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Contos.com Maurem Kayna LITERATURA BRASILEIRA

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Seleção de contos publicados na web. Os textos da autora finalista do Prêmio Sesc 2009 - Maurem Kayna - estão reunidos em quatro blocos: em Coisas de família temos histórias de desencontros, atrasos, expectativas não alcançadas; Imprevistos traz recortes que mostram como o inesperado pode mudar rumos; Improváveis agrupo textos entre o fantástico e o non sense, estórias em evolução; por fim, Frustrações traz um único conto que também aborda os efeitos da expectativa sobre o humano.

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Maurem Kayna

LITERATURA BRASILEIRA

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Parte 1

Coisas de família

Todo o esforço nunca basta, mas qualquer gesto será suficiente se for possível manter a tranquilidade.

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Olhou para o chão, para a terra de tom desbotado, viu os chinelos empoeirados e os pés também. Odila não gostava daquela coisa baça deixada pela poeira no seu trajeto, sublinhando o silêncio ao qual estava obrigada. Não é uma criança inquieta, mas se incomoda quando não tem chance de escolher.

É hora da sesta, a louça já foi lavada e as panelas secam ao sol, para que fiquem brilhando. Ela não corre porque senão o cachorro vai querer brincar e, certamente, vai latir. Perambula pelo pátio de terra dura, bem varrida, recortada aqui e ali por retângulos de grama e pelos canteiros de dona Fabiana. Não gosta de ir até a horta nesse horário porque o sol, mesmo manso, torna as folhas desanimadas e isso aumenta o peso de manter-se calada.

Antes de se recolher, a mãe faz sempre as mesmas recomendações - para não se molhar nem ficar no sol, e que não fosse Odila arranjar nenhum machucado. A menina não responde, apenas pendura o pano de prato e sai, deixando a porta da cozinha entreaberta. Dona Fabiana deitada e ela senhora daquele território que anos depois lhe pareceria tão menor.

A vontade era de escapulir, investigar os pátios das outras casas - especialmente as que tinham muro ao invés daquela cerquinha de bambu feita pelo seu pai - ou seguir até o final da quadra, onde estava o campinho de futebol, reduto da meninada do bairro nos sábados à tarde. Mas o portão de madeira fazia

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Jasmins e Alfaces

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um barulho choroso quando era movimentado, e isso poderia acordar dona Fabiana. Lugar de menina é dentro de casa, quando muito no pátio, ela dizia. Odila não tinha permissão para correr com as outras crianças pela rua sem pavimentação e também não podia assistir as peladas no final de semana. Aquilo eram coisas de guri arruaceiro, nunca de gente decente.

Sem poder explorar as calçadas bem varridas dos vizinhos, Odila se concentrou no jardim em frente à casa. Arrancar os inços e afofar a terra ajudava a preencher o vácuo da tarde sem rádio nem companhia para brincar. Por vários dias o sol não dava trégua, Odila nem lembrava quando tinha sido a última chuva, mesmo assim havia muitas ervas daninhas disputando espaço com as plantas e, em alguns canteiros, as flores já começavam a perder a briga.

A menina notava que a mãe já não dedicava a mesma atenção às folhagens, tampouco à horta e resolveu cuidar daqueles retângulos delimitados por tijolos maciços enterrados no solo na diagonal, formando uma borda serrilhada. Queria causar alguma fissura no amargor que marcava as atitudes de dona Fabiana depois da viuvez e acreditando nessa possibilidade, começou pelo canteiro onde estava o jasmim e, antes mesmo de arrancar os capins sob o arbusto viçoso, gastou um tempo retirando as flores secas ainda presas ao pé. Já não tinham o perfume insistente, mas as pétalas ressecadas, de um

tom pardacento, mantinham uma textura ainda agradável ao toque. Odila prestava atenção a esses detalhes.

Catou todas as flores secas que estavam no passeio coberto de brita, juntou também as corolas murchas espalhadas no canteiro onde o pé de jasmim fazia as vezes de cabeceira e formou um pequeno monte para depois carregá-las para a horta, onde virariam adubo - aprendia essas coisas com o irmão mais velho quando ele aparecia para visitar. Demorou um instante gostando do resultado daquela limpeza, olhando para a planta renovada, sem os tons terrosos sujando a folhagem de brilho indeciso. Depois, se pôs de joelhos à borda do canteiro e começou arrancando a grama de folha muito delgada que a mãe chamava de capim-pelo-de-porco. Não entendia aquele nome, afinal nunca vira nenhum porco com pelos tão longos, e menos ainda verdes. Eram difíceis de arrancar, especialmente com a terra tão seca, então resolveu buscar alguma ferramenta que ajudasse a vencer o solo endurecido. Fazendo o menor ruído que pode, pegou uma faca de mesa, daquelas pesadas, de metal grosso. Havia somente duas daquele tipo na gaveta, as outras eram de qualidade muito inferior e certamente não resistiriam ao esforço. A ponta arredondada e o peso ajudaram a enfrentar a resistência do chão ressecado sem maiores riscos de se machucar, mas não era fácil arrancar o capim pela raiz, como era preciso fazer para que não brotasse com força na próxima chuva. Arrancou alguns com sucesso, mas outros foram apenas cortados rente à terra e uns nem tão rente assim.

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Odila queria avançar mais rápido na tarefa e percorrer toda a superfície daquele canteiro para que a mãe tivesse uma surpresa boa ao acordar, mas o calor já começava a deixar marcas de suor na roupa e ela teve medo. Levantou com os joelhos marcados da poeira e do pouco peso que haviam sustentado e buscou a sombra da goiabeira. Dali contemplou o trecho trabalhado e não gostou do resultado. Ao invés da terra limpa, levemente remexida, exibindo apenas as folhagens e flores escolhidas pela mãe, viçosas como quando foram plantadas, ainda via um solo com torrões de tamanho irregular onde despontavam restos de inço com folhas arrancadas pela metade. O aspecto havia melhorado com sua dedicação, mas para oferecer à mãe o presente imaginado, precisaria de melhores ferramentas e de uma força que só alcançaria anos mais tarde; mantinha, entretanto, a esperança de que o esforço fosse percebido.

