém que o deixe de fazer, por ir ter com Sua Alteza pela menhã. E assi deixo de fazer o que sei fazer, e é serviço de Deus e meu gosto, e irei responder ao que não sei, nem queria ir a isso, porque tenho temor suceda dali algum mal, sem eu ter culpa.

O hortelão, que era sisudo, lhe respondeu:– Senhor, tudo se remediará com ũa cousa. Mandai-me chamar pela menhã

com um homem, dizendo que quereis que eu vá repartir as esmolas em vosso nome, porquanto está aqui el-rei e vós quereis ir para ele. E eu lá, ambos daremos remédio a tudo como seja bem. Confiai em Deus, que sempre provê nas maiores necessidades, que Ele vos proverá em esta.

O comendador, que tinha experiência que este hortelão era muito sargez em suas cousas, se esforçou. E ficando na câmara, como foi menhã, lhe mandou dizer com um homem de casa que viesse ali, que queria que ele desse as esmolas aos pobres, porque se queria ir a el-rei, o qual homem foi e o chamou. O hortelão, que esperava aquele recado, tanto que lho deram, foi e ia dizendo pelo caminho:

– Hoje reparto eu. Todos me hão de obedecer, senão saberá o senhor Dom Si-mão como me tratam, que ele me mandou chamar, para me dizer o que hei de fazer.

E tanto que entrou na câmara, disse:– Senhor, o que é necessário fazer para remédio da afronta em que estamos

é que dispais essas roupas e vistais estas minhas. E saireis daqui fingindo ser eu, pois que já sabeis o que haveis de fazer na repartição da esmola. E eu fingirei ser vós e irei ter com el-rei, que já tenho cuidado tudo o que hei de dizer e fazer, para, com ajuda de Deus, livrar vossa pessoa e a minha da afronta presente.

O que tudo se fez assi. E o comendador foi dar a esmola como tinha de cos-tume, vestido no hábito de hortelão, e com seu nome. E, enquanto a dava, rogava a Deus que livrasse de mal a ele e a seu hortelão. E o hortelão, no hábito e nome do comendador, foi falar a el-rei. E isto foi feito com tanto segredo e resguardo que ninguém na casa o soube, nem o suspeitou.

E o fingido comendador começou a passear à porta da câmara donde el-rei dormira. E tanto que sentiu estava vestido, lhe mandou recado que estava ali para lhe dar a reposta do que Sua Alteza perguntara ontem. El-rei folgou disso e saiu para fora a um corredor que ali se fazia e ia ter sobre a horta. E postos ali ambos, disse o hortelão, fingindo-se o comendador:

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– Ontem perguntou Vossa Alteza três preguntas a que, respondendo, digo que, quanto à primeira – que é donde está o meo do mundo – , lhe afirmo que está ali.

E lançando mão de um arremessão, de muitos que naquele corredor esta-vam, o pregou na horta, fazendo com ele fermoso tiro.

– E para provar isto, digo que o mundo é redondo e ninguém diz o contrai-ro. E sendo tal, como é, em qualquer parte é o meo dele, como se pode ver em ũa bola redonda, a qual donde lhe puserem o dedo é o meo dela. Está Vossa Alteza nisto satisfeito?

El-rei disse:– Si. Dizei das outras.E ele respondeu:– A segunda pergunta é: quanto há daqui da terra ao céu? Saiba Vossa

Alteza que isto tem medida igual e é ũa vista d’olhos: abaixe os olhos ao chão e logo alevante-os ao céu, que com ũa só medida lhe chegam, que é como digo ũa vista d’olhos.

El-rei lhe disse:– Bem respondestes, livre estais das duas. Porém a terceira tenho para mi

que nunca a acertareis.E ele disse:– A essa melhor – Deus querendo –, porque a terceira é que hei de dizer

que é o que Vossa Alteza cuida no seu coração a esta hora d’agora. E porque isto não tem outro juiz senão ele mesmo, eu lhe peço que o queira ser justo, como o é em tudo o mais. E respondendo digo que a esta hora Vossa Alteza com todo seu coração cuida que está falando com Dom Simão, e fala com seu hortelão, que eu não sou ele, mas hortelão de sua horta, que sua pessoa no serviço de Deus está empregada. E se o quer ver vestido com minhas roupas, está dando esmola aos pobres que mantém cada dia nesta comenda. E porque hoje Vossa Alteza o cha-mou e ele tinha aquilo que fazer, trocamos os vestidos para que, fazendo ele ũa cousa, pudesse eu fazer outra e ajudá-lo.

El-rei, vendo a habilidade deste homem e que em tudo dissera bem, quis saber dele, com juramento, a vida do comendador e seu exercício. O qual lhe dis-se miudamente tudo o que fazia e como repartia sua renda, assi e da maneira que fica dito atrás, que el-rei folgou muito de saber. E disse que o queria ir a ver e que não se descobrisse que ele o conhecia, porque folgaria de entender o modo que tinha naquela repartição e como parecia naquele vestido em que estava vestido. E assi foi, e viu tudo miudamente.

E entre os que ajudavam, conheceu que estava ministrando o mau servo que lhe foi com o mexerico mentiroso. Mandou o prender e foi condenado a

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perder todos seus bens para a comenda, e a pessoa em perpétuo desterro. E ao hortelão dava el-rei cárregos honrosos na corte, porque andasse nela, o que ele não aceitou, por servir a seu senhor, que lho agradeceu e pagou, tratando-o dali por diante como a irmão carnal.

E despedindo-se el-rei do comendador, lhe mandou dar das rendas da coroa dous mil cruzados cada ano para esmolas, vendo como as fazia, o que se cum-priu. E o comendador isto e o seu repartia de tal maneira que Deus era servido e os pobres apascentados. E perdoando ao mau servo, lhe tornou a fazenda, por amor de Deus, ainda que o não quis tornar a meter em casa. O que ele não soube agradecer, mas fez outros delitos a el-rei, com que a perdeu, e a vida, que assi acontece aos maus.

Mas o bom comendador permaneceu nesta obra virtuosa até o fim de seus dias, fazendo-o cada vez melhor, mantendo cada ano mais gente. E sem se dimi-nuir sua fazenda, que Nosso Senhor usa Suas maravilhas de tal maneira que vemos claro que dar esmolas não empobrece, e furtar o alheo não enriquece. E o invejoso se perdeu, e o caritativo se salvou. E o Senhor, por esmolas, nos perdoa pecados.

CONTO XIX

De quão bom é tomar conselho com sabedores e usar dele. Trata de um mancebo que tomou três conselhos e o sucesso deles.

À casa de um sábio letrado, morador na cidade de Coimbra, chegou um mancebo de dezoito ou vinte anos e lhe disse:

– Senhor, meu pai – que Deus haja –, antes de sua morte, me deu cento e cinquenta cruzados e me mandou que buscasse nesta terra três doctos varões a que desse cinquenta cruzados a cada um. E lhe pedisse, por mercê, que cada um me desse seu conselho daquilo que me pertencia fazer, para bom governo de minha pessoa e vida. Eu tenho já escoleitos os leterados, e Vossa Mercê é o pri-meiro, a que peço que havendo respeito, que faço nisto o mandamento de meu pai defunto, me favoreça e queira dar-me seu conselho, tendo para si que hei de ir a outros dous a que o hei de dizer e tomar também seus conselhos. Sirva-se destes cinquenta cruzados.

E deu-lhos logo em dinheiro, que o letrado tomou. E estudando sobre o caso, vista a constelação do mancebo e tirado juízo, segundo por letras e saber se pode alcançar, passados oito dias lhe respondeu:

– Filho, depois de tomado conselho com os outros dous a que haveis de ir, assentai vivenda com algum senhor. E qualquer que for aquele que vos aceitar, honrai-o e servi-o com muita verdade e lealdade. E tende especial cuidado de fazer tudo o que vos mandar, com o mais desenganado serviço e proveito de sua

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pessoa e fazenda que puderdes. E se mudardes amo, ou muitos amos, nem por isso mudeis desta condição. Mas quanto os amos ou vossa pessoa for em mais crescimento de valor, então, se for possível, i crescendo nesta verdade e lealdade que vos aconselho, porque por ela vireis a honroso estado e sereis grande homem, Deus querendo.

Despedido deste letrado, se foi a outro e, com as mesmas palavras e rogos que disse ao primeiro, lhe pediu seu conselho. Declarando-lhe o conselho que já trazia, lhe deu cinquenta cruzados, que o letrado tomou. E estudando como o caso requeria, a cabo de oito dias, respondendo-lhe, disse:

– Filho, pressuposto que haveis de ser tal qual o douto varão vos aconse-lhou, que eu assi vo-lo torno a avisar, vos digo mais que – porque por ali haveis de chegar a valer muito com ajuda de Deus –, quando fordes poderoso, sede misericordioso, não façais com rigor tudo o que puderdes, ainda que seja justiça; mas fazei por fazer vossas cousas com misericórdia, porque a justiça, se se não mistura com misericórdia, vai dar em crueldade. E sendo misericordioso no que fizerdes, sereis benquisto de todos, que, ainda que lhes castigueis seus delitos, vos ficarão em obrigação pelo que lhes perdoastes. Sereis amado e tereis amigos que em algũa necessidade (se a tiverdes) vos serão bons. E isto guardai sem falta.

E o mancebo se foi ao terceiro letrado, ao qual contou os conselhos dos dous que já ouvistes. E com as mesmas palavras que a eles, lhe pediu o seu, dan-do-lhe os cinquenta cruzados, que aceitou. E estudando sobre o caso, conforme aos outros, repondeu aos oito dias e disse:

– Pois dais vosso dinheiro por conselhos, usai deles. Que eu, entendendo que guardareis os conselhos que vos deram os letrados a que os pedistes, e eles são bons, vos aviso que vos vai a vida em guardá-los. E além deles digo que, se os amigos a que fizestes bem vos agasalharem, aceitai seu gasalhado. E quando caminhardes, andai de dia, não andeis de noite, ainda que seja ũa pequena jorna-da. Mas deixai-a para pela menhã, que vos vai nisto muito.

Estes foram os três conselhos que os sábios deram a este mancebo. E se quiséremos cuidar um pouco neles, sem trabalho, lhe acharemos substancial re-creação, considerando quanto val a lealdade do servo ao senhor, e como os que o somos a devemos de juro. E havemos de atentar que às vezes consiste mais em fazer o que cumpre à sua honra que à sua vontade. E como, por leais, merece-ram muitos; e, pelo contrairo, se perderam outros. Ora, ser misericordioso é mui necessário, porque todos pedimos misericórdia. E o Senhor diz que os miseri-cordiosos, eles alcançarão misericórdia. E o que nos parece que é menos, como é caminhar de dia e não de noite, entendamos que nosso caminhar é toda a vida em a qual imos caminho da morte. Este caminho seja de dia claro, pela estrada coimbrã dos mandamentos de Deus; e não seja às escuras, na noite dos pecados,

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para que, quando chegáremos ao cabo da jornada, não nos achemos em trevas, mas repousemos com descanso na glória.

Que assi este mancebo, prometendo ao derradeiro sábio de guardar os con-selhos de todos três, se foi logo assentar vida com um senhor, cidadão daquela ci-dade, ao qual sempre foi leal, de verdade e sem lisonja, como lhe foi aconselhado.

Aconteceu que, vindo el-rei àquela terra, quis este senhor, por fruita nova (que então o era), mandar-lhe alguns figos, que os tinha em certas figueiras tem-porãs, muito bons. E mandou a elas três pajens, cada um com seu açafate, que os enchessem de figos, encomendando-lhes a limpeza e bom tratamento deles, porque eram para levar a el-rei, dos quais pajens era este mancebo um deles. E um dos outros, tanto que subiu na figueira, desejoso de comer dos figos, se pôs a isso, comendo os melhores que achava. E a tempo que eram horas de tornar para casa, e os outros tinham já cheos seus açafates, encheu ele o seu muito depressa, de maus e bons, como mais prestes pôde, por não ficar ali. E assi levou muitos que eram ruins e enxovalhados, não dignos de tal presente, donde os pudera levar todos muito bons.

O outro paje pôs-se a encher seu açafate, tendo olho em quando lhe vinha ter à mão algum muito fermoso que lhe contentava mais: este comia. E assi encheu com tempo de arrezoados, porém não levou neles nenhum muito bom. E, todavia, limpo e bem concertado o safate,100 e ele farto dos melhores figos da figueira.

Este nosso pajem de que tratamos, tanto que trepou na figueira, com grande diligência buscou como encher seu açafate de muito bons figos, limpos e madu-ros, tendo diante dos olhos que este era o gosto de seu senhor, que os havia de mandar a el-rei. E nunca quis provar nenhum, até que de todo apanhou os que lhe bastaram e ele queria levar, os quais pôs no açafate por tanta ordem, limpeza e concerto, que era muito para ver. E chamando aos outros, esperou que acabassem de encher, e foram-se todos três juntos.

E ainda que na primeira instância, levando os figos de serviço, todos três açafates foram bem recebidos, logo se viu a aventagem que o deste pajem tinha aos outros, e que fora melhor apanhado, e a limpeza e discrição do mancebo. E foi descoberto o caso que aconteceu no apanhar, e como cada um dos outros comeu os melhores e este nem os provou.

Pelo que o mestre-sala d’el-rei o pediu àquele cidadão com quem estava, o qual, pelo aproveitar, lho deu. E o moço se soube dar tal manha em seu serviço, e com tanta verdade e amor servia, e tão leal e diligente era em fazer o que o mestre-sala mandava, que el-rei, de o saber e de o ver, levou muito gosto, e não queria ser servido per outrem, senão por ele, quando o mestre-sala era ausente. E neste estado durou, até que seria já de 24 ou 25 anos, e sempre foi havido na casa 100 No original çafate, com cedilha inicial.

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d’el-rei por honesto, virtuoso e casto – ao menos nunca lhe foi achado o contrairo – , polo qual cada dia crescia no favor d’el-rei e amor de todos os de casa.

Neste tempo mandou el-rei para fora do reino ao mestre-sala, com um cár-rego honroso, quase galardão de seu serviço, e mandou que, até ele tornar, servisse em seu cárrego aquele mancebo, o qual o fez, tendo tão boa ordem no serviço do ofício, que el-rei estava satisfeito. E tanto que vindo novas que era morto o mes-tre-sala lá donde fora, ainda que fez grandes mercês aos filhos, todavia não admitiu nenhum no cárrego de seu pai por então, mas a este deu o ofício. E não parou aqui, porque tanto cresceu em virtude que, antes que houvesse trinta anos na idade, era de setenta no conselho, e em todas as bõas manhas que o virtuoso pode e deve ter. E foi tal que mereceu que el-rei o fez mordomo-mor da casa da rainha.

E querendo ir aforrado visitar seu reino e prover algũas cousas dele, o dei-xou donde ficava a rainha, servindo-a neste cárrego em que esteve até que el-rei tornou, que, por alevantamentos de guerras e outros importantes negócios, andou pelo reino mais de dous anos. E quando tornou donde estava a rainha, como nun-ca faltam maus, foi este mordomo-mor mexericado com el-rei, de maneira que com falsas informações o indignaram tanto contra ele que, sendo como era muito leal, afirmaram contra sua pessoa que era tredor. E isto dito per palavras e per pessoas que el-rei creu que seria verdade. E porque de todos era benquisto, não quis el-rei na corte fazer justiça dele, nem descobrir seus delitos. Mas, chaman-do-o ante si, lhe disse:

– Esta carta não se fia de outra pessoa, senão de vós. Pelo qual, com diligên-cia, caminhando o mais que puderdes, a levai a fuão que está na raia deste reino, em tal fortaleza, e dai-lha, e vede como e de que sorte tem a guarda daquele castelo.

E logo lhe deu ũa carta cerrada, selada com o selo real, que o mordomo tomou como leal criado. E visto o mandado d’el-rei, partiu logo para a fortaleza por jornadas que já levava ordenadas da corte em que, ao terceiro dia, havia de ir dormir àquele castelo. Porém ũa légua antes de chegar a ele, se achou com o cavalo quase desferrado de todo, que não podia andar sem lhe lançarem algũa ferradura e cravejar as outras. E porque isto era passando polo meo de ũa bõa povoação, quis repairar sua cavalgadura. E ouvindo trabalhar um ferrador, foi-se para aquela parte. Mas antes que chegasse, lhe saiu ao encontro um homem preto, alto de corpo, ladino, e lhe disse:

– Senhor, bõa seja a vinda de Vossa Mercê. Em verdade este é um alegre dia para mi. Apee-se, repousará aqui esta noite.

Porque a estas horas já se punha o sol. E o mordomo-mor, sem lhe respon-der, se desceu do cavalo, pela necessidade que tinha, como dissemos. E o preto lho tomou e, vendo que o senhor não lhe respondeu, teve para si que o não co-nhecia, como era verdade, ainda que havia razão para o conhecer. E ele falou com

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ũa mulher que ali estava e pôs-se a ferrar o cavalo, o qual fez com muito primor e graça. E feito, disse:

– Senhor, conhecei-me, que tenho muita razão de vos servir. E fazei-me mercê que entreis nesta casa que é vossa, pois que o é o dono dela que sou eu.

E o mordomo, atentando por ele, pareceu-lhe que já o vira, mas não se determinou donde. E por não se deter, que se fazia tarde, não lhe perguntava quem era; antes lhe queria pagar seu trabalho e pôr-se a cavalo para cumprir sua jornada. Mas o preto nem quis paga, nem lhe queria dar o cavalo, e com grande instância lhe pedia quisesse ficar aquela noite ali, porque era tarde. Cearia e dor-miria naquela pousada e, pela menhã cedo, iria ao castelo donde dizia que queria ir dormir. Dizendo o preto que, como era o tempo de guerra, chegando de noite, como seria quando chegasse, o capitão não quereria mandar abrir a porta da for-taleza, e, porventura, por isso seria mal agasalhado.

E nestas detenças estiveram algum pequeno espaço que lhe pareceu ao mor-domo que devia de ficar ali, porque o preto se lhe deu a conhecer e era amigo que já recebera honras dele. E conforme ao terceiro conselho, não havia de passar adiante. E assi o fez, com intenção de se erguer muito cedo e amanhecer na fortaleza.

E aceitada a pousada do preto e a cea, que a mulher com que falou apar-tado lhe tinha bem aparelhada, que ela era sua mulher e ele lhe havia dito quem o senhor era e o que havia de fazer, cearam todos com muito contentamento. E o preto deu conta ao senhor de sua vida e a causa como e por que morava ali, de que o mordomo ficou contente. E sobre mesa lhe disse como ia àquele castelo, não a mais que a dar aquela carta d’el-rei ao capitão, que devia importar, pois el-rei a não fiara d’outrem senão dele, a qual mostrou e pôs debaixo da cabeceira quando se foi a dormir, dizendo que havia de madrugar muito cedo a levá-la. Bem fora de cuidar o desastrado fim e desonrada morte que lhe estava aparelhada aquela madrugada, se Nosso Senhor, por Sua misericórdia, não lhe socorrera da maneira que vereis.

Duas horas antemenhã, o preto se ergueu de sua cama e, tomando mansa-mente a carta da cabeceira ao mordomo, disse a sua mulher:

– Eu vou a este castelo. Serei aqui antes que o sol saia, Deus querendo. Ro-go-vos que, enquanto vou dar esta carta, tenhais prestes o almorço para o senhor, que quero poupar-lhe este trabalho. E não o acordeis, que prestes venho.

E assi, com a carta d’el-rei a bom recado caminhou e, antemenhã, ele esta-va batendo à porta da fortaleza. E saindo um homem a ũa fresta a preguntar que queria, disse o preto que trazia ũa carta d’el-rei, que logo foi dito ao capitão. E por ser um homem só, lhe mandou abrir e ele foi recolhido dentro. E tanto que o capi-tão abriu a carta, sem outra detença o mandou enforcar de ũa amea. E o preto não foi ouvido, ainda que em sua defesa queria dizer que ele não trouxera a carta da

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corte, mas que em sua casa a houvera do que a trazia. Isto nem al lhe aproveitou. E assi padeceu, vindo ele tão fora de o imaginar e tão ledo no caminho.

Ora, o mordomo-mor, tanto que foi menhã, se ergueu e vestiu, e mandou tirar o cavalo e quisera caminhar. Mas quando não achou a carta, ficou agastado, porque, como ele entendeu que el-rei lhe mandava ver como estava a fortaleza provida, de necessidade havia de ir lá a vê-la. E a mulher do ferrador lhe dizia que já seu marido não podia tardar, que esperasse. E tanto tardou que o mordomo, que não sofria detenças no que lhe cumpria fazer em serviço d’el-rei, por cumprir o que Sua Alteza lhe mandara, tanto que viu horas de dia para caminhar, se pôs a cavalo e partiu a todo galope.

E em chegando à vista da fortaleza, viu o preto enforcado da amea, que lhe dava já o sol. Logo presumiu que aquilo devia ser recado da carta, e estava consi-go pensativo que faria. Todavia, com a fúria que o cavalo levava, chegou à porta e, porque foi conhecido dos de dentro, lhe foi logo aberto. E em entrando, disse:

– Mandou-me el-rei a todo correr, e venho após este preto, que o chamava Sua Alteza. E não o pude alcançar até’qui, e agora acho-o enforcado. Que direi? Ou, por que o enforcastes? Que vos fez? Que não pode haver muito que chegou.

O capitão lhe disse:– Senhor, não me fez nada, mas trouxe-me esta carta d’el-rei, com que lhe

respondo. Leve-a Vossa Mercê, se quiser, e mostrar-lha-á, para satisfação de mi-nha parte e da sua, que ela é boa desculpa de sua morte.

O mordomo-mor a tomou e viu que era a que ele trazia. Leu-a, que dizia assi: “Capitão, tanto que esta receberdes, enforcai o portador”. E estava escrita da própria letra d’el-rei, e assinada e selada, de que o mordomo-mor ficou espanta-do. E dentro em seu coração dava graças a Deus que o livrara daquele tempestuo-so ímpeto d’el-rei. Imaginava consigo por que seria, e não achando em si culpa, como homem sem ela, determinou tornar diante d’el-rei com a própria carta, o qual fez assi. E por outro caminho, por não passar pola porta do ferrador, tornou à corte com tanta pressa como veo.

Porém, guardando sempre a ordem de seus conselhos e fazendo verdade e lealdade, sem usar do poder de seu mando, senão como pobre caminhante, to-mando as pousadas com sol, chegou ao paço a horas que el-rei acabava de jantar e se recolhia a ũa câmara a repousar. E como este mordomo sempre foi tão favo-recido d’el-rei e ninguém sabia o contrairo, não havia porteiro para sua pessoa, e entrou dentro. E posto em geolhos diante d’el-rei, disse:

– Senhor, não sei que súpito acidente pôde tanto com Vossa Alteza que, sem ser ouvido, me mandasse matar tão cruelmente. Mas Deus, que sabe minha inocência, me escapou.

E com breves palavras lhe contou como. E disse-lhe:

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– Porém, se Vossa Alteza tem culpas de mi, aqui estou, faça justiça, que lhe peço a não deixe de fazer por mi, nem por outrem. Mande vir diante de mi quem me acusa, que, ainda que sejam muitos e eu só, confio em Deus e de mi que me não acharão culpado, porque sempre a boa consciência, ainda que estê cercada de muitos, está segura; e a má, ainda que estê só, está tremendo de medo. E se me faz mercê que eu seja ouvido, saiba que, antes de vir à casa de meu primeiro senhor, dei cento e cinquenta cruzados que tinha a três sábios por três conselhos, que até hoje guardei. E do primeiro, que era ser sempre leal, como o fui e sou, resultou que, por mercê de Deus e de Vossa Alteza, subi a mais do que eu merecia nem esperava, como é chegar a servir de mordomo-mor da rainha, minha senhora. E neste tempo que o servia, sendo Vossa Alteza ausente, senti que um escravo de casa saiu do paço com certas peças ricas, que me pareceu levava de mau título. Tomei-lhas e, por não infamar a pessoa que as devera guardar, ou quem lhas deu para as vender, dissimulei o caso, forrei o escravo e mandei-o fora do paço, dando-lhe dinheiro para o caminho, no que tudo usei do segundo conselho, que era ser misericordioso quando fosse poderoso. Porque se eu usara de meu poder e com justiça inquirira do escravo quem lhe dera as peças, por suas culpas, ele e os outros que foram nisso deviam padecer, um por ladrão e outro ou outros por encobridores. Porém não usei do poder de meu cárrego, nem quis saber quem era o culpado. Perdoei o escravo, soltei-o e dei-lhe dinheiro com que se fosse, por não condenar a outrem. E disto não escrevi nada a Vossa Alteza, por lhe não dar desgosto, nem nunca o disse a outra pessoa. E agora, levando a carta que Vossa Alteza me mandou, achei-me ũa légua da fortaleza com o cavalo desferrado. Co-nheceu-me aquele escravo que, com o dinheiro que lhe dei, aprendera a ferrador e estava ali casado. E quando me viu, ferrou-me o cavalo. Mostrando-me e fazendo muito gasalhado, me importunou que pousasse com ele aquela noite, o qual eu aceitei por guardar o terceiro conselho, que era tomar pousada com sol, que tanto me custou como qualquer dos outros. E o preto me deu conta de si e como casara, agradecendo-me o bem que lhe fizera. E por mo pagar, sem eu o saber, me tomou a carta da cabeceira – porque lhe disse a levava àquele capitão – e de madrugada partiu de sua casa e a levou, donde resultou que, conforme ao que nela dizia, ele padeceu. Eu, todavia, sem saber nem suspeitar o que seria, preguntei ao capitão o porquê o enforcara. Quis se justificar comigo, mostrou-me a carta que eu leva-va, que é esta que aqui trago, para que se descubra a maldade. Que pode ser que quem tinha culpa das peças que eu digo, quando achou que não parecia o negro, temendo-se ser descoberto de mi, quis com minha morte inocente segurar a vida maliciosa, pondo-me algum falso testemunho. Pelo que peço a Vossa Alteza in-quira a verdade e, sabida, não me perdoe, se com ela me achar culpado. E se eu sou sem culpa, faça-me mercê de me tornar a minha primeira honra.

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El-rei, ouvindo isto, pasmou. E fez vir ante si a quem o acusara, o qual, a poucas preguntas, confessou ele ser culpado em delitos que cuidava o mordomo--mor sabia. E por escapar, lhe alevantou tudo o que contra ele se disse a el-rei, crendo que assi se segurava de todo. Pelo que foi preso e, ainda que o mordomo lhe perdoou, el-rei o pôs em justiça, e por ela foi condenado à morte, que se executou.

E assi pagaram ele e o negro, como malfeitores que eram, os delitos co-metidos, e escapou o inocente. Porque sempre Nosso Senhor defende e guarda os que não têm culpa; e o pecado de cada um o leva a pagar seu malefício. E o mordomo leal e de verdade ficou no paço, com sua bem ganhada honra.

E assi, por rezão deste conto, trabalhemos todos de ser leais, porque falar verdade é mercaderia proveitosa. Sejamos misericordiosos e andemos no dia, que é em obras limpas, claras e de virtude, e não nos ache a morte no caminho da noi-te, que é em pecado. E por isto e por tomar os conselhos da santa Igreja Católica e os guardar perfeitamente, nos livrará o Senhor da morte arrebatada do corpo, e, despois que passáremos da vida presente, nos dará a glória. Amém.

CONTO XX

Que é ũa carta do autor a ũa senhora com que acaba a primeira parte des-tas histórias e contos de proveito e exemplo. E logo começa a segunda, em que estão outras histórias notáveis, graciosas e de muito gosto, como se verá nelas.

Senhora.Agora me deram um recado de parte de Vossa Mercê, em que me pedia lhe

mandasse um ABC feito de minha mão, que queria aprender a ler, porque se acha triste quando vê senhoras da sua calidade que na igreja rezam por livros, e ela não. Verdadeiramente folgo que deseja saber ler para rezar, que é bom.

Porém, já que o não aprendeu na meninice em casa do senhor seu pai com seus irmãos, deve agora contentar-se com as contas, pois não sabe ler, e por elas rezando muitas vezes a Saudação Angélica,101 que o anjo disse à Virgem Nossa Senhora, e a oração do Pater-Noster, que Cristo Nosso Senhor ensinou a Seus discípulos, é tão bom e basta tanto, que não há mais que desejar, nem melhores orações que rezar. E certo estas têm ventagem a todas, Vossa Mercê deve usar de-las e deixar o desejo de saber ler, pois já é casada, e passa de vinte anos de idade.

Porém, se este conselho não lhe parece bom, ou ainda que o é, se a não satisfaz, por obedecer a seu rogo, fazendo o que me pede, lhe mando aqui com esta um ABC, que Vossa Mercê aprenda de cor. E sabido, levemente com ajuda de Deus, aprenderá o mais que lhe for necessário.

101 Oração da Ave-Maria.

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O qual é que o A quer dizer que seja Amiga de sua casa; e o B, Benquista da vizinhança; e o C, Caridosa com os pobres; e o D, Devota da Virgem; e o E, Entendida em seu ofício; e o F, Firme na fé; e o G, Guardosa de sua fazenda; e o H, Humilde a seu marido; e o I, Imiga de mexericos; e o L, Leal; e o M, Mansa; e o N, Nobre; e o O, Onesta;102 e o P, Prudente; e o Q, Quieta; e o R, Regrada; e o S, Sisuda; e o T, Trabalhadeira; e o V, Virtuosa; e o X, Xpã; e o Z, Zelosa da honra.

E quando tiver tudo isto anexo a si, que lhe fique próprio, crea que sabe mais letras que todos os filósofos. E porque confio em Vossa Mercê que o expri-mentará e achará certo, não me alargo; mas rogo a Nosso Senhor a tenha de Sua mão e a mi me dê graça com que O sirva.

Em Lisboa, a três de abril de 1570 anos. Graças a Deus.

102 Neste item do ABC de moralidades: a) foi acrescentado o artigo o antes da letra do alfabeto, conforme aparece nos outros itens, mas não está impresso no original; b) foi mantida a forma gráfica do preceito moral, sem h, como está no original, para não descaracterizar o ABC.

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Segunda parte

PRÓLOGO À RAINHA NOSSA SENHORA103

Vendo eu, muito alta e muito poderosa Rainha e senhora nossa, como Vos-sa Alteza me fez mercê de receber a primeira parte deste tratado e me mandou dar parte do que custou o papel da impressão, sempre trabalhei quanto me foi possível por tirar à luz esta segunda, que lhe estava prometida.

Mas como quer que a barca de meu engenho é pequena, e muito fracos os remos, para passar o gôlfão do imprimir, temi muito, tendo por certo (como o é) que, pois a todas as obras da vida, ainda que sejam de autores graves, de grande prudência e primor, não faltam murmuradores, melhor e em mais abastança os haverá nesta que de tudo carece.

Porém, por outra parte, considerando como me são certas as mercês de Vossa Real Alteza, pelo antigo costume que tem de as fazer a todos e pela expe-riência que eu tenho de as ter recebido, tomei ousadia de a imprimir e presentar--lha, pedindo-lhe humilmente me faça mercê de a receber e amparar debaixo de seu favor, como fez à primeira, ainda que ũa e outra indignas de tão grande mercê.

Porque sei certo que, como entenderem ser favorecida de Vossa Real Al-teza, ninguém ousará ofendê-la, e eu terei atrevimento para passar adiante, aca-bando a terceira parte, que já tenho começada, para com ajuda de Deus presentar a Vossa Real Alteza, a que Nosso Senhor dê longa vida, com muita felicidade em Seu santo serviço. Amém.

CONTO I

Que trata quanto val a boa sogra, e como deve ser estimada. E como, por indústria de ũa sogra, esteve a nora bem casada com o filho que a aborrecia.

Ũa nobre dona deu a um mancebo, que ia para Índias de Castela,104 ũa beatilha muito fina, que lha levasse d’encomenda, que era tal e tão rica, que não pertencia senão para pessoa de estado, certificando-lhe que valia mais de cinco cruzados, ainda que a ela não lhos custou, porque a fiou per sua mão; dizendo que lhe rogava que a vendesse pelo mais que pudesse e que partiriam ambos o dinheiro.

103 Sobre a Rainha a quem se dirige o autor, veja-se a nota 69.104 Referência às possessões de Castela na América Central, chamadas de Índias, em razão do

engano em que se envolveu o descobridor Cristóvão Colombo.

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E o mancebo, não por cobiça do ganho, mas por fazer bem à viúva (que tinha ũa filha virtuosa que manter), a guardou e levou a recado, com tenção de lha aproveitar o melhor que pudesse e dar-lhe tudo o que por ela houvesse. E meteu-a antre outra roupa de linho que ele levava para seu serviço e para mercadoria.

Partido este navio da cidade de Lisboa, chegou com bom tempo a porto de Santo Domingos, e por estar àquele tempo a terra de paz, não havendo quem lho impedisse, começaram logo todos de vender o que levavam, sem lhe ser pedido registo. E vendiam e compravam à vontade, com grande proveito.

Porém, haveria cinco dias que ali estavam, quando se descobriu que eram portugueses, e vieram muitos navios a eles, sob a capitania de um fidalgo galego que, sabendo que havia oito ou dez portugueses naquele navio, trouxe quatrocen-tos castelhanos e veo sobre eles. E chamando a justiça da terra, a tempo que os portugueses estavam em terra, lhe entraram o navio e tomaram por el-rei toda a fazenda. E eles, que a seu parecer já andavam seguros, foram presos em terra, to-mando-lhe tudo o que lhe acharam; dizendo que por ir àquelas partes sem registo era toda a fazenda perdida, e estavam incorridos em outras penas corporais da mercê d’el-rei, o que logo puseram em justiça. E saiu per sentença que perdes-sem as fazendas, que eram mercancia, e das mais penas os relevavam per alguns respeitos que tiveram. E assi perderam os portugueses toda a mercaderia que levavam, e do nojo morreram quase todos antes de vinte dias.

Porém, como não perdiam a roupa de seu serviço, houve este mancebo à mão o caixão da roupa de linho donde metera a beatilha rica que levava de encomenda. E como se viu solto, vendo que todos seus companheiros eram fa-lecidos, que não havia já mais que a gente do mar, determinou por misericórdia pedir a fazenda que perdera, crendo que se contentariam com a dos outros que eram falecidos. E para se lhe fazer nisto favor, teve maneira como mandou aquela beatilha rica de presente à mulher do Justiça-Maior105 daquela terra, a quem havia de supricar. E ela, tanto que a viu, a aceitou e estimou em mais que se a fizeram princesa de Espanha. E desne logo trabalhou com o marido tudo o que pôde, para que desse a fazenda àquele homem. O qual, por muito que ela fez, não o pôde acabar106 com ele, mas disse que, por ela lho rogar, lhe queria fazer mercê de duzentos pesos de ouro de sua fazenda, antes que de um real da fazenda d’el-rei, nem de um cabelo de sua justiça.

Os quais a mulher aceitou e fez com o homem que viesse por eles, e desse as graças ao marido, por entanto, que ela buscava mais que lhe dar, que tão leda e contente estava com a beatilha. Que ainda que lhe dera por ela quanto tinha, lhe parecia que não lhe pagava todo o valor dela, segundo sua estimação. E assi

105 O juiz principal; administração judiciária das terras conquistadas.106 “Não poder acabar alguma coisa com alguém”: não conseguir persuadi-lo, levá-lo a fazer algo.

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ajuntou por casa cousas que outros lhe haviam apresentado, e ela não sabia seu grande valor. Tendo-as em pouco, lhe deu a este português grande soma de peças ricas e boas, dizendo-lhe sempre que tomasse aquilo por entanto, não se fartando de lhe dar.

E assi, sem lhe tornarem nada de sua fazenda, nem da de nenhum portu-guês, lhe deram cinco vezes mais do que lhe tomaram. E vendeu também o que lhe ficou na roupa de linho, que fez grande fazenda. E tudo feito em pedaços de ouro, veo a Portugal riquíssimo, donde por parte dos defuntos se tirou devassa do que se fizera da fazenda dos passageiros e achou-se ser toda tomada, sem que-rerem dar a nenhum nem um real. Pelo qual ninguém lhe pediu nada, nem havia razão para isso, nem se soube daí a muito tempo o que ele trouxera, porque, como era ouro, fazia pequeno volume.

Estando este mancebo já repousado em sua casa, disse-lhe um dia sua pró-pria mãe:

– Filho, se fizestes algum dinheiro da beatilha da vizinha, rogo-vos que o mandeis a sua filha que ficou órfã, porque ela é falecida.

E ele, vendo isto e tendo diante dos olhos que tudo o que trouxe lhe veo, depois de Deus, de presentar a beatilha, como a presentou, tomou cinquenta cruzados em ouro e deu-lhos à mãe, com as mesmas palavras que a mulher do Justiça-Maior lhe mandava a ele dizer, que eram: “Dizei-lhe que tome isto por entanto”. E assi lhos mandou. E isto fez quatro ou cinco vezes. E a mãe, vendo que ele tinha já dado tanto dinheiro e que lhe parecia não ter satisfeito, lhe disse:

– Filho, se vós tanto lhe deveis, que com o que lhe tendes dado não vos pa-rece que pagais, fazei o que vos eu disser, que é que vos rogo que caseis com ela, que verdadeiramente por sua pessoa o merece, que é muito fermosa donzela, de nobre casta, virtuosos costumes e perfeita em tudo o que ũa mulher pode e deve fazer de suas mãos. E certo que dela sereis bem servido, e por seu respeito muito honrado, fazeis serviço a Deus, amparais a órfã, e assi lhe pagais tudo quanto vos parece que lhe sois obrigado.

O mancebo, ouvindo isto a sua mãe, creu que tudo era verdade (como o era) e, pondo na imaginação que, se não fora a beatilha com que teve entrada na casa do Justiça-Maior de Santo Domingo, por ventura nunca houvera um só real; e pudera ser que, vendo-se perdido, morrera de nojo como fizeram os outros, conheceu claro que lhe estava em obrigação da fazenda e vida. E aceitou o casa-mento, que se logo tratou e veo em efeito. Porque por parte da moça não havia mais que sua pessoa, e ela entendeu que lhe vinha bem, porque não tinha com que poder alcançar outro melhor, nem tal como aquele.

Foram esposados e a seu tempo recebidos. Porém, como diz o rifão: “Que a órfã não goza nem o dia de sua voda”, assi aconteceu a esta. Que o dia que os

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receberam, azevieiros difamadores, membros de satanás, vinham da igreja detrás deles, murmurando do noivo, porque se casara com aquela, que sua mãe a ven-dera primeiro a fuão por tanto, e depois a tivera fuão em sua casa encerrada tanto tempo, e já parira e enjeitara o filho. E isto diziam tão desavergonhadamente que deram ocasião a que o noivo o ouvisse, e por respeito da gente que o acompanha-va, por não fazer alvoroço, se calou.

Porém, des então, lhe ficou um rencor no coração e tão grande menencoria consigo, que se não podia consolar, tendo-a também contra sua mãe. Dizia entre si que ela o enganara, crendo que aqueles que lhe iam dizendo tão perto palavras tão feas não lho alevantavam. E assi, despedida a gente que os acompanhou até casa, ele disse que ia por certa cousa que lhe faltava por trazer, e também se saiu de casa sem nunca mais tornar a ela.

Ficou a este tempo a noiva mais triste que a noite, sem ter consolação de ninguém, nem saber a causa daquela mudança tão acidental, porque nos dias que estiveram esposados lhe mostrou o marido querer-lhe muito, e trabalhou com ela por lhe haver sua flor, que ela não consentiu, esperando as benções da Igreja. E agora que o podia fazer sem impedimento, se fora sem dizer para onde, nem por quê. Isto a punha em tanta confusão, que não sabia que conselho tomar. E certo ela se deixara morrer de nojo se não fora a boa sogra que tinha, que esta a acom-panhou todo o tempo que lhe durou seu trabalho. Amoestando-lhe o que lhe cum-pria que fizesse, a fazia comer, e a consolava, dizendo-lhe que não se agastasse, que com ajuda de Deus ela lhe buscaria remédio e poria tudo em paz.

Porém, como o mancebo tinha para si que era enganado e que o engano lhe viera pela mãe, nem a mãe nem a mulher queria ver. E assi, apartado daquela vizinhança, em outra rua tomou casa, isto é, ũa lógea em que a pôs de merca-derias, que ele sabia tratar, com um sobrado em cima, em que viveu só, mais de dous anos, sempre manencório do que ouvira. E algũas vezes ia embuçado e desconhecido donde estava sua mulher, para ver se achava lá gente, que de sua conversação e trato se presumisse o que aos outros ouvira, para por isso a matar. O que fez muitos dias, e outros mandou a outros homens que a fossem espiar, e a mulheres de mau trato que a fossem cometer, com grandes promessas.

Porém os que a espreitaram não viram na mulher que tachar. Nem somente ele – nem eles, nem outrem – nunca mais lhe viu o rosto depois do dia de seu recebimento, senão as más mulheres, filhas de Belial,107 que com seus enganos fingidos a iam tentar, que ela despediu mal contentes. E depois que conheceu o que queriam, nem a mulheres queria abrir a porta. Mas ela e a sogra estavam juntas, conformes com amor de mãe e filha muito amigas, que tal era a velha para

107 Termo bíblico usado para designar Satanás; daí as filhas de Belial serem consideradas mulheres luxuriosas, prostitutas e ímpias.

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ela, por afeição, palavras e obras. E sempre trabalhou apalpando como falar ao filho, e pouco a pouco, tanto entendeu nisto que o fez, e ele houve por bem que a mãe lhe viesse a casa, dando-lhe que comessem ambas. Porém não queria ver a mulher, nem que lhe falassem nela.

Neste tempo, indo a mãe a ver o filho, algũas vezes lhe achou mulheres em casa, que ũa hora por outra ele trazia ali consigo. E tanto que a mãe sentiu isto, imaginou o que havia de fazer, e foi-se a casa e disse a sua nora:

– Filha, sempre tomastes meu conselho (que vo-lo dei bom) e espero em Deus que também tomareis agora este que vos der, do qual não vos virá dano. E é que deixeis estes trajes tão honestos e tristes e, por amor de mi, que vos façais muito fermosa e leda. E com outro traje, que pareça de mulher que vai em corpo fora, fiai-vos em mi que vos acompanharei até vos mostrar a lógea de vosso ma-rido: entrai nela e fingi comprar seda para um corpinho. Ele, quando vos vir só, bem creo que vos cometerá.

E daqui lhe aconselhou o que havia de fazer, e a fez vestir e toucar àquele modo, e se foi com ela per ruas secretas, até lhe mostrar a porta da lógea. E a velha se escondeu e tornou para casa.

A moça que viu seu marido, envergonhada pelo trance em que estava, lhe veo outra cor ao rosto que a fez mais fermosa (ainda que ela o era assaz) e esteve um pouco suspensa. O marido que a viu, não suspeitando, nem per imaginação, quem fosse, lhe perguntou o que queria, e a fez entrar, e deu ordem como despedir os que ali estavam. E ficando com ela só, começou a falar-lhe amores, a que ela de envergonhada e pouco exprimentada nisso, não sabia bem responder. E porém, como ia para aquele efeito, e eram já perto das ave-marias (que a velha escolheu estas horas por boas), ele a importunou e ela aceitou ficar ali aquela noite, em que ele conheceu claro que ela era donzela quando ali veo e viu que sem falta era muito fermosa.

E chegada a menhã, parecendo-lhe a ele que ela se queria tornar, tomou vinte mil réis em ouro, e disse-lhe:

– Senhora, estes aceitai de mi para ũa peça de vosso casamento, e tende-me por servidor.

Ela, que lhe pareceu que já não era razão nem tempo de usar de sua costu-mada vergonha, respondeu:

– Muito tempo há que vos tenho por meu senhor, e a peça para que vós me dais esse dinheiro vós mesmo a podeis comprar, porque eu sou vossa mulher. E se até’gora tardei, e estive sem vo-lo notificar, foi por vos dar mostra de minha pessoa, que fui tão mofina que, sem me ver nem haver por que, me enjeitastes. E se todavia agora me enjeitais, por minha grande desaventura, mais que por razão, mandai,

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senhor, chamar vossa mãe que me leve, que ela me trouxe, e ponde-me donde e como quiserdes, que estou prestes para obedecer em tudo o que, senhor, mandardes.

Quando ele entendeu isto e viu ser aquela sua mulher, esteve com a ima-ginação considerando a obra do demônio daqueles que a infamaram, como dis-semos, e não sabia determinar o que faria, que por aquela noite que a teve, se ela não fora sua mulher, e ele fora solteiro, lhe pareceu que lhe merecia casar-se com ela. E demais de sua fermosura e ser donzela, via nela ũa discrição e saber, que merecia ser mulher de um grão-senhor.

E estando nestas considerações, sem determinar o que faria, começaram a bater-lhe rijo à porta. E ele chegou a ũa fresta, e conhecendo que quem batia era sua mãe, lhe foi abrir, a qual, em entrando pela casa, disse:

– Filho, que vos parece da donzela que vos acompanhou esta noite? Credes que é a que eu disse, já que sabeis que é vossa mulher, ou tendes ainda na fantesia o que o demônio vos queria meter em cabeça, porque não houvésseis tal joia? Rogo-vos, polas entranhas d’amor que vos tenho, que me creais. Esta que aqui tendes é vossa mulher, recebida à face da Igreja como Deus manda, virtuosa, per-feita e boa, tal como, antes de agora, sempre vos disse. Se fosse a rigor de justiça, vos obrigaram que façais vida com ela, mas ela não quer, nem dar-vos o menor desgosto da vida. Pede-vos – e eu vos peço por amor de Nosso Senhor – que a aceiteis e tenhais em vossa casa. E se a não quiserdes por mulher, seja para vos servir a vós e a qualquer outra que quiserdes108 trazer, que nunca fará senão o que lhe mandardes.

Ele vendo a muita fermosura da mulher e sua grande humildade, e os ro-gos de sua mãe, e conhecendo que o que ouvira foi engano e mentira, pesou-lhe do tempo que deixou de estar com sua nobre e virtuosa mulher, vivendo fora do serviço de Deus, e fazendo muitos pecados. Dos quais, logo com bom coração na vontade, pediu perdão a Deus e à sua mulher, do agravo que até então lhe tinha feito. E se começaram a abraçar, como se então se viram a primeira vez. E ela ficou naquela casa, indo a velha e gente de serviço pelo fato que tinham na outra. E trazido, ficaram marido e mulher contentes. Tiveram a velha mãe dele por mãe de ambos, enquanto ela viveu, que ela merecia por suas virtudes e grande amor que sempre teve à sua nora. Que por esta se pode bem dizer: “A sogra boa, da nora é coroa”.

Esta boa sogra valeu à sua nora fazenda, vida e honra, e por ela teve mari-do de primeira e segunda instância, que ele, sem ter razão, a não queria ver. Esta sogra deu ocasião que o filho e nora vivessem em muita conformidade e paz, dada por Deus, o qual nos dê a nós a glória. Amém.

108 No original, com erro de impressão, na forma quiserderdes.

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CONTO II

Que diz que honrar os santos e suas relíquias e fazer-lhe grandes festas é muito bom, e Deus e os santos o pagam. Trata de um filho de um mercador que, com ajuda de Deus e dos santos, veo a ser rei de Inglaterra.

Em ũa cidade de Lusitânia havia um rico mercador, que tinha um só filho de grande discrição e habilidade, muito ensinado nos bons costumes, que o man-cebo nobre deve ter: douto na língua latina e grega, dançante, músico, grande tangedor de todos os instrumentos e tecla, cavalgador e bom cavaleiro, destro em todo exercício militar. De modo que por sua pessoa, sem outra cousa, era para caber em corte e casa do maior rei do mundo. E como ele tinha todas estas partes, não podia o pai sujeitá-lo a seu modo na mercancia, que o mancebo a não esti-mava; e prezava mais a companhia com nobres e exercitar-se com eles em estas suas habilidades e saber, ou em qualquer parte delas, que todo o tesouro que seu pai lhe prometia.

De maneira que era já homem de 24 anos e não lançava mão do negócio do pai, nem tão pouco era mal inclinado, nem desobediente. Mas seguia esta sua inclinação, crendo que valeria por ela.

E dizendo-lhe ũa vez seu pai que fosse à feira de Medina109 com certo dinheiro, o não aceitava, dando honestas escusas. E disse que, se queria que trou-xesse mercaderia de Fez (que naquele tempo estava de paz), que ele iria lá, o qual na verdade ele não fazia porque tinha intenção de mercadejar, que eram seus pen-samentos mais altos. Mas queria ir por ver os cavaleiros de África, suas manhas e costumes, e os jaezes mouriscos que tão nomeados são polo mundo.

E dando-lhe o pai três mil cruzados, partiu de sua terra em um navio, em que iam outros vizinhos mercadores, deles a comprar do que há naquela terra, e alguns a vender o que lá era necessário.

E assi, chegando àquela cidade, cada um ia donde sua inclinação o levava, que alguns foram logo donde se faziam tapetes para os mercar ou mandar fazer a seu gosto; outros a alambéis, bedéis, fileles, e outras diversas cousas. E assi comprava cada um conforme ao que queria e achava na terra.

Porém este nosso mancebo de que tratamos não procurava de saber das mercaderias, mas soube donde era a carreira, e o primeiro dia de festa se foi lá, que era outro depois de sua chegada. E foi por ver como cavalgavam os homens daquela cidade e seus cavalos, nôminas, cabeçadas e estribeiras.

E estando notando algũas particularidades, nisto viu um velho quase de cinquenta anos bem posto a cavalo, e com ele dous filhos mancebos de boa graça e postura. E parecendo-lhe que, por descuido dos criados, levavam todos mal 109 Cidade espanhola da província de Valhadolid.

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apertadas as cilhas, lho avisou, de que eles folgaram e tiveram olho nele, assi como o ele tinha em todos. E de quantos ali viu, nenhum lhe pareceu melhor posto a cavalo que o velho. E tanto lhe contentou que assi o disse a todos, de que alguns dos presentes se correram e lhe disseram que, pois ele tanto conhecia de sua postura deles e entendia qual estava melhor, que razão era vê-lo a ele a cavalo. E assi cada um lhe ofrecia o seu em que subisse, que ele não aceitava, parecendo-lhe descortesia deixar a pé ao que lho desse.

Porém o velho, que entendeu isto, com diligência mandou a sua casa por um cavalo, que logo veo, e lho ofereceu, dizendo:

– Tomai, senhor, este, que creo que estes fidalgos, que cuidam abater-vos per sua gentileza e que não vos poreis na sela tão bem como eles, hão de ficar aba-tidos de ver vossa boa postura. E eu e aqueles a quem já pareceis bem, havemos de ficar contentes e com lição.

O mancebo lhe agradeceu muito aquelas boas palavras, pôs-se a cavalo com muita ligeireza, e deu duas carreiras e ũa volta no campo, escaramuçando, e mostrou bem que sabia fazer o que dizia, porque o fez com tal graça e despejo, que viram todos que ele era digno de sua companhia e conversação, ainda que de antes cuidavam que era mercador somente.

E o velho o tomou consigo assi a cavalo e, os filhos diante, se foi com ele a sua pousada, donde todos se apearam. E à importunação do velho, ficou a pousar ali com ele e seus filhos, que lhe ganharam daquele dia um amor que durou até morte, tal como se foram irmãos. E o velho o tinha como filho, e lhe davam de comer das nossas iguarias, ainda que os mouros as não comessem, fazendo-lhe em tudo tanta honra e amizade como se o cristão fora um príncipe. Que o mouro via nele mostras que era bem empregado quanto lhe fizesse, como de feito foi, e lhe pagou bem estas e outras muitas honras que depois este mouro lhe fez, como se verá adiante.

Este mancebo era nobre, de boa criação, tal que cabia entre todo gênero de gente, e ele era de todos estimado. E por tal esteve nesta casa todo o tempo que seus companheiros gastaram em comprar as mercaderias que eles haviam mister e aviar-se de todo. E estando eles já para se tornar, com o navio no porto de verg’alta, lhe foram dizer:

– Senhor, mandai ao navio vossa fazenda e matalotagem que nós queremos partir daqui a três dias.

O qual, como os entendeu, disse a seu hóspede:– Senhor, não sei com que possa pagar as mercês e grandes honras que me

tendes feitas. Peço-vos que vos queirais servir de mi e me mandeis tudo o que for vosso gosto que, não tocando na fé, não haverá cousa que eu por vós não faça. Digo isto porque meus companheiros se partem e eu queria tornar com eles, e não

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tenho nada aviado, pelo qual me convém despedir do mimo que nesta casa se me faz e pôr-me ao trabalho de empregar certo dinheiro que meu pai me mandou que levasse empregado daqui, que até’gora o não fiz.

O mouro, que o entendeu, respondeu:– Senhor, enquanto eu for vivo sempre haveis de receber nesta casa de

mi (estando vós nesta terra) este pequeno serviço que se vos faz, e até à hora de vossa partida não vos deixarei ir a outra parte. E se tendes que comprar e para isso quiserdes minha ajuda, eu farei o que vos cumprir, e tudo o que mandardes a vossa terra quero que se enfardele em minha casa. E seja-vos lembrança que não mandeis ao navio provisão para a viagem, porque minha mulher o tem provido.

O mancebo lhe deu as graças pela mercê e lhe disse:– Senhor, eu não sou mercador, nem nunca o fui, pelo qual não sei nada

da arte. Peço-lhe por mercê (pois ma faz de seu favor e ajuda) que com conselho de mercadores, ou com o seu somente, me empregue três mil cruzados que aqui tenho no que lhe parecer que seja bom e proveitoso.

O mouro olhou par’ele e disse-lhe:– Se quiserdes levar à vossa terra honra e proveito para vós e vosso pai, eu

vos aconselho que compreis ũa ossada de um santo cristão que aqui padeceu, a quem os cristãos tinham em grande veneração e, de herança em herança, ficou aos herdeiros do que primeiro a houve, avaliada em três mil cruzados, e em tanto está taxada. E já foi provado ser esta ossada relíquias de grandíssimo preço, e tanto que os mouros letrados dizem que o cristão que a resgatar haverá por isso grande honra e proveito. E prometem que o mouro que a fizer levar à terra de cristãos ha-verá entre eles grande senhorio e mando, e com muita riqueza salvará de todo mal seu corpo e alma. E ainda que há muito tempo que isto está aqui, nenhum cristão quer dar tanto dinheiro por seu resgate. De meu conselho levai vós, senhor, esta ossada e crede-me.

E o cristão, como o tinha por homem de verdade, a aceitou, e foi com ele à casa onde estavam as relíquias e as pagou a seu dono. E trazidas à casa do mouro, sua mulher, filhos e família a receberam com muita veneração e lhe fizeram ũa caixa em que fossem metidas, toda per dentro e per fora forrada de veludo car-mesi, com pregos e fechadura dourada. E assi lha mandaram ao navio, e muito mantimento e conservas, água e vinho que bastava para três tanto caminho. E deram-lhe jaezes de cavalo e outras peças ricas da terra que trouxesse consigo, delas para ele, e outras para dar a seu pai.

E a mulher do mouro mandou toucas, almexias ou camisas mouriscas à mãe do mancebo, porque foi tanta a afeição que todos puseram em este cristão por suas boas manhas, virtudes e graça, que o amaram como a filho. E se eles

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puderam, nunca o apartaram de si. Porém convinha tornar-se no navio, até o qual o acompanharam o mouro e seus filhos.

Embarcando-se, logo partiu com bom tempo, que parece que por méritos das relíquias o deu Deus tal, que em breve aportou em sua pátria, donde, à primei-ra instância, o mancebo foi bem recebido e deu os presentes que trazia do hóspede para o pai e mãe, que os estimaram em muito e folgaram com eles com deter-minação de os pagar melhorados. Porém, quando vieram a querer descarregar a fazenda do emprego dos três mil cruzados e souberam o que era, o pai quisera matar ao filho com manencoria, dizendo-lhe:

– Vem cá! Isso que trazes, prossuposto que é o que dizes e que são relí-quias, parece-te que eu hei de vendê-las para tirar meu dinheiro e ganho? Não pode ser, nem é justo, antes hei de gastar de novo outro dinheiro, porque sejam es-timadas e postas donde merecem. E assi gastaste os três mil cruzados que levaste? E estes perdidos, cumpre a minha honra gastar ainda mais por honrar estes ossos?

O mancebo se queria desculpar, afirmando-lhe que ali estava prometido muita honra e proveito. Mas o pai o não quis ouvir e, com grande menencoria, o lançou fora de casa, o qual, por suas boas manhas e virtuosa conversação, tinha amigos na cidade, pessoas nobres e de qualidade, donde se recolheu.

E o perlado da terra soube a vinda daquelas relíquias, que havia muito tem-po que diziam estavam naquela cidade de Fez; e vistos os estormentos de quem eram e sabida sua vida e milagres, as trouxeram do navio com grande procissão à igreja maior.

E no caminho não careceu esta vinda de mistérios que provaram a santida-de das relíquias. E foram estimadas em muito, e assi ficaram na Sé, na reputação que mereciam. E o pai daquele mancebo foi mais conhecido na terra que d’antes, e era frequentada sua casa nos negócios, tanto que teve mais trato e negociação aquele ano só que os três anos atrás todos juntos.

E porque nunca quis recolher o filho, alguns fidalgos da terra entenderam nisso e se puseram no meo, e os conformaram e fizeram tornar ao mancebo na graça do pai. E a mãe que o favoreceu em tudo o fez tornar a recolher em casa. Fi-nalmente ela disse ao marido que visse se era aquilo milagre ou não, que contasse sua fazenda e acharia que por três mil cruzados que gastara com o santo lhe dera Deus de bom título aquele ano seis mil, e de ventagem, de maneira que dobrou o emprego, e mais honra na terra, o que ele viu claro e conheceu. E determinou tornar a mandar o filho ao outro ano, como de feito mandou, dando-lhe quatro mil cruzados e peças que desse ao mouro e a seus filhos. E a mãe lhe deu outras mui ricas para a mulher.

E o mancebo foi e as deu, e foi lá bem recebido, como se fora filho e me-lhor. E contou tudo o que passava e o que trazia que empregar. Concluiu que,

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quando o navio se quis tornar a partir, lhe entregou ao mouro os quatro mil cruza-dos que lhe empregasse, porque já o tinha por pai em amor. E determinava fazer o que lhe ele aconselhasse no emprego e, se seu pai lhe fizesse algum agravo, vir-se a morar com ele.

E o mouro era tal que, ainda que o amava como a filho, ele nem os filhos nunca lhe tocaram em mudança da fé.110 Mas lhe rogava que se sustentasse na que tinha, que ele ainda esperava de ser cristão, porém tinha que fazer primeiro certas cousas que fazia.

E assi, quando o mancebo quis partir, lhe mandou levar ao navio outra cai-xa com outra ossada de outro santo, que do modo da primeira estava esta avaliada em quatro mil cruzados. A qual caixa por dentro e por fora fez o mouro, à sua custa, forrar de brocado rico com cravação de prata. E deu-lhe alcatifas e outras peças ricas que trouxesse a seu pai e mãe e para si. E, além disso, lhe mandou ao navio matalotagem como a primeira vez, e o acompanhou com seus filhos até se embarcar. E deu-lhe um cavalo bem enjaezado e dinheiro, dizendo-lhe:

– Se vosso pai tiver desgosto disto, como teve do passado, não vos agasteis por isso, que se ele soubesse minha tenção não lhe pesaria. E porque a não sabe, dai trela a seu nojo, que aí levais que gastar enquanto ele gasta a cólera. E a tudo o que sobre isto disser ou fizer, aparelhai-vos a ter paciência, porque eu sei o que vos dou. E crede que levais para vós e para vosso pai e mãe, e para mi e minha mulher e filhos, honra e proveito. Portanto, ide contente, fiai-vos de mi.