Quando seu Lúcio comprou o terreno e construiu, com a ajuda dos irmãos, a casa onde mal teve tempo de aproveitar o pôr do sol que se avistava da porta da cozinha, dona Fabiana plantou violetas e cravinas, semeou margaridas e zabumbas e arranjou, com esmero, folhagens sortidas - as folhas matizadas de muitos tons de verde e bordô encantavam as vizinhas. A maior parte das plantas era barganhada ou presenteada por conhecidas das redondezas. O pai preocupava-se mais em cuidar da horta, de onde vinha uma ajuda importante para o colorido da mesa.

Ainda pouco suscetível às teias da memória e da nostalgia, a menina não pensou nisso durante seus afazeres no pátio castigado de sol. Essas associações só aconteceram bem mais tarde, quando o silêncio depois do almoço não era a obrigação de zelar pelo sossego da mãe, mas sim uma imposição de sua ausência e a lembrança das lides de jardinagem desenterrou outras, de quando a família começou a se desmontar. Dos dias logo após o velório ela não tinha nenhum registro porque todos acreditavam que a pequena Odila não tinha idade suficiente para participar daqueles rituais. Ignoraram que a tristeza já havia contaminado suas manhãs quando a doença começou a limitar as tarefas do pai nos canteiros de alfaces e que o primeiro entardecer sem a comemoração de assistir o repouso do sol sentada ao lado do pai na porta da cozinha foi mais pesado que a conversa cheia de eufemismos para lhe comunicar o irrevogável da ausência de seu Lucio.

Faltava pouco para o fim da sesta e o sol ardia na terra. O jardim não ficou bonito como quando sua mãe se empenhava em regar as mudas recém plantadas logo pela manhã - aproveitando o tempo enquanto a roupa esperava no tanque, coberta pela espuma cheirosa do sabão em pó. E o ânimo com que iniciou a catação das flores secas se convertia aos poucos numa decepção doída. Ouviria reprimendas porque sujara a roupa e teria de esconder a faca indevidamente retirada da cozinha, pois apesar da aparente resistência da peça, a ponta fora danificada e

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o olhar atento de sua mãe não deixaria aquilo passar em branco. E tanto risco para um resultado muito longe do imaginado.

O sol já alcançava a janela do quarto e logo logo a réstia entraria pela fresta da madeira, desenhando aquela lista em diagonal sobre o travesseiro. Dona Fabiana, tendo as pálpebras roçadas pelo calor mais agudo daquela lista de sol, levantaria sem o luxo de um espreguiçamento e retomaria todas as rotinas de limpeza e arrumação da casa, cobrando da criança os temas feitos e a ausência de máculas a se esperar do bom comportamento que ela quase nunca alcançava satisfazer. Mais tarde se prepararia a mesa para o café e Odila teria de vencer a repugnância pela película de nata que se formava na superfície do café com leite sem queixas.

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Eu deveria ter trazido o impermeável. Agora tenho de ouvir esse sujeito com mania de pai fazendo gracejos enquanto veste a capa: Mudemos o uniforme; e já! Senão vai todo mundo se gripar. Uns riem, outros passam reto.

Rezo baixinho para conseguir terminar as entregas antes do aguaceiro e chegar cedo para arrumar a bagunça antes da Paula chegar. Ela vai levar um susto bom.

Muitos sinais fechados no caminho, e justamente hoje que não estou interessado nas cenas do trânsito. Tinha pressa, queria fugir do mau tempo e organizar a casa para a Paula. Geralmente gosto de ver a reação das pessoas quando se percebem observadas – alguns tentam disfarçar, outros ignoram e seguem no ritmo de antes e já houve até um senhor irritado que baixou o vidro para dirigir a mim os xingamentos que distribuía aos filhos. Mas hoje não quero dissecar retalhos da privacidade alheia, quero escapar da chuva.

O sinal manda parar, mas a faixa de pedestre está vazia, como a calçada, nada para assistir. Reduzo e obedeço. À direita, uma camionete importada dirigida por um sujeito que fala no telefone e fecha a passagem da moça do carro branco. Ela, nem tão moça assim, não baixou o vidro para desacatá-lo, mas acelerou, desviou e seguiu adiante enquanto o amarelo avisava que eu e o cara da camionete não conseguiríamos.

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ESTE FOI O CONTO

PREMIADO NO II

CONCURSO LITERÁRIO DA

REVISTA PIAUÍ. NÃO FOI

ESCRITO ESPECIFICAMENTE

PARA O CERTAME, MAS

ERA O TEXTO DISPONÍVEL

MAIS PROPÍCIO À

ADAPTAÇÃO.

Trânsito

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Alcancei o carro branco no semáforo seguinte. Ela usava óculos escuros grandes, elegante, mas séria demais. Aliás, séria não, triste. Vi que estava chorando quando levantou os óculos para secar as lágrimas. Não estava com a maquiagem borrada porque não usava nenhuma. Qual seria o motivo daquele choro doído, sem caretas? Tive vontade de saber, talvez pudesse até dizer alguma coisa que ajudasse.

Aquele chorar quase doía. A Paulinha não era assim discreta e normalmente chorava por razões pequenas, porque se o caso fosse sério ficava muda. Mas essa moça não tinha expressão de desespero, raiva, medo. Apenas não continha as lágrimas, e elas rolavam, grossas. Não mordia o canto do lábio nem franzia a testa.

O verde acende, mas já chegou a chuva e ainda faltam duas quadras para fazer a última entrega. E agora, vencida a tarefa, lamento a distância do carro branco, já impossível de distinguir no engarrafamento que vai se formando.

Em casa, tiro a roupa molhada e planejo movimentos eficientes para colocar a roupa na máquina, estender as cobertas na cama, lavar a louça. Enquanto isso, o pensamento mistura a mulher do choro quieto e a surpresa que imagino em Paulinha quando encontrar tudo arrumado. Mas percebo que já está tudo em ordem. Nem as revistas em cima do sofá desmentem a organização e isso me faz acordar dos devaneios da tarde, fingindo que não seria inútil a correria para chegar mais cedo.

Desabo no sofá, junto com as revistas que não tive vontade de ler, pensando no guarda-roupa, agora tão espaçoso sem as roupas dela. O peito se encolhe e penso em cantar qualquer coisa, apenas para ouvir minha própria voz e esquecer a despedida.

Será que se já tivesse acontecido a cena da moça chorando no trânsito eu teria entendido algum gesto da Paulinha antes que ele se formasse, antes do limite dela ter virado malas fechadas?

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Regina se negou à modernidade dos tratamentos estéticos que a transformariam numa mulher de idade indefinida, preferiu a pele denunciando o tempo à exposição de suas frustrações em forma de juventude falsificada. O marido apoiava a decisão, afirmando que ela ainda era muito bonita e não precisava de retoques, mas havia ocasiões em que ela não confiava no discurso dele e chegava a se incomodar com a presença das amigas das filhas em sua casa - garotas ainda sem planos, esbanjando riso fácil, movendo facilmente seus corpos tesos e chamando-a de tia Gina.

Na fila da sessão de hortifrutigrangeiros do supermercado, Regina não descartava a postura ereta e o sorriso afável enquanto esperava para pesar as frutas. Fez algum esforço para puxar conversa, mas a maioria dos clientes naquele horário era gente mais jovem, sem disposição para trocar comentários educados, concentrados em seus smartphones, impacientes com qualquer espera. Regina não se ofendia, continuava sendo simpática.

Escolheu maçãs tão vistosas que o rapaz da balança comentou a perfeição das frutas - talvez nem fossem saborosas, mas eram bonitas, disse. Ela aproveitou para espichar o assunto, irritando os que aguardavam para pesar suas compras, desejou um bom final de dia ao rapazinho cheio de espinhas e se dirigiu ao caixa, calma e altiva. Não ouviu o comentário de alguém que protestou

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Este conto, com pequenas variações, foi publicado no espaço Culturanews. Ele surgiu da provocação do blog Fio de Ariadne ao promover um concurso de contos cujo premio foi um exemplar de Contos de Fadas de Perault, Grimm, Andersen & outros, da Zahar. A proposta era se inspirar em um conto de fadas clássico, usando partes do enredo, arquétipos ou apenas o mote do conto . O título inicial desse conto era Maçãs na Penumbra, ele não foi selecionado no concurso mas segue sendo polido até hoje.

Espelho meu

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entredentes, só podia ser um dondoca desocupada, não tinha horário de ônibus para se preocupar.

Já no estacionamento, acomodando os óculos escuros e o cabelo com a ajuda do retrovisor, se demorou um tanto contemplando a memória da própria beleza, lamentando as marcas ao redor dos olhos e da boca. Uma agulhada de inveja foi o que sentiu. A visão de si mesma atravessada pelo acúmulo de histórias sempre suscitava a lembrança de sua filha mais nova, tamanha a semelhança entre as duas.

Clara, no entanto, não esbanjava a mesma simpatia. Era linda, porém mordaz, pouco gentil. A preferida do papai. Junto dele a menina se esmerava, e era hábil o bastante para não expor nenhum dos comportamentos pelos quais a mãe a repreendia - a rispidez com empregados do prédio, os comentários preconceituosos em relação às senhoras que tricotavam no jardim e os projetos de se tornar top model para não ter de estudar.

Regina ficava mortificada quando assistia as manifestações de arrogância da caçula. Uma dessas recordações azedas a assaltou na saída do supermercado, adicionando uma pitada extra de cansaço diante do congestionamento por enfrentar a caminho de casa - hoje cedo, ao sair para a escola, atrasada como de costume, a adolescente se recusou a entrar no mesmo elevador que a doméstica do apartamento vizinho, ela carregava o lixo seco para descartar e acabou descendo pelas escadas

porque Clara não se preocupou em baixar o tom de voz para dizer que ainda deveriam obrigar o uso de elevadores separados para serviçais. Usou aquela palavra obsoleta para demarcar com mais força seu desprezo. Regina ralhou, sentiu vergonha e desculpou-se com a funcionária do vizinho, mas ela não fez caso, a garota já fizera coisas piores.

Antes de escolher a rota menos tumultuada para voltar a seu posto de mãe eficiente, foi à farmácia renovar o seu estoque de amuletos para vencer a insônia. Dormir era o método empregado para enfrentar a insegurança quanto ao desejo do esposo, as afrontas de Clara e o arrependimento de ter abdicado da profissão para educar as duas filhas - remorso aguçado agora que Lucia estava quase de malas prontas para a pós-graduação no exterior.

O carro avançava pouco, deixando longas brechas para Regina fantasiar como seria difícil a rotina na ausência da filha mais velha, sempre conciliadora e atenta às sensibilidades da mãe. Os medos se avolumaram nos olhos e Regina se permitiu chorar porque ainda demoraria até chegar em casa e encontrar os conhecidos acostumados ao seu sorriso cordial. As lágrimas escassas, entretanto, logo foram sucedidas pelo retesamento da face, por uma pressão raivosa das mãos sobre o volante e quando o olhar se localizou no retrovisor, havia um transbordamento faiscante, como se Regina quisesse varrer de sua frente tudo que considerava um peso ou um equívoco no

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caminho percorrido até ali. Fúria, foi a palavra que não escapou dos lábios protegidos pelo batom rosado.

Quando enfim chegou à porta do edifício, o sol já estava fora da vista dos condôminos, reunidos no jardim em frente ao prédio, e Regina imaginou quão agradável estaria a penumbra no seu apartamento se as luzes ainda estivessem apagadas. O elevador abriu-se e ela cumprimentou e despediu-se ao mesmo tempo de um grupo de colegas da filha que havia passado a tarde em sua casa.

Ver aquelas meninas assanhadas de saída pôs um pouco de alegria no seu passo – o descanso de saber a casa quieta quando subisse com o pacote de maçãs, escolhidas para sua jovem réplica. Ia contando os números no painel e remoendo a satisfação antecipada de oferecer as maçãs – a única parcela de alimentação saudável da filha, antevendo que ela não resistiria ao rubor lustroso e perfumado.