E assi despedido se partiu do porto.Indo assi com bom tempo arribou em sua terra, donde os primeiros recebi-

mentos foram bons. E porém tanto que o pai soube o que trazia, se a primeira vez o recebeu mal, esta foi pior e com mais desgosto, por lhe parecer ao velho que era errar segunda vez, que a primeira tem melhor escusa.

E a toda a fúria do pai tomou o mancebo paciência, e apartou-se da casa por lhe não dar mais enfadamento. Podia-o fazer, que trazia honesto repairo. Até que o bispo da terra lhe falou e disse que Deus, por Sua misericórdia, permitira trazer aquelas relíquias a sua igreja por sua via, que Lhe desse graças e o houvesse por bem. E per outra parte a mulher lhe fazia fazer balanço da fazenda cada seis me-ses, porque via que lhe crescia muito na casa. E dizia-lhe:

– Notai que, se gasta vosso filho por um cabo quatro, o Senhor vos dá por outro dez. Folgai, havei tudo por bem gastado, por ser em cousa semelhante.

E nisto esteve com o marido tantos dias até que o dobrou, e a caixa das relí-quias foi levada à igreja maior com a procissão e solenidade da outra, e melhor, se melhor pode ser. E foi posta no lugar pertencente para ser venerada como mere-cia. Porque dela e da outra houve na terra bastante provança do que era. E não lhe 110 No original, com erro de impressão, na forma “nunca lhe tocaram e mudança da fé”.

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faltaram milagres que o Senhor sempre faz por Seus santos, aos quais acudiam de todo o Bispado. E assi de toda a terra vinham gentes que, visitados os santos, também queriam ver a casa e pessoa do homem a cuja custa aquelas relíquias vieram. E como era mercador rico e tinha todo gênero de cousas que lhe pediam, dali dele as compravam todos. E lhes parecia que, levando a cousa daquela casa, era abençoada, e levavam parte de santidade nela.

No qual este homem ganhou tanto dinheiro que, se o primeiro ano tinha dez mil cruzados, este segundo tinha vinte mil. De maneira que ele veo a conhe-cer que aquilo não era per sua indústria, senão mercê de Deus. E tendo isto por certo, perdoou o filho e recolheu em casa. E aparelhou-o para ir outra vez a Fez, com grandes presentes ao mouro e cartas d’amizidade. Encomendando-lhe o fi-lho, lhe pedia, se houvesse mais relíquias, as trouxesse, porque, dado caso que ele não as vendia, Nosso Senhor lhe acrescentava tanto e mais do que nelas gastava. E com presentes da mãe para a mulher do mouro, e ele que também levou que dar aos filhos, e cinco mil cruzados que lhe deu o pai para empregar, partiu de sua terra quando o navio se fez prestes para isso.

E chegado a Fez foi bem recebido (e agasalhado como filho) do mouro, sua mulher e filhos. E ele deu a cada um o que para eles levava. E esteve folgando com eles até que lhe pareceu tempo, em que deu ao mouro os cinco mil cruzados que tinha para empregar, pedindo-lhe que os gastasse no que lhe parecesse, que ele havia de seguir em tudo sua ordem. E o mouro lhe disse:

– Aqui esta ũa donzela cristã taixada nos mesmos cinco mil cruzados. Esta haveis de levar e não haveis de tornar mais a esta terra, que eu sei que haveis de ter lá muito trabalho e grandes ocupações que vos estorvarão. Porém tudo, com ajuda do Senhor Deus, há de acabar em bem; e com muito vosso gosto, per der-radeiro, ficareis rico e honrado. Rogo-vos que ao tempo que achardes que eu vos disse verdade, vos lembreis de mi e mo façais saber, igualmente como a vosso pai, porque eu tanto vos amo como a filho.

E assi deu os cinco mil cruzados pela moça, que era de alguns treze anos. E quando o cristão lhe quis falar, ela não lhe entendeu a língua, nem ele a sua dela, que por então lhe deu desgosto. Porém levaram-na à casa do mouro, que ele, à sua custa, lhe fez fazer riquíssimos vestidos, que nenhum descia de ser de seda, e muitos com guarnições de retrós e ouro muito custosos. E com presentes para o pai e mãe o tornou a mandar, tão provido como se fora um príncipe. E ele, sua mulher e filhos foram com ele e com a donzela até o navio. E lá lhe disse:

– Filho, esta senhora vos entrego, que guardeis e tenhais em muita reputa-ção. Não lhe toqueis mais que se fosse vossa irmã carnal. Olhai os preceitos da Lei de Deus que os cristãos tendes, guardai-os como os entendeis.

O que o mancebo lhe prometeu e cumpriu.

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Embarcou-se, deixando de si muita saudade ao mouro e a sua mulher e filhos, que se tornaram a Fez. E ele a seu tempo partiu, e fazendo-lhe próspero arribou à sua terra em breve, donde foi recebido de seu pai com grande gasalha-do, porque estava prestes a ter paciência, ainda que lhe trouxesse outra ossada de santo, e quase que a desejava, e por isso não lhe perguntou logo o que trazia. Mas passadas as primeiras vistas, deu-lhe as cartas do mouro, e por elas soube como trazia ũa donzela cristã de que ao velho pesou muito. E com agastamento disse:

– Dos santos manda o Senhor bem, porém de pecadores, em especial de ũa moça, que te pode vir? É certo que a trouxeste por cumprir com ela no caminho teus torpes apetites. Este é o mais mal gastado dinheiro de quanto toda tua vida gastaste.

E assi, se as outras vezes teve manencoria e amostrou, mais teve esta, por-que lhe pareceu que o filho trazia a manceba consigo e que em pecado mortal não podia fazer cousa boa.

Todavia, a rogo da mulher, teve por bem que lhe trouxessem a donzela a casa que a queria ver, o qual ele fez, não para a agasalhar, senão determinando de a apartar da companhia do filho, por lhe parecer que viviam ambos torpemente, e queria por isto apartar a conversação. E assi a trouxe a casa, que, quando sua mulher a viu, a beijou no rosto, dando graças a Deus que tão fermosa a fizera. E disse a seu marido:

– Senhor, olhai cá, este é o galardão do prêmio que destes polas relíquias dos santos, e por ela, porque o Senhor não nos deu mais que aquele filho, e agora nos quis dar esta filha; eu a quero por essa.

E assi a recolheu. E vendo na linguagem que não sabia a nossa língua, a en-sinou e teve como própria filha, ensinando-lhe todas as boas manhas que ũa prin-cesa pode e deve aprender, o que ela tudo tomava tão bem que parecia que nascera para aquilo. Aprendeu a lavrar em bastidor e alcançou a ser disso única. Assentava ouro e seda sobre qualquer cousa que queria, e era maravilha ver a perfeição da obra de suas mãos. Sabia muito bem debuxar – era na arte a melhor borlador que se achava na terra – e tomou gosto de lavrar uns lenços no bastidor com letras ao derredor, e juntava dous, porque se lessem de ambas as bandas ũa mesma cousa. Eram tão atilados que era grande gosto de os ver. Porém as letras e o que elas di-ziam era na sua linguagem, que ela encobria sem querer dizer cuja filha era, nem de que terra, nem quem a cativara, nem donde, querendo-o saber dela.

E assi esteve nesta casa espaço de três anos, que nem via nem foi vista de outra pessoa mais que de aquelas com quem per necessidade não se podia escu-sar. E neste tempo aprendeu a língua da terra tão bem como se nela nascera. E da conversação da casa e da obrigação que conhecia ter a quem a tirou de cativeiro, veo a tomar tanta amizade com o mancebo que a trouxe, que se tratavam ambos igualmente como se foram irmãos.

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Porém o pai não podia sofrer isto e, se os sentia juntos, ainda que esti-vessem calados, logo lhe parecia que era de mau título, tantos ciúmes tinha da donzela, como se na verdade ela fora sua filha e ele criado de casa. Que ele e sua mulher lhe estavam já tão afeiçoados a esta donzela, por sua boa arte, conversa-ção e saber, que a amavam de cordial e verdadeiro amor.

E considerando a mãe como lhe fazer algum bem, e ela fazer seu gosto em lho ordenar, determinou de a casar com o filho, para que ambos houvessem sua fazenda depois dos dias de seu marido e dela. E consultou-o com o marido e filho, e depois de aceitado por eles, quando deram conta à donzela, disse ela que lhe tinha em mercê o cuidado que tinham dela, porém que não podia casar sem primeiro fazer certa diligência que ela prometera a Deus, estando cativa. E que, se seu filho queria fazer um caminho por amor dela, que ela lhe prometeria e juraria de não casar com outro senão com ele, o que o mancebo aceitou. E ela lhe disse o que havia de fazer, e lhe deu o que de sua parte para isso era necessário.

E assi partiu de sua terra em ũa nau que ia para Frandes. Porém, chegando a um porto de Inglaterra, saiu fora da nau e, tomando um cofre que levava, se foi à cidade de Londres, donde àquele tempo estava el-rei. E chegando ao terreiro do paço àquelas horas, viu que el-rei acabara de comer e se saía a uns corredores que vinham ter àquela parte donde estava o mancebo. Que, como o entendeu, abriu o cofre e estendeu sobre ele alguns lenços lavrados daqueles que a donzela lavrara, segundo dissemos atrás. E tanto que alguém chegava a vê-los, dizia que não lhe tocassem, que os não havia de tomar na mão senão el-rei, nem consentiu que pessoa algũa lhe lesse as letras, porque assi lhe era encomendado. O qual chegou a ouvidos d’el-rei que, querendo-os ver, mandou chamar o homem que os tinha, e que levasse lá o cofre, o qual ele fez assi.

Tanto que el-rei tomou um daqueles lenços na mão e o leu, mudando a cor do rosto, se encostou na cadeira, com um grande suspiro e um brado, disse:

– Valha-me, Deus!E tornando em si, que esteve um pouco esmorecido, perguntou:– Donde está a donzela que isto lavrou?Ao qual respondeu o mancebo:– Pague-mo Vossa Alteza, que eu lho direi, comprando-me estes lenços.E el-rei o fez assi, porque sem isso o mancebo não lhe quis dizer o que

lhe perguntou. E dando-lhe cinco mil cruzados (que foi o preço que a donzela custou), lhe disse:

– Senhor, esta donzela está em Portugal, na terra donde eu nasci, e eu a mostrarei a quem Vossa Alteza mandar que a vá ver.

El-rei tomou os lenços e, chamando um velho, que era seu veador, lhe disse:

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– Lembra-vos que haverá cinco anos ou seis que fostes a Irlanda e concer-tastes que havia de mandar lá, à casa de minha prima, a rainha de Irlanda, a minha filha, a princesa, que vós e vossa mulher criastes; e como a mandei acompanhada de cavaleiros, fidalgos, donas e donzelas de grande guisa; e por vossa doença que então tivestes não fostes vós e vossa mulher com ela; e que nos disseram que se perdeu a nau em que iam em uns baixos em que tocou, de que não escapou nin-guém; e do nojo desta perda morreu a rainha, minha muito amada mulher? Agora sabei que, perdida a nau, o mestre dela, por salvar a minha filha e sua pessoa, se meteu com ela e pouca gente no batel para sair em terra. E foram-lhe os ventos tão contrairos que nunca o pôde fazer. Mas, à força de vento e tormenta, desgar-rou o batel com tanto nordeste que, sem parar em toda Bretanha, Biscaia,111 nem Espanha, em doze dias deram na Berberia,112 já tão perdidos dos medos passados do mar e atormentados da fome e sede, que eles folgaram de se ver em terra, ainda que de infiéis, que prometia triste cativeiro, por salvar as vidas. E saltaram fora do batel e, tanto que foram em terra, logo foram presos, cativos. E minha filha, prin-cesa deste reino, foi escrava de um mouro que inquiriu dos que foram tomados quem era e cuja filha. E tanto que o soube, logo a estimou em cinco mil cruzados, que este mancebo deu por ela e a trouxe honrosamente a terra de cristãos. Isto é assi segundo o dizem as letras deste lenço, que na nossa linguagem aqui estão lavradas, e vos rogo que as leais.

O veador as leu e ambos choraram com saudade, ele e el-rei. E passado aquele ímpeto, assentaram que o veador fosse com aquele homem em um navio d’el-rei, donde ele o guiasse e visse a donzela que lhe mostraria, que dizia ser a que lavrara os lenços. E sendo a princesa, lhe dessem a quem a tinha em casa tudo o que ele dissesse gastara com ela, e dous mil cruzados de ventage. E se se qui-sesse vir com ela lhe faria grandes mercês. E também lhe tornasse a trazer aquele homem para lhe fazer mercê, querendo ele tornar com ela. E para que fosse certo da mercê que lhe prometia, lhe deu um alvará de lembrança de lha fazer vindo àquela terra, e sendo presente aquela donzela que ele dizia, o qual o mancebo guardou. E feito prestes um galeão para isto, se embarcaram, o veador e sua mu-lher, e outras mulheres com ela, e fidalgos e cavaleiros com ele, e o mancebo que trouxe os lenços. E com bom tempo arribaram a sua terra. Mas polo caminho lhe disse ao veador os ciúmes de seu pai, e que se temia lha negasse e não permitisse deixar-lha ver, para o qual se concertaram.

E chegando, saíram em terra o veador e o mancebo, desconhecido, e foram per partes encobertas à casa de seu pai. E como quem é de casa e a sabe, pelos

111 Biscaia, ou Vizcaya, província dos Países Bascos, a Nordeste da Espanha, ou ainda o golfo de Biscaia, nome dado pelos bascos ao golfo de Gasconha.

112 Região dos berberes, povos muçulmanos da África setentrional.

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lugares secretos teve maneira de ver a senhora que, descuidada dele estar ali, acertou a olhar para aquela parte, e viu junto com ele o amo que a criara, que ela o conheceu muito bem. E chegando-se mais perto, permitiu ser vista deles que, em a conhecendo, chegaram a lhe falar, e o velho remeteu para lhe beijar a mão, mas ela não consentiu. E estando falando na sua linguagem, concertaram de se ir logo dali, porque, se o pai viesse, não o havia de consentir. Eles nisto, e o velho que chega, que estranhou muito esta fala não costumada. E quando conheceu o filho, lhe disse:

– Não entras pola porta? Treição é.E lançou mão dele pelo cabeção, não olhando ao velho que estava à fala

com a donzela. Tiveram eles tempo e lugar para se sair de casa por aquela parte, sem ser então vistos nem atentarem por eles. E tanto que foram na rua, a cobriu com a capa de um homem que o velho trazia, e se foi à praia. E metendo-a no batel, deu com ela no galeão sem contradição de pessoa algũa. E se fez à vela, partindo na mesma hora que chegou, sem comer nem beber naquela terra.

O mancebo que estava com seu pai lhe dizia:– Senhor, esta donzela é filha de um rei poderoso. Havei por bem que lha

levem e eu irei com ela, que creo por esta via virei a ser grão-senhor; e a vós, vossa parte vos caberá.

O pai respondia:– Bem sei que isso há de ser algũa treição que queres fazer a mi e a ela, le-

vando-a fora de minha casa pola desonrar e não a receber por mulher. Pois não há de ser assi, que a ti lançarei fora de casa, e a ela em prisões que nunca vá contigo.

O qual, se ele fizera, fora grande mal. Mas melhor o fez Deus, que lançou fora o filho pela porta da casa, apesar da mãe que teve sobre isto debate. E quando veo em busca da donzela, que a havia de prender, e a não achou, não houve pesar que lhe chegasse. E inquirindo polos vizinhos, veo a saber como a levava o velho. E houve quem lhe disse os vira meter no galeão e partir, do que ficou tão agastado que não havia quem o consolasse.

O mancebo, que entendeu eram partidos, queria arrebentar de paixão pela donzela, que já a amava mais que a si mesmo. E ainda foi tão mofino que não havia tirado os cinco mil cruzados do galeão, que, se os tivera, com eles a fora buscar. Porém não lhe lembravam em respeito da senhora. E certo ele a estimava mais que todo o haver do mundo, e assi andava fora de juízo e se perdera de todo, se não foram amigos e pessoas virtuosas que o consolavam dizendo-lhe:

– Já sabeis quem a leva e para donde vai. Ide-vos por terra e pouco a pouco chegareis lá.

E dando-lhe algum dinheiro para o caminho, tomou ũa cavalgadura e par-tiu, atravessando toda Espanha e França para chegar donde desejava.

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Porém, como levava pouco dinheiro, e ele era largo gastador, antes de dous terços do caminho lhe foi necessário vender a cavalgadura para comer, e cami-nhar a pé. O qual ele não tinha em costume, e assi andava pouco, que foi ocasião de se lhe acabar de todo a despesa, sem acabar a jornada.

E assi aconteceu que, estando um dia à porta de ũa venda – não entrava porque não tinha com que pagar o comer –, viu dentro dous homens assentados à mesa comendo, que pareciam pessoas nobres e bem tratadas, e em ũas fundas levavam ũa viola d’arco e um psalteiro, e os tinham junto consigo, o que o man-cebo atentou como aquele que sabia muito daquele mister.

Os homens que o viram olhar para aqueles estromentos o chamaram para dentro e disseram que comesse, a que ele deu as graças e disse que não tinha com que o pagar. Eles se lhe ofereceram com a paga e o fizeram comer. E falando so-bre mesa, lhe perguntaram se sabia dançar ou tanger. Ele disse que de cada cousa sabia um pouco, e, visto isto, lhe disseram:

– Ora, sabei que nós somos músicos, tangedores destes instrumentos, e soubemos que a el-rei de Inglaterra lhe trouxeram ũa filha de fora, a qual veo doente de malenconia que não há cousa com que se alegre. Temos determinado de ir lá e diante dela tanger, dançar e cantar, e, com ajuda de Deus e nossa habilida-de, fazer-lhe perder a malenconia, pelo qual el-rei, seu pai, dizem que dará grande preço. Se sabeis algũa cousa deste mister e quereis ir conosco, fazer-vos-emos parte no ganho.

Ele, que não desejava outra cousa senão ir para aquela parte, suspeitou que a malenconia da princesa seria gerada de sua ausência, pelo amor que lhe tinha e palavra de casamento que lhe dera em satisfação de a haver tirado do cativeiro em que estava. E logo se determinou ir com eles e lhes disse que faria seu poder pelos servir. E que não dizia ele por companheiro, mas por criado os acompanharia a obra tão virtuosa.

E assi com outra tanta cortesia foi respondido que não por criado, mas por irmãos iriam todos. E feito o gasalhado que então era necessário, tomou ele um instrumento daqueles e, tocando-o, lhes deu mostra de seu saber, que era em extremo muito, do que eles mostraram grande contentamento. E quando foram horas, saíram três mancebos da estrebaria e trouxeram seis cavalgaduras, as três para os senhores, que já sabiam que estava ali aquele companheiro, e as três para eles. E postos a cavalo se puseram a caminho aquele dia e outros, até que chega-ram à corte daquele reino de Inglaterra. E fizeram saber a el-rei que eles ouviram dizer lhe viera de fora ũa filha doente; se permitia Sua Alteza fossem lá tanger e cantar. El-rei lhe agradeceu o trabalho do caminho e prometeu pagar-lhe. Que lhes fazia saber que, se lhe viera a filha a qual havia muito que ele tinha por morta, e ora estava tal que em lugar de alegrar-se com sua vista se entristecia muito com

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sua doença, e que lhe renovava a chaga da perda de sua mulher, que com nojo da perda dela morrera, que fossem ao paço embora, que sempre seriam bem-vindos.

E assi os três companheiros foram tanger e cantar diante d’el-rei e princesa, estando porém ela dentro em outra câmara (donde via e ouvia, sem ela ser vista) e eles na sala. E assi per grande espaço tangeram e cantaram com tanta melodia e graça que não havia quem deixasse de os gabar. E muito atônitos estavam todos os circunstantes ouvindo o doce e muito suave som dos bem acordados instrumentos e vozes, aos quais o mancebo disse no nosso linguagem a cantiga seguinte:

Na Lusitânia nasci, ora vivo forasteiro por tirar de cativeiro quem me cativou a mi.

Eu sou quem na Berberia comprei a garça real, trouxe-a livre a Portugal e perdi minha alegria.

E resultou-me daqui tormento grave excessivo, porque tirei de cativo quem me cativou a mi.

Desci a tanta baixeza, porque pus meu coração na soma de perfeição, que tem estado e alteza.

Perdi lembrança de mi, leixei de ser cavaleiro por tirar de cativeiro quem me cativou a mi.

Foi dita com tanta suavidade e primor que, ainda que alguns, por não en-tender a linguagem, careciam da letra, todavia todos os que a ouviram conhece-ram que o mancebo era mui sábio na arte da música, e lhes contentou, principal-mente à princesa que a entendeu e conheceu na fala quem era o que cantava. E porque dizia sua cantiga, alegrou-se muito em ver que estava na terra. E quando

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se despediram os músicos, mandou ela dizer a seu pai que os fizesse vir ali muitas vezes, o que se fez assi. E continuando os músicos e tangedores seu exercício, de que eram estimados cada vez mais, mostrava a princesa grande alegria, que para el-rei era dobrada.

E ela, desejando cumprir sua palavra com o português a que a dera de ca-samento, sabendo quem tinha nele, falou com seu pai, e el-rei com os grandes do reino, dando ordem que se fizessem ũas justas que fossem reais e que se desse por preço ao que nelas o fizesse melhor a princesa por mulher, e assi ficaria herdeiro no reino depois de seus dias. E a princesa aceitou isto, com condição que ela ha-via de ser presente na companhia dos juízes quando se julgasse qual a merecia, do qual todos os grandes da corte foram muito ledos. E pubricaram-se as justas em todo o reino, de que grandes e pequenos tiveram muito contentamento, que havia dias que tinham tristezas.

E os fidalgos e cavaleiros, vendo o grande preço que davam a quem o fizes-se melhor, se esforçavam, e haviam cobiça de vir a elas e mostrar ali seu esforço, forças e riquezas. E assi vieram a estas justas todos os principais senhores do reino e alguns forasteiros que nele se acharam. E deixaram de vir d’outras partes, porque foi posto o prazo para daí a vinte dias, que era a festa da Assunção de Nossa Senhora, que por ser pouco tempo não vieram d’outras partes, nem fizeram míngua, porque ali se ajuntaram tantos e tais, que àquele tempo parecia não haver outros melhores em corte do maior imperador do mundo. Porque não cabendo na cidade de Londres, se aposentavam em tendas feitas no campo, que eram tantas e tão ricas e lustrosas, que davam grande alegria de as ver a todos os que com coração desocupado saíam a isso.

Porém o nosso português de que tratamos, ver isto e ver-se assim tão pobre e falto de todas as cousas, que para semelhante auto pertenciam, desesperado de poder entrar nas justas, andava tão triste que parecia que sua derradeira hora era chegada. E se ele tivera com quem, ele descobrira à princesa sua necessidade, crendo a proveria. Porém, como não tinha este meo, esperava sua perdição e morte, porque tinha para si que as justas se fariam, e el-rei, cumprindo sua pala-vra, daria a princesa, sua filha, àquele que o fizesse melhor. E assi, não sendo ele na justa, que esperava de haver senão a perda de todo seu bem e, no fim, seu fim desastrado? O que tudo houvera de ser assi, se Deus não permitira outra cousa, ordenando que os dous mestres músicos que o viram tão pensativo e andar com tanta tristeza lhe disseram:

– Companheiro, já que o somos, pedimos-vos muito por mercê que nos di-gais a causa de vosso descontentamento, que confiamos em Deus que o possamos remediar, se for em mãos de homens o remédio. Tendes nossas vontades prestes, forças e pessoas. Dizei-nos que haveis.

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Ele, vendo as bõas vontades com que se lhe ofereciam, lhes disse:– Eu me estrevia, se tivesse aparelhos com que entrar nesta justa, a fazer

tanto nela que, com ajuda de Deus, ganhasse o preço. E porque me vejo desa-percebido de tudo o que é necessário e estou em parte donde o não posso haver, mouro de paixão, porque perco o que nisto podia ganhar.

Ao qual eles disseram que dali ao dia da justa havia cinco dias, que se esforçasse e fizesse prestes sua pessoa, que eles tinham e lhe dariam tudo o ne-cessário e o que ele para então pedisse, como de feito deram. E neles se alegrou e fez tão loução. E assi se soube aperceber e pedir, que saiu tão bem armado, como vereis adiante no dia em que justaram. Que, por não ser a história longa, diz que chegando as horas para justar, estava el-rei e a princesa com muitas donas e don-zelas em um mirador do paço que caía sobre a grande praça donde estava a tea. E a princesa estava tão fermosa e ricamente vestida que, na sua vista, dava esforço e ousadia a muitos que, por havê-la, se aventuraram e puseram a mais do que suas forças bastavam. E junto com ela estavam os juízes, que eram quatro velhos, grandes senhores do reino.

A este tempo começaram a entrar os cavaleiros na praça, uns por ũa parte e outros per outra, que foi fermosa cousa de os ver, que quase parecia ser ali a flor da cavaleria do mundo. Estando todos quietos, vendo as librés, cores e invenções que traziam, entra pela praça o nosso português todo armado de mui ricas armas brancas, douradas a partes, que lhe davam muito lustro, e cobertas com ũa rou-peta feita à guisa daquela terra, a quarteirões de damasco verde e branco, com muitos golpes, polos quais se descobriam as ricas armas que vinham debaxo, e presos alguns golpes com pérolas grandes orientais, redondas e de grande preço. Trazia o rosto descoberto, o qual, ainda que per si era muito fermoso e gentil-ho-mem, com o afrontamento das armas o vinha mais, tanto que a todos contentou sua vista. Vinham em sua companhia os dous mestres, que a esta hora ninguém os conheceu por eles, com roupas da seda e cor da roupeta, porém os vestidos feitos à usança e traje daquela corte. E traziam nas mãos as armas do justador, isto é, um lhe trazia o elmo, que com grandes penachos verdes e brancos, e ele a partes dourado, dava de si muito lustro; e o outro ũa lança pintada da mesma cor. E trazia os três pajens vestidos da mesma libré, que entrando na praça puseram todos os olhos nele e nos seus.

A princesa, que o viu, logo o conheceu e mostrou em si novo contenta-mento, que já ela sabia de África e d’Espanha que era ele um dos bons cavaleiros do mundo. E todos os que o viram entrar na praça disseram à ũa voz: “Este é o mais loução, bem ataviado e fermoso de quantos vieram. Deus o faça tal nas ar-mas como sua vista promete”. E ele, rodeando a praça toda por dar mostra de si, chegou diante d’el-rei e princesa e ali lhes fez o devido acatamento com muito

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primor e gentileza. E bem conheceu nas mostras da princesa o contentamento que tinha de o ver, que foi para ele muito grande.

E assi, depois de todos sossegados na praça, feito o sinal de começar com muitas trombetas e outros instrumentos de guerra, que em semelhantes autos de festa se costumam, começaram as justas, em as quais houve muitos e mui fer-mosos encontros. E alguns tão fortes que, desarmando os cavaleiros que os re-cebiam, lhe levavam as peças das armas polos ares; outros que, não as podendo arrancar, davam com os próprios em terra; e alguns caíram eles e seus cavalos.

Porém aconteceu também a este mancebo português de que tratamos que, ainda que todos os da praça receberam algum revés da festa, grande ou pequeno, ele não recebeu nenhum. Mas foi o que por sua mão fez aos outros quase todos os desgostos de trances grandes que aquele dia aconteceram. Porque logo em se começando a justa, das três primeiras carreiras, derribou três cavaleiros famosos, de que se não esperava cair tão113 prestes, e isto sem quebrar a lança com que ali entrou. E depois de quebrada, com outra e outras muitas que lhe deram os pajes que para isso trazia, fez cousas tão grandes e maravilhosas que, quando foram horas de cessar, que el-rei mandou fazer sinal para isso, o havia ele feito tão bem, que de todos à ũa era louvado, e lhe julgavam o preço. E se não foram as justas por mais que de um dia, já ele o tinha ganhado. Porém foi concertado que haviam de justar três dias, como fizeram adiante.

E acabada a justa por este dia, ele se foi ao mirador donde el-rei estava, porque quis descer à praça e a cavalo ir per derredor dela ao paço. E o acompa-nhou, deixando feita a devida reverência à princesa. E despedido d’el-rei se foi a seus companheiros que o esperavam e, com a majestade que entrou, se saiu da praça e se foi a sua pousada.

A princesa se recolheu por dentro do mirador para seu aposento, contente do que ela vira e do que ouvia dizer a todos em louvor do cavaleiro estranho, que ela não se espantou de lhe ver as armas e atavios de tanta riqueza, pela muita que sabia que tinha seu pai, parecendo-lhe que de lá as trouxera.

Esta primeira noite tiveram no paço serão em que houve tangeres e danças de fidalgos, cortesãos e damas. E alguns que já vinham desfavorecidos das jus-tas tomaram favor para tornar outra vez a provar sua aventura; e os que traziam algum orgulho de o haver feito bem levavam o gosto de se ouvir louvar daquelas senhoras. E porém, faltando aqui aquele cavaleiro estrangeiro, em que todos ti-nham postos os olhos, perguntou el-rei por ele. Mas, ainda que não houve quem desse outra rezão, senão que se tornara com sua gente à pousada, ele e os mais dos que ali estavam o gabaram e diziam que o desejavam conhecer, porque aquele

113 No original, com erro de impressão, na forma cam.

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dia o havia feito bem. E de verdade eles tinham rezão de o gabar, que era muito para isso.

Ora, passado aquele serão tão alegre, cada um se foi repousar, porque o dia seguinte havia de haver justas como o passado, e era necessário repairar as armas, de muitos que dos fortes encontros que receberam estavam maltratadas, no qual se gastou a mor parte da noite, aos mais daqueles que tinham experimentado a destreza e forças do cavaleiro d’Espanha. Mas a ele não lhe aveio assi, que aca-bado de desarmar,114 olhando polas suas, as achou tão inteiras e sãs como se não houveram servido (e isto por bondade delas, e não porque ele deixasse de receber muitos e fortes encontros), do que muito folgou em vê-las tais.

E depois de cear o que seus companheiros haviam mandado aparelhar, se foi dormir e repousar, que bem lhe era necessário, segundo o muito que aquele dia fizera. E porém não com tanto sessego que, quando amanheceu, já se estava ves-tindo para prover o que lhe cumpria para as justas daquele dia, que ele não sabia quão bem aparelhados para isso vinham seus companheiros, os quais folgaram de ver nele aquele cuidado. E dizendo-lhe que eles o tinham de tudo, lhe rogaram que descansasse. E assi, quando foram horas de comer, o chamaram para isso. E acabando de jantar, se armou e pôs a ponto, como vereis adiante.

Neste tempo el-rei foi ouvir missa à capela da princesa, que se disse com muita solenidade. E acabada, foi comer na sala grande com grande majestade, donde houve muitos instrumentos de festa. E acabado o jantar, se saiu ao mira-dor, como o dia passado, tirando consigo a princesa. E logo vieram os juízes e se puseram assi como ouvistes que estavam o dia d’antes. E os cavaleiros acudiram tantos e tão ricamente armados, com tantas librés e invenções, que era cousa rica e fermosa de ver.

E o nosso português trouxe aquele dia ũas armas todas verdes e em cima ũa roupeta de damasco branco pedrado d’ouro, com ũas esperas d’ouro, ricamente e por sutil ordem obradas. E em entrando pola praça, acompanhado dos compa-nheiros e pajens que trouxe o dia d’antes, veo por debaixo do mirador e, diante d’el-rei e princesa, fez sua costumada cortesia e se pôs em seu lugar. Até que todos vieram e se fez sinal de começar, em que houve tantos e tão grandes encon-tros que, se se houvera de especificar miudamente o que aqui passou, bastava para fazer um grande volume.

Porém, por concluir esta história, o mancebo fez tanto em armas aquele dia e o seguinte, que todos à ũa voz diziam que não havia melhor cavaleiro no mun-do. E até os mesmos que competiam com ele, pretendendo casar com a princesa, não lho podiam negar. Mas punham-lhe por defeito ser forasteiro e que podia ser não fosse de casta que a merecesse.114 No original, na forma desamar, corrigida para desarmar, de acordo com o sentido do texto.

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Passadas as justas de todos três dias, mandou el-rei que o dia seguinte fos-sem à sala todos os grandes, fidalgos e cavaleiros, porque queria se julgasse quem merecia o preço daquela festa, o qual muitos não fizeram porque, entendendo de si que o não mereciam, não quiseram ser presentes ao julgar, e se foram. Mas contudo se acharam tantos na sala que parecia não poderem caber mais, aos quais um rei d’armas em nome d’el-rei lhe fez ũa fala de parte de Sua Alteza, dizendo:

– Senhores, el-rei nosso senhor viu bem o muito que todos fizeram por lhe honrar esta corte e o grande ânimo e muito esforço de cada um. E certo que é tanto, que ele diz será lembrado toda a vida que Deus lhe der, para sempre o agradecer. E folgara de ter tantos reinos e filhas que a cada um pudera dar um, que tem para si que em qualquer de vós estava bem empregado, e o tinha e tem bem merecido. Mas, pois não tem senão esta filha e este reino que dar, o qual não se pode nem deve partir, pede a todos juntos e a cada um de vós por si que esteis à obediência do que os juízes julgarem e que àquele que eles determinarem que se dê, a esse aceitem os outros por seu príncipe e senhor, pois que de necessidade o há de ser um e não todos. E com isto o tereis a ele sempre tão propício, que confia em Deus que nenhum se agrave em tempo algum de sua amizade e favor.

A todos pareceu bem o que el-rei d’armas disse. E disseram os principais, a que foi cometido o responder, que Sua Alteza lhes fazia mercê em ter aquele cum-primento (no que sem ele podia bem mandar), que o julgassem os juízes como lhe parecesse. E logo foi dito pelo rei d’armas, em nome dos juízes, que, ainda que todos o fizeram bem, o cavaleiro estranho o fizera melhor, pelo qual lhe julgavam o preço daquelas justas; que viesse a receber o galardão de seu trabalho. O qual logo passou adiante, que entre muitos estava metido, e trazia vestido um saio de cetim carmesi picado, reclamado d’ouro, com lavores de estranha invenção, cal-ças e gorra do mesmo, que mostravam a alegria de seu coração. E tanto que foi visto de alguns a que pesava de haver ele aquela honra que eles muito desejavam, antes que ele falasse, se lhe puseram diante, dizendo:

– Senhor, mostre quem é e sua fidalguia, se merece tanto como Vossa Alte-za lhe dá, que, sem isto, grave nos será de obedecê-lo.

Aos quais foi mandado assentar, porque queria falar o cavaleiro português, o qual, porque não sabia ainda tanto da língua ingresa, que nela pudesse dizer o que queria na latina (que era muito douto), disse:

– Senhor, estes senhores, fidalgos e cavaleiros são de tanto preço e estima, que tem rezão em não obedecer a pessoa que não seja igual a Vossa Alteza que está presente, se esta se pudesse achar no mundo. Mas porém, como quer que se não acha, nem creo que a pode haver, por servir a Sua Alteza a que são mui afeiçoados, e com rezão, bem me parece farão o que for justo. E por isso, diante de todos eles, lhe peço me ouça e, com seu conselho, determine o despacho do

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que eu disser. Que é fazer-lhe saber que eu passei na Berberia e foi Deus servi-do que por mi se pusesse em liberdade, com grande custo e trabalho de minha pessoa, a princesa minha senhora que está presente, que, se me não engano, se deve lembrar do caso como passou, e como foi servida de mi, que, ainda que não fosse como seu mui alto merecimento requeria, foi o melhor que minhas forças e indústria puderam. E assi a trouxe a Portugal. E depois de trazida com muita honra, sem saber a grandeza de seu estado, sempre a servi como se o soubera e passei com meu pai muito trabalho por seu serviço. Vim a este reino, dei recado de seu livramento e novas de sua pessoa a Vossa Alteza, que por isso me mandou dar cinco mil cruzados que eu lhe pedi, os quais me ficaram no galeão em que Sua Alteza veo. E além deste dinheiro me deu Vossa Alteza, sem lho eu requerer, este seu alvará de lembrança, para que, estando a princesa diante, me faria a mercê que eu lhe pedisse e fosse justa, contanto que eu fosse mostrar ao seu veador a princesa minha senhora. E o que nisto fiz e passei, presente está que o pode dizer. Porém agora somente lhe mostro este alvará e lhe peço que, pois Sua Alteza está presente, havendo respeito aos serviços que já fiz a Vossa Alteza e princesa minha senhora, me faça mercê de me haver por fidalgo de sua casa e seu natural, como o são estes senhores. E se a eles parecer que estes serviços o não merecem, prestes estou para em toda a vida não cansar de servir até o merecer.

E às voltas desta prática, respondendo a alguns que lho preguntaram, dis-se donde e como estava a princesa cativa e sua liberdade feita por ele (como a história há contado), do qual foram maravilhados os que o não sabiam tão per-feitamente. E como teve acabado sua fala, louvando-o muito, todos à ũa, sem contradição, pediram a el-rei que lhe fizesse a mercê que pedia, que era justa, e mais, que lhe desse a honra que bem tinha ganhada.

El-rei folgou muito de os ouvir e ver que todos eram deste acordo. E er-guendo-se em pé, foi dous passos adiante para onde o português estava e disse:

– Sou contente de dar-vos o que pedis. E mais, d’hoje por diante vos hei por príncipe deste reino como se me fôreis filho. E quero que logo vos recebam com minha filha, a que rogo o haja assi por bem.

E àquele tempo em toda a sala se ouviram vozes que todos diziam: “Assi é razão e justiça”. O qual logo foi recebido com ela por mão do arcebispo da ci-dade, por honra do qual se fizeram daí por diante muitas festas, justas e torneos que duraram muito.

E o príncipe mandou logo fazer saber a seu pai e mãe sua boa ventura, o qual, sem ter demora, desejoso de ver a princesa, partiu de sua casa com três galeões em que trouxe toda sua família, parentes, amigos e servidores. E trouxe consigo grande tesouro de joias, ouro e prata que deu à princesa e príncipe, de que ele teve muito que dar àqueles que lhe pareceu que era razão.

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E assi mandou chamar ao mouro de Fez, que lá lhe fora conselheiro nas compras, que logo veo com sua mulher, filhos e família, trazendo consigo toda a faculdade que tinha. E tanto que se achou em Inglaterra quis beijar as mãos ao príncipe e princesa, mas eles lhas não quiseram dar e o fizeram erguer com muito gasalhado. E beijaram a mão a el-rei que lhes mandou dar aposento nobre. E eles antes de muito se tornaram cristãos, e foram seus padrinhos el-rei e a princesa, fazendo-lhe por isso grandes mercês o dia do bautismo.

E estando nesta festa, os dous companheiros do príncipe, mestres da músi-ca, o apartaram e lhe disseram:

– Agora já não somos necessários em vossa companhia, pelo qual nos que-remos ir. E antes de nossa partida, queremos que saibais quem somos, porque vejais que empregastes bem o que por nós fizestes e que ficais bem pagado. Lem-bra-vos os ossos que resgatastes de terra de mouros? Aqueles, em outro tempo, eram de nossos corpos, e estes corpos que ora vedes são fantásticos, tomados para vos acompanhar nesta empresa, em galardão do que por nós tendes feito. E tudo, como até’gora passou entre nós e vós, permitiu Deus porque não deixa sem galardão a quem serve e honra a seus santos, como vós fizestes. Já’gora estais em sossego e paz com vosso pai e mãe, parentes e amigos, com a mulher, honra e reino que bem merecestes. Não por isso vos esqueçais do serviço de Deus e honra dos santos, que, se nos houverdes mister, logo somos convosco. E por ora ficai com a benção do Senhor.

E assi se despediram, ficando o príncipe maravilhado quando caiu na conta de ver o que viu, porque andava imaginando como e com que lhes pudesse pagar o que por ele haviam feito. E assi ficou com grande devação nos santos e amor em Deus Nosso Senhor, que tão bom sucesso deu a suas cousas.

E antes de muito morreu el-rei, e ele e a princesa foram jurados por reis de Inglaterra, donde reinaram muitos anos. E sempre o pai e mãe foram estimados em muito. Tiveram grande mando na terra, e todos os seus parentes valia. E o mouro, sua mulher e filhos foram sempre favorecidos. E el-rei governou o reino em paz e amor, que foi muito querido de todos. Houve filhos de que depois des-cenderam os grandes reis de Inglaterra. Porque assi faz Nosso Senhor suas mara-vilhas, que este, por virtuoso, amigo de Deus e polo que fez pelos ossos, relíquias do santos, alcançou a ser rei, ajudado por eles mesmos. E todo aquele que faz bem por amor de Deus e por Seus santos, Deus e os santos lho pagam.

Também houve seu galardão o mouro que o aconselhou, que na verdade era cristão no coração, desejando de o ser por obra, esperando para isso fazer pri-meiro esta. E de seu bem alcançou sua mulher e filhos, que todos tiveram muita privança com el-rei. E o melhor de tudo: viveram na nossa fé católica, para sua salvação. E uns e outros foram tão conformes à Lei de Deus, que se espera lhe

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daria, por isso e por Sua misericórdia, depois desta vida, a glória do céu, a que nos leve. Amém.

CONTO III

Que diz nos conformemos com a vontade do Senhor. Trata de um médico que dizia: “Tudo o que Deus faz é por melhor”.

Em corte de um poderoso rei havia um médico, bom homem, sem refolho de malícia que, visitando Sua Alteza, ainda que o achasse afligido, com qualquer trabalho, ou dor, não mostrava entristecer-se. Mas aplicados os remédios que entendia lhe eram necessários, consolava a el-rei, dizendo que não se agastasse, que sofresse seu trabalho com paciência pois lhe vinha da mão de Deus, porque tudo o que Deus faz é por melhor. Polo qual, aquela dor ou trabalho, tomada como cousa dada por Deus, e crendo que tudo o que Deus faz é por melhor, não se sentiria tanto.

Algũas vezes aceitava el-rei este dito, consolando-se em uns sucessos; e não queria aceitá-lo nem ouvi-lo em outros. E o bom homem que o tinha por cos-tume sem nenhum dobrez de malícia o dizia geralmente por tudo.

Aconteceu que morreu o príncipe herdeiro do reino, de que el-rei esteve encerrado e muito triste. E querendo este médico visitá-lo e consolá-lo como to-dos faziam, o fez com as palavras de seu costume, dizendo-lhe:

– Senhor, não vos agasteis tanto, que seja ocasião de perda de vossa pessoa, que o príncipe morreu em vossa casa da mão de Deus, e tudo o que Deus faz é por melhor. Deixai imaginações, rogai-lhe a Deus pola alma.

El-rei não teve paciência a este dito em tal tempo, e disse:– Que pior me podia ser a mi acerca do príncipe que morrer-me ele? Pro-

meto de me vingar deste simprez, e ver se lhe será por melhor a morte que lhe mandarei dar, se deixá-lo viver.

E chamou dous homens que eram para isso, e disse-lhes:– Ide após fuão, que agora vai daqui, e dizei-lhe que lhe quereis dar um

recado meu. E como chegar a ouvi-lo, matai-o, que eu o mando. Não temais da justiça.

Os quais foram à casa do médico e acharam a porta da escada fechada, porque, como todos traziam dó polo príncipe, e ele também, quando chegou a sua casa vinha muito afrontado. E para comer, despiu-se por desabafar, ficando em calças e jubão. E por não ser achado assi, se alguém o buscasse, que lhe pa-receu estava desonesto, mandou cerrar a porta da rua. E os que o vinham matar, batendo, disseram que traziam recado d’el-rei. E o médico, alvoroçado com isto, lançou sobre si o capuz de dó e quis ir diante dos moços a abrir-lhe ele a porta. E

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com a pressa, ao descer, empeçou no capuz e caiu pola escada tão grande queda e de tal maneira se atravessou na porta, que quebrou ũa perna pola coxa, de que dava grandíssimos gritos.

Acudiram os servidores de casa. Tirando-o dali, o lançaram na cama, que os brados que dava era lastimosa cousa de ouvir. Foi curado por donas de sua casa, como ele mandou, e respondido aos homens que estavam à porta que se fos-sem e dissessem a Sua Alteza o que acontecera. E eles o fizeram assi. E o médico esteve mais de seis meses em ũa cama, que cuidaram morresse daquilo. Porém sarou, e depois que se ergueu, coxeando da perna, foi beijar as mãos a el-rei. E el-rei, vendo-lhe o defeito que tinha e o trabalho passado, o quis consolar com palavras meigas. Mas o médico, polo costume que tinha, não aceitou consolação, mas disse a el-rei:

– Senhor, isto ninguém mo fez. Permitiu Deus que fosse assi. Não me pesa disso, porque creo que tudo o que Deus faz é por melhor.

Ouvido por el-rei, e visto como em cousa própria e de tanto seu dano, tam-bém dizia aquilo e se conformava com a vontade de Deus, teve-o dali por diante por bom homem, perdeu o rencor que contra ele tinha. E visto na verdade ser por melhor o quebrar-lhe a perna, que se a não quebrara morrera, como ele mandava, lhe fez mercê para seu gasto e aceitou seu conselho.

E nós conformemo-nos com a vontade de Deus, Nosso Senhor, tomando por bem tudo o que vem de Sua mão, crendo que, como Pai, sempre nos dá o melhor para nosso proveito espiritual. E não cuidemos que quando castiga nossas maldades é cruel, que sempre é piadoso, e nunca nos castiga tanto como merece-mos. E quando nos faz mercê sempre nos dá mais do que Lhe servimos sem falta. E querendo que nos salvemos, leva a cada um pela via que mais lhe convém, e assi tudo o que faz é por melhor. Ele seja servido, que O conheçamos e façamos Seus mandamentos, e nos conformemos com Sua vontade, para que, por isso e por Sua misericórdia, no fim da vida nos dê a glória. Amém.

CONTO IV

Que diz que ninguém arma laço que não caia nele. Trata de um que armou ũa trampa para tomar a outro, e caiu ele mesmo nela.

Fora dos muros de ũa boa vila, morava um lavrador que algũas vezes dei-xava no quintal de sua casa um pedaço de carne, para que lhe desse o ar, ou outras cousas semelhantes de comer. E pela menhã, delas achava e delas não achava, que muitas vezes lhe furtavam, ou comiam o que ali ficava de noite. E ele, manen-cório disto, determinou armar um laço ou trampa, em que prender a alimária ou homem que aquilo lhe tomava. E assi ordenou no meo do quintal ũa cova grande,

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redonda, que para isso fez, e pôs-lhe um pau alto no meo em que pendurou um quarto de carneiro que comprou para isto. E armou ao pé do pau muitos laços encobertos, e tapou a cova com távoas delgadinhas, postas de tal feição, que ain-da que fora ave não pudera passar por cima delas, para ir tomar a carne, que não caísse na cova. Ou, bulindo com as távoas, desarmavam tantos laços sutilmente encobertos que havia de ficar presa como em aboiz.

Aconteceu que, deixando a carne neste resguardo (que lhe fora melhor metê-la em casa), se foi à noite dormir. E pela menhã cedo saiu em camisa a ver o seu quintal, cuidando que estava vingado de quem o escarnecia muitas vezes. E porém, quando olhou, não achou o quarto de carne, nem nenhũa cousa caída nos laços, de que ficou mui maravilhado. E punha-se derredor da cova, e de longe tocava com a ponta do pé em ũa das tabuinhas, a qual, em tocando-lhe, se bran-dia tanto, que por pouco que lhe carregassem desarmava. E ele, vendo isto, dizia entre si mesmo: “Não veo por aqui”. E tocava em outra, e fazendo-lhe o mesmo dizia: “Nem por aqui”.

E assi, andando todo o cavouco a derredor, não fazia senão apalpar seus laços, e não achava per donde lhe vieram a tomar sua carne. Tão embebido an-dava nesta diligência que, pondo a ponta do pé em ũa daquelas tabuinhas mais carregadamente do que era rezão, desarmou a trampa, sumindo-se a távoa: ficou ele no ar, pendurado por um pé, da ponta do pau que estava no meo da cova. E foi alevantado tão alto que não chegava com um palmo com a cabeça ao chão, e a camisa lhe ficou cobrindo o rosto. O qual, vendo-se assi, gritou, e acudiram vizinhos que o desataram e reprenderam porque não pôs sua carne em melhor guarda, que quem aquilo fazia era ladrão, que com lança ou azagaia lho tomava de longe e se acolhia sem medo de lhe empecerem seus laços e armadilhas: que é muito certo que ninguém armou laço que não caísse nele.

Pelo qual nenhum de nós, de meu conselho, o arme. Antes, para que fujam disso, lhe contarei a este propósito o que eu vi, e são vivos alguns que o viram então.

Um homem chegou a negociar com outro, um dia de Nossa Senhora do Ó, ao qual achou jogando com outros dous. E praticado o que queria, o dono da casa lhe rogou jogasse ali com eles, e ele respondeu que o não podia fazer. Tanto lhe perfiou o dono da casa que ele disse que não trazia dinheiro. E todavia lhe foi ro-gado que jogasse, que lhe emprestariam o que fosse necessário, como de feito lhe emprestou. E jogaram aquela tarde e a noite toda, até quase seis horas da menhã, em o qual tempo o que veo de fora sempre perdeu, até chegar a cinco mil réis, que o dono da casa lhe emprestou.

Porém, como viu que ia perdendo tanto, do seu próprio dinheiro ia refun-dindo, escondendo no falso peito. E quando se acabou o jogo, ficou devendo os

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ditos cinco mil réis, e ele levava consigo dezoito ou vinte reales de prata, que era isto o ano de 1544, que havia em Lisboa quase tudo reales.

E passado o jogo e ido o que perdeu, ficaram os três para entre todos parti-rem o ganho. E quando fizeram a conta do que o outro perdera, acharam menos os reales que ele próprio levava. E cada um dos três cuidava que os outros os tinham, sobre o qual tiveram diferença. E houve brados, a que acudiu um bom homem que hoje vive. E perguntando, soube o que era, e descobriu-se-lhe tudo o que passava. Porém não soube dos reales que o outro levava, e notando o caso disse:

– Dai-me agora isso que todos ganhastes, pois é mal ganhado. Torná-lo-ei ao que o perdeu para ajuda do pagamento do que lhe emprestaram. E ele pagará tudo e perderá o que agora não se acha.

O que eles não quiseram fazer. E este disse a verdade do que passara ao que perdeu, que, tanto que o soube, se aqueixou do engano entre homens honrados, amigos de todos. E a tantos, que foi a ouvidos do que emprestou o dinheiro que, vendo-se infamar, buscou rogadores com quem lhe mandou pedir que, pois ele não levava dinheiro e o que perdera fora emprestado, que o não desonrasse e que não pagasse os cinco mil réis que devia. O qual, pelos que lho pediram e por seu proveito, o fez, que em mais de doze anos o não disse a ninguém. E assi o que ar-mou a trampa do engano, emprestando dinheiro por enganar ao outro, esse ficou enganado, perdendo-o todo. E o que perdeu ficou com os reales que escondeu. Por donde fica visto que é verdade que ninguém arma trampa que não caia nela.

Por amor de Nosso Senhor, que tomemos exemplo nestes, não armemos la-ços em que outros caiam, porque não caiamos nós em eles, e guardemos os man-damentos de Deus e os naturais, querendo para o próximo o que queremos para nós. Que vivendo em caridade se alcança a glória a que Deus nos leve. Amém.

CONTO V

Que diz que a boa mulher é joia que não tem preço, e é melhor para o homem que toda a fazenda e saber do mundo, como se prova claro ser assi no discurso do conto.

Em ũa aldea perto desta cidade de Lisboa se ajuntaram três mancebos, filhos de vizinhos dali, e sobre prática disse um:

– Em verdade desejo sair fora desta terra a buscar vida pelo mundo, que, sendo vizinho tão perto de ũa cidade tão populosa e grande como Lisboa, estou descontente da vida desta aldea que é chea de trabalho e pobreza. E nem por isso queria ir ganhar a fazenda a Lisboa, que é tão perto de meu natural, porque não poderei ali deixar de estimar-me, e mais longe farei o que em Lisboa não se per-mite que faça, para quem eu sou.

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Os outros dous disseram que dizia a verdade, e cada um com sua tenção determinaram partir dali ao dia seguinte, para o qual se haviam de fazer prestes em amanhecendo. E assi foi, que eles se juntaram e partiram ao outro dia caminho da cidade, para lá haver seu conselho do que cada um devia fazer.

Porém seria meo-dia quando pela estrada que traziam vieram ter a ũa en-cruzilhada de caminhos, na qual acharam assentado um velho ermitão que, em penitência de seus pecados, fazia vida solitária naquela charneca, em ũa pequena ermida que ali tinha. O qual costumava alguns dias da somana, depois de rezar suas horas, vir-se àquela encruzilhada e, se chegava algũa pessoa que não soubes-se qual caminho havia de tomar, o encaminhava, por fazer serviço a Deus. E às vezes dava ali virtuosos conselhos a caminhantes, de que todos eles se achavam bem. E tanto que viu estes três companheiros, rogou-lhes que lhe dissessem para donde iam, por ventura lhe aproveitaria em algũa cousa.

Eles, que eram de boa criação e porque as reverendas cãs o mereciam, satisfizeram a sua pregunta, cada um por si, isto é, primeiro aquele que foi o pri-meiro naquela sua partida, que disse:

– Senhor, eu sou filho de um homem honrado e, para quem meu pai é, ele nem eu não temos que comer. E tenho duas irmãs mulheres maiores que eu, e o que tem para seu casamento são quatro vinhas que, quando vem a dar novidade, está gastada em adúbios e comer. E tudo tão pobremente que não alcançamos a comprar-lhe um calçado cada ano, nem nós o trazemos de cordovão. Pelo qual desejo, se Deus fosse servido, de ir-me por esse mundo, inda que fosse cavar à enxada, por ver se podia haver com que repairar a meu pai, que é velho e não tem mulher, e para casar minhas irmãs, que são mulheres nobres e virtuosas. Isto queria e no mais,115 que para mim um saio de burel me avonda.

Respondeu-lhe o ermitão:– Certo esse é bom e virtuoso desejo, ao qual Deus há de acudir, se vós não

mudardes a tenção, pelo que vos encomendo que sempre sejais desse parecer. E para haverdes o que desejais, não vades a Lisboa, mas i-vos fora deste reino, por-que na própria pátria não se dispõem os homens a tanto (porque são conhecidos) como na alhea, donde os não conhecem. Porque lá servem por medrar, e na sua terra não é rezão servir por não abater-se. Dai convosco em Castela, que há mui-tas cidades populosas e grandes. Assentai co um mercador, que por vossa gentil disposição qualquer vos aceitará. E sendo ele nobre, virtuoso, e vós de verdade, não vos há de faltar o que buscais. Aqui se vos podiam dar muitos conselhos que dão aos mancebos que assentam com amos, os quais eu não reprovo, nem quero usar, senão do conselho do Senhor, per remate dos Dez Mandamentos, que é: ‘Ama a Deus sobre todas as cousas e ao próximo como a ti mesmo’. E como isto 115 No original, com os elementos juntos nomais: não mais, apenas isso.

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fizerdes, nem caireis em pecado, nem fareis cousa que deixe de ser boa. E para lembrança deste conselho tomai esta memória que, enquanto a tiverdes, não vos virá cousa má.

E deu-lhe ũa memória116 de osso, pouco galante e menos curiosa, porém com ũa letra ao derredor que dizia: “Memorare novissima tua, et noli peccare”. E mostrou-lhe um daqueles caminhos per donde fosse, porque não fizesse detença nos tráfegos e impedimentos de Lisboa.

Ido este, disse um dos outros:– Certo que eu tenho a intenção diferente do companheiro que lá vai, po-

rém folgaria de ir de diante de vós também aconselhado e provido como ele vai. E sabei, padre, que nem desejo dinheiro nem tenho irmãs para que o haver mister. Mas ouvindo um sermão na minha igreja, ouvi gabar tanto o pregador, que era filho de um nosso vizinho, que mouro por aprender letras. E não há cousa que tanto deseje na vida como estudar e aprender, por ver se por ali posso chegar a saber e ser pregador.

Também o ermitão lhe louvou a este seu propósito e encomendou-lhe que não fosse com desejo da honra que vira fazer àquele, mas com vontade de denun-ciar a palavra do Senhor, que Ele o ajudaria. E que para isto não havia necessida-de de ir a Lisboa, que o bom era ir a Coimbra ou Salamanca, donde se estuda e aprende. Que de seu conselho, pois já era latino e tinha bom princípio, que fosse per aquel’outro caminho que lhe mostrava e iria ter a Coimbra, donde acharia clérigos que aprendem, e folgariam de o ter para seu serviço e ensiná-lo. Que se desse ao estudo e ouvisse, que Deus seria com ele, dando-lhe tal amo como ha-via mister. Porém que sempre em todos seus ditos e feitos tivesse a Deus diante, porque lhe fosse favorável. E que atentasse que, pois aprendendo folgava de ser ensinado, quando soubesse, folgasse de ensinar e disto tivesse memória. Que para a ter dele e de seu conselho, lhe dava (como logo deu) ũa memória de prata delgada, não muito lustrosa, mas tinha ao derredor ũas letras que diziam: “Initio sapientiae est timor domini”.

E mostrou-lhe por donde havia de ir, e assi se apartou dele. E se foi, ficando um só dos três, o qual, como viu despedidos seus companheiros, disse:

– Senhor padre, por isso dizem: ‘Quantas cabeças, tantos sisos’. Eu não busco o que aqueles buscam, mas porque me vejo homem e Nosso Senhor fez o ajuntamento do homem com a mulher, per casamento, desejo eu, se Ele fosse ser-vido, de casar-me. E não queria tanto as riquezas e gostos da vida, quanto folgaria de achar ũa boa mulher, porque ouvi à minha avó que a boa mulher val mais que ouro nem saber. Queiram os que lá vão saber, fazenda, que eu boa mulher quero para servir a Deus, se Ele for servido de ma dar.116 No sentido de “anel para conservar-se a lembrança de pessoa ou fato”.

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O ermitão também disse a este que o que desejava era bom, porém que lhe era necessário vir a Lisboa, donde estão muitas mulheres virtuosas. E enca-minhou-lhe rua e casa donde vivia um homem que, ainda que não tinha muita fazenda, tinha ũa filha virtuosa, e tal que por ela se podia dizer boa mulher, e aquela lhe pertencia. Que fosse a ele e lhe dissesse que o ermitão da encruzilhada o mandava lá, que lhe desse sua filha em casamento. E quando lha houvesse dado, não se mudasse na vontade do serviço de Deus e que não tratasse a mulher como escrava nem como senhora, que por isso a fez Deus da costa do homem, e não do pé nem da cabeça, para serem dous em ũa vontade e igualdade. E que quando tivesse de quê, se lembrasse dos pobres, socorrendo-os com sua esmola. E não na tendo, ao menos desse boa palavra com caridade, que o mancebo aceitou de fazer.