Os remédios costumavam agir com rapidez e o marido, acostumado com o sono artificial da mulher, não estranhou o silêncio da casa ao chegar imaginando que jantariam juntos - Regina andava mesmo muito abalada com a a viagem de Lucia. Foi à cozinha buscar algo para comer e não havia nada preparado, como não gostava de maçãs, foi em busca da lista de tele-entregas na porta da geladeira.

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Pediu um analgésico forte. A enfermeira respondeu que não poderia fornecer nenhum medicamento não previsto no seu prontuário, mas assim que o médico passasse pelo posto ela comentaria sobre sua dor. O residente era atencioso, viria vê-la, com certeza. Tentasse dormir. Quem sabe um chazinho?

Beatriz não se deu ao trabalho de argumentar e sequer recusou o chá, mas precisava mesmo era de um sonífero potente e só falou em analgésico porque imaginou maiores chances de ser atendida. Sem conseguir o que queria, aferrou-se ao incômodo físico, expressando-o em gemidos sem energia, apenas como um artifício para não pensar, concentrada no rumor que escapava dos lábios ressequidos fugia do único pensamento disponível.

Sentia-se desperta como nas manhãs de férias dos tempos da adolescência, quando dispensava o despertador e levantava com ânimo de primavera, arrumava-se e ia para a quadra treinar. Mas agora era diferente, e a dimensão dessa diferença tornava maior a vontade de fuga. As feridas ardiam e nos intervalos do próprio gemido, as frases dele voltavam, misturando-se ao cheiro asséptico dos lençóis e fazendo o estômago se contrair.

Tentou forçar a lembrança para situar-se no tempo, mas não tinha conta dos dias no hospital, sabia de pelo menos cinco anoitecimentos. Foram muitos mais desde a tarde em que a socorreram na estrada. 

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Este conto foi publicado no portal CulturaNews (e destacado na Revista da Cultura de Jun/11 ). Lá você também

encontrará outros textos reunidos nesse e-book.

Além disso, este texto foi traduzido para o inglês, através de uma iniciativa da Contemporary Brazilian Short Stories.

Desencontros

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Nenhuma enfermeira disse claramente, nem o médico que interpretava os registros na planilha ao pé da cama e os aparelhos aos quais estava ligada. Ela também preferia não perguntar, mas tinha quase certeza de ter perdido o mando das pernas, pois o corpo todo doía, dentro e na pele, mas elas se mantinham mudas. 

A irmã foi visitá-la quando acordou, e talvez tivesse ido antes também, mas Beatriz achava isso pouco provável. E ele? Não queria acreditar que seria duro o bastante para insistir na sua palavra de não querer vê-la novamente, mesmo com toda a ênfase de sua sentença quando soube da situação com Amanda e com aquele gesto querendo ser tão definitivo – rasgar a certidão na frente dela. Não, ele só não tinha coragem de encarar suas cicatrizes, nem habilidade para consolá-la caso realmente não pudesse mais andar, mas acabaria vindo. A espera, porém, exigia mais paciência do que lhe era natural. 

Esses pensamentos – contidos e cerceantes, mal haviam se formado esfacelaram-se sob o grito que fez a enfermeira correr ao seu leito. Convulsionava em choro quando vieram atendê-la, e o sedativo foi administrado para garantir o repouso dos outros pacientes da unidade. 

Beatriz dava a impressão de dormir sem dor. Assim a encontraram na visita seguinte, quando, finalmente, a irmã dela conseguiu convencê-lo a ir também. De início acharam até melhor que ela não acordasse, assim era mais fácil falar com o

médico sem medir o timbre da voz e para não correr o risco de que ouvisse os prognósticos desanimadores.

Depois das palavras diretas do especialista se demoraram olhando o seu rosto quase cicatrizado e os sinais indecifráveis dos aparelhos que comandavam a entrada e saída de ar dos seus pulmões. Nele o remorso cutucava com força e na irmã residia uma ausência morna, quase conformação. Sem trocar palavra alguma olharam-se sem poder dissimular o desgosto que o ritmo da respiração imposta – tranquila como não costumava ser antes do acidente – lhes provocava.

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Parte 2

Imprevistos

Acasos podem funcionar melhor que planos meticulosos, ou o cálculo vence o curso fortuito?

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A rua estreita, de calçamento antigo, escorregadio depois do trânsito de muitas histórias, e ela. Conhecia cada uma das pedras em que pisaria e por isso já não tomava cuidado. Sabia da rua. Não era habitual passarem carros naquele horário. O barulho que predominava quando desceu do meio-fio para chegar à outra esquina vinha dos copos e das frases ecoando, desordenadas, na cabeça alcoolizada. Já havia contado o número de passos daquela travessia. Muitas vezes, em tempos de bem antes, quando ainda era criança. Onze passos, sem pressa.

Um, dois, no terceiro titubeou com a lembrança de uma farpa ouvida na mesa do bar. Não respondera e agora nascia uma raiva sem muita força. No quinto passo ouviu um ronco, sem identificar a origem rumou ao número seis, sete. Quando balbuciou oito, o som tímido subiu no ar como seu corpo sem controle. Nove, dez e o baque abafado de osso e porre misturados com o polido da rua. O carro já havia sumido sem que alguém tivesse anotado placa ou modelo. Só viram que era branco, mas já a noite engolia qualquer desacerto e todo desencontro permaneceria.

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REMEXENDO NO BAÚ, SALTOU ESSE CONTO

CURTÍSSIMO QUE FICOU COM O 2º LUGAR DO

EXERCÍCIOS URBANOS DO VELHO PORTAL

LITERAL 1.0.

Interrupção

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Demorou a aprender o português de modo a não provocar perguntas sobre sua nacionalidade toda vez que pedisse uma informação ou o almoço no vegetariano do centro. Mas, tão pronto logrou reproduzir a fala dos locais, arrependeu-se da sutil intervenção cirúrgica que lhe assegurou a tranquilidade no início. Hoje, pensa que poderia ter sido aceito no cotidiano da cidade sem despertar qualquer suspeita apenas mudando o cabelo e as roupas, talvez o óculos, que era sua marca.

O medo de que o descobrissem era, na verdade, pura paranóia. A encenação da sua morte foi muito convincente até para os mais próximos e o tal Chapman segue na prisão. Tinha um pouco de remorso pela acusação injusta, mas não em excesso porque de outra forma o fã não teria punição alguma para os delitos cometidos de fato. Mark, tão perturbado, talvez até se sentisse agradecido pela chance de poder fazer tamanho favor ao objeto de suas obsessões. Não falou em gratidão quando começaram a negociar, mas se mostrou muito entusiasmado em contribuir.

Agora já não faz diferença. O passado ficou bem enterrado, está assegurada a fama eterna para o nome de antes e agora tem a rotina sem peso de tocar violão na noite curitibana, entremeando as canções recém criadas com os sucessos que os estudantes ainda se emocionam ao ouvir. Não se arrepende, mesmo que haja noites melancólicas em que lamenta a saudade dos filhos, sabe que há manhãs

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ESTE CONTINHO SURGIU COMO UM DIVERTIDO

EXERCÍCIO NA OFICINA DE ESCRITA CRIATIVA

DA UNIRITTER.

Andanças

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frias e claras para apoiar os que ainda sonham e protestam. Na mulher nunca mais pensou, aqui já teve muitos outros afetos eternos desde sua chegada.

 

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Roberta chegou afogueada. Na mochila com estampa de girafinhas trazia os materiais solicitados pela professora – revistas para recortar, cola, tesourinha sem ponta e coisinhas coloridas garimpadas na caixa de costura da mãe.

Deixou sob a mesa as promessas de festa, e acompanhou impaciente as explicações sobre laranjas que se somam e podem ser repartidas com certo número de coleguinhas. O trabalho de colagem seria somente depois do recreio e a espera tirava gosto à merenda e às brincadeiras.

Quando finalmente espalhou sobre o tampo de fórmica os seus tesouros, sentiu-se irritada com a balbúrdia da classe, atrasando o início das atividades, mas não deu mostras do desconforto. Aliás, sua franja loira e bem cortada emoldurava a expressão da calma e da simpatia.

Os grupos foram formados entre a euforia dos pequenos e a impaciência da professora, que orientou sobre os cartazes a serem preparados. Recortar em revistas amassadas os desejos para o futuro do planeta não atendia a expectativa de Roberta. Ela sonhou diversão mais livre e ousada. Talvez escultura, pintura ou outro tipo de colagem. Já tinha brincado de fazer bichinhos de papel machê, então a cartolina verde mais os recortes desalinhados não pagavam toda aquela espera.

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Este conto também foi publicado no portal CulturaNews. Lá você também encontrará outros textos reunidos nesse e-book.

Aventura

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Os amiguinhos não prestaram atenção nos papéis e cola abandonados. O lugar desocupado, sem que fosse identificada prontamente de quem era a ausência, só preocupou a professora na hora em que o sinal sonoro avisou que era tempo de encerrar a aula.

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Parte 3

Improváveis

E quem disse que o inesperado não chegará?

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Aqui se desenrolou um existir imperceptível, as paredes aparentavam maciez, mas era apenas brancura, opacidade.

Quando os cabelos dela se aproximavam do linho engomado, eu pressentia seu frio, mais um sinal de pavor que o efeito do inverno. O leito, inaugurado no outono de peculiar felicidade, fora encomendado para as núpcias, assim como a alvura das cobertas e bordados. Havia no quarto uma bela lareira, da qual se esperava que combatesse os efeitos do minuano e dos dias nublados. Mas a lenha ardia impotente contra a decepção de Alba.

Ela, moça miúda, de pele muito clara e traços bem acabados, crescera entre os irmãos e irmãs como felino infiltrado em uma matilha. Não se afeiçoava às brincadeiras das meninas, sempre ocupadas com suas bonecas de pano e cantigas de roda. Também tinha pouca proximidade com os irmãos que corriam descalços no campo e caçoavam do seu silêncio sonhador. Passava boa parte do tempo na casa onde a mãe trabalhava, cuidando da cozinha e dos animais domésticos. Uma casa de família distinta, onde as filhas recebiam lições de línguas e música na biblioteca ampla.

Alba, por ser quieta e afável, incapaz de importunar as senhoritas ou o professor, foi autorizada a assistir as aulas. Assim, aprendeu a ler e ocasionalmente conseguia emprestado algum livro de sonetos, e nisso finalmente

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CONSTATÓ SE UNA ANEMIA DE MARCHA

AGUDÍSIMA, COMPLETAMENTE INEXPLICABLE.

ALICIA NO TUVO MÁS DESMAYOS, PERO SE IBA

VISIBLEMENTE A LA MUERTE.”

HORACIO QUIROGA

Inverno Branco

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encontrou júbilo. Foi nos versos que começou a montar a imagem do que seria a felicidade quando encontrasse o sentimento cantado nas poesias.

Jonas fora criado com severidade, mas nunca desatenção. Talvez os anos de estudo no Colégio Militar o tivessem talhado tão ascético. Encantou-se com a beleza de Alba e não lhe dirigiu a palavra antes de acertar os detalhes do casamento com o pai da menina. O agricultor modesto mal compreendia tamanha sorte para o futuro da filha mais estranha de sua vasta ninhada. Não hesitou em consentir.

Realizaram-se as bodas com toda a cerimônia que Jonas julgava pertinente, mesmo diante da modesta satisfação expressa por sua família. Ao ser questionada sobre as expectativas para o casamento, a noiva falou de umas flores miúdas e perfumadas. Foi a visão dos buquês mesclando as tais flores e lírios brancos no arco da entrada da capela e nas extremidades dos bancos de madeira muito densa que fez brotar o sorriso de Alba no percurso até o altar. A cena idílica a fez acreditar que viveria em sonho constante.

Foram morar numa das propriedades da família dele. Casa imponente, ampla, sem excessos de ornamentos, mas perfeitamente confortável. Alba sentia falta dos livros e chegou a mencionar ao marido a biblioteca da casa das senhoritas onde sua mãe trabalhava, mas Jonas acreditava que mulheres honestas não precisavam daquele tipo de distração.

Alba impertinente reclamar, mas contraiu-se um pouco pela decepção.