E partido do ermitão, se foi à rua e casa que lhe ele ensinou. E achou a senhora da casa, porque não estava aí o marido. A qual lhe perguntou que queria, e ele disse que lhe vinha pedir sua filha em casamento. E deu-lhe o recado assi como o trazia do velho. A mulher honrada se maravilhou e disse:

– Filho, i-vos embora que minha filha não há de casar dessa maneira.Ele insistiu que como seu marido viesse lha daria, porque ele não pedia

com ela dote, senão a ela somente, porque tinha sabido daquele padre ser a moça boa mulher, que isto era o que ele desejava. Ela todavia o despediu. E vindo o marido, falou ela com ele. E havido conselho entre marido e mulher, disseram:

– A folha do árvore não se move sem vontade de Deus. Se este mancebo torna, havemos-lha de dar, porque ele tem boa vista e boa fala: parece que haverá nele boas obras. Deus lhes fará mercê, se nossos pecados não permitirem o con-trairo, porque tal filha como a nossa todo bem merece.

E comunicaram o caso com sua filha, a qual respondeu que ela para esco-lher não tinha a vontade livre, porque a tinha sujeita a obedecer. Que eles vissem o que lhe mandavam, e ela isso somente faria. E contudo encomendava o caso a Deus, que lhe encaminhasse o que fosse melhor para Seu serviço.

E passado aquele dia ao outro, o mancebo tornou ũa e mais vezes e veo rogar que lhe dessem aquela sua filha por mulher, buscando para isso suas ade-rências e terceiros, em conclusão que se fez. E lha deram como pedia, e com ela honesto dote, conforme à qualidade dos pais.

Recebidos e postos em sua casa, ele, por sua indústria, tratava e negociava, ganhando com que se mantinham honestamente. E estava tão bem que os pa-rentes de sua terra folgavam de o ver tão bem casado e assentado na cidade. E o sogro teve para si que acertara no casamento da filha, a qual era tal qual o marido a desejava: amiga da casa, proveitosa para a fazenda, conforme com seu marido, pacífica com a vizinhança, benquista de todos; e ela amiga de Deus e caridosa com os pobres.

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E assi viveram em muita paz e amor honrosamente espaço de quatro ou cinco anos. Mas o demônio que tem por ofício meter cizânia onde há conformi-dade, buscou aqui como revolver suas meadas e ordenou que este pecador que era todo bom ficasse por fiador de um seu amigo que tinha trampas que ele não cuidava. E acabado o tempo da fiança, os acredores lançaram mão polo fiador,117 sem ter dever com o devedor: houveram sentença, prenderam-no, tomaram-lhe a fazenda que, vendida em almoeda, não abastou, e retiveram-no na prisão polo que faltava.

E a sogra, de nojo da perda da fazenda que deu a sua filha, caiu doente e morreu com grande desgosto, polo qual (um e outro) o sogro viveu mui triste e desconsolado. E des que viu que ele não podia pagar e soltar o genro, nem ele tinha maneira para sair da prisão, rogava à filha que o desemparasse e o deixasse morrer na cadea. E que, pois já não tinha mãe, se recolhesse com ele, que era seu pai, e em sua casa o passaria bem, e não andasse morrendo à fome e servindo na cadea a quem nunca havia de sair dela. E que saísse, já não havia de alcançar para si nem para ela cousa que fosse boa.

A moça respondia:– Eu não no fui buscar, tal me coube em sorte. Hei de ter com ele e servi-lo

até morrer.E assi vendia de sua casa algum pobre fato (que escondeu da penhora)

para lhe dar de comer, e pouco a pouco se foi gastando, de maneira que chegou a não ter saia nem manto, mas com farrapos velhos se cobria. E tudo não estimava gastar por haver com que sustentar o marido não perecesse na prisão. E muitas vezes era achada pelo pai nas ruas e praças da cidade e envergonhada dele, por ver se assi a faria recolher para sua casa, e que deixasse o marido. Mas ela sofria tudo e, sem lhe responder, andava sempre entre gente virtuosa e de caridade, bus-cando que lhe levar para seu sustentamento. E muitas vezes suportava ela a falta por remediar a ele. E era mais a afronta que a pobre mulher recebia das palavras lastimosas do pai e parentes que a miséria e necessidade que passava, ainda que grande. Porém nem com isto, uns nem outros não puderam apartá-la do amor e serviço de seu marido. E quando a afrontavam muito, dizia ela que Deus que lho dera, por aquele trabalho que passava, lhe daria perdão de seus pecados e haveria mercê com ela e com ele.

Isto durou outros dous anos, que foi tanto tempo que os acredores, de de-sesperados de haver quem pagasse por ele, se concertaram todos que o queriam tirar fora da cadea, movidos à compaixão da mulher, com tal condição: que logo o dia que saísse se fosse fora da cidade e nunca mais tornasse a ela, sob pena que,

117 No original, com erro de impressão, na forma fiadar.

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tornando, ou havia de pagar, ou se havia logo de tornar a meter na prisão, o qual ele aceitou. E ao tempo que saiu da cadea, dizia o pai a esta filha, mulher do preso:

– Vem-te para minha casa, que ele não há d’estar mais que este dia em esta terra. Já te gastou vida, pessoa e fazenda, deixa-o ir, vá-se, que para ti eu tenho que avonde. Recolhe-te comigo, serás senhora de minha casa, mãe de teus irmãos. Vá-se com mal quem tanto te fez.

O qual a moça não quis aceitar, mas disse que, tal qual era seu marido, que primeiro havia de perder um deles a vida que se apartasse a companhia. E pedindo ao pai algũa cousa para se ir, lhe negou tudo, por ver se, obrigada de necessidade, queria ficar. Mas ela, sem nada, esperou ao marido à porta da prisão que, coberto com pobres fatos, todos d’esmola, veo direito ao cais da pedra, onde viu um navio de verga alta e que se embarcava gente nele. E sem perguntar para onde ia, se meteu no batel, e sua mulher com ele. E assi entraram no navio quase nus e sem cousa algũa de comer nem que beber, e sem saber para donde iam. E contudo muito contentes em se achar fora da prisão, e tanto como se levaram grandes riquezas.

Este navio partiu logo àquela hora com bom tempo. E passando de Be-lém,118 que a gente se começou de agasalhar, ũas donas honradas viram aquela mulher que, ainda que tão rota tivesse a roupa, nas falas e presença do rosto mos-trava que tivera boa criação. E perguntada quem era e para onde ia, disse:

– Para onde vou, senhoras, não sei. Mas dir-vos-ei quem sou e que ventura me trouxe a este navio.

E assi lhes disse cuja filha era, seu casamento, a vida e prisão do marido (como se disse nesta história). E como ela ia com seu marido, tendo por mor ser-viço de Deus morrer com ele que deixá-lo ir padecendo os trabalhos que se lhe ofereciam, e ficar ela comendo e bebendo, farta e contente, em casa de seu pai.

Todas houveram compaixão de a ouvir e choraram com ela. E havendo dó de seu trabalho e pobreza, a proveram com algũa roupa para seu vestir e cousas que comesse, o que ela tudo recebeu. E porém não comeu, até que comeram ela e o marido. E da roupa que lhe deram, partiu como melhor pôde, dando ao marido a mais e melhor parte. Porque ela desne logo ficou agasalhada com aquelas donas, as quais nunca com ela acabaram que ali comesse bocado, mas o que lhe davam ia comer com seu marido. Ao qual também Nosso Senhor proveu, porque, como se soube no navio o que a mulher contou, logo todos os passageiros tiveram conta com ele e o socorreram por amor de Deus. E assi, uns per ũa parte e outros per outra, tiveram estes pobres, marido e mulher, repairo de mantença e cama, e com que se cobrir os dias que andaram pelo mar, que não foram muitos, porque o na-

118 O porto de Belém, em Lisboa, de onde partiram as grandes armadas portuguesas, hoje impor-tante ponto turístico da cidade.

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vio era da Ilha da Madeira e ia para lá. E tanto que chegou, o mestre não lhe quis nada pola passagem, e eles saíram em terra tão benquistos de toda a gente que foi no navio, que qualquer deles folgara de os poder repairar e ter consigo.

Porém contentou-se o pobre homem com que lhe ofereceu um homem da terra: que fosse trabalhar a sua fazenda e que lhe daria o jornal que na terra era costume, o que ele agradeceu e servia em tudo o que lhe mandavam. Porém, por-que este jornal não bastava para mantença de ambos, ia muito cedo pela menhã ao mato e trazia para casa um feixe de lenha miúda; e à noite, quando vinha, trazia outro. E com esta lenha que vendia, e a mulher fiava e cozia de suas vizinhas, com que lhe davam algũa cousa. E ela, com nobres condições, boas palavras e obras desenganadas, tinha a todas por amigas. E passavam a vida contentes e cresciam em algũa roupa de casa e melhor fato: dele, por seu trabalho; e outro, que lhe da-vam pessoas virtuosas, porque as virtudes e condição dela o merecia às vizinhas.

E assi estiveram mais de um ano contentando-se com isto, sem se lembrar do tempo passado, mas esperavam que, vivendo naquele estado, morreriam ali. E trabalhavam por fazer obras para sua salvação, isto é, do seu pão sempre davam ũa fatia ao pobre; e da sua talha, um púcaro d’água, por amor de Deus.

Passado este tempo, aconteceu que ũa menhã, que o marido era ao mato pelo feixe de lenha, segundo costume, chovia muito rijo, e ela, que estava a fiar, ouvindo a chuva, compadecendo-se do marido que a tal tempo andava fora, abriu a porta de sua casa por ver a chuva e grande tormenta que ia na rua. E estando assi, veo pela mesma rua um velho branco da barba, quase corcobado pela idade que, ao parecer, passava de oitenta anos, todo molhado, tremendo de frio. E como viu aquela mulher à porta, chegou-se a ela e disse-lhe:

– Filha, por amor de Deus, que me deis algum gasalhado em vossa casa em que me recolha e abrigue desta chuva, que venho todo molhado, até a pobre camisa.

E ela, que o viu e ouviu o que lhe pedia, com caridade do coração, o ajudou para que desse os dous passos que lhe faltavam para entrar em casa. E tomando-o pola mão, lhe disse:

– Entrai, dono.E com presteza lhe chegou ũa tripeça em que se sentasse, e chegou a um

canto da casa o feixe de lenha que o marido trouxera a noite passada. E fazendo lume, fez ao velho que se chegasse a ele, que se aquentasse e enxugasse o fato. E em mentes que se enxugava, foi a bõa mulher a ũa vizinha, a que costumava vender daquela lenha que o marido trazia, e pediu-lhe quatro réis emprestados, a qual lhos deu com amor, e por eles comprou um pão de dous réis e os outros dous de vinho, que era honesto para um almorço. Com o qual entrou ao velho, rogan-do-lhe aquentasse aquele pão ao lume e, molhando-o no vinho, comesse e bebes-se: aqueceria por dentro e consolaria o esprito. O que o velho fez, lançando-lhe

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duas mil benções, que todas lhe vieram adiante, como se verá no fim da história, rogando o velho a Deus que lhe consolasse o corpo e alma, que assi o consolara.

Estando nesta oração, chegou o marido com a lenha que costumava trazer, e, quando viu o velho, representando-se-lhe diante a menhã fria que haveria le-vado, disse:

– Senhora mulher, antes de todas as cousas vos rogo que busqueis um pão e do vinho, que almorce este dono, por amor de Deus, que bem parece o há mister, que Nosso Senhor no-lo deparará a nós depois para nosso comer.

O velho, que lho ouviu, ergueu-se a ele e disse-lhe:– Filho, ela o fez já. E bem parece que nesta casa mora Deus, que sois am-

bos em ũa vontade. Eu comi e sobejou-me, com que podem comer outros. Porém rogo-vos, filho, que vos senteis e me digais se me conheceis.

O homem pobre se sentou em outra tripeça e disse:– Diria que vos vi, mas para me afirmar, não direi donde, nem quando.Entonce disse o velho:– Ora, conhecei-me, meu filho, que eu sou o velho que na encruzilhada,

junto com a cidade de Lisboa, vos apartei de vossa companhia. E se vos lembra, a cada um dos outros e a vós dei seu conselho, e a eles ũa memória a cada um.

Quando o mancebo o conheceu, não cabia de prazer. Ia-lhe beijar a mão, para que lhe desse sua benção. O velho se reteve, deixando-lhe beijar a manga do hábito. Lhe deu a benção, com muitas benções, e lhe disse:

– Filho, depois que vos apartastes de mi, tenho corrido muitas terras e pas-sado muitos trabalhos. Porém, porque sei que vós não estivestes sem eles, não vos darei conta de todos. Mas dar-vos-ei novas dos companheiros que convosco saí-ram da vossa terra. Sabereis que o primeiro que disse que queria dinheiro, para repairo de seu pai velho e casamento de suas irmãs, seguindo o conselho que lhe dei, foi ter à cidade de Toledo e ali assentou com um nobre mercador, que ia às feiras de Medina119 e Vilhalon120 e o levava consigo. Ao qual o mancebo serviu muito bem, espaço de quatro ou cinco anos, em os quais o senhor ganhou muito dinheiro, e teve para si que foi a principal parte dele por seguir o parecer e conse-lhos do português que tinha em casa. O qual sempre em sua mocidade foi devoto amigo de Deus, de mui boa consciência e de verdade, e tal que, do ordinário de sua mantença, folgava de repartir com os pobres. O que tudo visto polo senhor a quem servia, determinando pagar-lhe, achou que a melhor paga que lhe podia dar era casá-lo com sua filha (que era ũa mui fermosa donzela) e dar-lhe com ela a metade da fazenda que tinha, que na verdade o mancebo a ajudara a ganhar, tendo tanto recado nas compras e vendas e na guarda de tudo, como se soubera já que

119 Cidade espanhola da província de Valhadolid.120 Também chamada Villalón de Campos, vila espanhola da província de Valhadolid.

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havia de ser seu. O casamento veo em efeito com muito contentamento das par-tes, e deram-lhe sua casa: deu-se ao negócio que já sabia em que lhe ia muito bem. Porém, depois de casado – que por ter mais fazenda como tinha, devera re-partir melhor com os pobres e se houvera de lembrar da tenção com que saiu de sua terra –, então entregue ao cuidado da mulher, filhos e família, nem se lembrou do pai, nem das irmãs, nem nunca lhes mandou um ceitil, nem o deu d’esmola a pobre que lho pedisse. Isto soube eu porque, havendo tanto tempo que saístes todos três da nossa terra, desejei ver-vos a todos e saber como estava cada um, que sempre vos tive por filhos quase adotivos. Fui em busca dele e achei-o em Toledo donde, sem me dar a conhecer, o vi e lhe falei. E perguntando a seus vizi-nhos, soube o que vos digo. E um dia lhe fui falar a ele à sua porta, que estava falando com outros, e lhe pedi me desse ũa esmola por amor de Deus. E ele, por não interromper o que falava, não ma deu, nem reposta. Cheguei-me dentro da casa a sua mulher, pedindo-lha por amor a Nosso Senhor Iesu Cristo: não ma deu. Mas com ira, chamando-me velho importuno, que não deixava falar àqueles ho-mens, me despediu que me fosse, que estavam fazendo negócio que lhes releva-va. E eu tornei a ele e importunei-o de verdade, pedindo-lhe esmola. Tirava-lhe polas mãos que ma desse, ao qual nem assi o pude mover para ouvir o que lhe dizia, nem somente me parece que me via, tão metido estava no negócio. Tanto que lhe lancei mão do dedo donde tinha a memória que lhe eu dera e lha tirei fora, e nem por isso acudiu. E a mulher bradava de dentro que os deixasse negociar e me fosse embora. Eu, vendo isto bem contra minha vontade, me apartei e os dei-xei, levando-lhe a memória. E certo eu ia triste, porque o quisera ensinar e me pesava de seu descuido, que foi tanto que, até o jantar, não achou menos a memó-ria. E quando entendeu que a perdera, se lembrou de mi, que lhe pedira a esmola, e lhe pareceu que eu era o próprio que lha dera e que não me responder seria causa de lha tomar. Ficou tão embaraçado na imaginação, que saltou com ele um fernesis, que dizia mil desatinos. E como era rico, acudiram-lhe muitos médicos – alguns mais com cobiça de sua fazenda que por sua saúde, e outros viriam por curá-lo – que uns e outros levaram assaz em esses dias que esteve na terra, em os quais cada vez empiorava. Os seus acredores, vendo isto, lançaram mão da fazen-da para se pagarem, antes que médicos e boticairos a levassem. E os seus devedo-res, que o viram tal, levantaram-se com o que lhe tinham, de maneira que dentro em oito meses não havia em casa cousa a que pôr olhos: que criados, falsos ami-gos e ladrões tinham já tudo guardado. E ele, sem remédio e sem quem o quises-se ver, mandaram os mestres que o levassem à natureza, que por ventura lá torna-ria. E assi, com muita pobreza, doente, sem ter que comer, tornou a vir à terra donde já não achou pai, nem ũa das irmãs, que eram mortos. A outra o recolheu e curou, e o tem ainda consigo mui enfermo. E porque, segundo dizem, a mulher

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também ajudou a guardar parte da fazenda, quando a viu perder, e com ela quis ficar na sua terra, segurando-se de trabalhos, e não ir com o marido para lhe apli-car os remédios necessários, que está tal que, se não é morto, o será prestes, se-gundo ficou. Depois que vi a este assi, fui a Coimbra e achei o segundo que disse que queria ser pregador. E se atentastes, eu lhe roguei que o não desejasse com cobiça da honra, senão para denunciar a palavra do Senhor polo mundo, e lhe dei a memória que vistes, que ele, enquanto aprendia, a guardou bem e teve meus conselhos. Porém, como se viu letrado, fez-se tão interessal arrogante que, se não levavam dinheiro, não queria somente falar com a pessoa, mas, presumindo de grande sabedor, menosprezava a todos e sempre falava per cima do ombro. E isto eu o vi, que fui a ele e lhe disse: “– Filho, pois o Senhor vos fez mestre e sabeis tanta ciência, peço-vos, por amor de Deus, me ensineis o Pater-Noster e Ave-Ma-ria”. E ele respondeu: “– E na vossa meninice, que fizestes que o não aprendes-tes?”. Eu disse: “– Irmão, jogos, brincos de moços mo impediram. E em maior idade, tavernas, mancebias do mundo, mulheres, cousas desta qualidade em que andei vagamundo, cego, que nunca conheci meu dano senão agora. Que por amor de Nosso Senhor vos peço que me ensineis. Que, se eu o quisera aprender em outro tempo, não me faltava quem mo ensinasse. Mas eu não quis por minha ruindade, senão neste tempo em que vos peço o façais. E não queirais que (se eu me perder) vos peça Deus conta de mi, que por vosso meo me poderá salvar”. E ele, nem por isto nem por outros muitos rogos que lhe fiz, não me quis conceder o que lhe pedia, senão mandou-me dizendo que donde gastara a mocidade fosse aprender na velhice. Peguei dele, tomei-lhe as mãos, importunei-o e, quando vi que nada me prestava – sabe Deus que com dor de minha alma, por ver sua con-tumácia e a pouca memória que tinha do que lhe eu encomendei –, lhe tomei a memória do dedo, que ele não sentiu com menencoria de me ver pegar nele e por me empuxar de si. E não na achou menos em todo aquele dia até noite. Que quan-do se foi lançar a dormir, a buscou e, cuidando que a perdera, ficou mui triste. E imaginando em muitas cousas sobre ela, não podia cair na conta que eu lha toma-ra, mas teve para si que lhe caíra na casa. E buscando-a muitos dias, deixou de ir às escolas donde era tão estimado, que aquele pouco de tempo que faltou fazia grande míngua. E vieram em sua busca, perguntando-lhe certa dúvida que lá se havia oferecido, à qual ele respondeu logo de repente sem estudar sobre o caso que era para isso. E a reposta foi o contrairo do que todos esperavam dele, e logo o contradisseram. E ele, vendo que o contradiziam, disse: “– Eu disse o que li e o que entendo. Ora, se todos dizeis o contrairo, para que quero livros?”. E sem atentar o que fazia, remete com alguns dos livros que tinha diante e com muita presteza os rompeu, e rompera todos quantos tinha se o deixaram. Mas, porque pareceu doudice, o tiveram. E porém, ainda que se passaram alguns dias depois

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disto e cuidavam que estaria já fora daquela mania que tivera, o soltaram, que até então estivera preso. Mas ele na verdade estava alienado do miolo, e disse e fez cousas com que se viu claro que não tinha o juízo inteiro como antes. Pelo qual, posto em ferros, o puseram sobre ũa azêmela e o levaram ao esprital de Lisboa para ser curado, ficando perdido tudo o que tinha de letras e fazenda. E eu fui com ele e, deixando-o na casa dos doudos, fui perguntar por vós, donde moráveis. Soube vossa fazenda, tudo quanto até’qui vos aconteceu e como estáveis nesta ilha. Vim cá por vos ver e, ainda que chegamos ontem com honesto tempo, eu saí do navio esta menhã. E parece que me espreitou a chuva que, tanto que fui em terra, começou como vistes. E certo que me perdera de todo, se Deus não me so-correra em achar esta porta aberta e o remédio que nesta casa achei, o qual Deus pagará. Que assi o confio eu Nele, que tudo o que se faz ao mais pequenino que seja, fazendo-se em Seu nome, a Ele se faz, que o toma à Sua conta para o pagar. Folguei de vos ver tão conformes no esmolar por amor de Deus. Rogo-vos que o façais sempre assi e lembre-vos o pagamento de vossos acredores. E podendo ir a vossa terra, i-lhes pagar, que boa esmola é pagar cada um o que deve. Dai algum gosto a vosso pai que está velho e tem passado tanto nojo e trabalho. Por certo que, confiando em Deus e fazendo de vossa parte o que puderdes, o Senhor vos dará como façais o que é rezão.

E assi, dando-lhes este velho a cada um destes casados ũa memória das que tomara aos outros, se expediu deles, que, ainda que lhe rogavam ficasse ali a jantar, não quis e foi-se onde por então o não viram mais.

E como ao despedir o acompanharam até o meo da rua, porfiando com ele que ficasse, quando tornaram a casa acharam, donde o velho esteve assentado, ũa bolsa com muito dinheiro, que parece ser a trazia o velho e lha deixou para seu repairo, a qual ambos tomaram com muita ledice e juntos deram graças a Deus por tamanha esmola. E determinaram repartir daquilo com outros pobres que havia na terra, e o fizeram mui secretamente.

Neste tempo, porque era alto dia e ele não havia ido à fazenda, o senhor dela disse:

– Em verdade este homem padece muito trabalho nos caminhos que faz. Dizei-lhe que não quero que trabalhe tanto, senão que se venha cedo, que hei por bem dar-lhe o jornal dobrado.

E assi se cumpriu. E não contente com isto, o senhor, visto o serviço, leal-dade e guarda deste homem, e como temia a Deus, lhe deu ũa parte em ũa nau que mandou carregada d’açúcares a Frandes, mandando-o nela. O qual teve tão bom sucesso, levando consigo o dinheiro que o ermitão lhe deixou, que tornou a vir à ilha com o retorno, trazendo grande ganho para o senhor e muito proveito para si,

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de que todos os moradores da ilha eram ledos, por ser tudo bem empregado nele e em sua mulher.

E em pouco tempo ajuntaram fazenda com que tornaram a Lisboa, paga-ram a todos seus acredores, e o pai dela teve grande contentamento de os ver. Acharam irmãs que casaram, dando-lhes grande dote. E ele mandou à sua terra chamar seus parentes e deu a cada um conforme a sua necessidade. Fez curar o fernético que fora mercador, teve-o em sua casa até que morreu d’outra enfermi-dade. Provia ó doudo do esprital o que lhe ficou de vida. Deu-lhes Deus filhos e filhas virtuosos, tementes a Deus. E assi mostrou o tempo neles que este, por ter boa mulher, teve mais e valeu mais com Deus e com os homens que os outros que tiveram a fazenda e saber do mundo.

E portanto, concluio que a boa mulher é joia a melhor que o homem pode ter, e eu isto tenho para mi. Cada ũa das senhoras que isto ouvirem folguem de ser para os maridos e para Deus como esta foi. E o marido que tiver tal mulher saiba conhecer o que tem e honrá-la, que, sendo ambos tais, Deus lhes dará neste mundo graça com que O sirvam; e no outro, glória com que O gozem.

CONTO VI

Que não confie ninguém de si, que será bom, porque já o tem prometido; mas andemos sobreaviso, fugindo das tentações. Trata um dito de um arrais mui-to confiado.

Ũa das oitavas de Páscoa florida,121 quiseram quatro homens honrados de Lisboa passar este rio da banda d’além a Palhais,122 a um mosteiro de capuchos, onde se metia Frade Frei Pedro, o simprez, um mancebo de sua conversação que hoje vive. Fretaram um batel em que meteram mantimento para seu comer e que poder dar de esmola aos pobres dos frades.

Aquele dia, antes destas horas, chegou a este123 porto de Lisboa ũa nau de São Tomé,124 de que era mestre um honrado homem que vivia em Setúval. E como viu embarcar esta gente para além, desejoso de ir a sua casa, lhes rogou que o deixassem passar no barco, ofrecendo parte do custo, o qual logo lhe aceitaram, e sem paga, porque sua presença parecia merecedora de mais.

121 As “oitavas de Páscoa” correspondem aos oito primeiros dias do tempo pascal.122 Freguesia do concelho do Barreiro, distrito de Setúbal, junto a um braço da margem esquerda

do rio Tejo.123 No original, com erro de impressão, na forma estes.124 Ilha da costa africana ocidental, que forma hoje com a ilha de Príncipe uma nação independen-

te, pertencente à comunidade dos países lusófonos.

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E assi partiram do cais com muito contentamento. Porém, estando no meo do rio, disse aquele mestre da nau ao arrais que ia na trapeira governando:

– Arrais, mandai amainar um pouco a vela, porque vejo vir um grande chuveiro. Não nos tome descuidados com a vela tão alta que nos faça soçobrar.

Do qual o arrais zombou e disse:– Sei que não estamos em Guiné, não hajais medo. Deixai ir a vela que

bem vai.Nestas palavras e algũa detença que depois desta reposta se fez, chega

um pé de vento com ũa chuva de pedra tão grossa que parecia que o mar queria comer o barco. E por ventura fora assi, se aquele bom homem de Setúval, com grande cólora, não lançara a mão à espada, como lançou, e, com muita diligência, cortou ũa corda dos aparelhos, com o qual a verga veo toda de romania abaixo. E o arrais, que como digo estava na trapeira governando, descuidado do grande perigo em que todos estavam, quando lhe viu lançar mão à espada, entendendo o que queria fazer, antes de dar o golpe, bradou rijo, dizendo:

– Pesar de meu pai, deixai ir o barco e não temais que boa fiança tenho dada na Câmara.

Este dito foi muito para rir, se os que ali estavam não tiveram tanto pavor da tormenta, a qual se ergueu com tanta fúria que se viu claro que, depois de Deus, a boa indústria e diligência daquele homem foi causa de não se perderem, segundo o que ali passou.

Ora vede: se se perderam, que remédio lhe era a fiança que o arrais tinha dada? A qual serve para o obrigar, quando chega a terra, que dê o que lhe entrega-ram donde partiram, e não para segurança do viage. Que para ele é necessário tra-balhar todos, arraises125 e passageiros, por chegar a porto de salvação. E não confie ninguém de si mesmo, nem na fiança que deu (declaro-me mais, quero dizer).

Todos queremos ir à glória. Não confiemos de nós que já prometemos de ser bons, e assi o seremos e iremos lá; senão que, não confiando de nossas pro-messas, trabalhemos por nos apartar da tormenta das tentações do demônio, abai-xando as velas de nossa soberba e sensualidade, para não sermos soçobrados no pego profundo do inferno, de que Nosso Senhor nos guarde. Amém.

125 Forma arcaica de plural do substantivo arrais, hoje empregado de forma invariável em número.

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CONTO VII126

Que nos contentemos com o que alcançamos e que, estando em serviço do Senhor, perseveremos indo adiante. Porque o que persevera em bõas obras até a fim há de levar a joia e fica rei.

Houve um Rei que geralmente nunca se ria, tanto que, nas maiores festas e donde mais mostrava alegrar-se, satisfazia a seu povo com ser presente a elas, sem outra mostra de contentamento. E porque ele não queria dizer a causa desta sua tristeza, por escusar a lembrança dela, para que ninguém lha perguntasse, mandou apregoar per todo o reino que nenhũa pessoa fosse ousado a perguntar--lhe por que não se ria, sob pena de morte e perdimento dos bens para a coroa, ou como fosse sua mercê.

Pelo qual se passaram muitos anos que ninguém quis tal saber. Mas como tudo se acaba, sendo passado muito tempo, vieram de novo àquela corte dous mancebos irmãos forasteiros, um deles grande letrado em todas as ciências e artes liberais, e o outro mui destro em todo exercício militar e mui esforçado cavaleiro, os quais eram em sua terra fidalgos de muita reputação, tão parentes do rei donde viviam que, por ele ser tirano, lhe pareceu que aquele grande cavaleiro, por rezão que para isso tinha, se lhe queria alevantar com o reino e ser contra sua pessoa real, o qual era falso.

Porém os dous irmãos, ainda que tinham rezão de fazer o que deles sus-peitou o tirano de que eles não tinham imaginação, tiveram por melhor sofrer desterro de sua pátria, ausentando-se da presença d’el-rei, que pôr-se com ele em pontos de direito. E assi, deixando seu próprio natural, vieram à corte deste rei que nunca se ria, o qual, sabendo quem eram, os honrou e teve em muito, favore-cendo-os no que podia.

E veo a tanto, por merecimento deles, que, por conselho do letrado se regia quase toda a governança127 do reino. E se se ofrecia caso de guerra, o outro irmão cavaleiro era o geral do campo, ou capitão-mor do exército, o que em um e outro era bem empregado, porque cada um deles se desvelava tanto por fazer bem o que tinha a seu cargo que o fazia como era rezão. E nunca el-rei se arrependeu da honra que lhes fazia, nem lhes tirou cárrego que lhes desse.

Visto como estes forasteiros eram tão favorecidos d’el-rei, recebiam os naturais – fidalgos, letrados e cavaleiros – afronta e, com inveja, por abaixar a estes dous irmãos da alteza e mando que tinham, fingindo servi-los e amá-los, lhes disseram:

126 Este é o segundo dos três contos censurados pelo Tribunal do Santo Ofício, os quais só apare-cem na edição de 1575.

127 No original, com erro de impressão, na forma governaça.

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– Senhores, bem será que, pois estais tão aceitos a Sua Alteza, lhe tireis a malenconia e tristeza que tem e que, sabendo a causa, lhe ordeneis o remédio, que todos o ajudaremos a fazer como leais vassalos, seja o que for e custe o que custar, que não ficará por nós.

O qual tudo era falso para provocar a qualquer deles que perguntasse a el--rei por que não se ria, e com isso caísse em sua desgraça e o castigasse, conforme ao pregão antigo que, por haver muitos anos que se dera, estava quase esquecido.

E porém os bons irmãos, não caindo na conta da malícia que ali vinha en-coberta, não vendo mais que a sobreface, parecendo-lhes que era como diziam, se determinaram que o letrado, quando visse tempo, perguntasse a el-rei a causa de seu desgosto, para se lhe prover de remédio. E assi, passando ũas grandes festas que os maliciosos lhe ordenaram para vir a efeito sua tenção danada, às quais sendo el-rei presente, não se riu de cousa algũa, ainda que havia de quê, porque este era seu costume.

O letrado, vendo oportunidade para isso, lhe perguntou o que tinha deter-minado, com a humildade e cortesia que era rezão. E como el-rei era discreto, nos meneos e ordem das palavras conheceu que a pergunta nascia de lealdade e amor desenganado, com desejo de lhe dar o remédio, e não de vontade de o anojar. E logo lhe disse:

– Fizestes o mais defeso caso que havia no meu reino, nisso que me per-guntastes. E porém, porque entendo ser feito de amor, vos responderei com obras e não com palavras, e não castigarei o caso como delito. Mas já pode ser que em lugar de castigo seja mercê.

E indo juntos, o levou passeando para um corredor dos paços e, chamando a seu irmão, o fez ir com eles. Chegados ao cabo do corredor, a um baluarte que estava sobre o mar, desceram todos três juntos sem outra companhia per ũa esca-da de caracol que descia até a água. E no mar estava um barco pequeno sem ne-nhuns aparelhos para navegar, somente um banco atravessado em que se sentasse quem ali descesse. Estava preso este barco a ũa argola de metal que do baluarte saía com ũa cadea de ferro e fechado com um cadeado cuja chave el-rei trazia consigo. E tanto que todos ali chegaram, el-rei disse ao letrado:

– Se alguém vos aconselhou que me perguntásseis por que me não ria, como ora fizestes, tende para vós que vos desamava, porque é mandado que nin-guém mo pergunte so pena de morte e perda da fazenda. Porém eu, porque vos amo, me não hei por ofendido nem vos respondo dizendo-vos a causa, mas quero que a vejais com os olhos. E certo vos afirmo que se vos vós contentardes com o que Deus vos der, sem desejar mais outra cousa, antes de vinte dias sereis um mui poderoso rei. E não vos contentando, tereis muito trabalho, e vireis a perder o riso como eu perdi. Que, ainda que depois per casamento alcancei este reino,

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era tanto maior o outro sem comparação que, com lembrança de o haver perdido, serei perpetuamente triste. E para que vejais o que digo, entrai neste barco.

A que logo desfechou o cadeado. E sem lhe aguardar reposta, o fez meter no barco o qual, em entrando nele, desceu pelo rio abaixo até sair ao mar largo. E assi foi com tanta fúria que parecia voar sobre as águas, tal corrida levava, que ele não podia fazer mais que abraçar-se com o banco e, apegado nele fortemente, se sustinha que não caísse ao mar.

Deixando ir a este (que em breve perderam de vista), virou el-rei o rosto ao outro irmão e disse-lhe:

– Não temais o perigo do mar que vosso irmão leva, mas estai aqui vinte dias sem fazer mudança deste lugar, que eu vos mandarei prover do necessário. E se todos estiverdes sem vosso irmão tornar, sede muito ledo, que ele é de boa ventura e terá abastança de bens para si e para vós, e para muitos. E se tornar an-tes deste tempo, há de vir tão triste e desconsolado, que lhe fareis muita amizade em o consolar e ajudar a sair do barco, que pode ser venha daqui a cinco dias ou dez, pouco mais ou menos, como tiver de ventura.

E ido, el-rei mandou prover ao cavaleiro da mantença e cousas necessárias para estar ali aquele tempo. Porém ele não esteve tanto, porque, havendo quatorze dias que ali esperava, chegou o irmão no próprio barco, o qual vinha com tanta fúria que parecia ũa grande serpente que sobre as águas nadava. E às horas que ele chegou estava el-rei a ũa janela e, vendo-o vir, desceu logo à escada do ba-luarte donde estava o irmão polo receber e consolar, que já ele sabia per si como podia vir.

A esta conjunção, o letrado saltou em terra o mais triste homem que se pode imaginar: não acertava a falar, torvada a língua e o entendimento do grande pavor que passara na viagem e lembrança do que lhe nela acontecera.

El-tei, depois de o receber, já que quisera lançar o cadeado ao barco, da cadea que ele trazia à argola do baluarte, o mancebo cavaleiro que ali estava, com ânimo de grandíssimo esforço, saltando no barco, disse contra el-rei:

– Senhor, deixe-me Vossa Alteza provar esta ventura, que espero em Deus haverei este bem que aqui está aparelhado para quem se contentar com ele. E quando for tão mofino que o não haja, ter-vos-ei companhia.

Isto fez com tanta presteza que, ainda que el-rei quisera o contrairo, o bar-co não esperou, mas com a fúria acostumada tornou polo mesmo caminho por donde viera, com tal ligeireza que prestes o perderam de vista.

E o letrado ficou dando conta a el-rei do que vira e achara lá donde foi. E não se conta agora, porque o mesmo achou e viu o cavaleiro que lá vai, como logo contaremos, e assi será a história menos comprida.

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Partido este esforçado cavaleiro, como ouvistes, sabereis que todo aquele dia e noite andou o barco pelo mar com tanta tormenta que a vezes parecia que chegava ao céu, e outras que caía nas profundezas do abismo. Andava tanto que, quando amanheceu, estava da outra banda do mar, muito longe. E o cavaleiro, olhando para terra, viu um grande areal ao qual o barco foi ter, chegando tão rijo que, não parando na borda d’água, com a grande fúria que levava passou por cima da area, andando sobre ela (como se fora pela água) mais de quinhentos passos, que parecia impossível chegar barco ali.

O cavaleiro, que se viu em terra, postos os geolhos no chão, os olhos no céu, deu infinitas graças a Deus pola mercê que lhe fizera de o livrar daquela grande tormenta que passara a noite antes, pedindo-Lhe em seu coração mui de-votamente que houvesse por bem, em aquele ermo despovoado, dar-lhe remédio como não se perdesse, e graça com que Lhe fizesse algum serviço.

Estando nesta oração, chegaram a ele duas donzelas a cavalo, cada ũa em seu faquíneo bem guarnecido, e elas ricamente vestidas. Traziam no meo um grande e bem enjaezado cavalo ruço pombo, tão fermoso que prometia de si todo bem. E chegando àquele lugar onde o cavaleiro estava, ũa delas lhe lançou em cima um rico ferreruelo d’escarlata, forrado todo de cetim pardo picado, e o ca-beção e dianteiras de ricas martas inteiras e grandes. E chegando-lhe o cavalo, lhe disseram ambas:

– Senhor, cobri-vos e ponde-vos a cavalo que não temos licença para nos deter. Segui-nos.

Ele, abrochando uns botões do ferreruelo, que de ricas pedras preciosas eram, lhes tomou o cavalo e subiu nele com grande ligeireza, que era mui ligeiro e destro naquele exercício, querendo-lhes preguntar que terra era aquela e adonde iam. Elas deram da vara aos faquíneos em que vinham, que mui andadores eram, e, sem lhe responder, passaram por diante, de maneira que ele as seguia desejoso de lhes falar, e elas andavam apressadas por não lhe dar reposta e chegar ao fim de sua jornada, indo sempre tão perto dele, que as não perdesse de vista para as seguir; e tão desviadas, que desejasse chegar para lhes falar.

Andariam assi quase três horas, quando descobriram ũa fermosa cidade cujas torres e muros pareciam estar cheos de gente que esperava a ver quem vi-nha. Ao cavaleiro lhe pareceu por todo o caminho ser aquela mui lustrosa terra cujos campos prometiam muita fertilidade, e a cidade fermosa com muitos e mui grandes edifícios agradáveis. E a pouco espaço chegaram às portas dela donde saíram doze homens velhos que, em suas pessoas e atavios, pareciam de grande autoridade, como na verdade eles o eram. Estes doze velhos receberam com gran-de contentamento a este esforçado cavaleiro, e um, em nome de todos, lhe disse:

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– Senhor, vós sejais muito bem-vindo a esta nossa cidade que, de quinze anos a esta parte, não aportaram aqui senão dous homens, e vós sois o terceiro. E queremos que saibais que aqui está ũa princesa a quem pertence este reino per direito e herança. Mas, por nossa desaventura, ũa má mulher, por lhe fazer mal e porque não pôde acabar conosco que a aceitássemos por senhora, porque fora achegada ilicitamente a el-rei que morreu, pai desta princesa, que ela quisera de-serdar, tomando para si este reino que é muito grande; e porque, como digo, não teve nenhum meio para isso, por não achar no povo o aparelho que desejava, fez um encantamento que desne então dura. E é que nenhum homem pode vir aqui se-não per um certo barco que ela governa como e da maneira que lhe praz. E porque nem por ele venham, o fez estar fechado com chave, preso a ũa torre, como creo que vós o víreis128 porque nele havíeis de vir. E deu a chave ao primeiro que aqui veo, porque, magoado de não alcançar o que aqui perdeu, não deixe vir a outro que o haja, o que tudo é para que esta senhora princesa não case, que lhe fez com que não possa casar senão com o homem que neste barco vier. E assi vêm poucos, e a esses que vêm, ela, que por aqui anda desconhecida, lhes faz como peçam à princesa certa cousa que, se a ela der, tanto que a dá, o homem se torna a ir e não é mais visto. Porém nós temos sabido de pessoas doutas que, se vier algum homem que estê nesta cidade quinze dias sem querer mais que o que a princesa quiser que queira, este ficará livre, que depois não lhe podem empecer os laços desta mulher, ou verdadeiro demônio, que tanto mal nos tem feito. E este tal homem será rei deste reino, que não é pequeno, dado caso que agora não parece tal, e haverá em casamento com ele esta alta princesa que é a mais fermosa e nobre que agora se sabe em grande parte do mundo. E foi tal nossa mofina que haverá quinze dias que chegou aqui um homem, ao parecer pouco mais velho que vós, e esteve conosco doze dias e, no cabo deles, não se contentando com muitos mimos que aqui se lhe faziam, por conselho daquela má mulher, pediu à princesa um cavalo que, ainda que todos nós outros, e outros muitos, lhe rogaram o não quisesse, ele quis que lho dessem. E subiu nele e logo desapareceu, que pode ser o cavalo o matasse, porque à noite tornou sem ele, de que a todos pesou muito. E isto há três dias que aconteceu, e agora chegais vós. Rogamos-vos todos tudo o que podemos que, d’hoje em quinze dias, não queirais senão o que a princesa nossa senhora quiser e nós vos dermos, porque, eles passados, ela e nós quereremos tudo o que vós quiserdes, por tantos anos quantos nos durar a vida.

A quanto este velho disse esteve o nobre cavaleiro mui atento ouvindo, e entendeu bem tudo. E creu que o que estivera os doze dias era seu irmão, o qual perdera aquela conjunção de mulher e reino por não se contentar com o que lhe

128 No original, na forma virieis, futuro do pretérito de vir. Emendou-se para víreis, pretérito mais--que-perfeito de ver, de acordo com o sentido do texto.

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davam. E que o outro que viera havia quinze anos devia ser o rei do reino donde ele partira, e que a causa de não se rir era o nojo de não haver alcançado aquela ventura. E porque outro a não houvesse, a rogo daquela má mulher que por isso lhe fez haver aquele pequeno reino, tinha o barco preso e fechado com chave, como ouvistes, e era verdade.

E acabando de considerar isto, determinou consigo que não havia de pedir naqueles quinze dias cousa algũa. E logo respondeu aos velhos que lhes agrade-cia o conselho e aviso que lhe davam e que lhes rogava, se a eles lhes parecesse bem, que eles doze e as duas donzelas com quem ali veo, que eram quatorze, e a senhora princesa quinze, que cada pessoa um dia o acompanhasse, porque ele prometia de não fazer outra cousa senão aquilo que seu acompanhador129 mandas-se. E também prometia que, ainda que aventurasse a vida e honra, não deixaria de fazer o que lhe mandassem que fizesse. E se isto não era bom, nem isto queria; mas queria querer o que eles vissem que lhe armava.

Foi dito isto à princesa de que folgou muito. E mandou que aquele dia e o segundo acompanhassem as duas donzelas que o trouxeram, ambas juntas, e estas lhe ordenassem casa, câmara, leito, vestidos, servidores, e todas as cousas pertencentes e necessárias para seu serviço, sem ele pedir nem querer mais nem menos do que lhe oferecessem. E passados os dous dias, viessem dos velhos cada dia um, sem ele fazer nem querer cousa algũa, o qual se cumpriu.

E um dia lhe traziam instrumentos em que tangesse e cantasse, e outro ar-mas que provasse, que ele levava muito gosto de ver e tratar; porém nem por isso disse que queria mais nem menos. E sempre dizia a todos que esperava em Deus de vencer-se a si mesmo e ser contra tudo o que seu gosto lhe pedisse, querendo o que quisesse quem então o acompanhava. E muitas vezes a tentação do diabo daquela má mulher lhe punha na imaginação grandes desejos de cousas que ele, pola vencer, nunca pediu nem descobriu a pessoa algũa o que desejava, tão cons-tante estava em obedecer, para depois ficar senhor e poder mandar.

E assi passou doze dias sem fazer nenhũa mudança, e aos treze, pela menhã cedo, veo um velho acompanhá-lo, o qual lhe disse:

– Senhor, se vos estreveis a haver vitória de vós mesmo, hoje tendes ũa batalha que é necessário passar, e esta é dar vista ao campo a cavalo. E há-vos de sair ao encontro a mulher de que tratamos, a qual engana a todos aos treze dias. Se a virdes, entendei e crede que vos cumpre não lhe crer o que vos disser, nem

129 No original, na forma acompanhado. Emendou-se para acompanhador por duas razões: pri-meiro, pelo sentido do texto, pois o personagem ia ser acompanhado, recebendo, portanto, a assistência de um acompanhante ou acompanhador; segundo, porque o termo acompanhador, neste mesmo sentido, é o que aparece mais abaixo neste conto.

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nunca dizer a ninguém o que lhe ouvirdes. E guardai-vos de chegar a ela, que é muito fermosa, e sua vista cega, e suas palavras enganam.

A isto respondeu o cavaleiro:– E se eu não for fora e quiser ficar em casa, não se passará o dia sem na

ver, e estarei mais livre e seguro dela. Porque este vício e pecado da carne há grande valentia nele, e o ousar ter-lhe rosto e não temer de cair, confiado que não pecarei nele, pondo-me em aventura disso, isto é já pecado a meu entender. E tenho para mi que o vencer a carne é o fugir dela.

Respondeu o velho:– Senhor, que isso seja assi em todos os outros lugares não lho duvido. Mas

neste sabei que, se vós não fordes ao campo, virá ela a vossa cama. E pois assi é, melhores armas tendes para a vencer achando-vos a cavalo para lhe fugir, que estan-do deitado em vosso próprio leito sem poder-vos mudar. Polo qual vos rogo que vos ponhais a cavalo com este nebri na mão: saiamos a caçar, que eu quero ir convosco. E, por me fazer mercê, que a não deixeis de ouvir, nem lhe respondais palavra.

Ele o fez assi. E saídos ao campo, sem andar muito, encontraram aquela mulher que em ũa fonte de água se estava banhando, despida sem camisa. A qual, fazendo mostras fingidas que se queria cobrir, esteve lançando sobre si ũa tão sutil toalha que mais de ornato que de cobertura lhe servia. O que ela fez porque aquele cavaleiro, atentando nela, lhe falasse. E ele, querendo passar sem falar-lhe, foi por ela chamado, dizendo-lhe:

– Gentil homem, querem nessa cidade enganar-vos. Ah, pobre de vós, que vos metem em cabeça que vireis a ser rei e casareis com princesa muito fermosa, o que tudo é mentira. E para prova de que o é, ainda que eu sou fea, passai adiante e vede-me, e dizei lá que vos mostrem essa princesa. E se for mais fermosa, fazei por ela o que ela vos rogar. Mas, se achardes que é a mais fea, disforme, negra, de cabelo retorto que nasceu no mundo, enjeitai-a e perguntai de que servem esses enganos, que per derradeiro há-se de ver quando casar, e tereis desgosto perpétuo. Desengano-vos, querem vos ter feito à sua mão, para que sofrais os trabalhos da repúbrica e que tireis a ela do cativeiro em que está, ficando vós seu cativo para sempre. Se aqui aturardes quinze dias, nunca mais daqui saireis. E bem qual é o homem tão para pouco que se deixe sujeitar a ũa mulher que não conhece? Eu vos aviso que, se quereis ser desenganado, a vejais hoje ou amenhã. E se achardes que vos minto, não me creais. E se vos digo verdade por vosso proveito, por que não tomais meu conselho? Olhai, olhai para mi.

E dizendo isto, se virava de ũa parte e da outra por dar mostra de sua fermosura, tendo seus fermosos membros e corpo coberto com a toalha que dis-semos, de tal maneira posta que o cobrir-se com ela parecia ocasião de melhor e

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mais desenvoltamente mostrar-se, que era mui delgada e tão rala e sutil que era trasparente, como se fora um vidro cristalino.

E assi se mostrou muitas vezes, e o cavaleiro a viu e ouviu tudo o que disse, mas a nada respondeu, o que não pudera fazer outro, nem o fizeram os que ali vieram, senão que, afeiçoados à sua mui fermosa vista (que tal era ela), criam suas palavras, queriam ver a princesa, para determinar se era tão fermosa como aquela má fêmea. Que, sendo o mesmo pecado, parecia o que já dissemos, e por querer ver a princesa, começavam a pedir, e era ocasião de perderem tudo. Mas este cavaleiro com calar venceu.

E quando ela acabou de dizer o que quis, virou as rédeas ao cavalo, tornan-do-se para a cidade. Ele e o velho que o acompanhava se foram a sua pousada.

Despedido este cavaleiro (constante em virtudes) e apartado daquela mu-lher, se tornou à cidade com o velho seu companheiro, donde foram ambos mui bem recebidos, e passou-se este dia com contentamento de todos. E ao quatorze-no, antes que viesse o velho a que tocava acompanhar o cavaleiro, – vedes! – en-tra pola porta do aposento outro velho da mesma idade e parecer do que o havia de acompanhar aquele dia, o qual, com boas palavras, em entrando, disse:

– Senhor, eu estou já no derradeiro quartel da vida, não queira Deus que vos engane: estes vos enganam todos. Se aqui estiverdes hoje e amenhã, ficais ca-tivo sem nunca mais poder sair desta terra. Aconselho-vos que peçais um cavalo e vades dormir esta noite fora, e eu vos darei joias, riquezas grandes e muitas, e mor reino qu’este, e ir-nos-emos ambos. Porque amenhã é o derradeiro dia dos quinze, e se vos acham nesta casa, as palavras meigas da princesa hão-vos d’en-ganar. Vivei em vossa liberdade, crede-me, acolhei-vos e ide-vos, que com dó de vossa mocidade vo-lo aviso.

O cavaleiro, ouvindo isto daquele que cuidava que era seu acompanhador, esteve duvidoso, sem se saber determinar. E certo pode ser que caíra, se a este tempo não viera, como veo, o verdadeiro velho seu acompanhador, que teve de-bate com o que estava sobre qual deles era verdadeiro ou falso companheiro, bem como traz Plauto na comédia de “Anfitrião”,130 sobre “eu sou Sósia, mas eu sou Sósia” etc.

O bom cavaleiro que os ouviu, tornando em si, disse alto que ambos o entenderam:

– Qual de vós é o que diz que me vá, vá-se logo daqui, que ele me quer enganar e não hei de seguir seu conselho.

Ouvido polo falso velho, ainda porfiava, insistindo que sua rezão era boa e que era bom ir-se. E para persuadi-lo a isso, lhe mostrava muito tesouro que levasse, que ele lho daria, e cavalgadura. E na verdade ele não lhe havia de dar 130 Título de comédia de Plauto, tirada da mitologia clássica e trabalhada no estilo de farsa popular.

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senão algũa besta em que o desterrasse, tirando-lhe o bem que lhe estava apare-lhado e tão perto.

E nisto fez tanto que não houvera quem tanto se defendera como este cava-leiro que, de importunado, lhe disse:

– Velho mau, se houvera de fazer meu gosto, matara-te sem falta. Mas, porque não sei se com isso vou contra o que hei de fazer estes quinze dias, o não faço. Vai-te d’ante mi.

O outro velho verdadeiro lhe disse:– Senhor, em vão houvéreis de trabalhar se cuidáreis matar a este, que não

é homem, mas é figura do mundo tentador que, com promessas, sem dar nada, e o que dá torna logo a tirar, quer levar a todos ao lombo, para que, confiados nele, pereçam. E quando viu que com laços da tentação da carne não caístes, vos veo tentar com bens do mundo, falsos, breves, perecedeiros, que em um ponto se acabam. A meu gosto devíeis dar com esse velho em terra e dar-lhe muito couce, fique para quem é.

O qual o cavaleiro fez logo sem falta. E assi o lançou fora da casa, e se lhes passou o resto daquele dia com repouso. E à noite, antes que amanhecesse, teve cuidado o demônio de trazer-lhe muitas e grandes tentações para o derribar, mas ele esteve constante em seu bom propósito. E por não ser comprido, não digo o que com ele passou e como o venceu.

Passadas e vencidas as tentações que dissemos, ao outro dia, vinda a me-nhã, a senhora princesa veo muito cedo e o acompanhou todo aquele dia em sabrosa conversação, boa prática e amorosa vista. E ele, que a viu e sentiu bem sua nobreza e virtude, acompanhada de grande fermosura e saber, se houve por desenganado. Comeram e estiveram juntos, servidos de mulheres que a isso vie-ram. E acabando de comer e alçadas as mesas, trouxeram um cravo de muito primor e riqueza que a princesa abriu. E tangendo com muita graça e suavidade, pediu ao fidalgo quisesse dizer algũa cousa, o que ele aceitou pola comprazer. E disse a cantiga seguinte:

Fazenda honra e pessoa Pode fortuna estruir, Mas eu sempre hei de seguir Minha fé, leal e boa.

Pode torvar-me a rezão, Que tenho muita de amar-vos; Pode tolher-me falar-vos, Que me é consolação;

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E pode levar-me à toa Na tormenta de seu mar, Mas não me fará trocar Minha fé, leal e boa.

Pode roubar-me o contento Que tenho com vossa vista, E pode dar-me conquista, Angústias, pena e tormento;

Pode tirar-me a coroa Que eu espero com vós ter, Mas não me fará torcer Minha fé, leal e boa.

A princesa folgou muito de a ouvir, porque entendeu ser feita em seu nome ao propósito em que estavam. E nestes e outros passatempos e gostos estiveram até noite, que cada um se foi a seu recolhimento. E dormiram com assessego e grande descanso, porque era acabado o trabalho daquela senhora e de toda sua terra.

E ao outro dia pela menhã, veo ali o arcebispo da cidade, e com muita honra, por ele e por outros nobres da terra foi levado à câmara adonde estava a princesa esperando por ele. E foram ambos recebidos com muita solenidade, porque nos quinze dias passados se haviam feito as cousas necessárias para isso. E logo com muita festa foram jurados por reis daquele reino, que havia muito que o desejavam todos.

E isto acabado, cada dia vinham fidalgos e cavaleiros da mesma terra pre-sentar-se a el-rei com grandes serviços. E ele os recebia benignamente e com gasalhado lhes fazia mercês de ofícios, honras e dinheiro. E podia fazer tudo isto, polo muito tempo que havia que as rendas e tesouro d’el-rei e reino não se gasta-vam. E com fazer estas mercês, foi benquisto de todo o povo.

E antes de muito lançou de toda a terra alguns que lhe eram suspeitosos, com morte deles e perdimento dos bens, que deu logo aos leais. E ele ficou rei, rico e honrado, por ter ânimo com que esperou o sucesso dos quinze dias, con-tentando-se com o que lhe davam, enquanto duraram. E teve esforço para vencer a sensualidade e a carne, menosprezando aquela má mulher, que com torpes con-selhos o persuadia a isso.

Pisou a couces o mundo na figura do velho mau que o vinha enganar com falsas promessas. Triunfou do demônio e suas tentações, que trabalhava por der-rubá-lo na noite do pecado. Abraçou-se e casou com a vida virtuosa e honesta,

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que era aquela princesa, que todos os imigos d’alma perseguem. E em sua com-panhia, perseverando até morte, reinou prosperamente.

E os que com a primeira ou segunda tentação se deixaram vencer e cair perderam o reino e o rir, e a esperança dele. E se lhe perguntavam a causa, lem-brados de sua covardia, tinham maior pesar e tristeza. Pelo qual nós todos, por amor de Deus, que nos contentemos com o que o Senhor nos der. E ninguém pre-suma de si que merece mais do que tem e alcança, e por esta presunção o queira e procure bem ou mal havido. Porque vendo o Senhor que aqui nos contentamos com o lugar baixo, no cabo da mesa, e ali estamos quietos, Ele, que nos tem con-vidados para a glória, por Sua santa misericórdia nos dirá: “Vinde comigo, subi cá para cima, assentai-vos neste lugar de descanso que para sempre dura”. O qual nos conceda a todos por Sua piedade. Amém.

CONTO VIII

Que não desesperemos nos trabalhos e confiemos em Deus que nos prove-rá, como o fez a ũa rainha virtuosa com duas suas irmãs, que o não eram. De que se trata no conto seguinte.

Foi um rei mancebo, de idade de 22 anos, virtuoso e casto, que até esta idade não tinha conversação de mulher algũa. O qual, requerido dos seus que se casasse, para que houvesse filhos que sucedessem no reino, ele, com desejo de achar na sua própria terra mulher para isso, refusava o casamento de muitas princesas forasteiras que lhe traziam. E queria que a mulher fosse de virtuosos costumes, claro sangue e boa vista, sem ter respeito a fazenda, porque como rei, já que a queria de seu reino, entendia que não podia ter dote igual a seu mereci-mento, pelo qual, por dote, queria que tivesse estas três cousas.

E andando com esta imaginação, passeando um dia por ũa rua (como é costume), saíam as gentes a ver a el-rei. Assi saíram certas mulheres moças, todas fermosas, a ũa janela e, quando el-rei passou, ficavam falando ũas com outras, que el-rei as ouviu e não entendeu o que diziam. E por saber o que era, chamou a si fidalgos que estiveram mais perto e as ouviram e entenderam. E perguntou-lhes que ficavam dizendo, e foi-lhe respondido:

– Senhor, ũa disse que, se ela casasse com Vossa Alteza, se estrevia a fazer de suas mãos lavores de ouro e seda, tão ricas e tantas em vosso serviço que, se se avaliassem, valessem tanto dinheiro que bastasse para o gasto da mesa. E a outra respondeu que aquilo era muito, que não sabia o que dizia, porque não no bastava fazer, mas que, se ela tivesse tal dita que casasse com ele, lhe faria camisas e outras cousas de que tivesse necessidade, que o feitio delas valesse tanto como tudo o mais que Sua Alteza vestisse e calçasse. E a outra respondeu:

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“Ambas não sabeis o que dizeis, nem val todo vosso lavor tão estimado tanto que baste para vossa mantença. Eu vos digo o que farei, se Deus me chegasse a esse estado de casar eu com el-rei, meu senhor. De seu ajuntamento, querendo Deus, lhe pariria dous filhos fermosos como o ouro, e filha mais fermosa que a prata, o qual é prometer que, ajudando Deus, as mulheres podem cumprir; e ess’outro que, senhoras, dizeis são palavras de vento”. Isto era o que as mulheres diziam.

El-rei folgou de o ouvir e, notando as considerações131 em que elas esta-vam, propôs de casar com ũa delas, se Deus lho ordenasse, sendo pessoas para isso. E chamou quem as conhecia e, perguntando por elas, foi-lhe dito que eram da nobreza e fidalguia mais antigua do reino, e elas cada ũa per si muito fermosa. E quanto aos costumes não se achou quem dissesse bem nem mal, porque com ninguém tinham conversação.

El-rei, visto isto, mandou chamar mulheres de título, donas e senhoras a que deu conta do caso, diante das quais quis falar com estas donzelas, para se determinar qual tomaria por mulher. E logo fez vir ante si a mais velha (porque soube que todas três eram irmãs) que, vista, foi julgada por muito fermosa. E sem esperança que outra o seria mais nem tanto, el-rei lhe perguntou:

– O que prometestes fazer, estando à vossa janela, se eu casasse convosco, estreveis-vos a cumpri-lo?

Ela se envergonhou, e mudada a cor disse:– Senhor, de palavras de moças não lance Vossa Alteza mão. Se quer ser-

vir-se de mi, ainda que o não mereço, farei em seu serviço tudo o que minhas forças bastarem.

A todos pareceu bem a reposta, e el-rei a fez recolher e vir a segunda. A qual, depois de apartada a primeira, por todos foi estimada por mais fermosa que as irmãs. Porém nas perguntas, que foram as mesmas, lhe aconteceu assi como à primeira. Pelo qual el-rei a fez recolher e vir a menor que, vista dos presentes, fi-caram admirados de sua grande fermosura, que claramente mostrou ser ela a mais fermosa de todas. E el-rei lhe perguntou se se estrevia a cumprir o que prometera, passando ele perante as suas janelas. E ela muito envergonhada respondeu:

– Senhor, si.Com as condições que então disse. E fazendo-se de ũa cor tão viva que

acrescentou muito em sua grande fermosura, lhe fez el-rei que dissesse o que prometera. E ela disse:

– Senhor, prometi que, querendo Deus, de seu ajuntamento, sendo tão di-tosa que Sua Alteza casasse, pariria dous filhos fermosos como ouro e ũa filha mais fermosa que a prata. O qual disse confiada em Deus, primeiramente sobre

131 No original, com erro de impressão, na forma cosiderações.

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tudo, e em Vossa Alteza e em mi mesma, porque quererá Deus que os filhos sejam conformes a nós. E sendo tais, são mais fermosos que o ouro.

Coube isto em tanta graça a el-rei que, ele querendo e as donas que ali estavam rogando-lho, a recebeu por mulher. E se fizeram grandes festas que duraram muito.

E el-rei trouxe para casa da rainha as duas suas irmãs que a acompanhas-sem e servissem, e elas fossem servidas e tratadas como irmãs da rainha, sua mulher. E na verdade elas, por suas presenças, parecia que mereciam toda honra. E assi vieram ao paço donde as receberam. E el-rei fez vida mui amorosa com sua mulher, tratando-a com tanta veneração e honra como se fora filha do maior rei do mundo. E ela que por suas muitas virtudes lho merecia.

Porém durou pouco tempo, porque, como o demônio tem por costume em semelhantes lugares danar e meter cizânia, assi o fez entre as irmãs da rainha com ela. Vendo que, sendo a menor, era a mais honrada e elas não tanto, não tinham paciência para o sofrer e não olhavam que, estando assi menos que sua irmã, estavam em maior grandeza que nenhum de sua geração, passado antes delas, e que dali podiam casar altamente. Mas com inveja que tinham do estado da rainha, ambas de um conselho lhe buscavam todo dano e como a poder empecer e tirar da alteza e honra em que estava, não agradecendo a Deus e a ela as grandes honras e mercês que cada dia lhes fazia. Mas, mostrando-lhe grande amor, porque a este tempo se fez prenhe, lhe tinham ódio mortal. E assi, ensinadas pelo demônio, que é pai de toda maldade, de sua indústria, com falsas testemunhas, naquele parto e em outros dous adiante, pubricaram com falsidade que a rainha parira mônstruos peçonhentos e não criaturas, e os fizeram ventes aos que tinham rezão de os ver, de que o reino todo se alterou.

E el-rei aborreceu tanto a sua mulher que, lançando-a fora de casa, não lhe permitiu em todo o reino lugar nenhum em que tivesse repouso nem quietação. E as irmãs lhe buscavam tanto mal que o faziam a quem a recolhia, ou lhe fazia bem, e isto tão secretamente que não se sabia donde lhe vinha. De modo que, de rainha, veo a ser a mais pobre e abatida mulher de serviço que em seu tempo houve na terra.

Porém, como virtuosa, permanecendo em toda limpeza e para o melhor po-der fazer, se fingiu forasteira e, por mulher de serviço novamente vinda à terra, a recolheram em um mosteiro de freiras, para servir dentro de casa, que sua presen-ça e honestidade com que ela o foi pedir mostrava ser ela de mais merecimento do que dizia. E ali esteve recolhida, depois que el-rei a lançou fora, por muitos dias. E ainda que nos primeiros serviu como ela sempre quisera, as madres virtuo-sas o não consentiram adiante, porque logo se suspeitou entre elas que devia ser pessoa de muita qualidade, ainda que sempre o negou. E por esta presunção que as religiosas tinham, a recolheram entre si, escusando-a de serviços e mandando

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que fosse servida igualmente como ũa delas, porque sempre se achou nela que o merecia. E esteve neste encerramento mais de quatro anos.

Neste tempo que a rainha era fora do paço, as irmãs procuravam ilicita-mente de ver se podiam agradar el-rei, de maneira que, esquecido da rainha, se afeiçoasse a algũa delas, procurando isto cada ũa per si o mais que podia, o qual el-rei entendeu e, dissimulando e apartando-se da conversação delas, fazia que as não entendia. E quando se achava só, dizia mal à fortuna que lhe apartara de sua presença a cousa do mundo que ele mais amava, que era a rainha, sua mulher, ordenando que houvesse causa para a ele apartar de si.

E com esta dor viveu todo este tempo em o qual, ainda que lhe lembrava quão bem estava com a rainha e a pena que lhe dava seu apartamento, todavia parecendo-lhe que tinha rezão para isso, nunca permitiu que fosse buscada, nem quis saber novas dela. E para recreação do desgosto que trazia consigo não tinha outra consolação senão ir muitas vezes em um barco132 pelo mar ao longo da terra por esparecer. Algũas vezes pescava e outras ia à caça ao longo de algũas ribeiras que se vinham ali meter no mar, donde per vezes achava garças e outras aves cuja presa lhe dava algum contentamento.

E costumando isto, aconteceu que um dia, indo ao longo de ũa ribeira aci-ma, viu à borda da água ũa casa feita de novo, ao parecer dos olhos fermosa, e posta em bom sítio para gozar os ares e vista de mar e terra. E chegando perto, desejando saber cuja era, viu a ũa janela um menino, que seria de sete anos, de muito fermoso rosto, pobremente vestido. Perguntou-lhe:

– Filho, quem mora nesta casa?E o menino com muita criança133 disse:– Senhor, mora meu pai que agora não está aqui. Se Vossa Mercê quer que

chame minha mãe, virá logo.E neste tempo outro menino de menos idade dizia de dentro.– Senhora mãe, senhora mãe, aqui está um fidalgo à nossa porta.E a esta conjunção saiu ũa mulher à porta da rua com ũa menina pela mão,

pequenina. E disse:– Senhor, que manda Vossa Mercê?El-rei, que tinha pregados os olhos e o coração nos meninos que via, tendo

no sentido que, se Deus fora servido dar-lhe filhos da rainha, sua mulher, que já houveram de ser daquele tamanho, lhe disse:

– Vejo estas casas novas ao longo desta ribeira e estes meninos tão fermo-sos: folgaria de saber cujo isto é.

Ela respondeu:

132 No original, com erro de impressão, na forma harco.133 Forma do particípio presente do verbo criar, usada no sentido de “educação, boa criação”.

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– Senhor, as casas e os meninos são meus e de meu marido, para servir a Vossa Mercê.

El-rei, que tinha os olhos fitos neles, disse:– Dona, as casas creo que serão, mas os meninos... Sois já de dias, que

parece não deveis de ter tão pequenos filhos. Porém antes que me eu parta daqui saberei a verdade. Por isso chamai vosso marido.

E ela, torvada, lhe disse:– Senhor, diz Vossa Mercê isso com tanta autoridade que suspeito é pessoa

de maior merecimento que eu imagino. E porque não erre falando, antes de passar adiante me faça mercê dizer-me quem é, que pode ser pessoa que eu lhe diga o que me pergunta e não esperará a vinda do meu velho que é no mar a pescar.

A el-rei pareceu bem a fala desta mulher, e lhe disse:– Dona honrada, sou el-rei e quero saber cujas são estas casas e estes me-

ninos. E ainda que venho só, não duvideis do que digo e respondei-me ao que vos pergunto.

Ela se lhe humilhou muito e, com os geolhos no chão, pediu que lhe per-doasse não lhe haver falado até ali com a cortesia que devia e era rezão, porque assaz de justa desculpa era não no conhecer. E que ao que perguntava, soubesse que as casas eram suas para servir a Sua Alteza, que seu marido as mandara fazer e não havia dez dias que se acabaram. Mas que os meninos ela não sabia cujos filhos eram, mais que trazer-lhos seu marido que os criasse, um a um, pequeninos, nascidos daquele dia. E ela por sua indústria e com ajuda de ũa mulher d’outro pescador, que andava companheiro de seu marido na barca, os criaram. E do mais seu marido lhe poderia dar rezão, que aquela menhã fora ao mar e viria à noite, Deus querendo.

Então disse el-rei:– Pois dizei-lhe que amenhã ao jantar vá ter comigo ao paço e leve estas

crianças para me dizer o que sabe delas, que o hei de esperar sobre mesa.E ela assi lho prometeu.Ido el-rei, como se meteu ao longo da ribeira, já ia acompanhado de muitos

dos seus, e iam buscando se descobriam algũa caça, como ali costumavam achar. Sua Alteza viu ũas lapas que parecia que outro tempo foram pedreiras de tirar pedraria e de dentro saía ũa mulher que trazia os cabelos muito grandes, soltos e pretos, e os vestidos muito rotos. E assi, como ela saía, viu a el-rei e que ele vira a ela, com muita diligência se tornou a meter para dentro por se esconder. Mas como foi vista, el-rei a seguiu e, como ia em um bom cavalo, asinha a alcançou. E chamando por ela, que já se metia entre aquelas lapas, não pôde ela fazer menos de sair e responder ao que lhe perguntasse.

El-rei que a viu lhe disse:

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– Quem sois? E por que estais neste ermo?Ela, que conheceu mui bem que era el-rei o que lhe falava, lhe disse:– Senhor, para que quer saber Vossa Alteza vida de ũa mulher desaventu-

rada, que em penitência de seus pecados a faz desta maneira que agora vê? Reco-lha-se por amor de Deus e deixe-me acabar a vida e minha penitência.

E com isto chorava tão fortemente que era maravilha.El-rei, que viu que era conhecido dela e que por muito que lhe rogou não

quis dizer quem era, nem por que estava em tão solitário lugar, desejoso de o saber, a fez tomar por dous homens. E queixando-se ela, que não era honesto ser deles maltratada, el-rei lhe mandou dar ũa capa d’água sua e um sombreiro, e que se cobrisse, e a pusessem em ancas de ũa mula. E que um escudeiro, com muito resguardo e honra, a levasse ao paço. E sem que fosse vista de outra pessoa algũa, a tivessem até que ele chegasse, o qual se fez assi.

E chegado el-rei, mandou a algũas donas de que ele confiava muito que a vestissem como ela se quisesse vestir, para lhe falar ao outro dia ao jantar, que a queria ver e saber quem era. Porém que, até então, a não deixassem ver nem falar com outra pessoa e lhe dessem entre si o que lhe fosse necessário. Elas o fizeram, e, dando-lhe vestido, quis que fosse preto e muito honesto, verdadeiro dó, que não consentiu vestir outra cousa. E ao outro dia, chegadas as horas de recolher a mesa, trouxeram aquela mulher por mandado d’el-rei, o qual de novo lhe perguntou quem era e por que andava daquela sorte. E ela chea de lágrimas e soluços disse:

– Senhor, saberá Vossa Alteza que eu nasci em casa da mãe da rainha, minha senhora, criei-me com ela e com suas irmãs, e em sua companhia vim ao paço, que não devera, pois minha vinda foi para tanto mal como eu fiz.

A este tempo esmoreceu e caiu, que não podia falar, nem bulia pé nem mão. Acudiram-lhe as donas com remédios, e el-rei se chegou a ela e a esforçou, rogando-lhe que se consolasse em qualquer tribulação que fosse a sua e que lhe desse conta do que lhe pedia, que ele lhe faria mercês. E lançando-lhe água no rosto, com amorosas palavras a esforçaram, e tornou em si. E suspirando, tornou à prática e disse:

– Estando eu nesta casa em muito viço, favorecida da rainha, minha senho-ra, e de suas irmãs, elas me apartaram um dia e me disseram que Sua Alteza es-tava de parto, quando a primeira vez pariu, e que elas tinham determinado lançar um grande sapo com as páreas quando delibrasse, para dizer que aquilo parira a rainha. E que eu, com diligência, tomasse a criança que elas ma dariam envolta em panos, que a fosse lançar no mar, e que isto faziam porque não acertasse a parir filhos como prometera, que elas não podiam sofrer que a menor irmã fosse senhora das mais velhas. E eu, desventurada de mi, por lhe ganhar a vontade, sem atentar o muito que nisso perdia, quis fazer o que me mandavam. Aceitei aqui-

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lo, tomei a criança acabada de nascer, que era um filho, a mais fermosa criatura que vi em meus dias, e, envolto em ũa mantilha d’escarlata com outras toalhas ricas debaixo, mo deram, encarecendo-me que relevava muito lançá-lo no pego do mar, e que não tivesse cobiça da mantilha, ainda que era rica e com barras de veludo verde atorçaladas d’ouro, porque elas me dariam joias ricas e tantas, que não tivesse saudade daquilo. E logo em minha presença tiraram um grande sapo que tinham em ũa panela e o emburlharam com as páreas. E isto feito, gritaram, fingindo que era de medo do sapo, e lançaram a fugir, e juntamente com elas a parteira, que para isto estava peitada de dias, e eu também com elas. E com esta revolta tive tempo para me sair do paço, levando a criança comigo, sem que ninguém me sentisse, deixando na câmara e na sala tantos gritos e alvoroços espantosos, que era pasmo o que todos faziam, dizendo que a rainha parira um mônstruo. Uns que o viram diziam: “– É sapo”. Outros diziam outra cousa. De maneira que a revolta que então foi era grande, que eu por me ir não o vi de todo. Vossa Alteza se lembrará, que estava presente. E quando me vi na rua, encami-nhei para o mar e, como todos corriam para o paço, não se atentou por mi, e fui ter junto àquele lugar donde Vossa Alteza me achou. Desemburlhei a criança, vi que era varão, fermoso como anjo, temi de lançá-lo no mar, crendo que Deus me castigaria gravemente. E aguardei a ver se vinha por ali alguém, e nisto vi vir um velho pescador. Deixei a criança emburilhada nos fatos como vinha e lancei a correr fugindo. Ele, como me viu deixar aquele vulto vermelho, foi ver o que era. E eu, que espreitava o que ele fazia, como lho vi erguer do chão e levá-lo para sua casa, tornei-me ao paço com o rosto ledo. E disse às senhoras que o lançara no mar, porém ele ficava em poder do pescador, que não sei o que faria. As senhoras foram contentes do que eu disse que fizera. Fizeram-me mercês grandes e muitas, e esteve este segredo encoberto nelas e na parteira, e em mi. E desta maneira que contei aconteceu outra vez no segundo parto, que também levei outro ifante, fermoso como um Serafim, em um mantéu branco com barras de veludo azul, lavradas de trochados de seda laranjada, e parece que com pressa foram atadas as toalhas debaixo com ũas trançadeiras de encordoar os cabelos, que eram mui ricas. E ao sobressalto que mostraram ter quando disseram que a rainha parira ũa cobra, fugindo todas, fugi eu também e levei o ifante ao próprio lugar donde levara o outro. E em eu chegando, o pescador que me parece diante. E eu, que o vi, lancei a fugir, deixando o que levava como já fizera outra vez. O velho me viu e quisera que o esperara, chamando-me co meiguices; eu fiz que o não entendia. E ele, tomando134 a segunda criança, se foi donde nunca mais soube dele. Tornei--me ao paço, disse que o lançara no mar como o primeiro, polo qual também me

134 No original, na forma tomado, emendada para tomando, pois a sintaxe do período há de fazer--se com reduzida de gerúndio, ou reduzida de particípio com concordância nominal.

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fizeram mercês, e a parteira foi mui bem paga. E neste tempo estava este paço, Vossa Alteza e todos seus leais vassalos tão tristes polos partos da rainha serem de alimárias peçonhentas, e não criaturas racionais, que não havia contentamento em nada, de que ele mesmo pode ser boa testemunha. Porém, antes de outro ano, ou nele, veo a rainha a parir outra vez. E porque não posso com dor da alma es-pecificar já mais polo miúdo isto, o direi em suma. Chegada a hora que Deus foi servido, me deram outra criança envolta em ũa mantilha de cetim verde, forrada de veludo de Bragança135 branco, chã, sem guarnição algũa, com ricas toalhas debaixo, atadas com um cordão de retrós azul, que tinham uns nós muito curiosos de ouro e aljôfar, e fingiram como d’antes haver a rainha parido ũa toupeira que tinham para isto prestes. E no espanto e alvoroço disto, quando fugiram, fugi eu e fui ter à borda d’água no lugar donde deixei seus irmãos. E vi que levava ũa menina cuja beleza e fermosura não sei encarecer. E estando contemplando comi-go a grandeza grande de Deus que tal criara, e como eu o ofendia e era algoz de inocentes, e que por mi se perdia tanto bem na terra, esmoreci e, quando acordei, achei o pescador comigo, que me tomava a criança e me dizia: “– Já, já, conhe-cida sois. E vós paris no paço de quem se vos antolha e lançais aqui as crianças. Descoberta há de ser esta cousa a el-rei”. E pegando em mim, quisera-me ter. Mas, como ele era velho e eu moça e valente, tirei por mi tão rijo que lhe fugi das mãos, deixando-lhe a criança. E porque me temi que me buscasse no paço, não quis tornar a ele e meti-me naquelas lapas onde Vossa Alteza me achou, em que haverá bem quatro anos que estou comendo das ervas que nascem ao longo da ribeira e bebendo da água do rio. E isto fiz até’gora com intenção que, se nunca fosse descoberto meu delito para ser castigado como merece, ao menos para com Deus Nosso Senhor tivesse feita algũa penitência dele, pois cometi contra Sua Di-vina Majestade tais e tão feos pecados, e contra Vossa Alteza tão grande maldade.

El-rei, acabando de ouvir isto, ficou espantado da treição que as irmãs fi-zeram contra sua irmã, as quais ambas foram chamadas e viram a donzela, e entenderam tudo o que ela tinha dito. E como tudo era verdade, não tiveram boca com que o negar, nem rosto para parecer. E como que queriam falar ũa com a outra, se chegaram a ũa janela daquela sala que ia ter ao mar e, abraçando-se am-bas, se lançaram abaixo com tanta presteza que se lhe não pôde estorvar. E ainda que el-rei mandou gente que as fosse favorecer e tirar não se afogassem, quando chegaram e as tiraram fora, acharam que eram já mortas. Todavia se lhe fizeram muitos benefícios e remédios, mas nada lhe aproveitou, porque do grande golpe que deram e d’água que haviam bebido morreram. Do qual pesou muito a el-rei que era tão benigno que, se elas arrependidas lhe pediram perdão, lhe perdoara.

135 Cidade ao Norte de Portugal.

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Mas permitiu Deus que pagassem o grande mal e dano que fizeram à rainha, sua irmã, e ao príncipe e ifantes, seus sobrinhos.

Ainda a gente do paço não estava de todo sessegada deste alvoroço, quan-do entrou pola porta o velho pescador e sua mulher, e a mulher do companheiro que andava com ele na barca. Os dous velhos traziam no colo dous ifantes, e a outra mulher a ifante. E chegando ante el-rei, o velho se adiantou de sua compa-nhia e disse alto que todos o ouviram:

– Senhor, eu vivo mea légua desta cidade pouco mais e de meu ofício de pescador me mantenho com ũa pobre barca em que andamos, eu e outro compa-nheiro, marido desta mulher que aqui está, o qual fica olhando pela barca. Dis-seram-me que ontem passara Vossa Alteza pola porta da casa em que vivo e, vendo estes meninos, perguntou cujos filhos eram. E porque minha mulher lhe não deu rezão suficiente, Vossa Alteza mandou que viesse eu aqui e os trouxesse que queria saber cujos filhos eram tão fermosos meninos. Pelo que eu vim e os trago comigo como Vossa Alteza vê. Porém, ainda que lhe diga tudo o que deles sei, per derradeiro não é dizer-lhe cujos filhos são, mas saberá que este é o mais velho (mostrando-lhe o que ele trazia) e eu o achei ao longo da praia, nascido daquele dia, que não sei por que desaventura o lançou ali ũa donzela que o pôs e fugiu. Ele vinha envolto em ricas toalhas e ũa mantilha fina d’escarlata, que tudo lhe tive guardado e o trago aqui, que é este.

E logo mostrou a mantilha em que a donzela disse que fora envolto o pri-meiro filho que a rainha pariu. Mostrando o outro menino, disse:

– Daí a pouco mais de ano, aquela mulher, ou outra, trouxeram ao mesmo lugar est’outro menino envolto em est’outro fato que minha mulher traz.

E mostrou o mantéu branco, barrado de veludo azul, e as toalhas, tudo assi como a donzela disse que o levara com o segundo filho. E depois, mostrando a menina que a mulher do companheiro trazia, disse:

– E daí a outro ano, pouco mais, passando polo próprio lugar, achei aquela donzela com esta menina no regaço, e ela estava esmorecida. Lancei mão dela por saber quem lhe mandava fazer tanto mal; pôs-se-me em defensa, e eu, por acudir à menina, que a esta hora chorava muito, a deixei ir. E tomada a menina no colo a levei a minha casa, como costumava fazer aos outros, e a cada um a seu tempo fiz bautizar. Trouxe esta mulher para minha casa des o dia que achei o primeiro menino, a qual lhe deu leite a todos três, que àquele tempo estava parida de um mês. E ela traz ali o fato que trazia consigo a menina.

E logo desenvolveu e mostrou a mantilha de cetim verde, forrada em felpa branca e o cordão azul, e as toalhas, assi como a donzela disse que levava a filha que a rainha pariu. E depois de mostrado, tornando à sua prática, disse:

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– E de meu trabalho e do de seu marido desta mulher nos mantivemos todos, sempre a Deus graças, que nos fez contino tantas mercês que não nos faz míngua nada; antes temos já casa de nosso em que moramos, barca e redes com que pescamos.

Ouvido isto e visto o que a donzela dissera, todos os circunstantes à ũa voz diziam que todos aqueles três eram filhos d’el-rei, e eram os que a rainha pariu quando diziam que parira mônstruos. E confirmou-se mais, em que naturalmente se pareciam os machos com el-rei, e a filha era muito em extremo fermosa, que diziam parecia com sua mãe, e a este tempo seria já de quatro anos. E ainda que vinha no colo da ama a que chamava mãe, tanto que a puseram no chão, fugiu dela e se meteu antre as pernas d’ el-rei, dizendo:

– Ha, ha, agora si que está aqui meu pai, não quero ir convosco.Nestas palavras atentou bem el-rei, e abraçou-a e teve-a consigo. E as pes-

soas que estavam presentes e as donas todas de casa viram e conheceram todo o fato em que os ifantes foram envoltos, que tudo eram peças conhecidas do paço, por das senhoras irmãs da rainha. E a morte desastrada que elas tomaram per si acabou de confirmar ser verdade o que a donzela disse, e que aqueles todos três eram irmãos, filhos d’el-rei e da rainha. E el-rei assi o teve logo por certo. E virando-se para a donzela que ali estava chorando, crendo que lhe dariam cruel morte pelo delito que fizera, el-rei lhe disse:

– Erguei-vos e recolhei-vos com estas donas e senhoras, que em dia de tanta festa, como se deve fazer por achamento de tais filhos, não convém lembrar delitos passados. Eu vos perdoo tudo.

E ao velho pescador e à sua mulher, e à mulher pobre, ama dos ifantes, recolheu consigo no paço. Mandando chamar ao amo, fez a todos grandes mercês e os teve sempre em muito estado e honra.

Logo el-rei mandou por todo o reino em busca da rainha, e que se pubricas-sem as novas do achamento dos três filhos ifantes, e da treição das irmãs da rainha e sua morte. Foi ter esta nova ao mosteiro onde a rainha estava. E as religiosas fizeram, por esta festa, solene procissão per dentro de seu mosteiro com Te Deum Laudamus, todas ledas do contentamento que el-rei tinha.

Mas sobre todas mostrava o rosto da rainha tanta ledice em si que, ainda que o não pubricava pela boca, todas viam nela mais alegria que em nenhũa pes-soa. E foi tanta que a madre abadessa com outras donas e religiosas suspeitaram o que era. E apartando-a com grandes juramentos, inquiriram dela quem era, mais do que elas sabiam. E a rainha, vendo que já não era tempo de se encobrir, lhes manifestou a verdade que, sabida, a madre abadessa mandou pedir a el-rei por mercê que ao outro dia fosse ouvir missa àquela casa, que tinha que lhe dizer.

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E el-rei, crendo que lhe queria pedir esmola para a casa, por ser tempo de tanta festa como ele tinha, determinou dar-lha, e para isso e com essa intenção foi lá. E dita a missa, se recolheu dentro na casa, e as madres religiosas todas o saíram a receber em procissão. E a madre abadessa lhe apresentou a rainha pela mão, dizendo-lhe:

– Senhor, esta joia tínhamos cá conosco, com a qual sempre vivemos ledas e contentes. Que as mais vezes, o que o mundo tem por mau, isso é o que Deus tem por bom. Esta é a rainha, dai graças a Deus que vo-la deparou, que tal senho-ra não na merecíamos nós, por nossos pecados. Honre-a e estime-a Vossa Alteza como é rezão e como nós confiamos que o fará.

El-rei que a viu quisera-lhe fazer grande cortesia, pedindo-lhe perdão do passado. E ela se pôs em geolhos pedindo-lhe lhe fizesse mercê de esquecer o que já fora, que tudo o havia por bem passado, pois Deus Nosso Senhor o permitira, ao qual dava muitas graças, que teve por bem mostrar a verdade das ofensas que lhe fizeram, mostrando pesar-lhe da morte de suas irmãs.

El-rei mandou chamar toda a fidalguia da corte e a muitos senhores, que trouxessem suas mulheres, e, com todos eles e elas, com grande festa, levou a rainha dali para o paço, com tanto alvoroço de alegria e prazer como se então casaram de novo, e mais, se mais se pode dizer. A rainha viu seus filhos e filha, alegrou-se com eles e com os velhos e ama que os criaram: a todos fez mercê. Mandou muitas esmolas ao mosteiro donde estivera, e toda sua vida foi bem agradecida a Deus pelas mercês que lhe fez, em lhe guardar os filhos e torná-la a seu estado.

A donzela que levou os ifantes ao mar foi metida em um mosteiro, pedin-do-o ela, donde fez grande penitência e mui bõa vida.

As irmãs da rainha foram enterradas sem pompa por sua desesperação, e escrito sobre suas sepulturas sua morte e a causa dela, porque a todos fosse manifesto que os maus pagam perdendo vida, honra e alma; e os bons, ainda que algum tempo sejam perseguidos, é para mais merecimento seu. E per derradeiro o Senhor os livra, se é Seu serviço, e lhes dá saúde com que passem os trabalhos e perseguições, de que os tira com honra. E passada a vida em paz, os leva a Sua glória, donde sejamos nós todos juntos. Amém.

CONTO IX

Que o poderoso não seja tirano, porque querendo tudo não alcança o ho-nesto e perde o que tem, como se vê em ũa sentença sutil em caso semelhante.

Foi um homem muito rico, mercador famoso, cujo nome era conhecido quase em toda a cristandade. E teve um filho somente, o qual na meninice se criou

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com tanto mimo que, quando começou a entrar nos dez anos e dali para cima, já o pai não podia com ele de travesso e soberbo. E por querê-lo então sujeitar com doutrina e castigo, o moço lhe fugiu e se foi.

Que parece que isto nos avisa e diz que desne a meninice cumpre não dei-xar aos filhos com mimo à sua vontade, e que o pai que perdoa ou dissimula os erros dos filhos, esse os mata. Que lhe convém tê-los sujeitos à obediência com disciplina, se não puder ser d’outra136 maneira, para que não venham a ser revéis como este que, depois que se foi, andou fora da casa do pai muito tempo. E ainda que lhe escreveu e o pai lhe respondeu, e por suas cartas lhe rogava que tornasse, não quis tornar. E passando lá muito trabalho, se passaram mais de 25 anos sem vir nem mandar seis cartas, de maneira que alguns o tinham por morto.

Neste tempo o mercador veo a grande crescimento de fazenda, quintãs, casas e outras herdades. E chegado à velhice, no último da vida, fez seu solene testamento per púbrico tabalião. E depois de ordenar sua alma e mandar fazer seu enterramento e os legados que lhe pareceu com as satisfações e cousas necessá-rias, disse:

– Deixo por meu universal herdeiro de toda minha fazenda a Pedro, mor-domo de minha casa, veador e caixeiro do meu dinheiro, o qual quero que cumpra este meu testamento e haja livremente todos meus bens, móvel e de raiz, dinheiro, joias, escravos, dívidas que me deverem, e toda outra fazenda de qualquer sorte e condição que seja, donde quer que for havida e me pertencer.

E de tudo o que tinha fez inventairo muito copioso e bem declarado, e no cabo disto disse:

– Porém digo que eu tenho um filho per nome João, o qual há muitos anos que se foi desta terra contra minha vontade, e não sei per certeza se é vivo ou morto. Se este meu filho for vivo e parecer, como eu desejo e Deus o mande, quero que Pedro, a quem ora deixo por meu testamenteiro e universal herdeiro desta minha fazenda e de todo o mais que tiver rendido e melhorado, lhe dê ao dito João, meu filho, o que ele Pedro quiser, sem ser constrangido a outra cousa, e a demasia lhe fique.

E desta maneira houve seu testamento por acabado e revogou outros que antes tivesse feitos. E mandou que este se cumprisse, declarando que o que o não cumprir e em algũa cousa for contra seu testamento o desobedece e, por desobe-diente, o deserda de toda sua fazenda. E desta enfermidade morreu.

E por virtude do testamento, Pedro tomou a posse de toda a fazenda, ar-recadou dívidas, reteve em si e por seu o dinheiro que ele como caixeiro de casa tinha e tudo o mais, e foi o granjeando e beneficiando como cousa própria que era

136 No original, na forma douta, emendada para d’outra, de acordo com o sentido do texto.

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e em algũa parte melhorando, refazendo e acrescentando, como quem fazia no que verdadeiramente era seu, e por tal e de bom título o tinha.

E como este mercador defunto foi tão nomeado que em todas as partes era conhecido, soube-se sua morte na terra donde estava João, seu filho. O qual, ou-vindo a morte de seu pai e a grossíssima fazenda que deixou, partiu donde estava e veo a sua casa, e entrou por ela como por casa própria, perguntando quem tinha aquela casa e fazenda. Foi-lhe dito quem e por que título. E ele disse quem era, e foi conhecido por velhos que foram criados de seu pai, e pelo próprio Pedro, que o recebeu com muito gasalhado e honra. E logo lhe deu e fez dar vestidos, criados, cavalgadura e tal gasalhado, como pertencia a filho de seu senhor, que tanto bem lhe fizera.

Porém, dali a oito ou quinze dias, depois que o mancebo se informou de tudo o que ficara de seu pai e onde estava, apartando a Pedro, lhe disse:

– Eu vos tenho em mercê o cuidado que tivestes de granjear e aproveitar esta fazenda, desne que morreu meu pai até’gora. E espero em Deus que sempre serei neste conhecimento, pagando-vo-lo. E assi o vereis por obras que verdadei-ramente sempre vos terei por pai, e tereis em mi filho para o que vos cumprir. E contudo agora é necessário que me deis a entrega desta fazenda, e eu vos darei a quitação que cumprir e satisfação com que fiqueis contente por vosso bom cui-dado e trabalho.

Pedro, que o ouviu e entendeu bem isto, lhe respondeu:– Senhor, esta fazenda, ainda que ficou de vosso pai, é toda minha, e não

tendes nela mais que dar-vos eu o que eu quiser. E se vos não contentardes con-forme à letra do testamento, perdeis a herança de todo. Por isso não peçais a fa-zenda, que será não terdes nada dela. Vede o testamento de vosso pai, que ele vos desenganará, que vos não devo mais que dar-vos o que eu quiser.

E mostrou-lhe a verba do testamento que o dizia assi à letra, como já decla-ramos. E o mancebo lhe pedia que fizesse conta que eram irmãos e que partissem pelo meo, o qual Pedro não quis. Visto isto, disse o mancebo:

– Ora, já que sois obrigado a dar-me algũa cousa, pois diz que me dareis o que vós quiserdes, pergunto: que é o que vós me quereis dar, pois meu pai o deixou em vosso alvedrio?

Respondeu Pedro que lhe daria como cinco mil cruzados, valendo a fazen-da mais de cem mil. E o mancebo esteve pelos aceitar, parecendo-lhe que o não podia obrigar a mais do que ele quisesse.

A este tempo um nobre homem que tinha desprazer da tirania do mordomo Pedro, vendo que não queria partir com o filho de seu senhor a fazenda que lhe ficara de seu pai, disse ao mancebo:

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– Casai com ũa minha filha, e eu vos darei dez mil cruzados, que é o dobro do que esse vos dá. E então, se não quiser por bem, em paz, dar-vos o que seja rezão, será por justiça o que el-rei determinar com seus desembargadores.

Fez-se o casamento, rogaram a Pedro que desse o que fosse honesto, e Pedro nunca quis vir em nenhum meo arrezoado, pelo qual João o demandou e ambos vieram a juízo. E ambos houveram o testamento por bom e disseram que era verdadeiro, e que seu pai, de João, o fizera em seu inteiro juízo. Porém dizia João por seu procurador que seu pai o não podia deserdar sendo vivo, nem nunca tivera essa tenção, e que a fazenda era sua de direito. E o pai não tinha poder para dispor dela, depois de sua morte; e se dispôs e a mandou ter a outrem, a manda não valia; e se valia, era para que lha tivessem em guarda até ele parecer. E que o testamento era bom e valia, que o nomeava por filho, como ele o era, e não con-sentia ficar deserdado, declarando que lhe dessem etc.

Pedro dizia:– Já teu pai presumia que eras vivo, e para vivo mandou que te desse o que

eu quisesse. E assi não sou obrigado a mais. Quero-te dar cinco mil cruzados, ou peças desta fazenda que os valham, e com isto sê pago.

Sobre o caso houve libelo, répricas e trépicas, e o mais que em direito se costuma até rezoado em final. Que indo o feito concluso, como o caso era de tão grossa fazenda, quis o rei da terra ser presente na determinação da sentença, que parecia a muitos que estava o ponto de direito da causa em se o velho podia dar aquela fazenda ou não; e se a podia dar, Pedro a tinha bem; e se a não podia dar, que era justo a tornasse. Outros diziam: “Cumpra-se a vontade do defunto e guar-de-se o testamento à letra”. E assi entre os mesmos julgadores havia diferenças.

Porém um velho se levantou em pé e disse a el-rei:– Senhor, eu creo que, pola experiência dos anos que há que sou julgador,

entendo bem esta causa. Se mandardes que seja eu só o juiz dela, seja Vossa Al-teza presente, que confio em Deus darei tal sentença que todos os que a ouvirem a confirmem.

El-rei folgou disso e, havendo respeito a sua prudência e letras, o fez juiz. Este desembargador mandou logo chamar as partes e perguntou a cada um por si:

– O testamento é bom? Quereis que se cumpra, ou tendes a ele algũa dúvida?E ambos à ũa disseram:– O testamento é bom e deve-se cumprir quanto for direito.E o juiz, ouvidos ambos, que eram deste acordo e o assinaram, fez romper

todo o mais do feito, dizendo:– Pois assi é, o testamento basta para se julgar a causa. E vós, Pedro, que

tendes esta fazenda, aqui, diante d’el-rei, nosso senhor, fazei inventairo dela. Da-remos a cada um o que lhe pertencer, e será desta maneira.

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E abriu um livro branco que o velho juiz trazia na mão, que tinha nas ca-beceiras das folhas escrito, em ũa banda, quer e, da outra, dá. E mostrando-lho, lhe disse:

– Em este livro escrevei tudo o que tendes desta fazenda, sem esconder um real, so pena que percais o que esconderdes. E ninguém vos obriga que deis, nem que queirais, senão o que for vossa vontade. Desta banda, na folha que diz dá, escrevei o que lhe dais; e dest’outra donde diz quer, escrevei o que vós quiserdes, tendo entendido que na vossa mão está a sentença.

Pedro, visto isto, pela ordem sobredita, escreveu nas folhas do livro toda a fazenda desta maneira: ũas casas que rendem oito mil réis d’aluguer, em tal rua, dá; e ũa quintã que rende trinta moios de trigo, vinte de cevada, quatro tonéis d’azeite, quinze pipas de vinho, esta quer.

E desta maneira fez o inventairo, escrevendo da banda do quer quase tudo, e da banda do dá, quase nada, como se dixéssemos: dá os farelos, e quer o pó e o rolão da farinha. E deste modo veo a valer o que estava escrito no dá os cinco mil cruzados que ele queria dar ou menos. E na parte do quer, os noventa e cinco mil cruzados, de cento em que comparamos que seria tudo. Depois de escrito disse o juiz:

– Dizei vós agora como fazeis isto, que por vosso dito se há de dar a sen-tença, conforme ao testamento que tenho na mão.

Pedro respondeu:– Senhor, isto que está no dá lhe dou, e o que está no quer, isso quero.E o juiz lho fez escrever e assinar. E assinado disse a el-rei:– Ora, senhor, veja Vossa Alteza o testamento que diz: ‘Dará Pedro a João

o que ele Pedro quiser’. Portanto, vós, Pedro, dai a João isto que vós quereis, e fique-vos para vós o que lhe dáveis, porque a tenção do pai nunca foi deserdar seu filho, mas por sustentar a fazenda a fiou de vós, crendo que ao menos fizéreis dele irmão, partindo igualmente, o que vós não fizestes. E para se cumprir o tes-tamento, é necessário dar-lhe o que vós quiserdes. Quisestes a maior parte: essa julgo que lhe deis; e fique-vos o que lhe dáveis.

El-rei e todos os que estavam presentes houveram o caso por bem julgado e aprovaram a sentença, e assi se cumpriu.

Pelo qual fica entendido que ninguém folgue de querer para si seu e alheo, senão boamente haver o que seja arrezoado, não desfraldando ao próximo em tudo por acrescentar no seu. Que saibam certo todos os que o fizerem assi que perderão com dor o que têm, e não alcançarão o que querem do alheo.

E este mordomo, que de tirano não quis partir irmãmente com o filho de seu senhor, veo a contentar-se, em que lhe pês, com a décima parte do que pudera haver, e fora-lhe agradecido o que dava.

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Por este exemplo sejamos todos caritativos com nossos próximos, partindo com eles como cada um melhor puder, para que assi o use Deus conosco.

CONTO X137

Que nenhum trate treição contra rei, ainda que seja d’outro reino, porque o Senhor Deus comumente defende aos reis e castiga os tredores, como se vê neste conto.

Partido o bom homem português, que foi cativo da corte d’el-rei de África, como ouvistes na primeira parte destes contos e exemplos, com muita riqueza que trouxe consigo, ficou el-rei tão saudoso de sua conversação e boa prática que com ninguém a queria ter, porque outra lhe não contentava. E assi, achando-se quase sempre só, não sabia viver sem ele e desejava (se fora possível) tê-lo sempre consigo. E certo, se el-rei cuidara ficar tão saudoso, não lhe dera licença para se estar em sua terra quanto ele quisesse, dando-lhe (como deu) liberdade; somente lhe dera tempo limitado para tornar. Mas como as cousas não são conhecidas por boas enquanto as temos presentes, apartadas de nós, as desejamos.

Este rei, não cuidando desejar este bom homem, por isso e polo amor que lhe tinha, em galardão do benefício que dele recebeu, o deixou ir. E, vendo-se sem ele, com saudade, veo adoecer de malenconia, que os mestres, fazendo-lhe os remédios necessários e vendo que não lhe aproveitavam, desesperavam de sua saúde.

Porém, entre outras cousas que para o caso lhe aplicavam, foi ũa: persuadi--lo que se desenfadasse e desse a prazeres, aceitando todo gênero de passatempo, donde e como o achasse. E não se lhe oferecendo, que ele por si o buscasse, indo muitas vezes à caça com monteiros, cães e buzinas, e outros exercícios que des-pertam o ânimo e o apartam de profundas imaginações; movendo-se ele a alegres práticas, suaves músicas, e dando-se a danças e tangeres ledos, tudo cousa de que ele naquele tempo era imigo. Porque sempre queria estar só, janelas cerradas, dormindo; e que não dormisse, queria que o deixassem assi.

Porém, à importunação dos seus, ia muitas vezes fora, algũas em um es-quife polo mar, derredor da cidade, que quase toda é cercada dele. E outras vezes ia por terra à caça de monte, que tem perto da cidade um grande bosque, donde os reis passados fizeram ũa rica casa de prazer. E era ali ũa grande coutada em que havia muita montaria de veados, porcos, e também se descobria algum usso, que el-rei levava muito gosto de matar. Porque nisso mostrava o esforçado ânimo de seu coração e as muitas forças de sua pessoa, acompanhadas de ũa destreza e sagacidade em todo gênero de caça, que ninguém lhe fazia ventage.

137 Este é o terceiro dos contos que foram censurados pelo Tribunal do Santo Ofício.

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E ainda que entrou neste exercício rogado e quase contra sua vontade, veo a tomar nisto tanto gosto, que todos os mais dos dias ia à caça. E para isto tinha cães de muito preço, e aves, e todas as mais cousas necessárias. Tão querençoso andava nisto que todos os outros gostos deixava e usava da caça, sem o poderem tirar ũa hora do dia do campo, a tanto chegou o extremo de sua afeição.

Saindo este rei um dia a monte com ũa armada que de muito atrás estava aparelhada, com todos seus monteiros, cães e petrechos necessários, antes de se começar, estando ele já a cavalo e ordenadas pelos monteiros suas armadas e es-tâncias, em um instante, sem ser visto de donde saíra, pareceu aos pés do cavalo d’el-rei um grande e muito fermoso veado que, ao parecer dos que ali estavam, não viram nunca outro maior, nem tão fermoso. E como el-rei estava o mais apa-relhado e prestes de todos, antes que outro algum, arremeteu com a lança para o veado, que lhe pareceu o tinha tão perto que de aquele golpe o matara. Porém, como o veado fosse muito ligeiro, levemente se desviou do golpe da lança que quase lhe ia chegando, e lançou a correr com tal manha que, sem el-rei o poder alcançar, lhe ia sempre tão perto que não se alongava dele um tiro de lança; e sempre parecia a el-rei alcançá-lo prestes e matá-lo logo.

Porém este logo, se não tivera outra ajuda senão sua pessoa, havia de ser nunca, porque o veado era artificial e ia-se de maneira que el-rei não perdesse a esperança dele e o deixasse de seguir, nem em nenhum tempo o pudesse alcançar com a lança. E assi ia guiando a el-rei pelo mais fragoso do monte, fazendo-lho atravessar em redondo e caminhando para a ribeira do mar, da outra banda do levante, onde ele ia bater em uns grandes rochedos que ali estavam. Ao qual por entre duas serras ia em tempo de inverno um pequeno regato de água das chuvas, que por ali se iam meter no mar.

Para aquela parte caminhou o fermoso veado. E quando houveram vista do mar, já fora do bosque, vinha zombando do cansado cavalo, que às vezes o deixava chegar, para lhe dar gosto de o seguir, e, chegando-lhe perto, dava gran-des corridas por se segurar e fugir. Do que el-rei ia muito agastado, temendo que, ainda que o matasse, já não lhe ficasse gosto, vendo-se perdido dos seus, e sua pessoa aventurada no risco daquele fragoso bosque e duvidosa tornada à cidade, porque ele não sabia por que parte lhe estivesse melhor.

E estando posto nesta imaginação, já que se viam quase as ourelas do mar, saiu ao través de como ele ia um mui poderoso e grande leão que, com grandíssima ferocidade, se meteu entre o cavalo d’el-rei e o veado. Deixando atrás o cavalo espantado de sua sobressaltada vista, seguiu o veado com tanta velocidade e fúria que parecia o apressado raio do céu, quando, furioso, desce às entranhas da terra.

A este tempo o veado não estava devagar, que, sentindo o cruel imigo que o seguia, não fugia ao modo d’escárnio que d’el-rei vinha fazendo; mas com outro

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passo mais diferente em ligeireza, que fazia tanta ventagem ao que d’antes leva-va, quanta faz a seta que, soltada da besta, vai sua via ao passo do que a tirou, se fosse após ela. E assi, a tal correr, fugia o veado.

Porém tinha tal seguidor que, antes de longo espaço, quase a tiro de besta, da ourela do mar o alcançou. E ferindo-o com as unhas, lhe deu grandes e mortais feridas, de que o derribou e acabara de matar, se a este tempo não estiveram ali como oitenta homens com chuças, bestas e espingardas que arremeteram ao leão. O qual, tanto que os viu, deixando o veado mortalmente ferido, com a velocidade com que veo, com outra tal se tornou a ir per outro caminho. E, sem ser ofendido, se meteu no bosque.

El-rei que vinha após o veado, vendo o leão que o seguia, perdeu a espe-rança de o haver. Mas como era esforçado, ainda que se viu tão longe dos seus e ao leão tão perto do veado, quis ver o fim daquela aventura. E viu como aqueles homens tolheram ao leão que não acabasse de matar ao veado. Pareceu-lhe que seria gente da sua terra e que o faziam por gozar da carne. Folgou de os achar, porque por sua indústria iria mais prestes a povoado.

Mas ele o tinha mal remediado, se Deus o não provera d’outra maneira. Que tanto que aqueles homens viram el-rei, todos o cercaram em roda e, com injuriosas palavras, lhe diziam mil doestos, chamando-lhe rei mal-aventurado, que por sua causa se perdia o melhor e mais sábio homem que havia no mundo. Porém que ele o pagaria, dando-lhe a mais cruel e desonrada morte que se pudes-se achar, e que lha não davam logo, porque fosse com tormentos não cuidados, e pouco a pouco, porque a sentisse mais, e com mor pena, por lha darem em parte que visse seus imigos. E que levavam disso gosto, pelo qual levasse maior dor.

E todos em um instante, antes que ele pudesse pôr-se em defensa (que lhe não houvera de prestar), o tomaram e ataram-lhe as mãos atrás. E tirando-o da sela, o puseram nas ancas do cavalo, atado ao arção traseiro e os pés atados por baixo da barriga do cavalo, porque não se deixasse cair dele. E tomaram o veado que ainda estava vivo, posto que muito ferido, e puseram-no atravessado na sela, liado com toucas brancas que para isto traziam, por não o magoar com cordas. E pondo um cabresto de corda ao cavalo, lhe tiraram o freo, porque pudesse comer algum bocado d’erva, e o ataram ao pé de um árvore queimado que ali estava. E deixando-o assi bem carregado, se foram à praia que estaria um tiro d’espingarda pouco mais. E de entre aqueles rochedos descobriram ũa boa galé que ali tinham coberta de rama, por não ser vista. E arvorado o masto, lhe puseram a verga e vela e outros aparelhos com tanta presteza que parecia que os diabos do inferno o anda-vam fazendo: postos os remos, e eles nos bancos com outros que dentro estavam.

Isto acabado, oito ou nove homens, que parecia gente mais nobre, manda-ram lançar fora ũa prancha pola qual queriam meter o cavalo assi como estava,

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que diziam que em vir assi lhes ia muito. E estes saíram pola prancha, chorosos, dizendo contra el-rei injuriosas ameaças e feas palavras, assi e piores que os ou-tros lhe tinham dito. O que el-rei quase não entendia, porque estava pasmado, vendo-se tratar de tal sorte dentro em seu reino, tão perto da cidade donde tinha sua corte, mando e cavaleria, e sem saber por quem, nem por que causa.

Aqui devem tomar exemplo príncipes e grandes senhores que são afeiçoa-dos à caça, que o não sejam tão excessivamente que por ela se percam, alongan-do-se dos seus. Que, ainda que seja em seu reino e em sua terra, pode haver maus tredores, imigos de Deus e do rei, como estes eram, que lhe armem algũa treição. E por isso é bom em todas as cousas da vida seguir um meo arrezoado e fugir dos extremos, não se inclinar tanto à caça, que por ela deixem os negócios da repúbli-ca e arrisquem a pessoa. Nem a leixem por isso de todo, que seu exercício habilita os homens e os faz acomodados ao uso da guerra, que sempre lhes é bom sabê-lo para seu tempo. E a caça é exercício de nobres e que se permite a tempos, e mo-derando-se, como é rezão. Notem aqui a aflição em que estaria este rei, vendo-se em tal estado como ouvistes, e a seus imigos que vinham para o levar à galé com as ameaças e injúrias que dissemos.

Porém a este tempo, à desora, sem ser visto por onde, veo ao longo d’el-rei um paje a cavalo em cima de um faquíneo ruço rodado e, lançando mão a um terçado que trazia, cortou o cabresto ao cavalo em que el-rei estava. E dando-lhe de chão nos focinhos, o fez virar em redondo, e depois deu-lhe outra vez nas ancas, de que o cavalo, espantado, lançou a correr o melhor que pôde, ainda que vagarosamente, polo muito que aquele dia tinha caminhado. E saindo do pequeno campo, se meteu pelo monte por donde viera.

E na verdade ele ia tão carregado e com tanta fadiga que, se alguém fora correndo após ele, o pudera tomar. Porém, como a gente que vinha para o levar estava fora de imaginar que se lhe podia ir por pés, e o pajem fez o que contamos com muita presteza, antes que caíssem na conta de ver o que era, estava já o ca-valo posto a caminho. E eles, vendo-se todos a pé e temendo que, se o seguissem e não no alcançassem, perdiam a galé e arriscavam suas vidas, quiseram-se antes segurar e ter sua gente e a galé em que se salvassem (pois não podiam pôr em efeito seu desejo) que aventurar sua pessoa ao que não tinham certeza de haver. E assi, com muita tristeza e dor, se tornaram a embarcar e, picando o remo, se foram, donde não conta esta história mais deles.

Tornando ao conto, el-rei ia, como ouvistes, preso e atado ao cavalo que o levava para onde o pajem do faquíneo o guiava, sem lhe falar palavra. E assi andariam ũa boa légua de terra por aquela charneca, até um lugar em que se fazia ũa pequena praça em a qual estava armada ũa rica tenda de donde saiu um velho com a barba muito branca, com um roupão de damasco leonado, forrado de mar-

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tas, com guarnição e botões de pérola e aljôfar, lustrosamente obrado, que parecia digno de um grão-senhor. E este velho, tanto que viu a el-rei, se foi para ele e, com muita diligência, o desatou e lhe disse:

– Senhor, quem vos atou da maneira que estais não vos amava como eu.E descendo-o manso do cavalo, porque vinha moído do caminho, o fez

entrar na tenda e lhe tirou algũa das roupas que trazia, que do suor e pó vinham nojentas, e o cobriu com o roupão que ele trazia. E o fez assentar e comer algũas aves e conservas que para isso tinha prestes. E fez dar de comer ao cavalo, que o havia muito mister, que era já sol posto e todo aquele dia havia trabalhado muito e comido quase nada. E enquanto isto se fez, o velho disse a el-rei:

– Senhor, conhecei-me, que eu sou o vosso cativo cristão português que, desejoso de vos pagar a saudade que tínheis de me ver e com vontade de vos servir as mercês que me tendes feitas, me pus a tanto trabalho e risco como hoje passei.

El-rei, alevantando o rosto, o conheceu, que até então não sabia quem era, e o abraçou. Os olhos cheos de lágrimas, de prazer lhe disse:

– Bem cego estava eu pois a tal tempo não vos conheci, meu verdadeiro amigo, que, se eu tivera claro conhecimento, havia de entender que outro senão vós não me podia socorrer a tal tempo. Com que poderei eu pagar esta amizade? Certo que nem tenho, nem há na terra cousa com que se possa satisfazer. Bem dizem que o coração nunca se engana; e assi o meu me dizia que não podia ter vida quieta sem vos ver.

Não se pode dizer per palavras o muito contentamento que este rei recebeu em ver e conhecer este seu amigo, que desne logo se contou por livre de toda afronta, porque até então não sabia se o estava. E acabado de tomar a refeição necessária para o corpo, o fez o velho pôr a cavalo – e ele no faquíneo em que veo o pajem – e ambos se foram caminho da cidade. E ainda que era já noite e muito escura, havia por aquele bosque tantas tochas e andavam tantos homens em busca d’el-rei, fazendo grandes fogueiras (a que atinasse, se andava perdido como eles cuidavam), que parecia ser dia claro. E antes de muito acharam da sua gente, fi-dalgos e cavaleiros, que com muito prazer recebiam a el-rei. Mas ele fazia a todos que recebessem e honrassem ao velho, dizendo-lhes que ele o livrara da morte e que àquele devia mais que a seu pai. Que o pai ũa vez o gerara, e aquele já duas vezes lhe escusara a morte.

E indo com este gosto, o velho mandou que trouxessem a tenda que ficara armada, que era rica, e o veado que estava à porta dela. E avisou que o não ma-tassem, que ele morreria das feridas que tinha, e veriam ũa grande maravilha, o que tudo se fez.

Chegando ao paço, diante de todos os grandes da corte, disse o velho a el-rei:

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

– Senhor, bem vos lembra do lapidairo que vos vendia o anel com a pedra olho de gato e depois o cavalo que tanto mal vos queria fazer, ao qual, por justiça, mandastes matar. Este lapidairo tinha um irmão, grande sabedor, e tão astuto para o mal como ele, ou ainda mais. O qual soube da morte de seu irmão, em vossa corte, e teve nela sempre espias diabólicas, pelas quais sabia tudo o que nesta cidade passava, e em que e onde vos podia empecer, porque era grande mágico. E tanto que soube que começastes a ir à caça, ele por sua arte fez que lhe fôsseis mais afeiçoado do que era em vossa mão, porque por ali cuidou vossa perdição e sua vingança. E para isso saiu de Negriponte, que era donde tinha sua morada e a tivera seu irmão, e veo-se ao Pinhão de Belez. E, com cossairos salteadores que ali achou, armou aquela galé e meteu nela oitenta soldados daqueles, que eram todos ladrões que andavam ao salto, afora a gente do mar que trazia. E todos vi-nham com ele para sua guarda e vossa perdição. E trazia mais oito seus dividos e parentes, para que vissem a ordem que tinha em vos prender e o engano manhoso que convosco havia de usar, que lho não quis dizer lá, temendo seria descoberto. E porque não confiou que outrem faria aquilo tão perfeitamente como ele, trouxe consigo os aparelhos necessários e chegou esta noite passada àquele lugar onde vistes a galé que estava escondida. E fazendo-a cobrir de rama pelos homens que nela vinham, os mandou ficar de fora e que o esperassem ali à borda d’água, porque havia deles necessidade. E então descobriu a todos que hoje havíeis de sair à caça, e que ele vos havia de fazer seguir um veado o qual, fugindo, havia de vir ter donde eles estavam, encarregando-lhes muito que estivessem sobreaviso e defendessem o veado de quem quer que o seguisse. E que, tanto que vós chegás-seis, vos prendessem, avisando-os que vos não matassem e que olhassem muito pela vida do veado, que nele estava a dele mesmo. E que, para mais escárnio, vos metessem na galé a cavalo, atado os pés e as mãos, e que dessem de comer ao ca-valo, porque com ele e vossos vestidos, depois de vossa morte, esperava de fazer outro salto nesta cidade, em grande dano dos moradores dela. E saindo da galé, veo secretamente138 ao bosque, sem ser sentido de nenhum dos vossos. E podia-o muito bem fazer, porque sua ciência maldita para todo mal lhe ajudava, e com ela se pôde transformar em aquele veado. E o parece à vista dos que o não conhecem como eu. E todos dirão agora que é veado, e antes de muito se lhe acabará a vida com as feridas que tem, e todos verão claro que é homem, como eu ora vejo, que o conheço. E assi transformado vos pareceu diante quando queríeis começar a caça, por vos fazer arredar dos vossos e levar-vos seguindo a ele, para vos meter donde tinha sua gente e galé em que esperava levar-vos preso a sua terra. Donde não se pode imaginar a cruel morte que vos tinha aparelhada com diversos gêneros de tormentos, em vingança da morte de seu irmão, que por seus delitos mandastes 138 No original, com erro de impressão, na forma secreramente.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

matar. E para solenizar com mor festa esta vingança, tinha mandados chamar todos seus parentes e amigos, que viessem ter com ele d’hoje a trinta dias, que para então cuidava fazer-lhes esta festa com vossa morte. O qual tudo quis Deus que eu alcançasse saber, e foi servido que vos livrasse139 com Seu favor e ajuda, como espero (se O souberdes conhecer), com o mesmo favor, livrar-vos d’outra morte mais perigosa, se tomardes meu conselho. Tanto que eu soube a vinda deste mau homem, sem temor do grande trabalho e perigo, passei o mar, porque quisera estorvar-vos hoje irdes à caça e rogar-vos que fôsseis menos vezes, e com muito resguardo de vossa pessoa. Mas parece que não pude chegar ao tempo que desejava, porque o que o Senhor permite que seja os homens não podem estorvá--lo. E assi cheguei quando vistes o leão que se atravessou entre vós e o veado, e seguindo-o, o alcançou e feriu, que na verdade não era leão, mas eu mesmo com este roupão que tendes vestido que, ao parecer dos homens que me viam, a todos o pareci, até que me recolhi dentro na tenda donde me achastes. Porém, ainda que parecia leão aos outros, bem me conheceu o astucioso mágico e quisera fugir, mas não pôde, porque Nosso Senhor quis então cegar-lhe o entendimento que não soubesse como, nem para donde. E eu o alcancei e feri com duas facas que levava nas mãos, muito agudas e para isso aparelhadas, e o matara se o tempo me dera lugar. Mas como senti que os homens que o guardavam tinham bestas e espingardas com que poder tirar, ausentei-me, deixando-o tão ferido que antes de muito morrera, ainda que, se estivera na galé, houvera de sarar com mezinhas que para isso trazia. E porque eu soube bem o estado em que aquela gente vos havia de deixar quando fossem descobrir a galé, fiz vir aquele pajem no faquíneo que fez em vossa soltura o que vós, senhor, vistes. O qual é meu neto, filho de minha filha e de meu genro, com quem aqui vim a primeira vez. Vede-lo, aqui está, que o fiz vir ante vós para que vos sirvais dele.

E assi lhe mostrou o pajem que era muito fermoso, de boa fala e graça, que, desbarretado, se pôs ante el-rei em geolhos.

El-rei, maravilhado do que ouvira, considerava o trabalho que passou e o grande perigo em que esteve. E como se lhe azava a morte, e tão cruel, se aquele bom homem e seu neto não acudiram. E desejoso de lhe pagar parte desta boa obra, porque toda era impossível, fez erguer o pajem d’ante si e, pedindo ao avô que lho deixasse, porque o não quis fazer, lhe deu logo ali grandes joias de ouro e pérolas, e muito dinheiro amoedado, que o pajem com muita cortesia recebeu e lhe beijou a mão. E depois de lhe ter dado isto, que era um grande tesouro, tornou a rogar ao velho que levasse aquilo a sua filha e genro, e que lhe deixasse o neto, que ele o faria grande homem. O velho lhe respondeu:

139 No original, na forma livraste, emendada para livrasse, de acordo com o sentido do texto.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

– Senhor, quereis fazer bem para vós e salvar-vos de outro perigo maior e morte eterna? Tomai meu conselho, tornai-vos cristão, ter-me-eis a mi toda minha vida por escravo, e a meu neto, quanto for vosso serviço. E sobretudo tereis a Deus Nosso Senhor, que vos criou e remiu.