Não ocupava-se de tarefas domésticas, mas esperava-se dela que coordenasse as empregadas e isso lhe era penoso, pois se acostumara ver a obediência da mãe. Insistia em ajudar no preparo da comida, mesmo sob o protesto das mulheres, que temiam reprimendas do patrão. Depois de algumas tensões ficou acertado que o jardim e a horta seriam seu território. Não era uma satisfação comparável à poesia, mas perto das flores ao menos se afastava da impressão de ser um utensílio da residência.

O afeto de Jonas não encontrava brechas para manifestar-se. Na retidão da sua postura faltava espaço para verbos brandos, os abraços que ela desejava não aconteceram. Ele não entendia que Alba precisava menos do mármore e da disponibilidade das serviçais que de algum contato cálido. O que ele presenteava conforto e luxo ela sentia desterro. Assim, veio, com o mês de agosto, o ressecamento dos sonhos de ambos: uma gripe impôs repouso à Alba, que nesse pretexto febril pode escapar a tudo que gelava a alma. Logo a seguir, tomou-a uma forte anemia. Distância para o fundo de si, abismo.

Na última manhã que tiveram antes de começar o período de chuva, aproveitaram a clareza da grama crestada de geada para uma breve caminhada. Não houve outra chance de se atreverem, juntos, sob o céu frio. Nesse dia, ele ainda tentou,

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enfraquecido pelo medo de perder a esposa, deixar de lado a severidade. Andou ao seu lado, vagaroso, ensaiando amparo. Mas o afago era tão minúsculo como as forças que restavam nela. Chegou tarde a quebra da secura aristocrática.

Poucos dias além, ela se entregou, consentiu na derrota, germinada em mágoa silenciosa. Penas sobre o travesseiro, tantas como as que estão por dentro. A alvura insidiosa contaminara tudo, até o ponto de não se saber a ordem das coisas. Ele, mesmo preferindo a praticidade e a ação no lugar de reflexões, pensou na palidez crescente da mulher sem se decidir se era causa ou reflexo da falta de cores em que viviam. Avançavam as horas, de mãos dadas com o frio e com a mudez que enchia os cômodos da casa.

O veredicto do médico trouxe ainda mais silêncio, pesares antecipados se arrastando. Jonas, aproveitando um entardecer sem testemunhas, permitiu-se choro de deixar na boca travo de saudade prévia. Quis chamar um especialista da capital, mas intimamente reconhecia a inutilidade do gesto.

A manhã era alta quando o corpo, quase pluma, foi acomodado para o sepultamento. Nessa hora, as empregadas, tristes com a partida precoce, desfaziam a penumbra, querendo banir o ar de morte que os últimos dias imprimiram ao quarto do casal. O mesmo pavor que corria lento nas veias da falecida, desde o recente abril, assomou às mãos da governanta quando

ela tentou, com esforço descabido, erguer o travesseiro onde ela adormeceu em definitivo.

Restava ali tudo que ela desistiu de si mesma em gotas e delírio noite afora, convertendo-se naquilo que restou para o enterro. Sobrou para o marido, que não me suspeitava, o irreversível.

Jasmins para o ritual na capela. Na alcova, desfeito entre o terror dos gritos e a queda sobre o piso frio, identificaram-me parasita de aves, descuidadamente trazido ao travesseiro pela teimosia da defunta em cuidar dos pombos e faisões ao invés de deixar a tarefa aos empregados. Ser repulsivo, piloso, com o vampírico hábito alimentar instalado sob as madeixas da noiva de saúde frágil. Agora apenas um coágulo manchando a frieza do mármore, de novo à solta no vento, comunicando medos e arrastando as decepções que transitam em brancuras forjadas.

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Luana tem cabelos escuros, muito lisos e longos, e quando o marido fala neles usa os adjetivos assim encadeados, porque lhe parecem coisa contínua, água que flui. O filho tem o mesmo jeito de olhar para tudo ao redor, se demorando nas cores e detalhes, mas também tem as mãos bem desenhadas do pai, por isso os avós paternos se agarraram a expectativas sobre suas possibilidades como músico. Queriam até chamar um professor e reavivar o antigo piano Erard que se mantinha silencioso desde que filho embirrou e se trancou no quarto, dizendo que só voltaria a comer se a professora de música nunca mais voltasse.

Luana não contrariava seus sogros, mas ela e o marido nem pensavam em premeditar carreira para o filho, bastava que pudesse rir e se defender das adversidades inevitáveis. Não raro, recebiam conselhos quanto à criação do menino, mas não os aplicavam, sonhando para a criança voos no rumo da sua própria vontade e se alegrando com a chama vibrante que Luana julgava poder ver ondulando nos olhos líquidos do filhote.

A agência para a qual fotografava já não insistia para que participasse de trabalhos em equipe e quando havia demandas por registros da paisagem campestre ou das dunas do litoral seu nome era automaticamente lembrado, pois sabiam que vencia o desconforto das intempéries sem esforço. Para ela as horas de paz eram uma compensação justa. Suas fotografias revelavam com sutileza as

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Este conto também foi publicado no portal CulturaNews. Lá você também encontrará outros textos reunidos nesse e-book.

Lentes

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nuances de cores e o efeito ímpar do vento na vegetação. Seu clique forjava poesia concreta nas nuvens, como se ela recolhesse entardeceres povoados de asas rendilhando o céu e os prendesse nas páginas da revista.

Luana gostava de máquinas analógicas, do aparato de lentes e filtros, de revelar seus filmes e acompanhar o surgimento das imagens no papel ainda imerso na emulsão. Este era o entretenimento previsto para o feriado, quando sua pequena família tomaria posse da casa de praia dos tios durante quatro dias.

Na chegada, depois de levarem o menino já adormecido para a cama, comeram frutas e combinaram as primeiras ocupações do dia seguinte. Dormiram bem, mas como de costume, Luana acordou mais cedo e, além de ver o sono do marido sendo banhado pelo amanhecer – o que sempre a enternecia – quis caminhar até o mar.