E dizendo-lhe mistérios de nossa santa fé católica, o persuadia que se tor-nasse cristão, convertendo-se a ela. Mas parece ser que não mereceu a Deus dar--Lhe conhecimento de si, e, endurecido, quis ficar na perversa seita que tinha.

Estando nestas práticas, ouviram na praça grandes gritos e vozes, como que eram de pessoa que padecia grave tormento. E eram tão espantosas que a gente da praça vinha (com tantas luminárias que parecia dia claro) a ver o que era, e seu muito rumor fazia maior espanto. Quis el-rei ver isto, e ele e os outros se pu-seram às janelas do paço que iam para aquela parte onde se ouvia a traquinada. E viram que o veado que ficou ferido, como dissemos, se vazou em sangue e ficou, à vista de todos, homem verdadeiramente como cada um dos outros. E este, ao arrancar da alma, era o que dava os temerosos e espantáveis gritos que ouviram.

E o que fazia caso de grande admiração era que sobre ele pareciam mul-tidão de corpos negros e feos que trabalhavam polo levar, antes que acabasse de expirar. E com esta espantosa vozeria, se fazia a grande e temerosa traquinada que ouviam. Ao qual disse o velho:

– Senhor, assi pagam todos os maus tredores que, sem conhecimento de suas culpas e sem arrependimento delas, morrem, não pedindo perdão a Deus Nosso Senhor. Mas, ofendendo a sua Divina Majestade e ao rei, morrem em seu delito.

E com isto se despediu dele. E tomando grandes e ricas peças que o rei lhe deu, se tornou a estas partes, trazendo o neto consigo. Donde sempre viveu bem e empregou seu saber e estudo em serviço de Deus e exalçamento da nossa santa fé católica, que ele em tudo seguiu como bom e verdadeiro cristão. E servindo a coroa destes reinos, bem e lealmente desejou servir aquele rei mouro, por ver se o podia chegar à nossa santa fé, a ele e a seu reino, para que houvessem a salvação de suas almas, como se verá na terceira parte desta história.140 E deste serviço e vontade tirou grandes tesouros que deixou a seus herdeiros.

E o mau tredor acabou com dor e grande pena, e cremos iria per derradeiro ao inferno. E este virtuoso e bom que, andando em caminhos de verdade, serviu de-senganadamente, houve neste mundo grandes bens e honra. E no outro esperamos que Deus lhe daria a glória, que nos conceda a todos por Sua misericórdia. Amém.

140 A terceira parte desta história lamentavelmente foi suprimida pela censura e não conheceu publicação.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

CONTO XI

Que diz que, conformes com a vontade de Deus Nosso Senhor, Lhe demos louvores e graças por tudo o que faz. Trata de um dito do Marquês de Pliego,141 em tempo d’el-rei Dom Fernando, Quinto de Castela.

Tendo o católico Rei Dom Fernando, o Quinto de Castela, sua corte na cidade de Córdova, que é quase fronteira do Reino de Granada, que ele ganhou142 aos mouros, um dia lhe vieram dizer que em Montilha (que é ũa vila do Marquês de Pliego, e perto da cidade)143 estavam muitos homiziados malfeitores e que, como era terra de senhorio e as justiças de Sua Alteza não iam lá, estavam ali desavergonhadamente. E não contentes com isto, saindo do lugar, iam fazer ou-tros delitos e grandes malefícios e se tornavam a recolher donde tinham ũa boa e grande fortaleza que os defendia e segurava. Por ser como era do Marquês (o qual por ser tanto nas abas de Sua Alteza era muito pior), que Sua Alteza o provesse como fosse justiça.

El-rei, tomada informação do caso, mandou um corregedor com cinquenta homens que fossem a Montilha. E aos que achassem que haviam feito algum delito, depois d’estarem ali homiziados, castigasse como fosse justiça; não cas-tigando em nenhum o primeiro delito por que ali se fora, que queria que valesse aquele couto por honra do Marquês.

Partindo o corregedor de Córdova, foram avisados os homiziados: puse-ram-se em armas, defenderam-lhe a entrada na fortaleza, matando a ele e a quinze dos que levava. O qual logo foi dito a el-rei, que mostrou por isso muita manen-coria. E lançando mão às barbas, dizem que disse jurando:

– Por estas e por vida da rainha, que o que estes me fizeram me há de pagar o Marquês, que com seu favor se estreveram a tanto.

E estando um pedaço suspenso, imaginando o que faria no caso, deu um brado, chamando por um capitão de quinhentos homens que estava na sala, e disse-lhe:

– I com vossa gente sobre Montilha e levai mais duzentos gastadores ca-vouqueiros. Tomai o lugar e derrubai a fortaleza até os aliceces.

E com isto parece que ficou el-rei desabafado.A gente que estava ao derredor avisaram ao Marquês da primeira ameaça,

representando-lhe o muito agastamento d’el-rei e seu nojo. E depois que viram mandar derrubar a fortaleza, também lho foram dizer. Ao qual o Marquês, mos-

141 Membro de uma família da nobreza castelhana, também conhecida por Priego, cujo marquesa-do foi outorgado por Fernando, o Católico, em 1501.

142 No original, na forma ganho, emendada para ganhou, de acordo com o sentido do texto.143 Cidade espanhola da província de Córdova.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

trando bom rosto, os olhos postos no céu, as mãos ambas juntas e o coração com Deus Nosso Senhor, disse:

– Bento e louvado seja Deus para todo sempre, que me deu paredes em que desse a ira d’el-rei.

E acabadas de dar estas graças com devação, foi ao paço e, posto em geo-lhos ante el-rei, lhe beijou a mão, dizendo que o fazia pola mercê que recebia em lhe mandar derrubar aquela fortaleza, pois dela era desservido, que ele não queria por seu senão o que sempre servisse Sua Real Alteza.

El-rei, vista esta humildade e que lhe beijava a mão sem lhe fazer mercê, lhe disse:

– Ora, por isso mando que não derrubem mais do que já for derrubado.E foram homens a isso e cessou o derrubar por então.Assi, a exemplo deste Marquês, todos os que este ano de 1569, nesta peste,

perdemos mulheres, filhos e fazenda nos esforcemos e não nos entristeçamos tanto que caiamos em caso de desesperação, sem comer e sem paciência, dando ocasião a nossa morte ou desejando-a, que seria lançar a corda após o caldeirão. Mas todos, com bom ânimo, conformando-nos com a vontade de Deus, que per-mitiu perdêssemos o que perdemos, digamos como disse este Marquês: “Louva-do e exalçado seja sempre o Senhor Deus, que nos deu paredes em que desse a fúria desta tormenta”.

Digamos todos, não agravando-nos da perda que perdemos, mas dando--Lhe graças: “Senhor, por nossos pecados estáveis irado de nós e contentastes--vos de nos levar os filhos, filhas, pais, mães, irmãos e irmãs, maridos e mulheres. Eles passaram desta vida presente, e nós que não éramos melhores ficamos. Ben-to e louvado seja o vosso Santo Nome para sempre, que nos destes estas paredes a que nos arrimávamos, em que desse esta fúria da peste tão grande e tão temerosa, sem nos tocar nas vidas da própria pessoa de cada um de nós”.

E o Senhor, vendo nossa humildade e firmeza de devação, emenda na vida, arrependimento da culpa, haverá misericórdia conosco, se for Seu santo serviço: perdoará as culpas de nossos pecados, mandará cessar (como fez el-rei no derri-bar da fortaleza) cessando a peste, que por castigo de nossas maldades nos veo. E dando-nos saúde neste mundo, nos dará graça com que façamos obras meritórias, para que, depois de passar da presente vida, alcancemos a glória, para que nos criou. Amém.

Louvores a Deus.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013 3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

Terceira parte144

CONTO I

Que todos sejamos sujeitos à razão, e por alteza d’estado não ensoberbe-çamos, nem por baixeza desesperemos. Trata de um príncipe que, por soberbo, um seu vassalo pôs as mãos nele. E o sucesso do caso é notável.

Acabando de repousar a sesta um rei viúvo, já que saía fora da câmara pera a guarda-roupa, muitos fidalgos mancebos lhe apresentaram um que traziam antre si, preso. E postos ante ele lhe dixeram:

– Senhor, estando agora na sala grande jogando a pela145 o príncipe com este fidalgo e outros, sobre ũa chaça vieram a ter diferença no jogo. E tanta que o príncipe, manencório contra ele, o afrontou e lhe disse palavras muito feas e malditas, que este fidalgo, por serem de quem eram, as devera sofrer, porém não quis. Mas, perdida a cortesia e a obediência que devia e era razão ter sempre a seu príncipe, alevantou a mão e lhe deu tão grande punhada no rosto, que lhe ensanguentou os narizes e a boca, cousa que a todos nos pareceu tão mal que o queríamos matar por isso. E o fizéramos, se não fora pelo duque, seu avô, que com grandes brados se pôs no meio, dizendo que, pois Vossa Alteza estava na ter-ra, não quiséssemos nós tirar-lhe seu mando, mas que lho apresentássemos preso. E proposta a causa, contando o caso, se faria em ele o que Vossa Alteza mandasse que seria o que fosse justiça. Pareceu-nos bem e por isso não enxecutamos a ira, tendo por certo que Vossa Alteza, olhando pola honra do príncipe, nos faria justi-ça, que lhe pedimos da sua parte e da nossa.

El-rei, que os ouviu, entendeu bem o caso e dixe:– E o príncipe a esse tempo não tinha consigo nenhũas armas? Ou como

não lhe tirou a vida?Eles responderam:– Armas tinha, que sempre traz adaga na cinta. Porém, tanto que se viu en-

sanguentado, se pôs a um canto da sala a chorar, cousa que a todos lhe foi muito estranhado. E imaginamos que por ventura o fez porque na diferença que tive-ram não tinha o príncipe razão e, sem ela, foi demasiadamente soberbo. Fazendo mostras que queria dar no fidalgo, lhe disse descorteses e muito feas palavras que ainda então não lhas merecia. E esta seria a causa por que o não matou. Porém já agora pelo que fez merece grandíssimo castigo e morte cruel.

144 O texto-base desta Terceira Parte é a edição de 1595, publicada em Lisboa por Simão Lopez.145 Bola de couro cheia de lã, elástica, com que se jogava o jogo de mesmo nome.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013 3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

El-rei, deixando passar um pequeno espaço em o qual deu lugar a apartar de si a grande ira que com a súpita manencoria tinha concebida contra o fidalgo e sossegado no esprito, disse:

– Afirmo-vos em verdade que mais quisera que me dixéreis que era o prín-cipe morto, ainda que não tenho outro filho, que saber que sofreu essa injúria tamanha sem vingar-se dela. Porém, pois me afirmais que ele tinha a culpa, aco-modarei a ira que ora tenho. Porque, ainda que é verdade que em todo o tempo todos devem obediência e serviço ao príncipe, e não somente são obrigados a não afrontá-lo mas a defendê-lo de quem o quiser afrontar, e convém aos leais vassalos sofrer as palavras do príncipe, sejam quais forem; todavia digo que o príncipe deve atentar por si sempre e não dar ocasião que, com razão ou sem ela, alguém se atreva a falar-lhe desonesto, quanto mais a pôr a mão nele. E dado caso que esta obrigação seja do príncipe, nem por isso neste caso se escusa grave castigo pelo temerário atrevimento deste fidalgo. Porque, se imaginar no coração contra o rei é delito grave, dino de grande castigo, e muito grave dizer-lhe algũa palavra desonesta; gravíssimo é por certo o pôr as mãos nele. Porque o menor destes delitos é contra Legem Majestatis do rei, e tanto é a pessoa dina de maior pena quanto de mais claro sangue e bom juízo. Pelo qual eu detremino castigar isto a todo rigor como per leis deste reino parecer justo. E não quero detreminá-lo logo com tanta paixão como tenho, mas quero que seja ouvido este fidalgo ante os meus desembargadores, guardando-lhe também a ele seu direito e justiça, que creo não terá nenhũa desculpa que o escuse de morte, havendo feito tão grande delito como fez.

E ainda que o mancebo a este tempo quisera responder, el-rei o não quis ouvir, mas mandou-o ter preso a recado, com grande guarda. Porém que, se qui-sesse ir a alguma parte na cidade, que o levassem com muito resguardo e segu-rança. E que esta prisão fosse por quinze dias dentro dos quais se provesse do que lhe cumprisse, e no cabo se apresentasse ante ele e seus desembargadores na Rolação.146 E que logo se apartasse de sua presença até seu tempo, o qual ele fez. E se foi com os que o tomaram a seu cargo por mandado d’el-rei, e com eles se saiu do paço e andava na cidade como direi ao diante.

Muitos fidalgos, dos que se acharam presentes, acompanharam a este man-cebo e lhe aconselhavam que se fosse – porque o podia fazer – não somente da cidade, mas do reino, até a raia, na fronteira dos imigos, onde, trabalhando em armas, na guerra, podia fazer cousa com que el-rei lhe perdoasse o mal que fizera. O que ele não aceitou, nem quis nunca quebrar a prisão que lhe deram. Mas dizia

146 Antigo Tribunal de Justiça, também chamado de Relação; Casa da Câmara onde o rei se reunia com os desembargadores para fazer justiça.

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a todos que com a muita justiça que tinha no principal confiava em Deus o livraria do acessório.

E assi se lhe passaram os quatorze dias do prazo em os quais, ainda que lhe buscou conselho de letrados e fidalgos para sua salvação, não achou quem lhe aconselhasse cousa que o satisfizesse nem desculpasse do delito. Porque a todos parecia caso de morte e rogavam-lhe que se ausentasse, porque tinha a prisão tão larga que o podia fazer. Em especial o duque, seu avô, que não tinha outro her-deiro varão, senão este neto.

Porém o mancebo dizia que, se o mandassem matar porque acudiu por sua honra e não consentiu que contra razão e justiça o afrontassem, então, matando-o, o honravam. E mui inteiro nesta tenção saía alguns dias de sua pousada, acom-panhado de seus guardadores por se desagastar e pera ver se achava quem lhe abrisse algum caminho como parecesse mais despejado diante d’el-rei.

E como quer que o não achava diante os homens, buscava-o entre os san-tos, visitando as igrejas, mandando dizer missas, especialmente a Santo Antônio, de quem era muito devoto, pedindo-lhe lhe deparasse remédio se o tinham seus trabalhos. E deparou-lhe Deus da maneira que ouvireis adiante.

O último dia do prazo, que quase todo esteve no mosteiro de Santo Antô-nio (que era de menores), em que com devação havia confessado e recebido o Santíssimo Sacramento, recolhendo-se quase noute, achou à porta do mosteiro ũa mulher muito velha que ao parecer seria de noventa anos, muito fea, seca e mal arroupada. E ela que o estava esperando, quando o viu, chegou-se a ele e disse-lhe:

– Senhor, eu vos faço saber que sei a pressa em que andais e o remédio que tendes para salvar vossa vida do caso que vos aconteceu, pera o qual não achareis no mundo quem vos aconselhe o que vos cumpre fazer, senão eu. E seguindo a or-dem de meu conselho, saireis livre desta afronta e ficareis o mais honrado de vos-sa geração. Porém antes de tudo, pera que eu tenha razão de vos dar a indústria e modo que necessário é neste caso, convém que façais por mim o que eu vos pedir.

O fidalgo, tanto que a ouviu e entendeu o que lhe dizia, foi em extremo ledo. E tendo pera si que era encaminhada polo Santo pera seu remédio, prome-teu-lhe de fazer por ela tudo o que lhe mandasse. Porém ela disse que havia de ser logo e que o que lhe pedia era que a recebesse por sua mulher, como manda Deus e a Igreja Católica, do qual ele se maravilhou muito e respondeu:

– Deixando à parte a calidade das pessoas em que não falo, vossa idade não conforma com a minha, que eu ainda não fiz vinte anos e vós pareceis de cento ou quase, pelo qual não posso casar convosco. Farei outra cousa, pois quereis casar--vos, e será que vos darei tanto dinheiro e fazenda que caseis com o mais honrado homem que houver de vossa sorte na terra, e de muita ventagem. Porque de mim vos digo que eu não posso casar por agora.

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Ela se mostrou disto muito agastada e respondeu embora:– E vós enjeitais-me por velha? Pois eu vos certifico que me haveis de ro-

gar e receber, senão que ireis a casar com a picota que é mais antiga, deixando-lhe lá a cabeça por arras.

E assi se apartou dele, indo muito direita pelas ruas, e mostrava no ar e disposição grande força e muita diligência. Porém, na vista do rosto, parecia que não tinha forças pera se suster. O fidalgo, que com as suas palavras estava já mui-to esforçado e com esperança da vida, vendo-a ir e temendo que, se fosse, ficaria sem remédio, foi-se após ela com tenção de lhe prometer o que pedia e jurá-lo se não pudesse fazer al, mas não com tenção de lho cumprir, ainda que lhe salvasse a vida, como ela dizia. E tanto a seguiu que a alcançou e lhe disse:

– Senhora, perdoai-me não aceitar antes de agora o que me pedistes, que eu conheço que errei. E quero fazer o que me mandardes, fazendo vós o que me prometestes.

E assim se foi com ela a sua pousada. E ali, em mãos do cura de sua par-róquia, prometeu e jurou de a receber por sua mulher como a Igreja Católica tem ordenado, porque sem isto não lhe quis ela dizer cousa algũa. E tanto que por ante testemunhas foram jurados, ela lhe aconselhou o que devia de fazer aquela noute e o que havia de dizer ao outro dia, apresentando-se na Rolação diante d’el-rei, de que o fidalgo ficou muito satisfeito. E tudo o que era pera logo fez com muita diligência, estudando mui bem o que havia de dizer e fazer ao dia seguinte. E assi passou a noite contente.

E vinda a manhã, quando foram horas e soube que estava el-rei com os de-sembargadores na casa do despacho, se foi lá e lhe fez a saber que estava ali, que se vinha apresentar diante de Sua Alteza pera seu livramento, se o queria ouvir.

El-rei mandou que entrasse, maravilhando-se todos de sua ousadia. E ele entrando disse o seguinte:

– Muito alto e muito poderoso rei e senhor nosso. Como quer que Deus Nosso Senhor em tudo seja (como é) perfeito e justo, todavia Sua misericórdia é sobre todas Suas obras. E como Pai misericordioso, ainda que algũas vezes nos castiga com açoute de trabalhos, sempre o faz pera nosso bem. E se nos dá a nos-so parecer um mal, é pera nos livrar de outro maior. E assi eu confio em Ele, que é benigno Senhor, que, ainda que Vossa Alteza está manencório a seu parecer com razão, se me ouvir diante destes fidalgos e letrados com ânimo desapaixonado, sem outra prova senão minhas palavras verdadeiras e sua pessoa, que será a prin-cipal testemunha do que disser, ficarei desculpado e com muita honra, pera o qual somente lhe peço por mercê me queira ouvir com muita quietação e sossego, té que acabe de todo o que quero dizer. Que para princípio de meu livramento, com toda a humildade e reverência que devo, digo que, havendo quatro anos ou pouco

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mais que Vossa Alteza era casado com a rainha, minha senhora (que Deus tem), vendo ela que não paria e que pelo caso Vossa Alteza, desejoso de ter filhos, era afeiçoado a mulheres e a ela não mostrava tanto amor como no princípio, por lhe ganhar a vontade, aconselhada de outras mulheres, se fingiu prenhe, de que Vossa Alteza teve muito gosto. E andando o tempo, quando já parecia haver nove meses que o estava, mandou às parteiras de que confiava que a primeira mulher que pa-risse filho lho tomassem, acabando de delibrar, e lho trouxessem secretamente à câmara pera que, fazendo, e ela com dores de parto, dissesse a parteira que ela pa-rira aquela criança, e assi haveria príncipe no reino e Vossa Alteza lhe teria mais amor e se apartaria de outras conversações. O que tudo se ordenou e fez como ela pedia. E as parteiras lhe trouxeram um filho de ũa mulher pobre que morava fora dos muros desta cidade, cujo marido era um cabouqueiro e aquele tempo era fora da cidade. E ela, sabendo pera que lhe tomavam o filho, o deu de muito boa von-tade e vinha muitas vezes a vê-lo. Isto tudo se fez com tanto segredo que nunca té hoje foi descoberto, ainda que alguns médicos letrados suspeitaram não ser este príncipe filho de Vossa Alteza, porque nas enfermidades que pelo tempo lhe vi-nham, se lhe aplicavam mezinhas delicadas, não faziam operação nele, e com as grosseiras e rústicas melhorava. Foi tanto que o velho doutor da rainha que inda vive lhe disse: “Senhora, ninguém cuidará de Vossa Alteza o que eu vejo claro. E é que ousarei afirmar e com juramento se cumprir que este príncipe que temos não é filho d’el-rei, meu senhor”. De que a rainha ficou tão envergonhada e triste que não teve mais dia de contentamento, vendo que infamara sua pessoa e dera o principado do reino a cujo não era, tirando-o ós herdeiros de Vossa Alteza a que podia pertencer. E com esta imaginação adoeceu de enfermidade de que morreu, dando primeiro conta a seu confessor do que fizera com grande arrependimento de o ter feito. E desejando manifestá-lo a Vossa Alteza, lhe deu o paracismo com que acabou a vida. Sua morte foi chorada de todos e de poucos entendida a causa, que era porque fizera príncipe do reino o filho do cavouqueiro. E que seja isto ver-dade, mande Vossa Alteza chamar sua mãe, que é viva, e saibam dela pelo modo que lhe parecer. E chamem as parteiras e médicos da rainha, que todos dirão o que eu digo. E verificado não ser príncipe o que cuidavam que o era, ficará o meu caso menos grave e eu não merecendo tanta pena por sua parte, mas sendo digno de perdão e mercês por haver descoberto este caso tão grande. E se Vossa Alteza não se enfada, ainda lhe direi adiante outras novidades maiores do tempo e de mim, que fazem ao caso, e folgue de as saber.

El-rei lhe disse:– Por certo que o que até aqui dissestes foi tanto e estou disso tão espantado

e triste, que não posso imaginar que possais dizer adiante cousa maior nem de que

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eu receba alegria. Porém, por saber que é e por vos ouvir como tenho prometido, dizei o que quiserdes que tudo se vos ouvirá de boa vontade.

E o mancebo, beijando-lhe as mãos pela mercê, tornou a dizer o que ouvi-reis ao diante.

– Saberá Vossa Alteza que, havendo quase dous meses que a rainha (que Deus tem) se fazia prenhe, por encobrir melhor o engano e porque Vossa Alteza o não viesse a entender, não consentia que houvesse mais ajuntamento com ela, o que Vossa Alteza fez pela não anojar. E por este respeito se foi fora desta corte e andou pelo reino sete ou oito meses, até que a rainha se mostrou parida. E assi, andando pelas terras do duque, meu avô, derredor de sua casa de prazer que tão nomeada é no reino, vendo os árbores que com muita fruita se mostravam por cima da cerca, quase convidando a quem os via a desejo de os tratar, mandou ro-dear a cerca por ver se havia entrada no pomar. E achando-lhe ũa pequena porta, a fez lançar fora do couce e, aberta, viu que andavam dentro mulheres, pelo qual mandou aos que com ele iam que não consentissem entrar por ali ninguém, nem sair, até que ele tornasse, porque queria ir dentro, como foi. E achou entre aquelas mulheres ũa donzela muito fermosa que naquele tempo seria de quatorze anos. E peitando com joias e dinheiro aquelas que a deveram guardar, a quem ela estava encomendada, sem conhecerem que Vossa Alteza era rei, com cobiça do dinheiro, lha deixaram. E ele a meteu na casa do pomareiro, que bem creo lhe deve alem-brar isto, que não é pera esquecer que ali houve ajuntamento com ela e lhe deu estes três anéis, que Vossa Alteza levava nos dedos, e esta cadea com esta cruz. E lhe descobriu que ele era el-rei, ainda que ela não lhe quis dizer quem era, porque ficou tão anojada e triste de seu corrompimento e contra aquelas mulheres, que a elas nem a outrem nunca mais o descobriu. Recolheu-se em casa sem tornar mais em sua vida ao pomar. Permitiu Deus que deste ajuntamento ficasse prenhe, que foi pera ela maior tristeza, porque seu pai, que é o duque, meu avô, tomou isto muito mal. E pior porque ela não lhe dizia de quem. E a seu tempo me pariu a mim, que logo me deram a criar, dizendo que era enjeitado que trouxeram a casa. E quando pareceu ao duque, me fez trazer pera si, chamando-me neto, e assi zombando, ainda que o era de verdade. Porque como minha mãe se detreminou de não casar, fez que me prefilhasse,147 pera poder-me tratar em casa como era razão, sem descobrir o caso, o qual se fez com licença de Vossa Alteza. E assi fi-quei por filho adotivo de minha mãe natural. E como o duque não tem outro filho nem filha senão minha mãe e sabia ser eu seu neto, criou-me com tanto mimo e amor que não podia mais ser. E alcançou de Vossa Alteza que houvesse por bem

147 Forma flexionada de prefilhar, o mesmo que perfilhar: adotar como filho. A mulher que perfi-lhava fazia entrar por baixo da fralda de uma camisa larga, que vestia sobre as roupas, a pessoa perfilhada, até deitar a cabeça por fora da manga do braço direito, e dava-lhe um beijo.

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que eu ficasse por herdeiro de seu morgado e senhorio, ainda que antes o era por nascimento. E não tão somente daquele ducado, mas de todo este reino, pois sou com verdade filho de Vossa Alteza. E pera prova de que eu sou este que digo, ele seja testemunha se é verdade tudo o que disse e veja se conhece estes anéis, cadea e cruz que deu a minha148 mãe o dia que com ela teve ajuntamento. Ei-lo149 aqui tudo, que ela mo deu esta noite. E diz que lhe pede que em sua consciência declare a verdade do que lhe lembra neste caso, que ela afirma na sua que tudo é como tenho dito. E não o quis descobrir até agora porque, como Vossa Alteza era casado, não tinha remédio seu dano; e descobre-lho agora que o pode ter. E assi, sendo isto verdade como é, já Vossa Alteza vê que este que até agora se teve por príncipe o não é. Que, se o fora, não couberam em sua boca as palavras torpes e vis que me disse. E também vê e sabe pelas razões que dei que eu sou seu filho natural, verdadeiro príncipe destes reinos. E certo que como tal, ainda que o não sabia, sempre tive pera mim que não fazia mal em tornar por minha honra como tornei, e não sofrer o que me diziam contra ela, em que se mostrou vir eu do claro sangue de Vossa Alteza de que procedo. O que tudo visto, lhe peço me faça mercê de me perdoar o erro que fiz em pôr a mão naquele que tinha nome de príncipe, posto que o não era, havendo respeito que o primeiro movimento não é na mão do homem. E se tudo isto me não val e outra cousa lhe parece justa, aqui estou: mande fazer de mim o que quiser e saiba certo que me não apartarei um cabelo de fazer sua vontade, ainda que me custe a vida.

E com isto se pôs em geolhos na alcatifa que estava aos pés d’el-rei e não se ergueu até que sucedeu o que vereis ao diante.

Admirados ficaram el-rei e todos os desembargadores e fidalgos que esta-vam presentes em ouvir o que o mancebo dissera, em especial Sua Alteza. Que então se lhe representou diante dos olhos aquela donzela fermosa e como a hou-vera naquele pomar e as muitas vezes que desejou saber quem era. E como nunca o soube, nem mais vira nenhũa das mulheres que com ela estavam, lembrou-se que ele dera aquelas joias, conheceu-as e, considerando o mais que fica dito, teve pera si que aquele que tinha diante dos olhos era seu verdadeiro filho. Porque, por ũa certa e secreta inclinação, lhe estava afeiçoado desde o primeiro dia que veo ao paço, que, se isto não fora, bem é de crer que quando lhe disseram que havia posto a mão no príncipe, logo o pagara. Mas premitiu Deus que fosse assi para que se descobrisse o que ouvistes e se desse o reino a quem de direito pretencia.

Tornando ao conto, todos punham os olhos no mancebo e, de um acordo, sem algum discrepar, diziam que em extremo se parecia com el-rei. E isto se ha-via dito sempre dele, mas agora com tanta eficácia que fizeram vir um espelho e 148 No original, com erro de impressão, na forma minho.149 No original, na forma ello, emendada para ei-lo, conforme a norma atual.

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que, vendo-se el-rei a ele, visse juntamente o filho, pera que soubesse quanto com ele se parecia. Fez-se assi. E quanto ao mais do que estava em posse de príncipe, fizeram-se as diligências necessárias e de um em outro se soube a verdade.

E o mancebo foi julgado por sem culpa do passado, e no presente lhe fi-zeram grandes honras, jurando-o por príncipe do reino, pera o haver despois da morte do pai. O que tudo se fez em presença do duque, seu avô, que logo foi man-dado chamar e não tardou em vir, porque da noite atrás sabia tudo o que seu neto havia de dizer e fazer, do que estava muito ledo. De que a cabo de tantos anos lhe mostrava Deus este contentamento.

Jurado este por príncipe, o próprio dia quis el-rei receber por mulher a filha do duque, e que todos despedissem as tristezas da corte, o que logo foi concerta-do, e a seu tempo feito com grandes festas e alegrias que duraram muito. E porque em tal tempo não houvesse na cidade pessoa a que disto pesasse, mandou el-rei que o mancebo que até então tivera o principado e sua mãe, com todas as pessoas que foram no conselho e consentimento de o trazer por filho d’el-rei, se fossem da terra. E os mandou levar a ũa ilha donde nunca mais nenhum tornou à corte, porque o mancebo de desgosto morreu no caminho e os mais per sua idade natu-ralmente acabaram prestes. E o conto não se estende a falar mais deles, e conta o que aconteceu na corte, como agora ouvireis.

Estando sobre mesa com grande contentamento el-rei, rainha e príncipe, quis Sua Alteza saber como e por quem fora descoberto a seu filho que o era, e não o outro, com todo o mais que até então estava tão alheo de se manifestar, rogando ao príncipe lho contasse. Ele, em presença de toda a corte, disse a continuação que tivera em pedir a Santo Antônio, glorioso nosso natural, que lhe deparasse seu re-médio, se fosse servido de Deus achá-lo. E contou como à porta de sua casa achara aquela velha que lhe descobriu o caso miudamente, assi como ele o contou o dia que se apresentara ante Sua Alteza. E que ela lhe ensinou que fosse pedir aquelas joias a sua mãe e também todo o mais que até então tinha dito e feito.

E descobriu como pera isto ele lhe jurara casar com ela, porém que o não faria pela disformidade das idades, baixeza e fealdade dela. E que, ainda que tudo fora pelo contrário, ele não tinha tenção de se casar, senão quando e com quem Sua Alteza ordenasse. El-rei folgou muito de o saber e lhe disse:

– Já que lho jurastes de a receber e ela cumpriu o que vos prometeu, seja quem for, cumpri vossa palavra, pois foi causa de eu vos conhecer e ter por filho. Recebei-vos com ela, pois não tendes justa causa, e isto basta para lhe terdes muito amor e consentir que ela receba agravo.

A qual fez el-rei que viesse ao paço. Ainda que por sua fealdade e velhice queriam escarnecer dela, vendo que se queria casar, todavia, conhecendo que el--rei levava gosto de o fazer, dissimularam. E com grande sossego e festa d’el-rei,

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foi recebida por mulher do príncipe, o qual ficou disto tão triste, como já fora ledo com o sossego de seu conselho.

El-rei e a rainha, ainda que lhe parecia tão velha e fea (como era), todavia lhe achavam na prática, preguntas e repostas, ũa viveza de engenho, ũa discrição bem assentada, grave e tal que lhes provocou os ânimos, a alma. E por muito que então lhe rogaram dissesse quem era e como sabia o que aconselhou ao príncipe, ela o não disse. Mas com muita cortesia lhes pediu que a seu tempo ela teria cui-dado de lhe dizer e lhes daria muito gosto. E se o dissesse antes seria grande erro, pelo qual a deixaram de importunar.

E o príncipe e ela foram levados a ũa câmara rica donde tinham seu leito em que o príncipe se deitou com mostras de tanto pesar por se ver casado contra seu gosto, que ninguém lhe podia ver o rosto, nem ele quis ver o da princesa. Mas, deitado na cama, virando-se pera a dianteira, e ela da outra parte volta150 pera a parede, estiveram sem se verem nem falarem um ao outro esta noite, e outras muitas, em que se passaram mais de três meses151 em os quais se achava no príncipe toda a tristeza da vida, e era porque se via casado com tão fea mulher. E durou-lhe este descontentamento até que aconteceu o que agora ouvireis.

Ũa noute, estando o príncipe e a princesa na cama, segundo seu costume, ouviu um rumor na câmara, e era tal que, parecendo-lhe fosse algũa152 traição, se ergueu do leito e com a espada na mão foi pera aquela parte adonde o rumor parecia. E ali nem em toda a casa não havia cousa que se pudesse temer, nem mostras que dessem suspeita do que fora, que ele pôde ver tudo bem, porque tinha um barandão aceso que alumiava a casa toda. Vista a quietação, deixou a espada e tornou-se ao leito. E como a este tornar levasse o rosto pera a cama donde a prin-cesa jazia, ainda que estava virada pera a parede, viu-lhe a cabeça em que tinha ũa coifa feita de ouro tirado com algũas pérolas riquíssimas, que davam de si muito lustro e faziam que os fermosos cabelos que estavam debaixo se diferençassem na cor do ouro, os quais sem elas quase pareciam o mesmo ouro.

Ele, vendo o resplandor da coifa, sem saber detreminar consigo que seria aquilo, considerando que a velha tinha os cabelos muito153 alvos, que lhos tinha vistos já por vezes, desejou afirmar-se154 que era o que via. Chegou mais perto, viu-lhe o rosto muito alvo e fermoso, ficou mais maravilhado do que se pode imaginar, porque viu que era a mais fermosa e bela criatura que seus olhos viram. Não podia acabar consigo de crer que aquela fosse a velha que ele cuidava tinha

150 Forma abundante de particípio do verbo voltar: leia-se “voltada”,151 Compare-se o tempo aqui referido com o que se diz na nota 156.152 No original, com erro de impressão, na forma elgũa.153 No original, na forma muitos, emendada para muito pelo valor adverbial do termo.154 No original, na forma affirmase, emendada para afirmar-se, por ser contexto de infinitivo.

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consigo, porque lhe parecia (como na verdade era) moça que não passava de qua-torze anos: alva e loura e tal que, considerada sua fermosura por quem tivesse os espíritos alevantados a Deus Nosso Senhor, Lhe daria muitos louvores e graças por sua criação.

E vista pelo príncipe a fermosa dama que tinha consigo, virou-a pera si, tratando-a amorosamente, a que ela acordou e, resistindo, se defendeu que os brincos não passassem adiante, dizendo-lhe:

– Senhor, quem não me quer de dia na sala, velha e fea, não me há de gozar donzela, fermosa e moça na cama. Pelo qual Vossa Alteza não haverá de mim mais do que té agora houve, sem se detreminar de duas cousas ũa qualquer: se me quer esta que ora me vê de noute consigo na cama, é que me há de sofrer de dia velha e fea na sala; ou pelo contrário, ter-me na sala de dia esta moça e fermosa, e na cama de noute velha e fea. E como se detreminar no caso, assi lhe responderei e direi o que há de fazer ao diante.

O príncipe, que já a este tempo estava tão namorado dela que por nenhum preço a queria perder nem aventurar-se a isso, lhe respondeu:

– Minha senhora, seja eu tão ditoso que não vos perca. E no mais eu vos quero como vós quiserdes que vos queira, porque em vossa vontade deixo a mi-nha e essa quero seguir toda a minha vida. E pesa-me muito pelo tempo que há que estamos juntos sem haver mostras de vossa fermosura e graça.

A este tempo ficou a princesa muito leda e logo disse:– Pois, senhor, de hoje pera sempre serei esta que aqui me vedes. E não

parecerei mais a velha fea que parecia, porque (louvado Deus) pera sempre já é acabado meu encantamento que tanto dano me tem feito. Mal hajam os que os usam. Agora vos peço que queirais dar parte deste nosso contentamento a el-rei e à rainha, meus senhores, pera que diante deles vos diga quem sou, que creo, sem me enganar, que se alegrarão.

O príncipe foi contente. Chamaram gente, visitaram-se, deram recado a el--rei e à rainha, que logo se juntaram todos e deram graças a Deus que lhe mostrou tal e tão grande maravilha. E admirados da grande fermosura da princesa, esti-veram quietos, ouvindo o que então lhes contou, dizendo-lhe quem era e como soubera o caso deste conto, dizendo assi:

– Senhores, parece cousa tão contra rezão ver-me ontem velha e fea e hoje moça e fermosa. Que para não parecer impossível é necessário dizer-vos quem sou e como por razão natural aconteceu, pera o qual vos peço por mercê tenham Vossas Mercês atenção. E saibam que el-rei de Granada, que hoje reina, é meu pai, e eu sou sua filha legítima e de sua mulher, a rainha. E sendo eu de sete meses, estando no berço a desoras, a ama que me criava viu que em um istante se me mudou a cor e se me arrugou a pele, de maneira que de menina muito fer-

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mosa me tornei logo velha muito fea. E minha ama deu grandes brados aos quais acudiram el-rei e a rainha, meus pais. E ainda que a ama lhes disse o que vira, disseram eles que não era possível, senão que alguma cousa má lhe levara a filha e deixara algum demônio, tal lhe pareci eu então. E logo lançaram fora de casa a ama, queixosos dela, que não tivera boa guarda na filha que lhe entregaram. E ela, vendo que sua razão não valia nem a queriam ouvir, tomando-me no colo me le-vou ao seu apousento. E dali, tirando consigo as joias e dinheiro que tinha, se saiu comigo do paço e buscou, quanto a ela foi possível, quem lhe dissesse que cousa fora aquela e o remédio que tinha. E andando nesta demanda por muitas partes, foi ter a Fornachos,155 que é ũa vila do próprio Reino de Granada, em a qual havia grandes sabedores na arte de giromancia, nigromancia e outras malditas e reprovadas ciências. E lá achou um velho que lhe disse que esperasse em Deus que antes de quinze anos de minha idade seria livre e com muito contentamento, porque aquilo fora feito por ciúmes de ũa mulher com quem meu pai antes de se casar tivera conversação, a qual era natural daquela vila. E porque não se casou com ela, que o não merecia, e casou com minha mãe, que lhe armava, buscou maneira com que lhe pudesse empecer na pessoa. E ainda que nisso trabalhou muito, não premitiu Deus que tivesse tanto poder, mas pôde dar-lhe o desgosto que teve quando me viu no berço tão velha e fea, que parecia demônio. Porém que isto não podia durar, e aconselhou a minha ama que me trouxesse a esta cidade, porque aqui haveria fim meu trabalho e eu ficaria livre e muito honrada. Ela, visto isto, veo-se morar aqui, confiando em Deus que lhe depararia remédio. E porque por via humana não achou nenhum, deixando a confiança do saber dos homens, se socorreu a Deus Nosso Senhor e ao glorioso Santo Antônio de Lisboa, pedindo-lhe sempre lhe deparasse o remédio pera minha saúde, se fosse serviço de Deus. E haverá vinte dias que veo aqui ter a mulher que fez o encantamento156 com que eu fui trocada e lhe disse que já se chegava a hora de sua morte e meu remédio, que continuasse àquela casa do Santo glorioso e que à porta dela viria ter o príncipe, meu senhor, que então o não tinham por esse. E contando-nos a ambas tudo o que dele e de Vossa Alteza sabia, com o mais que já se descobriu da rainha (que Deus tem) e do fingido príncipe que aqui estava, me ensinou que fizesse o que, senhores, vistes que até agora se fez. E antes de três dias despois disto, adoeceu minha ama de doença de que acabou, deixando-me bem avertida de tudo o que devia de fazer. Entre o qual me encomendou que, porquanto meu pai e mãe são muito anojados por minha perda, que, se Deus me libertasse, lho 155 Provavelmente a Vila de Hornachos, próxima à serra do mesmo nome, na província de Badajoz,

na Espanha.156 Comparando-se o período de tempo expresso neste parágrafo (20 dias aproximadamente) com o

que está expresso no tempo referido na nota 151 (3 meses aproximadamente), constata-se uma falha na determinação do tempo por parte do narrador.

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fizesse a saber, que, pois não tinham157 outro filho nem filha e eu era verdadeira herdeira do reino, folgariam muito comigo. E deu-me joias que ela trouxe do paço e algũas peças conhecidas de minha mãe, que guardasse, as quais dessem crédito ao que eu dissesse e manifestasse ser eu sua filha. E aprendi o que me ensinou e tudo cumpri sem falta, em especial visitar a casa do glorioso padre Santo An-tônio. E creo que por seus merecimentos alcançou do Senhor que me deparasse pera meu remédio Vossas Altezas, a quem peço mandem dar esta nova a meus pais pera que se alegrem.

Todos folgaram muito de saber que era de tão alto sangue. Despediram logo mensageiros que o fizeram saber aos reis de Granada, os quais levaram tan-to gosto disso que não se puderam ter sem vir ali donde viram a filha e genro, e aos reis, seus consogros. E uns e outros deram graças a Deus Nosso Senhor pelo sucesso do caso e fizeram grandes esmolas na casa de Santo Antônio, ordenando ali um suntuoso mosteiro, donde se serve ao Senhor.

E ficou em lembrança pera sempre que os príncipes vigiem em olharem não deem ocasião que seus vassalos os desacatem e lhes percam a obediência, mas que sejam benignos, deixem a soberba a Lúcifer, que é seu próprio pai.

CONTO II

Que quem faz algum bem a outro não lho deve lançar em rosto, e que sem-pre se deve agradecer a quem nos pede, que nos dá matéria de bem obrar.

Na cidade de Córdova houve um tempo falta de pão e não se achava a comprar quando queriam. Porém, a certas horas do dia, se vendia na praça o que havia para vender aquele dia, e acudiam ali todas as pessoas que haviam mister, porque era do depósito da cidade que o tinham guardado pera tais tempos. E era também repartido, que todos ficavam satisfeitos e contentes. E se algũa pessoa se descuidava de ir ao tempo da repartição, despois não achava nenhum.

Aconteceu que um homem pobre, calceteiro, comprou pão que lhe pareceu que bastasse pera aquele dia. E chegada a noute, a horas de cea, porque tinha mui-tos filhos, não achou pão em casa que bastasse pera sua família. E considerando que faria, mandou um moço à casa de um seu vizinho rico, também calceteiro, com o qual lhe mandou dizer que lhe pedia lhe mandasse emprestar um pão pera dar aos seus meninos aquela noute e que o dia seguinte o pagaria. E o vizinho lhe mandou logo dous, dizendo-lhe que tomasse aquele par de pães, e que ele folgava muito de os ter pera o favorecer em tal tempo. E que não lhos tornasse a mandar que haveria disso manencoria. O pobre os agardeceu e deu muitas graças a Deus polo bom repairo que achara.157 No original, na forma tinha, em flagrante erro de concordância, incompatível com o padrão do texto.

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Passou o tempo da carestia, que durou pouco, veo a bonança e, passados quase dous anos, como ambos eram de um ofício, acertou que um dia compraram um pano pera o partir. E o rico escolheu o melhor quinhão e quisera levar a mostra da peça, mas o pobre, que também tinha pago sua parte como ele, não quis senão que a parte da amostra se partisse e o pano se fizesse em partes iguais, e lançassem sortes pera cada um haver o quinhão que lhe coubesse. Fez-se assi, e não coube ao rico o que ele desejava. O qual, agastado, na rua, disse diante dos vizinhos:

– Não era muito que levara eu a mostra deste pano, que bem vo-lo merecia. Porque o ano da fome, havendo vós mister um pão emprestado, mo mandaste pedir e eu vos mandei dous, dados, com que vos sustentastes vós e vossos filhos, que me nunca agardecestes.

A isto respondeu o pobre, alto, que o ouviram todos:– É verdade o que dizeis, que assi foi. Porém eu então fiz a vossa honra

mais que vós a mim, que vos escolhi por o mais honrado da vizinhança e como tal vos mandei pedir um pão emprestado, oferecendo-vos a paga que vós não quisestes aceitar. E digo agora que menti na escolha que fiz então, porque o não sois. Porque, se o fôreis honrado como eu cuidava, ainda que então me mandastes dous pães dados, não mo lançáreis agora em rosto.

Com isto que os vizinhos ouviram ficou o rico envergonhado e o pobre não ficou abatido. E todos entenderam quão miserável cousa é pedir e que não se deve deitar em rosto o que se dá.

CONTO III

Que diz quanto val o juízo de um homem sábio e como, por um rei tomar conselho com ele, o tirou de ũa dúvida em que estava com um seu barbeiro, que é o conto seguinte.

Um rei havia ficado, por falecimento de sua mulher, com ũa filha a qual era herdeira e sucessora de seu reino. Este, pera tirar de si a paixão e malencolia que lhe sobrevinha por causa de sua tristeza, se saía muitas vezes por tempo do verão a um pátio que tinha muito fresco, ornado de muitas flores cheirosas que ali mandava criar por seu refrigério. Estando neste pátio que digo, vinha por algũas vezes ter com ele, por seu mandado, o seu barbeiro, pera lhe fazer a barba. E como os barbeiros têm por seu natural serem práticos e chocarreiros, el-rei o mandava chamar mais por gostar de sua boa conversação que por necessidade que tinha de seu ofício.

Estando um dia com el-rei, mondando-lhe a barba como costumava, veo el-rei a gostar tanto de sua boa conversação que lhe disse que lhe pedisse mercês. A que o barbeiro desprezou sua promessa, dando-lhe a entender que não havia

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mister nada. Mas, vindo outras vezes ao próprio ofício como costumava, lhe veo el-rei a cobrar tanta afeição que lhe importunava que lhe pedisse mercês que, por grandes que fossem, lhas não negaria. Ele, tomando ousadia e atrevimento às promessas que el-rei lhe fazia, lhe disse:

– Saberá Vossa Alteza que não hai na vida cousa que hoje aceite de Vossa Alteza que me possa fazer contente e que meu desejo satisfaça, senão é ũa, a qual é dar-me em casamento, por minha legítima mulher, a princesa, sua filha.

El-rei, sobressaltado de tão estranha novidade, dissimulou com ele, inter-rompendo a prática noutra matéria, cuidando que aquilo era dito a modo de graça, por dar passatempo a el-rei com suas chocarrices e zombarias, como de ordinário costumava. Mas ele era tão em seu inteiro juízo que, vindo outra vez a barbear a el-rei e tornando-lhe a pedir el-rei que lhe pedisse mercês, tornou a repetir sua primeira petição, dizendo que não tomaria outra cousa senão a princesa, sua filha, por mulher.

El-rei, parecendo-lhe isto já mais que zombaria, detreminou de o despedir com brevidade. E ido, mandou chamar um homem letrado, de grande entendi-mento em diversas ciências, e, dando-lhe conta como desejando por muitas vezes de fazer algũas mercês, aquele homem sempre lhe saíra com desatinos tamanhos a que não podia nem sabia dar entendimento. Porque, se o tivera por homem in-capaz e desassisado, tivera pera si que lhe nascera aquilo de seu pouco juízo. Mas sendo um homem prudente e avisado, não sabia a que pusesse, nem que atribuísse a um desprepósito daquela calidade.

O letrado esteve um pouco cuidando consigo em seu entendimento e dis-se a el-rei:

– Senhor, faça-me Vossa Alteza mercê de se pôr em outro lugar fora desta casa a barbear com esse barbeiro e de lhe tornar a repetir que lhe peça mercês, pera ver se acerto em um segredo que tenho imaginado neste caso.

El-rei o fez assi. E pondo-se noutra casa, o mandou chamar e com dissi-mulação lhe disse:

– Mestre, desejo tanto de vos fazer mercês e vejo que nunca me pedis nada. Folgaria que me acupáreis em algũa cousa, porque de verdade que vos tenho tanta afeição, que não haverá cousa que me peçais que, ainda que seja ũa grande parte de meu reino, que vos não conceda.

O barbeiro lhe respondeu:– Certo, senhor, que Vossa Alteza me oferece a tempo mercês que não

posso deixar de não lançar mão delas. Portanto, se Vossa Alteza mas158 quer fazer, serão pera mim mui grandes. E é que me há de Vossa Alteza fazer mercê de me

158 Combinação de pronomes oblíquos: me + as.

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mandar dar dez cruzados pera pagar o aluguer de minha casa de que estou penho-rado. E nisto receberei mercê mui assinalada.

Se el-rei de primeiro se espantou de lhe pedir sua filha em casamento, mais se espantou, abatendo-se tanto que pera lhe pedir dez cruzados lhe mostrava ficar em tamanha obrigação.

El-rei lhe mandou dar os dez cruzados e, despois de ido, fez vir diante de si o letrado que lhe havia aconselhado. E vindo diante dele, lhe disse o que passara com o barbeiro, que deitasse juízo em tamanha diferença. O letrado respondeu:

– Vossa Alteza saberá que o meu entendimento saiu certo. E pera saber a prova disto, mande Vossa Alteza abrir a terra aonde esse homem punha os pés, quando, estando barbeando, lhe pedia sua filha em casamento, que eu creo que nesse lugar se achará um grande tesouro. E não pode ser menos, senão que pisas-se com seus pés algum grande tesouro quem tinha fumos de pedir a princesa em casamento. Porque o pisar com os pés é sinal de desprezar, e quem despreza o ouro e cousas ricas que debaixo dos tesouros estão enterrados é prova que se não podia contentar com menos que com pedir a princesa, que hoje temos na terra por de mais valor que o tesouro que aí se pode achar.

Com estas razões que o letrado deu, mandou el-rei abrir a terra onde isto passou e foi achado um grande haver, por onde se entendeu que a causa por onde um homem baixo se movia a tão altos pensamentos, havendo-se de contentar (como se contentou) com pequenas cousas, lhe não vinha senão de estar ali enter-rado o que se achou, que a el-rei foi de grande admiração.

E pera pagar ao letrado tão bom conselho como tinha dado, em especial tirá-lo de ũa dúvida tamanha, lhe concedeu ũa boa parte daquele haver. E outra parte mandou dar ao barbeiro com que se autorizasse em estado, pois ele foi es-tromento por onde aquele haver se achou.

Ficaram todos contentes, e a nós nos contente Deus com nos dar Sua glória pera que fomos criados. Amém.

CONTO IV

Trata como dous mancebos se quiseram em extremo grau e como um deles, por guardar amizade, se viu em grandes necessidades e como foi gradecido do outro amigo.

Houve, em tempos passados, nesta nossa cidade de Lisboa, um homem nobre e rico que tinha um só filho, único herdeiro de toda sua fazenda. O qual, pera o acostumar em virtuosos exercícios, o mandou estudar à Universidade de Coimbra, dando-lhe cartas pera um mercador rico, que aí era morador, com quem

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TERCEIRA PARTE

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este nobre cidadão, em tempos passados, tivera grande amizade, encarregando--lhe por suas cartas o cuidado daquele filho que ele tanto queria.

Sendo este nobre mancebo, que seria de quinze até dezasseis anos, chegado a Coimbra e dando as cartas e recados que trazia de seu pai àquele mercador, foi dele logo mui honradamente agasalhado e, pera o em tudo honrar como ele me-recia, o deu por companheiro de um seu filho que era da mesma idade, para que ambos juntamente continuassem seu estudo e juntamente se agasalhassem dentro em sua casa, em um aposento onde ambos pudessem estudar suas lições.

Aconteceu que Fabrício, que assi se chamava este mancebo de Lisboa, se parecesse nas feições do rosto e estatura do corpo com Cornélio, de Coimbra, que assi se chamava o filho deste mercador em cuja casa pousava. E como ambos jun-tamente continuassem seu estudo e este mercador de Coimbra o não tratasse menos que a seu filho, foi tanto o amor que estes dous moços se tiveram que em seu estu-do, em suas conversações, em seus passeos, nunca se podiam apartar um do outro.

Havendo já alguns dias que Fabrício estava em Coimbra, veo atentar pera ũa filha de um nobre cidadão a qual era tão fermosa que tinha por apelido em toda a terra “a fermosa Lucrécia”. E como este mancebo fosse juntamente sisudo e ver-gonhoso em seus amores, nunca quis dar a entender a Cornélio, seu amigo, nem a outra pessoa algũa que tinha sujeita sua afeição naquela parte. Assi, vivia com seus amores o mais precatado que podia com que ninguém entendesse sua tenção.

Estando as cousas neste estado, como este nobre mercador fosse na terra tido por homem rico e honrado e não tivesse mais que este só filho, pretendeu o pai da fermosa Lucrécia de lhe falar pera casar sua filha com Cornélio, seu filho. E foi a cousa tão bem averiguada que, logo em os pais falando no casamento, logo se aceitou. E averiguados, deu-se recado aos parentes e achegados d’ambas as partes, pera que em certo dia se aparelhassem pera celebrar a festa de seus desposórios. E como isto se divulgou e esta dama fosse, das fermosas da terra, a mais fermosa, andava Cornélio, de Coimbra, seu esposo, tão ufano que não havia contentamento que lhe chegasse.

Pois, que faria neste tempo Fabrício, de Lisboa, que, como tenho dito, estava penhorado das esperanças da fermosa Lucrécia? Pretender estrovar o ca-samento de sua senhora por algum modo ou via que se oferecesse por duas causas o não consentia sua afeição: a ũa, por a verdadeira amizade que tinha com seu amigo Cornélio, a quem ele tanto queria; a outra, por não se divulgar sua paixão, porque tinha ele por tanto preço o segredo de seus amores, que antes queria ar-riscar a perder a vida que pôr em perigo a honra de sua fermosa Lucrécia. Com esta imaginação andou pensativo alguns dias, até que de pura malencolia veo a

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cair em ũa grande enfermidade. O qual sabendo, seu amigo Cornélio, o esposo de Lucrécia, o veo visitar159 e lhe disse:

– Agora, meu amigo Fabrício, que vos tinha elegido pera o contentamen-to de meus esposórios, me é a ventura tão contrária que vos vejo deitado nessa cama onde ninguém senão eu sente o mal que vos tanto atormenta. Pelo que não sei que hoje dera ou fizera por vos restaurar vossa saúde, que tanto me aflige a vós e a mim.

A isto respondeu Fabrício e disse:– Ah, amigo Cornélio! Dizeis que déreis muito por eu não ter esta enfermi-

dade e, à verdade, a nossa verdadeira amizade não sofre menos. Sabei pois que na vossa mão está minha morte ou vida.

– Pois, senhor, se assi é – respondeu Cornélio –, bem vos podeis contar por são, porque não há cousa que se me anteponha a vosso gosto.

Vendo Fabrício os oferecimentos de seu amigo, tomou ânimo a lhe desco-brir seu coração e lhe deu muito por extenso conta como ele estava, havia dias, perdido d’amores da fermosa Lucrécia com quem ele estava concertado pera ca-sar. E como esta tenção, quando é verdadeira, não dá lugar a se comunicar com ninguém, assi sempre a teve tão secreta em seu coração, até que agora de todo se viu perdido no mar de suas esperanças, sem remédio de tomar porto seguro, se não for com ele o querer remediar, cumprindo os oferecimentos que lhe tinha feito.

A isto respondeu Cornélio:– Verdade é, meu amigo Fabrício, que não havia hoje na vida cousa com

que me eu mais pudesse fazer contente que com casar com a fermosa Lucrécia. Mas é tanto o que devo ao amor com que nos tratamos que, se vossa saúde con-siste no enjeitar eu este casamento, dai-o por enjeitado. Mas que farei a ũa cousa que tão averiguada e assentada está debaixo da honra e palavra de meu pai?

– Pois pera isso – respondeu Fabrício – tenho eu cuidado e imaginado ũa invenção, ajudando-me vossa indústria, com que eu fique de todo satisfeito. E é que eu e vós nos parecemos muito, como sabeis, que toda a terra nos falam e con-versam a mim por vós, e a vós por mim. O vosso recebimento há de ser de noite aqui em casa de vosso pai, que pera isso já têm vosso pai e o seu havida licença. Eu estou aqui deitado nesta cama. Té então fingirei não melhorar minha doença. Vós nesta casa vos haveis de vestir e sair a receber a noiva. Como isto assi seja, com muita facilidade posso eu tomar vossos vestidos e vós deitar-vos nesta cama. E eu sairei em vosso lugar e receber-me-ei com a fermosa Lucrécia. E depois de feito daremos ordem com que se diga a seu pai dela e ao nosso a causa por que

159 No original, a expressão está impressa da seguinte forma: “seu amigo Cornélio o esposo, Lucré-cia o veo visitar”. Emendou-se para “seu amigo Cornélio, o esposo de Lucrécia, o veo visitar”, exprimindo-se adequadamente o aposto.

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esta nossa troca foi feita. E o pai dela e ela o acharão por bem feito, sabendo cujo filho eu sou e o que mereço. E com isto, meu caro amigo Cornélio, sabei que, se houve no mundo obrigação a que um amigo ponha a vida e a fazenda por outro amigo, sabei que eu hei de ser preferido a todos os do mundo. E nisto dou a Deus e ao tempo por testemunha.

Era tanto o que Cornélio queria a seu amigo Fabrício que consentiu em tudo por sua saúde. E chegando-se o tempo em que estava detreminado fazerem--se as bodas e vindo a noite em que se haviam de receber, Cornélio se foi deitar na cama, fingindo-se doente, e Fabrício se vestiu nos vestidos que estavam apa-relhados pera o noivo. E como a noite é encobridora de muitas faltas e eles eram tão semelhantes, todos os que se acharam presentes cuidaram que o noivo era o próprio Cornélio, filho daquele rico mercador de Coimbra. Despois d’estarem desposados e tendo passada a cea, todos se foram, cada um pera suas pousadas, e os noivos se recolheram pera seu aposento que já estava preparado pera eles.

Vindo a manhã, alevantando-se Fabrício de a par de sua querida desposada, foi dar parte de seus contentamentos a seu amigo Cornélio, o qual achou deitado na cama. Ali os dous detreminaram de chamar seu pai e lhe descobrir o que entre ambos havia passado. E como lho disseram, posto que não fez demostração de lhe pesar, todavia em seu coração sentiu tão grande pena que por pouco houvera de perder o juízo, em ver que seu filho havia querido perder tão bom casamento. E por ser os parentes da desposada gente nobre e de honra, temia, como era de razão, que se afrontassem de semelhante caso. Porém, dissimulando quanto pôde todas estas cousas, lhe disse:

– Bem sinto e conheço, filhos, quanto sentir se deve, que a verdadeira amizade de vós outros foi causa de se fazer semelhante troca, e que estejais tão contentes com o que tendes feito. Eu também o estou. Mas como tomarão os pa-rentes da fermosa Lucrécia e seus pais fazer-se tal cousa?

– Pois pera isso, senhor pai – dixeram eles –, o mandamos chamar, pera que, dando-lhe parte deste caso, seja nosso relator diante esses senhores, pera que não tomem a mal o que já está feito. Pois o senhor Fabrício é quem eles sabem, e fique desculpado nosso erro, se erro se pode chamar.

Satisfeito com estas palavras, este honrado mercador foi a notificar aos pais e parentes da fermosa Lucrécia a presente maravilha, acreditando em extre-mo a Fabrício, manifestando-lhe como era filho de um nobre cidadão da cidade de Lisboa, pessoa de muitas partes em honra e em virtude e em extremo rico, e que não tinha outro filho senão a este Fabrício e que este somente era o lume de seus olhos, pelo que se tivessem por muito ditosos em o ter por genro.

Os quais, espantados de tal novidade, tomaram muito a mal este negócio. Mas, vendo que era feito, dissimularam, mostrando nas palavras contentamento.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

Mas no coração lhe ficava um rancor mortalíssimo pera empecer aquele honrado mercador, cuidando que dele nascera aquela trama, arrependido de não se querer ajuntar com eles em parentesco.

Mas, deixando isto à parte, entendendo este mercador estarem eles con-tentes como mostravam por suas palavras, logo escreveu suas cartas a Lisboa, ós pais de Fabrício, dando-lhe conta muito em particular do que havia passado com seu filho. E que, pois a cousa estava tão bem acertada, não deixassem de vir a Coimbra pera participarem do contentamento de seu filho e verem sua nova filha, e verem-se com os parentes dela, pera que soubessem quão acertado tinham no casamento que estava feito.

Recebidas as cartas em Lisboa, do pai e parentes de Fabrício, com grande contentamento aviaram sua partida, levando à nova desposada joias de muito va-lor. E chegando a Coimbra foram recebidos e agasalhados com grande prazer de todos. E estando aí alguns dias festejando suas bodas, detreminaram partirem-se pera Lisboa onde tinham sua casa, levando consigo os novos casados, sendo a fer-mosa Lucrécia não tão somente de seu marido, que lhe queria muito, mas de toda sua parentela em extremo grau muito estimada por sua doméstica conversação e rara gentileza, que era em extremo fermosa. Que, como o pai de Fabrício fosse em Lisboa um dos ricos homens dela, tratava-se seu filho com muito fausto de casa e cavalos, tratando sempre sua mulher com muito aparato e honra.

Deixemos Fabrício em Lisboa, em companhia de seus pais e parentes, vi-vendo ũa felice vida com sua amada mulher e contemos o que aconteceu a Cor-nélio, seu amigo, em Coimbra.

E foi que, como o pai deste Cornélio fosse mercador que andasse arriscado em tratos, por onde nunca se soubesse em sua vida se fosse rico ou pobre, acon-teceu que de ũa breve enfermidade viesse a morrer. E com sua morte acudiram todos os acredores a quem ele devia dinheiro. E deitando mão por sua fazenda e entregando-se da maior parte dela, veo o negócio a tal extremo que sua mulher e Cornélio, seu filho, lhe não ficou nada com que se sustentar. E socorrendo-se em suas necessidades ao pai de Lucrécia, que sempre o encontrou cuidando que ele e o morto pai foram no engano do casamento.

Vendo-se desfavorecido, tomando algũas peças que ficaram de seu pai, se pôs a caminho e não teria andado duas ou três jornadas quando saltaram com ele uns salteadores e o roubaram de tudo o que levava. E até sua pessoa despossaram de todos seus vestidos, que nem tão somente lhe deixaram com que se cobrir. Vendo-se o triste mancebo em tão vil e abatido estado e que tanto a fortuna o

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tinha presseguido, fou-lhe160 forçado, de pura necessidade, com um pau na mão, pedir por amor de Deus esmola pera se sustentar e não morrer puramente à fome.

E indo assim seu caminho, continuando sua desaventura, detreminou, pois não tinha outro remédio, de se ir caminho da cidade de Lisboa onde vivia seu amigo Fabrício, por quem ele tinha feito tantos extremos de amizade e por quem ele se via em tal estado. Que de por força o havia de remediar e favorecer, pois estava tão rico e favorecido dos bens da fortuna que um amigo por quem ele tinha feito tanto – até lhe dar por mulher a fermosa Lucrécia que estava elegida para casar com ele, de quem lhe havia de proceder muita honra e proveito e que, por esta causa, se via hoje em tamanha miséria – não tinha por dúvida que logo o não favorecesse em seu trabalho, dando-lhe honra e proveito.

E com esta tenção achegou a Lisboa onde, mendigando, foi preguntando pola pousada de seu amigo Fabrício, o qual pousava em ũas casas grandes e fermosas, conforme a nobreza de sua pessoa. E achegou à porta com seus trajes pobres e veo a tempo que Fabrício se punha a cavalo com muitos criados que o acompanhavam.

Vendo-se Cornélio diante de seu amigo Fabrício em tão baixo e vil estado, se lhe tolheu a língua e membros para lhe poder falar ũa só palavra. E o coitado se lhe pôs diante humilhando-se todo, cuidando que o conhecesse, mas ele ia tão desfigurado do que era, que Fabrício, que ia cavalgando, não fez nenhum caso dele.

O triste, vendo que Fabrício161 se ia alongando dele, por não perder aquela ocasião, se lhe tornou a pôr diante e, tornando a humilhar-se, lhe pediu lhe desse ũa esmola. Fabrício, não fazendo caso dele, disse a um de seus criados:

– Moço, dá ali ũa esmola.O moço, quando se alargou a muito, lhe meteu real e meo na mão. Quando

Cornélio se viu a cabo de tantas desaventuras, desfavorecido e não conhecido de seu amigo Fabrício de quem ele esperava todo seu remédio, foi tanta a paixão e aflição que a sua alma sentiu, que estimara muito naquele estado poder acabar sua vida por se não ver passar ũa vida tão trabalhosa. E assi, cheo daquela tristeza, saiu fora da cidade por uns montes desacompanhados de gente, dizendo mal a sua vida, chamando por a morte que viesse desapressá-lo de tamanha aflição e trabalho em que vivia.

E assi com esta paixão foi caminhando até horas de véspera onde, de can-sado, se assentou ao pé de um monte solitário, debaixo de ũas concavidades e à porta de ũa grande cova que o tempo e a natureza ali tinha feito. E tão cego estava 160 Não há registro desta variação de 3ª pessoa do singular do pretérito perfeito do verbo ser. Na

perspectiva diacrônica, a forma flexionada foi provém do latim fuit, não se justificando a forma fou. Fica o registro, sem correção, considerando-se a possibilidade de alguma dialetação.

161 No original, por falha do narrador, ou por erro de impressão, aparece o nome Cornélio, emen-dado para Fabrício, de acordo com o sentido da narrativa.

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de sua paixão que não viam os seus olhos um homem que, atravessado de muitas feridas, estava à entrada daquela cova. Mas, fazendo aquela paixão algum tanto termo e vendo aquele espetáculo e pegado com o dito morto ũa caixa pequena outavada, vazia e meia quebrada, não sabendo detreminar aquilo que fosse, se pôs meio pasmado a olhar aquele morto, dizendo em seu coração: “Quão descansado está este agora de padecer as penas que eu padeço!”, desejando ser ele o morto, tão atribulado se via, e seu coração tão rodeado estava de desaventuras.

Estando, como digo, assi, olhando pera aquele morto, senão quando vê vir pera a parte onde ele estava grande tropel de gente com armas que, achegando onde estava, logo com grande fúria lançaram mão dele, dizendo que desse as joias que havia roubado naquela caixa quebrada que ali estava; e que, além deste roubo que tinha feito, havia morto aquele homem que ali estava atravessado de tantas feridas.

O coitado olhou pera si e, cuidando que no estado em que estava quando ali chegou era o remate de suas desaventuras, vendo-se daquela maneira, disse consigo: “Agora vejo que não hai males, por grandes que sejam, que não haja aí outros maiores”. E alevantando o rosto pera ũa daquelas justiças que ali vinham, que lhe pareceu pessoa de mais autoridade que as outras, lhe disse estas palavras, cuidando por aqui de dar cabo e remate a seus males:

– Senhores, nunca Deus queira, nem o permita, que eu ponha em mim um nome tão infame como é de roubador. O furto que Vossas Mercês dizem, eu tal não fiz. Verdade é que eu matei este homem. Agora Vossas Mercês façam de mim o que lhe parecer justiça.

Isto dizia este coitado a fim de, por esta via, acabar suas desaventuras, mas não por via de infâmia (tão cego estava). E por esta causa declarara ser o homicida na morte daquele homem, mas não no furto que ao presente se oferecia. Mas como o caso, ou de ũa maneira ou d’outra, era grave, o levaram muito bem atado e a bom recado caminho da cidade e o meteram na cadea, dando cargo ao carcereiro o tivesse bem arrecadado, que era um famoso ladrão.

A cidade toda estava alvoroçada porque, como este furto fosse de impor-tância e se fizesse a um senhor muito conhecido na terra, estavam todos esperan-do que gênero de morte se daria a tão notável ladrão.

O outro dia logo seguinte detreminou el-rei de ir à Rolação, como sempre tinha por costume, a sentenciar os casos graves que aconteciam. E posto el-rei em seu tribunal, logo foi trazido este triste mancebo para lhe fazerem preguntas e ser sentenciado.

E como este roubo fosse grande e o ladrão se tivesse por notável, detremi-naram alguns homens nobres da cidade de entrar dentro na Rolação pera estarem às preguntas que se fizessem a este homem, entre as quais pessoas que entraram

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dentro ũa delas foi Fabrício, aquele amigo a quem este infelice mancebo havia feito tantas amizades, como atrás temos contado. E posto que entre ambos haviam vivido como irmãos, estava a este tempo o preso tão desfigurado e fora de seu na-tural que dificultosamente o pudera conhecer quem o havia visto em outro estado.

E sendo apresentado este mancebo diante daqueles desembargadores e de Sua Alteza, logo lhe foi preguntado declarasse onde estavam a cópia das peças162 que naquela caixa havia roubado. A isto e a tudo o mais que lhe foi preguntado não respondia outra cousa mais que a morte daquele homem. Confessava ser ele o matador e o homicida, e que, quanto ao roubo, negava não ser comprendido nele. Como ali não havia mais prova que sua confissão e esta somente era bastante pera, polo caso da morte, morrer, foi acordado por comum parecer de todos e de Sua Alteza fosse este homem enforcado pola morte que havia confessado, pois no roubo não havia mais que indícios.

A todo este tempo havia estado Fabrício grandemente atento, postos os olhos em Cornélio, não lhe parecendo poder ser aquele, nem que pudesse vir a tão ínfimo estado um mancebo de tão nobres partes e filho de um mercador tão rico de Coimbra. Porque a este tempo ainda Fabrício e seu pai não haviam sabido da morte do pai de Cornélio em Coimbra. E estando, como digo, postos os olhos nele, veo-se a afirmar ser aquele seu grande amigo Cornélio, por quem ele, des-pois de Deus, tinha a vida e a honra que possuía. E inflamado do grande desejo de lhe restaurar a vida, foi rompendo por meio da gente e, pondo-se diante de Sua Alteza, lhe disse estas palavras:

– Vossa Alteza e este senhores que aqui estão saberão como este homem, que aqui está sentenciado à morte, morre inocentemente e sem culpa, porque a causa de sua morte é confessar haver morto aquele homem que se achou naquele monte, na qual morte ele não foi o matador, nem é o homicida nela porque eu sou o que o matei.

Vendo el-rei aquela novidade tamanha, querer-se um homem condenar à morte sem ser constrangido a isso, ficou espantado, dizendo ao outro que estava preso que era o que dizia naquilo. O qual, alevantando o rosto e vendo que quem o queria escusar da morte era seu amigo Fabrício, que já o havia conhecido, tendo-lhe aquela amizidade que sempre lhe teve, respondeu a el-rei, não fazendo caso de o conhecer, e disse:

– Senhor, nunca Deus queira que eu consinta este homem ponha em si a culpa de que eu sou causador.

A isto repetia Fabrício, a grandes brados, dizendo que ele era o que havia dado à morte aquele homem.

162 A concordância do verbo estavam foi feita com o sentido coletivo do sujeito “a cópia das pe-ças”, e não gramaticalmente com o núcleo.

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A este tempo houve em toda a casa grande rebuliço, assi daqueles senhores que estavam ali pera julgar o caso, como da muita gente que havia entrado a ver as preguntas. E foi tão grande o espanto que a todos causou ũa cousa tão fora de natureza: haver dous homens que cada um deles fazia o possível por se condenar à morte e querer ser homicida naquele caso e o condenado. Isto fez haver na gente tão grande alvoroço e admiração, que todos os que estavam presentes estavam grandemente espantados. E, primeiro que se assossegassem, foi necessário el-rei mandar calar.

A este tempo saiu do meio desta gente que ali havia entrado um homem e se apresentou diante d’el-rei, dizendo:

– Vossa Alteza mande sossegar toda a gente que eu lhe declararei a verdade de tudo isto.

O qual começou a dizer estas palavras:– Se Vossa Alteza me outorgar a vida, eu descobrirei o causador deste rou-

bo e morte, porque no mundo ninguém, senão eu, o sabe.El-rei lhe dixe que ele lhe outorgava a vida, que dixesse tudo o que naquele

caso sabia. E pondo-se diante de Sua Alteza, no meio daquele grave senado, com rosto mui assossegado, cheo de confiança, com ânimo mais que de homem, disse:

– Vossa Alteza há de saber que estes dous homens, que tanto hão trabalha-do sobre pôr sobre si o encargo daquela morte, que nhum deles sabe cousa algu-ma da morte daquele homem que se achou naquele monte, nem quem o matou, nem o como, nem o por que o mataram. Porque eu sou o que o matei, e nisto não hai dúvida nhũa, que logo o provarei no que adiante disser tão claramente, que logo se tenha tudo por entendido.

Se dantes haviam estado naquele senado espantados todos quantos ali es-tavam, agora com muita rezão o estavam muito mais, desejando ver o que aquele homem diria. O qual, aquietando-se a gente, foi prosseguindo, dizendo:

– Vossa Alteza saberá que eu e aquele homem morto éramos dous grandes companheiros e amigos, os quais há muitos anos que não vivemos senão de gran-des roubos que nesta cidade temos feito, pelos quais vivíamos com muito aparato de nossas pessoas, tratando-nos muito bem por onde éramos cabidos, e tínhamos entrada com toda a pessoa nobre desta terra. E por esta causa entrei neste senado, com algũas pessoas nobres que aqui entraram a ver as preguntas destes homens. Sucedeu que eu, por minha indústria e diligência, soubesse daquela caixa de joias ricas que estavam naquela casa, pelo que, chamando meu companheiro, a hou-vemos à mão. E saindo-nos da cidade com nossa empresa acabada, nos metemos naquela grande cova, que naquele monte está, a repartir nossas joias. E porque entre as ditas joias vinha um diamante de grande valor, dixe eu a meu companhei-ro que me coubesse aquele diamante na minha parte, já que eu fui o que havia

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dado o alvitre donde aquilo estava. Ele me respondeu que melhor lhe cabia a ele, pois ele havia entrado dentro na casa e se pôs a risco de ser tomado com o furto. E sobre estas porfias viemos a tanta rotura de palavras que, arrincando eu de um punhal que comigo trazia, lhe dei todas aquelas punhaladas e feridas que todos viram. E quebrando a caixa, a deixei e me acolhi com todas as joias e me meti logo na cidade onde entendi poder estar mais encoberto. E porque vi trazer a este homem preso pola morte e roubo que eu havia cometido, pretendi entrar aqui dentro a ver este negócio em que parava. E vendo ũa estranheza tamanha que não tão somente este coitado punha em si a culpa que não tinha cometido, mas ainda o outro a queria tomar sobre si, não sabendo um nem outro parte de cousa algũa, eu, como sempre os meus furtos fossem de grande habilidade e por eles, além de ganhar dinheiro, quis sempre cobrar fama, não me pude sofrer ver quererem estes homens roubarem-me a honra que eu tinha ganhado com tanta habilidade. E por esta rezão, arrebatado do grande ânimo de que sempre ando acompanhado, me quis apresentar diante de Vossa Alteza, despois de me conceder a vida, pera que soubesse toda a verdade deste caso. Agora Vossa Alteza pode detreminar de mim o que for servido.

El-rei e os desembargadores que ali estavam ficaram tão atônitos e es-pantados do que viam de tamanhas maravilhas que, olhando uns pera os outros, estavam sem se responder palavra, de confusos. E a mais gente estava muito alvoroçada, esperando o que el-rei diria. O qual, despois de se assossegar a gente, virando-se pera o preso Cornélio, lhe disse:

– Dizei, mancebo de bem, qual foi a causa que vos moveu dizerdes que vós éreis o que havíeis163 cometido tal malefício, não sendo assi.

– Já que Vossa Alteza mo pregunta e a verdade do caso está notória, lhe direi toda a verdade. Eu, senhor, fui um homem que despois de ser criado em mui-to mimo e riqueza, à causa de querer conservar e venerar ũa verdadeira amizade que tive com este senhor que aqui está (apontando para Fabrício), me vi por sua causa em tamanha miséria e necessidade, na qual se não viu nenhum homem. E querendo vir em sua busca pera me dar remédio a meus trabalhos, já que por sua causa os padecia, fui eu nisto como em tudo tão pouco ditoso que, chegando-me a ele e pedindo-lhe ũa esmola, me não conheceu. Eu, vendo-me que por todas as partes me rodeava minha desaventura, acheguei a tanto mal que desejei mil vezes dar-me a morte. E saindo-me da cidade com este prepósito, acheguei onde estava aquele homem atravessado de tantas feridas. E estando-o olhando, veo a justiça e lançou mão de mim. Eu, vendo que por aqui se podiam acabar meus trabalhos,

163 No original, as duas formas verbais estão impressas eres e auies, emendadas para éreis e ha-víeis, com a correta expressão da desinência número-pessoal.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

disse e confessei haver morto aquele homem pera que, com a morte que por esta via se me aparelhava, dar remate ao que desejava, que era acabar a vida.

Estava Fabrício ouvindo a seu amigo Cornélio a tragédia de suas desaven-turas e, comovido da verdadeira amizade com que sempre o amou, não pôde re-sistir as lágrimas164 que não fossem testemunhas de sua fé. E com elas correndo--lhe pelo rosto, alevantando os olhos a Sua Alteza, começou a dizer:

– Mui estranho parecerá a Vossa Alteza e a estes senhores que aqui estão querer eu arriscar a vida tão temerariamente onde tão certa era minha perdição. Mas, como a vida e honra que eu hoje tenho me não veo senão por a querer tirar de si este senhor que aqui está preso pera ma dar a mim, achei que não havia di-nheiro, nem riquezas com que poder pagar isto, senão com a mesma vida. E por este respeito me pus neste perigo.

Foi mui louvado d’el-rei e de todos os que ali estavam tamanha fé e verda-deira amizade. E despois do famoso ladrão descobrir onde estavam as joias pera se entregarem a cujas eram, julgou el-rei por última vontade sua que, porquanto ó ladrão ele lhe tinha pormetida a vida, lha outorgava, mas que ficasse à prisão perpétua pera sempre, porque dessa maneira se estrovariam muitos roubos que por sua causa se faziam na cidade.

E que, quanto aos dous amigos, ele mandava a Fabrício levasse a Cornélio, seu amigo, pera sua casa e que cumprisse as obrigações de sua amizade, partindo com ele de suas riquezas pera que vivesse em honra e estado como tão bom ami-go merecia. O qual mandado foi pera Fabrício tão suave que, inda que lhe el-rei julgara por sentença um grande morgado, o não estimara em tanto.

E levando-o pera sua casa, o apresentou a sua fermosa Lucrécia, a qual estimou muito sua vinda, porque era seu natural e pessoa com quem ela se tinha criado em casa de seu pai. E pera que o mundo soubesse quão agardecido era em sua amizade, logo falou a seu pai pera que lhe desse por mulher ũa sua irmã que estava pera casar, com grande dote, do qual os pais de Fabrício e parentes foram muito contentes. E se celebraram as bodas com grande contentamento de todos.

E assi se paga ũa verdadeira amizade.

CONTO V

Que inda que nos vejamos em grandes estados, não nos ensoberbeçamos; antes tenhamos os olhos onde nascemos para merecer despois a vir a ser grandes senhores, como aconteceu a esta marquesa, de que é o conto seguinte.

164 Na língua antiga, resistir era empregado em regência sem preposição, ou com as preposições a e contra.

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Em os confins de Itália, mais à parte do ponente, região alegre e deleitosa, povoada de vilas e lugares, habitava um excelente e famosíssimo marquês que se chamava Valtero, homem mancebo dotado de grandes forças e rara gentileza, não menos nobre em virtude que em linhagem. Salvo que, contentando-se com só o presente, era em extremo descuidado no porvir, tanto que toda sua ocupação era correr montes, voar aves e outros exercícios de caça, de modo que todo o demais tinha posto em esquecimento. E, sobretudo, o mais que seus vassalos sentiam era que não curava de se casar,165 nem queria que lhe falassem em tal cousa, tão embebido andava em seus passatempos.

Dissimularam os seus por algum tempo estas cousas; porém, havendo con-selho entre eles, foi acordado que um que elegeram de mais autoridade lhe fizesse a fala seguinte:

– Vossa prudência e humanidade, encelente senhor, nos dá ousadia pera que qualquer de nós outros em particular, quando o caso o requere, vos possa declarar abertamente sua tenção. Assi que esta mesma me dá a mim o presente atrevimento pera declarar-vos as vontades secretas destes vossos obedientes vas-salos. Como quer que todas vossas cousas, manhas e costumes sejam de tanto valor e a todos pareçam tão bem, que nos temos por mui ditosos sermos166 vas-salos de tal príncipe, só uma cousa nos falta pera de todos ser o contentamento perfeito: é que, senhor, queirais casar-vos e pôr-vos debaixo do jugo matrimonial, porque, se de vossa vida Deus Nosso Senhor ordenar outra cousa, não fiquemos sem herdeiro, que de tão boa linagem desejamos.

Movido o ânimo do marquês com estes rogos, disse:– Forçais-me, amigos, a cuidar em ũa cousa mui alhea de meu pensamento,

porque folgava viver em inteira liberdade que no estado dos casados se acha mui raras vezes. Porém eu quero someter-me a vossas vontades com tal condição: que me prometais e guardeis ũa cousa que vos quero pedir. E é que a mulher que eu escolher, seja quem for, que vós outros167 a sirvais com toda a honra e acatamen-to possível, e que de minha eleição nenhum de vós outros se aqueixe em algum tempo. Baste que vos conceda o casar-me, com muito prazer e contentamento.

Prometeram os vassalos de fazer tudo o que o marquês lhes pedia como homens que não podiam crer que haviam de ver o desejado dia de suas bodas, as quais ele declarou pera certo dia, porque se aparelhassem pera as solenizar com muita magnificência, ao qual todos se ofereceram de mui inteira vontade. E assi se despediram do marquês com grande contentamento.

165 No sentido de “não procurava se casar”.166 No original, na forma seremos, emendada para sermos, por tratar-se de forma infinitiva.167 No original, na forma feminina outras, emendada para a forma masculina outros, de acordo

com o sentido do texto.

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Idos, o marquês, como no ponto que lhe falaram seus vassalos no casamen-to logo lhe passou pela memória a graça e gentileza de Grisélia, sábia e graciosa lavradora que por diversas vezes, indo à caça, havia visto, sendo hospedado em casa de seu pai, Janícola, um rico lavrador, detreminou que Grisélia fosse sua mulher, e portanto lhe assinou a seus vassalos o dia de suas bodas.

Morava Grisélia não longe da cidade onde o marquês tinha seus paços, com seu pai, em um lugarzinho de poucos e pobres moradores, com algum gado que, com a indústria e sagacidade de Grisélia, eram governados e regados grandemente.

Era esta fermosa lavradora de bom parecer quanto à disposição e presença corporal; porém fermosura de ânimo nobre, criação, raro aviso, era excelente. E como era criada a todo o trabalho, não se achava em seu pensamento nhum modo de deleite; antes um grave e varonil coração publicava em defensão de sua honestidade. Era cousa de notar como estimava e cariciava suas ovelhas e servia seu velho pai.

Perto deste lugar havia um fertilíssimo monte de abundante e muita caça onde o marquês vinha a caçar muitas vezes. E como viesse à notícia desta pastora o dia em que o marquês tinha dito haviam de ser suas bodas, rogou a seu velho pai a levasse à cidade pera que em tamanhas festas pedisse ao marquês algũa mercê em recompensa de alguns serviços que em sua casa lhe tinham feito, andando à caça, a qual petição o pai lhe concedeu e ela se concertou no melhor modo que sua possibilidade alcançava, pois o tempo era de festa e prazeres.

Neste comenos fazia o marquês aparelhar com grande diligência vestidos, joias e todo o mais que pera tal caso convinha, os quais vestidos mandava cortar à medida de ũa criada de sua casa, semelhante à estatura de Grisélia.

Vindo o dia tão desejado em que se haviam de celebrar as bodas, acudiram ao paço muitos cavaleiros e damas mui ricamente vestidos. E, em não saber quem seria a noiva, estavam todos suspensos e maravilhados. Mas o marquês, vendo que tudo estava a ponto, tomou consigo seis privados seus e foi-se direitamente à casa do pai de Grisélia, o qual achou que saía de sua168 casa e vinham pera a cidade. E tomando o velho pola mão, se apartou em secreto169 com ele e lhe disse:

– Janícola, já sei que me queres bem e cuido que terás por bem tudo o que a mim me apraz. Portanto queria saber de ti ũa cousa em particular: se assim como sou teu senhor, quererás dar-me tua filha por mulher.

Maravilhado o velho de cousa tão nova, esteve um pouco sem responder palavra. Porém, depois que o temor deu lugar pera falar-lhe, disse:

– Senhor, nenhũa cousa devo eu querer senão o que vós, senhor, tiverdes por bem, vendo que sois meu senhor.

168 No original, com falha de impressão, na forma su.169 Empregado como substantivo, em correspondência semântica com segredo.

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O marquês lhe disse:– Entremos eu e ti e tua filha dentro em tua casa, porque diante de ti tenho

necessidade de fazer certas preguntas a tua filha Grisélia.Entrados em casa, ficando os seus cavaleiros fora, começou sua prática

amorosamente, dizendo-lhe:– Virtuosa e ditosa donzela, eu e teu pai somos contentes que sejas minha

mulher. Creo que não sairás de nosso contentamento. Porém eu quero saber de ti ũa cousa. E é que, quando nosso casamento vier a efeito, que será logo, me digas se estás pronta e aparelhada a eu fazer de ti tudo o que me bem parecer, sem por cousa nenhũa mostrares tristeza, nem em tuas palavras contradizeres cousa algũa.

A considerada donzela, chea de vergonha e tremendo de demasiada alegria, lhe disse:

– Senhor, bem sei que este tão alto favor é muito maior de meu mereci-mento. Porém, se vossa vontade e minha ventura é tal, não digo eu fazer cousa contra vosso parecer; porém nem pensá-la no pensamento, nem nunca, de quanto vós fizerdes nem disserdes, contradizer-vos cousa algũa, ainda que por isso haja de receber mil mortes.

Ouvindo o marquês tais promessas, disse:– Baste isso, que não se espera menos de vosso bom entendimento.E tomando-a pola mão, a tirou fora, diante de seus cavaleiros, dizendo-lhes:– Amigos, esta é, ainda que mal composta, minha mulher e senhora vossa.

Portanto, amai-a e servi-a como é rezão.Entonces, os cavaleiros, com os chapéus nas mãos, se ageolharam, bei-

jando-lhe a mão com muita cortesia cada um por si. Ela, abraçando um a um, os alçou do chão com toda a humildade que podia ser nisto. Mandou o marquês que um deles levasse secretamente a nova marquesa ao paço e a pusesse no aposento de ũa ama sua, de quem muito se fiava, pera que fosse despida dos vestidos que trazia e vestida daqueles ricos que o marquês pera aquele efeito havia cortado.

Vindo o marquês pera o paço, como todos os fidalgos e cavaleiros estivessem tão desejosos de ver a marquesa e vendo que a não trazia consigo, lhe disseram:

– Senhor, mal cumpre Vossa Senhoria sua palavra conosco, que hoje é o dia em que nos ficou de nos dar marquesa, por nós tão desejada.

– Não vos agasteis, amados vassalos meus – lhe disse o marquês –, que já está no paço. E porque em breve possais conhecer quem é, eu entrarei por ela e a trarei em vossa presença.

E despedido deles com a cortesia acostumada, se entrou em o aposento onde estavam a Grisélia vestindo e compondo pera tal efeito, a qual estava já posta a ponto. E o marquês deu-lhe um riquíssimo anel em sinal de desposada. E tomando-a pola mão, saiu o marquês com ela à sala onde estavam já aguardando

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todos os cavaleiros e damas, quando haviam de ver a nova e tão desejada mar-quesa. E disparando grande cópia de estormentos que estavam a ponto, se ouviam grandes vozes que diziam:

– Viva o marquês e a marquesa por muitos anos e bos, amém.Aonde logo foram desposados por um bispo que lhe disse missa. E se cele-

braram as bodas, passando aquele dia com grandes festas e prazeres.Mostrou-se despois em pouco tempo na pobre e já feita nova marquesa tan-

ta graça e prudência, que não mostrava em algũa cousa ser nascida nem doutrina-da na aspereza do monte, senão em paços de grandes senhores, por onde de todos era mui honrada e querida. A qual não se podia crer, tanto que os que a conheciam desde menina na criação do monte se maravilhavam que fosse filha daquele pobre vilão, Janícola, segundo era excelente no modo de seu viver, tratamento, nobreza, cortesia, juntamente com a gravidade de suas palavras, tanto que trazia após si amor e a afeição de quantos a olhavam e serviam. Não só naquela terra, mas em outras remotas províncias era divulgada sua fama, tanto que de muitas partes com grande desejo a vinham ver.

Com tão excelente mulher vivia o marquês em suas terras em muita paz e sossego, e de todos era tido por prudentíssimo, porque debaixo de tanta pobre-za havia conhecida tão sublimada virtude. E não cudeis que esta nobre senhora somente entendesse nos exercícios e governo de sua casa, senão também que, estando o marquês, seu marido, ausente, atalhava e declarava públicos casos e pacificava as discórdias que se ofereciam com prudência e reto juízo. Que todos diziam que Deus Nosso Senhor lhe havia dado tal senhora por Sua infinita mise-ricórdia e rogavam a Deus lhe desse fruto de benção.

Dali a poucos dias pariu ũa filha em extremo fermosa, do qual parto levou o marquês estranho contentamento, e todos seus vassalos fizeram muitas alegrias. E a marquesa a quis criar a seus peitos pera dar a entender o amor que tinha a suas cousas. O qual, por provar sua constância, ordenou ũa cousa estranha, de maravi-lhar, e não digna de louvor. Que mandou a sua ama, que era mui sagaz e cautelosa e de quem ele se fiava em extremo, que tomasse ũa menina que havia trazido do esprital, falecida daquela hora, e, estando a marquesa dormindo de noite na sua cama, lhe tomasse sua filha e lhe pusesse aquela morta, com os próprios vestidos que a sua tinha.

Feito tudo isto com a maior sagacidade e astúcia possível, a marquesa, acordando e achando a seu lado a criança morta, cudando ser sua filha, começou a gritar, chamando por Nossa Senhora, que a socorresse em tamanha aflição. O marquês, que já estava sobreaviso, acudiu muito apressado e meio despido aos gritos da marquesa, e a estuta ama, que também com grandes clamores ajudava a lamentar o desestrado caso.

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O marquês, mostrando-se muito espantado do que havia acontecido, man-dou que tirassem dos braços da marquesa a criança, por aplacar sua paixão, e que se desse logo ordem de se enterrar, o que se fez com toda a cerimônia real. E ele esteve recolhido em seu aposento por espaço de alguns dias em os quais ordenou a um criado seu mui familiar, secretário de suas cousas, que o mais secretamente que pudesse levasse sua filha a el-rei de Polônia, mui familiar amigo seu, pera que a criasse em toda a sorte de bons e virtuosos costumes e, sobretudo, a tivesse tão secreta que ninguém soubesse cuja filha era.

E dali a quatro ou cinco dias detreminou o marquês de visitar a marquesa, a qual achou encerrada, mui triste, em seu aposento. E entrando, mandou que todos se saíssem fora. E ele ficando só com a marquesa, lhe começou a dizer o seguinte:

– Não creo, fermosa Grisélia, que a presente prosperidade vos faça descui-dar do que antes fostes, e a maneira que viestes para minha casa, e da maneira que vos eu tomei por mulher. E na verdade eu vos hei amado e estou de vós bem satisfeito, senão despois que nossa única filha achastes morta. Meus vassalos estão de vós mal contentes e lhe parece cousa áspera ter por senhora ũa mulher baixa, de rústica geração. E eu, como desejo de os ter contentes e em paz, queria que vós tornásseis para casa de vosso pai.

Acabado que a marquesa ouviu isto, nenhum170 sinal de turbação mostrou em seu honestíssimo rosto. Antes, com gentil sembrante, lhe respondeu:

– Sois meu senhor e marido, e podeis fazer de mim o que quiserdes e o que vos bem parecer, porque vos afirmo que não há i171 cousa nenhũa que vos não agrade que a mim me não contente. Isto é o que firmei no meio do meu coração, quando vos dei a palavra de ser vossa mulher, em casa de meu pai.

Considerando o marquês o ânimo e porfundíssima humildade de tal mu-lher, sem conhecer nela mudamento nenhum do que dantes era, senão ũa rara prudência capaz de grande merecimento, atalhou a prática, dizendo:

– Abaste por agora isto, ponha-se silêncio neste negócio até ver se meus vassalos me tornam a importunar mais sobre este caso.

E com isto se despediu.Com esta dissimulação passaram doze anos no cabo dos quais a marquesa

se achou prenhe e pariu um filho, o qual foi um singular contentamento, assi pera a marquesa como pera o marquês e todos seus vassalos. Ao fim de dous anos, sendo já o infante desmamado, ordenou o marquês, por lhe dar outro sobressalto maior e provar sua paciência e constância, que se fosse a marquesa com ele à caça de monte onde folgaria em extremo.

170 No original, com erro de impressão, na forma nenhu.171 Advérbio, no sentido de “nesse lugar”.

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Ela, mui contente e festejada, se vestiu mui ricamente como pera tais festas era necessário, qual convinha a seu estado, não deixando a seu filho como aquela que em extremo grau o queria e amava. E chegados que foram ao monte, mandou o marquês que o jantar (à causa da grande calma que fazia) se fizesse junto de ũa fonte sombria e deleitosa. E detreminando de sair à caça com seus monteiros, en-carregou muito a seu secretário que trabalhasse quanto possível fosse por furtar à marquesa o filho que sempre trazia consigo. E vista a presente, o levasse a el-rei de Polônia, porque o criasse secretamente, juntamente com a filha que lhe tinha mandado. E pera maior dissimulação, mandou o marquês ao seu secretário, logo diante da marquesa, que se fosse à cidade a despachar certos negócios importantes.

Pois, como o marquês fosse saído à caça, e a marquesa se pusesse a dormir debaixo de uns floridos ramos que ali estavam juntamente com seu filho a quem nunca apartava de si, adonde ficou logo dormida e o menino não. Mas antes, alevantando-se de a par da mãe, se alongou algum espaço a brincar com ũas pedrinhas que ali achou. Nisto, o secretário, que não dormia nem estava descui-dado, vendo que ninguém o podia ver, apanhou o nosso menino e o levou onde o marquês lhe tinha mandado.

Quando a marquesa despertou, perguntando pelo menino a algũas mulhe-res e escudeiros que aí estavam, e não lhe dando razão dele, cuidando que algũa fera o houvesse comido ou feito algum dano, os extremos que fazia eram tão grandes que não havia ninguém que não provocasse a grande lástima.

Achegando o marquês e dando-lhe parte da perda de seu filho, foi tão gran-de o pesar que fingiu ter, que não quis comer nem beber, senão logo se partiu pera a cidade. E a marquesa também se pôs em caminho com suas donas e donzelas, que era lástima ouvir o grande choro e pranto que faziam. E logo toda a cidade se vestiu de dó, como era razão, por tão desestrada perda como se havia causado.

O marquês, passados alguns dias, veo visitar a marquesa e lhe disse:– Senhora, minha grande desdita foi em haver-vos tomado por mulher. Pois

por vossa172 culpa hei perdido dous sucessores e herdeiros de meu estado, com que eu e meus vassalos estávamos mui contentes. E vendo eles a baixeza de vossa linhagem e a negligência que tivestes de guardar meus filhos, sou importunado deles que vos mande pera casa de vosso pai e me case com ũa donzela que dizem que é filha d’el-rei de Polônia, dotada não somente de fermosura, mas doutras infinitas virtudes. Portanto, é necessário que, despida de vossos vestidos reais, conforme a vossa natureza, vós vades pera casa de vosso pai, sem por isso vos mostrardes menos contente do que éreis, sendo minha mulher.

A isto respondeu a nobre marquesa:

172 No original, com erro de impressão, na forma vosso.

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– Sempre eu entendi, senhor meu, que entre vossa grandeza e meu pouco merecer não havia porproção nenhũa, não me achando merecedora de ser vossa mulher. E tanto que nesta casa e paço onde me vós fizestes senhora, Deus me é testemunha que em meus pensamentos sempre me tive por indina de tal estado. E a Deus Nosso Senhor dou infinitas graças do tempo que em vossa companhia hei vivido com tanta honra que sobrepuja em extremo grau a meu pouco mereci-mento. E em o demais, aparelhada estou a servir como obediente escrava a vossa nova e desejada esposa, se for necessário, a qual gozeis por muitos anos e bons.

O marquês, como não cansado de a exprimentar em diversas cousas, lhe disse:– Já que vós, fermosa Grisélia, vos ofereceis pera servir minha esposa, eu

quero que fiqueis aqui em casa a dardes ordem ao recebimento e banquetes que se oferecerem, porque entendo que melhor que todos aministrareis estas cousas, com vossa boa diligência e costumada graça.

Ela foi mui contente e ficou em casa feita criada e despenseira. E nisto, com sua costumada prudência, cudava que tinha alcançado muito.

Neste tempo que isto passava mandou o marquês a seu secretário, de quem muito se fiava, com cartas escritas de sua mão, acompanhado de muitos cava-leiros, pedindo a el-rei de Polônia lhe mandasse a filha que lhe tinha mandado. Recebidas as cartas, era tão grande amizade e amor el-rei tinha ao marquês que detreminou de os acompanhar e vir-se com eles.

E assinando dia certo, tomou seu caminho acompanhado de seus vassa-los, levando consigo a donzela que em extremo era fermosa, a qual ia ornada de riquíssimas joias e levava consigo o infante, seu irmão, e chegando em poucos dias em presença do marquês, do qual dele e de seus vassalos foram recebidos em seu nobre paço. E a donzela e o infante agasalhados no aposento que soía ser da marquesa, a qual em figura de servidora de casa chegou a dar os parabéns à noiva e fingida desposada. E despois recebia a todos que com ela vinham. Os es-trangeiros, em ver sua galante cortesia e suave conversação, estavam em extremo maravilhados: era de ver o especial cuidado que tinha de servir e festejar a nova desposada sem se poder fartar de louvá-la de fermosa e avisada.

Detreminados de se assentarem a comer, estando todos com grande con-tentamento assentados, revirou-se o marquês pera sua Grisélia, meo rindo, em presença de todos, lhe disse:

– Que vos parece, Grisélia, esta minha esposada, não é muito fermosa e graciosa?

– Si, por certo, senhor – disse ela –, e não cuido que se ache em todo o mundo outra que mais o seja. Porém, falando agora com mais liberdade, digo e aviso-vos que se vossa mulher há de ser, que lhe não deis a gostar aqueles des-contentamentos e desgostos que destes a vossa passada mulher, porque, como é

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moça e criada em mimo e regalo, não os poderá sofrer nem dissimular como a outra os passava.

O marquês, vendo a generosidade com que isto dizia e considerando aque-la grande costância de mulher tantas vezes e tão fortemente tentada da paciência, com justíssima causa teve compaixão dela e, não podendo mais dissimular, aca-bando de comer, a fez vir e assentar a par de si, dizendo:

– Ó minha nobre e amada mulher, grandemente me é clara e notória vossa lealdade. Não cudo haver homem debaixo do céu que tantas experiências de amor de sua mulher haja visto como eu.

Dizendo isto, com entranhável amor a foi abraçar, tornando-lhe a dizer:– Vós sois, senhora, minha mulher. Nunca outra tive, nem tenho, nem terei.

E esta que vós cudais que é minha esposa é vossa filha, a qual fingidamente fiz que a tivésseis por morta. É este infante vosso filho, é o qual por diversas vezes cudastes ter perdido no monte. Alegrai-vos com vossa boa ventura, pois junta-mente cobrais tudo. E perdoai-me os desgostos que vos tenho dado, pois foram pera mais fineza de vossa honra e gosto meu.

Ouvindo isto, a nobre marquesa de prazer quase perdia o sentido. E com um soberano gozo de ver seus filhos que tantas vezes tivera por mortos saía fora de seu juízo. E querendo ir-se pera eles, desfeita toda em lágrimas, não se pôde escusar de os abraçar muitas vezes. Vendo isto, as damas e senhoras que ali esta-vam, todas à profia, com muito gosto e prazer, a despiram de seus pobres vestidos e lhe vestiram os seus acostumados, composta e ornada de ricas e preciosas joias. Foi pera todos aqueles cavaleiros e damas ũa mui grande alegria esta reconcilia-ção da marquesa Grisélia. E sendo divulgado isto ao povo, se fizeram grandes luminárias e festas por cobrarem a marquesa e filhos que já por mortos tinham.

E com isto viveram despois marido e mulher largos anos com muita paz e concórdia, sempre em serviço de Nosso Senhor. E despois de sua morte deixaram filhos que despois lhe sucederam no marquesado.

CONTO VI

Em que mostra de quanto preço é a virtude nas mulheres, especialmente nas donzelas; e como ũa pobre lavradora, por estimar sua honra em muito, veo a ser grande senhora.

Na mui nomeada cidade de Florença, que está em Itália, em tempo do pri-meiro duque dela, que foi Alexandre de Médices, tão nomeado por suas grande-zas que, além de sua próspera fortuna o pôr no cume de tanta honra, era tão amigo da justiça e do bom governo de sua cidade, que a nenhum príncipe do mundo

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queria dar ventagem. E, por ser tal, era de seus vassalos tão querido e prezado, que todos tinham por dom de Deus haver-lhe dado tal príncipe.

Tinha o duque Alexandre de Médices consigo muitos senhores e fidalgos nobres em sua casa, entre os quais tinha um que, além de ser grande senhor, era tão querido e estimado dele que precedia a todos os mais. Este cavaleiro, que Maurício se chamava, tinha ũa fazenda fora da cidade muito suntuosa, de muita recreação, onde, além do edifício das casas e paços, que era muito pera ver e notar suas estranhas galantarias, tinha muita caça, assi de veados como de outros ani-mais prezados, e grandes tanques de muita pescaria. De modo que de suas portas a dentro estava tão provido de todo o necessário, que podia dar suntuosos banque-tes ao maior senhor do mundo, sem haver mister prover-se de fora de cousa algũa.

Sendo esta casa de prazer desta maneira que tenho contado, era o senhor Maurício tão afeiçoado a nela residir que a maior parte do tempo se achava nela, senão que, como o duque lhe era mui afeiçoado e o tinha por pessoa de entendi-mento alevantado, o ocupava em casos honrosos competentes a sua pessoa.

Havia junto desta fazenda do senhor Maurício um moinho cujo dono era um pobre moleiro que vivia somente de seu trabalho, em companhia de ũa moça, sua filha, a qual, posto que pobre lavradora, era em extremo fermosa. E o que mais era de notar: que resplandecia nela ũa grandeza de ânimo em respeito de sua honestidade que, se a natureza lhe não negara nobreza de estado, não tinha o desejo mais que pedir.

Esta moça foi vista por algũas vezes deste cavaleiro. E, como ele era tão nobre assi em linagem como em riqueza, pretendeu de a requerer e que o havê-la lhe seria fácil cousa, visto os bens que a ela lhe podiam proceder de sua afeição, não entendendo que em ela havia outros preços muito maiores, que era o respei-to de sua honestidade, que ela não sabia trocar por cousa nenhũa que não fosse guiada à sua honra.

Pois vendo-se este senhor cada dia mais obrigado por as mostras que via nesta lavradora, pretendeu de buscar ocasião pera lhe falar onde de ordinário se fazia encontrado com ela, no campo ou na fonte onde ela ia algũas vezes por água pera serviço da casa de seu velho pai. E pera mais a seu prepósito fazer o que de-sejava, pediu licença ao duque pera se ir recrear a sua casa de prazer por um mês, o que o duque lhe houve de outorgar bem contra sua vontade, porque era tanto o que privava com ele que de contino o queria trazer junto consigo.

Mas como este cavaleiro trouxesse mais o intento na pretensão de seus amores que na privança de seu príncipe, antepôs a seu desejo todo o interesse e honra que dali se lhe podia seguir. E detreminado a se partir, convidou alguns seus amigos familiares, com quem tinha estreita conversação, pera se folgarem

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e caçarem neste vergel pera em este tempo poder seguir com mais dissimulação seus amores, aos quais amigos deu conta de sua paixão.

E posto que eles, como pessoas graves, lhe estranhassem muito pôr seu pensamento em tão baixa parte, todavia, vendo que o amor não olha excepção de pessoas, se ofereceram como leais e verdadeiros amigos a o ajudarem e favo-recerem a tudo o que fosse de seu serviço pera o efeito de seu desejo. Vendo-se o senhor Maurício tão favorecido de seus companheiros, não via a hora que se havia de ver diante de quem tinha tomado posse de seu coração.

Chegado que foi a esta sua casa, logo começou a fazer rodas a derredor do moinho pera ver se podia ver ou falar a sua nova enamorada. Mas ela, como tinha bom entendimento, entendendo os meneos de sua tenção, com a maior dissimula-ção que podia se escusava a poder ser vista, nem dele nem de seus companheiros, por não dar ocasião de poderem entender dela aquilo de que ela estava tão isenta. Polo qual Maurício andava tão desesperado e furioso, de se ver desprezado e aborrecido de sua dama.

E vendo que com muitos recados que lhe tinha mandado e dádivas mui ricas que com as tais mensagens lhe tinha oferecido nunca a pudera abrandar a se inclinar a sua tenção, detreminou, com ajuda de seus companheiros, de a roubar de casa de seu pai por força e haver dela contra sua vontade aquilo que nem com rogos, nem com dádivas, nem com amor podia alcançar com seu consentimento. E praticando esta tenção com seus amigos e vendo-os favorecidos a o favorece-rem nesta empresa tanto de seu gosto, assentaram tempo e horas acomodadas e oportunas a seu prepósito.

Era já chegada a noute, estando tudo quieto – e eles tão desinquietados no que pretendiam fazer –, saíram de sua casa com armas ofensivas e defensivas pera algum extremo, se se oferecesse. E endireitando pera casa do pobre moleiro, lhe entraram por força dentro em casa e lhe tomaram a filha que com infinitas lágrimas e suspiros defendia seu casto pensamento. A que o pai, também deses-perado de tamanha força, com essa pequena que tinha pertendia de livrar a filha das mãos daqueles carniceiros lobos.

Mas o cavaleiro Maurício, cabeça desta maldade, se lhe pôs diante com ũa espada nua, enquanto seus companheiros se recolhiam em seus paços com a desconsolada donzela, dizendo que, se queria conservar sua vida e não a perder, sem remédio da salvação de sua filha, que desistisse de sua profia pois não tinha forças pera acabar o que pretendia. A que o desconsolado velho com a maior paixão do mundo se recolheu em sua pobre casa. Ou pera melhor dizer, o fizeram recolher mais por força que por vontade, onde, sem dormir aquela noute, esteve quase toda com mil imaginações, tão desesperadas que em nenhũa achava lugar de consolação.

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Maurício se meteu em seus paços onde achou sua desconsolada dama tão impaciente pera com ele que parecia que de seus olhos saíam vivos raios de fogo. Mas vendo-se sem remédio, cuidando que com palavras o podia mover ou incli-nar ao que fosse rezão e honesto, lhe disse:

– Que cousa hai i no mundo, senhor Maurício, que mais ofenda a honra de um nobre cavaleiro, de que vós vos prezais, que é o fazerdes força a ũa fraca don-zela órfã e pobre de remédio? Se a paixão me dera tréguas de repouso, quisera-vos preguntar o pera quê vos dotou Deus esse nobre estado e ordem de cavaleria que tendes, senão pera defenderdes com vossas forças agravos que se fazem a pobres donzelas. E, pois minha possibilidade hoje nem nunca não tem mais ser que aquela honra que de honrados cavaleiros lhe pode vir, não sei pera que quereis, por um fraco apetite, pôr tamanha nódoa em quem vós sois. Seja-me testemunha minha inocência que sempre vos olhei tendo pera mim que, quando entre os homens fal-tasse virtude e preços de honra, que tudo se achasse em vossa pessoa. Mas, pois eu me enganei na escolha de meus olhos, digo que em vós não se acha senão um ânimo pusilânimo, ũa vontade fementida, um coração de baixo e vil preço. Se isto ofende vossos ouvidos e escandaliza vossa pessoa pera daqui me resultar maiores trabalhos, seja embora, não quero que vos pareça bem cousa minha, que a fortuna não me pode presseguir mais que pôr minha casta inocência nas mãos de um car-niceiro lobo que a pretende destruir. E vós, senhor, cuidais que a probreza de meus hábitos tem encoberto menos virtude que os ricos e soberbos vestidos das grandes senhoras; e cuidais que, por me haver eu criado no campo, reine em meu coração tanta baixeza que, por vos dar a vós gosto, haja de corromper minha prefeição e manchar a honra que até agora tive em tanto preço. Pois estai certo que primei-ro apartará a morte a alma deste corpo que de minha vontade consinta perder o melhor que hai em mim. Quanto mais vos vejo olhardes-me com esses olhos tão irosos, tanto minha vontade mais se contenta, parecendo-me que por esta via vos venha a parecer tão diabo que vos ausenteis de mim.

Neste passo, posto que ele estava irado e impaciente das palavras que lhe tinha ouvido, caiu-lhe tanto em graça o dizer-lhe ela que desejava de lhe parecer um diabo pera que se ausentasse de sua presença, que lhe disse:

– Todos esses males que dizeis que por mim são causados a fim de vossos desgostos, sabei, senhora, que meu coração não solicita nem se afina senão por cousas que vos causem contentamento. E de mim crede ũa verdade: que não foi malícia nem malquerer que me causasse o fazer-vos esta força, senão amor que tem tomado posse de meus espíritos vitais. E assi não pode estar encerrado sem dar mostra do que dentro tem em si. E se vós, senhora, tivéreis sentido o que padeço com vossas esquivanças, creo que não fôreis tão cruel que não tivéreis algũa piedade de dardes remédio a meu mal. Portanto não vos aflijais tanto, que

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eu vos prometo de não tomar de vós senão aquilo que vossa vontade me quiser dar. Recreai-vos e folgai por este jardim. E já que sois senhora de minha liberda-de, sede-o também de minha fazenda: lograi-vos de tudo o que aqui vedes e de mim também, se minha fé merece algũa paga. Aproveitai-vos dos mimos que vos promete vossa boa ventura, disponde de tudo à vossa vontade, que esse será meu contentamento: ver-vos inclinada a vos parecerem bem minhas cousas.

A isto não respondia ela outra cousa senão derramar lágrimas, deitar de si suspiros, bracejando com os braços, fazendo guerra com eles a seus fermosos cabelos. Assi passou com a maior angústia do mundo a maior parte da noute, de que ele, vendo-a tal, por dar lugar àquele primeiro acidente que fizesse termo, a deixou, vendo que já a tinha a bom recado.

Como fragueiro caçador que, depois de tomar a ave na rede, sabe a impaci-ência com que no princípio se pretende soltar e depois toma por vida e quietação aquela vida que dantes lhe era tão enojosa, e como ele, exprimentado já nestes assaltos de amor, pretendeu fazer seu ofício pera depois serem mais festejadas as cousas de seu gosto, e deixando-a e recolhendo-se em outro apousento, se gastou toda a noute passando-a com mais quietação que as passadas.

Tornemos a dar conta do pobre velho, pai desta donzela, que, vendo-se desesperado de todo o remédio possível pera poder cobrar sua filha com aquela honra que ele a perdera, se deitou a dormir, onde passou a maior parte da noute mais em imaginações tristes e continos soluços que em sono. O qual, antes que amanhecesse, se pôs caminho da cidade de Florença onde residia o duque e se-nhor dela, com prossuposto de o comover à lástima e piedade e dar-lhe justiça em um insulto tamanho contra honra de sua filha.

E chegando à cidade a tempo que o duque saía a ouvir missa, se ageolhou diante dele com voz rouca e cansada, derramando por suas brancas barbas lágri-mas que quem o ouvia provocava a grande lástima, dizendo:

– Senhor, se algum dia tivestes piedade de algum homem desconsolado, vos peço e rogo que olheis a desaventura que por tantas partes me rodea e que tenhais compaixão da pobreza deste velho a quem se há feito um agravo tal, que espero em vossa grandeza e costumada justiça que não deixareis sem castigo um pecado tão abominável como este.

E com isto, comovido de grande dor que o atromentava, cheo de suspiros e saluços que o não deixavam ir com sua pártica por diante, olhando com uns olhos piadosos a ũa e outra parte, que todas as pessoas que estavam presentes estavam tão lastimosos de suas lágrimas e suspiros, que o duque, como discreto, vendo que não ia por diante com sua petição, entendendo ser algũa cousa de segredo a demanda deste bom velho, mandou apartar os seus a ũa parte e, tomando só a par de si o desconsolado velho, lhe disse:

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– Amigo, aquietai-vos e com moderação me contai vosso sucesso, que, sendo caso em que se requeira fazer justiça, não olhando encepção de pessoas, eu vos dou minha palavra de a fazer tão inteiramente que vós fiqueis satisfeito.

Vendo o pobre velho que o duque com tão boas razões lhe preguntava o agravo que se lhe havia feito e o nome de quem o havia cometido, e assi mesmo lhe prometia ajuda e justo castigo, merecendo-o o delito, tomou ânimo pera lhe contar por extenso o discurso do roubo e força cometida à pessoa de sua filha, declarando-lhe os nomes, assim do autor desta conjuração como dos que neste feito o acompanharam.

E como temos contado, este cavaleiro era pessoa que mais amizade e pri-vança tinha com o duque que nenhum de seus achegados, pelo qual, espantando--se em extremo do caso, lhe disse:

– Este é um feito tão grave que merece que se faça nele castigo rigoroso. Portanto, homem honrado, olhai bem, não vos erreis acusando ũa pessoa por ou-tra, porque esse cavaleiro que haveis nomeado, que foi o roubador de vossa filha, é homem de bem e sempre há sido e tido por tal de todos os que conhecem. Por onde vos digo de verdade que, se isto que me afirmais com essas lágrimas não é assi, que vos não custará o caso menos que a vida. E também vos digo que, se o negócio é assi como me haveis contado, vos prometo de olhar por vossa justiça e de tomar com grande instância sobre mim a satisfação desse agravo.

Ao qual respondeu o bom velho:– Senhor, é o caso tão verdadeiro que hoje em dia tem minha filha encer-

rada em sua casa, como se fosse mulher pública. E se Vossa Excelência quer exprimentar este negócio mais e mandar lá a saber a verdade, saberá como o que digo é assi e que diante de Vossa Excelência não digo cousa que não seja verdade, que sois meu príncipe e senhor, a quem diante de vossa presença não se deve falar senão verdadeira e religiosamente.

– Pois, se assi é – disse o duque –, i-vos embora pera vossa casa onde, querendo Deus, eu irei hoje comer. E aviso-vos que no caminho não saiba viva pessoa o que passastes aqui comigo.

O bom velho, contente e alegre que não cabia de prazer por haver tão bem negociado, se foi pera sua casa aguardando ao duque que havia de ser o libertador e socorro da honra de sua filha.

O qual, tanto que teve ouvido missa, mandou que lhe aparelhassem cavalos e disse a seus privados que estavam com ele:

– Hei sabido que perto daqui anda um porco javali dos maiores que eu tenho visto. E aviai-vos todos e i-lo-emos a despertar de seu sono e repouso en-quanto se faz horas de comer.

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E saindo-se da cidade com sua gente, se foi direito ao moinho do pobre homem onde mandou que lhe aparelhassem de comer. E depois de ter comido, sem dar parte do que detreminava fazer a seus privados, esteve por um espaço pensativo, cuidando que detreminação tomaria neste caso, porque, por ũa parte, a calidade do feito o movia a castigo rigoroso; e, por outra parte, o amor e ami-zade que tinha a este cavaleiro o suspendia a que não usasse de rigoridade e que mudasse parecer.

Estando vacilando desta maneira, o vieram avisar que os monteiros ha-viam alevantado um cervo o mais fermoso que haviam visto em sua vida, em que se folgou grandemente, porque por este modo se apartou de seus cavaleiros, mandando-lhe que seguissem o cervo. E ele se ficou com os mais privados que eram de seu conselho secreto, que quis que fossem testemunhas do que detremi-nava fazer.

Neste tempo já o senhor Maurício e seus companheiros tinham sabido como o duque andava naquela parte. E não atinando ao que podia ser sua vinda, se foram pera ele dizendo:

– Se a fortuna me fora tão favorável que eu soubera a vinda de Vossa Ex-celência a esta parte, estivera eu e estes senhores mais aparelhados pera servir e hospedar a Vossa Excelência. Mas tomando daqui a vontade com que tudo se oferece, ficará este coração satisfeito.

E com estas palavras se iam endireitando pera os paços deste cavaleiro que, como tenho contado, eram de admiração. A que o duque lhe ia dizendo e dissimulando a paixão que dentro em si levava:

– Eu não sabia que vossa casa estava aqui tão perto. Mas, pois hei vindo aqui a vossa terra, não me irei dela sem ver este fermoso vergel que, pelo que mostra de fora, deve por dentro de ter muito que ver e notar.

E com isto se foram achegando aos paços do senhor Maurício, que ia tão contente com levar a sua casa seu príncipe, imaginando pouco quanto o duque sabia de seus negócios.

Tanto que o Duque e seus companheiros foram apeados de seus cavalos, se acharam dentro de um pátio que era o recebimento destes paços, o qual tinha em si, no meio, um fermoso tanque de água com muitas ninfas feitas de alabastro que, por sutil invenção, faziam grande majestade ao recebimento. Mas como o duque levava o intento a ver se podia alevantar a lebre que estava escondida, fez pouco caso do que via, endireitando aos aposentos de cima, onde lhe foram abrindo todas as casas, que eram de tanta admiração as obras e galantarias que nelas estavam feitas, que davam muito que entender a quem as olhava. E o senhor Maurício andava tão contente em ver que o duque participava de suas cousas que não havia contentamento que lhe chegasse.

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Indo continuando e vendo todos os aposentos, foram ter a ũa sala grande, quadrada, a qual, despois que o duque andou notando e vendo nela muitas histórias que ao vivo estavam ali pintadas, olhando pera ũa quadra da casa, viu estar ũa por-ta fechada. E vendo que por todas as partes por onde tinha vindo tudo lhe tinham aberto, e vendo aquele aposento fechado, suspeitou que ali podia aquele cavaleiro ter a donzela que ele pertendia descobrir. Por onde, virado pera ele, lhe disse:

– Estou tão espantado das grandes cousas que nesta vossa casa tenho visto que me tem o desejo penhorado a não deixar nela cousa algũa que não veja. Por-tanto, me mandai abrir este aposento que, segundo o pensamento me adivinha, deveis de ter aqui vosso tesouro.