Quando voltou, o pequeno divertia-se com o pai, que lhe inventava sobrevoos pela cama de lençóis desordenados. Luana, querendo capturar o idílio, sem interrompê-lo, recorreu à sua máquina e, ao focar as cenas da manhã sendo aquecida pela brincadeira deles, recuou. O que viu pelas lentes deixou travo de perplexidade na boca: ela mesma brincando com o filho e o amado. Eles riam muito, sem notar que a gargalhada ruidosa não era um hábito seu. Sua alegria não comportava escândalos, como podiam não saber disso? Quis alertá-los, mas soube

apenas fugir para o laboratório, querendo atribuir a visão a alguma sujeira nas lentes.

Quando cessou a balbúrdia no quarto, encontrou-os na cozinha. Vinham como crianças emergindo da piscina em tarde de muito calor. O marido a enlaçou depois de um gole de café e ela sentiu o hálito risonho, enquanto eles já corriam para a praia. Os dois gritaram para que se juntasse a eles, mas ela olhou para a máquina com desconfiança, abanou da varanda e deixou-se ficar na cadeira de balanço.

Acordou com o cheiro de frutos do mar e temperos mediterrâneos. Alaridos contentes na cozinha. Espiou pela janela e sentiu a espinha sem forças para sustentá-la: ela cozinhava e, contente, falava das recomendações acerca dos condimentos e frescor dos ingredientes que sua tia espanhola fizera ao ensinar-lhe aquele prato. Memórias que desconhecia. Sem fome, o coração atropelando-se, saiu para caminhar pela orla. Esforçava-se para não pensar na mulher que roubava seu rosto e sua família.

Na casa, o menino, contente com a animação da mãe pediu que ela o ensinasse a fotografar as flores das onze horas, depois queria fazer um retrato dela para guardar de lembrança.

Na praia, Luana pisou numa concha quebrada que a areia apresentou quente de sol às suas solas descalças. Ninguém mais estava ali para assistir o movimento.

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Ela não aparece faz muitos dias, deixou-nos aqui em suspenso desde a última vez que trabalhou neste conto. Ficamos cercados por essa sua mania de destacar a última palavra do parágrafo incompleto com a marca amarela do editor de texto. Não bastasse a falta de ações, seja alegria ou drama, ainda a decepção de encontrar a barreira espalhafatosa tornando insolúvel o nosso conflito. Este borrão me traz a impressão de um amontoado de escombros depositados na estrada, interrompendo nosso trânsito.

Não sei o que houve. Talvez ela não tenha conseguido resolver a forma como apresentará o sofrimento e complexidade dos personagens, ou pode simplesmente ter desistido do conto. Desagradável é ficarmos neste vácuo. Ao menos para mim a condição é muito incômoda. Sobre os sentimentos de Alice não posso afirmar muito.

Segundo o tanto da história que ficou armazenada neste arquivo de poucos bytes, o emprego vai bem e não há indícios de problemas com minha saúde. De incomum, apenas a inércia desmedida com minhas insatisfações. Desconheço se haverá algum segredo terrível a ser desvendado no final. O trecho oferecido à apreciação dos leitores – se houver algum – não dá a devida sustentação para meu gênio instável e não justifica de todo a completa falta de ânimo descrita por ela nos meus fins de tarde.

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BLOG OFF GRANTA E UMA NOVA VERSÃO

(MUITO MUITO DISTINTA), BASEADA EM

DISCUSSÃO COM LEITORES E NO

AMADURECIMENTO DO TEXTO JÁ FOI

PRODUZIDA, MAS FOI ESTÁ PARTICIPANDO DE

UM CONCURSO LITERÁRIO. SE NÃO DER EM

NADA, PUBLICAREI ATUALIZAÇÃO DESTE E-

BOOK INCLUINDO-A.

Monólogo de um mau marido

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Espero ainda ser surpreendido pela escritora, mas enquanto ela não volta, sou forçado a repisar o diálogo azedo com minha mulher. Seu nome é Alice (o meu sequer existe nessa ficção), ela tem menos de quarenta anos, é apegada a seus bichos de estimação e gosta de cozinhar para os amigos, mas temos poucas pessoas para elencar na categoria. Minha esposa diz que me falta o hábito de demonstrar afeto e admiração, reclama do quanto sou suscetível a alterações de humor, ciumento e desconfiado. Mas isso é puro exagero da autora, se ela me desse um pouco mais de voz, poderia apresentar outras facetas de cada picuinha narrada. Entretanto, não posso acusá-la muito duramente porque ao invés de descrever-me como a encarnação do marido relapso ao longo de todo o texto, me fez entrar na narração de modo divertido. Devo reconhecer também que, na hora da briga, minha resposta à reação superlativa de Alice foi pacífica.

O conto (ou novela ainda não posso ter certeza) começa quando chegamos em casa rindo, comentando a rabugice de uma vizinha de quem não gostamos. Mas as coisas mudam bruscamente quando, durante o jantar, minha conversa se perde nos becos do passado. Um comentário à toa, sem maldade intencional, sobre a amiga com quem dividia apartamento naqueles tempos. O resultado foi um áspero silêncio de Alice. Diferente de outras discussões que tivemos, ela não disparou seus argumentos, terminou de comer sem apetite, mastigando ressentimento. Não fez acusações, já conhece meu hábito de vigia e parece

acostumada. O costume de revisar seus passos é vício contra o qual não luto, mesmo com as repetidas evidências de sua inutilidade – de fato não tenho encontrado razões para repreendê-la em nada – e isso tornou ainda mais culposa a minha observação. Segundo ela, falta-me depositar confiança no seu afeto e seriedade, mas em meus pensamentos de personagem atrelado a esta narrativa interrompida prevalece apenas uma necessidade difusa de me certificar da permanência de sua conduta.

Já tivemos muitas discussões a respeito, mas desta vez eu mesmo provoquei o estremecimento ao mencionar, desnecessariamente, o passado e com isso a autora aproveitou para inserir um longo flash back das tormentas de Alice. A mim não foi dado ainda o espaço da defesa. Quem sabe quando a moça regressar à digitação?

Refazendo o percurso do texto até a mancha amarela onde ele desemboca, examino minha postura – não fui estúpido, grosseiro ou flagrantemente indelicado – então, embora reconheça o inoportuno da fala, me parece desproporcional a crise provocada pelo comentário sobre sua profissão anterior e sua colega. Também pode ser considerada incoerente, por um leitor mais apresado, a tristeza denotada pelo meu jeito de deixar os olhos perdidos na copa das árvores desse parque que avistamos da janela de nossa sala bem decorada. Mais um pouco e essa escritora colocará idéias de suicídio em meu entardecer.