Ele, alterado com o sobressalto do mandado do duque, não soube que lhe responder, mais que dizer-lhe:

– Senhor, este aposento não está aparelhado nem concertado como convém pera ser visto de Vossa Excelência. E mais também o caseiro que tem as chaves dele é ido hoje à cidade, por onde haja Vossa Excelência, por seu serviço, passar adiante.

O duque, entendendo estas escusas, não nas aceitando pelo preço que ele lhas queria vender, acabou de se assegurar em o que dantes havia suspeitado. E com rosto airado, lhe disse:

– Mandai abrir esta porta, ou com chaves ou sem elas, porque quero ver os secretos que estão dentro.

Ele, vendo que o que o duque dizia era de quem já entendia algũa cousa, não soube com que se pudesse escusar. E ficando atônito e case convencido, mas tirando, como lá dizem, forças de fraqueza, com a maior dissimulação que pôde, se achegou à orelha do duque e lhe disse, sorrindo-se, como quem deitava o ne-gócio à zombaria:

– Tenho, senhor, aqui dentro ũa minha dama. Não queria que a visse ou-trem mais que Vossa Excelência.

Respondeu o duque:– Pois isso é o que eu venho a buscar. Vejamo-la pera sabermos se é fermo-

sa e se merece fazerdes tanto caso dela.De maneira que, ou por força, ou de vontade, abriu a porta. A donzela que

ele ali tinha forçada, vendo que quem ali vinha era seu príncipe e senhor, com a maior detreminação que pôde lhe saiu ao encontro, descabelada, derramando infinitas lágrimas por seus fermosos olhos, descobertos os peitos, rotos todos seus vestidos. Como mulher desesperada, se deitou aos pés do duque, dizendo:

– Excelente príncipe e senhor, em mim podeis ver a mais sem ventura mu-lher que hai nas desventuradas. Que com grande traição é forçada por quem se há atrevido, com tão pouco respeito de vossa grandeza, a meter-vos no lugar onde

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podeis ser testemunha de sua desonesta vida. Por onde vos peço, como a príncipe e senhor, que me façais justiça.

Quando o duque viu tal espetáculo, havendo compaixão da pobre donzela que com ũa ânsia terríbel arranhava seu fermoso rosto, arrancava e destruía seus louros cabelos, trocendo com a dor que a atormentava suas belas mãos; virando o rosto pera onde estava o senhor Maurício e seus privados, lhe disse:

– Esta é a nobreza e o ilustrar o sangue de vossos passados: roubar as filhas dos pobres vizinhos meus vassalos, que estão e vivem debaixo de meu amparo. É certo que cudais que as leis de meu reino que se hão de quebrantar por terdes es-tado e privança em minha casa. Pois não será assi, que vos prometo que, enquanto viver, que hei de ser presseguidor dos maus e, com rigorosa justiça, vingarei a força que se fizer ao pobre. Quem houvera de cuidar que um cavaleiro criado e nascido em minha casa havia de infamar sua pessoa, forçando as que haviam de ser emparadas e desonrando-as em lugar onde sua virtude houvera de ficar por exemplo a todos? Não sei o que me impide não fazer a vós e a vossos ajudadores cortar as cabeças neste campo como a traidores e salteadores. I-vos de diante de mim, infames, inquietadores do sossego de vossos vizinhos, roubadores da fama da que val mais que vós outros todos juntos!

E com esta paixão, que vivos raios de fogo parecia lançar por seus olhos, virando-se pera ela lhe disse:

– Alevantai-vos, fermosa donzela, e consolai-vos, que eu vos prometo, à fé de quem sou, que eu vos faça tal justiça que minha consciência fique satisfeita e vós contente, e vossa honra repairada do agravo e injúria que tem recebido.

E logo no instante mandou chamar o pai da donzela e todas as pessoas que haviam estado presentes quando lhe fizeram o roubo de sua filha, pera que fossem testemunhas no que pretendia fazer. E tomando pola mão a pobre donzela e estando presentes o pai dela e as mais pessoas de sua casa, com os cavaleiros e fidalgos que haviam vindo com ele, disse:

– Esta é a presa, meus amigos, que eu hoje havia detreminado de colher. E ela veo-nos à mão sem redes nem ladridos de cães. Nisto podeis ver a honra que meus privados dão a minha casa, salteando as pobres lavradoras e roubando as donzelas de entre os braços de seus pais, arrancando e quebrantando as portas dos que vivem seguros debaixo dos privilégios de minha justiça. Se me não fora por olhar ũa cousa que não digo, eu fizera neste caso tão cruel castigo que ficara por exemplo a todos, o qual calo e dissimulo, porque me parece que basta a ver-gonha de se ver diante de nós, convencido de um delito que não merece menos que morte inominosa. O qual receberá de mim perdão, não merecido de seu erro, mas será com condição que logo tomeis por esposa e vossa mulher legítima a esta

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donzela. Porque de outra maneira nem vós nem ela podeis restaurar a honra que lhe tendes tirado.

Dizendo estas palavras ao cavaleiro que a havia roubado – que com os olhos no chão estava tão afrontado que tomara por partido passar antes por qual-quer morte que pel’ aquela afronta –, dizendo mais:

– E daqui por diante a estimareis e lhe querereis tanto quanto até agora lhe mostráveis querer pera outro fim. Porque é tanto seu merecimento que não vo--la dou em menos preço que se ela fora irmã deste duque de Florença, que vo-la apresenta. E além disto, mando, e quero, e ordeno, atentando à pobreza de seu pai, que, polo agravo que de vós há recebido, seja de vossa fazenda dotada em dez mil cruzados, porque, se seu marido morrer sem deixar herdeiros, fique com que viva honestamente. Do qual quero que logo se faça escritura pública e autêntica, tornando de novo a jurar e a prometer. Que, se sei que a tratais d’outra maneira que a mulher deve ser tratada de seu marido, que vos não há que custar menos que a vida.

O cavaleiro, que não esperava por cousa menos que a morte, vendo que se lhe oferecia ũa tanto de seu gosto, se deitou aos pés do duque e com palavras de agradecimento, dizendo que se lhe fazia no caso grande mercê e que ele protesta-va de cumprir os preceitos que lhe eram postos, como Sua Excelência, pola obra ao diante, veria.173

Neste passo não se pode declarar o contentamento que tinha o pobre velho, pai da moça, e a gente que mais havia vindo com ele. E o prazer da pobre don-zela era tamanho que bem o dava a mostrar no contentamento de seu rosto, mais por ver restaurada sua honra, que ela tinha em tanto, que por se ver alevantada naquele estado.

E todos, à ũa voz, assi os da parte da donzela como os cavaleiros da compa-nhia do duque, louvavam em grande extremo a grande virtude e nobreza de que o duque tinha usado com ũa moça tão pobre de remédio, que em tão ínfimo estado estava posta, ficando por esta via a donzela alevantada em honra e estado, e ele engrandecido e louvado pelo benefício que nela fizera.

O qual não se quis partir dali até que em sua presença se celebraram as bodas, com tanta alegria de todos, quanto alvoroço e pesar tinham passado o dia dantes, quando roubaram a desposada. Os desposados e novos casados viveram em muita paz e amor muitos anos, de que houveram filhos que despois lhe suce-deram com muito contentamento, assi deles como de todos os que os conheciam.

Pelo qual caso devemos estimar muito a virtude, principalmente as donze-las pobres, que se não deixem enganar por promessas que o mundo promete, pois

173 No original, na forma viria, emendada para veria, futuro do pretérito do verbo ver, de acordo com o sentido do texto.

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vemos neste discurso desta história quanto lhe sucedeu de honra e estado a esta pobre lavradora por ter em tanto sua castidade e aquele dom de tamanha virtude que debaixo de pobres vestidos tinha encerrado.

CONTO VII

Neste conto atrás, tratei ũa grandeza de ânimo que, por cumprir justiça, usou Alexandro de Médices, duque de Florença, com ũa pobre donzela. E porque este é de outra nobreza sua, que usou com ũa pobre viúva, vai aqui posto. O qual é o seguinte.

Na cidade de Florença havia um mercador muito rico que, por suas merca-dorias e tratos de que usava, tinha ajuntado muitos mil cruzados. E assi, como cada dia se lhe ia acrescentando suas riquezas, assi nele se lhe ia multiplicando tanta avareza que as pessoas que o comunicavam se amiravam como em extremo era tão avarento, que em outra cousa não trazia o sentido, senão em ajuntar dinheiro.

Este, estando um dia vendendo suas mercadorias, tomou quatrocentos cru-zados em ouro que havia vendido e deitou-os em ũa bolsa. E despois de recolher seu fato, se foi pera sua casa a entesourar os quatrocentos cruzados que levava em ouro. E indo polo caminho, fazendo suas contas com a imaginação, lhe acertou a cair a bolsa, e até que chegou a sua casa a não achou menos. Mas entrando em sua casa, tanto que achou menos, esteve para perder o juízo, juntamente com a bolsa. E tornando com grande pressa por o caminho por onde tinha vindo, não encontrava com pessoa a quem não perguntava por ela. E achegando ao último lugar donde tinha saído e vendo que não achava rasto nem novas dela, foi tão grande a paixão que por aquela perda tomou que a cada passo se lhe arrancava a alma. E assi, cheo de dor e aflição, ficou triste e pensativo, não se detreminando no que faria. E quisera antes perder um olho que a sua bolsa.

Polo qual, desejoso de a achar, com grande paixão e dor, se foi ao duque, que era senhor daquela cidade. Que, como sabia que era pessoa que em tudo guar-dava justiça e dava ouvidos, assi ao pobre como ao rico, achegou diante dele e lhe pediu que mandasse Sua Excelência em seu nome apregoar que quem achasse ũa bolsa com quatrocentos cruzados em ouro que os trouxesse diante dele, que ele lhe daria quarenta cruzados de achado.

O duque, que não menos era piadoso pera quem a ele viesse buscar socor-ro, que grave e esforçado onde lhe convinha, lhe concedeu o que pedia, mandan-do logo por toda a cidade apregoar que quem achasse ũa bolsa com quatrocentos cruzados em ouro que a trouxesse diante dele, que ele lhe faria logo dar quarenta cruzados de achado.

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Foi dado o pregão pela cidade e, sendo ouvido de todos, chegou a ouvidos de quem havia achado a bolsa, que era ũa mulher viúva, muito pobre e virtuosa. E ouvindo dizer que davam quarenta cruzados de achado, foi muito leda, enten-dendo que ficar-se com a bolsa seria infernar sua alma e que melhor era, pera quietação de sua consciência, torná-la a cuja era. E que lhe daria os quarenta cruzados que o duque mandava prometer, e que estes podia levar sem encargo de consciência, pois seu dono os dava de sua livre vontade.

E assi com esta detreminação se foi diante do duque e lhe pôs em suas mãos a bolsa que havia achado, assi e da maneira que o mercador a havia perdida. O qual, vendo-a em tão pobre traje e tão mal arroupada, lhe perguntou que mulher era e se tinha algũa fazenda de seu e de que vivia. Ao que ela respondeu:

– Não tenho, senhor, outra cousa de meu senão o que eu e ũa minha filha donzela, com quem só vivo em companhia, ganhamos com nossa agulha, vivendo em amor e temor de Deus. E passamos com nossa pobreza muitas necessidades que só Nosso Senhor sabe.

Ouvindo o duque estas palavras e vendo que a pobreza desta mulher nem o desejo de remediar sua filha donzela foi parte pera se ficar com o que sua ventura lhe havia oferecido, considerando que outrem de mais fazenda e menos necessi-dade a achara e a fizera sua, teve pera si que aquela mulher devia de ser virtuosa e honrada e que era digna de ser grandemente favorecida. E logo mandou chamar ao mercador e lhe disse como a bolsa havia já aparecido, que não faltava mais que cumprir sua promessa àquela mulher honrada que a havia achado.

Folgou em extremo o avarento mercador de haver parecido seu dinheiro. Porém achegou-lhe à alma o ver que havia de dar os quarenta cruzados que tinha prometido de achado, e assi imaginou logo naquele instante um ardil pera os não dar. E foi que tomou a bolsa e vazou o dinheiro em ũa mesa que ali estava e contou-o. E, posto que o achasse certo, com tudo isso, revirando pera a mulher que o havia achado, lhe disse:

– Mulher de bem, aqui nesta bolsa faltam trinta e quatro escudos venezia-nos que estavam de mais dos quatrocentos cruzados em ouro que aqui estão.

A boa velha, afrontada e corrida do mercador lhe dizer que faltava dinheiro na sua bolsa, lhe disse:

– De maneira, senhor, que credes de mim que vos havia eu de furtar o vosso dinheiro? Se eu fora pessoa que de mim se pudera presumir tal, quem me obrigava, tendo eu em meu poder essa bolsa, a trazê-la aqui, senão não querer eu o alheio?

E virando pera onde estava o duque, disse:– E mais digo a Vossa Excelência ũa verdade: que três dias há que tenho em

meu poder essa bolsa e creo que minhas mãos não tocaram em tal dinheiro, nem sei

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se era pouco, se muito, tão fora estive sempre de me aproveitar de nenhum dele. E juro por minha alma que a bolsa lhe entreguei aqui assi e da maneira que a achei.

Com todas estas razões que esta velha afirmava sua verdade, não deixava o mercador de gritar e dar vozes, dizendo que lhe fosse buscar os trinta e quatro escudos venezianos que faltavam, se queria que lhe desse o achado que lhe tinha prometido, senão que não tinha remédio no que pretendia.

O duque, conhecendo a malícia do mercador e tudo aquilo que fazia e dizia era a fim de se escusar de dar o que prometera, entendendo que quanta era a bondade da virtuosa mulher, tanta e mais era a maldade do avarento mercador, e que não tão somente intentava não dar à velha o que de razão lhe devia, senão que procurava enganar também a ele, não querendo cumprir o que debaixo de seu nome e palavra tinha prometido a quem achasse a bolsa, se agastou demasiada-mente, entendendo que a cautela de que aquele infame avarento queria usar era dina de exemplar castigo.

Esteve pera, usando de sua potência, mandar-lhe tirar a vida. Mas refrean-do o ímpeto à ira, com o valor de sua rara prudência, imaginou que a maior pena que um príncipe como ele podia dar a um homem tão ruim como aquele era fazer que com seu engano se ofendesse a si mesmo. E a esta causa, virando-se pera ele, lhe disse:

– Vinde cá. Se isso é assi como dizeis, por que me não declarastes que a bolsa levava mais esses escudos d’ouro, quando me pedistes que mandasse deitar o pregão?

Respondeu meo corrido e com palavras mal forjadas:– Senhor, a falar verdade, não me alembrou dizê-lo a Vossa Excelência.– Tão fraco sois de memória – lhe tornou a dizer o duque –, que fazendo

tanto caso, como de contino fazeis de um ceitil, vos havia de esquecer trinta e tan-tos ducados venezianos que dizeis vos faltam nessa bolsa. Ora eu tenho entendido que vós sois tal que quereis fazer o alheio vosso e que essa bolsa que essa mulher honrada achou não é vossa, pois nela faltam esses ducados venezianos que dizeis. Antes essa bolsa que se achou, sem dúvida nenhũa, é ũa que esse próprio dia per-deu um meu criado com essa mesma soma de dinheiro que essa tem. E pois sendo assi, como é, a mim e não a vós pertence.

E dizendo isto se virou pera onde estava a velha e lhe disse:– Boa mulher, pois quis Deus que achastes esta bolsa com estes cruzados

d’ouro e que não seja a que este mercador perdeu, senão minha, pois a perdeu um meu criado. Eu vos faço graça dela com o dinheiro que tem pera casamento de vossa filha. E se em algum tempo achardes outra bolsa que tenha os quatrocentos cruzados d’ouro e trinta e quatro ducados venezianos, que ele diz que tinha a sua, levai-lha logo a sua casa, sem que lhe tomeis dela nenhũa cousa.

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Recebeu a pobre mulher o dinheiro com grande contentamento. Beijando as mãos ao duque por tão grande mercê, lhe prometeu de fazer o que Sua Exce-lência mandava, sendo caso que achasse a bolsa do mercador. Mas, conhecendo o avarento que o Duque, como discreto, havia entendido sua malícia e a esta causa o queria ofender, com sua mesma cautela pertendeu de o estrovar, dizendo:

– Vossa Excelência, magnânimo senhor, seja servido mandar que esta se-nhora me dê a bolsa que eu sou contente de lhe dar os quarenta cruzados que prometi de achado.

A estas palavras, cheo de cólera e ira, lhe respondeu o duque:– Minha nobreza e o prezar-me de quem sou me impide, falso e ruim ho-

mem, não te mandar dar o castigo que mereces, pois tão desavergonhadamente diante de mim pedes o que não é teu. Tir-te diante de mim174 e não queiras que chegue a justa ira a seu termo. Vai-te pera tua casa e descuida, que quando esta honrada dona achar a tua bolsa eu te fico que ela ta dará.

Não se atreveu o inconsiderado avarento a replicar ao que o duque dizia. Antes, arrependido (ainda que tarde) de não haver cumprido a palavra que prome-tera ao duque, triste e desesperado se foi pera sua casa chorar seu desastre.

E a velha, livre do contrário avarento, dando ao duque as mais encarecidas graças que pôde, também se foi à sua mui contente, donde dali a poucos dias casou a filha com os quatrocentos cruzados, com que viveu mui honradamente.

CONTO VIII

Em que se conta que, estando ũa rainha muito presseguida e cercada em seu reino, foi livrada por um cavaleiro de quem ela em extremo era inimiga, e ao fim veo a casar com ela.

Houve em tempos passados em Espanha ũa rainha a qual, por morte de seu marido, ficou viúva com ũa filha de doze anos, chamada Aurélia, a quem deixou o pai, despois dos dias de sua mãe, por universal herdeira de todo o reino, dando--lhe juntamente licença pera que, tendo idade de se casar, pudesse ela escolher o marido que mais lhe contentasse, sendo de nobre sangue e de louváveis costumes.

Sendo Aurélia de idade de quinze anos, tomou estranha afeição a um moço fidalgo de sua corte, galante e avisado e de grandes habilidades, chamado Pom-peio, o qual, ainda que não era seu igual em sangue, era dotado de tantas virtudes e nobreza que era dino de ser marido de qualquer poderosa rainha. Ele, entenden-do a afeição que Aurélia lhe tinha e sabendo que havia de herdar o reino, pôs tanta diligência em aquentar o amoroso fogo em que havia acendido, que cada hora era mais amado e querido da princesa. E juntamente com isto, por mostrar-se mais 174 Leia-se “Tira-te diante de mim”, ou seja, “afasta-te”, “retira-te”, “sai para longe”.

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dino de a merecer, procurava fazer-se único e encelente em tudo aquilo que sabia pertencer a um nobre cavaleiro com que fizesse sua pessoa mais ilustre. Deste modo não havia em toda a corte, assi entre os grandes como entre os cavaleiros particulares, quem, em justas e torneos, em conversação e em quaisquer autos de cortesia, merecesse maior prêmio nem mais louvor que Pompeo. Por este meio, por onde amor mais acende a seus afeiçoados, troxe algum tempo a Aurélia tão afeiçoada e rendida polo merecimento que via em Pompeio que ele, por muito que se afinasse em lhe querer, lhe não ficava devendo cousa algũa.

Vivendo ambos os amantes neste felice estado, começou-se entender na corte como a princesa estava afeiçoada, de que deu motivo a alguns principais da corte tomarem isso muito mal, porque cada um deles queria ter acerca da princesa aquele lugar e privança que viam em Pompeio. Porque vinham a cuidar que, se aquele cavaleiro vinha a casar com a princesa, vinham a ser súditos e vassalos daquele que era menos que igual, cousa que alguns mal podiam suportar. E a esta causa muitos pretendiam, com muita diligência, fazer de maneira e derramar tal cizânia entre os dous amantes que Pompeio viesse a ser tão aborrecido de Aurélia que o não quisesse ver, nem gostasse de ouvir suas cousas. Porém tudo lhe su-cedia ao contrário, porque quanto mais eles procuravam com falsos testemunhos infamar sua pessoa tanto mais ela o amava.

Vendo estes invejosos que por este caminho não podiam levar a sua adian-te, imaginaram que o melhor modo que se podia dar pera apagar este amoroso fogo era descobrir à mai a secreta afeição da filha. E assi um deles, que mais autoridade tinha diante da rainha, buscando tempo conveniente e achando um dia tal qual o desejava, lhe deu mui particular conta de tudo o que sabia, pondo e acrescentando aquelas cousas que mais fizessem a seu propósito. Entre as mais cousas que tratou, foi estranhar muito pôr a princesa sua afeição em pessoa tão desigual a quem ela era, dizendo que era cousa vergonhosa que de tal pessoa se pagasse175 a princesa, não faltando em Espanha cavaleiros dinos de seu amor, assi em nobreza como em virtudes; e que tivesse por averiguado que, se com tal ho-mem por qualquer via se casasse, que punha a risco de perder o reino, pois jamais a nobreza de Espanha consentiria que um homem de baixa sorte viesse a ser rei e senhor; e que, portanto, lhe pedia e rogava muito, assi pola honra de sua filha como pelo bem do reino, fizesse todas as diligências possíveis pera que o cego amor de sua filha não passasse adiante.

Este conselho que este cavaleiro dava à rainha pareceu-lhe mui importante. E a esta causa, sentindo grande desgosto pola afeição que sua filha tinha a Pom-peio, sem lhe dar a entender cousa algũa, teve dali por diante particular cuidado

175 No sentido de “gostasse de tal pessoa”, “tivesse amizade a tal pessoa”.

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de não consentir apartar de seu lado, por não dar ocasião a Pompeio poder falar com ela tão ordinário como soía, o qual era a ambos de grande descontentamento.

Andava no paço entre as donas e donzelas que nele residia ũa dona de maior autoridade que as outras a quem a mãe tinha encarregado o cargo e gover-no de sua filha. Esta, por lhe parecer que entre quantos cavaleiros na corte havia nenhum era merecedor do amor de Aurélia que com maiores partes a merecesse que Pompeio, teve particular cuidado de conservar nele e nela o fogo em que ambos se abrasavam, desejando em grande maneira que juntos, em alegre matri-mônio, se gozassem. E assi, porque este casamento por algũa via não deixasse de vir a efeito, pretendeu secretamente de os jurar, dando-se ambos as mãos, com promessa de em nenhum tempo as poder dar a nenhũa pessoa, assi ela de esposa, como ele de marido.

Estando as cousas neste estado e a mãe, por todas as vias, pretendendo estrovar-lhe os caminhos pera os dous amantes se poderem comunicar, que era cousa pera que Aurélia andasse ordinariamente triste, a camareira e secretária da princesa, que era esta dona que a mãe lhe tinha dado pera seu cargo, vendo que os dous afeiçoados se não podiam falar com aquela liberdade que antes ti-nham, alembrando-se de ũa cláusula que el-rei deixou em seu testamento acerca do casamento de sua filha, aconselhou à princesa que falasse à rainha, e não tão somente lhe manifestasse a mão e palavra que tinha dado a Pompeio de esposo, mas também a licença que el-rei, seu pai, deixou por testamento: poder ela esco-lher marido à sua vontade.

O qual, ouvido pola princesa, aceitou o conselho. E aquele mesmo dia, oferecendo-se ocasião pera tratar do negócio, foi ver a rainha, sua mai, a seu apo-sento, onde a achou só e lhe falou, dizendo que se enganava se entendia apagar a amorosa chama que entre ela e Pompeio ardia com a traça que tinha dado de lhe tirar a liberdade que tinha de o ver e de lhe falar, porque quanto mais procurava de a apartar a que não o visse nem falasse, tanto mais se lhe aumentava o amor que lhe tinha; e que, pois el-rei, seu pai, deixou ordenado que ela escolhesse marido, usando de tão justa licença, queria que fosse Pompeio, e não se queria pôr em poder de outro nenhum homem, senão no seu, pois por excelências de suas muitas virtudes o merecia; e que, portanto, lhe pedia que não a cansasse em atromentá-la, pretendendo tirar-lhe do coração aquele que, como em forte diamante, nele estava esculpido, porque seria pretender aquilo que não viria a efeito.

Em extremo ficou a rainha triste, vendo a liberdade com que sua filha per-tendia levar aquele negócio, mas com discretas razões pretendeu de a apartar da-quele pensamento. Porém, como tinha deitado tão fortes raízes como eram os pe-nhores do coração, não aproveitou de nada. Assi que, ficando a livre princesa com seu prepósito firme, lhe deu por última resolução que, com sua licença ou sem ela,

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se havia de casar com Pompeio; e que, portanto, lhe rogava que lho não contradis-sesse, senão que, antes, confirmando por bom seu prepósito, fosse contente que ela gozasse da preeminência que pera tal negócio lhe concedia a última vontade de seu pai. Porque, não o fazendo assi, tinha posto em sua vontade pôr por obra sua tão justa detreminação, sem fazer caso de alheios pareceres, e que, quando não bastasse quanto com tanta razão e justiça tinha dito pera o fazer, somente o faria por não quebrar a fé e palavra que a Pompeo tinha dado de casamento.

Vendo a rainha a resolução da princesa, considerando que o negócio estava de sorte que lho não podia estrovar e que o testamento de seu marido lhe não dava lugar pera que reprendesse sua filha, dissimulou sua paixão, como discreta e avisada, vendo que Pompeio, com a nobreza de seu trato e com o valor de suas obras, havia sobrepujado e vencido a injúria que lhe fizera a fortuna em o fazer filho de humildes pais. Tirando forças de fraqueza, fazendo da necessidade vir-tude, lhe disse:

– Já que o amor entre ti e Pompeio está nesse estado, não quero eu ir contra teu gosto, mas queria que este casamento se fizesse com tal resguardo e com tal secreto que não se levantasse no reino algum escândolo. Porque, como tu bem sabes, os grandes dele são de sua natureza tão soberbos e arrogantes que, se à sua notícia176 chegasse que tu te queres casar com Pompeio, todos tratariam de rebelar-se contra ele e nenhum o querer obedecer por seu rei.

– Não posso responder a isso – disse Aurélia –, senão que se faça tudo como, senhora, melhor lhe parecer.

De maneira que, confirmadas por esta via ambas as vontades, tratou-se logo entre elas o que importava por a aquietação e paz do reino. E assi deram ordem que, pera tirar guerras civis e dissensões no reino, era mais conveniente. Mas quis sua aversa fortuna manifestá-lo, antes que se efetuasse, àqueles a quem elas o queriam encobrir. O qual chegando à notícia de Felício, um dos mais prin-cipais cavaleiros da corte e pessoa que em secreto amava sumamente a princesa, ardendo em ũa frágua de ciúmes, disse entre si: “Não queira nem permita o céu que aquela a quem eu tanto amo se goze injustamente com um homem de baixa sorte como Pompeio, e que Felício, que não estimaria mandá-lo, o venha a servir e obedecer.”

Era este cioso cavaleiro de idade de dezoito até vinte anos, porém, ainda que moço, valente e de altos pensamentos. E tinha-se em muito, tanto pola nobre-za de seu linagem, como polo valor de sua pessoa. E tinha pera si que ele só era mais dino de casar com a princesa que todos os do reino. E estando metido em mil imaginações desesperadas, lhe veo à memória, que por qualquer via que fosse, de estrovar a Pompeio o efeito de seu casamento, ainda que fosse com lhe tirar a 176 No sentido de “ao seu conhecimento”.

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vida. E metido nesta detreminação consigo só, sem dar parte disto a viva pessoa, começou logo a pôr por obra seu desejo desta maneira.

Tomou um criado que tinha, fidelíssimo, de quem fiava todos seus secretos, e com a maior soma de dinheiro que pôde ajuntar e muitas peças e joias que tinha de estimável valor, lhe disse que se passasse a França e que na cidade de Paris as-sentasse casa e fizesse um acreditado câmbio em nome de um mercador espanhol chamado Pirro de Aragão, que este nome queria tomar se matava seu inimigo e lhe fosse forçado ausentar-se de Espanha.

No tempo que estas cousas se tratavam, havia concertado Pompeio com a rainha e princesa que um dia, secretamente, se recebessem sem estrondo nem re-buliço dos principais da corte, e que despois de feito se daria ordem a os aquietar.

Não pôde ser isto tão secreto que o não entendesse Felício, aquele cava-leiro que tenho dito, que lhe neste efeito era o principal contrário. E sabendo-o, detreminou de esperar a Pompeio por onde havia de passar. E encontrando-se com ele, deitou mão à sua espada, dizendo:

– Arrinca, covarde, dessa espada, que quero dar-te a entender com a minha que não mereces que a princesa seja tua esposa, nem eres dino de ser meu rei, nem dos que pretendes sê-lo.

Vendo Pompeio estas afrontosas palavras, com muita presteza deitou mão à sua espada, defendendo-se e ofendendo a seu contrário valerosamente. E dan-do-lhe bem em que entender, durou a briga um bom espaço, mas ao fim a sem ventura de Pompeio, que esperava aquele dia ver-se no cume de seu contenta-mento, ficou das mãos de seu contrário vencido e morto.

Logo em um instante chegou a nova de sua morte a ouvidos de sua esposa Aurélia, a qual lhe foi tão amarga e triste quanto pode imaginar quem verdadei-ramente ama. Vendo a seu esposo morto, a quem ela como sua vida queria, como mulher desesperada dizia palavras tais que obrigava a grande dor e lástima a quem lhas ouvia, dizendo que a fortuna lhe fora invejosa com lhe tirar todo seu contentamento. E com mostras de grande paixão se meteu em ũa casa onde por muitos dias não quis ouvir nem falar com ninguém.

O infelice Pompeio, por meo da rainha e de alguns principais da corte, foi enterrado com grande pompa funeral, como pessoa que o merecia, assi polo lugar que a rainha e princesa lhe tinham dado, como por suas raras virtudes que em tudo era excelente.

Despois de ser sepultado e de haver passado alguns dias, por ordem da rainha se juntaram no paço alguns senhores principais do reino e entraram onde a princesa estava recolhida e lhe prepuseram ũa prática, dizendo que não aborreces-se a vida com extremos tão notáveis à sua pessoa, pois as vidas deles não pendiam senão da conservação da sua dela; e que, quando não estimasse a vida pera mais

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que pera só vingar de quem a tirara a seu esposo, que esta somente era suficiente razão por onde devia de a conservar. E assi lhe aconselhavam quisesse escolher marido que fosse merecedor de sua pessoa e poderoso pera lhe dar cruel vingança de quem lhe tinha feito tamanho agravo.

Mas ela, como a chaga era fresca, e a dor grande, e o sentimento não pe-queno, não dava lugar à saúde que lhe prometiam semelhantes remédios. Antes, desconfiada deles, nem de o poder já achar em suas cousas, chamava cada dia a morte, sujeita a imaginações tristes.

Nesta miserável vida viveu alguns prolixos anos alhea de nenhum con-tentamento, despois dos quais, dando tréguas à sua dor, converteu seu ânimo a somente precurar vingar-se da morte de seu amado esposo. E com este prepósito, fazendo juntar no paço os mais nobres e valerosos cavaleiros de Espanha, com claras mostras de triste sentimento, lhe fez semelhante prática:

– Hoje, senhores, se cumpre quatro anos que a maldade e inveja daquele traidor que todos conheceis matou tão sem razão a quem eu havia elegido por esposo e senhor de minha vida e deste reino. E posto que tinha detreminado de me não casar, com tudo isso, forçada do grande desejo que tenho de que a morte de quem tanto quis não fique sem justa vingança, hei mudado parecer. E quero que seja meu marido o primeiro que tomar as armas contra o matador, dando-lhe cruel morte, e me apresentar sua cabeça. Por onde o que convém, nobres senhores e valerosos cavaleiros, é detreminardes-vos nesta empresa, que, quanto ao que me a mim toca, eu vos dou minha fé e palavra de entregar-me singelamente por esposa a quem quer que fizer o que peço, e de entregar-lhe assi mesmo, junto com minha real pessoa, o dote que tenho, que é este reino.

Ouvidos polos circunstantes palavras tão desejadas e com elas a certa pro-messa de tão rico prêmio, cada um prometeu de cumprir o que a todos lhe havia preposto, com o qual, mui contentes, se despediram dela, desejando cada um por si ter aquela ventura que era necessário pera ganhar tanta honra, pedindo ao céu lhe deparasse o fugitivo Felício. O qual, temeroso do que tinha feito, com grande cautela se pretendeu ausentar de Espanha e, com o maior secreto e brevidade que pôde, se passou a França. Fazendo assento na cidade de Paris, se chamava Pirro de Aragão, debaixo de cujo nome e crédito havia posto em câmbio todo seu di-nheiro e joias, que era muito, como já tenho dito. E ali viveu todo este tempo sem que ninguém o conhecesse por quem ele era.

Esteve o reino de Espanha desemparado sem os mais principais cavaleiros por espaço de seis anos, e a causa era porque todos, desejosos de haver a princesa por esposa, andavam em busca de Felício por diversas partes. Pela qual razão sucedeu em este tempo que, como el-rei de Aragão, que era mancebo de até vinte e cinco anos, brioso e de gentil disposição, quisesse casar-se com Aurélia, a man-

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dou pedir por muitas vezes. As quais mensagens ela desestimou, não dando por isso, estando firme na fé e palavra que tinha dado de se não casar senão com quem lhe troxesse a cabeça do homicida.

Pois vendo-se el-rei de Aragão desestimado do que cuidava merecer por quem ele era, não lhe querendo conceder o que pedia, ajuntou um poderoso exér-cito e quis com força de armas conquistar o reino de Castela e tomar por força aquilo que lhe não queriam dar por vontade. E com ũa boa parte de sua gente veo à cidade de Toledo onde a rainha e princesa se tinham recolhido, pretendendo em breve tempo apoderar-se delas e do reino.

Pois, como desta maneira se visse Aurélia cercada e não soubesse a quem pedir socorro que pudesse chegar a tempo, mui triste e pensativa, ainda que detre-minada a morrer antes que ser esposa de outro senão de quem lhe cumprisse sua promessa, com esta detreminação, fazendo as diligências necessárias pera registir aos combates e assaltos que em tanto aperto a tinham posta, se pôs a esperar o que a fortuna dela e de suas cousas ordenasse, a qual se lhe mostrou favorável desta maneira que ouvireis.

Estava Felício, que foi o que matou a Pompeio, como vos tenho contado, na cidade de Paris, muito próspero e favorecido de muitas riquezas que com seus tratos e câmbios tinha aquirido, quando veo à sua notícia o grande aperto em que el-rei de Aragão tinha posto aquela que ele tanto amava. O qual, movido deste amor e juntamente da piadade de sua pátria, desejoso de ver livre daquele aperto o reino onde havia nascido e de mostrar à princesa o grande amor que sempre lhe teve, com a livrar de tão grande e perigoso cerco, se dispôs logo pôr por obra, parecendo-lhe que seguramente podia aventurar-se a fazê-lo sem ser conhecido. Porque, além de haver crescido muito em grandeza de corpo e ter a barba larga e espessa, tinha também o cabelo comprido, segundo naquele tempo se usava em França. E, sobretudo, havia também aprendido a língua francesa, que ninguém julgara a não ser nascido e criado naquela terra.

Pois, pera pôr em execução tão nobre pensamento, vendeu toda sua fazen-da e joias que tinha e, com grande soma de dinheiro e com licença d’el-rei de França, ajuntou um luzido e copioso exército. Logo, como capitão aventureiro, passou com ele os montes Pireneus e se veo direito à cidade de Toledo onde, em sendo chegado, mandou dizer secretamente a Aurélia que era um cavaleiro de França que vinha a socorrê-la e que, se levava gosto em se servir dele na ne-cessidade em que estava, lho mandasse dizer, que ele tinha esperança de fazer alevantar muito asinha o cerco e pôr a ela e a todo o reino em pacífica liberdade, sem que lhe custasse cousa algũa.

Entretanto que este nosso fingido francês aguardava a reposta de seu gra-to oferecimento, el-rei de Aragão, tanto que soube que era capitão aventureiro,

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lhe mandou ũa embaixada, pedindo-lhe que com sua gente o quisesse ajudar a dar fim àquela empresa que tinha começado, à qual embaixada mostrou o nosso francês alegre sembrante. Ainda que era bem diferente o prepósito a que vinha a Espanha, o procurou encobrir e não dar ocasião de algũa suspeita por onde saísse em vão quanto trazia imaginado. Lhe respondeu que ele e sua gente es-tavam prestes a o servir, como em o que tocava à paga dele e de seus soldados, se lhe fizesse boa comunidade.

Houve sobre isto algũas demandas e repostas de parte a parte, e neste co-menos, antes que viessem ao concerto, chegou a reposta da princesa, a qual res-pondeu que não podia crer senão que era algum anjo vindo do céu ajudá-la em tão perigroso trance, como el-rei de Aragão, seu imigo, a tinha posta. Que ela e sua gente estava oferecida a aceitar sua amizade e pôr em suas mãos tudo o que fosse em proveito seu e dano de seu imigo.

Folgou em extremo Felício com a breve detreminação de Aurélia e, que-rendo fazer certa sua promessa, deu logo ordem pera que a cidade ficasse livre.

Estava el-rei de Aragão muito confiado que o novo capitão aceitaria al-guns dos partidos que lhe tinha mandado oferecer. E sendo desta maneira, não se arreceando dele, vivia tão seguro e descuidado como se já o tivera consigo. Polo qual, vendo Felício que a seguridade e confiança d’el-rei era causa que o exército estivesse mal ordenado e pior provido, imaginou que seria muito fácil o desbaratá-lo e destruí-lo.

E portanto, um dia que viu boa ocasião pera fazer a seu salvo o que detre-minava, mandou dizer à princesa que aquela mesma noute saísse fora da cidade com sua gente e d’improviso acometesse a parte de seu contrário; e que no pró-prio instante ele acometeria por outra parte, tomando no meio seus inimigos; e que não descansaria até lhe prender a el-rei, que tantos agravos lhe tinha feito, e pô-lo nas suas mãos, ou ao menos fazer alevantar o cerco que lhe tinha posto naquela cidade.

Não faltou ânimo à fermosa Aurélia a pôr por obra tudo aquilo de que por Felício foi avisada. E vindo a noute, saiu da cidade com muito secreto e silêncio e, chegada desta sorte ao campo do inimigo, fez que as trombetas e atambores to-cassem arma, e com grande ímpeto entrou ferindo no campo contrário. Os quais, não imaginando que ela se atrevera nem ousara sair a dar-lhe semelhante assalto, estavam desaprecebidos de armas e cavalos.

E a esta causa, tarde e com mal ordem,177 animando-os el-rei, o melhor que puderam se misturaram peleijando com seus contrários. A este tempo, o que a princesa combatia por ũa parte, Felício também por outra deu animosamente

177 Leia-se: “desordenadamente”. Na expressão, o adjetivo mal está por mala.

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sobre eles, com que se acovardaram e perderam de tal maneira o ânimo, que em breve espaço foram vencidos e desbaratados.

Vendo el-rei o negócio em tão mau estado, começou a fugir, deixando o campo não com poucas riquezas, muitas munições e petrechos de guerra por des-pojo ao inimigo. Polo qual, desejando Felício de fazer cumprido o serviço a quem ele tanto queria, não deixou de seguir a parte d’el-rei, até que o prendeu e, preso, o pôs nas mãos de Aurélia, sem manifestar a ela nem a ninguém quem era.

Vendo a princesa o grande valor e cortesia do capitão estrangeiro, lhe ficou tão obrigada que lhe parecia não ser bastante toda sua fazenda e reino pera pagar tão grande dívida. Por onde lhe fazia ordinariamente todo o favor e mimos que eram possíveis, guardando o decoro de sua honestidade. Tendo-o sempre por ca-valeiro de França, vendo que nunca falava senão francês e, por esta causa, tinham ambos de ordinário necessidade de um intérprete que declarasse a um o que o outro dizia.

Com estes favores e mercês que a rainha e princesa lhe faziam,178 tinha este nosso fingido francês tanta autoridade com todos, que já era pouco menos que senhor do reino. E em efeito, considerando a princesa que enquanto não se casava estava sujeita a qualquer estranho príncipe lhe fazer guerra, como lhe fez el-rei de Aragão, imaginou, forçada da necessidade, que não podia achar pessoa que mais merecesse ser seu esposo que quem tanto bem lhe tinha feito e a tinha posto em sua honra e estado, dando tantas mostras de valor e prudência em sua pessoa, nas cousas tocantes ao governo do reino. Tendo isto na vontade, falou com a rainha sua mai, a quem pareceu muito bem a detreminação de sua filha, pelo merecimen-to que via no cavaleiro francês, não imaginando cousa tão impossível como era poder ser este cavaleiro de quem tamanhos agravos tinham recebido.

Porém acharam neste caso um inconveniente: e foi haver-se a princesa prometido por mulher a qualquer cavaleiro que a cabeça do homicida Felício lhe trouxesse, por cujo respeito acharam que se não podia fazer o que detreminavam sem se pôr a risco de ficar em reputação de inconstante. Acontecendo vir algum cavaleiro com a cabeça de Felício e achando-a casada com outrem, se aqueixaria dela com muita razão, vendo que não havia conservado a fé e palavra que tinha dado de sua promessa aos cavaleiros que se aventuraram a pôr a risco sua vida por a honra dela. Medindo estas cousas com bom entendimento, acharam que era melhor conselho esperar alguns dias antes que se afeituasse este desejo.

Esta tenção e vontade que a rainha e princesa tinham chegou a ouvidos de Felício, o qual lhe foi causa de grande contentamento, em ver que tão estima-das andavam suas cousas diante de quem ele tanto desejava agradar. Entendendo quanta vontade a princesa tinha de lhe gratificar seus serviços, se dispôs a pôr a 178 No original, na forma fazia, em flagrante erro de concordância, incoerente com o padrão do texto.

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risco sua vida por mão daquela que ele tanto estimava. E confiado em o que por ela e por todo o reino tinha feito, se ofereceu, achando-as ũa vez ambas sós em seu aposento onde ele muitas vezes as ia visitar. Despois de haver tratado algũas cousas tocantes ao governo do reino sem se favorecer de intérprete, porque já neste tempo fingia ter aprendido parte da língua espanhola, e vendo boa ocasião, lhe disse as palavras seguintes:

– Nenhũa outra cousa, poderosas senhoras, me fez partir de França, senão o desejo de servir-vos, mostrando-vos, ilustre rainha, o muito que estimo qual-quer cousa vossa, e a vós, fermosa princesa, o grande amor que vos tenho. Este foi ocasião de me armar em vossa defensão contra o descomedido rei que vos en-treguei vencido e preso, em tempo que se não achava em toda Espanha, nem em toda Europa, cavaleiro que em favor vosso e do reino se movesse. E sobretudo me concedeu o céu tanto favor, que não tão somente hei posto ao reino em liberdade e a ambas vossas ilustres pessoas que estais presentes em seguro estado, senão que, ainda pera mais exalçar minha179 boa ventura, vos pus em vossas mãos a um rei que pretendia levar-vos cativas e tirar-vos a vida, e ter todo o reino sujeito a alvedrio de sua vontade. E posto que este voluntário serviço que vos tenho feito deve com razão fazer-me dino de vossa grandeza pera que vós, poderosa prin-cesa, me não enjeitásseis receber-me por marido, contudo, parecendo-me que este título e esta soberana mercê se me podia ser negada todas as vezes que a eu pedisse sem primeiro fazer o que está obrigado quem há de ser vosso esposo que é apresentar-vos a cabeça de vossa justa vingança, e se sois servida e me prome-teis que, fazendo-vos eu este serviço de vos pôr em vossas mãos a tal cabeça, me recebereis logo por esposo, eu vos prometo de vo-la apresentar em vosso poder, senão que me seja negado tudo o que peço.

A rainha e princesa estavam tão obrigadas pelas virtudes deste cavaleiro que sem esta obrigação o tinham já em suas vontades elegido (a rainha, por genro; e a princesa, por marido). Vendo sua promessa e que queria cumprir o que estava mandado por elas não faltarem em sua fé e palavra, ficaram mui alegres. E a rai-nha, com o consentimento de sua filha, lhe disse as palavras seguintes:

– Senhor, minha filha Aurélia, princesa e sucessora deste reino, está obriga-da a ser mulher de qualquer cavaleiro que lhe oferecer a cabeça de Felício, o ma-tador de Pompeio. E sendo isto verdade, como é, com quanta mais razão estamos ambas obrigadas a vos não negar a vós aquilo que por vossas excelências e claras virtudes tendes merecido. Pelo qual estai seguro e confiado que em cumprimento desta promessa a princesa vos será entregada por esposa e mulher.

Estas palavras cheas de razões tão favoráveis que a rainha dizia foram parte pera que Felício, com nova seguridade e confiança de seu bem, deixasse o 179 No original, com erro de impressão, na forma minhar.

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fingido nome que até então tinha usado. E posto de geolhos diante da princesa, inclinando a cabeça sobre seu regaço, lhe disse:

– Esta é, ó amada Aurélia, a cabeça que pouco há menos de dez anos tanto desejado haveis, como cabeça de vosso capital inimigo. A qual eu agora, não como inimigo, mas como leal servidor vosso, vos apresento. E seja-me testemu-nha a verdade que jamais tive intento de ofender vossa pessoa e que a morte que dei a Pompeio não foi por anojar-vos, senão por não ver em outro poder, senão no meu, quem já tinha feito morada em meu coração, como única rainha e se-nhora de minha liberdade. Porém, se isto não basta, e minha ventura ordenar que vos tenhais por ofendida (o que Deus tal não permita) e que gosteis de tomar de mim vingança, eu sou contente que se cumpra o que vós, senhora, ordenardes. E que deixando qualquer respeito ou obrigação à parte, façais de mim o que mais vos agardar, tirando-me junto com a vida esta cabeça que tanto haveis desejado, porque eu levarei grande gosto que morra meu bem porque viva vosso contenta-mento. Mas, se o amor que vos tenho e sempre tive e os serviços que vos tenho feito e benefícios que vós e vosso reino de mim tendes recebido, e juntamente com isto o desejo de derramar o meu sangue em vosso serviço merecerem algũa paga; se é verdade que em verdadeiro amor há i agradecimento, veja eu em vos receberdes-me em vossa graça, usando comigo de aquela grandeza de que sem-pre vos prezastes, de maneira que o mundo conheça que vive em vosso generoso peito aquela piadade de que sempre vos sei serdes tão amiga.

Aqui deu fim a seu breve e piadoso razoamento. E com muita humildade ficou aguardando a reposta da rainha e princesa, que com grande amiração e es-panto o tinham ouvido. As quais qualquer outra cousa puderam imaginar, antes que vir-lhe à memória ser aquele Felício. Ficaram em grande maneira amiradas.

E combatida Aurélia naquele ponto, assi do odioso abarrecimento que lhe tinha, como da obrigação em que lhe estava, esteve um espaço suspensa, cui-dando qual daqueles dous intentos seguisse: ou aquele que a180 incitava a dar-lhe morte, ou o que a movia a recebê-lo por esposo. Porque em um a levava o nojo e descontentamento que recebeu com a morte de Pompeio; e o outro a inclinava ver que tinha não somente o reino, senão a vida, por sua causa. Mas, resoluta fi-nalmente a antepor ó antigo ódio a justiça, e o benefício à injúria, lhe disse estas palavras:

– Bastante era, ó atrevido Felício, o grande desgosto que com a morte de Pompeio me deste, a provocar-me agora de tal modo a ira que não quisesse mais ver-te. E isto podia bastar-te em recompensa de quanto por mim tens feito, que com te perdoar o delito te livrasse do perigo em que vives, polos muitos cavalei-

180 No original, este pronome está na forma masculina, tendo sido emendado para o feminino por referir-se ao personagem Aurélia.

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ros que por diversas partes hão ido a buscar pera te dar a morte. Mas, porque é condição minha pagar com mui conhecida ventagem o que por mim se faz, não tão somente quero, mostrando-me piadosa, perdoar-te a recebida injúria, como te perdoo, senão, sendo cortês e agardecida, receber-te por esposo e fazer-te senhor de mim e deste reino.

Ditas estas palavras, fez que se alevantasse e, abraçando-o honesta e amo-rosamente, o recebeu por marido. A rainha estimou em muito a discreta resolução de sua filha e também ela, com grande alvoroço, quis abraçar a Felício, rece-bendo-o por genro. E depois de ditas algũas palavras de cumprimento e cortesia de parte a parte, deram ordem como se celebrassem as bodas, das quais não tão somente em Toledo, mas em toda Espanha, houve grandes festas e alegrias.

Os cavaleiros que por diversas partes do mundo andavam em busca de Felício pera lhe dar a morte, tanto que souberam o casamento e da maneira que o matador Felício o alcançara, e como por seu valor se fez dino de tamanho estado, levaram grande gosto que aquele negócio tivesse tão bom e próspero sucesso. E louvando em extremo a princesa, porque assi sabia gratificar os serviços dos valentes cavaleiros, todos de comum parecer e consentimento reconheceram e juraram por seu rei e senhor o valeroso Felício, e ajudaram com muita festa e regozijo a celebrar as alegres bodas.

Despois das solenes bodas estarem acabadas, o novo rei disse à rainha que parecia bem, em tempo de tantas festas, fazer mercê a el-rei de Aragão, que tinham preso, mandá-lo pera sua terra, de que a nova rainha foi mui contente. E assi lhe deram logo liberdade, tomando-lhe juramento e homenagem de jamais por si, nem em favor de outrem, fazer guerra a Espanha, senão que, sempre que necessário fosse, seria fiel amigo. E tomando dele, pera mais seguridade, certos reféns, foi restituído em seu reino. E eles ficaram no seu, onde sempre viveram próspera e pacificamente.

CONTO IX

Que mostra de quanta perfeição é o amor nos bons casados, e como um homem nobre se pôs em perigo da morte por conservar a honra de sua mulher e por a livrar das misérias em que vivia; e como lhe pagou com o mesmo amor.

Na cidade de Veneza, que hoje é governada por senadores, vivia um ho-mem, nobre cidadão e natural da mesma cidade, chamado Sidônio, o qual era ca-sado com ũa dona nobre e ornada de excelentes costumes que, juntamente com as graças corporais que a natureza lhe tinha dotado, se enxergava nela ũa perfeição de ũa vida honrada e virtuosa, com que vivia em grande amor e contentamento com seu marido, a quem ela mais que à sua própria vida queria.

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Viviam estes casados em ũa vida felice. E como ele, além de ser nobre e honrado, tinha e possuía fazendas e riquezas com que vivia em honra e quietação, também era tão zeloso de sua honra que nunca queria consentir que ninguém a respeito dela o agravasse.

Residia na mesma cidade um mancebo mercador estrangeiro que havia vindo ali assentar casa com seu trato e mercadorias. O qual, vendo-se favorecido de muitas riquezas que possuía, era tão soberbo e arrogante que lhe parecia que tudo o que quisesse ou intentasse lhe havia de obedecer. Este acertou a pôr os olhos em Eugênia, que assi se chamava a mulher de Sidônio, este nobre cida-dão de que temos falado. E como ele desse em a namorar e presseguir, assi em meneos de seus inquietos passos, como em mensagens que procurava por via de algũas mulheres que, obrigadas polo interesse que dele tiravam, se ofereciam a semelhantes mandados.

Eugênia, como temos contado, tinha tanto respeito à sua honra e à fé que devia a seu marido, e sobretudo o intento de não ofender a Deus. Temerosa de se não entender na terra estas cousas, andava tão triste e pensativa que, dando repos-tas a quem tais recados lhe trazia, conformes à sua honra e virtude, mais trabalho tinha de dissimular em apagar o fogo em que este desinquieto se abrasava, que se escusar de seus mal concertados recados. E a esta causa andava de contino tão malenconizada, sendo d’antes aos olhos de seu marido alegre e contente. Agora vivia nela ũa contínua tristeza que seu marido se maravilhava de a ver assi.

E perguntando-lhe algũas vezes a causa de seu pouco contentamento, ela sempre lhe respondia com ũas escusas leves e de pouco fundamento. E a rezão era porque, como mulher avisada e prudente, não queria que viesse às orelhas de seu marido tal cousa. Não por ele desconfiar de sua honestidade, senão por o não pôr em risco de algum desastre com o mercador, segundo conhecia a condição de seu marido ser no ponto de sua honra tão belicoso. De modo que tanto trabalhava de se escusar com meos honrosos a quem na presseguia, como de encobrir a seu marido a causa de sua tristeza.

Mas Sidônio, como homem que se prezava de bom entendimento, detremi-nou de tomar sua mulher um dia em ũa câmara fechada e, com palavras cheas de cólora e soberba, se começou a gastar demasiadamente, dizendo:

– Senhora, já muitas vezes vos tenho pedido e rogado me digais a causa de vossa contínua tristeza, e sempre me respondeis tão fora de prepósito que estou detreminado a não sair desta casa sem o saber. Porque, sendo vós minha amada mulher, a quem eu tenho por coroa de minha honra e alívio de meu pensamento, e onde se recream meus sentidos, não consentirei que em vossa alma viva nenhum desgosto sem eu ser participante. Portanto, vos rogo e peço me digais a causa de

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vosso descontentamento, senão vos juro a quem sou de por estas mãos tomar de vós a vingança que vossa pouca fé merece.

E com estas palavras se inflamou em tamanha cólora que Eugênia, que queria e temia a seu marido, por se não pôr em estado de maior infâmia, perten-deu de lhe descobrir o que passava. E estando neste prepósito lhe disse:

– Marido e senhor, a quem eu tenho dado as chaves de meu coração, é tanto que temo de dar-vos nenhum desgosto que quis antes sobre mim padecer a pena que esta tristeza me causava, que dar ocasião de nenhũa tristeza vossa. Posto que vos rogo por o verdadeiro amor nosso, e por aquela fé e amizade, e polo preço e estima que sempre em vosso coração tive, que não seja parte nenhũa cousa das que aqui disser pera que vosso nobre peito se escandalize; antes, com tal discirição vos hajais que, vencendo-vos a vós mesmo, se conheça vossa discirição181 e prudência.

Isto dito, lhe contou quanto o desinquieto mercador andava porque ela se inclinasse a seus desatinos e como, ainda que ela precurava apartá-lo de seu mau prepósito, em nenhum modo queria deixar de pressegui-la. As quais cousas lhe dobravam a pena: a ũa, por ver que não podia dar a sua pessoa nenhum aumento de honra aquele enfado importuno; a outra, considerar que o querer tirá-lo que a solicitasse lhe parecia impossível, sem lhe dar a ele conta daquelas cousas; e que, se lha dava, temia algum mau sucesso. Assi, por estar duvidosa o que nisto faria, se a achava de contino malenconizada e triste.

Despois que Eugênia disse a seu marido a verdade do caso e ele ficou sa-tisfeito que assi era, lhe disse:

– Eu, senhora, estou muito seguro de vosso amor e lealdade pera comigo. E por esta causa não quero que por amor das parvoíces desse doudo vós esteis desgostosa, como até aqui haveis estado, senão que vivais com contentamento e liberdade, pois me tendes a mim satisfeito. E quanto a ele, deixai-o doudejar quanto quiser, que, como vós fordes pera comigo quem sempre fostes, eu satis-feito, minha honra segura, o mundo contente.

E dizendo isto, sem dar mostra de nenhum pesar, se partiu de casa. Ficou, contudo, Eugênia, conhecendo a condição de seu marido, temerosa de algum triste caso. E depressa saiu verdadeira sua suspeita, porque, em chegando Sidônio à praça, lugar onde os mercadores residiam, e vendo ali o que pretendia ofendê--lo, lhe disse que, se não deixava de dar fastio e pesar à sua esposa, lhe daria a entender como era mui malfeito solicitar desonestamente as mulheres honradas.

O indiscreto mercador, que por as muitas riquezas que tinha imaginava que tanto o haviam de temer todos quanto por rico o estimavam, respondeu dizendo:

181 Forma mantida como no original, nas duas ocorrências deste período, considernado-se a possi-bilidadade de suarabácti, com a letra c sendo pronunciada como oclusiva velar surda.

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– Minha vontade é livre e vós não lhe haveis de pôr leis a que se sujeite. E além disto entendei que vossa mulher não é mais privilegiada que as outras. E estai certo que, se ela quer, que ela vos fará ter paciência, porque não sois vós o primeiro nem o derradeiro a quem as armas de Anteão182 ornem sua cabeça.

Não teve paciência Sidônio a ouvir tão livres palavras sem vingar-se. E assi, acendido em ira, lhe disse:

– Nem tu, traidor, solicitarás mais a minha mulher, nem eu darei lugar pera que eu me arme dessas armas que dizes.

E dizendo isto, posto a mão na sua espada, com tal ímpeto se foi pera ele que logo deu com ele em terra morto.

Feita nesta forma sua vingança, com a maior pressa que pôde se foi reti-rando, té que, desconhecido, chegou a um porto de mar onde, tomando ũa barca com a maior diligência que pôde, se afastou de sua desejada pátria e se passou a um estado do duque de Ferrara. E dali se meteu na mesma cidade de Ferrara, cheo de muita ânsia e paixão por lhe não ser possível despedir-se de sua mulher e seus queridos filhos. Os quais, em lhe chegando aos ouvidos a desastrada nova, ficaram com tanta angústia e pesar quanta se pode imaginar em semelhante caso.

A Senhoria de Veneza, que quer que todos os lugares de sua cidade estém seguros, em especial os públicos onde os mercadores têm sua contratação e merca-dorias, vendo este repentino caso, se indinou de tal maneira contra o matador que logo lhe foi tomada toda sua fazenda. E não contente com isto, pera terror e exem-plo dos mais, apregoaram segundo a ordem de suas leis e pormeteram dous mil cruzados a qualquer que, vivo, o entregasse, e mil a quem trouxesse sua cabeça.

Foi esta triste nova de grande dor e sentimento ao nobre Sidônio. E não lhe pesava tanto de haver perdido sua fazenda, nem o estar desterrado, com tanto perigo de sua vida, da insigne cidade onde havia nascido, quanto por haver de estar apartado de sua mulher, a quem como sua alma amava, e de seus filhos, que eram o lume de seus olhos.

Posto que havia dado ordem como ela e eles se saíssem da cidade de Ve-neza e se viessem onde ele estava, não foi isto cuidado, quando foi sentido e mandado polos senadores, sobre graves penas, que ela nem seus filhos se saíssem da cidade. O qual foi outra nova desaventura: ver que lhe impediam a vista e con-versação daquele que sua sorte lhe dera por marido.

Pois vivendo o infelice Sidônio na cidade de Ferrara, ausente de sua pátria, sem ter de que viver nem de que se sustentar, lhe foi forçado fazer-se soldado do duque de Ferrara, polo qual se sustentava tão miseravelmente que não era po-deroso a poder mandar um real a sua casa, com que se remediasse sua mulher e

182 Anteão, ou Actéon, também Acteão, caçador mitológico, metamorfoseado em cervo pela deusa Ártemis.

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filhos. E por este meio veo Eugênia e um filho que tinha, de dez anos, e ũa filha, de quatorze, a tanta pobreza e necessidade, que era de contino atromentada com choro de seus filhos por lhe faltar o sustentamento necessário.

Vivendo esta pobre senhora em suma pobreza e vendo-se em tamanho ex-tremo de miséria, escreveu ũa carta a seu marido, a Ferrara onde estava desterra-do, dizendo que já não sabia que fizesse; que, se não mandava algum remédio à vida de seus filhos, temia grandemente que a filha, que havia deixado em idade conveniente pera casar, não pusesse a risco sua honra.

Foram de tanto sentimento estas palavras ao afligido Sidônio que lhe che-gou à alma a grande dor que elas lhe causaram. E temendo não viesse após de tantas desaventuras a sua infâmia, com a desonra de sua filha, respondeu à sua mulher que não sentia ver-se desterrado senão por se achar ausente de sua pre-sença e de seus filhos que eram todo seu coração, como ela era sua alma. Mas, pois sua pouca ventura assi o havia ordenado por querer defender sua honra, lhe rogava quanto se podia rogar que àquele honroso estado em que ela sempre havia vivido procurasse sustentar a sua filha, pera que desta sorte se conservasse em sua casa aquela honra que ele estimou sempre em mais que a própria vida. E animando-a, finalmente, que tivesse esperança de cobrar o bem perdido, dizendo que Deus não nega o seu favor a quem Nele espera, o não negaria a ela nem a seus filhos; e que ele esperava em Sua divina majestade que inda o havia de trazer a tempo, onde todos com muito descanso vivessem té a morte; e que ele, entretan-to, lhe assegurava e prometia de fazer quanto fosse possível pera socorrê-los e mostrar-lhe, por obra, que mais atromentava a seu esprito o cuidado dela e deles, que o de si próprio.

Desta maneira viveu a desconsolada Eugênia com seus filhos perto de dous anos, e o sem ventura Sidônio, com as armas às costas, esperando assi, ele em seu desterro, como ela em sua casa, que Deus, por Sua divina misericórdia, lhe abrisse algum caminho de remédio em tamanho trabalho.

Viviam na cidade de Ferrara dous mancebos irmãos, os quais tinham gran-de amizade com o pobre Sidônio. E fingindo um dia casarem ũa irmã fora da cida-de, convidaram a Sidônio que, pela amizade que com eles tinha, os acompanhasse naquele desposório. Que Sidônio singelamente lhe concedeu, não entendendo que onde tanta amizade havia lhe resultasse nenhũa traição. O qual o levaram a ũa horta onde outras vezes já tinha ido a folgar com eles. E não seria entrado nela, quando dos dous irmãos e ajudados de outros companheiros foi preso e, sem remédio, fortemente atado.

De que mostrando-se o triste maravilhar-se e preguntando-lhe a causa por que tão mal guardavam as leis e o honroso estado de amigos, responderam que menos obrigação tinham de amar a ele que a seu pai, o qual estava desterrado não

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somente da cidade de Veneza senão de todo o Estado da Senhoria, a cuja causa queriam livrá-lo do desterro que tinha, fazendo que o levassem a ele a Veneza e o presentassem ós senhores senadores, com que dessem a seu pai por livre, con-forme tinham apregoado.

Quão grandes fossem neste estado as ânsias que rodeassem o combatido ânimo de Sidônio, não quero dizê-lo. À vossa consideração o deixo. Basta dizer que estava o triste certo que, em chegando a Veneza, logo seria entregue nas mãos do cruel algoz pera que lhe tirasse a vida. E não lhe pesava tanto de a perder, senão de ver que ia a morrer a olhos de sua amada mulher, posto que onde quer que ele morresse sabia muito bem pelo que lhe ela queria que lhe havia de ser sua morte de grande sentimento. Mas imaginava que não a sentiria tanto de ouvidas e em ausência, como vendo-a, de sorte que a visse com seus próprios olhos.

Os malfeitores desta conjuração, tanto que o tiveram preso, foram chamar a seu pai e disseram-lhe como tinham já um bom remédio pera o livrar do desterro em que estava e dar-lhe a ganhar juntamente dous mil cruzados. Ouvindo aquelas palavras, o bom velho, como grandemente desejasse tornar a sua casa, se alegrou em extremo e disse que, como do primeiro estivesse certo, do interesse que era o segundo se lhe não dava nada. Os filhos o informaram do que havia de fazer e o levaram à instância onde o pobre Sidônio estava atado. E lhe disseram:

– Haveis, pai, de tirar a vida a este que está aqui presente e levar sua cabe-ça e apresentá-la aos senhores senadores de Veneza. E com isto ficareis livre do desterro em que estais. Ou se vos atreveis a o levar vivo, ganhareis junto com a liberdade os dous mil cruzados que dizemos.

Ouvidas semelhantes palavras pelo miserável preso e vendo que o que ali estava era pai dos traidores, revirando pera ele com sembrante airado, lhe disse:

– É possível, senhor, que consentis que vossos filhos façam tão notável agravo às santas leis da amizade por livrar-vos de um desterro que vos não é posto pena da vida? Querem que ma tireis a mim com tanta infâmia vossa. Há de ser este, por ventura, o prêmio que me dais de eu vos amar sempre como a pai e a vossos filhos como a irmãos, e, por esta razão, haver fiado sempre e de contino minha pessoa e vida de vós e deles?

Comovido o piadoso velho das palavras de Sidônio e considerada sua desa-ventura, não se pôde ter que as lágrimas lhe não viessem aos olhos. E chorando disse:

– Não queira Deus que eu consinta que esta sem razão que meus mal consi-derados filhos vos fazem passe adiante. Antes, da mesma maneira que por pai me haveis tido té agora, quero daqui por diante ter-vos em conta de filho, da própria maneira que tenho aos que dessa sorte vos trataram. Porque antes quero morrer em perpétuo desterro que dar ocasião que por mim se diga que, por livrar-me dele, cometi um feito como este, vil e infame.

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Dito isto, se chegou a ele e o desatou com suas próprias mãos. E estando solto lhe disse:

– Do que agora vos há sucedido aprendei daqui por diante a ter mais res-guardo, porque podeis cair em mãos de quem por ventura vos não fora, como eu, tão piadoso. E, posto que com razão haveis de estar anojado contra meus filhos por vos haverem posto em tal perigo, pois eu dele vos hei livrado, tendes mais obrigação de amá-los que de aborrecê-los, que vos avisaram, pera outro dia sa-berdes guardar vossa vida de semelhantes jogos. E assi vos rogo que lhe perdoeis o mal que vos fizeram, pois vos há sucedido, também carregando a culpa de seu erro, a piadade e amor que mostraram ter a seu pai.

E com isto os fez logo ali abraçar e que tornassem de novo à paz e amigável trato que até ali tiveram.

Pois, vendo-se este pobre veneziano livrado de semelhante perigo, tão con-fuso em si que rebolvendo na imaginação mil fantesias, começou a dizer:

– Agora posso dizer que nasci, pois me livrei de um trance tão perigoso. Mas que me aproveita, triste de mim, viver em tamanhas misérias e trabalhos? Pois ainda não hão de bastar pera deixar de estar oferecido a semelhantes trai-ções, como me agora aconteceram, e juntamente com isto o risco em que está posta a honestidade de minha filha. E se de qualquer maneira eu acabo com a vida fica minha casa posta em extrema pobreza. Pois não há de ser assi: perca-se a vida, e conserve-se a honra! Eu me quero ir a Veneza e quero que minha mulher me conheça por fiel marido, e minha filha por verdadeiro pai. E que, já que eu hei de ser levado por mãos de alguns traidores diante do Senado, que elas sejam as que me apresentem com que fiquem ganhando os dois mil cruzados que se têm prometido a quem me entregar vivo. E desta maneira, posto que a mim me custe a vida, fique minha mulher e filhos fora de pobreza e misérias onde possam con-servar aquela honra que eu sempre tanto estimei.

E com este prepósito se partiu logo secretamente pera Veneza. E, em che-gando a sua casa, se apresentou diante de sua mulher a qual, posto que em ex-tremo o amava e desejava vê-lo mais que todas as cousas do mundo, lhe pesou muito de sua vinda, porque por amor dela pusesse em tanto risco sua vida. E a esta causa, com grande turbação e sobressalto, lhe disse:

– Bem entendo, doce e caro marido, que a vossa vinda é trazer-nos algum socorro, a mim e a vossa filha. Porém pudérei-lo mandar com alguém que a esta cidade viera, sem vos pordes a tão manifesto perigo, porque, se soubessem que aqui estais, humanas forças não seriam bastantes a vos tirar da morte. Portanto, fazei depressa o que vindes a fazer e, por amor de Deus, vos parti logo, porque, se vos sucedesse por esta causa algum dano, me teria pola mais desaventurada mulher do mundo.

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Respondeu ele:– Bem acertais, senhora, em dizer que venho a socorrer-vos, a vós e a vossa

filha. E à verdade, não me traz outra cousa a esta terra mais que isso. E querer dar ordem com que sua honra se não ponha em ocasião de perigo. E por não achar quem melhor isto pudesse fazer, que eu quis vir em pessoa. E mostrar-vos o modo que haveis de ter pera viver com ela honestamente, livre da muita necessidade e trabalho em que agora viveis.

Estava a coitada de Eugênia tão traspassada e temerosa de ver ali seu ma-rido, que toda tremendo lhe dizia que lhe manifestasse depressa a ocasião de sua vinda e se partisse logo logo de Veneza, antes que o sentisse alguém que o fosse acusar ao Senado. Mas ele, fazendo à sua mulher que trouxesse ali sua filha, não quis tê-las mais tempo suspensas; senão, estando ambas em sua presença, lhe disse estas palavras:

– Infinitas cousas, senhora mulher e amada filha, se hão oferecido a meu entendimento, muitas vezes encaminhadas todas ao remédio de vossas misérias. Porém somente ũa me há parecido conveniente pera que vivais em mais descanso que até aqui: e é fazendo que o prêmio que têm mandado estes senhores a quem me puser em suas mãos, vivo, se dê a vós outras. O qual, posto que não iguale com a fazenda que me tomaram, ao menos será bastante a suprir vossas necessi-dades. De sorte que, por esta causa, não tenha ocasião minha filha de perder sua honra e a nossa. Portanto, Eugênia, é minha vontade que logo vades ao Senado e pedi a esses senhores o que segundo seu pregão se deve a quem me entregar em seu poder, vivo. E eu logo me porei em suas mãos, pera que vós, senhora, por este meio, alcanceis o tal prêmio. E eles façam de mim o que forem servidos, que mais quero morrer desta sorte que não dar ocasião a que em nenhum tempo se diga que, sendo eu vivo, perdeu minha filha a honra que até agora com tanta diligência hei guardado.

Fizeram estas piadosas palavras no coração da donzela tanta impressão, que se cobriu o rosto de empacho e vergonha. E tanta lhe causaram aquelas pala-vras que, começando a chorar amargamente sua desaventura, inclinou os olhos e não pôde falar palavra. Mas a mãe, que qualquer outra cousa imaginara e não ao que seu marido vinha detreminado, entre si se queixava por haver escrito o que escreveu da filha, vendo o mal que daquilo se lhe seguia. E assi, vertendo pelos olhos um rio de lágrimas, respondeu desta sorte:

– Tão minha inimiga e contrária me há de ser a fortuna e tão cruéis me hão de ser meus pecados que me hão de forçar a que venda a meu marido, pera ver regada a terra com o seu sangue vertido por mão de um cruel algoz, e que viva eu com o dinheiro com que mo comprarem? Queria eu, se possível fosse, com a mi-nha própria vida resgatar a sua. E pois hei de ser eu tão desumana que o entregue

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pera ser afrontosamente morto pera que eu viva? Não permita o piadoso céu que tal se faça. Antes eu quero morrer que não dar ocasião a que por mim se possa dizer: “Eugênia entregou à morte a seu marido, que mais que a si amava, só por sustentar sua vida e a de seus filhos”.

E virando-se pera a filha que ainda não tinha descansado de seu choro, lhe disse:– Olha, filha minha, a que estado tão miserável havemos chegado. Pois teu

piadoso pai, porque nos sustentemos e tu vivas honradamente, se quer oferecer voluntariamente à morte. Dize-me agora se seremos de tão duro coração que o so-framos. Não, nem é justo. Antes eu triste morra, que tal veja nem tal suceda. Basta que quereis, meu senhor, morrer porque eu viva. Ai, triste de mim. Se finalmente estais detreminado a morrer, morramos ambos juntos e acabem-se de ũa vez em nós ambos os trabalhos e a vida.

E dizendo estas lastimosas palavras, rompidas com soluços e eterno choro, chegou a deitar os braços polo colo de seu marido, o qual lhe não quis consentir. Antes, afastando-se dela, lhe disse:

– Não choreis, amada esposa, nem vós, querida filha, se não disponde-vos a cumprir o que tenho dito, porque, quando não queirais fazê-lo, eu mesmo me irei apresentar aos que tanto me desejam.

Ouvindo isto, começaram mãe e filha a dar, chorando, tão lastimosos gritos que se ouviam por toda a rua. Estando elas fazendo estes extremos, sucedeu que, passando por ali acaso o capitão da guarda e ouvindo o choro e vozes que se da-vam, e duvidoso do que seria, subiu pola escada acima e, batendo à porta, o filho que mais junto estava dela a foi abrir, tão supitamente que não teve o pai tempo pera se esconder.

E entrou o capitão acompanhado com seus homens de armas e de justiça com que de ordinário andava. E tanto que viu ali o pobre Sidônio, com a mulher de ũa parte e a filha da outra, que como se fora morto o estavam tristemente cho-rando, se maravilhou em extremo que tivesse atrevimento pera estar em Veneza, e dentro em sua casa, como se estivera livre, sabendo o perigo que corria em estar em tal parte. E muito contente por haver de ganhar o prêmio que se devia a quem vivo o entregasse, mandou logo aos seus lhe atassem detrás as mãos pera o levar assi diante ao Senado.

Causou esta não cuidada e nova desaventura neste pobre homem tamanha dor, que foi muito não acabar ali logo sua trabalhosa vida. E vendo e consideran-do que o trouxe àquela terra somente o desejo de que com sua morte aproveitasse a sua família e que agora havia de ser o proveito do capitão que o levava; vendo a mulher ao marido, e a filha ao pai, já atado e preso pera o levarem à morte, começou-se de novo nelas tão grande pranto, que moveria a piedade e lástima às duras pedras.

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E como não houvesse ordem de outra cousa, rogaram ao capitão que as deixasse ir até o paço, acompanhando-o, porque lá, ele delas e elas dele, fizes-sem a última e derradeira despedida, concedendo-lho o piadoso capitão. E assi, logo vestindo-se ambas de ũas vestiduras negras mal compostas, semelhantes no estado em que iam, se foram detrás dele, pedindo misericórdia, até diante dos senadores. Ante os quais, chegando, o capitão disse:

– Este que aqui trago preso, magnânimos senhores, é Sidônio, aquele ma-tador e homicida que tanto tempo haveis desejado pera dar-lhe o castigo de seu malefício. Aí vo-lo apresento, assi pera que façais executar nele as penas que as justas leis dispõem, como pera que me mandeis dar o que por pregão público prometestes a quem vo-lo entregasse vivo.

Visto pelos senhores o miserável estado em que Sidônio havia vindo, co-movidos de sua desgraça, lhe perguntaram como foi tão simprez e fora de juízo que se veo a pôr em mãos da morte.

Estava neste tempo o triste tão transportado e fora de si, sem ordem de ou-vir palavra nem respondê-la que, vendo-o tal, sua mulher Eugênia se apresentou diante do Senado e com piadoso efeito lhe falou desta maneira:

– Agora ouvireis, poderosos senhores, a maior desaventura que jamais se há ouvido, porque sabereis que este que aqui está preso é meu marido e pai desta sem ventura filha. O qual, vendo a triste vida que com sua ausência tínhamos e a miséria que passávamos à causa de nos haverem tomado toda nossa fazenda, temeroso a que não perecêssemos à fome e que neste extremo não perigasse a honra desta filha, antepondo a nosso remédio sua vida, se veo a Veneza com de-treminação de que esta triste, que isto conta, viesse a este Senado acusá-lo e que, preso, o entregasse pera que deste modo o interesse que estava prometido a quem o entregasse viesse a nosso poder pera nosso sustentamento e pera dote desta fi-lha. E estando eu refusando de fazer tal cousa, e ele mandando-me que o fizesse, parecendo-me a mim cousa cruelíssima e tal que por ela merecia ficar em aborre-cimento à terra e ó céu; e por esta causa estávamos ambas de duas chorando nossa desaventura, pedindo-lhe e rogando-lhe que se tornasse a ir da cidade, e ele firme em seu prepósito nos persuadia que o acusássemos. A este tempo acertou a passar por ali o capitão e, ouvido nosso choro e brados, entrou dentro em casa e no-lo tirou dentre nossos braços e o trouxe aqui a vossa presença, assi atado. Assi que, senhores, ainda que ele queria que eu fosse a que o entregasse, porque nos ficaria daí algum proveito, a piedade que dele tivemos foi causa de que o capitão (Ai de mim!) vo-lo haja trazido pera que lhe deis a morte. Aqui podereis ver, senhores, a quão miserável fim há chegado o piadoso intento que a Veneza troxe a meu ama-do esposo, e a compaixão que nós outras por tão triste caso nos moveu a chorar. Portanto, magnânimos senhores, se algũa hora vossos olhos hão visto e vossos

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ouvidos ouvido cousa mais dina de vossa misericórdia que esta, e se os rogos dos afligidos têm lugar em vossos generosos corações, vos rogo que tenhais piadade de nós outras e permitais ao menos que por esta vez vença o rigor da justiça, que a tão cruel fim nos ameaça, o valor de vossa clemência, em que consiste o bem de nossa esperança.

Aqui pôs fim a seus piadosos rogos, forçada de abundância de lágrimas e mal formados suspiros que a cansada voz lhe afogaram.

Ficaram os senadores amirados de ouvir caso tão estranho, parecendo-lhe cousa dina de amiração que, estando Sidônio condenado à morte, por prover as necessidades de sua mulher e filha, viesse a Veneza pera que o pusessem nas mãos da justiça, pera nelas deixar a vida, por lhes deixar remédio com que vi-vessem. E assi como lhes pareceu infinita a piadade dos pais pera com os filhos, assi também julgaram por grande cousa o amor de Sidônio pera com sua mulher, Eugênia. Sobre o qual, entrando todos em consulta, temperou de sorte em seus nobres ânimos este piadoso ato o rigor da justiça que, movidos à compaixão do marido e da mulher e da filha, lhe deram a ele perdão da vida e fizeram trazer logo ali dous mil cruzados e os entregaram a Eugênia, dizendo:

– Pois que vós havíeis de ser a que entregaríeis a vosso marido, e ele veo a este fim a Veneza, ainda que se ofereceu caso que o impedisse. Não bastante isso, quere-mos fazer com vós o mesmo que fizéramos se vós própria no-lo entregáreis. Portanto nossa vontade é que leveis estes dous mil cruzados para o dote de vossa filha.

E despois disto, revirados pera Sidônio lhe disseram:– E porque a vós, nobre Sidônio, não vos havemos feito perdão da vida só

porque vivais, senão pera que esteis com vossa mulher e filhos livre da necessi-dade e trabalho em que entendemos que até agora vivestes, vos fazemos também mercê dos bens e fazenda que vos foi tomada, com a qual possais viver como homem nobre, em paz e quietação de vosso primeiro estado.

A este tempo alevantou Sidônio os olhos e o esprito – que até então tinha tão derrubado – e, dando ao Senado infinitas graças por ũa e outra mercê, se desculpou, dizendo que nem desejo nem vontade de cometer homicido foi causa que ao mercador matasse, senão a força que pera isso lhe fizeram as sem razões e más palavras que em desonra sua e de sua mulher lhe disse no meio da praça. Porém que dali por diante pertendia viver tal vida que merecesse antes prêmio de merecimento que infâmia de castigo.

Levaram muito gosto aqueles senhores de suas comedidas palavras e acon-selharam-lhe ultimamente que, assi como o dizia, assi o fizesse.

Havendo Sidônio provado em esta forma a misericórdia de tão insignes se-nhores e conhecido que as obras de piedade lhe davam muito gosto, quis intentar

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também se concediam perdão àquele bom homem que se mostrou com ele tão piadoso, quando em seu poder o teve atado. E a esta causa lhe disse:

– Vendo, clementíssimos senhores, ser tanta vossa bondade quanta hoje por experiência tenho conhecido, me atrevo a rogar-vos humilmente favoreçais um nobre e cortês ânimo, cuja cortesia de me haver dado a vida hoje se vos ofe-rece matéria pera que acabeis de espantar todo o mundo com vossa clemência.

Deu-lhe logo particular conta de como, tendo-o preso e podendo-o trazer à morte pera seu resgate, quis antes ficar no desterro que tinha que banhar suas mãos em sangue que jamais o tinha ofendido; acrescentando a isto que a cortesia que aquele nobre ânimo com ele tinha usado lhe parecia sujeito próprio de sua clemência. Pelo qual lhe pedia e rogava gostassem de lhe alevantar o desterro pera que, ajuntando mercê à mercê, lhe ficasse perpetuamente obrigado.

Os juízes, que lhe alembrava bem que não era grande o delito por que aquele homem estava desterrado e que, segundo o tempo em que havia estado no desterro, podia dizer-se que havia passado a maior parte de sua pena, movidos do ogardecido183 ânimo de quem por ele rogava, porque nada houvesse aquele dia em que não usassem de sua manificência, foram contentes de aceitarem quanto ele lhe quis pedir, com tanto contentamento e aplauso de toda a cidade que se não podia mais desejar.

Somente parecia que o capitão não ficava satisfeito, por lhe parecer que, havendo ele entregado o delinquente, devia levar ele, e não Eugênia, o prêmio. Mas deram-lhe a entender que se enganava polas razões já ditas. E assi, dando--lhe o que por direito lhe vinha polo haver preso, ficou também, como os mais, contente.

E desta maneira, a cabo de tantos trabalhos, veo o fiel Sidônio a viver com sua mulher e filhos em alegre vida (pola mercê daquele valeroso Senado) e dar justo galardão ao amigo que, com ele estando preso e atado, usou de tanta cortesia.

CONTO X

Em o qual se trata de um português chegar à cidade de Florença, e o que passou com o duque, senhor dela, com ũa peça que lhe deu a fazer, o qual é exem-plo mui importante pera oficiais.

Um português, ourives da prata e muito bom oficial, chegou à cidade de Florença e, como homem curioso, andou alguns dias na terra notando suas gran-dezas, em especial as cousas de seu ofício, vendo do modo como costumavam fazer suas obras. E querendo ali mostrar sua habilidade, em companhia de outros portugueses que sabiam a língua se foi ao paço e disse ao duque:183 Forma mantida como no original, considerando-se a possibilidade de ocorrência de dissimilação.

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– Senhor, eu vi que o veador de Vossa Excelência andava entre os ourives buscando um pera lhe fazer um gomil, e todos disseram que estavam ocupados em obras que Sua Santidade lhes mandara fazer pera dar a igrejas pobres. Pelo qual nenhum pôde vir porque o não podiam fazer logo. Eu sou ourives, ainda que forasteiro. Se Vossa Excelência se quiser servir de mim, farei muito bem tudo o que me mandar de meu ofício.

O duque lhe preguntou se lhe saberia fazer um gomil de um modo muito galante, conforme a seu intento. E dando-lhe informação como o queria, o por-tuguês lhe disse que si. E vendo e notando bem o que o duque pedia, tirou um carvão que pera isso levava e na parede da casa debuxou um gomil tal e tão sutil-mente feito que satisfez a vontade do duque. Tanto que logo mandou lhe dessem prata e casa com ferramenta do ofício e o mais que fosse necessário pera lhe fazer aquela peça como ali a debuxara. E melhor, se melhor a entendesse. O que logo o veador lhe deu, mandando que o agasalhassem na casa do ourives de Sua Exce-lência que, com boa vontade, o agasalhou.

E ali fez o gomil pola traça e da maneira que o duque lhe mandou, e tal como já o debuxara. E outras peças de menos qualidade que o veador pediu lhe fizesse. E tudo perfeito e bem acabado o levou diante de Sua Excelência que, quando viu a obra, lhe contentou em extremo, que na verdade ela estava tal que não havia mais que desejar.

E o duque, vendo-o, lhe disse:– Está muito bom.De que o português ficou ledo e contente, e lhe beijou as mãos pola mer-

cê. E o duque lhe preguntou quanto lhe havia de dar polo feitio. Ao qual o português respondeu:

– Certo, senhor, assaz paga era pera mim o gosto que tenho em haver acer-tado em servir a Vossa Excelência à sua vontade. Mas porque pera as necessidades da vida tudo é necessário, mande-me Vossa Excelência dar duzentos cruzados.

O duque pediu um cofre e lhos contou em ouro e lhos deu. E disse:– Tomai, que isto e mais mereceis, pois me acabastes a obra a meu gosto e

ao tempo que ma prometestes dar acabada.E tirou mais dez cruzados e lhos deu, dizendo-lhe:– Comprai por estes ũa capa.A este tempo chegou o veador que havia pesado o gomil e, feita a conta da

prata que pera ele lhe dera, lhe disse que faltava da prata quase dous marcos que lhos haviam de descontar. A que o duque acudiu:

– Não faz ao caso, que mais e tanto haverá ele feito de falhas nesta peça. Eu lhe perdoo o que deve e mando que lhe paguem o mais que fez à sua vontade.

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O que tudo se cumpriu logo, e o português beijou as mãos de Sua Exce-lência e se foi, despedindo dele muito ledo. E como homem contente, se ia rindo. Mas o duque que o viu rir, parecendo-lhe que zombava dele de pródigo, pela liberalidade que usara no pagamento da obra, ainda que ele o merecia, o mandou tornar a vir ante si e lhe preguntou de que se ria. E o português lhe respondeu:

– Ria-me, senhor, dos ourives de Florença que, quando me viam estar tra-balhando nesta peça, todos me diziam que perdia o tempo que gastava nela; e que eles não queriam servir a Vossa Excelência, porque tudo o que lhe faziam era pago tarde e mal; e que assi havia de pagar a mi o que lhe estava fazendo. E eu achei o contrairo, porque Vossa Excelência me deu logo tudo quanto lhe eu pedi. E além disso me fez mercês aventajadas, que toda minha vida servirei.

E assi o afirmou com juramento, dizendo que se ria dos que não aceitaram servi-lo e perderam por isso o muito que ele ganhou.

O duque se houve por satisfeito da reposta e lhe disse:– Agora quero que saibais que os ourives vos disseram verdade, que eu lhes

pago assi e pior do que eles disseram. Mas é à causa que, se lhes mando fazer algũa peça, a fazem tão tarde e tão mal que, quando ma trazem, já me não alembra que era o que lhe mandei fazer. E assi não tenho gosto de suas obras, que todas são feitas à sua vontade e não à minha. E pera me satisfazer, não posso em al, senão na paga, e por isso lhes pago não à sua vontade, senão à minha. Que justo é que, pois me servem quando e como querem, sofram a paga como e quando eu quiser, pera que se façam ambas as vontades. Mas vós que me servistes como eu queria, e à minha vontade, foi necessário que eu vos pagasse à vossa, e como quisésseis, porque se fizessem as vontades ambas. Que ao servo mau convém punição e ao bom, galardão.

E lhe disse mais que, se quisesse assentar na cidade, que sempre o favore-ceria para lhe fazer mercês. O ourives lhe beijou as mãos mil vezes e o soube bem servir enquanto viveu na terra.

E neste pequeno conto que é o remate desta nossa terceira parte, podemos tomar exemplo como devemos todos servir a Deus Nosso Senhor, guardando seus preceitos e mandamentos à Sua vontade, confiando que Ele, muito melhor que o duque, terá cuidado de nos pagar à nossa vontade, perdoando-nos os pecados em que por fraqueza cada dia caímos, como o duque perdoou as falhas do ourives. E muito melhor, dando-nos aqui Sua graça pera nos arrepender e fazer penitência de todas nossas culpas. E sobretudo nos dará despois a capa de glória pera O gozar pera sempre, sem fim. Amém.

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A

abas: cercanias, imediações, arredores.

abastar: ser suficiente, ser bastante; bastar.

ABC: abreviação de abecedário ou método de alfabetização.

aboiz: o mesmo que boiz: armadilha de caçar coelhos e aves.

abrochando: unindo as partes da vestimenta com broche ou colchete.

açafate / safate: cestinho de vime de bordo baixo, sem arco e sem asas.

acatamento: cortesia, veneração.

acendradas: afinadas, apuradas, purificadas.

achadego: prêmio a quem restitui coisa achada.186

achegada: aproximada, unida, juntada.

achegados: aliados, próximos por parentesco.

achegas: materiais para construção de edifício.

acinte: de propósito, deliberadamente.

açougue: mercado pertencente à coroa ou ao concelho onde se vendiam objetos de consumo e outras mercadorias; lugar de desordem, de vozerias, de gritaria.

aderências: pessoas que favorecem, protegem ou intercedem em favor de outra.

adúbios: trabalhos realizados com as vinhas para que possam dar frutos.

afincadamente: com afinco, insistentemente.

aforrado: ligeiro, às pressas.

ageazado: o mesmo que ajaezado: ornado com jaezes, a sela e demais equipa-mentos de montaria ricamente trabalhados para servir de adorno.

agro: o agro da fruta, a parte sem casca ou peles por onde entra a faca.

al: outra coisa, coisa diversa.

alabastro: pedra branca, lustrosa, usada para fazer vasos, colunas e pavimentos nos edifícios.

186 Tanto Antônio de Moraes e Silva quanto Raphael Bluteau registram este vocábulo como paro-xítono. José Pedro Machado o registra como proparoxítono: achádego.

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GLOSSÁRIO

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alambéis: panos de listas ou outros enfeites com que se cobriam mesas e assentos.

alcatifa: tapete, pano de lã ou seda de várias cores e lavores usado para cobrir o chão ou o assoalho de uma casa.

alimária: o mesmo que animália, plural latino de animal: nome genérico que convém a toda espécie de animal brutal.

aljôfar: pérola menos fina, menos graúda, desigual.

almexias: vestidura que, em Portugal, os mouros eram obrigados a trajar para distingui-los dos cristãos; vestidura fina para ser usada sobre as roupas interiores.

almoeda: leilão.

almoxarifado: distrito a cargo de um almoxarife: arrecadador, nas comarcas, das rendas reais e dos direitos sobre vinhos, azeites etc.

alvitre: conselho ou projeto idealizado em algum negócio com o fim de alcançá-lo.

amainar: abaixar, recolher a vela do navio.

amea: o mesmo que ameia, pequenos parapeitos construídos sobre as cimalhas de torres e de castelos, as quais serviam de abrigo aos combatentes; sendo separa-das entre si, nos intervalos punham-se os combatentes para disparar tiros.

amoedado: em forma de moeda.

andeja: que anda sempre por fora de casa, em passeio; daí uma conotação nega-tiva, correspondendo a vagabunda, frívola.

antemenhã: antemanhã, o tempo que precede o amanhecer.

antolhar: dar na vontade, apetecer.

apalpando: tentando o ânimo, sondando.

apartamento: ação ou resultado da ação de apartar, separar.

apascentados: providos de alimentos, nutridos.

aposentar: abrigar-se, alojar-se.

arção: a parte elevada da sela: arção dianteiro e arção traseiro.

arras: bens que o marido promete à mulher para o sustento dela após a morte dele.

arremangar: arregaçar as mangas.

arremessão: arma de arremesso: dardo, lança etc.

arribar: chegar ao porto a que se destina.

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arrimar: encostar.

arrobas: plural de arroba: medida equivalente ao peso de trinta e dois arráteis, aproximada hoje para quinze quilos.

arruído: pendência, briga, confusão geradora de algum ruído.

artigo: na expressão artigo da morte: termo, limite, fim.

arvorado: levantado em pé, perpendicularmente.

asinha: depressa, com brevidade.

atilados: aprimorados, com acabamento perfeito.

atorçaladas: ornadas de torçais: cordões de vários fios de seda, de ouro ou prata.

auto: ato, comemoração pública.

avença: ajuste de preço.

avir: acontecer, suceder.

azagaia: lança curta, tendo na ponta ossos de animais, ferro ou madeira, que era usada pelos mouros.

azar: auxiliar, ajudar.

azêmela: o mesmo que azêmola: animal de carga.

azevieiros: libertinos, dados a mulheres.

B

bacio: prato côncavo e fundo.

banhos: proclamas que faz a Igreja Católica de casamentos que estão para reali-zar-se, para que quem souber de algum impedimento o denuncie à Igreja.

baluarte: fortificação militar de defesa dos muros das cidades antigas, delineada com quatro lados e três ângulos exteriores.

barandão: o mesmo que brandão: grande vela de cera; círio, tocha.

barrado: ornado com barras.

barrete: peça antiga de cobertura da cabeça, usada ainda ao tempo do rei de Por-tugal D. João III (1502-1557).

bastidor: espécie de caixilho onde se prende o pano que se deseja bordar.

batel: embarcação pequena levada a bordo de navios para situações de emergência.

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GLOSSÁRIO

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beatilha: pano fino, de linho, seda ou algodão, com o qual se faziam camisas ou toucas, muito usadas por pastoras, beatas e freiras.

bedéis: o mesmo que bedéns, plural de bedém: túnica mourisca, curta e sem man-gas; capa de chuva feita de couro.

Belial: termo bíblico, usado para designar Satanás.

besta: arma antiga com que se disparavam setas.

boceta / boeta: caixa pequena, de papelão ou madeira, e de diversos formatos.

borlador: bordador, pessoa perita no ato de borlar, ou bordar.

borralho: resto de braseiro, com as cinzas ainda quentes.

bracejar: golpear com os braços.

brincos: movimentos que se fazem com o corpo, as mãos e os pés, para gozo ou divertimento.

brocado: rico tecido de seda com desenhos em relevo realçados por fios de ouro ou de prata.

burel: tecido grosseiro de lã.

buzinas: trombeta de chifre ou de metal utilizada pelos caçadores.

búzios: conchas retorcidas que eram usadas como cornetas.

C

cabeçada: na expressão cabeçada do cavalo: espécie de cabresto com argola.

cabeção: na expressão cabeção de capa: a parte que fica ao redor do pescoço, virada para trás.

cabouqueiro: o mesmo que cavouqueiro: o que trabalha em pedreiras, fazendo o buraco e enchendo-o de pólvora para a explosão.

cachopos: meninos, rapazinhos, rapazolas da província do Norte de Portugal.

caçotes: saio antigo, de pano grosso.

caiçalha: o mesmo que caniçalha ou cainçalha: grande quantidade de cães; figu-radamente, multidão de pessoas de baixa condição social.

caixão: caixote utilizado para transportar mercadorias e quinquilharias.

caixeiro: caxeiro: o que escritura os livros de comércio.

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calceteiro: o que faz e vende calças.

camilhas: cama de recosto para dormir a sesta, ou para descanso.

camisa: vestidura de lançaria com mangas, fechada em roda, que se veste por baixo dos demais vestidos: era de homens e de mulheres.

canalha: grupo de crianças, criançada.

capelo: capuz que compunha as capas antigas e que os caminhantes usavam para transportar alimentos.

capuchos: frades de uma das ordens de São Francisco, de hábitos de vida austeros.

capuz: na expressão capuz de dó: capa fechada até abaixo que se usava por dó e luto.

carmesi: o mesmo que carmesim: de cor púrpura muito forte.

cavalgador: cavaleiro.

cavouco: buraco que o cavouqueiro enche de pólvora para fazer explodir a pedra.

cavouqueiro: o que trabalha em pedreiras, fazendo o buraco e enchendo-o de pólvora para a explosão.

ceitil: moeda antiga de pouco valor; foi usada em Portugal do reinado de D. João I (1357-1433) até o de D. Sebastião (1554-1578).

cevadeira: alforje com mantimentos de comer; farnel.

chã: feminino de chão: sem enfeite, simples.

chaça: no jogo da pela, lugar onde a pela faz o segundo pulo, o qual se marca com um sinal.

charneca: terra infértil onde só se reproduzem ervas daninhas.

chiminés: forma popular de chaminés, por influência do francês cheminée.

chocarreiros: os que dizem zombarias, provocando risos.

chocarrices: zombarias, grosserias, ditos engraçados.

chuça: o mesmo que chuço: arma feita com um pau comprido na ponta do qual se embute uma peça de ferro mais comprida e larga do que a de uma lança e no cabo outro ferro agudo chamado encontro; vara ou pau armado de aguilhão.

cilha: correia com que se aperta a sela, passando-a por baixo da barriga do animal.

coifa: rede usada como cobertura da cabeça, dentro da qual se põe o cabelo.

coimbrã: na expressão estrada coimbrã: sabida, trilhada sem atalhos.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

colmilho: dente de cavalos e de porcos que em outros animais é chamado de presa.

comenos: ínterim, momento, ocasião.

comprazer: fazer a vontade de alguém.

concelho: divisão administrativa do território português.

condestabre: condestable, ou condestável: posto militar antigo; nos exércitos era o primeiro após o príncipe.

conhecente: conhecido, o que é do conhecimento do outro.

conjunção: ocasião, ensejo, oportunidade; ajuntamento, união.

consogros: os pais dos noivos.

contador: oficial da fazenda real, segundo o método de arrecadação antiga.

contumácia: obstinação inflexível.

cordovão: couro de cabra curtido, da cidade espanhola Córdoba, onde os mouros os curtiam.

corpinho: o mesmo que colete, ou roupinha sem abas.

correição: correção, emenda de vícios.

corrompimento: ação de corromper, seduzir.

couce: na expressão couce da porta, a peça em que a porta está presa e fixa em seus eixos.

coutada: mata ou terra onde se criam caças para os reis.

couto: lugar isolado, que gozava de alguma autonomia jurisdicional, no qual, muitas vezes, se escondiam foragidos da lei.

cruzado: moeda antiga, lavrada quando o rei de Portugal D. Afonso V (1432-1481) tomou a cruz, ou a empresa da Cruzada; tinha de uma parte uma cruz, como a de S. Jorge, e da outra o Escudo Real coroado, metido na Cruz de Avis.

D

defensão: o mesmo que defensa: defesa, coisa que defende.

defeso: proibido, vedado, onde não se pode entrar.

delibrar: parir, dar à luz.

demasia: o que resta ou sobra.

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320

3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

demo: demônio.

desagastar: fazer passar o agastamento, desapaixonar.

desalivado: desaliviado, aliviado.

desapressar: livrar de aperto, aflição, afronta.

desassisado: sem juízo, louco.

desbarretar: descobrir a cabeça, tirando o barrete.

descabeçado: sem cabeça, com a cabeça cortada.

desfraldar: retirar, subtrair, diminuir.

desmancho: desconcerto, desordem, desregramento.

desméritos: demérito, desmerecimento.

desora/desoras: nas expressões à desora e a desoras: fora de horas, fora de tempo, tarde.

despachadores: os oficiais do reino que despachavam as partes, os feitos; desem-bargadores.

despachar: desembaraçar, dar prosseguimento a um ato.

despacho: a ação de despachar, de desembaraçar.

despejado: desembaraçado, desenvolto, sem pejo.

despejo: desenvoltura, desembaraço no marchar, participar de justas, dançar etc.

despenseira: a que cuidava da despensa, casa onde se guardavam os mantimentos.

despedida: despida, desprovida de roupas.

desposório: contrato solene de casamento, esposórios, esponsais.

despossar: desapossar, tirar da posse, esbulhar.

desservido: o que se caracteriza por não servir ou fazer coisa contra a vontade do mandatário.

detença: demora, dilação.

divido: parentesco por sangue ou por afinidade.

dobrez: fingimento, insinceridade, hipocrisia.

doestos: afrontas, injúrias, palavras desonrosas.

dotar: dar em dote, beneficiar com dote.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

doudejar: fazer ou dizer doidices.

ducados: moeda antiga mandada esculpir por autoridades romanas, as quais eram chamadas de duques.

E

embuçado: encoberto, disfarçado, dissimulado.

empacho: embaraço, obstáculo, pejo.

empeçar: tropeçar, embicar.

empecer: fazer dano, causar estorvo danoso.

emprenhidão: prenhez, gravidez.

encarniçado: que persegue com pertinácia, sem dar trégua.

enfardelar: o mesmo que enfardar, meter no fardel o que se pretende levar na viagem.

enjaezado: animal vestido de jaezes, isto é, a sela, o freio, o peitoral e outros arreios mais ricos ou curiosos.

enojosa: que causa nojo, odiosa; que causa fastio, aborrecimento.

entanto: na expressão tomar por entanto: tomar por então, por ora.

entonce / entonces: então.

entrementes: entretanto, enquanto isso.

enxovalhados: sujos, deslustrados, manchados.

escalavrados: feridos, machucados.

escarlata: pano fino de lã, de cor vermelha bem viva.

escaramuçando: fazendo escaramuças, conduzindo o animal como se preparasse para iniciar uma batalha.

escarmentar: emendar-se ou ficar advertido para não cair no mesmo erro, em razão do dano sofrido por outro.

escarnido: escarnecido, que foi alvo de escárnio.

escoleitos: escolhidos, eleitos.

escudeiro: o que acompanha senhoras a cavalo, ou a pé, e é criado de maior graduação.

escudelas: espécie de tigela.

escudos: moeda de ouro do tempo do rei de Portugal D. Duarte (1391-1438).

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

esgalgados: magros, com a barriga no espinhaço.

esparecer: tomar ar; passear, divertindo-se.

esperas: o mesmo que esferas: ornamento de roupa.

esposórios: contratos de casamento.

estação: prática, sermão, homilia.

estâncias: grupos de soldados, homens armados.

estrados: assentos de madeira largos e rasos, pouco erguidos do chão, onde se sentavam as mulheres a coser e lavrar.

estribeiro: o que tem a seu cargo a estrebaria e os cavalos dela.

estruir: destruir, arruinar, deitar a perder.

exalçamento: exaltação, ato de erguer ao alto.

exalçar: exaltar, levantar, engrandecer.

F

fábrica: o necessário para a construção de edifício ou casa.

faculdade: bens, posses pecuniárias.

faquíneo: cavalo, ou animal de montaria.

fato: roupa, peça de vestuário.

feito: forma variante do lusitanismo facto, na expressão de feito.

fementida: que mente, que falta à fé dada, à fidelidade.

feminil: mulheril, próprio do sexo feminino.

fernesis: o mesmo que frenesis: delírio contínuo por febre, disparate.

ferreruelo: o mesmo que ferraruelo, ou ferragoulo: gabão de mangas curtas com cabeção e capelo, com que se cobria a cabeça; era usado por pessoas rústicas, por pescadores e por estudantes das universidades.

fileles: tecido delgado de lã produzido pelos habitantes do Norte da África.

forrar: na expressão forrei o escravo: dar alforria, libertar.

fragoso: cheio de fragas, de altibaixos, de brenhas.

frágua: a parte onde o ferreiro tem o fogo e faz o ferro em brasa.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

fragueiro: ativo, incansável, encarniçado.

frontal: tela ou ornato que reveste a frente do altar.

fuão: na expressão fale-me fuão: falar uma pessoa sem a dar a conhecer; fulano.

G

galgadas: na expressão galgadas as paredes: acabadas por igual, arrematadas.

galgos: cães de caça pernaltas, esguios, de focinho longo, muito velozes.

garavim / gravim: toucado antigo; era de coifa de retrós com lavores de fio de ouro, e com renda na dianteira.

gastadores: aqueles que trabalhavam nas fortificações militares, cavando, abrin-do caminhos e trincheiras, e fazendo fossos.

gineta: na expressão à gineta, com os estribos curtos e com o freio apropriado.

giromancia: uma das ciências ocultas praticadas na Idade Média; consistia em rodar em círculo até cair, perdido o equilíbrio, sobre letras dispostas ao acaso, das quais se tiravam predições.

gôlfão: golfo, abismo, profundezas.

gomil: jarro próprio para derramar água nas mãos.

gorra: gorro, cobertura da cabeça; barrete usado até o tempo do rei D. João III (1502-1557).

guardosa: parcimoniosa, econômica, guardadora do seu.

H

hissopo: planta medicinal da família das labiadas com cujo ramo se fazia a as-persão dos fiéis.

homiziados: escondidos, refugiados de crimes cometidos.

hortelão: o que cultiva a horta.

I

imundícias: hemorragia decorrente de menstruação; ausência de asseio.

inculcas: averiguações, indagações, buscas.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

indústria: arte, destreza, engenho.

interessal: interesseiro, que nada faz gratuitamente.

J

jaezes: a sela, freio, peitoral e arreios mais ricos e curiosos.

jornal: salário por um dia de trabalho.

jubão: o mesmo que gibão: vestidura antiga que cobria os homens desde o pes-coço até a cintura.

L

lavrandeira: que trabalha na lavoura.

leonado: da cor do leão, fulvo.

levantisco: o mesmo que levantino: do levante, do oriente.

liado: ligado, atado.

libelo: exposição breve, em artigos, que o autor demanda contra o réu, apresenta-da ao juiz da causa, ficando o autor obrigado a provar cada artigo.

libré(s): o mesmo que librea(s): uniforme com que os senhores vestiam os servos, com fitas, galões e outros ornamentos.

loução: adornado, enfeitado.

M

maçarocas: no trabalho de fiar, os fiados que enchem um fuso.

manha: prenda, habilidade, qualidade.

mantéu: pano de cobrir o corpo da cintura para baixo, como saia sem pregas, mas aberto.

marcos: peso correspondente a oito onças.

masto: o mesmo que mastro.

matalotagem: provisão de mantimentos.

meãmente: medianamente, com parcimônia.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

medrar: fazer crescer, aumentar, enriquecer.

mentes: na locução conjuntiva temporal em mentes que: enquanto.

mofino / mofina: desdita, desgraça, infelicidade; infeliz, desgraçado.

mondando: na expressão mondando-lhe a barba, arrancando-lhe os cabelos brancos da barba.

montanheira: bosque de árvores que dão um fruto chamado bolota, conhecidas como enzinheiras ou azinheiras.

morgado: herdeiro de bens.

mortalíssimo: intensamente mortal.

mudamento: mudança, alteração.

murzelo: cavalo da cor de amora preta.

N

nebri: espécie de falcão dado a fugir para os montes.

nigromancia: o mesmo que necromancia, a arte de adivinhar o futuro por invo-cação dos mortos.

nôminas: prego dourado ou peça semelhante dos arreios e peitorais dos animais de carga.

O

ourela: borda, beira.

outavada: oitavada, de oito lados.

P

palha: na expressão tirar palha: fazer gracejos, divertir-se com alguém por meio de ditos.

papas: farinha cozida em água ou leite.

parcas: cada uma das três Deusas — Cleto, Láquesis e Átropos — que, na tradi-ção da mitologia grega, fiavam, dobravam e cortavam o fio da vida.

pardieiro: casa velha, arruinada e desabitada.

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

páreas: conjunto dos anexos do embrião: placenta, membranas e cordão umbilical.

parvoíces: ações ou ditos de parvo, tolo, ignorante; tolice, fatuidade.

pedrado: enfeitado, ornado.

pego: a parte mais funda de um rio, lago ou mar; abismo marítimo.

peitar: corromper com dádivas, subornar.

pelote: vestidura portuguesa antiga, de abas grandes, que se trazia por baixo da capa, opa, ou roupa; era de homem ou de mulher.

pensador: na expressão pensador de cavalos, aquele que trata do sustento, lim-peza e cura dos animais.

perecedeiros: o mesmo que perecedouros ou perecedoiros: que hão de perecer.

perfiar: o mesmo que porfiar: argumentar, insistir em dar razões para convencer.

pês: na locução em que lhe pês: ainda que isso lhe pesasse.

picota: pau a prumo usado nos pelourinhos em cuja extremidade superior fica-vam expostas as cabeças dos executados.

polvorejou: o mesmo que pulverizou, ou polvorizou: espargiu pó sobre alguma coisa.

ponente: poente, terras ocidentais.

privança: valimento, trato, conversação e favorecimento do soberano.

provança: prova, evidência, comprovação.

psalteiro: o mesmo que psaltério: instrumento musical de cordas usado na Idade Média.

púcaro: vaso de beber água, semelhante a uma taça.

Q

quarta: na expressão quarta de linhaça, medida equivalente a uma quarta parte de um arrátel de linhaça, correspondendo um arrátel a 16 onças.

quarteirões: uma forma de divisão do tecido de um traje, conforme as partes do escudo ou armadura, quando as lâminas são divididas em quadrados.

quartel: imposto ou foro que se pagava a cada trimestre.

quatorzeno: décimo quarto.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

querençoso: desejoso do que excita a vontade ou o apetite.

quintã: quinta, propriedade rural com casa de habitação.

R

raia: fronteira, limite.

razoamento: exposição de razões.

real: antiga moeda portuguesa, lavrada em ouro, em prata e em cobre, usada nas transações com valores variados, da qual há notícia de ter sido usada em Portugal da época de D. João I (1357-1433) até D. Sebastião (1554-1578).

reclamado: adornado de reclamos, de enfeites.

refolhado: dissimulado, fingido, hipócrita.

refolho: hipocrisia, dissimulação, fingimento.

refundindo: fazendo desaparecer, subtraindo.

refusar: recusar, rejeitar.

regedor: cidadão que presidia a Casa de Suplicação, ou Casa da Justiça da Corte, segundo as Ordenações Afonsinas; esta Corte da justiça esteve sediada em Évora a partir de 1483, por ordem do rei D. João II (1455-1495).

registo: o mesmo que registro: livro em que se fazia por escrito a memória das mercadorias e bens que entravam ou saíam das alfândegas.

remoque: insinuação maliciosa, zombaria.

rendeiro: o que cobra a renda ou produto de certos impostos.

rigoridade: rigor, rigorosidade.

rocada: a lã ou linho que enche uma roca para se fiar.

rocim: o mesmo que rossim: cavalo fraco, de má qualidade.

rolão: parte que se separa do trigo moído, melhor que o farelo, mas inferior à farinha.

romania: na expressão de romania: de golpe, de repente, de pancada.

roubador: ladrão, aquele que rouba.

roupeta: vestidura comprida, como a que vestem alguns religiosos.

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GONÇALO FERNANDES TRANCOSO – CONTOS E HISTÓRIAS DE PROVEITO E EXEMPLO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

S

sabujo: cão de caça.

salteador: assaltante, ladrão.

sargez: o mesmo que sagez: sábio, sabedor.

seguridade: segurança, falta de risco, ausência de perigo.

sisa: tributo temporário criado para atender necessidades de tempo de guerra, o qual, no tempo de D. João I (1357-1433), se tornou permanente; incidia sobre compra e venda de mantimentos, animais, bens de raiz etc.

soalheiro: lugar onde se pode ficar sob ação da luz solar.

sobreface: superfície, parte exterior.

soía: costumava, tinha por costume.

solimão: veneno, sublimado corrosivo.

soloio: o mesmo que saloio: indivíduo rústico, grosseiro, aldeão, camponês das cercanias de Lisboa.

sotrancão: dissimulado, sonso, velhaco.

supricação: suplicação: Casa da Suplicação ou Tribunal Superior.

surdia: avançava, caminhava.

sustentamento: sustento, alimentação.

T

tá: alto lá, basta.

tabua: palha de que se faziam esteiras grossas.

tachar: notar, censurar.

tangedor: o que toca ou tange um instrumento.

tea: o mesmo que teia: círculo dentro do qual se faziam as justas e torneios.

tença: renda destinada a sustento, mesada.

terça: a terça parte da herança de que o testador podia dispor livremente.

terçado: traçado, espada curta e larga.

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GLOSSÁRIO

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3ª Prova - JLuizSM - 21 nov 20133ª Prova - JLuizSM - 21 nov 2013

toucar: cobrir-se com touca.

traça: o mesmo que traço: plano, esboço, projeto.

trampa: armadilha, engano, trapaça.

trançado: o cabelo feito em trança; a fita que trança o cabelo.

trance(s): angústia, aperto, aflição.

transmontar: desaparecer por cima do monte.

trapeira: na expressão trapeira do batel: a parte sobre a qual o arrais vai mano-brando o batel.

traquinada: travessura, peleja, estrondo de briga.

tripeira: mulher que vende tripas.

trochados: lavor que antigamente se fazia nas sedas e vestidos.

V

valados: valas pouco profundas encobertas por vegetação.

valhacouto: lugar seguro, abrigo.

veador: o mesmo que vedor: mordomo da casa, inspetor e diretor dos negócios, da fazenda, das obras etc.

ventes: particípio presente adjetivado do verbo ver, na expressão fizeram ventes: fizeram visíveis, palpáveis, evidentes.

verde: verde do porco ou do boi: o sangue guisado, preparado como alimento.

vergel: horto ameno ajardinado para recreio.

véspera: na expressão horas de véspera: horas do ofício divino que correspon-dem ao final do dia.

vinténs: moeda de prata equivalente a vinte réis.

X

•Xpã: cristã, em grafia de origem grega para o nome Cristo: XPTO.

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3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014

REFERÊNCIAS

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3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014 3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014

I. Edições de Trancoso

TRANCOSO, G. F. Contos e histórias de proveito e exemplo. 1ª e 2ª partes. Lis-boa: Oficinas de Antônio Gonçalves, 1575.

TRANCOSO, G. F. Idem. 1ª e 2ª partes. Fac-símile da edição de 1575. Introdução de João Palma-Ferreira. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1982.

TRANCOSO, G. F. Idem. 1ª e 2ª partes. Lisboa: Oficinas de Marcos Borges, 1585.

TRANCOSO, G. F. Idem. 1ª, 2ª e 3ª Partes. Lisboa: Oficinas de Simão Lopes, 1595.

TRANCOSO, G. F. Idem. 1ª, 2ª e 3ª partes. Lisboa: Oficinas de Jorge Rodri-gues, 1624.

TRANCOSO, G. F. Idem. Texto integral conforme edição de 1624. Prefácio, lei-tura de texto, glossário e notas por João Palma-Ferreira. Lisboa: Imprensa Nacio-nal/Casa da Moeda, 1974.

TRANCOSO, G. F. Histórias (de proveito e exemplo) de Trancoso. Nota introdutó-ria e supervisão de texto por Franco de Barros. Rio de Janeiro: Cátedra / INL, 1983.

TRANCOSO, G. F. Contos e histórias de proveito e exemplo. Seleção, adequação de textos e prefácio de Armando Moreno. Lisboa: Passado Presente, 1988.

TRANCOSO, G. F. Contos e histórias de proveito e exemplo, edição diplomática preparada por Cristina Nobre. Leiria: Magno, 2003.

TRANCOSO, G. F. Regra geral pera aprender a tirar pola mão as festas muda-veis que vem no anno. Fac-símile da edição de 1570, publicada em Lisboa por Francisco Correa. Introdução e notas por Luciano Pereira da Silva. Separata do Boletim da Biblioteca da Universidade, v. 7, n. 1 a 12. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1925.

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REFERÊNCIAS

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3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014 3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014

II. Estudos sobre Trancoso

ANSELMO, A. J. Bibliografia das obras impressas em Portugal no século XVI. Reimpressão da edição de 1926. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1977.

BERARDINELLI, C. Um best-seller do século XVI. Estudos de Literatura Por-tuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985.

BRAGA, T. Contos tradicionais do povo português: com um estudo sobre a no-velística geral e notas comparativas. Porto: Livraria Universal, /s.d./.

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DESLANDES, V. A. Documentos para a história da tipografia portuguesa nos séculos XVI e XVII. Lisboa: /s.n./, 1881.

DONATI, C. Trancoso Traduttore de Timoneda. Arquipélago. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 1983.

DUARTE, C. C. S. Os contos de Trancoso: análise linguística. Revista Philolo-gus, Ano 14, n. 41. Rio de Janeiro: CiFEFIL, maio/agosto, 2008.

FERRO, M. Aspectos da recepção do “Decameron” nos “Contos e Histórias” de Trancoso. Separata de Estudos italianos em Portugal, n. 51, 52 e 53, 1988/1989/ 1990.

FINAZZI-AGRÓ, E. A novelística portuguesa do século XVI. Lisboa: Secretaria de Estado e Cultura, 1978.

MACHADO, D. B. Biblioteca Lusitana, histórica, crítica e cronológica. Lisboa: Oficina de Ignácio Rodrigues, 1747.

MENÉNDEZ Y PELAYO, M. Orígenes de la novela. Edição preparada por Hen-rique Sanches Reyes. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones, 1943.

MIMOSO, A. B. F. Contos e histórias de proveito e exemplo de Gonçalo Fernan-des Trancoso: um livro “exemplar”. Separata da Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas. Vol. XV. Porto, 1998, p. 259-329.

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GONÇALO FERNANDES TRANCOSO – CONTOS E HISTÓRIAS DE PROVEITO E EXEMPLO

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3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014

MIMOSO, A. B. F. Contos e histórias de proveito e exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso. Edição comparada do texto (segundo as edições de 1575/1585/1595). Dissertação de mestrado em História da Cultura Portuguesa – Época Moderna. Porto, s.n.,1997.

NOBRE, C. Contos e histórias de proveito e exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso (edição diplomática). Prefácio de Cristina Nobre. Leiria: Magno, 2003.

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PALMA-FERREIRA, J. Contos e histórias de proveito & exemplo de Gonçalo Fernandes Trancoso (texto integral conforme a edição de Lisboa, de 1624). Pre-fácio, leitura de texto, glossário e notas por João Palma-Ferreira. Lisboa: Instituto Nacional-Casa da Moeda, 1974.

PALMA-FERREIRA, J. Obscuros e marginados. Lisboa: /s.n./, 1980.

PICCHIO. L. S. Gonçalo Fernandes Trancoso: “Histórias de proveito e exem-plo”. Colóquio Letras, n. 29. 1976.

RODRIGUES, F. O. Contribuição para uma Edição Crítica de Gonçalo Fernan-des Trancoso. Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1983.

RODRIGUES, F. O. Trancoso e as histórias de proveito e exemplo: o texto, a língua e o léxico. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

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VITERBO, F. M. de S. Materiais para o estudo da paremiografia portuguesa. Revista Lusitana, v. 7. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1902.

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REFERÊNCIAS

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3ª Prova - JLuizSM - 10 jul 20143ª Prova - JLuizSM - 10 jul 2014

III. Obras sobre o período medieval e o século XVI

AMEAL, J. História de Portugal: das origens até 1940. 6 ed. Porto: Livraria Tavares Martins, 1968.

BARROS, J. de. Gramática da língua portuguesa. 3 ed. Organizada por José Pedro Machado. /s.l./, /s.n./, 1957.

BECHARA, E. C. & SPINA, S. Luís de Camões: “Os Lusíadas”: antologia. Co-leção Littera, v. 5. 2 ed. Rio de Janeiro: Grifo, 1974.

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Este livro foi composto na fonte Times New Roman, corpo 11. Impresso na Stamppa Editora e Gráfi ca,

em Papel Polen 80g (miolo) e Cartão Supremo 250 gramas (capa) produzido em harmonia com o meio ambiente.Esta edição foi impressa em setembro de 2013.

PRIMEIRA EDITORA NEUTRA EM CARBONO DO BRASIL

Título conferido pela OSCIP PRIMA (www.prima.org.br) após a implementação de um Programa Socioambiental

com vistas à ecoefi ciência e ao plantio de árvores referentes à neutralização das emissões dos GEE's – Gases do Efeito Estufa.