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Chego mesmo a pensar nessa possibilidade, pois sem poder seguir para além desse borrão amarelo, circulo na repetição do sofrimento supérfluo que minha mulher desfila pelos cômodos. E bastaria uma pequena mudança na frase colocada no meio de nosso jantar para modificar completamente o enredo.

Se a autora deseja impacto, subtexto, dramaticidade, poderia escolher outra alternativa para obtê-los. Por que não algum fato surreal? Algo para provocar susto, mas não angústia. Ou então, ela poderia se satisfizer em relatar o cotidiano de um casal sem desavenças, o convívio quieto, contente com a boa saúde. Seríamos adultos anistiados dos deveres impostos pela procriação e aguardando o embranquecer dos cabelos, e tomaríamos vinho na casa arejada, sem nos preocuparmos com os conflitos no oriente médio. Acaso isso não poderia render algo digno de nota na literatura? Ela que se esforçasse por extrair valor da banalidade.

Mas ao contrário disso, essa mulher prefere fazer com que Alice reclame da falta de confiança sem dizer palavra alguma, obriga minha esposa a pensar nisso enquanto lava a louça do jantar mal degustado. Minha pobre mulher amarga o acúmulo dos pequenos incidentes sem importância durante o banho, esquecendo-se até do cuidado com o corpo ainda tão atraente – sua pele fina resseca com facilidade pelo excesso de temperatura da água e nesses dias de desencontro ela nem toca nos seus cremes de cheiros tão macios. Nas mãos dessa

escritora, cuja vida ignoro, fico sendo este homem amargo para quem basta ouvir uma lembrança de épocas menos tranqüilas e logo se instala em suas entranhas a convicção de ter sido traído, torpemente enganado.

Não fiz a conta de quantas vezes já repeti o trajeto da primeira à última palavra desse retalho de história, alternando os pontos de parada. A impotência de não poder alterar as ações, as vírgulas, os termos, me deixa à margem da fúria. Vejo Alice ofender-se e afundar num humor taciturno – ela fechou a cara e foi fazer suas coisas e eu fiquei ali parado no meio da sala – e quero me explicar, mas não posso. E mesmo que a escritora volte, haverá algo para ser explicado?

É possível que ela mude muitas coisas nesse emaranhado de mal entendidos; que ela reconsidere o tom de algumas de nossas divagações, mas o caso é que, quando fechou o arquivo e foi cuidar da própria vida ou de outras histórias inacabadas (e há muitas nessa mesma pasta em que estou aprisionado com meu casamento em tumulto), não deixou sequer uma pista dos planos que tinha para nosso desenlace – se é que os tinha realmente.

Espio pela janela dessa página impalpável e tento encontrar consolo nos outros textos inconclusos (as histórias acabadas deve armazenar em outro local do computador, aqui não há nenhuma) e me canso com esta circularidade, assim como me perturba a impossibilidade de comunicar-lhe o inoportuno de algumas de suas invenções para nossa existência.

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Capítulo 4

Frustrações

Toda expectativa é inimiga do sossego.

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O rapaz da seção de estofados chama-se José, a senhorita bem penteada dos cristais é Simone, e Deise é aquela mais empertigada com uniforme diferente – é a supervisora. Mas onde estará a menina magra de cabelos curtos que atendeu sua esposa outro dia e foi tão atenciosa ao mostrar os faqueiros, porcelanas e quase todos os itens da lista de casamento da sua sobrinha? No seu lugar estava um mocinho solícito e pálido chamado Davi. O olho atento e o ouvido interesseiro ajudaram a descobrir os nomes de vários atendentes da loja, menos aquele que provocou seu retorno.

A volta ao estabelecimento foi precedida de muita reflexão e sobressaltos. Lúcio calculou o pretexto mais adequado – demonstraria interesse pela lupa com cabo nacarado vista na seção onde ela atende – e antecipou as sensações possíveis quando reagisse a um eventual sorriso dela, ao apertar sua mão, agradecendo a cordialidade.

Demorou-se por alguns dias inquietos fantasiando enredos verossímeis para o intento, fantasiou enviar-lhe flores, encontrá-la no elevador e deparar-se com sua respiração buliçosa. Mas eram sonhos curtos, entrecortados da lucidez oferecida pela posição de professor titular de uma universidade católica e ele acordava sempre antes de imaginar o gosto que teria o beijo daquela menina tão fora de suas possibilidades como marido correto, homem culto e prudente.

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O Nome

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A decepção de não vê-la foi também alívio, porque não sabia como seria se ela estivesse lá. E se a atenção dispensada no outro dia fosse somente cortesia de boa vendedora? E se não? Qual seria a reação, o rubor, a tremedeira? As portas se escancarando e ele sem saber se aceita o convite para entrar ou se foge como criança que tocou a campainha apenas por pirraça.

Não encontrá-la, porém, fazia a parte não aliviada de sua intensidade manter-se presa à vibração adolescente que o fez perambular com cara de tolo nos corredores da loja, desculpando-se com os atendentes que lhe ofereciam ajuda. O desconforto embrulhado com a decepção gerava sensação de urgência, quase desespero e, mais que tudo, absurdo.

Há poucos dias vira a moça pela primeira vez. Tivera a leve impressão de que retribuíra um olhar mais atento. Conversa rápida enquanto preenchia a nota fiscal, despedida polida. Nada além. Com pouco mais que nada moldou os contornos de um romance épico e ardências inconfessáveis, e agora cavalgava nessa humilhação de perambular desconsolado como um Dom Quixote entre moinhos feitos de cristais e objetos de decoração dispensando envergonhado a atenção de outros vendedores.

Enquanto pagava a lupa que outro atendente o ajudou a escolher, consolava-se pensando que quarta-feira poderia ser o dia de folga da moça e havia ali muitas outras peças que poderia ainda adquirir. Voltou para casa recitando em voz baixa todos os nomes que supunha cabíveis para a jovem que não virá.

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